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Daniela Novelli

A BRANQUIDADE EM VOGUE ( E BRASIL): IMAGENS DA VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NO SÉCULO XXI

Tese submetida ao Programa de Pós- Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Doutora em Ciências Humanas. Orientadora: Profª. Drª. Cristina Scheibe Wolff Coorientadora: Profª. Drª. Susana Bornéo Funck

Florianópolis 2014

Este trabalho é dedicado à Stuart Hall [in memoriam]. AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) por ter me acolhido para a realização de meu doutorado, bem como a todo o seu Corpo Docente, especialmente ao competente grupo de mulheres da área de “Estudos de Gênero”. Cada um.a de vocês, Professores.as, contribuiu de forma ímpar para meu desenvolvimento acadêmico e para a escrita desta tese! Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Educação Superior (CAPES) pelo financiamento de meus estudos no Brasil. Ainda a esta última e ao Comité Français d’Évaluation de la Coopération Universitaire et Scientifique avec le Brésil (COFECUB) pelo financiamento de meu estágio de doutorado sanduíche no exterior, realizado na Université de Toulouse II – Le Mirail (UTM). Aos colegas doutorandos, mestrandos e graduandos do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH), por terem me proporcionado momentos de grande aprendizado e me mostrado o quanto a perspectiva de gênero pode mudar o “modo de ver” as relações humanas. Às professoras coordenadoras Joana Maria Pedro e Cristina Scheibe Wolff, que sempre demonstraram abertura para uma valiosa troca de ideias, acolhendo pesquisadores.as de vários cantos do Brasil e de outros países. Desejo a todos.as muito sucesso! À Cristina Scheibe Wolff e à Susana Bornéo Funck pelas orientações. À toda a equipe da UFSC e da UDESC envolvida no gigante “Fazendo Gênero”, Circulando entre mais de 4.000 pessoas a cada edição, percebi que o empenho de todos.as contagiou, emocionou, desafiou... À Miriam Pillar Grossi pelo incentivo e pelas orientações antes, durante e depois de meu estágio na Europa, estendendo este agradecimento à Mara Coelho de Souza Lago, pelas excelentes aulas de “Seminários Temáticos sobre Gênero” ao lado de outros colegas já doutores pelo PPGICH. E ainda à Carmem Silvia Rial, Tânia Welter e Mônica Soares Siqueira, pelas aulas de “Métodos Antropológicos”. As dezenas de resenhas me fizeram amadurecer pessoal e academicamente. À Joana Maria Pedro, pelas excelentes aulas de “Teorias da História, da Cultura e do Indivíduo”. Obrigada por ocupar com maestria e responsabilidade a função de Coordenadora do PPGICH durante os

primeiros anos de minha permanência como discente e representante de turma (com o querido colega Leandro Cisneros). Ao querido Selvino José Assmann, atual Coordenador do PPGICH e à Teresa Kleba Lisboa, meus sinceros agradecimentos pelo empenho e atenção de sempre ao Programa. À Luzinete Simões Minella por ser um exemplo vivo de sabedoria e humildade, incluindo seu olhar firme e doce ao mesmo tempo, que emana espírito de luta! À Tânia Regina Oliveira Ramos por ter me aceitado como avaliadora de pôsteres nas duas edições do “Fazendo Gênero”, ao lado de pessoas muito especiais e dedicadas. Aos professores Héctor Leis, Selvino Assmann, Luiz Fernando Scheibe, Paulo Krischke, João Lupi, Alberto Cupani, Brígido Camargo e Marcos Montysuma. Aos funcionários do PPGICH, especialmente Jerônimo Ayala, Helena, Elaine e Ângelo, pela atenção e disponibilidade de sempre na Secretaria. Assim como a todos.as os.as funcionários.as da UFSC, especialmente do CFH. À geração 2010 de doutorandos.as do PPGICH da UFSC, queridos.as colegas!!!! À Cíntia Lima e Gilmária Ramos pela compreensão, pela ajuda e pelas risadas sempre presentes em nosso estágio docência. Gil, obrigada pelo carinho e pelas descobertas em Paris, collègue de chambre divertida e cheia de fé. Também às queridas Carol Cubas e Dani Queiroz, que assim como Gil amam a França... sem vocês esse sanduíche não teria o mesmo sabor! À Melina de la Barrera Ayres, Grande Amiga. Palavras não bastam para expressar a admiração que sinto por você. Quanta emoção aqui e lá fora... À Giovana Zimermann, surpresa boa da Vida que cruzou meu caminho na Maison du Brésil e por razões que só Deus explica era de Floripa, pesquisadora e artista!!! “Conhecer a cidade é contemplar seu incessante devir”, não é mesmo? Grande alma... Ao querido colega de turma Leandro Cisneros, obrigada pelo carinho e respeito! Sucesso em sua defesa meu amigo, filósofo que ensina onde passa. À Simone Ávila, Silvana Pereira, Izadora Machado e Ana Ribas, colegas de turma poderosas, tão diferentes e queridas, aprendi muito com cada uma, dentro e fora de sala.

Aos queridos colegas cofecubianos Marília Fontenelle, Carol Cherfem, Tatiane Lobo, Marcilio Lucas, Renata Bastos, Marcelo Mandelli, jamais esquecerei o que vivi ao lado de cada um de vocês em Vichy, Rennes, Toulouse e/ou Paris. Sucesso em suas defesas. Só me resta dizer: chocolat caramelisé!!!! À Kenia Cabral, colega de graduação e de francês, batalhadora que fez doutorado pleno em Paris sem bolsa. Às queridas Ana Rúbia Becker e sua mãe, que se juntaram a nós para comer crepe e matar a saudade. Aos colegas da Apeb-Fr, especialmente Vinicius Kauê Ferreira e Marina Melo, que com muita dedicação incentivaram tantos pesquisadores brasileiros na França durante minha estadia, bem como dirigiram e/ou dirigem com sabedoria e amizade esta importante Associação. Também aos pesquisadores brasileiros e franceses das Ciências Humanas e Exatas que “fizeram acontecer” em Toulouse uma incrível mesa-redonda: Melina de la Barrera Ayres, Jérôme Courduriès, Nicolas Adell, Eduardo Breviglieri Pereira de Castro, Marília Ramalho Fontenelle, Claudia Helena Daher, Fabien Laffont e Marina Silveira de Melo. À Émilie Coutant, coordenadora do Groupe d’Étude sur la Mode (GEMODE), por ter me proporcionado apresentar minha pesquisa na Université Paris V Sorbonne. Foi um sonho realizado. À querida Luisa de la Quintinie, outra feliz surpresa de Paris, merci ma chèrie pelo carinho, pelas exposições de moda, pela bela pedida na Colette. Em Floripa, mais ao Sul ou na França, felicidade sempre! À colega Ana Paula Marcante Soares, obrigada pela companhia em Paris “guria”, sucesso na sua tese e na vida. À incrível carioca- canadense Margareth Zanchetta, mulher forte, simpatia pura. Obrigada pela companhia em Paris, pela energia boa e por levar a sua irmã no “nosso” aniversário. À Claudia Nichnig, Rosa Blanca e Felipe Fernandes, pelas dicas de pesquisa e palavras afetuosas. Aos colegas, professores.as e outros estudantes do Brasil e da França que discutiram meu tema de pesquisa em eventos nos quais apresentei comunicações orais. À Andrea A. de Andrade, da biblioteca do Senac Sto Amaro, em São Paulo. Obrigada pela atenção e pelos vários e-mails com “detalhes” esquecidos durante a pesquisa documental. À Agnès Fine, pela coorientação em Toulouse.

À mes chers Fanchon Debehogne & Ivan, Martine & Daniel Fourcade. Merci beaucoup pour les cadeaux faits à main, vous m’avez appris trop de choses! À Jérôme Courduriès, merci beaucoup pour l’accueil chaleureux et le soutien à Toulouse. À Agnès Martial, Claudine Vassas, Patrizia Ciambelli, Mylène Hernandez, Natacha Baboulene-Miellou et Nicolas Adell, merci à tous et à toutes. À minha amada mãe Carmem Silvia, por ter sempre uma palavra de incentivo e muitas energias boas. Obrigada pelas sessões de Reiki, você é um exemplo de amor e força, de criatividade e intuição, de generosidade e renovação. Ao meu pai, querido Carlos Novelli, pela força, pelo exemplo de alegria, pelo amor, pela dedicação e por ter cuidado das coisas enquanto estive fora. Devo muito a vocês esta maravilhosa e dolorosa experiência, que encerra uma fase importante de minha atual existência. Amo vocês. À minha querida irmã Andrea N. Badin, pela compreensão e amizade. Ao meu cunhado Evandro e aos lindos sobrinhos Lucas e Luigi, pelo carinho. À Adriana Novelli, irmã e grande amiga. Pelas dicas preciosas regadas sempre a café, pela alegria e leveza que contagiam, por ter me ouvido e me aturado em alguns momentos de crise, de dúvida e cansaço. Muito obrigada pela revisão deste trabalho! Aos professores e às professoras do curso de graduação em Moda e de pós-graduação em História da UDESC, que de alguma forma contribuíram para que eu chegasse até aqui. Notavelmente à Mara Rúbia Sant’Anna, que me orientou no mestrado e me incentivou a tentar este doutorado, acreditando em minhas capacidades. À Marcia Perencin Tondato, bem como Alice e Waldemar, pela carinhosa lembrança e pelas lindas flores... À toda a minha família! À Deus e aos Mestres de Luz que me deram e dão muita força.

RESUMO

Esta pesquisa interdisciplinar de doutorado tem como principal objetivo analisar a produção discursiva da branquidade a partir do corpo feminino em Vogue, entre os anos de 2001 e 2010. O corpo [branco] convocado pelo discurso de moda foi identificado a partir de uma análise documental e qualitativa de edições francesas e brasileiras deste periódico de alta moda e prêt-à-porter de luxo, bem como a violência simbólica que naturaliza o desejo colonizador masculino por meio das lentes dos fotógrafos. Tal análise demonstrou ainda como a erotização e a exotização do Outro e de si mesmo são geradas pelo cruzamento sociocultural e histórico de outras formas de dominação (de classe e de gênero/sexual), em diferentes contextos da mesma violência simbólica racial.

Palavras-chave: Branquidade. Vogue (Brasil e Paris). Violência simbólica.

ABSTRACT

This interdisciplinary doctoral study aims to analyze the discursive production of whiteness from the female body in Vogue, between the years 2001-2010. The body [white] convened by the fashion discourse was identified from a documentary and qualitative analysis of the Frenchs and Brazilians’editions by this journal of the high fashion and read-to-wear’s luxury, as well as the symbolic violence that naturalizes male colonizer's desire through the lenses of the photographers. This also demonstrated how the sexualization and exoticization of the Other and itself are generated by sociocultural and historical crossroads of other forms of domination (class and gender/sexual), in different contexts of the same racial symbolic violence.

Keywords: Whiteness. Vogue (Brazil and Paris). Symbolic violence.

RÉSUMÉ

Cette recherche doctorale interdisciplinaire vise à analyser la production discursive de la blanchité du corps féminin en Vogue entre les années 2001-2010. Le corps [blanc] convoquée par le discours de mode a été identifié à partir d’une analyse documentaire et qualitative des éditions Françaises et Brésiliennes de ce magazine de et prêt-à- porter de luxe, aussi bien que la violence symbolique qui naturalise le désir colonisateur masculin à travers les lentilles des photographes. L’analyse a montré encore comment la sexualisation et l’exoticisation de l'Autre et de soi-même sont générés par des carrefours socioculturelles et historiques d'autres formes de domination (de classe et de genre /sexuelle) dans des différents contextes de la même violence symbolique raciale.

Mots-clés: Blanchité. Vogue (Brasil et Paris). Violence symbolique.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Capa do prospecto do evento Le sens du corps: analyse spectral. Démarcations, compositions, segmentation Figura 2: Imagens do editorial com temas sobre Índia e África do Sul Figura 3: Fotos da exposição Mannequin, le corps de la mode, 2013 Figura 4: Capa de com as supermodelos e Figura 5: Imagens de Kate Moss na sessão Magazine de Vogue Paris Figura 6: Imagens de Kim Noorda na matéria A Luta por um corpo normal Figura 7: Imagens do editorial Body Couture Figura 8: Capas de Vogue Brasil. Edições: 296 (2003), 307 (2004), 341 (2007), 360 (2008), 365 (2009) e 377 (2010) Figura 9: Imagens do editorial L’Idole, homenagem à cantora Amy Winehouse Figura 10: Imagens da modelo brasileira super bronzeada na campanha da marca H&M Figura 11: Imagem do Editorial Noir Blanc Figura 12: Imagem do editorial Performance Figura 13: Imagens do editorial Noir Blanc Figura 14: Imagens do editorial Performance Figura 15: Imagem do editorial Gênero Príncipe Figura 16: Imagem do editorial Primeira Viagem Figura 17: Imagens do editorial Gênero Príncipe Figura 18: Imagens do editorial Primeira Viagem Figura 19: Capas de Vogue da década de 1950 dirigidas por Liberman Figura 20: Dovima no Circo de Inverno de Paris, agosto de 1955 Figura 21: Capas de Vogue da década de 1960 dirigidas por Vreeland Figura 22: Foto tirada por Guy Bourdin em 1981 publicada na matéria Provocação Genial Figura 23: Fotos das celebridades no desfile de prêt-à-porter Outono/Inverno 2013/2014 da , realizado no Grand Palais: Vanessa Paradis, Jessica Chastain, Milla Jovovich, e André Leon Talley Figura 24: Fotos de redatoras-chefes e jornalistas de Vogue: Anna Wintour, Carine Roitfeld, Anna Dello Russo e Daniela Falcão Figura 25: Fotos de jovens segurando imagens de celebridades e bolsa Chanel falsificada. À direita, modelos na saída do desfile da Figura 26: Foto da fachada do complexo varejista de luxo Daslu, localizado na cidade de São Paulo Figura 27: Fotos das boutiques e da Avenue Montaigne, em Paris Figura 28: Imagens do editorial Saída à Francesa Figura 29: Imagem de Nossa Senhora da Assunção, forro da sacristia de igreja de Ouro Preto (MG). Pintura sobre madeira, século XVIII Figura 30: Imagem da obra Cinco Moças de Guaratinguetá, de Emiliano Di Cavalcanti. Óleo sobre tela, 92cm x 70cm, 1930. Museu de Arte de São Paulo, São Paulo (SP) Figura 31: O efeito flou aplicado à foto de Meyer para Vogue, setembro de 1918 Figura 32: Vestido Art Déco fotografado por Steichen para Vogue, junho de 1925 Figura 33: Destaque para a decoração limpa, na qual detalhes e acessórios supérfluos foram eliminados por Hoyningen-Huene para Vogue, julho de 1930 Figura 34: O efeito trompe-l’oeil de Horst para Vogue, novembro de 1939 Figura 35: A modelo Lisa Fonssagrives posa para Blumenfeld registrar a emblemática fotografia de moda para Vogue, maio de 1939 Figura 36: Encenação de Mary Taylor com um vestido Chanel, registrada por Beaton para Vogue, maio de 1935 Figura 37: A espontânea Veruschka foi uma das mulheres escolhidas para a fotografia de moda de Avedon, 1972 Figura 38: A elegância do vestido de Arlequim e de Lisa Fonssagrives- Penn para Vogue, abril de 1950

Figura 39: Foto realizada por David Bailey para Vogue inglesa, fevereiro de 1974 Figura 40: Foto realizada por Helmut Newton para Vogue Paris, maio de 1975 Figura 41: A inocência made in USA registrada em Islamorada (Flórida) por Bruce Weber para Vogue Figura 42: O realismo ficcional de para Vogue inglesa, 1989 Figura 43: Foto realizada por Peter Lindbergh para o Calendário Pirelli de 2014 Figura 44: Foto realizada por para Vogue, fevereiro de 2009 Figura 45: Gisele por na matéria Gisele fala Figura 46: Imagens do livro Mario de Janeiro Testino Figura 47: Foto de Mario Testino para o editorial Melting Tops Figura 48: Fotos de Mario Testino para o editorial 95 C Figura 49: Foto de Miro para a capa de Vogue Brasil Figura 50: Foto da série “Vaidades” de Miro, 2010 Figura 51: Fotos de Miro para o editorial “Panteras Negras”, 2009 Figura 52: Imagens da divulgação da exposição fotográfica de Miro, “Pérolas Negras”, 2012 Figura 53: À direita, foto de Patrick Demarchelier para o editorial Athlète du Style Figura 54: À esquerda, foto de Patrick Demarchelier para o editorial La Belle Américaine Figura 55: À esquerda, foto de Patrick Demarchelier para o editorial Le Chant des Sirènes Figura 56: Fotos de Jacques Dequeker para o editorial Classe à beira- mar Figura 57: Foto de Jacques Dequeker para o editorial Body Couture Figura 58: As courtisanes Caroline Otero, Liane de Pougy e Lina Cavaliéri Figura 59: Imagens da matéria Courtisane chic! Figura 60: Imagens do editorial Ça, c’est Paris Figura 61: Imagem da matéria French touch Figura 62: Imagem do editorial I Love Joana Figura 63: Imagem do editorial Hawaiian Punch Figura 64: Imagem do editorial Le Style Chanel Figura 65: Imagem do editorial Air Libre Figura 66: Imagens do editorial L’Emprise des Sens Figura 67: Imagem do editorial Le Chant des Sirènes Figura 68: Imagens do editorial I Love Joana Figura 69: Imagens do editorial Hawaiian Punch Figura 70: Imagens do editorial Le Style Chanel Figura 71: Fotos da exposição The Little Black Jacket, Paris Figura 72: Imagens do editorial Air Libre Figura 73: Imagem do editorial sobre Marie-Amélie Sauvé Figura 74: Imagem do editorial Précieux et Chair Figura 75: Imagem do editorial sobre Carine Roitfeld Figura 76: Imagens do editorial Hawaiian Punch Figura 77: Imagem do editorial Les Pechés Figura 78: Imagem da capa da edição histórica dos 90 anos de Vogue Paris Figura 79: Capas de Vogue Paris. Edições: Février 2001, Octobre 2001, Avril 2002, Août 2003, Décembre 2004/Janvier 2005, Août 2005, Août 2006, Décembre 2006/Janvier 2007, Juin/Juillet 2008 Figura 80: Imagens do editorial Baptême en Diable Figura 81: Imagem da obra Veridiana Prado, de Carlo de Servi. Óleo sobre tela, 110cm x 80cm, 1899. Museu Paulista, São Paulo (SP) Figura 82: Imagem da obra Maternidade, de Eliseu D’Angelo Visconti. Óleo sobre tela, 165cm x 200cm, 1906. Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo (SP) Figura 83: Imagem da obra Escrava Romana, de Oscar Pereira da Silva. Óleo sobre tela, 146,5cm x 72,5cm, 1894. Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo (SP) Figura 84: Imagem do editorial Classe à Beira-mar Figura 85: Imagem do editorial Jardim Lisérgico Figura 86: Imagem do editorial Radical Chic Figura 87: Imagens do editorial Classe à beira-mar

Figura 88: Imagens do editorial Jardim Lisérgico Figura 89: Imagens do editorial Radical Chic Figura 90: Imagem do editorial Flagrada Figura 91: Imagem do editorial O Sertão está na Moda Figura 92: Imagem do editorial Jardim Lisérgico Figura 93: Imagens do editorial Flagrada Figura 94: Imagens do editorial O Sertão está na Moda Figura 95: À esquerda, Maria Bonita na década de 1930, com os cães Ligeiro e Guarany e à direita, ao lado de Lampião e do suposto fotógrafo sírio Benjamin Abrahão Figura 96: Imagens do editorial Jardim Lisérgico Figura 97: Capa da edição e imagens da matéria Gisele fala Figura 98: Da esquerda para a direita, as modelos Mariana Nery, Carolinne Prates, Mariana Santana e Figura 99: Imagem do editorial A Bela da Tarde Figura 100: Imagem do editorial Lata d’Água Figura 101: Imagem do editorial Folia de Rainha Figura 102: Imagens do editorial A Bela da Tarde Figura 103: Imagem de Sèverine no filme Belle de Jour Figura 104: A modelo Figura 105: Imagens do editorial Lata d’Água Figura 106: Capa da V Magazine Figura 107: Capa de Vogue Paris Figura 108: Campanha da BLK DNM, 2013 Figura 109: Imagens do editorial Folia de Rainha Figura 110: Grazi Massafera no desfile da Grande Rio, em 2007 Figura 111: Carol Trentini com o símbolo da Tour Eiffel em sua fantasia

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APEB-Fr Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na França. CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Educação Superior. CAVILAM Centre d'Approches Vivantes des Langues et des Médias. CEAQ Centre d’Étude de l’Actuel et le Quotidien. CIMODE Congresso Internacional de Moda e Design. CFH Centro de Filosofia e Ciências Humanas CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. COFECUB Comité Français d’Évaluation de la Coopération Universitaire et Scientifique avec le Brésil. EHESS École des hautes études em sciences sociales. FDFA Femmes pour le Dire, Femmes pour Agir. GEMODE Groupe d’Étude sur la Mode. IEC Institut Émilie du Châtelet. IFM Institut Français de la Mode. LABGEF Laboratório de Relações de Gênero e Família. LEGH Laboratório de Estudos de Gênero e História. LISST Laboratoire Interdisciplinaire Solidarités Societés Territoires. PPGICH Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. SPFW São Paulo Fashion Week. TAC Termo de Adiantamento de Conduta. UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina. UFSC Universidade Federal de Santa Catarina.

UTM Université de Toulouse II – Le Mirail.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...... 21 2. O CORPO [BRANCO] CONVOCADO PELO DISCURSO DE MODA EM VOGUE ...... 31 2.1 BRANQUIDADE E A PERSPECTIVA DOS WHITENESS STUDIES ...... 37 2.2 QUE CORPO [BRANCO] É ESSE? ...... 52 2.3 “VOGUE-QUEM”: O DISCURSO DE COMPETÊNCIA E RENOVAÇÃO CONSTANTES ...... 76 2.4 VOGUE PARIS: A EFICÁCIA SIMBÓLICA DA CAPITAL FRANCESA E A GLOBALIZAÇÃO DO LUXO ...... 95 3. A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA QUE NATURALIZA O DESEJO COLONIAL [BRANCO E MASCULINO] EM VOGUE ...... 123 3.1 O TERRENO DAS IMAGENS: OBJETOS E AGENTES EM FRONTEIRAS MOVEDIÇAS ...... 124 3.2 “MODOS DE VER”: QUANDO A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA SE FAZ IMAGEM...... 141 3.3 OS FOTÓGRAFOS DE VOGUE ...... 153 3.3.1 Mario Testino ...... 180 3.3.2 Miro ...... 186 3.3.3 Patrick Demarchelier...... 191 3.3.4 Jacques Dequeker ...... 194 3.4 ECONOMIA SEXUAL DO DESEJO COLONIAL [BRANCO] . 197 4. POTÊNCIAS DA IMAGEM: ENTRE EROTIZAÇÃO E EXOTIZAÇÃO DO OUTRO E DE SI ...... 203 4.1 VOGUE PARIS POR CARINE ROITFELD: IMAGENS, DISCURSOS E NARRATIVAS DE UMA REVOLUCIONÁRIA?.. 209 4.1.1 A cultura [branca] estético-erótica francesa ...... 213 4.1.2 O culto da livre atitude [republicana] da mulher parisiense 224 4.2 VOGUE BRASIL POR PATRICIA CARTA: IMAGENS, DISCURSOS E NARRATIVAS DE UMA BRANQUIDADE CONSERVADORA? ...... 250 4.2.1 O “autoexotismo” da natureza e da cultura popular brasileira ...... 260 4.2.2 Nacionalismo, erotização e embranquecimento da mulata brasileira ...... 285 CONCLUSÃO ...... 317 REFERÊNCIAS...... 323

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1. INTRODUÇÃO

Antes mesmo de inscrever-me no mestrado em História1, atuei como estilista durante sete anos em algumas empresas de moda jovem e jeanswear de Santa Catarina e São Paulo. A revista Vogue era minha principal fonte de inspiração e me permitia adquirir informações de grandes centros produtores de tendências de moda, principalmente São Paulo, Paris, Milão, Londres e Nova York. Era « uma bíblia », por assim dizer, na qual eu mergulhava em imagens e textos sem nenhum espírito crítico. Eu havia simplesmente naturalizado as inúmeras e repetitivas representações de corpos femininos magros, brancos e jovens apresentados por este periódico durante os anos 1990 e toda a primeira década de 2000 – considerando minhas vivências de graduação e especialização em Moda e docência em duas universidades de Santa Catarina. Mas, ao longo dos últimos anos de uma rica experiência doutoral interdisciplinar, incluindo o estágio sanduíche realizado na França entre julho de 2012 e julho de 2013, posso avaliar que meu olhar sobre tais produções de Vogue mudou consideravelmente. Após a escrita desta tese, percebo o quanto este giro de perspectiva foi marcado pelas contribuições dos estudos de gênero e pós-coloniais, absorvidas principalmente durante as disciplinas “Teorias da História, da Cultura e do Indivíduo”2 e “Seminários Temáticos sobre Gênero”3 oferecidas pelo Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH), no qual esta tese é parte integrante, bem como os frutíferos

1 Programa de Pós-graduação em História (PPGH) do Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAED) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Área de concentração: História do Tempo Presente. Título da dissertação: Juventudes e imagens na revista Vogue Brasil (2000-2001). Orientação: Mara Rúbia Sant’Anna. 2 Disciplina obrigatória do programa, ministrada por Joana Maria Pedro, Carmen Rial, Luzinete Simões Minella, Mara Coelho de Souza Lago, Sandra Caponi, Tânia de Oliveira Ramos, Miriam Pillar Grossi e Eunice Sueli Nodari. 3 Disciplina opcional do programa, ministrada por Miriam Pillar Grossi e Mara Coelho de Souza Lago. 22 encontros do LEGH4 e as duas últimas edições do evento Fazendo Gênero5. Empenhei-me, principalmente nos últimos meses, em analisar, explorar e nomear o terreno da brancura em Vogue, partindo do pressuposto de que não há uma “essência verdadeira” para a brancura, mas sim construções historicamente contingentes deste lugar social (NAKAYAMA; KRIZEK, 1995), considerando ainda que la presse, c’est le pouvoir absolut [a imprensa é o poder absoluto], como afirmou Didier Grumbach (2008). Desta forma, fiz questão de propor no segundo capítulo uma discussão sobre a relação entre as vozes legitimadas e produtoras de discursos de competência e renovação constantes e a própria história deste periódico. O objetivo central da tese foi o de analisar a produção discursiva da branquidade6 a partir do corpo feminino em Vogue, um periódico de

4 Laboratório de Estudos de Gênero e História, situado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenado por Joana Maria Pedro e Cristina Scheibe Wolff. 5 O Seminário Internacional Fazendo Gênero é um evento promovido pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Instituto de Estudos de Gênero – IEG, Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC e Laboratório de Relações de Gênero e Família – LABGEF. Realizado na UFSC, recebeu cerca de 4.000 a 5.000 inscrições em cada uma de suas duas últimas edições, contando com pesquisadoras.es de vários países do mundo. Acompanhei e participei apresentando comunicações orais e avaliando pôsteres nas edições de 2010 (Fazendo Gênero 9: Diásporas, diversidades, deslocamentos) e de 2013 (Fazendo Gênero 10: Desafios atuais dos feminismos). 6 Adoto o termo « branquidade » para fazer referência à tradução do termo « whiteness » e « blanchité », concordando com os apontamentos de Horia Kebabza em seu artigo «L’universel lave-t-il plus blanc?»:«Race», racisme et système de privilèges». Segundo Kebabza, “se certos.as pesquisadores.as empregam a palavra blanchitude para traduzir o termo whiteness, nós preferimos o de blanchité. Como destaca Judith Ezekiel, blanchitude está calcado sobre a palavra négritude, movimento literário e artístico que buscava valorizar os aspectos positivos da cultura ou da identidade negra. A blanchitude, nesta lógica, poderia ser apenas uma afirmação daquilo que seria positivo em uma cultura « blanche », o que é perfeitamente contraditório ao conceito desenvolvido aqui” (KEBABZA, 2006, p. 145). O termo « blanchité » também é usado pelo coletivo Manouchian, formado por Said Bouamama, Jessy Cormont e Yvon Fotia, que organizaram Dictionnaire des dominations de sexe, de race, de classe, publicado em 2012. 23 alta moda e prêt-à-porter de luxo7, nos contextos francês e brasileiro. Partindo de uma análise qualitativa de edições de Vogue Paris e Vogue Brasil, publicadas entre os anos 2001 e 2010, procurei articular novas descobertas e apontar respostas em relação a seguinte questão: se o ethos da branquidade é historicamente construído, de que forma a produção discursiva sobre o corpo feminino em Vogue estaria contribuindo para a reprodução da violência simbólica nos contextos francês e brasileiro ao longo do primeiro decênio do século XXI? A brancura (co) produz habitus de maneira articulada e simultânea a outras formas de dominação de classe e de sexo/gênero, variáveis em diferentes contextos socioculturais e históricos, influenciando identidades, maneiras de ver, pensar e agir. Segundo Bouamama, Cormont e Fotia (2012, p. 73), ela é também “(...) uma espécie de vestimenta ‘racial’ que funciona como um passaporte social, abrindo portas fechadas aos não-Brancos.as”. Tal dimensão corporal e material da brancura está, portanto, associada à dimensão simbólica e discursiva do poder racial [branco]8. Continuei minhas indagações: quais seriam as implicações sociais da circulação do corpo [branco] e/ou da naturalização da branquidade no universo da moda de luxo diante do aparente “esvaziamento” da cor branca como identidade cultural, em diferentes contextos históricos e políticos [latino-americano e europeu], marcados por diferentes narrativas, imagens e “modos de ver” comandados pelas chefes de redação Patricia Carta (Vogue Brasil) e Carine Roitfeld (Vogue Paris)? Como hipótese, levei em conta o fato de que, apesar da produção social da branquidade em Vogue (Paris e Brasil) entrelaçar distintas relações de dominação classista, sexual e de gênero nos contextos

7 Utilizo esses termos na tese para fazer referência ao segmento da “moda de luxo” vendida em Vogue, marcada historicamente pela invenção da Alta Costura [Haute Couture] na França e mais recentemente pela produção em série mas relativamente restrita de coleções sazonais. O Brasil, que não possui tradição na linha de Alta Costura, está empenhado desde os últimos anos em fabricar e exportar produtos dessas coleções de alta qualidade com maior valor agregado, incluindo neste objetivo principalmente as marcas que participam dos eventos São Paulo Fashion Week (SPFW) e Rio Fashion. Esta “moda de luxo” abrange ainda outros setores, tais como acessórios e perfumes, como veremos no segundo capítulo. 8 Adoto, algumas vezes, o uso de colchetes no termo “branco” (incluindo sua aplicação no plural e /ou no feminino, quando for o caso) justamente para chamar a atenção para a invisibilidade social que este adquiriu historicamente, no decorrer da construção social e ocidental da branquidade no século XX. 24 francês e brasileiro, seria a partir de uma espécie de “matriz discursiva Condé-Nast” que tais diferenças atenderiam à mesma violência simbólica (racial), justamente a partir do corpo [branco] feminino. O periódico citado foi visto ainda em meu mestrado como fonte e objeto da pesquisa histórica e as análises desenvolvidas demonstraram o quanto o corpo feminino se tornou uma sede de significação e subjetivação da juvenilização9, estabelecendo novas possibilidades estéticas, comportamentais e desempenhando um papel vital na produção publicitária por justamente representar um dos modelos mais desejados de nossa atualidade: “beleza-magreza-juventude” (OLIVEIRA, 2005, p. 200). Mas a visibilidade global que esse modelo alcançou nas últimas décadas não significou que ele tenha sido problematizado do ponto de vista das condições culturais e históricas de construção social do corpo branco. Acrescentei, portanto, a “brancura” ao modelo proposto por esta autora. Movida pelos desafios de uma aventura interdisciplinar, retomo que ser interdisciplinar é justamente olhar o “entre”, buscando o comum entre as partes para retroalimentá-las com o novo integrado (PAVIANI, 2008). Adquiri a coragem necessária para propor uma pesquisa sobre a branquidade no campo da moda, pois se mesmo as categorias nomeadas vivem as instabilidades das significações que lhe são atribuídas (espacial e temporalmente), o que dizer das “não nomeadas”? Durante o doutorado, percebi o quanto as epistemologias feministas pós-modernas podem contribuir para esta construção interdisciplinar, permitindo a expressão de minha subjetividade. Nesse sentido, confesso que a escrita desta tese me fez sentir a grande responsabilidade que é ter um corpo

9 Termo proposto pelo sociólogo Luís Antonio Groppo, para traduzir e expressar a juventude como uma categoria social determinante para a consagração/efetivação de mudanças ocorridas principalmente a partir da segunda metade do século XX, que acabaram contribuindo para uma nova lógica de consumo nas sociedades ocidentais. Edgar Morin considerou esse processo como ‘juvenilidade’ (Cultura de massas no século XX: neurose. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 153); Michel Maffesoli como ‘juvenismo ambiente’ (A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995, p. 133); Maria Stephanou como ‘descronologização da concepção de juventude’ (Traços falantes, identidades mutantes: juventudes na contemporaneidade. IV Seminário Práticas de Leitura, Gênero e Exclusão. Campinas, SP: 2007, p.14), entre outros filósofos e sociólogos do século XX. 25

[branco], pois tive que pensar o racismo “do lado dos Brancos” (BOUAMAMA; CORMONT; FOTIA, 2012). Encarei as páginas que representavam o corpo [branco] como um “espaço de aprendizado”. A moda adquiriu, no contexto contemporâneo, um crescimento no âmbito simbólico e foi entendida não somente como “fenômeno vestimentário de elite, associado à ascensão do mercantilismo capitalista no Ocidente, ao final da Idade Média” (VILLAÇA, 2007, p. 142), mas como campo privilegiado de práticas e investimentos estéticos, simbólicos, socioculturais, históricos, políticos permeados por complexos diálogos. Seguindo a linha de pesquisa “Gênero e suas inter-relações com geração, etnia, classe”, considerei teórica e metodologicamente a “constituição discursiva como estratégia do poder, como efeito de discurso” (VILLAÇA, 2010, p. 15), a partir de uma abordagem quantitativa e qualitativa das edições brasileiras e francesas de Vogue que foram publicadas entre os anos de 2001 e 2010. O período escolhido foi sugerido pelos membros da banca de qualificação, em especial Mara Rúbia Sant’Anna Müller, que observou que este era exatamente o tempo em que Carine Roitfeld exerceu a função de chefe de redação da versão francesa de Vogue. Este fato acabou orientando o recorte temporal, sendo aplicando também para a versão brasileira, que contou com uma única redatora-chefe, Patricia Carta. Com poucas exceções, o critério de escolha das edições que fizeram parte do corpus foi o seguinte: duas edições de um mesmo ano, respeitando intervalos de pelo menos três meses entre uma edição e outra do mesmo ano. Boa parte das edições de Vogue Brasil e algumas edições de Vogue Paris foram encontradas na biblioteca do Centro Universitário Senac – Santo Amaro, em São Paulo; outras edições de Vogue Brasil faziam parte do acervo particular da pesquisadora, sendo doadas ao departamento do curso de Moda da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) após o término da pesquisa. E a maioria das edições de Vogue Paris foram encontradas no acervo de duas bibliotecas de Paris: Bibliothèque Forney e Bibliothèque des Arts Décoratifs. Textos e imagens foram vistos como “resíduos” de determinados processos históricos e discursivos, adquirindo significados de muitas formas, inclusive pela diversidade de elementos tipográficos e de ilustração, pela ênfase em certos temas, pela linguagem e ainda pela natureza do conteúdo, que dificilmente estão separados do público que o periódico pretende atingir. Antes mesmo da qualificação do doutorado, já havia privilegiado edições francesas e brasileiras para analisar, embora na época meu 26 interesse estivesse voltado para a questão geracional, mais especificamente para o corpo feminino e as estéticas transetárias. No terceiro ano de estudo, pelo quadro do projeto CAPES-COFECUB intitulado Genre, Parenté, Sexualité. Une étude comparative entre et Brésil, 2010-2013, coordenado por Miriam Pillar Grossi e Agnès Fine, tive a oportunidade de realizar o estágio doutorado- sanduíche na França por onze meses, conhecendo pesquisadores.as do Laboratoire Interdisciplinaire Solidarités Societés Territoires (LISST), ligado à École des hautes études em sciences sociales (EHESS) e situado no campus da Université de Toulouse Le Mirail, em Toulouse. Entre eles.as, Agnès Fine (coorientadora da instituição estrangeira), Jérôme Courduriès, Claudine Vassas, Patrizia Ciambelli, Mylene Hernandes, Natacha Baboulene-Miellou, Nicolas Adell, Ariela Epstein, entre outros.as. Laboratórios e acervos pesquisados em Toulouse e Paris forneceram os instrumentos necessários para atender às demandas da pesquisa documental e de campo. Durante o estágio, frequentei principalmente a Université Toulouse II – Le Mirail, Bibliothèque Forney, Bibliothèque des Arts Décoratifs, Institut Français de la Mode (IFM), Bibliothèque de la Maison des sciences de l’homme e o Forum des Images, em Paris. Tive ainda acesso a periódicos científicos da área dos Estudos de Gênero, tais como Communications, Cahier du Genre, Genre et Histoire, Genre, Sexualité & Societé, Travail, Genre et Société, Apparence(s), Le Temps des Médias e CLIO - Histoire, Femmes et Sociétés. No Centre d'Approches Vivantes des Langues et des Médias (CAVILAM), em Vichy, pude aperfeiçoar a língua francesa, facilitando assim minha adaptação à cultura estrangeira. Realizei comunicações orais na França, nas cidades de Toulouse, Marseille e Paris. Gostaria de destacar uma comunicação sobre a pesquisa da tese apresentada na Université Paris V Sorbonne, junto ao Groupe d’Étude sur la Mode (GEMODE), do Centre d’Étude de l’Actuel et le Quotidien (CEAQ), participação que me trouxe muita alegria e “frio na espinha”. Participei de seminários, colóquios, jornadas de estudo, conferências e mesas redondas, grupos de pesquisa, evento internacional de moda em Portugal (CIMODE) e de ciclos da Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na França (APEB-Fr), que superaram as expectativas. Além de encontros semanais e mensais de seminários promovidos pela EHESS em Toulouse e Paris, bem como a defesa de titulação de Laurence Herault e a defesa de tese de Natacha Baboulene-Miellou, que foram primorosas. Realizei com esta última pesquisadora uma produção 27 conjunta sobre a problemática das imagens para o seminário de Claudine Vassas e Patrizia Ciambelli, em Toulouse. Encontros com mulheres pesquisadoras consideradas referência no campo dos Estudos de Gênero e Feministas também foram fundamentais para que pudesse acompanhar as discussões mais atuais na França, organizados pelo Institut Émilie du Châtelet (IEC), que trouxeram à tona temas como o celibato e a família, gênero: pensar e agir, gênero transnacional. Assim como o grande fórum nacional La Citoyenneté au Féminin, organizado pela associação Femmes pour le Dire, Femmes pour Agir (FDFA), além das inesquecíveis palestras de Nancy Fraser, que assisti ao lado de queridas colegas doutorandas de História da UFSC, e de Ann Laura Stoler, realizado na École normale supérieure, em Paris. Ainda na França, juntamente com a querida colega e doutoranda Melina de la Barrera Ayres, organizei uma mesa redonda com professores e doutorandos daquele país e do Brasil (incluindo pesquisadores das áreas humanas e exatas) para discutir sobre as diversas “fronteiras” envolvidas na pesquisa científica em outro país. Sem dúvida uma atividade que marcou positivamente a direção regional da APEB-Fr - eixo Sudoeste (gestão 2012/2013), contando ainda com uma intervenção performática do artista Aurelien Nadaud. Ficando distante do país em que nasci, pude compreendê-lo melhor quando retornei, mas confesso que uma parte do meu coração foi contagiada por intensas emoções vividas na França. Como não me deixar envolver pela questão racial após esta viagem? Voltei completamente intrigada pelo “mito integracionista republicano” e não tive a menor dúvida de que ele podia ser comparado ao nosso “mito da democracia racial”. Tocada por todas essas questões e experiências é que decidi mudar de tema, mas não de fontes! Confesso que esta mudança tardia obrigou-me a “correr contra o tempo”, perseguindo a tão desejada excelência acadêmica por meio de inúmeras leituras sobre os whitennes studies e outras questões que acabaram derivando desta perspectiva, incluindo desde trabalhos clássicos até os mais recentes, sendo a maioria deles fruto de questionamentos raciais presentes nos últimos vinte anos. Escolhi analisar a produção discursiva da branquidade em Vogue a partir de três eixos, tendo Pierre Bourdieu (1975; 1979; 1980; 1988; 1998; 2007; 2008) como autor central. São eles: 1º) o corpo [branco] convocado pelo discurso de moda, que tem nos trabalhos de Stuart Hall (2013), do coletivo de Saïd Bouamama, Jessy Cormont e Yvon Fotia (2012), de Ruth Frankenberg (1993), de Horia Kebabza (2013) e de 28

Thomas Nakayama e Robert Krizek (1995) referências tão importantes quanto de Luciana Alves (2010), de Maria Aparecida Silva Bento (2002), de Edith Piza (2002), de Liv Sovik (2004; 2005), de Lourenço Cardoso (2010), de Richard Miskolci (2013), entre outros; 2º) a violência simbólica que naturaliza o desejo colonial [branco e masculino], incluindo trabalhos de Nancy Hall-Duncan (1978), Claudio Marra (2008) e Robert Young (2005); 3º) a erotização e a exotização do Outro e de si mesmo, com as relevantes contribuições de Débora Leitão (2007; 2011), Martine Joly (1996), Joan Scott (2012), entre outros. No segundo capítulo, apresento o periódico Vogue como fonte e objeto de uma pesquisa interdisciplinar, inserida nos campos dos estudos culturais, de gênero e pós-coloniais. A partir desta perspectiva, abordo importantes questões teóricas e metodológicas articuladas principalmente a partir dos whiteness studies, os quais me permitiram falar sobre a construção da branquidade e refletir sobre a primazia da representação do corpo feminino [branco], das vozes legitimadas e produtoras de discursos de competência e renovação constante em Vogue, bem como da eficácia simbólica da capital francesa no universo da moda contemporânea, mesmo na era da globalização do luxo. No terceiro capítulo, abordo o desejo sexual e o erotismo na fotografia de moda, mostrando determinados “modos de ver” a partir do olhar colonial [branco, masculino e ocidental], por meio das lentes de alguns fotógrafos que se destacaram no primeiro decênio de nosso século como colaboradores das edições francesas e brasileiras de Vogue. Procurei deixar claro que as imagens de moda ocupam um lugar central no exercício do poder simbólico [branco], trazendo questões que contribuíssem para as análises realizadas no último capítulo. No quarto capítulo, por meio de uma abordagem qualitiva de intrepretação de imagens, analisei as “potências” da imagem em Vogue, procurando mostrar que a produção simbólica de uma branquidade revolucionária (no contexto francês) está histórica e discursivamente associada tanto à cultura estético-erótica da nobreza francesa quanto ao culto da livre atitude [republicana] da mulher parisiense; assim como a produção de uma branquidade conservadora (no contexto brasileiro) molda-se simbolicamente pelo “autoexotismo” da natureza e da cultura popular brasileira e por um nacionalismo que erotiza e embranquece a figura da mulata, entre outras. Tais análises permitiram-me identificar diferentes intersecções a partir de uma mesma violência simbólica, que erotiza e exotiza o Outro e a si mesmo. Nas considerações finais, enfatizo que a raça é uma importante construção discursiva que organiza a diferença, ao mesmo tempo em 29 que é um “significante flutuante” (HALL, 2013), como a teoria apontou. Apresento as principais diferenças contextuais e históricas que fazem com que, a partir de uma violência simbólica racial, outras formas de dominação sejam entrelaçadas, na França e no Brasil, notavelmente percebidas a partir das análises realizadas. Finalmente, anuncio que a produção discursiva de Vogue Brasil é “a forma incorporada da relação de dominação” (BOURDIEU, 1988), natural apenas aparentemente – explicando assim a “autoexotização” da natureza e da cultura popular brasileira e a erotização do corpo [branco] feminino. Espero conseguir deixar, nas (entre) linhas desta produção acadêmica, uma parte desta incrível experiência doutoral interdisciplinar, pela qual fui guiada a propor este desafio teórico- metodológico, entre palavras e imagens. Muitas vezes lágrimas vieram, sem que eu conseguisse identificar exatamente se eram de alívio, tristeza (ao reconhecer minhas limitações), satisfação ou alegria (ao ter a sensação de dever cumprido). Talvez fossem de esperança, ao acreditar que de alguma forma as nuances da brancura tornadas visíveis pudessem fazer despertar, enxergar e reconhecer o privilégio [branco] no campo da moda, como aconteceu comigo.

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2. O CORPO [BRANCO] CONVOCADO PELO DISCURSO DE MODA EM VOGUE

Apresento, neste capítulo, o periódico Vogue como fonte e objeto de uma pesquisa interdisciplinar inserida nos campos dos estudos culturais, de gênero e pós-coloniais. A partir desta perspectiva, abordo importantes questões teóricas e metodológicas articuladas principalmente a partir dos whiteness studies, os quais me permitiram falar sobre a construção da branquidade10 e refletir sobre a primazia da representação do corpo feminino [branco]11, das vozes legitimadas e produtoras de discursos de competência e renovação constante em Vogue, bem como da eficácia simbólica da capital francesa no universo da moda contemporânea, mesmo na era da globalização do luxo. Acreditando nas “potências da imagem” (ANTELO, 2004), inicio com uma imagem (Figura 1) que chamou minha atenção na ocasião do colóquio Le sens du corps: analyse spectral. Démarcations, compositions, segmentations12, embora não tivesse ainda plena consciência de que ela acabaria influenciando-me a pensar na riqueza discursiva e imagética do aspecto interseccional das complexas representações simbólicas entre raça/etnia, sexo/gênero e classe, a partir da primeira. Concebida para divulgação do evento em questão, traz fragmentos corporais submersos, dentre os quais partes de seios, mãos, um rosto jovem de mulher (maquiado) com cabelos loiros, misturadas a pequenos peixes, estes com algumas de suas características a eles incorporadas.

10 Explico a adoção deste termo na introdução da tese. 11 Explico o uso de colchetes na introdução da tese. 12 Organizado por Margarita Xanthakou e pela equipe de pesquisa do Laboratoire d’Anthropologie sociale do Collège de France (LAS), realizado entre 15 e 17 de novembro de 2012. Local: Collège de France, Paris. 32

Figura 1 : Capa do prospecto do evento Le sens du corps: analyse spectral. Démarcations, compositions, segmentations. Fonte: LAS (2012).

Apesar de muitas dessas partes não serem fácil ou diretamente identificáveis por regimes normativos de significação, assemelham-se muito provavelmente a pedaços de órgãos de corpo(s) supostamente feminino(s). Fiquei pensando que o corpo humano, considerado “o primeiro de todas as mídias”, segundo a teoria de Harry Pross (1979 apud GARCIA, 2010), faz realmente parte do diálogo entre “[...] nossas expectativas, nossas apostas, descrenças, decepções, e é necessário refletir as estratégias identitárias, individuais e coletivas, implicadas na edição do corpo na mídia” (VILLAÇA, 2010, p. 132). Mas confesso que nem mesmo o fato de encontrar-me absorvida visualmente pela instigante imagem conseguiu diminuir as evidências de uma inegável constatação: mesmo com toda a intenção de evidenciar fragmentações, (de)marcações, (de)composições e segmentações do(s) corpo(s), trata-se evidentemente de um corpo branco. 33

Assistindo à conferência de Nelly Quemener, que tratava das representações midiáticas sob o prisma do gênero a partir de uma análise interseccional, percebi uma abordagem qualitativa que consistia em identificar repertórios, léxicos e canais de significação formativos de modelos de masculinidade e feminilidade nas mídias francesas, de forma a recolocá-los em perspectiva diante de seus contextos socio- históricos. Sublinhando a dimensão performática das identidades de gênero para ultrapassar concepções binárias do sistema sexo-gênero, a conferencista identificou tanto a existência de dissonâncias de significações do corpo e da linguagem quanto a reinstalação de um modelo conservador nas representações de gênero em diferentes domínios midiáticos 13 (informação verbal). Este é um bom exemplo de como as representações midiáticas refletem um “mundo social” permeado por hierarquias e relações de poder. Os discursos midiatizam as palavras, reivindicam testemunhas. Lembro-me de uma conversa que tive com Patrizia Ciambelli14 em Toulouse, na qual a pesquisadora mostrou-me uma revista feminina alternativa de moda e comportamento que circulava na França pelo preço de 1 euro, a Citzen K, chamando atenção tanto para os ecos quanto para as dissonâncias encontrados em imagens e textos de um mesmo artigo e que a construção de uma escritura jornalística assemelhava-se à da escritura etnológica. Também em Vogue, textos e imagens sobre mulheres são produtos midiáticos que vendem histórias (individuais) de vida, fruto de um coletivo de pessoas, sem falar na postura mercadológica das escolhas estéticas que guiam o olhar das chefes de redação, atravessado por múltiplos interesses. O corpo [branco] feminino de Vogue, embora atravessado por distintos aspectos socioculturais em contextos europeus e latinos, tornou-se “invisível” por ser justamente um corpo dominante discursivamente e naturalizado por todo o ethos que envolveu as condições de sua produção, representação e circulação no campo da alta

13 Conferência em Ciência da Informação e da Comunicação, intitulada Les représentations médiatiques au prisme du genre. Vers une analyse intersectionnelle?. Université Sorbonne Nouvelle, Laboratoire Communication, Information, Médias, Équipe Médias, Cultures et Pratiques numériques. Seminário « Sexe et genre », Institut Emilie du Châtelet e UMR CNRS EcoAnthropologie & Ethnobiologie. Paris, abril, 2013. 14 Organizadora do seminário « Objets et Pratiques Esthétiques », juntamente com Claudine Vassas, realizado na Université Toulouse Le Mirail. 34 moda e do prêt-à-porter de luxo, trazido por este periódico ao longo de sua história. No caso desta tese, a percepção da construção sociocultural da branquidade em Vogue, nos contextos francês e brasileiro, requer uma rica interpretação narrativa, iconográfica e discursiva de complexas relações sociais, estas também estéticas e comunicativas. Identifiquei muitas vezes discursos híbridos, possíveis de serem interpretados somente a partir da conjunção de diversos campos do saber – estes últimos também constituídos historicamente a partir do cruzamento de inúmeras disputas de poder. Na esfera estética, as condições de existência e de operação de tais discursos são contingenciais, situacionais, relacionais e, por isso, não somente a dimensão da representação será importante na investigação proposta, mas, sobretudo, a da prática multirreferencial e discursiva.

Não podemos confundi-la com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada em um sistema de inferência; nem com a ‘competência’ de um sujeito falante, quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 1987, p. 136).

Ou seja, determinados discursos correspondem necessariamente a práticas sociais específicas e capacidades de compreensão determinadas no tempo e no espaço. Estudos de gênero e pós-coloniais podem tornar visíveis diferenciações e descontinuidades estéticas por meio do cruzamento de múltiplos trânsitos étnicos, raciais, sexuais, de gênero e classistas. Parto do princípio de que textos e imagens são “resíduos” de determinados processos discursivos, pois possuem estreita relação com determinada linguagem em uso. Segundo Foucault (1993, p. 147), “[...] nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder”. Esta tese é antes de tudo um convite para (re) pensar as condições de produção 35 sociocultural da brancura e sua circulação em um periódico de luxo de continentes distintos – geográfica e simbolicamente, implicando a necessidade de conhecimento, compreensão e crítica das regras de um “jogo racial branco” de poder, das ordens generificadas dos discursos midiáticos. Le Breton (2011, p. 11, tradução nossa) afirma que “[...] cada sociedade, no interior de sua visão de mundo, desenha um saber singular sobre o corpo: seus constituintes, suas performances, suas correspondências”, conferindo a ele sentido e valor. Embora considere que a raça é um significante flutuante (Hall, 2013), a perspectiva identitária e singular de Le Breton sobre o corpo foi válida para esta pesquisa na medida em que contribuiu para a compreensão da constituição do “capital-aparência corporal” de cada indivíduo, como veremos mais adiante. Nesse sentido, pode-se dizer que o corpo moderno redobra os signos da distinção, exibindo-se por meio de uma afirmação [faire- valoir]. Ainda segundo este autor, a imagem do corpo “traduz a representação que o sujeito faz de seu corpo” (LE BRETON, 2011, p. 215, tradução nossa), ou seja, não é um dado objetivo e sim um valor que resulta principalmente da influência do meio ambiente e da história pessoal do sujeito.

O corpo é uma tela para a projeção de um sentimento de identidade sempre modificável, virtual. Ele não é mais o lugar da autenticidade, como nos anos 1970 quando postulávamos com prazer que “o corpo tem sempre razão”, ele é agora o lugar sempre insuficiente de uma bricolagem identitária, de uma encenação provisória da presença. (...) Ele está para ser retomado pelas mãos, para ser completado, para ser assinado, para se “reapropriar” como dizem as jovens gerações como se antes ele fosse diferente de si, propriedade dos outros, ou indigno de interesse (LE BRETON, 2011, p. 227, tradução nossa).

Como efeito de uma complexa construção sociocultural, o corpo é percebido por nossas sociedades como um “invólucro do sujeito, o lugar de seu limite, de sua diferença, de sua liberdade” (LE BRETON, 2011, p. 20). Trata-se, portanto, de procurar enxergar o corpo [branco] a 36 partir desta construção, na qual os limites da ação humana sobre o meio ambiente são também limites de sentidos, antes de serem limites de fatos. Mas, se o corpo é “liberado” de forma fragmentada no cotidiano (bem como o discurso de liberação e as práticas que ele suscita), como não pensar que isso possui uma relação bastante estreita com as classes privilegiadas – uma vez que atualmente determinada aparência corporal, cultuada por muitos, parece ser uma representação de um ethos de classe específico, compartilhado por homens e mulheres?

Esta “liberação” faz-se menos sob a égide do prazer (...) que sobre o mundo do trabalho sobre si, do cálculo personalizado do qual a matéria está já posta sobre o mercado do corpo em um dado momento. Esta paixão endurece as normas da aparência corporal (ser magra, bela, bronzeada, em forma, jovem, etc., para a mulher; ser forte, bronzeado, dinâmico, etc., para o homem) e mantém de forma mais ou menos clara uma subestimação de si frente aqueles que não produzem os signos do “corpo liberado” (LE BRETON, 2011, p. 208, tradução nossa).

Cabe retomar a proposta do evento de Paris apresentada inicialmente, quando procurei assinalar por meio de uma única imagem a complexidade envolvida na imbricação de questões relativas à raça/etnia e sexo/gênero, para justamente abordar outros elementos, bastante úteis porque espelham epistemologicamente uma visão contemporânea francesa do corpo. A partir da abordagem espectral do corpo, o grupo liderado por Margarita Xanthakou pretendeu ressaltar o quanto ela permitiria “traduzir graficamente o inventário desta constituição do corpo”, além de interrogar qual é a hierarquia dos órgãos nesse processo de transformação discursiva entre unidade e disjunção (critérios físico-sociais-somáticos). A relação “corpo e artefatos”, determinante para a constituição da posição social (individual e coletiva) dos sujeitos, ganhou destaque durante o evento e o sentido de corpo trazido para discussão estava bastante associado a um sentimento naturalista, dominante na França atual, segundo a pesquisadora. Xanthakou chamou a atenção para a inexistência de termos e categorias sociais que considerassem o corpo em seu conjunto, como uma unidade. Assim, o gênero aparece pelos órgãos (seria o sentido da imagem apresentada?), assim como os 37 fenômenos culturais ligados a fenótipos – e penso nos raciais em especial – são indicadores sociais de uma dinâmica diferencial do corpo, que exige por sua vez aprofundamento de suas fronteiras e demarcações15 (informação verbal).

2.1 BRANQUIDADE E A PERSPECTIVA DOS WHITENESS STUDIES

« Une caractéristique de la blanchité est en effet qu’elle est hyper-visible (omniprésente), surtout pour les dominés, et em même temps hyperinvisible surtout pour les dominants »16 (CERVULLE 2010 apud BOUAMAMA ; CORMONT ; FOTIA, 2012, p. 70).

Enquanto componente do racismo – ou melhor, um de seus efeitos e um de seus meios – a brancura é uma “tradução material e ideal das relações sociais racistas favoráveis ao grupo social de Brancos.as” (BOUAMAMA; CORMONT; FOTIA, 2012, p. 70). Torna-se ainda um fato social que traz consequências reais em termos de distribuição de riquezas, de poder e de prestígio.

A etnicidade, do ponto de vista branco, é necessariamente “os outros”. Mais do que uma questão biológica ou física (as raças biológicas não existem), o pertencimento ao grupo social dos Brancos (ou à raça branca socialmente construída pelo racismo) está fundada sobre um lugar social ocupado nas relações sociais de dominação e de poder racializadas (BOUAMAMA; CORMONT; FOTIA, 2012, p. 70, tradução nossa).

15 Colóquio Le sens du corps: analyse spectral. Démarcations, compositions, segmentations. Organizado pelo Laboratoire d’Anthropologie sociale do Collège de France (LAS), realizado entre 15 e 17 de novembro de 2012. Local: Collège de France, Paris. 16 “Uma característica da brancura é que de fato ela é hiper-visível (onipresente), sobretudo para os dominados, e ao mesmo tempo, hiper-invisível, sobretudo para os dominantes” (CERVULLE 2010 apud BOUAMAMA; CORMONT ; FOTIA, 2012, p. 70, tradução nossa). 38

Os chamados critical whiteness studies floresceram nos Estados Unidos, na década de 1990, embora W.E.B Du Bois seja talvez o precursor em teorizar sobre a identidade racial branca com a publicação de Black Reconstruction in the United States no início do século XX (CARDOSO, 2010). Peggy McIntosh, diretora associada ao Wellesley College Center for Research on Women, questiona-se sobre os « privilégios dos brancos », ressaltando que ensinamos com cuidado aos « Brancos.as » a não reconhecerem seus privilégios, exatamente como os homens são socializados a não reconhecerem suas vantagens ligadas à sua condição de indivíduos do sexo “masculino” – e heterossexual (KEBABZA, 2006). Em White privilege: unpacking the invisible knapsack, publicado em 1989, McIntosh está mais inclinada à problemática da cor da pele no processo de categorização do outro do que propriamente à questão da classe social, da religião ou do estatuto étnico. Para a autora, a cor da pele ocupa um lugar importante na definição da “identidade etnico- racial”, possuindo justamente uma significação toda particular em uma sociedade que atribui bastante importância ao visual, à imagem e, desta forma, ao visível (KEBABZA, 2006).

É assim que P. McIntosh define os privilégios da pele branca (white skin privileges), como um pacote invisível carregado de bens iméritos sobre os quais ela pode contar em sua vida cotidiana, mas sobre os quais ela era presumida a permanecer inconsciente. (...) O “privilégio da pele branca” é na verdade uma mochila invisível e pesada, repleta de mantimentos especiais, mapas, passaportes, agendas de endereços, códigos, vistos, roupas, equipamentos e cheques em branco » (McIntosh, 1989). Ela mostra então uma lista de cinquenta privilégios que ela pode identificar, como por exemplo « eu encontro em vários lugares a maquilagem ou os curativos na cor “carne”, que combinam com minha cor de pele » (KEBABZA, 2006, p. 1, tradução nossa).

Segundo Ruth Frankenberg (1993), a raça molda a vida das mulheres brancas, da mesma forma que as vidas de homens e mulheres são moldadas por seu gênero. Em um contexto social no qual “pessoas brancas têm muitas vezes visto a si mesmas como não-raciais ou 39 racialmente neutras, torna-se crucial olhar a ‘racialidade’ [racialness] da experiência branca” (FRANKENBERG, 1993, p. 1, tradução nossa). Evitar focalizar o branco é evitar “discutir as diferentes dimensões do privilégio. Mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura, o que não é pouca coisa” (BENTO, 2002, p. 27). Tal perspectiva aponta para o fato de que a brancura possui um conjunto de dimensões ligadas, podendo ser entendida primeiramente como o “lugar de vantagem estrutural, de privilégio racial”, em seguida como um “ponto de vista”, um lugar a partir do qual as pessoas brancas olham para nós mesmos, para outros e para a sociedade e ainda como um conjunto de práticas culturais que são usualmente não marcadas e não nomeadas (FRANKENBERG, 1993, tradução nossa).

[...] whiteness se refere a um conjunto de locações que são historicamente, socialmente, politicamente e culturalmente produzidas e, além do mais, são intrinsicamente associadas a relações manifestas pela dominação. Nomear a ‘brancura’ desloca-a do estatuto não marcado, não nomeado, que é ele mesmo um efeito desta dominância. Dentre os efeitos em pessoas brancas, ambos do privilégio da raça e da dominância da brancura, estão sua aparente normatividade, sua invisibilidade estruturada. Esta normatividade é, entretanto, desigualmente efetiva (FRANKENBERG, 1993, p. 6, tradução nossa).

Segundo Lourenço Cardoso (2010), no Brasil o termo « branquitude » foi sugerido por Gilberto Freyre em 1962, no sentido de identidade racial branca e como analogia à palavra negritude. E, ainda, Alberto Guerreiro Ramos (o primeiro a propor os estudos sobre a identidade racial branca no país) utilizou o termo “brancura”, significando para nossa literatura científica atual o conceito de “branquitude”.

[...] no mesmo ensaio Patologia social do ‘branco’ brasileiro, utiliza o termo ‘brancura’ no sentido do que hoje denomina-se brancura mesmo. A brancura seria a pele clara e outros traços como cor e formato de lábios e nariz, textura dos 40

cabelos, ou seja, aspectos sobretudo físicos que levam uma pessoa ser classificada socialmente como branca (Ramos 1995[1957]). A branquitude, obviamente, também diz respeito aos aspectos físicos que identificam uma pessoa ou um grupo, no entanto, se encontra além dessa característica, sendo também um dos traços da própria branquitude, isto é, uma pessoa pode perfeitamente identificar-se como branca, mesmo que não possua brancura (CARDOSO, 2010, p. 57).

Portanto, em relação ao contexto brasileiro, a adoção do termo “branquidade” nesta tese, explicada anteriormente em nota de rodapé, pode também substituir o que muitos autores consideraram como “branquitude”, o que não impede de levar em conta o que Guerreiro Ramos considerou em seu ensaio como “brancura”, pois não se pode negar o quanto os aspectos físicos (fenótipos) adquirem importância no complexo processo de definição de identidades raciais brancas, da ideia de raça ou de comportamentos relacionados ao grupo branco e às diferentes dimensões da brancura e da própria construção social da “branquidade” (CARDOSO, 2010). Discutindo sobre o processo de branqueamento no contexto brasileiro, Maria Aparecida Silva Bento (2002) afirma que este é um importante aspecto da branquitude, assim como o medo do branco sobre o negro, os pactos narcísicos entre os brancos e as possíveis conexões entre a ascensão negra e o branqueamento. Abordarei esta questão mais adiante, ao falar justamente do branqueamento da figura da mulata brasileira em editoriais de moda de Vogue Brasil. É interessante pensar que diferentes formas de conceituar o branco indicam “que a brancura foi interpretada de maneiras distintas ao longo de nossa história, dependendo das ideias correntes em cada contexto” (ALVES, 2010, p. 17). De fato, o próprio significado “do que é ser Branco.a” é atravessado por diferentes visões e interesses da classe dominante [branca], ou seja, depende da “visão de quem o utiliza, isto é, para compreender as versões existentes do termo [...], necessitamos saber quem o emprega” (ALVES, 2010, p. 12). As interpretações aqui trazidas passam também por minha própria visão de mundo, minha subjetividade. Só pelo fato de procurar indagar sobre a branquidade, no contexto da moda contemporânea e a partir de um periódico voltado 41 para a elite [branca] brasileira, já reconheço uma atitude pouco comum, independente de atingir ou não os objetivos propostos. Concordo com Luciana Alves, quando a autora ressalta que poucos pesquisadores substituíram o sujeito da interrogação “negro” pelo “branco”. Tentando responder à pergunta “o que é um branco?”, ela confirma o desafio que é tratar esta questão: “se a indagação fosse feita a um cientista do século XIX, adepto das teorias raciais, a resposta poderia ser: é todo o ariano de sangue puro. Já no século XXI, não seria fácil responder à questão de maneira tão direta e segura” (ALVES, 2010, p. 12). Bento (2002, p. 42) salienta que Edith Piza é “uma das raras estudiosas brancas brasileiras que se dedicou ao estudo dos brancos”, constatando no discurso branco a invisibilidade, a distância e mesmo o silenciamento em relação à existência do outro. Mas o silêncio não pode apagar o passado:

É compreensível o silêncio e o medo, uma vez que a escravidão envolveu apropriação indébita concreta e simbólica, violação institucionalizada de direitos durante quase 400 dos 500 anos que tem o país. Assim, a sociedade empreendeu ações concretas para apagar essa “mancha negra da história”, como fez Rui Barbosa, que queimou importante documentação sobre esse período. Essa herança silenciada grita na subjetividade contemporânea dos brasileiros, em particular dos brancos, beneficiários simbólicos ou concretos dessa realidade (BENTO, 2002, p. 45).

Piza (2002) utiliza a metáfora da “porta de vidro” para representar simbolicamente a entrada para a branquidade. Fruto de sua percepção sobre o eu narrador dos estudos de Gilberto Freyre ou de Florestan Fernandes, surge ainda da constatação de que o eu não mencionado não era nem mesmo branco: “era neutro, incolor, transparente; vidraças e portas tão polidas que nem mesmo se podia vê- las” (PIZA, 2002, p. 61). Indicava também que tudo parecia acessível, mas, na realidade, havia uma “fronteira invisível” que se impunha entre o muito que se sabe sobre o Outro e o quase nada que se sabe sobre si mesmo.

42

[...] bater contra uma porta de vidro aparentemente inexistente é um impacto fortíssimo e, depois do susto e da dor, a surpresa de não ter percebido o contorno do vidro, a fechadura, os gonzos de metal que mantinham a porta de vidro. Isto resume, em parte, o descobrir- se racializado, quando tudo o que se fez, leu ou informou (e formou) atitudes e comportamentos diante das experiências sociais, públicas e principalmente privadas, não incluiu explicitamente nem a mínima parcela da própria racialidade atribuída ao outro. (PIZA, 2002, p. 61).

As páginas de Vogue são documentos históricos que traduzem representações imagéticas e efeitos discursivos de diferentes experiências de uma estrutura social e racial branca, bem como as formas pelas quais o privilégio da raça pode estar atravessado por outros eixos de diferença e desigualdade – tanto da ordem do simbólico e do discursivo quanto da ordem do material e do corporal. Assim, a própria dinâmica de intersecção de formas de dominação pela violência simbólica instiga a retomada do seguinte questionamento: quais seriam as implicações sociais da circulação do corpo branco e da “naturalização” da brancura no universo do luxo diante do aparente “esvaziamento” da cor branca como identidade cultural, em diferentes contextos históricos e políticos [latino-americano e europeu] marcados então por diferentes narrativas e modos de visibilidade, produzidos pelas chefes de redação Patrícia Carta e Carine Roitfeld? São pertinentes as palavras de Luciana Alves (2010, p. 21), de que “talvez seja mais difícil caracterizar-se como branco num ambiente elitizado do que na periferia, por exemplo”. Liv Sovik (2004) salienta que se classificar como branco, tendo por base critérios de pureza racial, torna-se um processo complexo até mesmo na Europa, fato que revela que os significados de “ser branco” vêm sofrendo modificações também naquele contexto.

Com as recentes ondas de imigração que mudaram a face da Europa e a crescente consciência de secular mistura de populações, a definição da branquidade pela pureza do patrimônio genético europeu torna-se menos 43

importante: a branquidade abre suas asas sobre muitos mestiços sociais, culturais e biológicos, enquanto a Europa não é mais um continente que possa se imaginar como branco (SOVIK, 2004, p. 368).

Considero que as “asas” são uma bonita metáfora para chamar atenção sobre uma possível abertura [branca] europeia a vozes de outras cores e etnias, mas não podemos esquecer o quanto a mestiçagem é um campo de lutas, notavelmente no campo da moda, como veremos. O valor de ser branco na mídia brasileira não suscita estranhamento e, muitas vezes, a força da hegemonia branca “se faz presente em discursos identitários que não mencionam raça explicitamente” (SOVIK, 2005, p. 166). Assim, não parece suficiente valorizar a cultura negra sem discutir o lugar da branquitude nas relações raciais.

Em um país mestiço, os brancos são irrelevantes, pois a questão é de misturar-se, deixar-se misturar, reconhecer-se como produto da mistura, o que, paradoxalmente, sempre é possível sem deixar de ser branco. Pois ser branco no Brasil é ter a pele relativamente clara, funcionando como uma espécie de senha visual e silenciosa para entrar em lugares de acesso restrito. O branco aparece como problema, hoje, porque a militância cultural e política negra e as estatísticas oficiais informam que o Brasil não é só um país de mestiços, mas de negros-e-pardos, de um lado, e de brancos, do outro (SOVIK, 2005, p. 171).

Para Francesca Scrinzi (2008), no contexto do racismo contemporâneo, a lógica da naturalização investe na noção de “diferença cultural”. Este racismo naturaliza as relações sociais desiguais no quadro das quais ele emerge, apoiando-se em traços culturais que se encontram disponíveis – trabalhando-os no sentido da essencialização.

No quadro do fenômeno migratório contemporâneo na Europa, esses processos de alteridade afetam os.as migrantes vindos.as das antigas colônias. Empregadas para dar conta desses processos, a noção de ‘raça’ indica então o 44

resultado de um trabalho simbólico de seleção, hiper-exposição e naturalização de traços físicos ou de hábitos, estilos de vida e traços culturais diversos (religiosos, linguísticos...) que se inscrevem no contexto de relações de dominação que são historicamente situadas e largamente associadas às histórias coloniais (SCRINZI, 2008, p. 81-99, tradução nossa).

E ainda, a classificação diferencialista não remete diretamente a traços físicos como causa direta da inferioridade dos indivíduos; são os traços culturais, simbólicos, mentais [de mentalité] ou religiosos que são naturalizados, subtraídos do devir histórico, bem como associados à identificação de traços somáticos ou vestimentares “típicos”, a partir da qual os indivíduos são vistos como produtos determinados pelas culturas e não como produtores de culturas. Talvez hoje, no contexto de um racismo diferencialista e culturalista, um dos maiores desafios seja o de fundamentar uma crítica do racismo atenta à sua estruturação econômica e histórica, sem, entretanto, causar o impasse sobre as dimensões propriamente ideológicas e culturais. A raça é, portanto, um dos conceitos fundamentais que organizam os grandes sistemas de “classificação da diferença”, sendo durante muito tempo explicado pela biologia. Mesmo que as variações genéticas entre diferentes populações humanas – às quais atribuímos diferentes categorias raciais – não sejam mais significativas do que as existentes no seio de uma dessas populações, sobrevivem ainda hoje definições genéticas, biológicas e fisiológicas da raça. E estas são compartilhadas pelos principais pesquisadores do campo, embora este tipo de explicação genética dos comportamentos socioculturais seja cada vez mais considerado como racista (HALL, 2013). Trata-se, evidentemente, de um paradoxo, pois mesmo as características físicas (compreendendo neste conjunto a cor da pele) são em grande medida o resultado direto do meio ambiente físico e social. Além disso, essas características são “bastante indefinidas e evanescentes para poder atribuir uma origem ou fundar uma classificação ou uma divisão dos grupos humanos” (DU BOIS, 1911 apud HALL, 2013, p. 98). Justamente por ser uma construção discursiva é que a raça é um “significante flutuante”, desafiando ou desequilibrando os “pressupostos do senso comum ou das maneiras cotidianas de falar da raça e de lhe dar 45 sentido nas sociedades contemporâneas” (HALL, 2013, p. 95). A validade de pensar a raça como linguagem reside no fato de que os significantes fazem referência a sistemas e conceitos de classificação no seio de uma cultura, no contexto de práticas que consistem em “produzir sentidos”.

Os significantes obtém sua significação não em razão de uma essência que eles poderiam supostamente conter, mas em virtude das relações dinâmicas de diferença que eles entretêm com outros conceitos e outras ideias no seio de um dado campo de significações. Sua significação, porque ela é relacional e não essencial, não pode jamais ser atribuída de maneira fixa17.

Mas se existe sempre uma espécie de deslizamento [glissement], uma margem que não se encarna adequadamente na linguagem e na significação, por que vemos tão claramente os efeitos da raça como uma “realidade”? O que deixou traços de violência e de discriminação racial na história moderna e deixa ainda hoje é bem um significante, um discurso. Para entender a complexidade do funcionamento de sistemas de classificação e diferenciação racial é preciso considerá-lo não somente do ponto de vista realista e textual, mas discursivo.

É somente quando essas diferenças foram estruturadas no seio de uma linguagem, no seio de um discurso ou no seio de um sistema de significações que podemos afirmar que tais diferenças adquiriram um sentido, que elas se tornaram um fator da cultura humana e que elas regem a lhes conduzir. Tal é a natureza do que chamo de conceito discursivo da raça. Não que não haja diferenças, mas o que conta são os sistemas dos quais nos servimos para dar sentido, para tornar as sociedades humanas inteligíveis. E isto não tem absolutamente nada a ver com o fato de negar [...] que se olharmos ao redor de nós, sim, nós nos parecemos todos efetivamente diferentes uns dos outros18.

17 Ibid, p. 98, tradução nossa 18 Ibid, p. 101, tradução nossa 46

Devemos pensar o quanto a política advém apenas por meio da representação, numa espécie de arena de conflitos, na qual o processo de mediação é sempre precário, instável e sem garantia – pois sua significação nunca está definitivamente fixada, mas sempre diferenciada, marcada (HALL, 2013). Esta perspectiva remete à questão da representação como diferença, seja por meio da etnicidade no processo de globalização, da raça como significante flutuante e/ou da cultura visual como fabrica de identidades. Penso mesmo que se trata de sistemas discursivos, pois “a interação entre a representação da diferença racial, a escritura do poder e da produção de conhecimento é um elemento essencial em seu nascimento e também em seu funcionamento”19. Mulheres que pertencem a uma dada estrutura social, na qual existem relações de interdependência entre as condições materiais e simbólicas de apropriação de sentidos (BOURDIEU, 1980), podem transmitir disposições específicas de socialização que variam conforme os diferentes contextos nos quais tais disposições foram e são engendradas, por meio dos discursos agenciados por elas, sobre elas e em torno delas. Assim, a noção de habitus como um sistema de disposições características de uma classe determinada de condições de existência revela como tal sistema está inscrito nos limites inerentes às suas condições particulares de produção. Pode-se dizer que o habitus é produto de uma história “incorporada” e esquecida como tal, justamente por ser “a presença ativa de todo o passado do qual ele é o produto”20, funcionando como capital acumulado. Ainda segundo Hall (2013, p.107), “na medida em que nos interessamos aos sistemas de classificação da diferença, o corpo é um texto, e nada de outra coisa” (HALL, 2013, p. 107). E somos todos leitores assíduos! Sob o esquema corporal há outro esquema, composto de histórias, de anedotas, de metáforas e de imagens – e que “constrói a relação que entretém o corpo com o espaço cultural e social que ele ocupa. São essas histórias que constroem esta relação, e não a inscrição da diferença no corpo”21.

19 Ibid, p. 102, tradução nossa 20 Ibid, p. 94 21 Ibid, p. 109, tradução nossa 47

Uma vez que abraçamos uma política visando abolir a definição biológica da raça, somos mergulhados até o pescoço no único mundo do qual ainda dispomos, e que consiste em um turbilhão de práticas, de debates e de argumentos políticos que conhecem apenas uma garantia, aquela da infinita contingência. Toda política crítica do racismo é sempre uma política da crítica22.

Muitas contradições inerentes ao processo de globalização se expressam “nas operações simultâneas do capital mundial de incorporação e de produção da diferença, assim como na geração de identidades locais e fragmentadas diante da dissolução das identidades sociais coletivas e dos grandes relatos nacionais”23. Assim, reconhecer a diferença tanto como construtora social quanto tensão subjetiva interna significa afastar-se das concepções essencialistas da política identitária, por meio de um horizonte político que construa “unidades” na diferença. Desta forma, a política das diferenças constitui uma prática do sujeito, que permite a articulação de uma identidade como posição reflexiva de enunciação e de ação (HALL, 2013). Aliás, a noção de articulação refere-se a um “meio de compreender como elementos ideológicos chegam, em certas condições, a formar um conjunto coerente em um discurso, bem como um meio de se interrogar sobre a maneira pela qual eles são ou não articulados a conjunturas específicas e a certos sujeitos políticos”24. Produções culturais constituem, elas próprias, um lugar de articulação entre formações sociais e discursivas. É justamente por meio de uma reflexão sobre a cultura visual e sua inscrição em um conjunto mais amplo de formações sociais e discursivas, desejo aproximar a crítica social da crítica estética. Ou seja, não me desvincular das representações de suas condições históricas de emergência e da conjuntura política no seio da qual elas se articulam. A noção de déplacement [deslocamento] como lugar da identidade é um conceito a partir do qual podemos aprender a viver com e através da diferença, antes mesmo de saber soletrá-lo corretamente (HALL, 2013). Para pensar em comunidades de identificação (nacional, étnica, familiar ou sexual), é preciso que se reconheça a natureza

22 Ibid, p. 111, tradução nossa 23 Ibid, p. 11, tradução nossa 24 Ibid, p. 14, tradução nossa 48 necessariamente ficcional do “eu” moderno. Mas mesmo com todas as fragmentações e deslocamentos, o eu [moi] refere-se a um conjunto real de histórias: os relatos de deslocamento possuem certas condições de existência, fundam-se baseados em histórias reais do mundo contemporâneo.

Não há política sem intervenção arbitrária do poder na linguagem, sem o corte da ideologia, sem um posicionamento, um cruzamento das linhas ou ainda uma ruptura. Eu não compreendo o que pode ser a ação política sem esses momentos. Eu não vejo de onde elas vem, eu não compreendo como ela é possível25.

Trata-se de uma nova concepção do eu [moi] ou da identidade. Considerando a questão da nação e do nacionalismo, este último foi e ainda é um dos polos ou terrenos principais de articulação do eu [moi]. Considero que a construção desta nova perspectiva de concepção da etnicidade sinalizada por Stuart Hall seja um importante antídoto aos velhos discursos do nacionalismo e da identidade nacional. Segundo este autor, à nossa época, enquanto comunidade imaginária, a etnicidade “começa igualmente a revestir-se de outras significações e a definir um novo espaço para a identidade”26. Portanto, nação e etnicidade não são idênticas.

Ela [etnicidade] insiste sobre a diferença – sobre o fato de que toda identidade é situada e posicionada em uma cultura, em uma linguagem e em uma história. Todo discurso é situado, vem sempre de alguma parte, é sempre o feito de alguém em particular. Ela insiste sobre a especificidade, sobre a conjuntura. Mas ela não é necessariamente uma defesa contra as outras identidades. Ela não está ligada a oposições fixas, permanentes e inalteráveis. E ela não é inteiramente definida pela exclusão27.

25 Ibid, p. 23, tradução nossa 26 Ibid, p. 25, tradução nossa, grifo do autor 27 Ibid, p. 25, tradução nossa 49

Para que uma cultura nacional possa “aspirar a, e então obter, tal tipo de identidade histórica mundial, certas condições de formação específicas devem ser preenchidas”28. E estas condições repousam justamente sobre a posição da nação, segundo as potencias comerciais mundiais – por isso o Outro colonizado foi logicamente constituído por meio de “regimes de representação” atrelados a tais centros metropolitanos. Desta forma, uma identidade étnica está de fato situada “em um lugar e em uma história específica. Ela não pode se expressar fora deste lugar, fora destas histórias. Graças a um conjunto de noções ligadas ao território [...] que ela pode se situar”29. Penso na antiga forma de globalização, que se baseou na força de exclusão ou de absorção de todas as diferenças que constituíam determinada identidade étnica (múltiplas religiões, povos, classes, gêneros) para que tal identidade pudesse representar o conjunto dos habitantes de determinado lugar e assim poder almejar o estatuto de entidade homogênea. Mas, como bem salientou Hall (2013), este é um processo que se aproxima do fim, pois estamos diante de um novo tipo de globalização – a “americana”, ou melhor, “norte-americana”, a partir da qual a antiga “forma de relação entre identidade cultural nacional e Estado-nação está (...) em vias de desaparecer”30, ao menos na Inglaterra, segundo o autor. Hoje, o grande fluxo migratório mundial é visto como uma das consequências culturais do ritmo acelerado no mundo moderno, aumentando a interdependência internacional (seja pelo desenvolvimento dos arranjos monetários ou regionais, seja pelo enorme impacto da interdependência ecológica mundial). Tal fluxo levou-me a considerar que novas formas de globalização poderiam ser diferentes das anteriores, inclusive porque muitas das produções discursivas e imagéticas de Vogue Brasil revelavam, por exemplo, a interdependência simbólica entre o global e o local no contexto econômico-cultural brasileiro.

Uma das coisas que podemos observar quando um Estado-nação começa a se enfraquecer, tornando- se menos convincente e menos potente, é que ele possui uma tendência a reagir em duas direções diferentes, e isto de forma simultânea: ao mesmo

28 Ibid, p. 30, tradução nossa 29 Ibid, p. 32, tradução nossa 30 Ibid, p. 33, tradução nossa 50

tempo acima e abaixo dele mesmo, ou seja, no mesmo momento, em nível local e em nível global. O global e o local são duas faces de um mesmo movimento de transição, esta de uma época da globalização dominada pelos Estados- nação, as economias nacionais e as identidades culturais nacionais diante de qualquer coisa completamente nova (HALL, 2013, p. 38, tradução nossa).

Assim, as lógicas da diferença e da tradução cultural devem ser “lidas sempre no contexto da colonização, da escravidão e da racialização”31. É preciso considerar conjuntamente a diferença (subdeterminação, condensação) e a disseminação para que não pratiquemos um desconstrucionismo inconsequente, como ressaltou Hall (2013). Se o essencialismo foi desconstruído teoricamente, isso não significa que ele foi do mesmo modo deslocado histórica e politicamente. Penso nas temporalidades europeias e seus sistemas racializados de poder e de representação: a colonização “é um dos fios mais importantes da trama narrativa da modernidade” (HALL, 2013, p. 85). Enquanto ato de poder e de dominação, teve por objetivo tornar todas as temporalidades das periferias conforme a temporalidade da Europa, fazendo de todos os espaços dos simulacros um espaço europeu. No que diz respeito ao estudo das formações sociais estruturadas pela raça, Hall aponta duas tendências dominantes: a econômica e a social (HALL, 2013). Apesar de todas as suas diferenças, elas concordam sobre o fato de que a raça e a etnicidade são características sociais autônomas e irredutíveis das formações sociais – elas possuem suas próprias formas de estruturação e seus próprios efeitos, “não podem ser absolutamente explicadas como efeitos de borda das relações econômicas, nem ser corretamente teorizadas se reduzidas ao seu nível econômico de determinação” (HALL, 2013, p. 116). Assim, muitas vezes cada uma delas é a imagem invertida da outra: se o primeiro paradigma, marxista ou não, atribui ao nível econômico a determinação final de toda formação social, o segundo pode ser visto como uma resposta direta ao primeiro, pois busca introduzir a complexidade nos esquemas simplificadores da explicação

31 Ibid, p. 84, tradução nossa 51 econômica, bem como corrigir a tendência do primeiro em cair no reducionismo econômico (HALL, 2013). Parece-me que o próprio discurso eurocêntrico precisa ser relativizado porque se mostra “complexo, contraditório e historicamente instável” (SHOHAT; STAM, 2006, p. 21). Mas mesmo que o eurocentrismo tenha sido ao mesmo tempo “fortalecido e desafiado pelos meios de comunicação”32, questiono até que ponto o pensamento eurocêntrico está efetivamente longe de ser representativo de um mundo que há muito tempo é ou se coloca como multicultural, justamente no contexto de um periódico produzido pela e para uma elite [branca]. Em 2006, a versão brasileira de Vogue publicou uma edição especial inteiramente dedicada às férias de julho, mostrando alguns destinos visitados pelas convidadas de Vogue, mulheres reconhecidas no campo da moda brasileira e que atuam ou atuaram no mercado internacional: Carolina Overmeer (correspondente de Vogue Brasil em Paris), que viajou para a Índia; Cássia Ávilla (ex-modelo), que foi para Portugal; Cris Barros (estilista), que visitou Buenos Aires e Petê Marchetti (consultora de moda), que viajou para a África do Sul. Inspirados justamente nesses países, o fotógrafo Daniel Klajmic e a editora de moda Chiara Gadaleta Klajmic produziram um editorial de moda para mostrá-los a partir do olhar de Vogue (Figura 2). Apresento, a seguir, imagens referentes à Índia e à África do Sul:

Figura 2: Imagens do editorial com temas sobre a Índia e a África do Sul. Fonte: Vogue Brasil (2006b, p. 154 e 173).

Segundo a redatora-chefe Patricia Carta, Vogue traz “[...] o olhar sofisticado de nossas convidadas e a hospedagem em hotéis e resorts

32 Ibid, p. 28

52 que são verdadeiros paraísos na terra – seja lá qual for a sua imagem de paraíso” (CARTA, 2006, p. 11). Trata-se de um bom exemplo a partir do qual significantes plásticos, icônicos e linguísticos passam a significar, a fazer sentido no campo da moda se interpretados a partir de um ethos constituído pela branquidade – e somente a partir dele. Nesse sentido, a transmissão, a comunhão e mesmo a diferenciação devem ser vistas como estratégias discursivas nas quais os “signos constitutivos do corpo percebido, esses produtos de uma fabricação propriamente cultural têm como efeito a distinção dos grupos sob a relação do grau de cultura, quer dizer distante do natural, parecem estar fundados no natural” (BOURDIEU, 1979, p. 214). Pode-se ainda ler a frase “Brincadeira étnica para arrasar no safári” no editorial sobre a África do Sul, assim como “Um caleidoscópio de cores, tecidos e volumes” sobre a “Índia”. Ou seja, para além da questão do “autoexotismo” na moda brasileira, que será discutida mais adiante, tais representações remetem à hegemonia do corpo branco – e mesmo à sua suposta “neutralidade” – no discurso da moda contemporânea e logicamente de Vogue.

A brancura é o fruto de uma aprendizagem social que repousa sobre a socialização dos indivíduos. Tal socialização possui traço: de inegalidades racistas, de processos de racialização dos ‘outros’; de construções identitárias de Brancos.as [...]; da crença de ser neutro e universal [...]; do mundo do pensamento e da representação das inegalidades e das identidades Branco/não-Branco; da invisibilidade dos ‘privilégios’ brancos e de sua normalidade (BOUAMAMA; CORMONT; FOTIA, 2012, p. 72, tradução nossa).

A brancura, como elemento constituinte da branquidade, é uma estrutura social e mental que facilita a reprodução do poder branco.

2.2 QUE CORPO [BRANCO] É ESSE?

Já expliquei na introdução desta tese porque a questão da branquidade chegou para mim, assim como a importância de analisar como ela permite enxergar aspectos ligados ao poder simbólico por 53 meio da (inter) relação de representações étnicas, sexuais/de gênero e classistas, construídas em contextos históricos determinados. Pretendo, neste tópico, dar visibilidade ao corpo feminino de Vogue representado ao longo da primeira década de nosso século, o que me leva necessariamente a considerar imagens do corpo feminino representadas pela própria história da moda contemporânea [e moderna]. Inicio com imagens da exposição « Mannequin, le corps de la mode »33 (Figura 3) que permitem de imediato uma constatação: o corpo feminino da moda ocidental é branco.

Figura 3: Fotos da exposição Mannequin, le corps de la mode, 2013. Fonte: Novelli (2013a)

O corpo da manequim foi objeto de algumas transformações estéticas ditadas pela moda ao longo do século XX, que não conseguiram, contudo, ultrapassar a ideia de corpo como simples

33 Exposition Hors-les-Murs Galliera - Museée de la mode et de la ville de Paris. Produção: Les Docks - Cité de la Mode et du Design e Artevia, com o apoio da prefeitura de Paris. Local: Institut Français de la Mode (IFM), de 16/02/2013 a 19/05/2013. 54 mercadoria em um sistema comercial. Em um dos painéis da exposição citada podia-se ler:

A manequim é o modelo deste ideal que deixa pouco lugar à diferença. Uma perfeição toda artificial permitida pelo retoque desde o século 19 e pela paleta gráfica após o inicio dos anos 1990, que criam corpos lisos e irreais em um embelezamento preocupante da imagem. Como as mulheres triunfantes de Helmut Newton ou as supermodelos do final dos anos 1980, as manequins devem parecer heróicas. Nos anos 1990, entretanto, a noção de beleza imperfeita provoca explosão no mundo da moda. Fotografias retratam a realidade, a própria intimidade; com a foto de Kate Moss por Corinne Day, tanto a beleza quanto o estilo parecem mais acessíveis. Experiência singular, a visão resultante da colaboração de Cindy Sherman com Rei Kawakubo de Comme des Garçons, desconstrói os códigos da indústria da moda e da representação da feminilidade (LÉCALLIER, 2012, tradução nossa).

Nesse sentido, a magreza se tornou um poderoso significante do corpo [branco] da moda, acentuada particularmente nas últimas décadas do século XX, quando a modelo Kate Moss tornou-se o ícone do estilo “heroína chique” nos anos 1990, numa alusão ao aspecto deplorável de um corpo consumido pelo excesso de drogas e álcool. A moda passava a produzir imagens cada vez mais influenciadas por todo um conjunto de comportamentos sociais voltados para a consagração de hábitos desregrados e fantasiosos. Mas, apesar de algumas rupturas estéticas estarem de alguma forma associadas a importantes transformações socioculturais sexuais e de gênero resultantes de conquistas femininas e feministas do período, pode-se dizer que o corpo feminino da moda continuou a ser um corpo branco. Mesmo com capas como a de Vogue Paris (Figura 4), essas rupturas quase não podiam ser notadas ou reconhecidas como válidas no campo racial, pois muitas das representações do corpo feminino não branco estavam associadas necessariamente a mulheres absolutamente 55 legitimadas no e pelo campo da moda, como é o caso de Naomi Campbell.

Figura 4: Capa de Vogue Paris com as supermodelos Kate Moss e Naomi Campbell. Fonte: Vogue Paris (2008a).

Além disso, a carreira de Carine Roitfeld foi constantemente marcada por acusações de sexismo, anorexia e racismo – fato que acabou contribuindo para que Vogue Paris estivesse em pauta na mídia especializada. Nesta edição de fevereiro de 2008, as supermodelos da década de 1990 foram exibidas como a grande dupla de bad girls [garotas más] e, mesmo que não fossem mais garotas, ganharam ainda maior destaque internacional ao serem fotografadas por Mario Testino. Uma bad girl é uma “uma garota que se permite o direito de se consumar como bem entende, sem precisar se justificar, ainda menos de se desculpar. Uma garota má, em suma, é a contraparte feminina do tipo descontraído” (ROITFELD, 2008a, p. 92). A autora acrescenta a grande diferença entre o tipo descontraído [cool] e a garota má: enquanto o primeiro é admirado, a segunda é apenas boa para ser crucificada. 56

Elas passaram do estatuto de ESTRELAS dos pódios ao de stars rapidamente. Plásticas fora da norma, PERSONALIDADES explosivas, tropeços assumidos, Kate Moss e Naomi Campbell dinamitaram a noção da SUPERMODELO clássica. Elas são alias as únicas sobreviventes de sua idade de ouro, GAROTAS MÁS, sem dúvida, mas aspiradoras ao infinito, esta dupla de glam dura porque ela encarna a BELEZA, a liberdade e mesmo o direito de se QUEIMAR (ROITFELD, 2008b, p. 214, grifo do autor, tradução nossa).

Citando Amy Winehouse, Paris Hilton, Lindsay Lohan, Britney Spears, Kate Moss (Figura 5), entre outras garotas más, o periódico francês afirma que a vocação de Vogue “nunca foi a de julgar, mas de fixar a força do estilo, onde quer que ele se encontre” (ROITFELD, 2008a, p. 92). Mesmo que elas não sejam garotas exemplares, participam simbolicamente de um conjunto de comportamentos socioculturais produzidos pela branquidade, permanecendo entre as celebridades mais copiadas, como uma espécie de “inacreditável fonte de inspiração”34.

Figura 5: Imagens de Kate Moss na sessão Magazine de Vogue Paris. Fonte: Vogue Paris (2008a, p. 236).

34 Ibidem 57

Em julho de 2010, Vogue Brasil publica uma edição dedicada à “linguagem corporal”, com destaque para o caso da top holandesa Kim Noorda, que mostra à Vogue o diário que escreveu durante o ano em que batalhou contra a anorexia: “sincero e comovente, ele revela como a moda ainda tem de caminhar muito para que glamour combine com vida saudável (SINGER, 2010, p. 112). Imagens (Figura 6) que representam a luta por um corpo “normal”.

Figura 6: Imagens de Kim Noorda na matéria A Luta por um corpo normal. Fonte: Vogue Brasil (2010b, p. 114).

A modelo afirmou que, durante os desfiles, emagrecia por pressão dos agentes, mas depois engordava de novo: “Quando no mês seguinte aparecia para um trabalho, era visível a decepção no rosto de quem havia me contratado, por conta da diferença entre meu composite e a aparência real" (SINGER, 2010, p. 113). Tal declaração comprova a difícil condição para manter o corpo exageradamente magro, dentro dos padrões exigidos pela estética idealizada [branca] do mundo das passarelas. Esta matéria sobre Kim Noorda deve ser entendida no contexto mais amplo desta edição de 58

Vogue, que a publica juntamente com o editorial Body Couture (figura 7), fotografado por Jacques Dequeker.

Figura 7: Imagens do editorial Body Couture. Fonte: Vogue Brasil (2010d, p. 124-133).

Ao deixar claro que a aposta é em um discurso que “elege o corpo feminino como a grande estrela da edição”, a editora Daniela Falcão (2010c, p. 17) parece querer mostrar duas faces da mesma moeda (ou melhor, duas medidas para um mesmo corpo) – de um lado reconhece seus limites, mas de outro o exalta com termos que remetem ao poder de sedução: “como nesse caso recheio é fundamental, acionamos Alessandra Ambrósio, modelo sinônimo de corpo saudável, feminino e curvilíneo” (FALCÃO, 2010c, p. 17). Percebo o quanto tais discursos sobre o corpo feminino no campo da alta moda e do prêt-à-porter de luxo, neste caso a partir de Vogue, são fruto de uma produção sintonizada com a concepção contemporânea global de beleza corporal, bastante ambígua por sinal: o corpo extremamente magro da modelo Alessandra Ambrósio ganha destaque neste editorial uma década após a virada explosiva no padrão de beleza brasileiro liderado por Bündchen. Gostaria de enfatizar que mesmo o 59 corpo de Ambrósio não pode ser considerado saudável – muito menos curvilíneo – se comparado com as formas de Gisele Bündchen por exemplo. Acredito que a estética da magreza extrema, personificada por Kate Moss na década de 1990, tenha sido retomada no final da primeira década do século atual como parte de um processo de revalorização do padrão europeu de corpo no contexto globalizado da moda contemporânea. É importante ainda ressaltar que o editorial Body Couture faz referência aos corsets: “Os corsets são a estrutura dos novos vestidos de noite. Ricos e trabalhados, eles vêm à luz para avisar que nesta temporada, quem brilha é o corpo feminino, saudável e curvilíneo” (FALCÃO, 2010d, p. 124). Vogue mantém discursivamente a ideia de sofisticação e feminilidade em relaçao a esse tipo de peça íntima do século XXI, embora elas tivessem causado graves deformações corporais nas mulheres da elite [branca] da Europa Moderna. Além disso, o padrão corporal europeu [branco] exerce uma influência determinante na produção das capas de Vogue Brasil na primeira década de nosso século (Figura 8), uma vez que essas modelos brasileiras de projeção mundial – muitas delas gaúchas e de descendência europeia, como veremos mais adiante – ocupam lugar central. Brancas, jovens, sensuais e extremamente magras: as modelos brasileiras que se enquadram no padrão europeu de beleza acabam personificando o corpo [branco] da moda e do luxo, contribuindo enormemente para determinada percepção estética corporal por parte das leitoras brasileiras de Vogue. Nem mesmo a figura de Gisele Bündchen conseguiu atenuar tais efeitos discursivos da branquidade na moda contemporânea brasileira, sendo construída ambiguamente, como veremos notavelmente no quarto capítulo.

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Figura 8: Capas de Vogue Brasil. Fonte: Vogue Brasil (2003; 2004a; 2007a; 2008b; 2009a; 2010a).

Astudillo (2008) afirma que a adolescência é um período estreitamente ligado ao surgimento de doenças alimentares. Uma postura hedonista obriga as adolescentes ao julgamento de si mesmas em função de sua própria corporalidade e de suas qualidades físicas, e não em função de suas atuações. Modelos, cantoras e atrizes personificam cada vez mais o “sonho da juventude”, que seduz todos os estratos de uma mesma sociedade.

A imagem que a adolescente possui de si mesma vai se formando mediante os vínculos nos quais os companheiros, amigos, pares, ídolos, adquirem a representação de modelos e conselheiros, 61

contribuindo conjuntamente para a aquisição de sua identidade. Tipicamente surge a necessidade de pertencer a um grupo, no qual se mimetizam e imitam. Buscando sua aceitação, cria um vinculo com eles, seguindo e validando as mesmas premissas. Assim ocorre com diversas condutas, preferências musicais, artísticas, vestimentas e os critérios estéticos de beleza. A adequada aceitação do próprio corpo da adolescente estará condicionada aos cânones predominantes entre seus pares e entre as figuras de culto social imperantes (ASTUDILLO, 2008, p. 595).

Retomando a questão da superexposição midiática das bad girls, esta foi alvo de preocupação por parte da ONU, que oficialmente se pronunciou contra a “desastrosa imagem que elas retornam aos jovens” (COLMANT, 2008, p. 234). Para além de um fenômeno de moda, a fabricação das garotas más está ligada à escala da violência sempre presente, segundo Marie Colmant (2008, p. 238): “elas cruzaram a linha invisível, verdadeiro Muro de Berlim, que codifica o bem e o mal. Garota má porque rebelde contra uma sociedade que impõe às mulheres uma violência intolerável”.

Ícone rebelde do rock, Janis Joplin é a Amy Winehouse de hoje. Mesma voz incrível, mesmo temperamento, mesma presença cênica fascinante e mesmo senso de estilo (...). Com exceção de que Janis Joplin é no inicio uma adolescente de físico ingrato e distante do modelo Barbie que faz referência nesta América amarrada do inicio dos anos 60 [...]. Um pequeno mundo branco que não admite que uma menina escute a música negra, que beba cerveja com os rapazes e se veja como cantora de blues. Janis é uma garota perdida. Sim, mas a partir de quem? (...) Desta América puritana onde os Negros não possuem direito ao voto e que deve ser filmada acima da cintura? (COLMANT, 2008, p. 238, tradução nossa).

Na mesma edição (fevereiro de 2008), Vogue Paris traz a figura de Amy Winehouse como inspiração para o editorial de moda L’Idole (Figura 9), realizado por Emmanuelle Alt, no qual a modelo brasileira 62

Isabeli Fontana encarna o universo da fama da cantora, fotografada por Peter Lindbergh no consagrado Hôtel de Crillon, com vista para a Place de la ConcordeI, em Paris.

Figura 9: Imagens do editorial L’Idole, homenagem à cantora Amy Winehouse. Fonte: Vogue Paris (2008a, p. 252, 253, 262 e 263).

Seu corpo [branco] tatuado e extremamente magro é alvo de um discurso promissor legitimado a partir do lugar social que a cantora ocupava na mídia, atribuído tanto ao talento indiscutível quanto à liberdade de parecer quem bem pretendesse ser: "Sua voz faz unanimidade. Suas MANEIRAS claramente menos. Mas esta garota BLUES INDOMAVEL queima sua vida absolutamente como ela deseja, fenomenal fonte de inspiração entre RETRO assumido e provocação na pele" (ALT, 2008, p. 252). Coincidência ou não, a carreira de Isabeli Fontana é marcada por turbulentas campanhas no mundo da moda. Se Winehouse morreu três anos após esta edição de Vogue, aos 27 anos, por intoxicação alcoólica, a modelo brasileira foi alvo de uma polêmica campanha de moda praia 63 da marca sueca H&M (Figura 10), acusada de incentivo ao superbronzeamento.

Figura 10: Imagens da modelo brasileira Isabeli Fontana superbronzeada na campanha da marca H&M. Fonte: Redação Vogue Brasil (2012).

Segundo a jornalista Roberta Fontelles Philomeno, colunista do jornal O Povo online, a Liga Francesa Contra o Câncer de Pele acusou a marca de reforçar “representações sociais sobre como deve ser o corpo das pessoas, mesmo se para isso seja preciso pagar o preço comprometendo a própria saúde” (PHILOMENO, 2012). Não só a marca, mas Isabeli Fontana também foi criticada por médicos, especialistas e ONGs feministas, que consideraram uma péssima influência ao abuso do sol na busca da mesma estética. A modelo brasileira entendeu que a proposta da marca era justamente “exalar pelas fotos a ideia de um caliente dolce far niente” e afirmou: “Não tem nada a ver [a polêmica]. É que ninguém pensa que é só maquiagem”. A modelo declarou ainda que “foi uma semana maravilhosa e as fotos que o Michael Jansson fez ficaram lindíssimas! Meu trabalho é esse, vender” (REDAÇAO VOGUE BRASIL, 2012, p. 1). Pierre Bourdieu (1988) problematizou a pele bronzeada da jovem elite europeia do século XX, associando-a ao privilégio do ócio do tempo livre. O bronzeado torna-se um marcador social da distinção impresso no corpo, revelando um “estar bronzeada, morena, mas sendo branca” por meio do próprio processo de bronzeamento. Segundo Débora Leitão (2007, p. 222), o bronzeado em si é “a aparência 64 hegemônica nos padrões de beleza contemporâneos, sobretudo no Brasil”. Retomando os regimes de representação do corpo [branco] da moda, a magreza é um de seus elementos constituintes. Não por acaso a discussão trazida por Susan Bordo no início dos anos 1990 demonstra o quanto teóricas feministas americanas estavam preocupadas em problematizar a magreza corporal ligada à cultura ocidental. Ainda no século XIX, o corpo indicava identidade social e “lugar” e as principais marcas da discriminação eram de classe, raça e gênero. O excesso de peso corporal foi visto como um reflexo da inadequação moral ou pessoal, ou ainda falta de vontade – associações possíveis apenas dentro de uma “cultura da superabundância, numa sociedade na qual aqueles que controlam a produção da ‘cultura’ possuem mais do que o necessário para comer” (BORDO, 1993, p. 192). É importante ressaltar que algumas escritoras têm argumentado, segundo Bordo (1993), que a fome feminina seria problematizada especificamente durante períodos de mudança tanto nas relações generificadas estabelecidas quanto na posição da mulher.

Em cada período (...), imagens do pesadelo, chamadas por Bram Dijkstra de tema ‘da mulher consumindo’, proliferaram na arte e na literatura (imagens representando o desejo feminino desencadeado), enquanto construções dominantes do corpo feminino o tornaram mais esbelto – ao contrário do corpo de uma mulher totalmente desenvolvida, mais como aquele de uma adolescente ou garoto (imagens que devem ser chamadas de desejo feminino ainda não nascido). Dijkstra argumenta que é caso do final do século XIX, apontando para esfinges devoradoras e vampiras sugadoras de sangue da arte de fin-de- siècle, e para a onda que se estendeu, ‘sublimemente emagrecida’ dos corpos femininos (BORDO, 1993, p. 206, tradução nossa).

Pode-se dizer que discutir sobre o corpo [branco] da moda levou- me a identificar que a própria imagem do corpo esbelto é de fato construída sobre um corpo generificado [gendered], feminino ou andrógino. Este último faz inclusive emergir um novo estilo de corpo, 65 incrivelmente alongado, que “clama por interpretação”, como declara Bordo (1993). A mudança, por exemplo, em relação à figura ampulheta dos anos 1950 precisa ser interpretada não apenas do ponto de vista da ansiedade masculina sobre os desejos femininos, mas também “do ponto de vista da mulher que abraça o ‘novo visual’. Para elas isso [...] deve simbolizar, não tanto a contenção do desejo feminino quanto sua liberação de um destino doméstico, reprodutivo” (BORDO, 1993, p. 207). As próximas duas imagens (Figuras 11 e 12) fazem parte de edições francesas de Vogue, que trouxeram o tema da androginia como fonte de inspiração no início do primeiro decênio de nosso século. Como parte da metodologia utilizada nesta tese, seus respectivos editoriais de moda serão analisados em seguida (Figuras 13 e 14).

Figura 11: Imagem do Figura 12: Imagem do editorial Noir Blanc. Fonte: editorial Performance. Fonte: Vogue Paris (2001a, p. 176). Vogue Paris (2005b, p. 163).

Como veremos, ao analisar mais profundamente cada um desses editoriais, o ethos da branquidade em Vogue Paris adquiriu traços de uma androginia tanto ficcional (baseada no estilo minimalista35) quanto

35 Estilo notavelmente norte-americano, encontrado na moda contemporânea mais precisamente na virada do século XX, a partir da qual 66 romântica (baseada no espírito couture). Pode-se dizer que Roitfeld apostou discursivamente na “desconstrução dos códigos de gênero” (masculinos e femininos). Esta perspectiva remete à filosofia cyborg de Donna Haraway (2009), que busca a superação das diferenças de gênero através da realização de corpos neutros, pós-orgânicos ou “trans- humanos”. Nesse sentido, talvez essa superação tenha inspirado determinadas produções francesas em Vogue ao longo dos anos 2000, aliada logicamente ao estilo de Carine Roitfeld. Olivier Zahm afirma, no recente livro Irreverent, que é, antes de tudo, o estilo tão pessoal de Roitfeld que ela livremente transpõe em suas imagens de moda. Ela é sua própria musa, mesmo quando brinca abertamente com a fantasia e os sonhos eróticos, apesar de insistir que eles não são parte de sua realidade. Acima de tudo, sua falta de medo e a ausência de tabus em suas ideias de moda são seus melhores pontos fortes (ROITFELD; ZAHM; HORYN, 2011).

Isso porque ela sabe o que é certo para a mulher. Ela sabe como uma mulher irá se mover com as roupas, vive com elas, e usa seu poder de sedução nelas. Ela sabe que mulheres amam se vestir tanto para elas mesmas quanto para aparecerem para os homens. Ela sabe que mulheres gostam de flertar, assim como serem seduzidas. Carine Roitfeld tem muito em comum com as mulheres favoritas de Yves Saint Laurent – como elas, ela equilibra masculinidade e feminilidade em uma única pessoa, utilizando tropos tipicamente masculinos para combater sua timidez (ROITFELD; ZAHM; HORYN, 2011, p. 9, tradução nossa).

Roitfeld fez sua estreia na Vogue francesa em fevereiro de 2001, com o editorial intitulado Noir Blanc [Preto Branco]. Em uma espécie de homenagem a fotógrafos, modelos e estilistas que fizeram parte de sua trajetória anterior a Vogue, como veremos mais adiante, Carine traz

ocorre uma simplificação do guarda-roupa, com a abolição do supérfluo. Em resposta aos exageros das décadas de 1970, 1980 e parte de 1990. A partir do minimalismo, como o próprio nome sugere, muitos editoriais de moda passaram a investir em um visual mais clean [limpo], com enfoque no cotidiano ou no comportamento dos indivíduos, com o uso de cores neutras. O lema deste estilo é: “O menos é mais”. 67 a estrela Kate Moss na capa e no editorial citado, o amigo e consagrado fotógrafo Mario Testino, além de peças da Yves Saint Laurent Rive Gauche, criadas por – com quem havia trabalhado na . Sobre o conceito do estilo empregado, a realizadora afirma que “é um preto luminoso, um branco profundo; um preto e branco dopado, bem misturado: tônus, ritmo e sex-appeal” (ROITFELD, 2001, p. 169). E ainda: Quanto ao sentido destas imagens, ele é decodificado pela equipe de choque comandada velozmente pelas supersônicas Emmanuelle Alt e Carine Roitfeld, seguidas por suas amazonas. Para elas, as coleções são o pódio anunciado da rua. Falta ainda saber vê-lo. Elas mostram que sabem. Uma nova era pede uma moda que fale dela mesma, uma moda adulta. A nova Eva exige a moda em vídeo, com os riscos da transmissão direta, com os perigos da arte viva. Ela quer a moda em maiúsculo, a arte de viver ao mesmo tempo que a arte contemporânea. A nova Eva quer saber quem é Tom Ford. Porque Gucci, porque Saint Laurent, porque estes nomes são tão desejados e qual é a relação com a exposição Pop Art no Centre Pompidou. Ela quer compreender o novo design (ROITFELD, 2001, p. 169, tradução nossa).

A branquidade construída por Carine Roitfeld parece abranger o aspecto andrógino que tanto a inspira, bem como às mulheres de Monsieur Saint Laurent. Tudo para dar a impressão de certa compostura, de alguma autoconfiança, mas também para contrariar a aparência feminina: “eu acho que a mulher ideal de Saint Laurent é uma combinação de timidez, feminilidade e atitude andrógina” (ROITFELD; ZAHM; HORYN, 2011, p. 33). Assim, o conceito de feminilidade atribuído à mulher francesa neste editorial (Figuras 11 e 13) permite entender o quanto o corpo [branco] é investido simbolicamente por uma atitude marcada pela desconstrução do gênero, bem como pelo estilo minimalista, em voga no início dos anos 2000.

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Figura 13: Imagens do editorial Noir Blanc. Fonte: Vogue Paris (2001a, p. 170-189).

Como veremos no terceiro capítulo, uma mensagem visual é constituída por três outras mensagens: “plástica”, “icônica” e “linguística” (JOLY, 1996), sendo que tanto a análise de cada uma delas quanto o estudo de sua interação permite detectar a mensagem implícita global. Nesse sentido, signos icônicos (figurativos) e plásticos são distintos, embora ambos sejam considerados como signos visuais e complementares. Plasticamente, o uso de linhas em diagonal parece atravessar as fronteiras “do ser e do parecer mulher”, não somente pelos efeitos gráficos e geométricos do cenário, mas também pelos movimentos corporais de braços e pernas das modelos e pelas formas (modelagens) das peças vestidas e dos cabelos, que quebram com a verticalidade e a horizontalidade do corpo. Iconicamente, o uso do preto e branco provavelmente não tenha apenas relação com as mesmas cores que Tom Ford propôs na coleção de Saint Laurent, mas com a ambiguidade de seus efeitos físicos e significados psicológicos e culturais: se a soma de todas as cores existentes na luz é o branco, o preto é a ausência de cor, estando 69 portanto opostos numa escala cromática; pensados em termos de identidades de gênero, tal ambiguidade pode ser reforçada com uma maior abertura em relação à visão binária de “masculino/feminino”, historicamente construída; por sua vez, mulheres diferentes com absoluta semelhança física e gestual podem sugerir “o duplo” do mesmo, contribuindo para a performatividade andrógina do século XXI. Carine revela ainda um de seus truques neste editorial: “meias brancas e lingerie preta” (ROITFELD; ZAHM; HORYN, 2011, p. 114). O uso de transparências, deixando à mostra partes culturalmente “erotizadas” do corpo [feminino] faz parte do jogo, bem como o seio – visto também ambiguamente, em maior ou menor grau de erotização pelo próprio contexto do editorial. Veremos no quarto capítulo que os seios à mostra em Vogue Paris revelam uma liberdade feminina paradoxal, que pode estar sendo reforçada pela imagem contraditória e polêmica da modelo Kate Moss, o “rosto da estação” segundo os autores. Conforme Éric Maigret (2010, p. 243), o conceito de performance “oferece um instrumento de análise das posturas adotadas, tanto no nível das imagens, do corpo quanto da linguagem”. No editorial justamente intitulado Performance, produzido quatro anos após Noir Blanc, o corpo [branco] de Vogue Paris ainda é de certa forma andrógino, mas desta vez parece se distanciar um pouco mais do minimalismo (norte-americano) para se fundir, plástica e iconicamente, ao universo romântico (europeu) de fins do século XVIII e mais fortemente do século seguinte. Realizado por Marie-Amélie Sauvé, editora de moda de Vogue, o referido editorial apresenta em suas primeiras páginas o seguinte texto: “Performance. Em um corredor pensado como uma cena de teatro, a moda americana interpela o olho europeu: ao encontro das evidências, o selo US na peneira do espírito couture” (SAUVE, 2005b, p. 151, grifo do autor). O espírito couture referido por Vogue remete à criação da Alta Costura [Haute Couture], tradição legitimada pela capital francesa, conforme veremos mais adiante. Neste editorial, a branquidade se faz teatral (Figuras 12 e 14). Trata-se de uma teatralidade que explora o exagero em alguns momentos para seduzir um público seleto. Mais imaginação do que realidade, mais escapismo do que engajamento, mais emoção do que objetividade, mais ilusionismo do que verdade – tais são os efeitos discursivos e estéticos vislumbrados para mostrar a moda dos Estados Unidos “aos olhos de Paris”.

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Figura 14: Imagens do editorial Performance.

Fonte: Vogue Paris (2005b, p. 150-163).

A partir de corpos extremamente brancos (figura 14), o periódico francês escolhe uma espécie de antídoto ao minimalismo para representar o espírito couture de sua capital, encarnando o estilo romântico, carregado [overdressed], que se expressa principalmente pela interpenetração de elementos opostos, tais como masculino x feminino, estruturado x desestruturado, curto x comprido, opaco x transparente etc. Uma grande quantidade de códigos culturais nas produções é ainda uma característica da estética romântica. O uso do preto e de cores fortes, como o vermelho e o roxo, confere maior dramaticidade ao contexto, além do alto contraste entre luz e sombra; o ritmo imposto pelas disposições das várias modelos, com movimentos acentuados em várias direções, reforça uma sensação de estranhamento, como se elas fossem bonecas ou mesmo figuras oriundas de alguma ficção, peça de teatro ou obra literária do período. Embora minimalista, o cenário incorpora alguns elementos neoclássicos (estilo que vigorou paralelamente ao romantismo), tais como o tapete vermelho e as rebuscadas cadeiras estilo Louis XV (Figura 14). 71

É importante ressaltar que o gênero, do ponto de vista relacional e contextual, se configura como uma relação entre sujeitos socialmente constituidos, em contextos especificáveis. Veremos, no quarto capítulo, que a histórica incorporação brasileira do “olhar estrangeiro masculino” (que erotiza o que para ele é “exótico”) marca a produção da branquidade no contexto brasileiro. Assim, a androginia apresentada em Vogue Brasil é romântica “à europeia” (Figuras 15 e 16), mas não desconstrói códigos e papéis de gênero (masculinos e femininos) da mesma maneira que Vogue Paris.

Figura 15: Imagem do editorial Figura 16: Imagem do editorial Gênero Príncipe. Fonte: Vogue Primeira Viagem. Fonte: Vogue Brasil (2002, p. 121). Brasil (2004a, p. 105).

Em 2002, no editorial “Gênero Príncipe” (Figuras 15 e 17), Patricia Carta traz o seguinte texto: “Referências históricas fazem este inverno eclético ser também andrógino. O look cavaleiro(a) dos anos 2000 valoriza camisas de mosqueteiro, mangas trabalhadas, pelerines, jabots e botas longuíssimas. Uma viagem no tempo” (CARTA, 2002, p. 120). De certa forma, a estética romântica também é retomada pela Vogue brasileira nos primeiros anos do século XXI, mas diferentemente da versão francesa, ocorre uma apropriação da figura do Dândi [Dandy], homem do século XIX não necessariamente pertencente à nobreza, mas com apurado senso estético.

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Figura 17: Imagens do editorial Gênero Príncipe. Fonte: Vogue Brasil (2002, p. 120-129).

Iconicamente, a imagem do cavaleiro na figura de uma jovem mulher pode representar a tentativa desta última em viver a vida de “maneira leviana e superficial”, com notável obsessão pela classe e pela ostentação. O corpo [branco] alia graça e força. Trata-se do corpo do herói, que reuni todas as qualidades de um corpo excepcional. Xavier Bourdenet, ao escrever o romance de Barbey d’Aurevilly, exalta a figura do cavaleiro Des Touches, um jovem que realiza o corpo “glorioso”, gracioso e andrógino.

O corpo em glória, caracterizado por uma ambiguidade sexual, que nos interessa agora, o é igualmente, mas de uma outra maneira. É preciso de início distanciar duas interpretações históricas ou ideológicas da ambivalência sexual de Des Touches [...] A feminização, neste caso, equivaleria a uma estigmatização. O caráter afeminado de Des Touches deve ser lido de outra 73

forma. Tendo em vista que ele não anula seus atributos femininos. Aqui está toda a diferença: o interesse do personagem não está somente na feminização, mas no elo constante que o texto estabelece entre o masculino e o feminino a respeito do cavaleiro, na união dos contrários que ele realiza superlativamente. Ele é ao mesmo tempo um e outro (BOURDENET, 2005, p. 208, tradução nossa).

Na obra citada, a androginia deve ser lida ideologicamente: o corpo andrógino é um corpo perfeito, fascinante de perfeição, que une os contrários, masculino e feminino, graça e força. Realizando superlativamente a união dos sexos, o corpo de Des Touches se inscreve diretamente na História (BOURDENET, 2005). O corpo marcado pela androginia é então, no romance, o signo dos seres que intervêm na História, assim como pode ser também no editorial de Vogue. A troca de papéis de gênero no plano estético e discursivo deste editorial é reforçada pela ideia de viagem no tempo, sendo imortalizada, por exemplo, pela escolha intencional do preto e do branco na composição e de poucos elementos cenográficos para além da modelo (Figura 17). O foco é na atitude: o corpo sem formas definidas, os cabelos curtos, os gestos emprestados do “comportamento masculino”, a maneira de apresentar as peças no próprio corpo são significantes desta androginia romântica no contexto brasileiro – reconhecíveis culturalmente pela elite [branca]. Mas é fundamental salientar que a atitude celebrada aqui não deixa de lado traços de inocência e docilidade (típicos da concepção de feminilidade do período romântico), representados por signicantes associados ao universo feminino, como o rosto delicado ao lado de uma imensa flor (Figura 15). O corpo extremamente jovem da mulher [branca] faz parte de um diálogo sensual, mas que oscila entre liberdade e submissão ao desejo masculino. Vogue Brasil parece evocar, por meio do espírito romântico, uma personagem feminina que experimenta a troca de identidades sexuais e de gênero construídas e valorizadas a partir do nível da aparência, inspirada talvez pela brincadeira da menina com o guarda-roupa do irmão mais velho. Dois anos após, Vogue Brasil realiza o editorial intitulado “Primeira Viagem” (Figuras 16 e 18), justamente na “primeira Vogue de um novo ano, início do segundo ano de um novo governo” (BRANDÃO, 2004, p. 67), fazendo uso da chamada moda marinheiro. 74

Produzido por Patricia Carta e fotografado por Mario Daloia, traz o texto: “Ícone fashion do verão, o look marinheiro ganha sua versão mais sedutora” (CARTA, 2004a, p. 102). Trata-se de um editorial plasticamente bastante sedutor de fato, inspirado no universo da navegação.

Figura 18: Imagens do editorial Primeira Viagem. Fonte: Vogue Brasil (2004a, p. 102-109).

O cenário escolhido remete ao interior de uma embarcação, mas não de um local comumente mostrado aos visitantes: a cabine de comando, repleta de elementos em ouro velho, tais como timões, correntes e lampiões, dispostos desordenadamente. Algumas imagens foram registradas com efeito de câmera de modo a conferir ao ambiente uma espécie de fumaça ou neblina. Predominam, além do dourado, as cores azul, branco e vermelho – que não por acaso podem ser interpretadas como significantes da moda marinheiro do balneário francês, pois mesma edição Vogue apresenta outro editorial intitulado “A bela da tarde” (Figura 102), que será analisado em outro capítulo, com referências ao cinema da França, mais especificamente ao filme La Belle de Jour. 75

As expressões faciais da jovem mulher [branca] chamam a atenção para uma “vontade de se aventurar” rumo ao desconhecido, tendo apenas como garantia a sensualidade e o erotismo leve. Uma viagem inédita significa muito provavelmente a “primeira”, na qual se misturam sensações de prazer e incerteza; o corpo bronzeado – e suas partes evidenciadas – faz parte deste discurso, convidando a leitora de Vogue a embarcar nas fantasias sexuais do gênero. Pelo tempo e pelo espaço, estas oscilam entre nuances leves e acentuadas de erotização. Tanto a presença quanto a ausência de certas partes do corpo feminino no imaginário brasileiro e na construção da própria branquidade em Vogue podem fazer parte de uma “socialização sexualizada do gênero”. Cynthia Kraus, em sua comunicação Le corps, entre sexe et genre36, sugeriu o uso do termo caractères du corps [características do corpo] no lugar de corpo sexuado ou generificado. Tais características chamariam a atenção para “traços de gênero”, que permitiriam diferenciar tais traços para além de certas características físicas, por exemplo. Vestidos super “femininos”, quando usados com acessórios típicos deste estilo (lenços e chapéus), contribuem iconicamente para que a jovem viajante seduza e ao mesmo tempo se deixe seduzir pelo “olhar masculino”: é sensual mesmo quando veste peças do universo masculino (camisa e gravata, casacos, jardineira, macaquinhos, calça). Este jogo ambíguo e performático da aparência do gênero é também um jogo hierárquico de poder sexual, marcado por poses extremamente sensuais do universo feminino “dominado” e outras associadas ao universo masculino “dominante”, neste caso o do marinheiro. Veremos no terceiro capítulo que o “modo de ver” masculino colonizador influencia a produção imagética e discursiva de Vogue, passando logicamente pelas lentes de seus fotógrafos. A branquidade é sempre situada, adquirindo diferentes formas, dependendo de como a brancura é atravessada pelas questões do gênero, neste caso nos contextos brasileiro e francês da primeira década do século XXI – escolhida a androginia como exemplo. Portanto, o corpo [branco] é um importante agente cultural ocidental: suas formas e significados refletem o conflito e a mudança históricos, no qual a política de gênero é inscrita com especial clareza (JAGGAR; BORDO, 1997).

36 Na ocasião do colóquio dedicado à Françoise Collin, “Femmes, féminisme, recherches”, 30 ans après. Realizado em 14 e 15 de dezembro de 2012 na Université de Toulouse II - Le Mirail e na École supérieure de commerce de Toulouse, na cidade de Toulouse/FR. 76

Veremos que a identidade racial branca é (re) construída por meio da circulação hegemônica de imagens deste corpo em Vogue, contribuindo enormemente para a manutenção do privilégio que o grupo branco obtém em uma sociedade racista (CARDOSO, 2010). Retomo a pergunta inicial deste tópico, que buscou interrogar “que corpo [branco] é esse” de Vogue, apresentado na década de 2000. Para melhor compreender como ele é construído, faz-se necessário ainda abordar a própria história deste periódico e dos principais agentes sociais envolvidos na manutenção da “matriz discursiva Condé-Nast” no século XXI.

2.3 “VOGUE-QUEM”: O DISCURSO DE COMPETÊNCIA E RENOVAÇÃO CONSTANTES

Entender um periódico como fonte e objeto de pesquisa significa entender o suporte como importante campo de significações, ou seja, estar alerta primeiramente para os aspectos que envolvem a materialidade do suporte, pois esta nada tem de natural. Reconhecer a relação estreita, complexa e dinâmica dos periódicos com as questões, problemáticas e desafios inerentes ao seu tempo implica na necessidade primária de se considerar a materialidade desses impressos em diferentes momentos. Todas as práticas sociais, na medida em que necessitam de significados para funcionar, possuem um caráter discursivo. Discursos são entendidos neste artigo como um conjunto de “regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 1987, p. 136). Assim, historicizar a fonte “requer ter em conta, portanto, as condições técnicas de produção vigentes e a averiguação, dentre tudo que se dispunha, do que foi escolhido e por quê” (LUCA, 2005, p.132). Isso remete aos aspectos relacionados com as condições técnicas – em si dotadas de historicidade, mas que se entrecruzam em contextos socioculturais específicos: na forma como os impressos chegam às mãos dos leitores; na sua aparência física (formato, papel, qualidade de impressão, capa, ilustrações e/ou imagens fotográficas); na estruturação e divisão do conteúdo; nas relações que os impressos mantêm com o mercado; na publicidade apresentada; no público visado etc. 77

Essas considerações ampliam a compreensão de como a linha editorial de um periódico de moda é definida para atender grande parte das questões assinaladas anteriormente. Além da materialidade, o conteúdo de impressos como jornais e periódicos é fundamental nessa abordagem, pois “o conteúdo em si não pode ser dissociado do lugar ocupado pela publicação na história da imprensa, tarefa primeira e passo essencial das pesquisas com fontes periódicas” (LUCA, 2005, p.139). Outra consideração fundamental é identificar cuidadosamente o grupo responsável pela linha editorial, “estabelecer os colaboradores mais assíduos, atentar para a escolha do título e para os textos programáticos” (LUCA, 2005, p.140). Deve-se, portanto, ter em mente que jornais e periódicos são também projetos coletivos – que agregam valores, crenças e ideias, estando longe de serem caracterizados como obras solitárias homogêneas ou coerentes.

As redações, tal como salões, cafés, livrarias, editoras, associações literárias e academias, podem ser encaradas como espaços que aglutinam diferentes linhagens políticas e estáticas, compondo redes que conferem estrutura ao campo intelectual e permitem refletir a respeito da formação, estruturação e dinâmica deste. Nessa perspectiva, o sumário que se apresenta ao leitor resulta de ‘intensa atividade de bastidores’, cabendo ao pesquisador recorrer a outras fontes de informação para dar conta do processo que envolveu a organização, o lançamento e a manutenção do periódico (LUCA, 2005, p.141).

Portanto, ligações cotidianas com diferentes poderes e interesses financeiros fazem parte de tais projetos, inclusive os de caráter publicitário (entre os grupos responsáveis pelo periódico e as empresas públicas e/ou privadas, órgãos, instituições, entre outras, direta ou indiretamente relacionadas com as edições publicadas). Como é o caso de parcerias publicitárias entre Vogue e outras marcas de luxo, tais como Cartier, Prima Donna, Rado, Alfred Dunhill, H. Stern, Natan, Mont Blanc e Audi. Há também eventos anuais promovidos por Vogue (como o “Baile Vogue” e o Vogue Fashion Night Out), que ocorrem nas principais capitais do mundo e contam com a presença dos mais consagrados “mediadores culturais” que circulam no universo da alta 78 moda e do prêt-à-porter de luxo, incluindo os segmentos que giram em torno dele (beleza, decoração e acessórios). Pode-se dizer que Vogue é dirigida ao público predominantemente feminino, jovem, com poder aquisitivo médio alto a alto, sendo essas mulheres colecionadoras de Vogue e consideradas como “formadoras de opinião” em importantes capitais do país ao qual direciona sua versão e/ou fora dele. São mulheres que possuem elevado capital econômico e cultural (como veremos mais adiante), valorizam a excelência estética, conceitual e comercial das informações de moda, cultura, gastronomia, viagem, decoração, beleza e comportamento nas páginas de Vogue e são capazes de reconhecer os melhores profissionais colaboradores das edições e anúncios de grandes marcas (nacionais e internacionais). Há também uma parcela considerável de especialistas e profissionais do campo da moda e do design que consomem Vogue, por ser justamente um periódico que tem como conceito de base criar novas tendências, relançar criadores, renovar constantemente, aliar estilo, audácia e criatividade. Foi assim que o nome Vogue, segundo Delphine Royant (2012), tornou-se uma expressão construída pela ideia de avant- garde [vanguarda], como veremos a seguir. Segundo Luca (2005, p. 132), as diferenças na apresentação física e estruturação do conteúdo de um periódico “não se esgotam em si mesmas, antes apontam para outras, relacionadas aos sentidos assumidos pelos periódicos no momento de sua circulação”. Alguns aspectos dessa materialidade são evidenciados por Ruth Joffily, uma das jornalistas pioneiras no campo da moda no Brasil.

[...] nas páginas dos exemplares inscreve-se a própria história da indústria gráfica, dos prelos simples às velozes rotativas até a impressão eletrônica. O mesmo poderia ser dito em relação ao percurso das imagens, que se insinua de forma tímida nos traços dos caricaturistas e desenhistas e chega a açambarcar o espaço da escrita com a fotografia e o fotojornalismo. Páginas amarelecidas que também trazem as marcas do processo de trabalho que juntou máquinas, tintas, papel, texto e iconografia, fruto da paciente ordenação do paginador e da composição manual e caprichosa de cada linha do texto pelo tipógrafo, passando pelos ágeis operadores das linotipos e, 79

agora, pelos meios digitais (JOFFILY, 1991, p. 78).

É possível observar, na história da imprensa feminina, o quanto esta última esteve estreitamente ligada ao contexto histórico que criou razões para seu surgimento, interferindo em cada passo de suas grandes e tardias transformações, principalmente no Brasil. Luca (2005) ressalta que foi preciso esperar a terceira geração dos Annales na França para que ocorressem deslocamentos mais significativos em direção à prática historiográfica, com a proposição de “novos objetos, problemas e abordagens” (LUCA, 2005, p.112). Notavelmente a partir de estudos ligados à História Cultural, alterações mais concretas ao longo das últimas décadas do século XX favoreceram novas perspectivas aos periódicos como fonte e objeto de pesquisas, incluindo sua produção e seu consumo.

A face mais evidente do processo de alargamento do campo de preocupação dos historiadores foi a renovação temática, imediatamente perceptível pelo título das pesquisas, que incluíam o inconsciente, o mito, as mentalidades, as práticas culinárias, o corpo, as festas, os filmes, os jovens e as crianças, as mulheres, aspectos do cotidiano, enfim uma miríade de questões antes ausentes do território da História (LUCA, 2005, p.113).

Dulcília Buitoni (1986) avaliou o panorama histórico dos veículos impressos no mundo, apontando suas implicações na imprensa feminina brasileira, utilizando-se também das pesquisas de Evelyne Sullerot (1963), que por sua vez abordou a imprensa feminina francesa da década de 1960. Segundo Buitoni (2009), a imprensa feminina brasileira colabora para a mitificação e a mistificação do ser feminino, sendo a “mulher de papel” retratada no Brasil conforme padrões estrangeiros – e por isso a real mulher brasileira não apareceria nas páginas de revistas brasileiras ao longo do século XX, entre elas Capricho, Manequim, Cláudia, Mulherio, Bárbara, Atrevida, Ana Maria, e Minha Novela. Buitoni (2009, p. 32) busca mapear “estereótipos, modas, modelos, modismos, estrangeirismos, nacionalismos” que estariam sendo transmitidos em mais de um século, questionando em que medida “a imprensa, como fator cultural, difundiu conteúdos que influíram na 80 formação da consciência da mulher” (BUITONI, 2009, p. 23). Nesse sentido, a principal resposta por ela apontada contribui para mostrar que a produção discursiva da branquidade não é produto exclusivo de Vogue, um periódico voltado para a elite de nosso país, mas da imprensa de massa feminina – fato que comprova a manutenção de um poderoso status quo que tem na mulher branca seu bem simbólico mais precioso.

A mulher branca, sorridente, é rótulo e marca do produto chamado imprensa feminina. Verdadeira mulher de papel que conserva fracos pontos de contato com a realidade. Num país de mestiços, a negra raramente surge em revistas femininas, a não ser como manequim exótico [...]. A mulher brasileira mesmo não frequenta as páginas da imprensa a ela dedicada (BUITONI, 2009, p. 209).

Consideradas peças fundamentais no mercado de países capitalistas, as revistas femininas foram responsáveis pelo notável progresso da publicidade, ao enfocar a indústria de cosméticos, da moda, os produtos para casa/família etc. O luxo e o lazer foram sendo gradativamente associados à ideia de revista no século XX e a imprensa elegeu a revista como seu veículo por excelência. Segundo Sullerot (1963, p. 17), “Revista é ilustração, é cor, jogo, prazer, é linguagem mais pessoal, é variedade: a imprensa feminina usa tudo isso”. Temas considerados de grande interesse para o público feminino passaram a constituir certa unanimidade na imprensa mundial. Buitoni (1986) destaca os principais: o “coração” (literatura que falava de amor); a “etiqueta” (associada ao comer bem, articulou-se nas maneiras de preparar, servir e degustar pratos); a “casa” (personagem principal da urbanização, do desenvolvimento industrial e do aparecimento da classe média, inaugurando a filosofia do prático e funcional); os “cosméticos” (editorias de beleza) e a “moda” (dependente de um esquema industrial, substituindo gradativamente a literatura a partir de meados do século XIX). A indústria dos cosméticos, por exemplo, considerada de luxo no início da década de 1930, passou a revelar uma filosofia otimista com relação aos cuidados de beleza, sendo adotada pela revista de luxo Votre Beauté, inaugurada em 1932 (SULLEROT, 1963). Nela, tanto a 81 apresentação quanto os artigos insinuavam um apelo bem mais profundo que o simples convite à compra, incentivando as mulheres a transitarem no terreno da estética, com todas as armas que as mais recentes descobertas científicas lhes oferecessem. O primeiro exemplar de Vogue foi publicado ainda no século XIX, mais precisamente em 1892, nos Estados Unidos, pela editora Condé Nast Publications, como afirma Francisco Viana37, autor da matéria comemorativa de 25 anos da revista Vogue Brasil, apresentada na edição n° 264, de 2000 (ano em que a Vogue completava 108 anos). Na época de sua fundação, Vogue trazia, além de fotos de modelos, imagens de mulheres da alta sociedade e de estrelas do cinema americano, fundadas sobre os valores associados ao savoir-vivre de uma elite [branca] próspera social e economicamente, no início do século XX. Segundo Claudio Marra (2008, p. 89), Vogue surgiu como uma “pequena revista que tinha uma tiragem de 14 mil cópias”, sendo criada pelo então jovem editor Condé Nast para certa “elite selecionada”, segundo sua primeira chefe de redação, Edna Chase (HALL-DUNCAN, 1978, p. 40). Ancorado em uma eficiente estrutura editorial e coorporativa, Nast idealizava um mundo onde o fotógrafo de moda não fosse “um fotógrafo de vestidos, mas um fotógrafo de mulheres”, como salienta Viana (2000, p. 294). Podemos ver neste capítulo alguns fotógrafos de Vogue, assim como veremos outros que participaram da história deste periódico nos próximos capítulos. Como resultado, um império foi construído em seis continentes, contando com centenas de milhões de leitoras. No início da década de 1940, as publicações Condé Nast possuíam sólidas credenciais tanto nos Estados Unidos quanto no âmbito internacional. Nast viveu até o ano de 1942 e conseguiu mudar radicalmente o conceito de publicidade no mercado editorial norte-americano:

37 O jornalista foi colaborador da revista nesta edição e, apesar de seu discurso reforçar positivamente a imagem da revista, informações da matéria comemorativa são uteis para a pesquisa. Procurei recorrer a outros autores que abordaram Vogue em seus escritos, entre eles: Claudio Marra, Nancy Hall- Duncan e Agnès Rocamora. Viana escreveu os livros “Prestes, Lutas e Autocríticas”, sobre Luís Carlos Prestes e fez a série “Grandes Empresários” para a revista Isto É, que reúne 20 títulos. Vive em São Paulo desde o início dos anos de 1980 e priorizou, em sua carreira, as grandes reportagens, com temas especiais. Fonte: Vogue Brasil (2000, p.10). 82

Na América que despertava para o consumo de massas e onde os anunciantes só tinham olhos para publicações que atingissem grandes públicos, ele conseguiu desenvolver, e consolidar, um novo conceito de classes. Convenceu os anunciantes de que existia um mercado fértil, o de gente com preferências exclusivas, gente que não pensava como Henry Ford e que torcia o nariz quando ouvia o titã da indústria automobilística dizer que se podia escolher qualquer cor de automóvel desde que fosse a cor preta. (VIANA, 2000, p. 294).

A medida das grandes transformações era justamente a convicção de que os leitores estavam interessados em tudo o que acontecia, em todos os aspectos da vida – na estética, na política, na economia, nos costumes, na tecnologia. O critério da Vogue “continuou fiel não às reações provocadas pela avalanche de mudanças, mas ao ritmo que as mudanças estão acontecendo e podem acontecer” (VIANA, 2000, p. 295).

No final dos anos quarenta, as condições sociais e políticas estavam em plena transformação na Europa. A moda e a alta costura conheceram, elas também, grandes reviravoltas: as maisons que haviam sido fechadas durante a guerra reabriram, e o racionamento de tecidos tornou-se pouco a pouco menos severo. Em 1947, a linha “new look” de Dior provocou um efeito bomba. Ela apresentava uma silhueta extremamente feminina, com uma cintura bem marcada e uma saia bem larga e com movimento. Os anos cinquenta inauguraram uma nova era da fotografia de moda, esta do charme e da desenvoltura (HALL- DUNCAN, 1978, p.135, tradução nossa).

Após o falecimento de Condé Nast, o talento do empresário Samuel Newhouse, associado ao de Alexandre Liberman (Figura 19), novo diretor de arte da revista, garantiram o sucesso das publicações: era fotógrafo, pintor, escultor notável e possuía uma “visão estética única, senso de elegância e absoluta percepção de qualidade” (VIANA, 2000, p. 295). Comandando artisticamente Vogue entre 1943 e 1962, 83

Liberman primou pela variedade e surpresa em suas páginas, trazendo o olhar do fotógrafo americano Richard Avedon para a revista – justamente por sua capacidade de representar, na década de 1950, “os desejos da sociedade, refletindo seus humores com uma extraordinária sensibilidade” (HALL-DUNCAN, 1978, p.136).

Figura 19: Capas de Vogue da década de 1950 dirigidas por Liberman. Fonte: Novelli (2013b)

Nas produções de Avedon, como veremos também no terceiro capítulo, a nova mulher era “bela”, sobretudo pela maneira como ele a fotografava. Seu estilo era “tão vivo quanto suas modelos”38, fazendo com que elas se movimentassem de forma completamente diferente, plenas de exuberância, de alegria de viver: “suas fotos ilustram uma vida real mas extremamente fascinante, momentos de ação dramática que buscam suscitar o interesse do espectador”39.

38 Ibid, p. 136, tradução nossa 39 Ibid, p. 136, tradução nossa 84

Assim, a vocação “narrativo-cinematográfica” de Avedon acabou, segundo Marra (2008, p. 149), por “influenciar também o papel e a própria personalidade das modelos, que com ele começam a assumir aquele papel de protagonistas em tempo integral, de atrizes dentro e fora de cena, tão típico das top models de hoje”. O set da moda tornava-se cada vez mais semelhante ao do cinema:

É exemplar, nesse sentido, a personalidade misteriosa e fascinante de Dovima [...], uma americana nascida em Nova York em 1927, muito arredia e reservada, mas capaz de transformar-se, uma vez em cena, em uma mulher sofisticada e fatal. Na história da fotografia de moda, o seu nome permanecerá ligado àquele de Avedon, sobretudo por uma imagem: aquela criada em 1955 no circo de Inverno de Paris, quando Dovima, que usa um vestido espetacular assinado por Dior, abre caminho entre dois enormes elefantes, alargando os braços para o alto em um gesto elegantíssimo40.

Tal imagem singular (Figura 20) foi escolhida não somente porque ilustra, no meu ponto de vista, um modo de vida distintivo a partir de uma construção imaginária e imagética da branquidade em Vogue, mas ainda porque representa simbólica e artisticamente a íntima relação entre a fotografia e a alta moda na história deste periódico. Trata-se de uma relação “generificada”, estabelecida pela própria condição do olhar do fotógrafo sobre a modelo.

40 Ibid, p. 149

85

Figura 20: Dovima no Circo de Inverno de Paris, agosto de 1955. Fonte: Hall-Duncan (1978, p. 137).

Esta imagem pode ser vista como uma “metáfora mais geral, pela qual a moda da segunda metade do século XX marca muito claramente a intenção de propor-se como um estilo global, um modo de vida, em vez de simples passarela da roupa” (MARRA, 2008, p. 150). Entretanto, se durante muito tempo Vogue esteve atrelada a uma linha editorial considerada conservadora e burguesa, a partir da década de 1960, uma mulher passa a ser a grande responsável por injetar uma dose considerável de energia e juventude ao periódico americano: Diana Vreeland (Figura 21).

[...] com seu estilo teatral, trouxe para a revista vanguarda, excitação. Vreeland, famosa por cunhar o termo ‘Youthquake’ (tremor da juventude), baseou-se nas mudanças de concepção sobre a moda nos anos 1960. Sob suas mãos, Vogue se tornou ainda mais orientada pela moda, com muito mais páginas dedicadas às roupas e acessórios. Imaginação e fantasia eram os ideais 86

retratados no interior das páginas da revista. Roupas eram coloridas, brilhosas, reveladoras e cobertas por formas geométricas que jogavam com os elementos do sexo e da diversão. Além disso, naquele período, modelos tornaram-se não somente manequins, mas personalidades. Fotógrafos captavam modelos em poses de ação, inclusive do lado de fora dos estúdios. A mulher tornou-se identificável; nomes como Suzy Parker, Penélope Tree, Twiggy e Veruska eram considerados carros-chefe e abriram caminho para Cindy, Claudia, Christy e Naomi, as supermodelos das décadas de 1980 e 1990 (BOOKRAGS41, 2013, tradução nossa).

Vreeland permaneceu como redatora-chefe da Vogue norte- americana entre os anos de 1962 e 1971, sendo considerada como um dos ícones da moda internacional.

Figura 21: Capas de Vogue da década de 1960 dirigidas por Vreeland. Fonte: Novelli (2013c)

41 In: www.bookrags.com/history/vogue-sjpc-05/ 87

Embora na década de 1970 Vogue tenha procurado conquistar a classe média feminina, na realidade sua fórmula continuou sendo a mesma em sua essência. O grupo Condé Nast se fortaleceu em escala universal, com o conceito singular de autenticidade, “que além de modelar a trajetória da Vogue e das publicações do grupo Condé Nast, busca torná-lo um valor permanente” (VIANA, 2000, p. 295).

De fato, é entre os anos 1960 e 1970 que as assim chamadas neovanguardas difundiram e massificaram comportamentos e intuições que, ainda de maneira elitista, tinham sido adiantadas, nas primeiras décadas do século passado, pelas vanguardas históricas. Do mesmo modo, [...] De Meyer tinha intuído a capacidade da fotografia de construir atmosferas, e não apenas apresentar roupas, mas a própria situação da moda à época de De Meyer, tão longe de uma efetiva condição de prêt-à-porter, tornava dificilmente praticável, e sem dúvida menos cotidiana, a possibilidade de uma fotografia como lugar de corpos reais (MARRA, 2008, p.163).

Nesse contexto, era justamente a dimensão narrativa das imagens de Vogue que exibia comportamentos, embora a beleza das fotos tecnicamente impecáveis e formalmente bastante refinadas também contribuísse para o sucesso das produções ao longo das últimas e efervescentes décadas do século XX. Assim, o “erotismo exibido é um erotismo vivido que não tem nada a ver com a beleza ideal e desvitalizada dos corpos nus aos quais nos acostumou a tradição pictórica”42. A primeira edição francesa de Vogue surgiu em 1920 (poucos anos após a inglesa), sofrendo também consideráveis transformações na década de 1970, quando o fotógrafo parisiense Guy Bourdin lançou suas séries de moda bastante sexuais e escandalosas. Assistente de Man Ray nos primórdios da década de 1950, ele foi um dos mais consagrados fotógrafos de moda de todos os tempos e da história de Vogue Paris.

42 Ibid, p. 165

88

A foto das duas modelos comendo salsichas (veja Shukrut, publicada na Vogue francesa em setembro de 1981) é uma clássica mostra da irreverência e do talento de Bourdin. Assim como Helmut Newton, seu contemporâneo de páginas memoráveis de Vogue, ele faz parecer à primeira vista que fotografa as mulheres como vítimas. Mas um olhar agudo permite descobrir que elas, ao contrário, aparecem sempre ativas em momentos decisivos e delirantes (DURAN, 2009, p. 164).

A citação anterior foi retirada de uma edição de 2009 da Vogue brasileira, como parte de uma matéria sobre a “provocação genial” do fotógrafo (Figura 22). A imagem em questão foi bastante divulgada na década de 1980, sendo encontrada no corpus desta pesquisa.

Figura 22: Foto tirada por Guy Bourdin em 1981, publicada na matéria Provocação Genial. Fonte: Vogue Brasil (2009b, p. 262-263).

Segundo Marra (2008), entre imagem e imaginário, entre obra e comportamento, Guy Bourdin explora a ideia de uma “pseudothriller com fundo erótico” em seu trabalho, unindo fotografia de moda e pesquisa artística. Muitas das cenas por ele produzidas remetem à insegurança, ao perigo iminente, ao drama e aos jogos conceituais do suspense, sem fornecer explicações – pois a partir de tais elementos é 89 que o espectador vai questionar as cenas violentas e sexuais, diante de respostas não encontradas. O olhar audacioso do fotógrafo fez história por mais de trinta anos em Vogue Paris e contribuiu para uma maior abertura em relação à maneira pela qual o periódico passou a propor novos padrões estéticos e comportamentais femininos no início do século XXI. Foi justamente quando a estilista, modelo, escritora e musa Carine Roitfeld se tornou a chefe de redação da Vogue francesa. Sua confiança permanente tanto na difusão de performances quanto na publicidade de Vogue Paris conferiu uma nova dimensão ao periódico, com a colaboração dos maiores fotógrafos do mundo. O que importa é provocar quem olha, é chocá-lo com alusões sexuais particulares e doses calibradas de violência e sangue. As roupas não são mais as protagonistas absolutas da cena, estão em um segundo plano, e participam da história sem nenhum privilégio (MARRA, 2008, p.168).

No ano de 1979, com o falecimento de Samuel Newhouse, o grupo Condé Nast é assumido pelo filho, Si. A era Newhouse foi considerada a era em que a Vogue conquistou a classe média, fortalecendo-se em escala global, por meio do conceito singular de autenticidade, “que além de modelar a trajetória da Vogue e das publicações do grupo Condé Nast, busca torná-lo um valor permanente” (VIANA, 2000, p. 295). Isso quer dizer que a fórmula da revista continuou sendo a mesma em sua essência:

Fotos extraordinárias, poéticas, com a mulher e os protagonistas das imagens sempre num plano de destaque maior. Como se a revista fosse um meio de eternizar o momento, uma fantasia, um sonho. O que avançou foram a técnica e a ambição de chegar o mais próximo possível da perfeição. Há 108 anos, Condé Nast dizia que entre a revista e a América existia o real significado da palavra estilo. Na atualidade, dizem os herdeiros de Samuel Newhouse, entre a revista e o estilo existe o mundo. Eis o que faz a Vogue essencial para a moda contemporânea e para a cultura moderna43.

43 Ibid, p. 295 90

A Vogue norte-americana (Vogue US) é atualmente comandada pela “papisa da moda” Anna Wintour, que sucedeu Diana Vreeland (1963 a 1971) e Grace Mirabella (1971 a 1988). Desde 2011, Vogue Paris tem como redatora-chefe Emmanuelle Alt, que sucedeu Carine Roitfeld (2001 a 2010). Portanto, os textos e as imagens analisados nesta tese são produções que passaram pelas chefes de redação Carine Roitfeld e Patrícia Carta. Atualmente, Vogue circula nos seguintes países: Estados Unidos, Itália, Turquia, Alemanha, Austrália, Portugal, Coréia, Taiwan, França, Brasil, Japão, Grécia, China, Índia, México, Espanha e Rússia. Gostaria de retomar uma questão crucial para o entendimento das produções discursivas de Vogue: o conceito de vanguarda [avant-garde] proposto pelo periódico, que oscila entre criatividade e classicismo. Nesse sentido, a vanguarda cultuada por Vogue está ligada simultaneamente ao discurso da renovação constante e da criatividade (que como vimos faz parte da essência conceitual e distintiva de Vogue) e a uma evidente intenção de manter certos valores fundadores herdados de um “classicismo intemporal”. É assim que Vogue apresenta jovens criadores do momento, mas evoca também criadores históricos. Ou ainda, que chefes de redação mudam a linha editorial para respeitar as mudanças socioculturais vividas por suas leitoras, sem alterar, no entanto, o contrato de leitura. Mas tal “sábio equilíbrio” entre criatividade e classicismo não se realizaria se a história deste periódico não estivesse diretamente ligada a um sistema de produção e transmissão de capital simbólico movido por um conjunto particular de personalidades e profissionais legitimados no e pelo campo da moda, ao longo de todo o século XX. Assim, por meio de um movimento dinâmico constitui-se, inseparavelmente, um corpus de discursos, um corpo de produtores, um conjunto de lugares de produção de discursos e de produção de produtores de discursos (BOURDIEU; BOLTANSKI, 2008, grifo dos autores). Tal constituição, muito bem enfatizada por Bourdieu e Boltanski (2008), aplica-se perfeitamente à imagem distintiva de Vogue, tanto no contexto francês quanto brasileiro. No Brasil, a primeira edição de Vogue aparece no ano de 1975, publicada pela Editora Três, passando no ano seguinte à Carta Editorial, grupo responsável pelos direitos sobre o título no Brasil até o ano de 2010. De fato, em outubro de 1976, Luis Carta fundou a editora Carta Editorial, obtendo a concessão do título no Brasil. Diante do sucesso obtido pelo projeto brasileiro, Luis Carta decidiu introduzir o título em toda a América Latina e na Espanha, para onde foi em 1986. A partir 91 deste ano, a direção da revista ficou com o filho, Andrea Carta. Luis Carta morreu no ano de 1994, deixando para os filhos o desafio de manter o império editorial de luxo construído até então. Na época, o empresário Luis Carta acreditava que cada revista tinha a época certa para surgir e a publicação de Vogue era “o reflexo de uma necessidade ou de um status alcançado por uma faixa de público. Há revistas que precisam de ambiente adequado para se desenvolver e crescer”44. As capas das primeiras edições alternavam socialites, modelos e atrizes de cinema, nacionais e internacionais. A fórmula moda/beleza/gente fez sucesso, seguindo os passos da Vogue americana e Luis Carta acreditava que o público brasileiro estava pronto para receber um periódico que tinha uma tradição mundial, baseada em décadas de sucesso, durante as quais se tornou “sinônimo de elegância, estilo de vida, requinte absoluto”45. Portanto, o periódico se transformava em um “indicador seguro de bons tempos, esperança de compreensão, confiança absoluta no super êxito”46, voltado para uma elite que sonhava em “ser chique”, mesmo em uma época de ditadura militar. Havia uma classe média alta determinada a abraçar tudo que era “novo”.

Em meio a tantas inovações, a revista soube envolver-se por inteiro com as mudanças do mundo feminino, um mundo onde a juventude deixou de ser um sonho efêmero para se tornar um sonho que se recria, que ganha novas formas e que se expressa na participação individual e coletiva, na forma de participar, na revolução dos costumes. Ao longo de 25 anos, a revista amoldou-se a cada época, a cada transformação do mundo. Saúde e comportamento passaram a fazer parte dos editoriais. A revista, que nasceu para moda e sociais, com o tempo passou a refletir o País e as mudanças profundas nas camadas sociais47.

44 Ibid, p. 287 45 Ibid, p. 287 46 Ibid, p. 294 47 Ibid, p. 294 92

A presença de personalidades do mundo do cinema, das artes, da moda, do teatro e da cultura de massa em geral tornou-se uma constante nas edições da Vogue Brasil, permanecendo até hoje como uma das fórmulas de seu sucesso no mercado editorial. Em 2003, a direção geral de Vogue Brasil é assumida pela filha de Luis Carta, a jornalista Patrícia Carta (que havia trabalhado como editora de moda durante as décadas de 1980 e 1990), período no qual a circulação mensal do periódico alcançava 50 mil exemplares no país. O conceito de luxo da edição brasileira de Vogue abordava tanto as dimensões materiais quanto simbólicas de um produto nacional e no mesmo ano em que Patrícia Carta assumiu a direção geral de Vogue, ocorreu uma explosiva publicação de um número considerado o “mais completo do mundo sobre Gisele Bündchen” (BRANDÃO, 2003, p.148). Segundo informações divulgadas pela Carta Editorial (2006 apud NOVELLI, 2009), foi possível verificar que o perfil da leitora na época era: 81% mulher; 67% de 17-35 anos; 18% de 36 a 45 anos; 31% é dono de empresa ou vive de renda (não trabalha); composição de renda: 24% - pró-labore e participação nos lucros da empresa; 2% ganha mais de 45 mil reais/mês (média de R$ 12.230,00/mês). E sobre o ‘estilo de vida do leitor’: 65% dos leitores colecionam seus exemplares; 31% possuem carros importados e trocam em média a cada 2 anos; pelo menos 49% vai ao cabeleireiro, day spa, faz ginástica/musculação ou massagem semanalmente; 59% viaja ao exterior pelo menos 2 vezes ao ano; 34% definiram o carro como próximo objetivo de desejo (BMW); 22% definiram casa de veraneio como próximo objetivo de desejo (Milão); 17% definiram viagem como próximo objetivo de desejo (volta ao mundo). No final de 2010, Patrícia Carta deixa o cargo de chefe de redação da Vogue Brasil, sendo ocupado por Daniela Falcão, que atuava até então como editora de moda. A edição brasileira passou a ser controlada pela Edições Globo Condé Nast, após cerca de 35 anos sobre a direção do Grupo Carta. As editoras Condé Nast e Globo formaram uma parceria para publicação de títulos da Condé Nast no Brasil. A empresa, Edições Globo-Condé Nast, deteve 70% dos direitos e a empresa norte-americana os 30% restantes. Atualmente, Vogue Brasil conta com 200.000 leitores, circulação de 65.002 exemplares, 3.069.881 usuários (unicamente usuários mensais) e 8.442.489 páginas mensais vistas48. Já Vogue Paris conta com 1.073.000 de leitores, circulação de 160.050 exemplares, 735.908

48 In: www.condenastinternational.com/country/brazil/vogue/. 93 usuários (unicamente usuários mensais) e 13.004.008 páginas mensais vistas49. O que chama bastante atenção é o número de usuários mensais de Vogue no Brasil, superando cerca de quatro vezes o consumo de Vogue Paris, sendo que esta última apresenta um total de leitores cinco vezes superior em relação ao consumo (brasileiro) de Vogue Brasil. Segundo a editora Eva Joory, “Vogue Brasil também faz parte deste grupo de publicações sofisticadas destinadas a um público que dita moda, forma opinião e influencia o comportamento” (JOORY, 1999, p. 223). Ou seja, no contexto brasileiro é possível afirmar que Vogue se constrói enquanto termômetro de tendências, que guia e inspira. É importante ressaltar que o conceito institucional de Vogue reforça discursivamente a “filosofia de vanguarda” que colocou a moda na linha de frente da revolução industrial e cultural (capitalismo, consumismo, democratização), tornando-se, como apontou Kate Best (2008, p. 3), “o significante mais tangível da ideologia burguesa do bien être matériel”. Nesse sentido, vale a pena citar os conceitos apresentados por Vogue nas versões norte-americana, francesa e brasileira respectivamente, pois possibilitam a identificação do que considero como a “matriz discursiva Condé Nast”:

Vogue places fashion in the context of culture and the world we live in – how we dress, live and socialize; what we eat, listen to and watch; who leads and inspires us. Vogue immerses itself in fashion, always leading readers to what will happen next. Thought-provoking, relevant and always influential, Vogue defines the culture of fashion50.

Vogue Paris was launched in 1920 and since that time it has continued to celebrate creative

49 In: http://www.condenastinternational.com/country/france/vogue/. 50 “Vogue coloca a moda no contexto da cultura e do mundo em que vivemos – como nos vestimos, vivemos e convivemos; o que comemos, escutamos e assistimos; quem lidera e nos inspira. Vogue mergulha ela mesma em moda, sempre levando leitores ao que irá acontecer em seguida. Instigante, relevante e sempre influente, Vogue define a cultura de moda” (tradução nossa). Disponível em: http://www.condenast.com/brands/vogue. 94

excellence, and is universally recognized as a key source of inspiration for the fashion world51.

Autoridade no universo fashion e há mais de 100 anos na vanguarda, Vogue é a revista de moda mais vendida no mundo. Estabelecendo padrões e antecipando tendências, a cada edição mostra as novidades em beleza, lifestyle, saúde e bem-estar (FELERICO, 2012, p. 13).

Portanto, todo o potencial simbólico do conceito institucional de Vogue contribui para que este seja um veículo privilegiado para o desenvolvimento e a reprodução social de hábitos e valores norte- americanos, tendo em vista o pioneirismo de Nast nos Estados Unidos e a recente globalização do tipo “americana” (Hall, 2013). No Brasil, é possível identificar a violência simbólica manifesta em termos como “autoridade no universo fashion” ou “estabelecendo padrões”, que contribuem para a fabricação de um discurso dominante e a socialização deste conhecimento através da legitimidade deste discurso. Paralelamente, a perspectiva histórica de Best (2008) evidencia que a função política do discurso da moda francesa molda a figura da criatividade francesa:

[...] o discurso da moda Francesa continua a desempenhar um papel importante na produção da identidade nacional. Ele ainda cria uma mitologia em torno da indústria e da nação que gira em torno dos paradigmas tradicionais de criatividade superior e sabor (BEST, 2008, p. 11, tradução nossa).

Desta forma, é possível compreender porque a “excelência em criatividade universalmente reconhecida” é produzida na raiz conceitual da Vogue francesa, contribuindo assim para que também valores europeus – e notavelmente os franceses – sejam vendidos a partir da

51 “Vogue Paris surgiu em 1920 e desde então tem continuamente celebrado excelência em criatividade e é universalmente reconhecida como uma fonte de inspiração para o mundo da moda” (tradução nossa). Disponível em: http://www.condenastinternational.com/country/france/vogue/. 95 eficácia simbólica de Paris no campo da alta moda e do prêt-à-porter de luxo.

2.4 VOGUE PARIS: A EFICÁCIA SIMBÓLICA DA CAPITAL FRANCESA E A GLOBALIZAÇÃO DO LUXO

Eu creio que cada país possui seu sabor particular, então eu não sei se Paris é sempre o centro da moda, mas em todo caso é um lugar onde tudo começou, então, no meu coração, Paris permanece a número um (LA MODE ..., 1995, tradução nossa).

As palavras acima foram ditas por Paul Cavalo, jornalista do Herald Tribune, no documentário intitulado La mode sous toutes ses coutures [A moda sob todas as suas costuras], dirigido por Chantal Lasbats e Alexandre Aufour no ano de 1995. Introduzo este tópico sobre o prestígio de Paris no campo da Alta Costura [Haute Couture] justamente com a “voz autorizada” de um jornalista de um importante jornal inglês no cenário da moda dos anos 1990. Procuro, com isso, conseguir dar a dimensão da importância simbólica desta capital europeia para o mundo e, consequentemente, para o campo da moda brasileira, ao longo de mais de dois séculos. Escolho a década de 1960 para abrir essa discussão, por ser um período no qual uma verdadeira revolução ocorrida no sistema de moda transformou a lógica da produção industrial ocidental da aparência, consagrando a liberdade de escolhas e a pluralidade de estilos: o prêt-à- porter52. Faço, portanto, o caminho inverso para melhor entender como, apesar da massificação da alta moda e do prêt-à-porter de luxo, Paris se mantém ainda hoje como “a capital da moda”. Sinônimo de criação estética e personificação, o novo sistema passou a conceber roupas com um espírito mais voltado à audácia, à novidade e à juventude do que à perfeição do luxo. Todas as novidades revolucionárias desse período contribuíram para a concepção de uma estética jovem visivelmente dominante nas sociedades atuais,

52 Palavra francesa que significa “pronto para usar” (ready to wear), criada no início da década de 1950, sendo fruto da industrialização da moda. 96 impulsionadas por criadores como André Courrèges, Pierre Cardin e Yves Saint-Laurent. No ano de 1963, Jacques Rozier e Denise Dubois Jallais produziram um documentário em preto e branco Dans le vent [No vento], com duração de 8 minutos, que fez parte da coleção Parisienne da Atlantic Films. O tema era justamente o gosto dos parisienses pela moda, que eles “criavam ou seguiam”. Destaco as seguintes palavras:

Os testemunhos de mulheres que amam se vestir na moda, os comentários irônicos e emprestados do humor, assim como a montagem plena de vivacidade se associam para fazer um filme fantasioso e inventivo, reflexo da juventude e do charme das mulheres ao vento. As diferentes modas evocadas são sucessivamente aquelas da capa, do chapéu e do casquete, das botas. As pessoas que fazem a moda são uma manequim, Nina Dosset, criadora de moda, Peter Knapp, fotógrafo e Hélène Lazareff, jornalista, fundadora e diretora da revista Elle (JALLAIS; ROZIER, 1963, tradução nossa).

Nesse clima, o sucesso das criações de jovens criadores passava pela questão geracional, além do surgimento do consumidor adolescente com alto poder de compra. Também o fenômeno jeans e os diversos movimentos de rua das décadas de 1980 e 1990 contribuíram enormemente para a democratização da moda, através da autonomia e ascensão das tendências da moda jovem. Tribos urbanas passaram a ser formadas ao longo das últimas décadas do século XX, não havendo mais uma só maneira de estar na moda, mas muitas. Assim, diversos movimentos culturais ligados às gerações mais jovens se intensificaram a partir da década de 1950 e alguns deles tomaram proporções em escala mundial, influenciando boa parte da produção artística e cultural de diversos países das sociedades industrializadas do século XX, embora com intervalos de tempo e níveis de intensidade variados, conforme suas condições econômicas, políticas, socioculturais e históricas. O Brasil foi um dos países que sofreu uma forte influência de tais impactos ligados aos Estados Unidos, assim como Londres e alguns países da Europa e da América Latina. A força desta cultura pôde ser expressa pela diversidade de comportamentos e de manifestações artísticas e sociais ligadas às gerações mais jovens ao longo da segunda metade do século XX. 97

Portanto, esses movimentos contribuíram extraordinariamente para a difusão de uma estética jovem, que pode ser observada no campo da aparência. Nesse contexto, uma poderosa indústria cultural apropria-se constantemente dos grandes movimentos sociais e dos ícones das juventudes, transformando-os em produtos culturais.

Na verdade, mal a poeira de 1968 assentou, houve a absorção e ‘desmontagem’ dos grupos e culturas juvenis pela cultura de mercado, pelos media e por outras instituições da sociedade de consumo e global. A Revolução Juvenil parece ter fornecido símbolos, propostas, comportamentos e estilos de vida que, ajustados, colaboraram para a adaptação do material humano moldado pelo capitalismo concorrencial e monopolista à nova sociedade de consumo e global esboçada (GROPPO, 2000, p. 283).

Apesar de esta nova sociedade produzir imagens para serem consumidas à-la-carte, paradoxalmente os discursos da moda mantêm padrões hegemônicos ocidentais classistas, de sexo/gênero, de raça/etnia, em ritmo acelerado e altamente corporificado. A moda contemporânea é também lugar de negociação de situações sociais e hierárquicas. Filtros que “regulam o (bom) gosto hegemônico dependem majoritariamente de uma forte presença dos intermediários culturais, dos especialistas, incluindo a penetração de celebridades midiáticas nos desfiles promovidos pelas semanas de moda nas principais capitais do mundo. Leitão (2007) aponta para o fato de que a produção de moda, quando incorpora, por exemplo, uma produção popular, realiza uma espécie de adaptação deste popular, que acaba servindo de inspiração para uma criação “melhorada”. Uma sociologia do poder simbólico torna-se útil para a investigação de processos estéticos de identificação e de jogos performáticos a partir de regimes de representação do corpo branco em habitus particulares.

[...] o habitus que P. Bourdieu introduziu na sociologia pretende dar conta de um duplo processo: De uma parte o condicionamento do indivíduo por regras de conduta, normas de 98

comportamento, formas de se exprimir, de sentir, de pensar, etc.… próprias de um meio social. De outra parte é preciso que essas condutas adquiridas estejam também dispostas a fazer funcionar os saberes e o conhecimento que permitem, em um dado universo social, agir « librement », quer dizer de maneira sábia e estratégica (DONFU, 2011, p. 1, tradução nossa).

Em campos sociais brasileiros e franceses, quais mulheres [brancas] estariam gozando de uma identidade cultural reconhecida como tal e legitimada pelos grupos aos quais pertencem, estando mais aptas para jogar e transgredir as regras criadas no interior desses próprios campos? Entre códigos corporais e dispositivos de classe social, raça, etnia e de sexualidade, por meio de quais discursos estaria operando o capital cultural: “estado de espírito”, “sentido de liberdade”, “elegância refinada”, “viver de acordo com a própria idade”, “emancipação do gosto”?

Os personagens privilegiados, as celebridades do contemporâneo, investem na produção de códigos que exigem um verdadeiro investimento para o reconhecimento e a fruição. O luxo se dá no detalhe, nas particularidades, diagnosticadas por poucos, o luxo se dá no design, na sofisticação tecnológica, na hipermobilidade e na individualidade. O luxo exige aprendizado do raro, do exótico e do sensível e exige também separações e limites: da sala VIP ao mundo virtual (VILLAÇA, 2010, p. 111).

Nesse sentido, pode-se dizer que o grau de investimento realizado sobre a aparência corresponde à aceitabilidade social, como apontou Mara Rúbia Sant’Anna (2007, p. 77). Esta pesquisadora chama a atenção para o conceito de capital-aparência corporal, desenvolvido por Michèle Pagès-Delon no final da década de 1980. Trata-se de um esforço pessoal que é constituído como um capital, ultrapassando a casual combinação de elementos do vestuário e de acessórios pessoais (SANT’ANNA, 2007, p. 77). É o resultado de uma combinação concreta de “lógicas estruturais (imposições do controle das aparências, dos códigos, das tendências de moda, do econômico) e das lógicas dos 99 atores socialmente posicionados (estratégias, escolhas)” (PAGÈS- DELON, 1989 apud SANT’ANNA, 2007, p. 77). Este capital possibilita uma estratégia global a partir da aparência, que passa por investimentos diários de saúde, beleza e moda no âmbito do consumo. É interessante ressaltar ainda que “há diversos níveis de excelência corporal, cada um construído socialmente para os distintos grupos sociais, o que justifica os diferentes níveis de investimento à proliferação do capital-aparência” (SANT’ANNA, 2007, p. 77). No caso de Vogue, o capital-aparência da leitora-alvo remete a um alto nível de excelência corporal, construído por lógicas estruturais ditadas pela “matriz Condé-Nast”, bem como pelo posicionamento estratégico dos atores que possuem sua imagem associada à filosofia de vanguarda do periódico. Assim, o capital-aparência vendido por Vogue incentiva o investimento pessoal no corpo da moda: branco, magro, jovem, com olhos e cabelos claros, preferencialmente lisos. Sem falar nas peças de roupas, acessórios e perfumes de marcas da alta moda e/ou do prêt-à- porter de luxo. Por fim, vejo este capital integrado aos outros capitais analisados por Pierre Bourdieu, que ajudam no investimento da aparência: o econômico (riqueza material, dinheiro, bens, valores imobiliários); o social (rede de relações, pertencimento a um grupo estável); o cultural (competências, saberes incorporados e transmitidos de geração em geração); o simbólico (acumulação de prestígio) e o linguístico (variedade linguística dominante) (VALLE, 2008). O espaço social torna-se um campo de lutas simbólicas. Essa questão ficou bastante evidente durante os desfiles de prêt-à-porter Outono/Inverno 2013/2014 apresentados na semana de moda de Paris []53, ocorrida entre 26 de fevereiro e 06 de março de 2013. Durante o estágio sanduíche pude acompanhar a movimentação de celebridades de vários países que, se por um lado entravam e saíam desses desfiles com certa dificuldade por serem perseguidas por jornalistas e fãs de plantão, por outro pareciam escolher o melhor ângulo para posarem para lentes de fotógrafos de revistas, jornais e sites especializados em moda. A presença dessas celebridades faz parte da cultura da moda de luxo, marcada por atrizes que geralmente estampam campanhas

53 Evento organizado pela Chambre Syndicale du Prêt à Porter des Couturiers et des Créateurs de Mode, localizada em Paris. Para maiores informações, acessar www.modeaparis.com.

100 publicitárias de roupas, acessórios e/ou perfumes das marcas de prêt-à- porter que desfilam, por jornalistas, redatoras-chefes e editoras de moda das principais revistas do mundo, por ex-modelos consagradas, por jovens blogueiras que se tornam “formadoras instantâneas de opinião” e ainda por clientes absolutamente preferenciais dessas marcas. As personalidades identificadas no desfile da Chanel (Figura 23) foram Vanessa Paradis (atriz e cantora francesa e rosto da marca na época), Jessica Chastain (atriz norte-americana), Milla Jovovich (atriz e modelo), André Leon Talley (jornalista de Vogue US), Inès de la Fressange (musa e modelo da marca nos anos 1980, estilista e jornalista de moda), Alice Dellal (modelo britânica) e Leigh Lezark (DJ e modelo norte-americana), entre outras.

Figura 23: Fotos das celebridades no desfile de prêt-à-porter Out./Inv. 2013/2014 da Chanel, no Grand Palais: Vanessa Paradis, Jessica Chastain, Milla Jovovich, Anna Wintour e André Leon Talley. Fonte: Novelli (2013d).

Esta dinâmica semana de moda ajudou-me a compreender o quanto a produção discursiva de Vogue é construída a partir de um “corpo de produtores” e de um conjunto específico de “lugares de produção de discursos” (BOURDIEU; BOLTANSKI, 2008), entre eles Palais de Tokyo, Grand Palais, Espace Cambon, Espace 7 Vendôme, Espace Ephémère Tuileries, Théâtre National de Chaillot, L'Oratoire du Louvre e Opéra Comique. Pude ainda registrar em imagens (Figura 24) a presença da “papisa da moda” Anna Wintour (redatora-chefe da Vogue US) na saída do desfile da Chanel, assim como de Carine Roitfeld (ex- redatora-chefe da Vogue Paris) no desfile da Miu-Miu, de Anna Dello Russo (jornalista da Vogue Japão) e Daniela Falcão (redatora-chefe da Vogue Brasil) no desfile de Valentino, realizado no Jardin des Tuileries.

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Figura 24 : Fotos de redatoras-chefes e jornalistas de Vogue: Anna Wintour, Carine Roitfeld, Anna Dello Russo e Daniela Falcão. Fonte: Novelli (2013e).

Gostaria ainda de ressaltar que muitas das personalidades legitimadas no e pelo campo da moda de luxo que circularam em Paris na semana de moda tornam-se “modelos de mulheres” desejados em várias partes do mundo, por leitoras de Vogue ou não. Como vimos neste capítulo, o corpo [branco], jovem e extremamente magro é o corpo da moda ocidental. Nesse sentido, é produto midiático e agente histórico, uma vez que o imaginário incorporado da branquidade permite observar suas próprias condições socioculturais e históricas de existência. Centenas de meninas esperavam nas saídas dos desfiles de Paris (Figura 25) para verem tais celebridades passarem bem diante de seus olhos, na esperança de conseguirem um “autógrafo” que materializasse parte do universo simbólico de prestígio e distinção social por elas representado.

Figura 25: Fotos de jovens segurando imagens de celebridades e bolsa Chanel falsificada. À direita, modelos na saída do desfile da Miu Miu. Fonte: Novelli (2013f).

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É interessante ressaltar que muitas dessas jovens curiosas, de “porta de desfile” (como eram chamadas), usavam bolsas falsificadas das marcas desfiladas na semana de moda, como Chanel (Figura 25) e Louis Vuitton, testemunhando o quanto a ostentação das marcas de luxo por parte do grande público acabou incentivando o crescente comércio da falsificação. Além disso, como apontou Thomas (2008), a venda de réplicas em lojas, igrejas e escolas faz parte do cotidiano de muitas mulheres – que vivem justamente da venda e do consumo ilegal do “luxo”, ou melhor, testemunhando os limites do incrível poder simbólico [e palpável] que um logotipo pode representar. Esta questão remete justamente ao “capital-aparência”, movido também pelo desejo de ascensão ou inserção em determinado grupo.

Portanto, todo capital investido sobre a aparência corporal é um “saber social”, que permite a efetivação de práticas que tendem a se constituir em estratégias sociais, baseadas na sedução de si e dos outros. Identificar a excelência corporal, variante conforme os diversos grupos sociais, numa sociedade a se pesquisada é compreender como as estratégias particulares e societais se articulam para constituir uma hierarquia social da sedução (SANT’ANNA, 2007, p. 78).

Segundo Raffuse (2009), estilos concebidos tanto pela Alta Costura quanto por subculturas urbanas são considerados frequentemente como bizarros e excêntricos, mas cada excentricidade permite maneiras de atuar no interior da cultura dominante. Tal deslocamento de códigos opera em processos distintos de apropriação, ou ainda de adoção e obsolescência. Lembro que coleções de moda podem ser desenvolvidas para Haute Couture [Alta Costura], prêt-à- porter [pronto para usar], supermarcas luxuosas, marcas e designers de médio porte, marcas de designers independentes, marcas de roupas casuais e esportivas, moda de rua e ainda supermercados. Existem, portanto, diferentes níveis de direcionamento mercadológico, influenciando em graus diferenciados comportamentos de agentes sociais. Há movimentos que utilizam estratégias por meio das quais geralmente impõem sua dominação pelo amplo poder econômico, cultural, social e político que possuem (macrotendências), assim como há outros que recebem as ações de poderes estratégicos dos nichos, mas que normalmente conseguem criar formas de enfrentamento, exercitadas nas minúcias da vida cotidiana, 103 transformando aquilo que lhes é dado através de forças táticas e altamente criativas (microtendências). Pode-se dizer que Vogue consolidou-se na imprensa feminina mundial trabalhando com direcionamento de macrotendências de mercado, o que lhe permitiu “jogar” simbolicamente com signos da cultura popular. No ano de 1994, Jerome de Missolz produz o documentário colorido intitulado La machine mode, produzido por La Sept/Art. Nele, a consagrada fotógrafa de moda Dominique Jsserman fotografa um editorial de moda em um trem e diz para sua assistente: "Eu marquei Vogue, se eles fazem uma capa com esse material... [...] que deixa tudo completamente glamouroso, mas em lugares de merda, você vê, é isso que é sublime, é isso que é belo" (LA MACHINE..., 1994, tradução nossa). Retomo o documentário no qual Lasbats e Aufour mencionam que se trata de “uma produção consagrada do mundo da moda, de suas evoluções e de suas relações com Paris" (LA MODE..., 1995, tradução nossa). Nele, (chefe de redação de Vogue Paris entre 1994 e 2001, anterior à Carine Roitfeld), afirma em seu escritório:

Toda a moda do sportswear americano, dos sapatos de treino [...] de todas essas roupas que são sem graça e assexuadas, está em vias de passar, já vivemos, já vi pessoas fazendo caminhada, isso acabou. Acho que tive a chance de assistir uma revalorização do ideal feminino, quer dizer, as meninas e as jovens mulheres querem marcar seu tamanho, elas querem que os homens saibam que elas possuem seios e que há uma busca pela volta da adoração do esguio (LA MODE..., 1995, tradução nossa).

Em outro momento deste documentário, a chefe de redação mostra uma imagem que será a capa de uma das edições da Vogue francesa, dizendo: "Esta é a capa, que é muito, muito forte, porque trata- se de uma verdadeira mulher, uma mulher que é muito muito bela, mas é uma mulher francesa, uma mulher que compreende tudo, uma mulher que não conta histórias, a mulher francesa" (LA MODE..., 1995, tradução nossa). No mesmo documentário, a jornalista Eva Maria Schick afirma:

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Para mim, naturalmente Paris representa toda a elegância que eu conheço, como eu vejo as mulheres nas ruas, sejam as muito ricas ou as pobres, ou todas as outras, todas as mulheres aqui, você vê uma certa elegância que e incrível [...], isso é Paris (LA MODE..., 1995, tradução nossa).

De uma maneira geral, o público-alvo de Vogue possui um elevado capital cultural no campo da moda. São mulheres que consomem produtos, histórias de vida, acontecimentos socioculturais, tendências e estilos de vida associados aos valores e gostos burgueses da elite [branca]. Isso pode significar que determinadas estéticas sejam produzidas no campo da moda para (re)afirmar diferenças raciais, sexuais, etárias e classistas, por exemplo. Segundo a editora Delphine Royant, a notável capacidade de mobilizar tantas pessoas em torno de seu nome, de sua competência e de sua história fez de Vogue Paris uma referência de periódico de moda em termos de imagem e influência (ROYANT, 2012). A edição francesa de Vogue é a única ligada ao nome de uma cidade, contrariamente às outras versões do periódico, associadas a nomes de países. “Paris é o país da moda, mesmo se as semanas de moda de Milão, Nova York e mesmo de Londres tentam concorrer, Paris permanece incomparável” (ROYANT, 2012, p. 1, tradução nossa), fato que evidencia a eficácia simbólica da capital francesa.

Cada um adapta sua fórmula à sua cultura local e ao conjunto de seus leitores. Cada país possui histórias diferentes, Vogue Paris é absolutamente ligada à história da moda, que nasceu na França com a arte da costura. Esta capacidade começou muito cedo, pois tudo acontecia aqui, os desfiles se passavam aqui. Vogue Paris ocupa então uma posição muito particular, que acompanha após 90 anos a criação de moda, os outros países não possuem isso, nem a Rússia, nem a China... A única que poderia rivalizar em termos de moda é a Vogue italiana, que desfrutou de alguns anos de glória (ROYANT, 2012, p. 1, tradução nossa).

O editorial Style Chanel, publicado na Vogue Paris de 2004, foi realizado pela editora Emmanuelle Alt, tendo como locação o próprio apartamento de Coco Chanel, em Paris. O texto traz termos que só 105 podem ser entendidos perante a acumulação de diversos capitais no campo da moda.

Selo chic para além das modas e do tempo, o estilo Chanel, apreendido aqui no apartamento da célebre Mademoiselle é uma inspiração que continua a pulsar nas coleções. Como se o tweed de lã franjado, o preto absoluto, o excesso de bijoux, os tailleurs ao bisturi ou as silhuetas andróginas fossem como nunca a retórica implacável de uma mulher que ama o luxo, a audácia e a liberdade. Belo jogador, , o espírito de Mademoiselle hoje, fotografou suas criações, como aquelas de seus confrades de moda que a chama Chanel continua a inspirar (ALT, 2004, p. 170, tradução nossa).

O luxo tem suas raízes nas cortes reais europeias, principalmente nas francesas – que definiram os padrões de vida opulenta. Madame de Pompadour, amante de Luís XV, apoiou artesãos de luxo, incentivando a fundação da fábrica de porcelana de Sèvres para que esta pudesse fornecer ao Palácio de Versalhes sua louça real. Ainda no mesmo período, a esposa de Luís XVI, Maria Antonieta, ultrapassou o orçamento anual de US$3,6 milhões destinado a roupas, comprando vestidos incrustados com safiras, prata, ouro e diamantes (THOMAS, 2008). O universo de ostentação da aristocracia francesa dezenovista foi o grande responsável pelo surgimento da grife de viagens de luxo mais famosa do mundo: a Louis Vuitton. Fornecedora de baús e outros artigos para reis e rainhas, mulheres da alta sociedade e “gigantes do empresariado”, a empresa iniciou suas atividades no subúrbio operário parisiense de Asnières-sur-Seine.

Louis Vuitton, artesão diligente de raízes humildes, construiu o local em 1859 para tirar a família de Paris suja e povoada. Na parte de trás, encontra-se uma oficina de cem anos e dois andares, em L, onde 220 artesãos criam centenas de baús e costuram milhares de bolsas anualmente. É um dos 14 locais oficiais – 11 na França, 2 na Espanha e 1 em San Dimas, na Califórnia – onde são produzidos os artigos de couro da Louis Vuitton (THOMAS, 2008, p. 17).

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Ainda hoje a Louis Vuitton representa, para a maioria das pessoas, o verdadeiro luxo: a mala ou a bolsa coberta com o logotipo LV entrelaçado significa que “seu portador aprecia a arte da alta qualidade, tem dinheiro para comprá-la e viaja pelo mesmo circuito que os outros clientes da Louis Vuitton – na primeira classe”54. Segundo Thierry Maillet (2011), a indústria do luxo foi submetida desde cedo em sua história ao processo dinâmico da busca da novidade, alimentando-se ela própria da nova ideia de aceitação da representação – na qual o observador é parte do que é observado em sua observação. Historicamente, a faculdade de representar os Outros foi reapropriada pelos novos atores da indústria do luxo – comerciantes, desenhadores e jornalistas – para moldar a opinião que os consumidores faziam dos produtos de luxo.

Esses atores econômicos não participavam diretamente da produção do objeto de luxo, mas seu comportamento de negociante (o comerciante), sua criação artística (o desenhador), ou a emissão de sua opinião (o jornalista) iam ter uma forte influência sobre a produção artesanal por um efeito de retroação55.

Assim, acrescentava-se à criação dos produtos fabricados pelos artesãos sua própria representação, numa espécie de difusão da produção artesanal, baseada justamente na circulação desta representação. Foi desta forma que bonecas de luxo, ainda no século XIV e no reinado de François 1º, tornaram-se os primeiros exemplos da redução das representações, como “embaixadoras de modas” expedidas da França para outros países europeus: Inglaterra, Itália, Espanha, Alemanha.

Nos quatro cantos da Europa das Luzes, a moda é lançada, a partir de Paris, por bonecas manequins desde muito cedo. Estas reinam enquanto não compartilhadas. Em Veneza, antiga capital da moda e do bom gosto nos séculos XV e XVI, uma das mais antigas butiques chamava-se e se chama ainda La Poupée de France, La Piavola de

54 Ibid, p. 16 55 Ibid, p. 1, tradução nossa 107

Franza (BRAUDEL 1993 apud MAILLET, 2011, p. 4, tradução nossa).

Mas com o advento da técnica da impressão [imprimerie], desenhadores e jornalistas passaram a substituir progressivamente as bonecas pelas gravuras de moda, inaugurando uma nova lógica cultural e econômica de produção do saber: novas redes de fabricação do gosto ocupam lugar para permitir os processos de qualificação dos produtos de luxo, incluindo esses novos mediadores [passeurs du gôut].

A representação da moda é reduzida a um novo suporte, a gravura, que é mais fácil de ser duplicada e transportada. Esta revolução vem confirmar uma constante da redução da representação: a facilidade de circulação do objeto a ser representado e a condição do aumento de sua difusão, como será o caso da imprensa de moda56.

A Corte cede lugar aos belos bairros, aos teatros, às embaixadas. As elites não aristocráticas veem-se reconhecer um lugar na primeira fila da sociedade e, aparentemente contraditório, tudo é impregnado das formas aristocráticas nos primeiros anos do século XIX.

Quase todos os objetos, desde os chapéus, as roupas e os sapatos usados pelos homens até seu modo de se alimentar, tornaram-se os símbolos e os instrumentos destas novas comunidades. Os homens achavam-se agora ligados menos pelo que acreditavam do que pelo que consumiam57.

De fato, a “nova gente da moda” facilita a circulação de modelos estéticos do luxo em toda a Europa a partir de uma sociedade alargada – a alta sociedade – mais numerosa que as cortes às quais eram destinadas as bonecas de moda (MAILLET, 2011). A jovem imprensa de moda do século XVIII incluía um discurso complexo ligado à fabricação dos gostos da opinião, produzido por uma pequena camada de intelectuais burgueses. A emblemática Rue Saint-Honoré tornou-se o local predileto de comerciantes de moda e de criação comercial no coração de Paris,

56 Ibid, p. 4, tradução nossa 57 Ibid, p. 4, tradução nossa 108 construindo historicamente um território de produção e consumo da indústria de bens de luxo. A indústria da alta moda e do pret-à-porter de luxo impulsiona o “aumento na mediação”, quando diferentes partes constitutivas deste mercado são levadas a entrar em contato e consequentemente a contribuir para comunicar, emitir e fazer circular determinada crença: a do espaço marcado pelo luxo! Como bem observou Maillet (2011), as casas de luxo emprestam o vocabulário do sagrado e o “saber da mão” constrói a aura da indústria do luxo.

A indústria do luxo revela bem esta mão que sabe. Antes de ser sagrada, a loja é construída, antes de ser adulado, o costureiro desenvolve um croqui, antes de ser um ícone, a bolsa é uma pele (sem imaginar o animal o qual “nós” abrimos as costas), antes de ser venerada, uma casa de luxo é uma sociedade e antes de ser usada no firmamento, a indústria dita de luxo é antes uma indústria58.

A indústria de bens de luxo produz roupas, artigos de couro, sapatos, echarpes e gravatas de seda, relógios, joias, perfumes e cosméticos que denotam indiscutivelmente uma vida de luxo. Hoje pouco mais de trinta grandes marcas controlam cerca de 60% dos negócios do luxo no mundo, tendo algumas delas receitas anuais que ultrapassam US$ 1 bilhão (THOMAS, 2008), como a citada Louis Vuitton, além de Gucci, , , Hermès e Chanel. A globalização do luxo foi uma das consequências mais visíveis do capitalismo no campo da moda contemporânea, fruto principalmente de um modelo de gestão verticalmente integrado. Nesse sentido, centenárias empresas de luxo financiaram sua expansão com o ingresso em bolsas mundiais de valores, abrindo seus capitais e elevando o status de suas marcas – um processo que acabou trazendo muitas vantagens, mas também inúmeras desvantagens ao setor.

Algumas usam materiais inferiores e muitas transferiram a produção discretamente para nações em desenvolvimento. A maioria substituiu a arte manual individual pela produção em linha de montagem, em grande parte automatizada. Ao mesmo tempo, a maioria das empresas de luxo

58 Ibid, p. 12, tradução nossa 109

aumentou exponencialmente o preço de suas marcas e muitas justificam a medida alegando injustamente que seus artigos são fabricados na Europa Ocidental, onde a mão-de-obra é cara. Para engordar ainda mais os números, as empresas de luxo introduziram acessórios de fabricação barata e preço inferior – como camisetas com logotipos, nécessaires de náilon e bolsas de jeans – e expandiram a faixa de perfumes e cosméticos; tudo isso lhes dá lucros substanciais quando há grande volume de venda59.

A consumidora média certamente não pode dar US$200 mil por um vestido de alta-costura feito sob medida, mas pode comprar um batom de US$25 ou um frasco de eau de parfum de US$65 para satisfazer parte do sonho de luxo (THOMAS, 2008). Este exemplo mostra como essa indústria reorganizou ao menos simbolicamente o sistema de classes, com efeito direto no modo como a classe média passou a vivenciar parte do sonho de legitimação social – outrora exclusividade distintiva de reis, rainhas, demais aristocratas e burgueses mais abastados. Pode-se dizer que a indústria de perfumes surgiu em meados do século XIX, quando perfumarias francesas, como a Houbigant e a Guerlain, começaram a desenvolver fragrâncias para a tradicional aristocracia e os ricos industriais emergentes. A ideia de perfumes de marca de alta-costura foi impulsionada pelo estilista Paul Poiret, em 1910, quando lança sua primeira fragrância, Coupe d’Or (Taça de Ouro) (THOMAS, 2008). Em seguida vieram Chanel, , Schiaparelli e Patou, que lançaram perfumes antes da Segunda Guerra Mundial. Atualmente, o perfume é um componente essencial de uma marca de luxo, em todas as suas formas. Ainda segundo Dana Thomas (2008), a cada trinta segundos um frasco do Chanel Nº5 é vendido em alguma parte do mundo todos os dias. De fato, este perfume mítico de grife tornou-se um dos sonhos de consumo mais desejados por boa parte dos países do Ocidente ao longo do século XX.

O avô dos perfumes modernos é o Chanel Nº5. Os pracinhas que lutaram na Europa na Segunda Guerra Mundial trouxeram o perfume para suas namoradas. Marilyn Monroe declarou que era

59 Ibid, p. 9 110

tudo o que usava para dormir. Em 1959, o Museu de Arte Moderna acrescentou a embalagem do Nº5 à sua coleção permanente e Andy Warhol produziu uma imagem em silkscreen do frasco do Nº5 em um arco-íris de cores. O buquê oriental e condimentado do Nº5 é a fragrância que os jovens perfumistas tentam imitar: é o padrão segundo o qual se avalia um nariz60.

Mas gradativamente os perfumes acabaram perdendo espaço para os novos carros-chefes do luxo democrático no contexto da globalização: as bolsas. Sendo consideradas como motores que impulsionam marcas de luxo desde os primeiros anos de nosso século, elas representaram uma venda coletiva de US$11,7 bilhões em 2004, juntamente com outros acessórios de couro.

No mundo das bolsas de grife, como no dos automóveis e das roupas, há uma pirâmide de qualidade: desde sob medida lá no alto até fabricado para as massas cá embaixo. A melhor bolsa – o equivalente a um Rolls-Royce ou um tailleur Chanel – é a Hermès. Feitas dos melhores couros e tecidos, costuradas à mão e com preços a partir de US$6 mil e listas de espera de anos, as bolsas da Hermès são consideradas por muitos os derradeiros bens de luxo na indústria de moda de luxo. Há muito têm sido as bolsas escolhidas por aqueles que se dão ao luxo de escolher. Jackie Onassis foi tão fotografada com sua bolsa Constance a tiracolo que os clientes passaram a pedir aos vendedores da Hermès “a bolsa da Jackie O”61.

Mas se a Hermès soube manter a distribuição limitada de suas bolsas por uma questão de integridade ligada à refinada arte tradicional de inventar e reinventar pouquíssimos e consagrados modelos quase centenários (Kelly, Birkin e Constance) fabricados à mão, muitas empresas de luxo da Europa procuraram usar materiais e mão de obra mais baratos em outras partes do mundo desde a década de 1990. Reproduziam modelos já criados na China, por exemplo, mas em cores

60 Ibid, p. 129 61 Ibid, p. 154 111 ou materiais diferentes, protegendo ferozmente o logotipo, enviando apenas o número de etiquetas necessárias para a quantidade de bolsas de cada pedido (THOMAS, 2008), embora poucos admitam. Portanto, com a globalização do luxo, a manufatura de roupas, perfumes, acessórios e outros bens passou a seguir o modelo piramidal, no qual o trabalho delicado é feito em quantidade bastante limitada por um grupo de artesãos altamente qualificados na França, Itália e Reino Unido. A faixa média (como o pret-à-porter) é delegada a grandes fábricas da Espanha, África de Norte, Turquia e países do antigo bloco comunista. Já a ponta inferior do “espectro do luxo”, como camisetas e suéteres repletos de logotipos, é produzida em países em desenvolvimento, como China, México, Madagascar e ilhas Maurício (THOMAS, 2008). O segmento de luxo, que começou na China, retorna a ela após três mil anos, para produção – e consumo. Quando as primeiras marcas de luxo abriram suas lojas no país, no início da década de 1990, escolheram locais seguros, como o saguão do Hotel Palace, em Pequim, e o luxuoso shopping Plaza 66, em Xangai (THOMAS, 2008). Mas, no início da década de 2000, Handel Lee (neto de um diplomata chinês que trabalhou como conselheiro do embaixador americano em Pequim) foi um dos principais responsáveis pelo crescimento do número de clientes e lojas de luxo nessas cidades. Em 2004, as mulheres eram responsáveis por 40% das vendas de bens de luxo na China, em comparação a 10% na década de 1990. Nesse processo, as revistas de moda tornaram-se a fonte de informação mais importante sobre bens de luxo para as chinesas – há versões chinesas de Vogue, Elle e Cosmopolitan e, segundo Dana Thomas (2008, p. 278), “cada uma vende meio milhão de exemplares por mês, principalmente nas bancas”.

Quando a Vogue China debutou, em setembro de 2005, vendeu sua edição inicial em cinco dias. A segunda edição vendeu em três dias. “As marcas de maior vendagem aqui são Chanel, Dior e Louis Vuitton”, contou-me Angelica Cheung, editora da Vogue China. “A maioria dos chineses compra o luxo como um símbolo de status em vez de gosto. Apreciam os logotipos. Querem que as pessoas saibam que estão carregando algo caro (...). Não 112

sabem pronunciar os nomes e não sabem de onde vêm. Só querem porque é caro”62.

Pode-se dizer que o longo processo histórico do aumento da mediação na indústria de luxo foi sustentado pelos novos atores, culminando na imprensa de moda. Bernard Arnault, presidente do grupo LVMH63 desde 1990, reconhece o papel inaugural da imprensa na difusão de produtos carregados de um forte valor emocional, como foi o caso “do automóvel ou da alta costura e desde o início do século XX e a indústria do luxo continua a se fundir nesta via traçada desde a Renascença” (MAILLET, 2013, p. 14). E, assim, a longevidade do setor de luxo é medida pela capacidade de ouvir seus mediadores: o poder de imprensa e a fabricação da opinião em Vogue são o resultado de jogos de “atores particulares”, assim como seguir as tendências não é suficiente – pois esta noção é cada vez mais fruto de uma relação de forças entre atores identificados em menor ou maior grau no mercado da alta moda.

Esta combinação conduziu à emergência de poderes e de saberes que participam da construção de normas sucessivas. Estas últimas, longe de serem o resultado de arbitragens coletivas temporárias, foram bem a consequência de jogos de atores múltiplos inseridos em redes contraditórias. A sutil compreensão do processo de aumento na mediação convida à decodificação das modalidades de fabricação das tendências no universo das indústrias do luxo, o mais próximo possível das práticas de seus atores da mediação (MAILLET, 2011, p. 16, tradução nossa).

62 Ibid, p. 278 63 Trata-se do grupo Moët Hennessy Louis Vuitton (LVMH), base de um conglomerado de luxo de capital aberto, com sede em Paris. Segundo Dana Thomas, em 2005, tinha mais de cinquenta marcas – inclusive o champanhe Moët & Chandon, a maison de alta-costura e os relógios Tag Heuer – 59 mil funcionários e 1.700 lojas, vendas de US$18,1 bilhões (14 bilhões de euros) e lucros de US$3,5 bilhões (2,7 bilhões de euros). Sua principal marca é a Louis Vuitton, com vendas anuais estimadas em US$3,72 bilhões, responsável por aproximadamente um quarto dos negócios totais do grupo (THOMAS, 2008). 113

O que ocorre, na marcha global do luxo, é algo absolutamente típico do próprio contexto de sua democratização ou massificação, devendo ser interpretado à luz de sonhos que primeiramente são fabricados para depois serem consumidos por um número cada vez maior de classes, gêneros, etnias. Contraditoriamente – ou não – grandes estilistas de marcas centenárias de luxo criaram coleções para a chamada “moda rápida” (fast fashion), baseada na produção de ciclos bastante rápidos de produtos sem estação. É o caso de empresas como Zara, H&M, Target, Mango e Top Shop: “[...] a Target contratou Isaac Mizrahi; a Top Shop já teve Hussein Chalayan e Sophia Kokosalaki; a H&M trouxe Lagerfeld, Stella McCartney e Viktor & Rolf” (THOMAS, 2008, p. 290). Mas, afinal, se as empresas de luxo se massificaram e muitas delas acabaram se “esquecendo” que nasceram justamente da oferta de produtos realmente excepcionais aos ricos, o que eles fazem agora? Como resposta: “As ‘pessoas mais ricas que o ar’, segundo Karl Lagerfeld, não comparecem aos desfiles de Alta-Costura; mas os oceanos são atravessados por jatos particulares para as provas de roupas, que custam entre US$20 mil e US$100 mil”64. Esta foi a pergunta de Dana Thomas ao criador Lagerfeld. As novas fortunas da moda de luxo contemporânea não precisam nem aparecer para fazer compras. Contudo, muitos ricos também compram em pontas de estoque como, por exemplo, o Desert Hills Premium Outlets65, cometendo algumas extravagâncias que são frequentemente vivenciadas por vendedoras: “Uma princesa esteve aqui há alguns dias e gostou tanto desses sapatos que comprou um par de cada cor. Ela vem aqui todas as estações”66. Ou exigem mordomias, como compradores pessoais “que não só retiram roupas para exibições e provas particulares em salões luxuosos, como também cuidam de todos os caprichos do cliente”67.

64 Ibid, p. 306 65Centro de compras localizado no coração do deserto californiano, a caminho de Palm Springs, que abriga muitas das marcas que se encontram em Beverly Hills – Dior, Armani, Prada, Gucci e Ferragamo, especializado na venda de artigos com até 75% de desconto. Aproximadamente “7 milhões de pessoas fazem compras no Desert Hills anualmente, muitas das quais compraram o sonho do luxo vendido pelo marketing, mas não podem arcar com o preço cheio, nem de liquidação, dos artigos de luxo. Há ainda aqueles que podem comprar, mas querem tirar o máximo de proveito do seu dinheiro (THOMAS, 2008, p. 223). 66 Ibid, p. 307 67 Ibid, p. 307 114

No Brasil, um complexo de varejo de luxo chamado “Daslu” (ou Villa Daslu), com 17.000 m² e construído no estilo de uma vila florentina (Figura 26), localizava-se na Vila Olímpia, em São Paulo.

Figura 26: Fachada do antigo complexo varejista de luxo Daslu, localizado na cidade de São Paulo. Fonte: Lopes (2011).

Filha de Lucia Piva de Albuquerque e de um advogado da alta sociedade paulista, Eliana acompanhou desde cedo as vendas de roupas que sua mãe fazia para amigas na própria casa da família no final da década de 1950, situada no elegante bairro de Vila Nova Conceição – doando parte dos lucros a instituições de caridade.

Na época, o Brasil estava fechado às importações. Se os sul-americanos quisessem comprar luxo europeu, precisavam ir à Europa ou aos Estados Unidos. Com o passar dos anos, o negócio realizado na sala de visitas de Lucia cresceu. O horário de funcionamento da loja era das 13h às 17h. Ela contratou as filhas das amigas para ajudar nas vendas. Empregadas uniformizadas corriam de lá para cá, servindo chá e café e recolhendo roupas de vários aposentos. Ficou conhecida como Daslu, ou seja, “na casa da Lu”. [Na verdade, Daslu vem do nome de Lucia e de sua sócia Lourdes, as “Lu”]68.

68 Ibid, p. 309 115

Eliana Tranchesi assumiu a empresa da família com 21 anos, ficando no comando desde 1977 até o ano de 2012, quando faleceu por complicações de saúde. Na realidade, desde o ano de 2005 a empresa passou por sérios problemas junto à Receita Federal Brasileira, sendo acusada de sonegação milionária de impostos e fraude de importações. Desde 2006, o empreendimento passou a ser propriedade da construtora WTorres, que iniciou obras em toda a parte interna e na fachada da loja. Embora sem o grande complexo, a marca Daslu permanece viva no comércio de luxo de São Paulo, funcionando hoje no Brasil com oito lojas, nas cidades de São Paulo (Daslu Cidade Jardim e Daslu JK Iguatemi), Ribeirão Preto (Daslu Ribeirão), Rio de Janeiro (Daslu RJ), Brasília (Daslu Brasília), Recife (Daslu RioMar Recife), Curitiba (Daslu Curitiba) e Porto Alegre (Daslu Porto Alegre). Conta ainda com 65 boutiques vendendo seus produtos no Brasil e mais de 70 lojas nas Américas e Caribe, África, Europa, Oriente Médio e Ásia. Destaco ainda que por muitos anos a Daslu expôs coleções em um showroom no Hotêl Plaza Athenée, em Paris69. Pode-se dizer que, com o passar das décadas, o envolvimento pessoal de Eliana com o negócio da família passou a ser o grande diferencial da loja em relação a outros varejos de luxo, pois ela não conhecia o cliente somente pelo nome, cultuando a seguinte filosofia: “A Daslu é sua casa e os clientes são seus convidados”70. Outro ponto forte foi o conceito de luxo da empresa, que ainda procura manter em suas lojas menores. Segundo Cristiane Saddi, diretora de marketing da concessionária Mercedes local (cujo dono é o seu marido) e voluntária no hospital sírio-libanês da cidade, a Daslu é luxo porque “quando se vai à Daslu, não é para comprar um par de sapatos novos. É para ver suas amigas. Não se encontra um serviço parecido em nenhum lugar do mundo”71 ou porque “tem as melhores marcas e a melhor seleção do mundo, de sutiãs a vestidos de noite, passando por artigos de casa. Tudo que se precisa, para qualquer ocasião. Quantas lojas de moda vendem automóveis? Pense em um produto – e poderá comprá-lo na Daslu”72. As vendedoras, filhas das melhores famílias de São Paulo, ficaram conhecidas como as “dasluzetes”: “altas, magras, de pele macia e amanteigada e cabelos compridos e brilhantes – e transitam pelos

69 In: www.daslu.com.br/institucional/sobre-a-daslu/ 70 Ibid, p. 316 71 Ibid, p. 317 72 Ibid, p. 317 116 refinados círculos sociais da cidade, frequentando pequenos jantares e festas extravagantes todas as noites”73. A loja jamais perdeu seu “ar familiar”, mesmo quando Eliana conseguiu mais 15 mil novos clientes nos primeiros quatro anos do negócio na Vila Olímpia, declarando na época:

Os clientes vêm do Rio e de Salvador, da Argentina e do Peru. Todos conhecem todos – há muitos beijos no ar. Compram durante horas, encontram-se para tomar chá no Restaurante Leopolldina ou para um drinque na champanheria, atualizam as fofocas e depois compram um pouco mais. Seis vezes por ano, a Daslu patrocina um desfile/festa para 10 mil de suas melhores clientes. “As mulheres dançam, compram e se divertem muito”, diz Mônica Mendes. Nas noites de terça- feira, a Daslu fica aberta até as 22h e as paulistas chiques encontram-se lá para jantar e fazer compras. As ricas e famosas gostam da Daslu, explica ela, “pois há uma privacidade, tem tudo o que você precisa e todos são tratados como VIPs”74.

As melhores clientes tendiam a frequentar a Daslu quatro vezes por semana e, segundo Mônica Mendes, diretora de marketing internacional da loja, as brasileiras são completamente loucas por moda: “compram a Vogue americana, arrancam as páginas, entregam-nas à vendedora e dizem: ‘Quando isso chegar, quero para mim’. Quando a bolsa Baguette da saiu, vendemos todas na pré-venda antes de as recebermos”75. Em meados da década de 1990, o Brasil ainda não era visto como um bom mercado, mas Eliana conseguiu fechar contratos com Gucci, Prada, Zegna, Dolce & Gabbana e Chanel. Quando esta última escolheu a Daslu, entre outros treze importantes varejistas de luxo de São Paulo, como ponto de venda da marca no Brasil, a empresária comemorou o estrondoso sucesso alcançado com as vendas na ocasião do lançamento, com a presença de um manda-chuva da marca: “Ele veio para a inauguração e, no final do dia, estava ajoelhado, calçando sapatos

73 Ibid, p. 311 74 Ibid, p. 313 75 Ibid, p. 312 117 nas clientes. Vendemos 70% da coleção no primeiro dia. Pedi às amigas para deixarem o que haviam comprado para que pudesse ter algo para mostrar no dia seguinte”76. No térreo do complexo ficavam as consagradas butiques de grife: Louis Vuitton, Dior, Gucci, Valentino, Jimmy Choo, Sergio Rossi, Chloé, Pucci, Manolo Blahnik. No caso da maioria das marcas, a Daslu detinha a franquia e escolhia as roupas, embora geralmente a decoração fosse padronizada pelas marcas – o famoso arquiteto Peter Marino criou as butiques Chanel e Dolce & Gabbana da loja. A Louis Vuitton, com quase 400m² (a maior da América Latina), Burberry, Armani e Ferragamo alugavam o espaço da Daslu (THOMAS, 2008). O segundo andar era destinado para joias, lingeries, perfumes, roupas de banho, vintage e outras marcas de luxo, para o restaurante Leopolldina, bem como para uma champanheria e a linha feminina da Daslu – responsável por 60% das vendas e comercializada também em lojas internacionais de Washington, Los Angeles e Londres, além de ser confeccionada no Brasil, em grande parte com materiais produzidos localmente. Esta linha, conhecida como Coleção Daslu, é chique e descontraída: “vestidos de jérsei femininos, jeans sensuais, sandálias de tiras altíssimas, adornadas com grandes jóias falsas, vestidos longos e transparentes salpicados de cristais”77. No departamento feminino, mais um exemplo da “intimidade” entre compradoras e vendedoras da Daslu:

Não é permitida a entrada de homens no departamento feminino da loja e há seguranças que ficam nas entradas para assegurar que a regra seja obedecida. Não há provadores no andar das mulheres. Em vez disso, as clientes ficam apenas com as roupas íntimas de renda e experimentam as roupas bem ali. “Minha mãe só recebia amigas; portanto, não havia problema em trocar de roupa uma na frente da outra”, explicou Eliana Tranchesi. “Eu fiz o mesmo: amigas recebendo amigas, portanto não há necessidade de provadores. É natural para as brasileiras. Não se sente vergonha se não há homem por perto”78.

76 Ibid, p. 310 77 Ibid, p. 313 78 Ibid, p. 312 118

O terceiro andar era destinado ao departamento masculino, incluindo uma butique de lingerie La Perla, “de modo que eles possam fazer compras para a esposa ou namorada”, segundo Mônica Mendes. Podia-se encontrar a linha prêt-à-porter Daslu e roupas esportivas, além de livraria, uisqueria Johnnie Walker, produtos eletrônicos e de música, agência de viagens, imobiliária de luxo, tabacaria, restaurante japonês, concessionárias Mitsubishi, Volvo e Maserati, iates Ferretti e até um vendedor de helicópteros Daslu – com uma unidade em exposição no átrio da loja (THOMAS, 2008). No quarto andar, havia o departamento de roupas e brinquedos infantis, “com uma brinquedoteca e um bar da altura das crianças, com tigelas de jujubas e pratos de biscoitos de chocolate”79, além de banco, farmácia e um cabeleireiro, com uma sala reservada e um spa para cada cliente. Segundo Mônica Mendes, “as brasileiras são alucinadas pelo corpo e por tratamentos de pele – é inacreditável”80. Este andar oferecia ainda artigos de mesa, copos e prataria, geladeiras, churrasqueiras, papelaria para a confecção de blocos e convites timbrados de casamento, uma chocolateria e uma doceira para encomendas de bolos extravagantes de casamento, serviços que faziam parte da Casa Daslu. O imenso complexo contava com setecentos funcionários da casa, além de outros mil empregados pelas lojas de marca, agências, restaurantes e outros serviços, bem como os novecentos fornecedores terceirizados, como manobristas, seguranças e faxineiros. Ao lado estava situado o Centro Educacional Villa Daslu, uma creche na qual as funcionárias podiam amamentar seus bebês três vezes por dia e uma escola para crianças de até 14 anos, com cerca de duzentos alunos – com aulas de violão, piano, balé, inglês, costura e artes, ministradas muitas vezes pelos clientes (THOMAS, 2008). Reflexo da discrepância econômica do país, a Daslu foi construída pela e para a elite [branca] do Brasil, atendendo os pouquíssimos ricos que “vivem como aristocratas pré-revolução, em casas fortificadas onde recebem com muita pompa, com limusines blindadas e seguranças”81. Não era difícil entender porque o luxo conseguia manter sua legitimidade no Brasil por meio de discursos ligados cultual e socialmente ao desejo de distinção de seletos clientes, ainda não contagiado pela massificação do luxo no mercado nacional.

79 Ibid, p. 314 80 Ibid, p. 314 81 Ibid, p. 311 119

Conforme as palavras de Cristiane Saddi, diretora de marketing da concessionária Mercedes da Daslu:

“A Louis Vuitton daqui tem apenas os artigos mais caros”, disse ela. “Os clientes da Daslu não precisam da bolsa monogramada ou de etiquetas ou logotipos. Compramos das marcas de luxo, mas não os produtos comuns. Artigos especiais. Há sempre algo especial. Pode-se ver o que é para a massa e o que é especial. O luxo não é quanto se pode comprar. O luxo é o conhecimento de como fazer a coisa da maneira certa, como dedicar tempo para entender e escolher bem. O luxo é comprar a coisa certa.”82.

Portanto, a escala valorativa do luxo remetia e ainda remete diretamente à hierarquia social dos indivíduos. A própria fala acima mencionada testemunhou justamente o quanto necessidades culturais são o produto da educação, espelhando uma hierarquia socialmente reconhecida das artes, dos gêneros, das escolas, das épocas. Como bem assinalou Bourdieu (2007), os gostos funcionam como marcadores privilegiados da “classe” e o próprio reconhecimento dos estilos é uma forma elementar de conhecimento. Em julho de 2007, Vogue Brasil traz como tema da edição 347 as novidades das semanas de moda do Rio de Janeiro e São Paulo. Mas é interessante notar a publicação, na mesma edição, de um editorial inspirado em marcas de luxo. Segundo o texto de abertura editorial da edição, escrito por Daniela Falcão, folhear as páginas de Saída à Francesa “deixa qualquer um morto de vontade de pegar o primeiro avião e desembarcar direto na Avenue Montaigne para comprar cada uma das peças que aparecem no editorial” (FALCÃO, 2007b, p. 137). Tais palavras fazem parte de um discurso legitimado sociocultural, histórica e simbolicamente pelo universo de luxo das grandes marcas europeias, notavelmente das centenárias francesas Dior e Louis Vuitton (Figura 27), instaladas na citada Avenue Montaige, em Paris. A arquitetura neoclássica desta importante avenida (que mistura elementos dos estilos clássico e moderno) sugere tradição e modernidade, tornando-se um importante significante desta legitimação, presente no editorial de Vogue.

82 Ibid, p. 318, grifo do autor 120

Figura 27: Fotos das boutiques Dior e Louis Vuitton da Avenue Montaigne, em Paris. Fonte: Novelli (2013g).

Vogue se torna, em relação às leitoras brasileiras, responsável pela socialização hierarquizada do gosto, outrora apontada por Bourdieu (2007), intenção explícita no editorial “Saída à Francesa” (Figura 28). Pode-se ler no texto que acompanha as imagens: “Jogue a jaquetinha Chanel por cima de uma camiseta despretensiosa, vista uma skinny de couro e ponha muitas jóias com uma maxibolsa grifada a tiracolo” (FALCÃO, 2007d, p. 139).

Figura 28: Imagens do editorial Saída à Francesa. Fonte: Vogue Brasil (2007B, p. 138-145).

121

É a top argentina, Milagros Schmoll, quem passeia por uma das mais desejadas avenidas de Paris (informação anunciada no sumário da edição), porém a ausência de qualquer traço ou aspecto de “latinidade” é de fato evidente. Nesse sentido, a branquidade é construída imageticamente, sendo marcada pela cultura de moda europeia e determinando, portanto, uma configuração estética e social hegemônica de representação racial/étnica, sexual/de gênero e classista. O título do editorial, “Saída à Francesa”, além de fazer referência direta à França, remete ao ditado popularmente conhecido no Brasil e utilizado pelas pessoas que vão a algum lugar e partem sem avisar ou sem ser notadas, não possuem a menor preocupação em se despedir, vão embora de maneira “despercebida”. Provavelmente seja uma intenção ambígua e não muito educada, mas recorrente no contexto do universo da moda, ganhando status social e importância – pois exatamente assim fazem celebridades, grandes criadores e supermodelos. O uso de peças na cor preta com detalhes em branco, bem como de luz solar e sombra conferem maior contraste e certa dramaticidade à cena; o preto é um signo de elegância e personalidade na moda; além disso, a presença de tonalidades em marrom e dourado nas paredes e nos acessórios não remete apenas ao inverno, mas ao luxo associado ao ouro e ao bronze – plástica e iconicamente. Vimos sua utilização em vários editoriais de Vogue (brasileiros e franceses) na década de 2000, celebrando a estética minimalista do período. Nesse caso, linhas e formas geométricas urbanas e logomarcas de grifes francesas e italianas são significantes icônicos fundamentais para que possa ocorrer o reconhecimento da célebre avenida francesa e do lugar que ela ocupa no imaginário brasileiro sobre a alta moda europeia. Os gestos apressados da modelo [branca] esguia lembram a nova feminilidade urbana e ativa trazida pelo discurso quase cinematográfico (e literário) entre moda, cidade e modernidade. É interessante observar que eles podem ser interpretados à luz da figura da “passante” de Baudelaire (do século XIX) e mesmo do "mito da passante" de Claude Leroy, em diálogo com o escritor no final da década de 1990. Segundo Agnes Rocamora (2007, p. 113, tradução nossa), a fugitividade da passante ressaltada por Leroy é uma “espécie de habitus urbano feminino (o passo apressado das mulheres é aceito e reconhecido como uma prática legítima feminina da cidade no século XX)”. A passante é uma figura da cidade e da moda. Assim como o uso da rua é uma prática relativamente recente, sobretudo como “encenação da fotografia de moda”:

122

No seu estatuto de mulher na moda, a passante é então, tal uma manequim, um modelo a seguir, posição que as inúmeras páginas de revistas a consagram e celebram. Mulher modelo - qualidade que o sentido inglês do termo bem a torna porque refere-se ao mesmo tempo à ideia de modelo a seguir e à ocupação de manequim -, a passante é então passante da moda, se prestando ao jogo mercadológico do sistema da moda que e apropriado a fim de promover seus produtos (ROCAMORA, 2007, p 114, tradução nossa).

Portanto, o caráter transitório da moda e da passante se faz perceptível em revistas de moda, principalmente devido à sua aparição “maravilhosa, mágica e miraculosa”83. Como vimos, a legitimação [histórica] da moda de Paris como o “berço da Alta-Costura” no mundo não é recente. No Brasil, esta imagem acentuou-se ao longo do século XIX, no qual algumas transformações nas relações de gênero ocorreram no contexto do surgimento de uma nova organização social, onde desponta uma elite [branca] urbanizada. A aproximação da moda de nosso país com a França será ainda abordada no quarto capítulo desta tese, no que tange a determinadas questões ligadas à cultura estético- erótica francesa, ao culto da livre atitude [republicana] da mulher parisiense, ao “autoexotismo” da natureza e da cultura popular brasileira, bem como ao embranquecimento de figuras femininas brasileiras. Antes, porém, faz-se necessário abordar mais diretamente a problemática da branquidade enquanto violência simbólica, mostrando como ela se manifesta simultaneamente pelo desejo colonizador masculino dos fotógrafos de Vogue e por determinadas representações de classe para naturalizar o corpo [branco] da moda e garantir o reconhecimento de sua legitimidade. Nesse sentido, as imagens de moda ocupam um lugar central no exercício do poder simbólico [branco] a partir das produções estéticas e discursivas comandadas por Carine Roitfeld e Patricia Carta.

83 Ibid, p. 115 123

3. A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA QUE NATURALIZA O DESEJO COLONIAL [BRANCO E MASCULINO] EM VOGUE

A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode discordar do dominante (e então da dominação) quando ele dispõe, para pensá-lo ou se pensar ou, melhor, para pensar sua relação com ele, apenas de instrumentos de conhecimento que ele possui em comum com ele e que, sendo apenas a forma incorporada da relação de dominação, fazem aparecer essa relação como natural (BOURDIEU, 1998, p. 41).

Abordo, no presente capítulo, a questão do desejo sexual e do erotismo na fotografia de moda, mostrando determinados “modos de ver” a partir do olhar masculino colonizador, por meio das lentes de alguns fotógrafos que se destacaram no primeiro decênio de nosso século como colaboradores das edições francesas e brasileiras de Vogue. Trata-se, neste momento, de trazer questões que contribuíram notavelmente para as análises que foram realizadas no quarto capítulo, a partir de uma abordagem interdisciplinar ancorada nos estudos culturais, de gênero e pós-coloniais. Vimos, no capítulo anterior, que muitos aspectos do projeto fundador de Nast para Vogue refletiram determinados valores de uma época e possuíam logicamente “[...] relação com a fotografia, porque sua intenção não era simplesmente mostrar roupas, mas transformar a Vogue em um verdadeiro ponto de referência para o público esnobe americano no que dizia respeito ao estilo e gosto” (MARRA, 2008, p. 89). Nesse sentido, ressalto a vocação “narrativo-cinematográfica” do fotógrafo Richard Avedon e a escandalosa “audácia erótica” de Guy Bourdin. Concordo com Raúl Antelo (2004), quando diz que toda história cultural “é um peculiar modo de ficção”. E isso não quer dizer absolutamente que uma imagem seja um simples corte praticado no mundo dos aspectos visíveis, pois como bem colocou o filósofo e historiador da arte Didi-Huberman (2012, p. 204), não há imagem sem imaginação: a imagem é “uma impressão, um rastro, um traço visual do tempo que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares – 124 fatalmente anacrônicos, heterogêneos entre eles – que, como arte da memória, não pode aglutinar”.

3.1 O TERRENO DAS IMAGENS: OBJETOS E AGENTES EM FRONTEIRAS MOVEDIÇAS

O tipo de moda que eu amo existe apenas em imagens, onde se torna parte de um mundo de sonhos e fantasias. Apenas uns poucos excêntricos podem usá-la. Mas este abismo não me incomoda, porque acredito que há uma tensão - ou um diálogo contínuo - acontecendo entre a moda de rua e a moda retratada em fotografias, que muito poucas mulheres podem pagar para vestir, por razões financeiras óbvias, bem como certas pressões sociais (ROITFELD, ZAHM; HORYN, 2011, p. 158).

As palavras acima citadas são de Carine Roitfeld, que comandou Vogue Paris durante uma década. Nelas, pode-se perceber discursivamente a íntima relação entre imagem e imaginação. Segundo Villaça (2010, p. 218), imagens e processos de simulação refletem “a busca da perfeição ou queda na abjeção que sitiam o corpo com ameaças que vão do grotesco ao envelhecimento e morte, passando por discriminações sociais sob os mais diversos pretextos e pelo descontrole do desejo”. Veremos no quarto capítulo, por exemplo, que ao produzir imagens erotizadas em Vogue Paris, Roitfeld procura alcançar certa ideia de elegância luxuriosa, ligada a uma problemática que envolve a questão da “beleza da imagem”, construída estética e visualmente no contexto histórico e cultural das artes e da moda parisiense, considerando ainda o elevado capital econômico associado ao perfil- alvo de suas leitoras [brancas]. Sinalizo, desta forma, dois princípios metodológicos importantes para investigações estéticas: o histórico e o estrutural – sendo que ambos são interdependentes e complementares. Uma imagem nunca é um dado natural, configurando-se como uma “construção discursiva que obedece a duas condições de possibilidade: a repetição e o corte” (ANTELO, 2004, p. 9). Isso nos leva a refletir porque uma imagem requerer um processo de associações incessantes:

125

Enquanto ativação de um procedimento de montagem, toda imagem é um retorno, mas ela já não assinala o retorno do idêntico. Aquilo que retorna na imagem é a possibilidade do passado. Como procedimento de suspensão ou corte, a imagem aproxima-se, então, da poesia, e não da prosa, na medida em que até mesmo o poema poderia ser reduzido ao simples efeito de enjambement. Retorno e corte alimentam, portanto, uma certa indecibilidade ou indiferença, uma impossibilidade de discernimento entre julgamento verdadeiro e falso, que potencializa, entretanto, o artifício da falsidade como a única via possível de acesso à estrutura ficcional da verdade (ANTELO, 2004, p. 9).

Tal montagem requer, portanto, um alargamento do tempo e do espaço e, consequentemente, dos modelos da temporalidade histórica – para que se possa acompanhar “a sua sobrevivência para além do espaço cultural originário”, por meio de determinadas circulações, apropriações de tempos, falhas e intervalos que vão desenhando um percurso, um regime de verdade (ANTELO, 2004). Conforme Peter Burke (2004), as mudanças no tipo de imagem disponível em lugares e épocas específicos devem ser consideradas, devido especialmente às duas revoluções ocorridas na produção ocidental de imagens: o surgimento da “imagem impressa” (gravura em madeira e em água-forte, entalhe etc.) durante os séculos XV e XVI e o surgimento da “imagem fotográfica” (incluindo filme e televisão) nos séculos XIX e XX. Diversos historiadores lançaram-se em busca de metodologias de análise voltadas para a utilização da imagem na pesquisa histórica, ressaltando as inúmeras discussões sobre padronização e fixação de textos em imagens impressas. Desta forma, diante da crescente proliferação de imagens fotográficas e impressas, documentos fotográficos passaram a ser vistos como uma fonte básica para os estudos históricos, tanto para a vertente da história da fotografia, como da história através da fotografia (KOSSOY, 2001, grifos do autor). Susan Sontag (2004, p. 173) afirma que a exploração e a duplicação fotográficas do mundo “fragmentam continuidades e distribuem os pedaços em um dossiê interminável, propiciando dessa forma possibilidades de controle que não poderiam sequer ser sonhadas sob o anterior sistema de informações: a escrita”. Para ela, 126 experimentamos agora a potência da imagem de um modo muito diferente:

A fotografia não apenas reproduz o real, recicla-o – um procedimento fundamental numa sociedade moderna. Na forma de imagens fotográficas, coisas e fatos recebem novos usos, destinados a novos significados, que ultrapassam as distinções entre o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o útil e o inútil, bom gosto e mau gosto [...]. Existe uma arte e existem maneiras de ver coisas a fim de torná-las interessantes [...]. Clichês, reciclados, tornam-se metaclichês (SONTAG, 2004, p. 191).

A fotografia, como instrumento de pesquisa, presta-se “à descoberta, análise e interpretação da vida histórica” (KOSSOY, 2001, p. 55). Pode-se dizer que fontes iconográficas originais abrangem as fotografias de época, as quais “se encontram em coleções públicas e privadas, muitas vezes em antiquários e sebos e em mãos de descendentes dos fotógrafos”84. Nesse sentido, é importante considerar aspectos relativos à autoria, às temáticas e aos locais apresentados na própria imagem fotográfica. Em relação às fontes iconográficas impressas, este autor propõe agrupá-las em três categorias: publicações com imagens fotográficas, desenhos representando objetos e fatos relacionados à práxis fotográfica, bem como caricaturas sobre a atividade fotográfica estampadas em periódicos (KOSSOY, 2001). Ressalto que as edições de Vogue integram a primeira categoria identificada pelo autor, correspondente às fontes iconográficas impressas. As fontes fotográficas podem ainda conter imagens fotográficas impressas e publicadas, como é o caso das imagens de Vogue – um dos exemplos de “imagens fotográficas aplicadas em livros, revistas, jornais, periódicos em geral, cartões-postais, cartazes e demais impressos” (KOSSOY, 2001, p. 80). É importante ressaltar que a própria diversidade de fontes fotográficas exigiu uma sistematização das informações, no sentido de auxiliar no registro e na recuperação de dados referentes à procedência, à conservação e à identificação de cada documento, além dos elementos que fazem parte de sua constituição. Assim, as análises documentais realizadas seguiram, de forma geral, etapas iconográficas e iconológicas aplicadas a cada documento

84 Ibid, p. 69 127 da pesquisa. Originalmente impressos, documentos referentes a capas, sumários, matérias e editoriais de moda das edições de Vogue (Paris e Brasil) correspondentes ao corpus foram digitalizados (fotografados ou escaneados) em bibliotecas do Brasil e da França, citadas na apresentação da tese. Uma análise iconográfica serve para “detalhar sistematicamente e inventariar o conteúdo da imagem em seus elementos icônicos formativos”85, operando no nível da descrição. Trata-se de uma operação importante, pois proporciona uma abertura para a busca do significado do conteúdo, uma preparação para a interpretação iconológica.

É este o momento de uma incursão em profundidade na cena representada, que só será possível se o fragmento visual for compreendido em sua interioridade. Para tanto, é necessária, a par de conhecimentos sólidos acerca do momento histórico retratado, uma reflexão centrada no conteúdo, porém, num plano além daquele que é dado ver apenas pelo verismo iconográfico86.

Gostaria de ressaltar a complexidade desta etapa, na medida em que apenas “ver, descrever e constatar” não é o suficiente. Tal operação remeteu-me diretamente à seguinte questão: “tudo o que a fotografia registrou é verdadeiro”87, uma espécie de corolário perigoso da “objetividade positivista”.

Uma única imagem contém em si um inventário de informações acerca de um determinado momento passado; ela sintetiza no documento um fragmento do real visível, destacando-o do contínuo da vida. O espaço urbano, os monumentos arquitetônicos, o vestuário, a pose e as aparências elaboradas dos personagens estão ali congelados na escala habitual do original fotográfico: informações multidisciplinares nele gravadas – já resgatadas pela heurística e devidamente situadas pelo estudo técnico-

85 Ibid, p. 95 86 Ibid, p. 96 87 Ibid, p. 103 128

iconográfico – apenas aguardam sua competente interpretação88.

As imagens em Vogue foram consideradas como objetos e agentes em fronteiras movediças. Veremos que a própria interferência do fotógrafo na imagem já é parte de uma primeira interpretação, passando ainda pelas escolhas dos demais colaboradores de produções visuais, além dos nomes que representam as editoras em questão. Simultaneamente, estive consciente de que muitos dos assuntos registrados mostravam apenas um “fragmento da realidade, um e só um enfoque da realidade passada: um aspecto determinado”89. Os termos “iconografia” e “iconologia” foram lançados no mundo da história da arte durante as décadas de 1920 e 1930, estando associados a uma “reação contra uma análise predominantemente formal de pinturas em termos de composição ou cor, em detrimento do tema” (BURKE, 2004, p. 44). Pode-se dizer que esta perspectiva de análise em fontes visuais do tempo presente introduziu justamente a análise iconológica em complementação à análise iconográfica (descritiva). Mas é importante considerar também as tentativas falhas de um método específico criado nas primeiras décadas do século XX para a interpretação de imagens, justamente por ter sido este “excessivamente preciso e estreito em alguns casos e muito vago em outros”90. Nesse sentido, as inquietações de Burke (2004) e de Kossoy (2001) convergem-se, embora tanto a iconografia quanto a iconologia tenham constituído um inegável avanço em direção a propostas mais concretas de leitura de imagens. Ao mesmo tempo, a imagem arde em seu contato com o real, segundo Didi-Huberman (2012). Uma perspectiva válida porque bastante relacionada com a maneira pela qual realizei a “leitura” das imagens de Vogue. Não se pode de fato falar do contato entre a imagem e o real sem falar de uma espécie de incêndio, “não se pode falar de imagens sem falar de cinzas [...] é absurdo, a partir de um ponto de vista antropológico, opor as imagens e as palavras, os livros de imagens e os livros a seco” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 210).

A legibilidade das imagens não está dada de antemão, posto que privada de seus clichês, de

88 Ibid, p. 101 89 Ibdi, p. 107, grifo do autor 90 Ibid, p. 52 129

seus costumes: primeiro suporá suspense, a mudez provisória ante um objeto visual que o deixa desconcertado, despossuído de sua capacidade de lhe dar sentido, inclusive para descrevê-lo; logo, imporá a construção desse silêncio em um trabalho de linguagem capaz de operar uma crítica de seus próprios clichês. Uma imagem bem olhada seria, portanto, uma imagem que soube desconcertar, depois renovar nossa linguagem e, portanto, nosso pensamento91.

Saber olhar uma imagem seria então, de certo modo, “tornar-se capaz de discernir o lugar onde arde, o lugar onde sua eventual beleza reserva um espaço a um ‘sinal secreto’, uma crise não apaziguada, um sintoma. O lugar onde a cinza não esfriou”92. Influenciado tanto pela “iconologia dos intervalos” (de Freud e Warburg) quanto pela “prática de montagem” (de Eisenstein) ou ainda pelo “trabalho das passagens” (de Bataille e Benjamin), este teórico das imagens propõe a construção de um saber crítico sobre as imagens – desde a Renascença até a arte contemporânea, abarcando problemas da iconografia científica do século XIX e seus usos pelas correntes artísticas do século XX. Ao mergulhar nas fontes visuais da tese, estive diante de contextos históricos “ardentes”. Durante determinado momento, percebi um imenso e rizomático arquivo de imagens heterogêneas, difícil de dominar, de organizar e de entender. Retomo as palavras de Antelo (2004, p. 13), as quais me ajudaram a “enxergar” o labirinto de imagens que se apresentava diante de meus olhos, além de reconhecer a “natureza lacunar” (DIDI-HUBERMAN, 2012) de meus arquivos visuais (tanto no Brasil quanto na França): “toda imagem é uma representação, de caráter global e abrangente, de uma ordem, de um território, de uma identidade, enfim, que se constitui, opera e se insere em parâmetros coletivamente aceitos”. Arrisquei-me, então, a juntar “traços de coisas sobreviventes”, ora reconhecíveis e observáveis, mas vindas muitas vezes de lugares separados e de tempos desunidos. Somente mais tarde encontrei uma definição que se aproximava deste processo labiríntico: a montagem. Originalmente um método literário e epistemológico adotado por Walter

91 Ibid, p. 216, grifo do autor 92 Ibid, p. 215 130

Benjamin em seu livro das Passagens93, a montagem é capaz de produzir “o clarão magistral de uma interpretação cultural e histórica, retrospectiva e prospectiva – essencialmente imaginativa” (DIDI- HUBERMAN, 2012, p. 212), como uma resposta ao problema da construção da historicidade.

Porque não está orientada simplesmente, a montagem escapa às teleologias, torna visíveis as sobrevivências, os anacronismos, os encontros de temporalidades contraditórias que afetam cada objeto, cada acontecimento, cada pessoa, cada gesto. Então, o historiador renuncia a contar “uma história” mas, ao fazê-lo, consegue mostrar que a história não é senão todas as complexidades do tempo, todos os estratos da arqueologia, todos os pontilhados do destino94.

Nesse sentido, não busquei traçar narrativas necessariamente lineares nos contextos brasileiro e francês, uma vez que o tempo histórico das condições culturais específicas de produção de discursos em cada um desses contextos mostrava-se “retrospectivo e prospectivo”, escapando por vezes a uma interpretação cronológica, sequencial, acumulativa – entretanto não menos histórica. Desta forma, procurei intuitivamente analisar os editoriais de moda (no quarto capítulo) seguindo a perspectiva metodológica da montagem, na qual uma imagem pertencente a um editorial específico foi agrupada com outras imagens de outros editoriais em um primeiro momento, para depois abrir-se como um leque (assim como as outras), permitindo que sua mensagem visual fosse apreendida em profundidade – tanto no conjunto de cada editorial quanto de cada tema abordado. Pode-se dizer que os diferentes níveis de leitura da mensagem visual (linguístico, plástico e icônico) de cada editorial possibilitaram a realização das análises. Também a noção de “memória inconsciente” está envolvida no complexo desafio de interpretação da imagem dialética, ou seja, aquela que “deixa menos contar que interpretar seus sintomas – a que somente uma montagem poderia evocar a profundidade, a sobredeterminação”95,

93 Benjamin, W. Paralipoménes et variantes à L’OEuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée”(1936), trad. J.M. Monnoyer, Écrits Français, Paris: Gallimard, 1991, p.180. Id., “Sur le concept d›historie” (1940), Ibid., p.343. 94 Ibid, p. 212 95 Ibidem 131 pois as relações mais complexas de tempo, aquelas que incumbem a questão da memória na história, tornam-se visíveis justamente porque as imagens não estão “no presente”. É justamente por isso que esta questão necessita de “toda uma paciência – por força dolorosa – [...] para que umas imagens sejam olhadas, interrogadas em nosso presente, para que história e memória sejam entendidas, interrogadas nas imagens”96. Retomo aqui uma questão central na teoria de Didi-Huberman (2012): uma imagem é, ao mesmo tempo, um traço visual do presente e de outros tempos suplementares, “fatalmente anacrônicos, heterogêneos entre eles”97. Sabemos que o risco do anacronismo assombra historiadores culturais e da imagem no tempo presente, como Burke (2001, p.117-118), que sugere alguns cuidados, tais como: conhecer e compreender os “elos da cadeia de fatos ausentes da imagem”; buscar condições de se recuperar “micro-histórias implícitas nos conteúdos das imagens e, assim, reviver o assunto registrado no plano do imaginário”; buscar a conexão com as mais diversificadas fontes que informam sobre o passado, “conjugando essas informações ao conhecimento do contexto econômico, político e social, dos costumes, do ideário estético refletido, nas manifestações artísticas, literárias e culturais da época retratada”. O que gostaria de salientar é que talvez uma perspectiva não anule necessariamente a outra, pois ambas são extremamente válidas. Francis Haskell (1995) propõe, por exemplo, que o historiador deva conhecer o que há sob seus próprios olhos, procurando realizar um longo diálogo, de surdos, muitas vezes. Como afirmou, às vezes “um diálogo acrimonioso, mas também pontuado de um tempo a outro por momentos de franca abertura – um diálogo estimulado pelos que propuseram que uma imagem pode constituir uma preciosa fonte histórica” (HASKELL, 1995, p.13). Mais do que a importância histórica de algumas obras, estão os significados que elas podem oferecer aos seus contemporâneos.

O ato de escrutinar as imagens na esperança de entrar em contato com o passado revelou-se difícil. Muito freqüentemente temos consultado as representações, aproximação de aparência espontânea e imediata, do que completado o que os textos tinham já capturado. Ocorreram, certamente, muitas civilizações que deixaram

96 Ibid, p. 213 97 Ibid, p. 204 132

outros arquivos além dos que estão visíveis, sensíveis, mensuráveis e, mesmo para os outros, apareceram em determinadas épocas, onde temos uma melhor oportunidade de compreender o passado olhando, ao invés de lendo: mas esquecemos sempre até que ponto a sobrevivência da maioria dos objetos ou representações resulta de um processo caprichoso e suscetível de julgamentos equivocados98.

Concordo que a imagem arde: pelo desejo que a anima, pela intencionalidade que a estrutura, pela enunciação, inclusive a urgência que manifesta; pela destruição, pelo incêndio que quase a pulveriza, do qual escapou e cujo arquivo e possível imaginação é, por conseguinte, capaz de oferecer hoje; pela possibilidade visual aberta; por seu intempestivo movimento, capaz como é de bifurcar sempre; por sua audácia, quando faz com que todo retrocesso, toda retirada sejam impossíveis; pela dor da qual provém e que procura todo aquele que dedica tempo para que se importe; pela memória, quer dizer que de todo modo arde, quando já não é mais que cinza: uma forma de dizer sua essencial vocação para a sobrevivência, apesar de tudo (DIDI- HUBERMAN, 2012). Se apenas cinzas ou não, acredito que imagens veiculam mensagens visuais (linguísticas, plásticas e icônicas) e podem constituir- se cientificamente em uma “prova” como qualquer outro documento histórico. Nesse sentido, imagens exigem contextualização, da mesma forma. Segundo o historiador francês Jean Pirotte (2002), tal exigência deve passar pelo crivo da “crítica histórica”, por isso considera fundamentais determinados passos a serem seguidos na investigação histórica de um documento visual. São eles: a) datar, mesmo que de forma aproximada, o documento; b) precisar a natureza do documento, ou seja, definir seu estatuto iconográfico, considerando a distinção de dois tipos de documentos: os que aparecem como traços diretos (imediatos de sua época) e os que pretendem reconstituir uma época ou um acontecimento; c) definir o meio de produção da imagem, ou seja, pesquisar o(s) seu(s) autor(es), situar as obras analisadas na produção de seus criadores, observar com atenção a evolução das reproduções,

98 Ibid, p. 14 133 buscar o nome do fabricante para as imagens produzidas em grande escala (impressas) etc. (PIROTTE, 2002, tradução nossa). A imagem é, como a palavra, dialógica. Desse modo, “como todo texto, toda imagem se inscreve em uma seqüência de imagens, remete a um contexto sociocultural; toda imagem é montagem, baseando-se nas aquisições anteriores”99. Essa afirmação permitiu-me compreender outra questão fundamental, associada geralmente à intertextualidade: a “interconicidade”, que por sua vez pode facilmente remeter à primeira, por “explorar as relações manifestas ou secretas associando as imagens”100. Tais considerações foram relevantes para a pesquisa, na medida em que acabaram reforçando a ideia da “montagem”, operação realizada imaginativamente pela pesquisadora durante o processo de seleção e análise das imagens de Vogue. Pode-se dizer que procurei, no conjunto das imagens de um ou mais editoriais de moda, reduzir a “polissemia da imagem”, típica das mudanças de uma multiplicidade potencial de significação da própria imagem. Nesse sentido, redundâncias icônicas (repetições de motivos icônicos, ligadas a conotações próximas, de forma a orientar o usuário em direção a uma interpretação central) contribuíram para que fosse possível encontrar um fio condutor das narrativas produzidas nas versões francesas e brasileiras. A colocação de textos para auxiliar o espectador a selecionar a significação “ideal” também é uma das formas que podem ser utilizadas na redução da polissemia da imagem (PIROTTE, 2002, p. 16), chamada por Joly (1996) de mensagem linguística, como veremos adiante. Pirotte (2002, p. 21) indica ainda que a fotografia mesma banha- se na interconicidade, por isso “toda imagem deve ser vista à luz da memória iconográfica”. Ou seja, mesmo como ilustração, a imagem faz parte de um discurso, reconstruindo memórias, noções do passado, promovendo evocações a outras imagens. Os valores atribuídos às imagens não são absolutos, pois adquirem suas significações somente no interior do “sistema” de cada imagem, além de estarem, eles próprios, situados no interior de um conjunto de aspectos culturais diversos – chamados pelo autor de códigos retóricos.

Esses códigos socioculturais transparecem na decoração, na arquitetura, nos móveis, nos costumes, nas atitudes dos personagens e nos

99 Ibid, p. 21 100 Ibidem 134

objetos que eles manipulam. Esses elementos retomam constantemente aos significados como os da riqueza ou da miséria, da dominação, do saber, do conhecimento, da nobreza, a grandeza ou a baixeza moral, a virtude ou o vício; eles compõem, muitas vezes claramente, os estereótipos visuais: o colonial, o funcional, a verdade ingênua ou a farsa; a ambição ávida por poder ou riqueza; o ditador brutal e limitado, a genial sabedoria da cabeça nas nuvens101.

Gostaria de salientar que me beneficiei das considerações deste autor já em minha dissertação de mestrado102, achando pertinente utilizar parte delas também nesta pesquisa, pois a relação entre crítica histórica e leitura de imagem se mostrou novamente válida nesta recente análise. Este autor revela que “ao lado das múltiplas interpretações, variáveis e dependentes mais da subjetividade, a imagem oferece um conteúdo objetivo, estável, que ela trata de inventariar”103. Nesse sentido, pode-se dizer que os três níveis de leitura por ele apontados (técnico, da denotação e das conotações) vêm ao encontro da metodologia de análise utilizada nesta tese, proposta por Martine Joly e que será mais adiante abordada. Antes, cabe explicitar os níveis de leitura da imagem na perspectiva de Pirotte (2002). O primeiro deles é o ponto de vista técnico, realizado por meio da observação de alguns elementos, tais como: natureza do suporte (papel, livro, muro etc.); procedimentos gráficos utilizados (fotografia etc.); cores; qualidade de produção; tipo de moldura – pois as técnicas utilizadas exercem influência sobre as formas e os conteúdos visuais. Já a pesquisa da denotação (também chamada de análise icônica), é considerada como uma análise literal da imagem, abrangendo a descoberta dos sentidos imediatos dos elementos que a compõem (tendo em vista a exclusão de toda significação associada, simbólica e subjetiva neste momento); constitui uma espécie de nível primário de leitura, no qual “examinamos a imagem e nos contentamos em descrever os

101 Ibid, p. 26, tradução nossa 102 NOVELLI, Daniela. Juventudes e imagens na revista Vogue Brasil (2000-2001). Dissertação (Mestrado em História do Tempo Presente) – PPGIH- UDESC: Florianópolis, 2009. 275f. Na época tive a orientação de Mara Rúbia Sant’Anna Müller, que por sua vez foi quem apresentou-me este autor. 103 Ibid, p. 24, tradução nossa 135 elementos que a compõem” (PIROTTE, 2002, p. 24), em uma operação cuidadosa (complexa, como salientei em outro momento) porque qualquer início de interpretação é excluído; o foco de atenção está na observação de personagens e suas atitudes, nos objetos e na decoração, nas sombras e nas luzes, na disposição e na proporção dos elementos da cena. Finalmente, as conotações “remetem a todas as significações culturais ou subjetivas que habitam a significação primeira e que variam em função dos lugares e dos tempos”104. Desta forma, por meio da análise de seus significados associados

[...] a imagem conotada entrega sua mensagem cultural e abre caminho para muitas interpretações segundo a maneira pela qual os indivíduos e os grupos reagem. Uma percepção correta do sistema de conotação em cada cultura é evidentemente necessária para penetrar na lógica da composição105.

O autor ainda considera que “para cada composição, a utilização do espaço se opera segundo um sistema próprio, complexo e convencional, no qual as zonas cheias e vazias, as linhas ascendentes ou descendentes adquirem um senso”106. Esse último nível de leitura revela a importância dos códigos nas mensagens visuais, os quais Joly (1996) considera como signos icônicos da mensagem visual. Segundo Joly (1996), a própria percepção de formas e objetos é “cultural”, correspondendo muito mais a certa analogia perceptiva do que a uma semelhança entre o objeto e sua representação – este é o primeiro aspecto por ela apontado em relação a qualquer interpretação de imagens (visuais e audiovisuais), incluindo o lugar ocupado por seus analistas.

[...] na realidade, uma imagem, assim como o mundo, é indefinidamente descritível: das formas às cores, passando pela textura, pelo traço, pelas gradações, pela matéria pictórica ou fotográfica, até as moléculas ou átomos. O simples fato de designar unidades, de recortar a mensagem em

104 Ibid, p. 24, tradução nossa 105 Ibidem 106 Ibid, p. 25, tradução nossa 136

unidades passíveis de denominação, remete ao nosso modo de percepção e de “recorte” do real em unidades culturais (JOLY, 1996, p. 73).

É importante lembrar que esta semióloga francesa foi influenciada pelo sociólogo, filósofo, semiólogo e crítico literário Roland Barthes, “um dos primeiros a optar pela utilização da imagem publicitária como campo de estudo para a então nascente semiologia da imagem”107 e que formalizou uma leitura simbólica da imagem publicitária, por meio de uma “retórica da conotação”, baseada na faculdade de provocar uma significação segunda a partir de uma significação primeira, de um signo pleno (JOLY, 1996). Para Barthes (1993, p. 97), os significados atribuídos à conotação “comunicam-se estreitamente com a cultura, o saber, a História”. Além disso, o autor dedicou uma parte de seus estudos retóricos aplicados ao discurso da moda em jornais de forma inovadora, na obra “Sistema da Moda”, publicada no Brasil em 1979. Nesta obra, ele aponta para um significado geral (correspondente, no plano retórico, à escrita de Moda108), que considerou como a “ideologia de moda”, ressaltando também as condições particulares de sua análise (dependentes do caráter original do significado retórico).

Consumir um sistema conotado (neste caso, o sistema de Moda), não é consumir signos, mas somente motivos, fins, imagens; decorre que o significado de conotação é, ao pé da letra, oculto (e não mais implícito); para desvendá-lo – isto é, em definitivo, para reconstituí-lo – não é mais possível apoiar-se sobre uma evidência imediata, partilhada pela massa dos usuários do sistema, como acontece para a “massa falante” do sistema lingüístico. (BARTHES, 1979, p. 218).

Pode-se dizer ainda que a retórica da conotação de Barthes é um “campo privilegiado de observação dos mecanismos de produção de sentido pela imagem, bem como da interação de signos plásticos, icônicos e lingüísticos em uma mensagem visual” (NOVELLI, 2009, p. 115). Desta forma, Joly (1996) propõe uma abordagem bastante fértil

107 Ibid, p. 71 108 Optei por manter a escrita da palavra “moda” em maiúsculo, conforme é tratada pelo autor no livro. 137 dos mecanismos de leitura ou interpretação das imagens, chamando a atenção para o fato de que toda análise deve servir a um “projeto”, para que viabilize sua orientação e permita elaborar sua metodologia da forma mais adequada possível. Segundo Joly (1996, p. 49), “definir o objetivo de uma análise é indispensável para instalar suas próprias ferramentas, lembrando-se que elas determinam grande parte do objeto da análise e suas conclusões”. Nesse sentido, pode-se dizer que o objetivo principal da tese guiou-me desde as etapas de seleção do corpus analisado (vinte edições de Vogue Paris e vinte edições de Vogue Brasil), passando logicamente pela metodologia de leitura de imagens aplicada em editoriais de moda. Embora tivesse consciência de que Martine Joly havia proposto uma leitura semiológica voltada para imagens publicitárias, optei mesmo assim pela aplicação de sua metodologia de análise (mensagem visual) porque de fato os editoriais de moda podem ser considerados como peças publicitárias, uma vez que são realizados não apenas para mostrar às leitoras de Vogue as últimas tendências da moda, mas principalmente para vender as marcas escolhidas para compor suas produções visuais. Portanto, pode-se dizer que editorias de moda são também produtos publicitários (embora não sejam considerados como anúncios publicitários). Outro aspecto apontado por Joly (1996) com relação à interpretação de imagens é a “descrição do anúncio”, pois somente através dela é possível realizar a distinção dos diversos tipos de mensagem que o compõem. Vimos que esta etapa foi igualmente citada como um dos níveis de leitura (denotação) identificados por Pirotte (2002), fazendo ainda parte da análise iconográfica abordada por Kossoy (2001). Aparentemente simples e evidente, a descrição é fundamental, pois segundo Joly (1996, p. 72), “constitui a transcodificação das percepções visuais para a linguagem verbal”.

A verbalização da mensagem visual manifesta processos de escolhas perceptivas e de reconhecimento que presidem sua interpretação. Essa passagem do “percebido” ao “nomeado”, essa transposição da fronteira que separa o visual do verbal é determinada nos dois sentidos109.

109 Ibidem 138

Além disso, a multiplicidade de materiais que articulam significações específicas para produzir uma mensagem global está diretamente relacionada com o fato de que a imagem “trança diferentes materiais entre si para constituir uma mensagem visual”110. É necessário então buscar certa unidade na reflexão sobre a interpretação, um passo significativo que permite passar do “plural ao singular, das imagens à imagem, das interpretações à interpretação” (JOLY 2002 apud THIÉBLEMONT-DOLLET, 2003, p. 2). Ainda conforme Thiéblemont- Dollet (2003), é desta forma que Joly (2002) passa por dois tipos de interpretação: intrínseca (a que evidencia elementos visíveis) e extrínseca (que produz significações não presentes).

[...] os objetos representados remetem ao costume de “fazer compras” em um certo tipo de sociedade; as cores e certos legumes remetem à idéia mais ou menos estereotipada da Itália; a composição, à tradição pictórica das “naturezas mortas”; a apresentação do anúncio, seu lugar na revista, à publicidade. Em outras palavras, além da mensagem literal ou denotada, evidenciada pela descrição, existe uma mensagem “simbólica” ou conotada, vinculada ao saber preexistente e compartilhado do anunciante e do leitor (JOLY, 1996, p. 75).

As ferramentas oferecidas por Joly (1996) são uteis tanto para a educação, quanto para a leitura e a interpretação de imagens, incitando o leitor a tomar consciência de que “existe uma parte essencial neste trabalho de descriptografia [décryptage] uma vez que, naturalmente, traz com ele mesmo uma cultura, aquisições e reflexos que lhe são próprios, e/ou coletivos” (THIÉBLEMONT-DOLLET, 2003, p. 2). Foi assim que as imagens dos editoriais de Vogue (Paris e Brasil) impulsionaram-me a interpretá-las a partir da relação por elas próprias sugeridas com determinados movimentos estilísticos, obras artísticas, produções cinematográficas e musicais, “fatos” históricos, exposições, biografias, reportagens especiais etc. A mensagem visual (veiculada por uma ou mais imagens) é constituída de três outras mensagens: “plástica”, “icônica” e “linguística”. Para Joly (1996), a análise de cada uma delas, bem como o estudo de sua interação, deverá permitir detectar a mensagem implícita

110 Ibid, p. 74 139 global. É importante ainda salientar que signos icônicos (figurativos) e os signos plásticos são signos distintos, embora ambos sejam considerados como signos visuais e complementares. Segundo Joly (1996), os principais elementos que podem compor uma “mensagem plástica” são: o suporte (papel, formato, página etc); as dimensões do anúncio, bem como de sua diagramação e do tipo de caracteres empregados; o quadro (limites físicos mais ou menos materializados por uma moldura, segundo épocas e estilos diferentes); o enquadramento (o “segundo” tamanho da imagem); o ângulo de tomada e da escolha da objetiva; a composição (geografia interior da mensagem visual); as formas (interpretação antropológica e cultural) e dimensões; as cores; a iluminação e a textura. Já quanto à “mensagem icônica”, Joly (1996, p. 104) revela que cada um dos signos icônicos (figurativos) está na imagem “por algo mais do que ele próprio, pelas conotações que evoca”. Assim, o caráter metonímico de tais signos deve ser levado em conta, pois geralmente só é possível visualizar partes de elementos que designam o “todo” por contiguidade, ou seja, por meio de um deslocamento de sentido organizado de determinada maneira. Nesse sentido, gestos e posturas fazem parte da mensagem icônica, uma vez que representações figurativas muitas vezes “colocam em cena personagens, e parte da interpretação da mensagem é, então, determinada pela cenografia que retoma posturas também culturalmente codificadas”111. Retomo, neste momento, Pirotte (2002, p. 32), para quem imagens visuais e representações mentais “se alimentam umas das outras e se confortam: elas se servem das mesmas fontes, compõem nosso imaginário cultural e se unem para influenciar nossos comportamentos”. Como bem salientou Joly (1996), a interpretação gerada pelos processos de conotação pode estar relacionada com o saber do espectador, variando de acordo com as significações mais ou menos diferentes, distinguindo-se ainda do puro reconhecimento dos motivos referentes à simples descrição verbal da imagem. Desta forma, a autora também reconhece o papel determinante que a “mensagem linguística” desempenha para a interpretação de uma imagem no seu conjunto, pois esta seria “particularmente polissêmica, isto é, poderia produzir muitas significações diferentes que a mensagem linguística deveria canalizar” (JOLY, 1996, p. 108). Para Joly (1996), um texto pode ter dois tipos de função em relação a uma imagem: ancoragem e revezamento. Tais funções foram

111 Ibid, p. 106 140 identificadas por Barthes, por meio do isolamento, no espaço de uma análise, da mensagem linguística, para posterior estudo da relação que ela poderia manter com a imagem e como ela orientaria sua leitura. Pode-se dizer que a ancoragem consiste em:

[...] deter essa ‘cadeia flutuante do sentido’ que a polissemia necessária da imagem geraria, designando ‘o nível correto de leitura’, qual dentre as diferentes interpretações solicitada por uma única imagem privilegiar. A imprensa oferece exemplos diários dessa função de ancoragem da mensagem lingüística, também chamada a ‘legenda’ da imagem. (JOLY, 1996, p. 109)

Já se um texto visasse uma substituição por parte da mensagem linguística em relação à imagem, este cumpriria a função de revezamento.

[...] se manifestaria quando a mensagem lingüística viesse suprir carências expressivas da imagem [...]. De fato, apesar da riqueza expressiva e comunicativa de uma mensagem puramente visual (...), há coisas impossíveis de dizer sem recorrer ao verbal. Assim, as indicações precisas de lugar ou de tempo, as indicações de duração, os pensamentos ou as palavras dos personagens112.

Embora a autora tenha identificado apenas duas funções textuais, pode-se dizer que há certa complexidade nos aspectos de uma mensagem linguística, que deve ser considerada desde a análise prévia da escritura, ou seja, da escolha da tipografia, da cor e dos caracteres, até mesmo a posterior análise de seus respectivos conteúdos linguísticos. Gostaria de salientar que, no quarto capítulo, procurei realizar as etapas indicadas por Martine Joly durante a interpretação imagética de cada editorial. Mas isso não significa que apresentei quadros e tabelas desenvolvidos, pois optei por uma apresentação escrita das análises realizadas, que na verdade são o resultado de contextos, descrições e mensagens plásticas, icônicas e linguísticas. Por meio de um processo de percepção e interpretação extremamente dinâmico, cada mensagem

112 Ibid, p. 110 141 visual foi sendo “desvendada” e apresentada gradualmente, conforme uma imagem de cada editorial abria-se como um leque para então cada editorial ser analisado em seu conjunto – facilitando assim a significação global de sua respectiva mensagem visual.

3.2 “MODOS DE VER”: QUANDO A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA SE FAZ IMAGEM...

Segundo John Berger (1972, p. 14), todas as imagens “corporizam um modo de ver”, mesmo uma fotografia:

As fotografias não são, como muitas vezes se pensa, um mero registro mecânico. Sempre que olhamos uma fotografia tomamos consciência, mesmo que vagamente, de que o fotógrafo seleccionou aquela vista de entre uma infinidade de outras vistas possíveis. Isto é verdade mesmo para o mais banal instantâneo de família. O modo de ver do fotógrafo reflecte-se na sua escolha do tema. O modo de ver do pintor reconstitui-se através das marcas que deixa na tela ou no papel. Todavia, embora todas as imagens corporizem um modo de ver, a nossa percepção e a nossa apreciação de uma imagem dependem também do nosso próprio modo de ver113.

Pode-se dizer que o “modo de ver” de Alexandre Liberman, diretor artístico de Vogue de 1943 a 1962, nos permite captar a grandeza estética e simbólica que a fotografia atingiu no universo deste periódico, quando afirmou: “a moda é o ornamento que decora a fotografia” (MARRA, 2008, p. 11). Como vimos no segundo capítulo da tese, Liberman foi responsável por uma mudança considerável na visão de mundo que Vogue estimulou a partir da década de 1940, na qual a moda vivia dentro da fotografia.Para Marra (2008), uma das dinâmicas mais interessantes que caracterizaram o percurso criativo do século XX deve certamente ser localizada na tensão bipolar que se gerou entre uma linha concentrada na imagem (bem representada pelo manufato pictórico) e uma linha que levou à exibição direta do real (com a utilização de

113 Ibidem 142 materiais autênticos ou recuperados e intervenções de comportamento realizadas pelos próprios artistas). A fotografia participou plenamente deste dinamismo, levando- nos a reconhecer a existência simultânea da fotografia de moda e de uma moda da fotografia. O primeiro caso, que mais interessa ao presente capítulo, abrange ainda dois aspectos fundamentais para a compreensão da transformação da própria moda em imagem. Um deles sinaliza que tal transformação é um fenômeno associado à renovação da moda em altíssima velocidade, no qual paradoxalmente a fotografia é uma espécie de “contribuição para a manutenção, a solidificação, para a sua superação de uma condição de vida que poderia, sem a contribuição da fotografia, correr o risco de parecer realmente instável demais, demasiado efêmera” (MARRA, 2008, p. 53). O outro aspecto sinaliza que a aplicação da fotografia na moda favorece a sua identificação mais concreta com o produto artístico, pois a moda fotografada “torna-se ícone, torna-se imagem, tende a assimilar- se, também formalmente, ao objeto artístico por excelência”114. Concordo com Marra (2008) quando afirma que no momento em que a moda se torna imagem, ela começa a manejar um código que pode ser lido como artístico, fruto de uma intenção de comunicar que passa notavelmente sobre um efeito “corpo”. Mas essa “leitura” faz parte do próprio desenvolvimento histórico da comunicação no setor da moda nos primeiros decênios do século XX, profundamente ligado a um público de elite (que desfrutava exclusivamente de publicações com imagens fotográficas). E, nesse sentido, a classe alta [branca] podia “conceder-se uma espécie de valor agregado, pois a comunicação fotográfica lhe oferecia a possibilidade de se espelhar [...] em um sonho, em um modelo a ser desejado” (MARRA, 2008, p. 66). Assim:

Toda essa estratégia encontrava na exibição do corpo um ponto de força imprescindível, porque é evidente que, inicialmente, o desejo só pode coincidir com o desejo erótico (...), de caráter sensório abrangente (...). É então evidente que, com o tempo, este erotismo difuso, presente na mensagem-moda, alargou-se e chegou a um público de massa, tanto que hoje as top models

114 Ibidem 143

representam somente a ponta de um desejo sexual já estendido a toda fotografia do setor115.

Nesse sentido, o conceito de violência simbólica desenvolvido por Bourdieu permite identificar outras formas de dominação (classista, sexual/de gênero) envolvidas na produção contínua do discurso dominante. Ou seja, como um leque que se abre a partir da dominação racial, a branquidade envolve um conjunto de experiências ordinárias e cotidianas que denunciam que “a ordem estabelecida tal como é, com suas hierarquias e suas desigualdades, não deve suscitar revolta ou revolução” (BOUAMAMA; CORMONT; FOTIA, 2012, p. 323). Tal particularidade interessou-me demasiadamente porque este tipo de violência se apoia sobre efeitos de autoridade e de legitimação, realizando-se “na e por meio de uma relação definida que cria a crença na legitimidade das palavras e das pessoas que as pronunciam e [ela] opera somente na medida em que aqueles que [a] sofrem reconhecem aqueles que a exercem” (BOURDIEU, 1992, p. 123). Esta violência consiste, portanto, em tornar naturais as representações e os valores dominantes – a doxa, quer dizer, o conjunto das opiniões comuns, das crenças estabelecidas, das ideias concebidas e das práticas sociais que são consideradas como normais, não devendo ser objeto de questionamento ou de discussão. Ela ocorre não pela crença “produzida”, mas pela crença em “desconsiderar” a diferença, os aspectos dos dominados. A violência simbólica permite fazer aparecer como “neutras” e “objetivas” as explicações e as análises das classes dominantes. Ou, dito de outra forma, ela constitui, ainda, “tudo o que é implantado como esforços para convencer os dominados que a ordem social, tal como ela é, é uma ordem social legítima, ou seja, muitas vezes, uma ordem social natural” (MAUGER, 2006). Trata-se justamente de uma violência que não é sempre percebida ou sentida imediatamente após ser sofrida. E, exatamente por isso, compreende-se porque ela é “gentil, insensível, invisível por suas próprias vítimas, exercida essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento e, no limite, da ignorância, do reconhecimento ou, no limite, do sentimento” (BOURDIEU, 1998, p. 7). Segundo Bouamama, Cormont e Fotia (2012), esta violência é produzida por todos os âmbitos que participam da socialização dos indivíduos de uma sociedade: a escola, o Estado, as religiões, a família,

115 Ibidem 144 as mídias e ainda os grupos de pares (amigos, colegas, vizinhos, etc.). Somada a outras formas de violência e de repressão materiais (físicas, econômicas, repressões policiais ou militares etc.), torna-se ainda uma “arma de detenção massiva”. É de fato uma potente forma de regulação das relações de forças e de sentidos entre os dominantes e os dominados.

A violência simbólica repousa na imposição de categorias de percepção do mundo, por grades de leituras e de explicação de fatos sociais, políticos, culturais, econômicos. O papel da linguagem e do simbólico é assim fundamental: nomear as coisas de tal ou tal modo, mais do que de outro, é fazer existir de outra forma, ou dissimular sua existência (BOUAMAMA; CORMONT; FOTIA, 2012, p. 324, tradução nossa).

Isso me levou a pensar sobre a imagem da mulher [branca], constantemente usada para legitimar o poder simbólico de Vogue, reproduzindo o ethos da branquidade enquanto violência simbólica. É interessante notar o quanto a mulher está quase sempre acompanhada pela “imagem que tem de si”, sendo educada, socializada e mesmo persuadida a “ver o que faz”. Neste processo, considera o “vigilante” e a “vigiada” que existe dentro dela como dois elementos constitutivos de sua própria identidade como mulher (BERGER, 1972). Já o homem, segundo Berger, vigia a mulher antes de tomar conta dela. Ou seja, o modo como ele a tratará é determinado pelo modo como ela aparece para ele, fato que exige controle e interiorização por parte da mulher: “a parte da mulher que constitui o vigilante trata a parte que constitui o vigiado de forma a dar aos outros o exemplo de como a sua totalidade gostaria de ser tratada” (BERGER, 1972, p. 50). E ainda: o tratamento exemplar de si por si é que constitui a aparência da mulher, definindo o que é ou não é “permitido” em sua presença. Portanto, os “modos de ver” de Berger são interessantes na medida em que chamam a atenção para o vigilante masculino da mulher dentro de si própria. E, por sua vez, “a vigiada” é feminina. Nesta perspectiva, a mulher “transforma-se a si própria em objecto – e muito especialmente num objecto visual: uma visão”116. Analisando os nus da pintura europeia em geral, Berger (1972, p. 58) afirma que o nu é uma forma de vestuário, na qual ser posto em

116 Ibid, p. 51 145 exibição é “apresentar a superfície da própria pele, o cabelo do próprio corpo, transformada num disfarce que, em tal situação, nunca pode ser tirado”117. Para ele:

O corpo [da mulher] está assim para ser apresentado ao homem que vê o quadro. O quadro foi concebido para atrair a sexualidade deste. Nada tem a ver com a sexualidade dela. (Aqui, como na tradição europeia em geral, a convenção de não pintar os pelos do corpo feminino contribui para a mesma finalidade. O cabelo está associado ao poder sexual, à paixão. A paixão sexual feminina tem de ser minimizada para que o espectador possa sentir que tem o monopólio dessa paixão). As mulheres existem para alimentar um apetite e não para terem apetites seus118.

Mesmo nos casos que a figura de um amante masculino é incluída em pinturas de provocação sexual, a atenção da mulher “só muito raramente aparece virada para ele. Muitas vezes, desvia o olhar, ou fixa-o num ponto fora do quadro, em direção àquele que considera o seu verdadeiro amante – o espectador-proprietário”119. Tal ideia de “espectador-proprietário” é interessante não somente porque surge da pressuposição de que o espectador “ideal” é masculino, confirmando o modo essencial de ver a mulher como objeto de uma relação desigual e inserida na cultura artística (pós)moderna ocidental. Ela converge justamente com o momento de banalidade do foco da percepção que se desvia dos olhos, da boca, das mãos e dos ombros para as zonas sexuais, cujas formas “sugerem um processo extremamente atraente mas muito simples”120, reforçando o mecanismo familiar e proverbial do sexo – no qual homem ou mulher são categorias sexuais primárias. Mas a imagem da mulher é produzida de fato somente pela figura do homem, apenas por ele? Considerando a maioria quase absoluta de fotógrafos homens e a presença das redatoras-chefes de Vogue, assim como de outras produtoras de moda entre eles durante a criação dos editoriais de moda

117 Ibidem 118 Ibid, p. 59 119 Ibid, p. 60 120 Ibid, p. 63 146 no período em questão [2001-2010], até que ponto as idealizações da mulher (positivas, negativas, “neutras” ou contraditórias) são o resultado de interpretações produzidas pelo homem, pela própria mulher ou pela cumplicidade entre ambos? Falando na figura da mulher, Octavio Ianni (2002 apud COSTA, 2002, p. 13) afirma que se trata de “mais uma criação da dialética de espelhos múltiplos, visíveis e invisíveis, que se reproduzem e se multiplicam desde lá longe” e por isso jamais será um processo de criação unilateral:

[...] as figuras e figurações da mulher e do homem não se explicam apenas pela dialética da identidade e da alteridade, mas também e necessariamente pela dialética, diversidade e desigualdade, reciprocidade e antagonismo, interação e contradição. Mas não simplesmente nesses termos, em abstrato; e sim na trama das relações sociais, no jogo das forças sociais. Em última instância, o que funda e determina essa complexa, intrincada e reiterada dialética de diversidades, hierarquias e desigualdades é o modo pelo qual se organizam, social e tecnicamente, o trabalho e a produção, o modo de participação de indivíduos e coletividades [...] sempre compreendendo a realidade e o imaginário, o contraponto presente e passado, a fabulação sobre o futuro121.

Segundo Costa (2002, p. 71), “uma mãe jovem e maternal, poderosa e atenta é o objeto da grande devoção barroca, homenageando uma divindade virgem e pura”, no contexto brasileiro do marianismo, culto originário da Idade Média, por volta do século XIV, responsável por uma imensa devoção à figura de Maria no Brasil por meio dessa tradição trazida com o colonialismo ibérico. A representação pictórica da mulher maternal, corpórea, virgem, digna, majestosa e gloriosa, ainda que nem sempre “branca”, estava ligada à significativa presença feminina na pintura barroca (Figura 29), que, por sua vez, encontrava explicação na própria situação hostil vivida pelo homem da colônia, “ameaçado por uma autoridade arbitrária e por

121 Ibid, p. 14-15 147 um destino que lhe reservava injustiças, doenças e morte. Nesse contexto, ele se sente desprotegido e fraco, necessitando de apoio e intercessão”122.

Figura 29: Imagem de Nossa Senhora da Assunção, forro da sacristia de igreja de Ouro Preto (MG). Fonte: Costa (2002, p. 182).

Tratava-se de um modelo de visão que funcionava como o lado inverso do espelho, fazendo com que “numa sociedade com poucas mulheres, quase todas índias ou escravas, muitas sem ascendência ou dote, os homens clamassem por suas inexistentes esposas e mães” (COSTA, 2002, p. 74). Cenas bíblicas e imagens idealizadas da devoção à Maria representaram a condição histórica, social e cultural da mulher na arte do século XVII, em pleno auge da fase de colonização brasileira:

Recatadas, as imagens tinham os olhos baixos, quando não os dirigiam ao observador; majestosas, apresentavam a cabeça coberta por coroa; amorosas, enlaçavam o menino Jesus com os braços, aproximando-se de sua face para beijá- lo. Desse modo, a imagem de Maria surgia nos tetos e laterais de altares e capelas entre nuvens,

122 Ibidem 148

anjos, flores e luzes. Uma figura radiosa que contrasta com as demais que povoam as cenas bíblicas com homens e mulheres torturados e decaídos, padecendo de imensos sofrimentos. É como deusa que a mulher faz sua entrada na arte brasileira, uma deusa de grandes poderes, homenageada como esperança de transformação das agruras em felicidade (COSTA, 2002, p. 76).

No século XIX, como veremos no próximo capítulo, o projeto de modernização do Brasil imposto pela monarquia portuguesa transferiu a capital do país para o Rio de Janeiro, promovendo algumas mudanças artísticas na forma de conceber a imagem da mulher [branca] na passagem do século, embora marcadas por resistências. A tentativa de aproximar a estética neoclássica francesa do processo político e econômico de formação da nação brasileira não obteve o efeito desejado pela Coroa portuguesa, mas acabou contribuindo para a transformação do gosto estético dos brasileiros. Cenas de costumes, nus artísticos e retratos estiveram entre os gêneros artísticos mais pintados no Brasil.

Na arte brasileira, vamos encontrar amplas e constantes manifestações de romantismo, aquele sentimento de valorização do caráter e da subjetividade ligado aos grandes ideais. Estado de espírito que animou as cruzadas, as viagens ultramarinas e a colonização e que foi acrescido da melancolia própria da cultura portuguesa, expressa em seu etos ao mesmo tempo utópico e messiânico. Esse romantismo humanista esteve presente no Barroco, nas demonstrações de fé, nas vocações e no culto mariano. Depois, manifestou- se nas cenas de costumes idealizadas do século XIX e, finalmente, no anseio modernista de valorização do nacional e nos retratos femininos (COSTA, 2002, p. 145).

As procissões campesinas de Pancetti eram românticas, assim como as sensuais mulatas de Di Cavalcanti (Figura 30) (COSTA, 2002). Modelo estético e estilo de vida, o Romantismo (coletivo e social) foi ainda um movimento artístico que liderou uma espécie de “jogo dialético” com o Realismo (personalista e individualista), no qual a 149 figura feminina tem, nesse universo simbólico, um espaço narrativo privilegiado.

Figura 30: Imagem da obra Cinco Moças de Guaratinguetá. Fonte: Di Cavalcanti (1930).

O retrato realista brasileiro, bem como outros gêneros pictóricos e outras representações da mulher neste período serão exploradas mais profundamente no quarto capítulo da tese, especificamente no que diz respeito à construção de imagens, discursos e narrativas de uma branquidade conservadora. Conforme Ianni (2002 apud COSTA, 2002), no contexto das diversas linguagens artísticas ocidentais dos últimos três séculos, estruturas narrativas e criações imagéticas se tornaram o resultado de uma seleção de elementos que constituíam determinadas realidades sociais (imaginárias inclusive), mesclando noções de tempo e espaço (passado e passado, próximo e remoto), formas de sociabilidade, tipos e mitos. Uma vez que a sensibilidade coletiva de uma elite [branca] é ditada, pode-se dizer que esta já foi afetada pelos meios técnicos de reprodução em série, visível no processo de aculturação latino- americana do imaginário cinematográfico norte-americano, por exemplo, pois qualquer modificação na estrutura das normas estéticas “deveria, necessariamente, se desdobrar em acomodação, já que não em ruptura da vida social” (ANTELO, 2004, p. 89). 150

Talvez por isso Gilberto Freyre e Jorge Amado sejam os “mais severos críticos de Mário de Andrade, referente central do movimento modernista”123. Esses pós-modernistas, incluindo a atitude satírica do “Grego mulato” Aleijadinho, pretenderam impacientemente atingir a expressão de um “Brasil extra-europeu ou ultra-europeu, e não apenas um simples eco colonial de uma filosofia de extração europeia”124.

Hoje o cinema é quem dá as mulheres fatais para o mundo. No século do coletivo as mulheres fatais são para todos. Marlene ou Greta Garbo não são fatais para um galã apenas. São fatais para o mundo todo, para milhares de homens, gente de cor branca, preta e amarela e mestiços também. Passaram-se os tempos em que a mulher era fatal com exclusividade para um. No Brasil há uma célebre: a Marquesa de Santos, que foi o tipo da mulher fatal. Pedro I teve exclusividade dela. No Peru a Marquesa teve uma precursora numa mestiça como ela. Essa mestiça é dona da história mais bonita da América Espanhola. Se chamava Micaela Villegas, mas ainda hoje todos falam dela como de La Perricholi, nome que lhe ficou (AMADO, 2001 apud ANTELO, 2004, p. 90).

Acredito que esta é uma das grandes facetas da globalização do tipo “americana” apontada por Hall (2013) no segundo capítulo, que nos leva a considerar a estreita relação entre a produção simbólica de imagens de mulheres e imaginário de massa:

A cultura de massa mundial está dominada pelos meios modernos de produção cultural e pela imagem que atravessa e reatravessa as fronteiras linguísticas bem mais facilmente e bem mais rapidamente que outrora, e que pode manter um discurso, sem a fronteira da língua, de uma maneira bem mais imediata. Ela está dominada por todas as maneiras nas quais as artes visuais e as artes gráficas participaram diretamente na reconstituição de uma vida popular, na reconstituição do divertimento e dos lazeres. Ela

123 Ibid, p. 93 124 Ibid, p. 92 151

está dominada pela televisão, pelo cinema e pelas imagens, o imaginário e os estilos da publicidade de massa (HALL, 2013, p. 38, tradução nossa).

À luz de uma ciência da interpretação, a própria trajetória desta pesquisa levou-me ao reconhecimento de um novo “paradigma estético” para além do individualismo, com base na afetividade, na empatia, na sobrecarga de sensações e experiências emocionais. A análise de toda esta dinâmica em curso passou pelo estilo e pela imagem, considerados vetores sociais deste novo paradigma (MAFFESOLI, 1995) no contexto da moda contemporânea ocidental. Uma investigação sobre a construção da branquidade em Vogue requer de fato uma interpretação histórica, sociológica, filosófica, antropológica, comunicacional e estética da representação social dos corpos [brancos] de mulheres125. É no complexo diálogo inter-racial que o corpo [branco] feminino entra em um infinito processo hierárquico de produção e fruição, oscilando estética e politicamente entre representação e simulação, visível e invisível, central e periférico (VILLAÇA, 2007). Assim, a violência simbólica imposta pela branquidade e associada historicamente a um imaginário específico – o das elites [brancas] – levou-me a analisar “valores de hierarquia e normatividade”, tal como ele se depreendia a partir de certas imagens emblemáticas, construídas a partir da esfera da branquidade construída pelo “espírito Vogue”, em diferentes contextos (brasileiro e francês). Nesse sentido, como bem definiu Bourdieu (2007, p. 11), “a disposição estética exigida pelas produções de um campo de produção que atingiu um elevado grau de autonomia é indissociável de uma competência cultural específica”. Antes de abordar as produções imagéticas de alguns fotógrafos de Vogue (Paris e Brasil), foi importante refletir brevemente sobre alguns aspectos relacionados à Estética, pois acredito que eles podem contribuir teórica e filosoficamente para o entendimento de tais produções ainda neste capítulo e mais notavelmente no próximo, pois muitas delas

125O uso plural da categoria “mulher” chama atenção para as mais diversas formas de opressão às mulheres – e, como possibilidades, as múltiplas formas de (re)criação. Esta categoria faz parte da própria trajetória do uso da categoria gênero na pesquisa histórica (PEDRO, 2007). Cabe ainda ressaltar que também farei uso da categoria gênero tanto como resultado de relações entre mulheres e mulheres e homens quanto para entender jogos performáticos nos quais identidades raciais, classistas e de gênero são vistas como efeitos discursivos. 152 estiveram sob o comando de Carine Roitfeld (Vogue Paris) e Patricia Carta (Vogue Brasil). Para Sánchez Vázquez (1999, p. 124), a existência estética de um corpo nos faz pensar “em uma realidade outra que, ao ser percebida, exige ser assumida como tal e não como puro engano e ilusão”. E não podemos esquecer que esta realidade “outra” está inserida em determinada cultura histórica, que “permite identificar, entre os elementos propostos ao olhar, todos os traços distintivos, e somente estes, referindo-os, de modo mais ou menos consciente, ao universo das possibilidades substituíveis” (BOURDIEU, 2007, p. 11). Tal competência distintiva é, portanto, necessariamente histórica. Sabemos que Bourdieu ressaltou, em seus escritos, que os princípios de escolha são “incorporados” e se tornam posturas, disposições do corpo, bem como valores são gestos, maneiras de se manter em pé, de caminhar, de falar. Ou seja, a força de determinado ethos está justamente no fato de que ele é uma moral que se tornou hexis, gesto, postura. Gostaria de ressaltar que o saber estético se ocupa também do não-artístico e, desta forma, o conceito mais aberto de Estética proposto por Sánchez Vázquez (1999, p. 47) contribuiu para a investigação estética da branquidade, em diferentes contextos de uma mesma realidade complexa: “Estética é a ciência de um modo específico de apropriação da realidade, vinculado a outros modos de apropriação humana do mundo e com as condições históricas, sociais e culturais em que ocorre”. Assim:

O caráter científico da Estética se manifesta também no que seus conceitos e proposições articulam logicamente, e no que seus problemas subordinam e condicionam entre si, formando um sistema. Mas como a realidade que se pretende explicar se desenvolve historicamente e está sujeita ao constante movimento e à mudança, seu caráter sistemático há de ser entendido em um sentido aberto. Como demonstra a história do pensamento estético, os conceitos fechados acerca do estético – o belo, a arte, a estrutura da obra artística, as relações entre a arte e a moral ou entre a arte e a política – limitam ou anulam a possibilidade de captar os fenômenos estéticos e 153

artísticos em toda a sua diversidade e complexidade126.

Percebi, ao longo desta pesquisa, o quanto a própria produção da tese esteve ligada a uma investigação da esfera da “produção de si mesmo” (PRECIOSA, 2005, p. 52), uma perspectiva por meio da qual fui descolada de meu estado mais comum diante de experiências estéticas, refletindo sobre minha própria condição [branca] de existência. Partindo de uma concepção mais ampla de estilo, reveladora de toda a complexidade social de uma época, tradutora de seu “estado de espírito”, considero a força da imagem como vínculo social, elemento essencial em toda estruturação social. A imagem coletiva, que investe em um lugar e dinamiza o espaço, possui uma função de matriz.

3.3 OS FOTÓGRAFOS DE VOGUE

Pode-se dizer que a fotografia de moda impulsionou, no decorrer do século XX, a criação de uma nova concepção de mundo, a partir do elo entre o desenvolvimento da história da arte e da própria fotografia. Desta forma, a relação entre as artes visuais e a moda não foi mera coincidência, sendo representada notavelmente pela fotografia. Marcados no tempo e no espaço, muitos registros fotográficos de Vogue ajudaram a construir de fato a história deste periódico, contribuindo para que a imagem de moda fosse capaz de se manifestar fora de um campo específico rigorosamente delimitado (MARRA, 2008). Abordo neste tópico da tese os “modos de ver” de Baron Adolf de Meyer, Edward Steichen, George Hoyningen-Huene, Horst P. Horst, Erwin Blumenfeld, Cecil Beaton, Richard Avedon, Irving Penn, David Bailey, Helmut Newton, Bruce Weber, Peter Lindbergh, Steven Meisel, Inez van Lamsweerde & Vinnodh Matadin, Mario Testino, Patrick Demarchelier, Miro e Jacques Dequeker. Particularmente, os quatro últimos foram escolhidos por serem fotógrafos colaboradores de muitas edições referentes ao corpus desta pesquisa, nas versões francesa e brasileira de Vogue – e por isso apresento especificamente imagens de editoriais por eles fotografados no período entre 2001 e 2010. Em um sentido mais amplo, veremos que muitos deles favoreceram a reprodução de um poder simbólico associado ao ethos da

126 Ibid, p. 54 154 branquidade no campo da moda contemporânea, a partir de uma construção imagética e imaginária aristocrática [branca]. Esses fotógrafos integram um conjunto particular de profissionais legitimados no e pelo campo da moda, como salientei no capítulo anterior desta tese, contribuindo assim para a produção e a transmissão de um capital simbólico em Vogue. Segundo Marra (2008, p. 80), os primeiros fotógrafos dedicados à moda, “além de oferecerem diretamente material para as revistas, acabavam por passar imagens para serem copiadas e ‘intensificadas’ também para os desenhistas e gravadores”. Isto ocorreu com revistas francesas consideradas históricas, tais como La Mode Pratique (1891- 1939), Le Miroir des Modes (1897-1934) e La Femme Chez Elle (1899- 1938), que apresentavam fotogravuras em suas páginas. No final do século XIX, o “modo de ver” dos primeiros fotógrafos de moda descende basicamente do pictorialismo127. Baron Adolf de Meyer, fotógrafo de moda norte-americano, foi o grande responsável por transformar um simples documento em criação artística e suas criações foram consideradas “artísticas” por Vogue em 1914 (HALL-DUNCAN, 1978). Este estilo tornou-se a estética dominante da fotografia de moda nos primeiros anos do século XX, relacionada ao universo “íntimo e expressivo, tratando certos temas específicos em uma gama limitada de tonalidades e aplicando efeitos delicados de luz para criar uma atmosfera ao mesmo tempo difusa e evocadora” (CORN, 1972 apud HALL-DUNCAN, 1978, p. 32, tradução nossa). O efeito flou [desfocado], utilizado com maestria por de Meyer (Figura 31), era obtido de várias formas: “o fotógrafo podia muito rapidamente desregular o foco ou utilizar uma lente antiga, molhá-la para deixá-la problemática ou mesmo fazer tremer o aparelho durante o tempo da pose” (HALL-DUNCAN, 1978, p. 32, tradução nossa). É importante ressaltar que foi pouco utilizado pela foto de moda, que até então mostrava com precisão corte e detalhes das roupas.

127 Conceito que, em sua generalidade, “deveria indicar, acima de qualquer traço estilístico particular e específico, uma referência transversal da fotografia à pintura” (MARRA, 2008, p. 98). 155

Figura 31: O efeito flou aplicado à foto de Meyer para Vogue, setembro de 1918. Fonte: Hall-Duncan (1978, p. 37).

Ao contornar os perfis de suas modelos contra a luz [contre-jour], de Meyer criava uma espécie de aureola luminosa romântica que, construída também por outras técnicas de iluminação, parecia dar vida ao gosto pela encenação do fotógrafo. E, mesmo que seu flou artístico (Figura 31) estivesse em oposição à clareza e à precisão amadas por Nast, de Meyer passou a fotografar para Vogue, obtendo resultados surpreendentes (HALL-DUNCAN, 1978). Este estilo sobreviveu praticamente até meados da década de 1920 e se caracterizou como “o reflexo de um mundo descuidado e ocioso” (Hall-Duncan, 1978, p. 43, tradução nossa), sendo a expressão de sua época. Pode-se dizer que o “modo de ver” deste fotógrafo anunciou uma primeira afirmação da sensibilidade do século XX no campo da moda, cedendo lugar à geometria do modernismo fotográfico, mais precisamente com a chegada de Edward Steichen, como ressaltou Hall-Duncan (1978). Em 1923, Condé Nast substituiu de Meyer por Steichen, que ocupou o cargo de chefe de fotografia da Vogue. Este último passou a se inspirar no então fervilhante universo das artes decorativas, interessando-se mais precisamente pelo estilo Art Déco (HALL- DUNCAN, 1978) (Figura 32). Eram os ecos da cultura contemporânea, “desde as formas mecânicas da vida urbana até um novo tipo de mulher, 156 liberada, esportiva e plena de audácia”, como escreve Hall-Duncan (1978, p. 49).

Figura 32: Vestido Art Déco fotografado por Steichen para Vogue, junho de 1925. Fonte: Hall-Duncan (1978, p. 44).

Depois do charme romântico produzido por de Meyer, há evidentes mudanças nos critérios de beleza feminina, que passavam a ser representados pela figura da mulher moderna, mais chique do que necessariamente bela – como era inclusive o caso de Marion Morehouse, a modelo favorita de Steichen, que “encarnava” o chic (HALL-DUNCAN, 1978). Condé Nast chegou a afirmar para Steichen que “cada mulher das fotos de de Meyer assemelhava-se a uma modelo. Você faz com que cada modelo se assemelhe a uma mulher” (SNOW; ASWELL, 1962 apud HALL-DUNCAN, 1978, p. 53-54, tradução nossa). Tais palavras pareciam anunciar discursivamente que a fotografia de moda se aproximaria de fato de um maior grau de realismo (e de surrealismo). O gosto pelo jogo entre manequins e modelos vivos já fora manifestado por Steichen, tornando-se mais intenso na fotografia de moda pelas lentes de George Hoyningen-Huene (HALL-DUNCAN, 1978). Este último atuou em Vogue Paris e também realizou uma série 157 de “cenas de praia” na década de 1930 para este periódico, com o objetivo de vender maiôs de banho e trajes esportivos (Figura 33). Seu ambíguo “modo de ver” revela um interesse tanto pelo real quanto pelo ideal, talvez por isso em muitas de suas produções há certo rigor na composição e na visão um pouco surrealista do espaço, mas também há uma concepção de beleza feminina bastante influenciada pelo ideal estético da antiguidade clássica grega, como apontou Hall- Duncan (1978). Seu estilo baseava-se, portanto, em uma ideia de beleza antiga, mas transposta para os tempos modernos.

Figura 33: Destaque para a decoração limpa, na qual detalhes e acessórios supérfluos foram eliminados por Hoyningen-Huene para Vogue, julho de 1930. Fonte: Hall-Duncan (1978, p. 61).

Outro fotógrafo que trabalhou para Vogue e pode ser visto hoje como modernista é Horst P. Horst, uma vez que foi discípulo de Hoyningen-Huene, posando inclusive para ele como modelo em muitas de suas fotos. Mas, a partir de 1935, Horst começa a imprimir em suas fotografias de moda um estilo mais teatral (Figura 34), dotado de certa dose de humor, obtido principalmente pela técnica do trompe-l’oeil – por fotomontagem (espécie de colagem) ou ainda pelo emprego de um 158 complexo sistema de espelhos que (re) duplicavam várias vezes a mesma imagem (HALL-DUNCAN, 1978).

Figura 34: O efeito trompe-l’oeil de Horst para Vogue, novembro de 1939. Fonte: Hall-Duncan (1978, p. 67).

Como vimos, houve na fotografia de moda um crescente interesse pelo clima artístico de Paris, notavelmente a partir da década de 1930. Festas privadas, espetáculos esplêndidos da alta sociedade [branca] em hotéis mobiliados suntuosamente, pessoas que começavam a aproveitar uma renascente prosperidade nacional eram indícios de que o período pós-guerra estaria trazendo com ele uma nova década, construída com base em um “hedonismo elegante e aristocrático”, como bem definiu Hall-Duncan (1978, p. 84, tradução nossa). Neste contexto, toda a vitalidade atribuída à fotografia de moda passou pelas lentes de fotógrafos como Man-Ray, Erwin Blumenfeld e Cecil Beaton – considerados mestres do fantástico (HALL-DUNCAN, 1978; MARRA, 2008). O primeiro deles dedicou boa parte de sua carreira à revista norte-americana Harper’s Bazaar. Já Blumenfeld, sucessor de Man-Ray nesta mesma revista, realizou ainda fotografias para Vogue e Votre Beauté durante sua atuação profissional em Paris. Pode-se dizer que Blumenfeld utilizava toda a habilidade técnica possível para conseguir os efeitos desejados em suas produções, que incluíam “solarização, sobreimpressão, combinação de imagens 159 positivas e negativas, sanduíche de diapositivos a cores e mesmo secagem do negativo húmido no refrigerador para obter uma cristalização” (HALL-DUNCAN, 1978, p. 88, tradução nossa). Em 1939, Blumenfeld fotografou para a Vogue francesa uma imagem que foi considerada como “uma das mais extraordinárias fotos de moda jamais feitas”128 (Figura 35). Mais precisamente porque surge como resultado da inversão e da justaposição sobre a mesma prova negativa e positiva, a partir das quais Blumenfeld atinge o objetivo altamente perseguido: a criação de uma “composição de grande beleza”129.

Figura 35: A modelo Lisa Fonssagrives posa para Blumenfeld registrar a emblemática fotografia de moda para Vogue, maio de 1939. Fonte: Hall-Duncan (1978, p. 92).

Trata-se de um bom exemplo de como as fotos de Blumenfeld se faziam notáveis por sua capacidade de surpreender visualmente, fruto de técnicas de transformação da imagem, tais como a descoloração, a saturação de cores e o efeito chatoyant [cintilante] em turquesa. Mas apesar de tantas intervenções criativas, este fotógrafo não foi totalmente

128 Ibid, p. 92 129 Ibidem 160 influenciado pelo surrealismo, mesmo com a excêntrica exposição internacional do Surrealismo ocorrida em Paris no ano de 1938. Muitas influências surrealistas foram sabiamente apropriadas pela fotografia de moda:

A fotografia de moda pinçava no surrealismo o que podia lhe servir – quer dizer o fantástico, o mistério, o onirismo –, rejeitando todo lado brutal e inquietante. Os aspectos humorísticos e excêntricos do surrealismo eram particularmente adaptáveis às formas de expressão como a moda e a decoração de interior; isso faz o divã de couro vermelho de Salvador Dali parecer dois gigantescos lábios, ou o chapéu da modelista Elsa Schiaparelli em forma de sapato (HALL- DUNCAN, 1978, p. 92, tradução nossa).

Pode-se dizer que, na década de 1930, Cecil Beaton foi o fotógrafo de maior expressão em termos de integração das artes com a obra fotográfica, inspirando-se ecleticamente nos universos do retrato inglês, da pintura Renascentista, do teatro contemporâneo, dos filmes de Hollywood, do surrealismo e da decoração no estilo vitoriano (HALL- DUNCAN, 1978). Mas todas essas fontes artísticas e influências estéticas pareciam refletir menos no resultado extravagante de suas produções do que “seus interesses mundanos pessoais e o clima de sua época” (CAPOTE, 1968 apud HALL-DUNCAN, 1978, p. 108, tradução nossa). O que talvez tenha sido mais característico na fotografia de moda de Beaton seja justamente o estilo de mise en scène [encenação] (Figura 36), percebido pelo “esplendor barroco sobrecarregado” (HALL- DUNCAN, 1978, p. 111, tradução nossa).

161

Figura 36: Encenação de Mary Taylor com um vestido Chanel, registrada por Beaton para Vogue, maio de 1935. Fonte: Hall-Duncan (1978, p. 116).

Mas é importante salientar que seu “modo de ver” a figura da mulher nem sempre esteve em sintonia com as exigências comerciais de Vogue, que passava a impor-lhe, a partir de 1935, uma foto menos glamourosa (e artificial) e mais charmosa [photo de charme]. Para ele, parecia impossível apresentar as modelos nas “atitudes lânguidas habituais, [...] aquelas da elegância” (BEATON, n.d., apud HALL- DUNCAN, 1978, p. 114, tradução nossa), pois as preferia como mulheres do mundo, e não manequins. Beaton foi convocado para uma reunião de urgência com a direção de Vogue, tendo que se explicar: “Por que eu havia dado às minhas modelos um visual tão pouco distintivo? Estaria buscando me divertir à custa da revista? Eu replicava que, para mim, de toda forma, o tempo das afetações acabava” (BEATON, n.d., apud HALL-DUNCAN, 1978, p. 114, tradução nossa). Segundo Hall-Duncan (1978), poderíamos aproximar as fotos de moda de Beaton das fotos de Guy Bourdin tiradas nos anos 1970, sob o ponto de vista extremamente “não-realista”, exemplificadas pelo uso combinado de peças decorativas decréptas ou ambientes deprimentes com roupas novas e caras – o que me remeteu exatamente ao aspecto que a consagrada fotógrafa de moda Dominique Jsserman levantou 162 sobre Vogue no documentário La machine mode em 1994, citado no segundo capítulo desta tese. Também no segundo capítulo desta tese, vimos que foi o diretor artístico Alexandre Liberman quem trouxe o fotógrafo norte-americano Richard Avedon para Vogue, ainda na década de 1940. Na época, o jovem e inspirado fotógrafo propôs uma nova beleza feminina, que passou a significar “alegria de viver”; tratava-se de uma atitude impulsionada por criadores norte-americanos, que viam em seu desenho de moda e em sua produção industrial uma excelente oportunidade para divulgar as criações em imagens fotográficas de moda, notavelmente após a Segunda Guerra Mundial. O “modo de ver” a mulher no período pós-guerra, manifestado por Avedon, estava intimamente ligado à construção de uma narrativa cinematográfica e de maneira improvisada, descontraída, exuberante. Conforme Hall-Duncan (1978, p. 136, tradução nossa) apontou: “É sua genialidade de dramaturgo fotográfico que caracteriza as melhores imagens de Avedon dos anos cinquenta. Suas fotos ilustram uma vida real, mas extremamente fascinante”. Como exemplo, vimos a imagem da misteriosa Dovima usando um vestido Dior entre os elefantes (Figura 20). O reconhecido talento deste fotógrafo fez com que ele ficasse encarregado de fotografar as coleções francesas de moda ao longo da década de 1950, fato que lhe permitiu evoluir profissionalmente por meio da aquisição de um apurado senso de sofisticação – associado simbolicamente ao “charme parisiense”. Pode-se dizer que a duração desta colaboração, a multiplicidade de estilos nos quais ele trabalhava, bem como a boa relação que tinha com as mulheres fotografadas foram certamente importantes indicativos de seu sucesso, sem precedentes como afirmou Hall-Duncan (1978). Sobre esta última questão, a escolha da modelo era fundamental para Avedon, que procurava às vezes “concentrar seu pensamento criador” (SARGEANT, 1958 apud HALL-DUNCAN, 1978, p. 139, tradução nossa) sobre uma única jovem. Nesse sentido, gostaria de ressaltar que a valorização de momentos cruciais e emocionais do universo feminino foi justamente a marca que ele imprimiu em suas fotografias de moda: não tanto a mulher feliz e bem vestida fazia parte da visão de beleza por ele produzida, mas sim “uma percepção reveladora de uma alma feminina confrontada com uma situação que implicasse ação ou paixão”130.

130 Ibidem 163

Em 1965, Avedon começa a trabalhar para Vogue, colaborando com o grupo Condé Nast por cerca de vinte e cinco anos. Paralelamente, assinou campanhas publicitárias para as marcas , e Revlon131. Foi ainda na década de 1960 que o fotógrafo passou a priorizar trabalhos em estúdio, substituindo a iluminação romântica pela “luz dura, implacável do projetor” (HALL-DUNCAN, 1978, p. 140, tradução nossa) e, mesmo que tenha procurado manter o movimento e a vitalidade de suas primeiras obras, acabou desenvolvendo um novo gênero de fotografia de estúdio (Figura 37). Ainda segundo Hall-Duncan (1978, p. 140, tradução nossa), “sobre um fundo completamente branco, a modelo corre, salta, voa e ri. Avedon foi o primeiro a combinar a tradição estática do estúdio dos anos trinta com o realismo exuberante das fotos de exterior de Munkacsi”132.

Figura 37: A espontânea Veruschka foi uma das mulheres escolhidas para a fotografia de moda de Avedon, 1972. Fonte: Hall-Duncan (1978, p. 140-141).

131 In: http://www.vogue.fr/thevoguelist/richard-avedon/253 132 Ibidem 164

Pode-se dizer que ele desenvolveu uma abordagem original da fotografia de moda, na qual as modelos estão sempre em movimento, com rostos bastante expressivos; outra particularidade que o distingue são os grandes formatos de suas fotografias, chegando muitas delas a atingir um metro de altura133. Havia, em Avedon, uma espécie de desejo por nulle part [nenhum lugar] que, conforme as palavras de Hall-Duncan (1978, p. 140, tradução nossa), “refletia a percepção que Avedon tinha de seu próprio universo, limitado ao interior de seu estúdio e aos corredores do metrô”. Assim, o novo gênero da fotografia de moda retratava também um novo “modo de ver” a construção da feminilidade, por meio de um movimento estético notavelmente norte-americano que, de certa forma, contribuía para a desconstrução das relações de gênero na década de 1970, pois esta estética antecipou o estilo minimalista do início do século XX, estando associada geralmente à androginia, como vimos no editorial Noir Blanc (Figuras 11 e 13), por exemplo. Ao lado de Richard Avedon, o fotógrafo Irving Penn iria dominar a fotografia de moda no período pós-guerra, por mais de duas décadas. É interessante ressaltar que Penn possuía um “modo de ver” bastante diferente do primeiro, resultante de uma elegância natural, a partir da qual traduzia visualmente valores de “monumentalidade, clareza formal e veracidade tranquila” (HALL-DUNCAN, 1978, p. 144, tradução nossa) por meio de um estilo suntuoso. O refinamento e a maestria atribuídos a este fotógrafo-retratista podiam de fato ser vistos já nas qualidades formais (plásticas) de suas fotografias, ou seja, no emprego da linha, do volume, da silhueta (Figura 38). Por meio de uma simplicidade apenas aparente, produzia fotografias de mulheres apresentando vestidos, fazendo tanto a iluminação quanto as poses graciosas parecerem naturais, além de cada objeto uma “forma abstrata complexa”134.

133 In: http://www.vogue.fr/thevoguelist/richard-avedon/253 134 Ibidem 165

Figura 38: A elegância do vestido de Arlequim e de

Lisa Fonssagrives-Penn para Vogue, abril de 1950. Fonte: Hall-Duncan (1978, p. 153).

Nota-se que a elegância impecável produzida por Penn foi construída plástica e iconicamente não somente por clássicos vestidos e casacos dos anos cinquenta, mas ainda por mulheres [brancas] imaginadas, para quem roupas sofisticadas eram criadas.

As modelos de Penn são sedutoras porque essas jovens mulheres possuem plenamente consciência de sua feminilidade, mas não há nelas nenhum traço deste erotismo virulento ou desta inquietude íntima que aparecerão na fotografia de moda dos anos setenta (HALL-DUNCAN, 1978, p. 154, tradução nossa).

Mas, independentemente de Richard Avedon e Irvin Penn continuarem sendo grandes exemplos para outros fotógrafos de Vogue durante as últimas décadas do último século, o clima de agitação da década de 1960 trouxe para a fotografia de moda temas mais exóticos ou ligados a problemas sociais. Já confore Hall-Duncan (1978), A Alta Costura começava a apresentar traços de influências diversas, desde o 166 estilo “da rua” até o movimento de liberação das mulheres, ou ainda o programa espacial e a Pop Art. Também na década de 1970, fotógrafos como David Bailey, Hiro, Bob Richardson, William Klein, Helmut Newton e Guy Bourdin produziram editoriais de moda para versões de Vogue de diversos países (MARRA, 2008). Novos pontos de vista impulsionaram novas formas de expressão do corpo, a partir das quais jovens fotógrafos, sobretudo norte-americanos e ingleses, captavam sinais e esquemas classificatórios do capital cultural, manifestados na forma do corpo: “altura, peso, postura, andar, conduta, tom de voz, estilo de falar, senso de desembaraço ou desconforto em relação ao próprio corpo” (VILLAÇA, 2010, p. 161). Assim, modelos como a já citada Veruschka (Figura 37), bem como Penelope Tree e Twiggy foram consideradas como ícones da nova moda porque rompiam esteticamente com as normas convencionais – adotadas por fotógrafos da primeira metade do século XX.

Veruschka, uma loira de aproximadamente 1,90 m, representada pelo fotógrafo italiamo Rubartelli em uma série de clichês celebres onde, por uma maquiagem no rosto e no corpo, ela se transforma em diferentes animais selvagens. Essas fotos não expressam apenas certo magnetismo animal e uma sexualidade agressiva, elas respondem também a este sonho de transformação sempre potente na fotografia de moda. Outras modelos foram também surpreendentes; Penelope Tree depila inteiramente as sobrancelhas, o que lhe dava um ar de criatura extra-terrestre. A adolescente inglesa Twiggy era de uma magreza esquelética, enquanto Donyale Luna, uma negra muito bela, representava o próprio exotismo (HALL- DUNCAN, 1978, p. 158, tradução nossa).

Londres apresentava-se notavelmente como o centro de transformação da moda, em torno de um mercado mais democrático, provocador, dominado pela cultura dos jovens. Nesse contexto, a fotografia de moda contribuía fortemente para dar maior impressão de que tudo se passava em Londres, contando com um trio conhecido como Terrible Three: David Bailey, Terence Donovan e Brian Duffy – responsáveis por estabelecer um elo entre a fotografia de moda e este 167

“estilo de vida livre, trepidante e desenvolto que desafiava todas as convenções”135 (Figura 39). Segundo Bailey, tirar fotos de moda era “sem sombra de dúvida qualquer coisa de sexual. Há apenas o aparelho entre você e a garota. Um falo em tripé” (WALKER, 1974 apud HALL-DUNCAN, 1978, p. 161, tradução nossa). O ousado fotógrafo, que comparava a máquina ao pênis, inspirou o emblemático filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni, no qual David Hemmings interpreta um fotógrafo de moda que, em uma cena bastante conhecida, ajoelha-se e “monta” sobre Veruschka, “enquanto a incita a contorcer-se e a fotografa, com explícita alusão ao ato sexual” (MARRA, 2008, p. 155). Embora Bailey não seja um dos fotógrafos que trabalharam para Vogue no primeiro decênio do atual século, seu “modo de ver” não poderia ser esquecido, pois esteve em sintonia com a revolução de comportamentos sexuais que ele próprio procurou transferir para a fotografia de moda – assim como Bourdin, como vimos no segundo capítulo desta tese.

Figura 39: Foto realizada por David Bailey para Vogue inglesa, fevereiro de 1974. Fonte: Hall-Duncan (1978, p. 160).

Bailey foi considerado um dos “fotógrafos-heróis” da década de 1960, fazendo sua primeira capa da edição inglesa de Vogue em 1961, segundo Hall-Duncan (1978).

135 Ibid, p. 161 168

Como já tinha acontecido com outros artistas, Bailey não se limita a publicar na revista do grupo Nast somente fotografias de moda, mas também retratos dos protagonistas, mais ou menos famosos, da Londres pop. Essa atividade de retratista confluiu, entre 1964 e 1965, para uma coleção de fotografias com o título David Bailey’s Box of Pin-Ups. A iniciativa causou grande escândalo, porque nas 37 fotografias tecnicamente uniformes, com o sujeito isolado sobre um fundo branco, Bailey tinha reunido personalidades socialmente muito distantes entre si, como, por exemplo, os irmãos Kray, conhecidos bandidos da época e lorde Snowdon, marido da princesa Margaret. Era esse, com efeito, o espírito mais autêntico do pop: a massificação indistinta do gosto, e, portanto, das imagens, a ponto de superar, sem embaraços, aqueles critérios de diferenciação social que tinham ate então caracterizado os comportamentos culturais dos quais a moda era um espelho (MARRA, 2008, p. 155-156).

Em 1975, o fotógrafo australiano Helmut Newton realiza sua primeira exposição em uma galeria parisiense e, desde então, sua presença cresce em exposições privadas com públicos de grande prestígio. Pode-se dizer que Newton consagra a cultura fotográfica dos anos 1980 trabalhando para Vogue, na qual a “componente sexual confirma, e até mesmo reforça, seu papel nos enredos das várias situações apresentadas, mas, coisa totalmente nova, a mulher em vez de apresentar o langor e a doçura típicos de quem continua a representar o papel de presa, mostra-se agora dominadora” (MARRA, 2008, p. 172). Pode-se dizer que Newton exerceu uma forte influência conceitual no que diz respeito à concepção de feminilidade adotada apresentada por Carine Roitfeld em Vogue Paris, embora ela nunca tenha trabalhado com ele. Segundo Marra (2008, p. 173), é evidente que as perversões e o erotismo de Newton “são fundamentalmente modelados sobre o mais clássico dos imaginários masculinos”, mas suas heroínas parecem jogar estratégica e conscientemente. Veremos, no próximo capítulo da tese, que Roitfeld foi de fato considerada uma “mulher Newtoniana”. O abuso dos estereótipos, a exibição provocante de papéis excessivos e os comportamentos exagerados fazem parte do “modo de ver” a figura da mulher triunfante em Vogue (Figura 40), bem como de 169 uma dimensão liberada da sexualidade, a partir da qual se pode sair e entrar “quando bem se quer” (MARRA, 2008, p. 173). Para Newton, erotismo e pornografia não poderiam ser vistos como distintos e, de certa forma, a recorrência quase teatral de modelos sexuais hipercodificados foi o novo espírito da década de 1980 – e parece ainda ser nas décadas seguintes.

Sua originalidade consiste justamente em levar ao limite aquilo que de algum modo já está codificado, tanto que os ingredientes utilizados são os mais batidos possíveis em matéria de perversão: voyeurismo, fetichismo, sadomasoquismo e homossexualidade feminina, tudo apresentado em doses maciças, inebriantes, definitivamente acima da média (MARRA, 2008, p. 173).

O mais interessante em suas fotografias de moda é que ele deixava ao espectador tanto a interrogação quanto a fantasia sobre o que era mostrado. Como bem definiu Marra (2008, p. 176), uma sexualidade “à Newton” seria uma sexualidade “arrojada mas estereotipada, perversa mas hipercodificada”.

Figura 40: Foto realizada por Helmut Newton para Vogue Paris, maio de 1975. Fonte: Hall-Duncan (1978, p. 203).

170

Luxo, luxúria, dinheiro, poder, riqueza e fantasias sexuais refletem a visão de mundo das últimas décadas de um passado recente. E, no foco deste espetáculo, o corpo carnal. Pode-se dizer que as escolhas de Newton estavam em sintonia com a ideia de “materialidade” corpórea presente nas imagens de moda dos anos 1980, a partir da qual uma crescente artificialidade era construída.

O que se exibe é na verdade uma corporeidade rigorosamente plasmada por sofisticados cuidados estéticos e, sobretudo, por uma frequência assídua, e até maníaca, à academia de ginástica. Newton mostra-se um genial precursor de todo esse clima, porque, já no fim dos anos 1970, suas modelos interpretam uma corporeidade claramente alinhada com a fronteira do artificial. Os corpos aparecem, na sua álgida perfeição, tão artificiais que parecem biônicos, produtos impecáveis de laboratório portadores de uma nova estética pós-natural. [...] Newton intervém acrescentando próteses, colares ortopédicos, gessos, corpetes de couro, em suma, toda uma série de acréscimos e de acessórios capazes de desencadear uma nova e provocante sexualidade (MARRA, 2008, p. 175).

Inspirado pela “provocação genial” de Guy Bourdin (Figura 22), conforme vimos no segundo capítulo desta tese, Newton foi considerado o “mestre do fetichismo”, passando a adotar uma linguagem narrativa fílmica para contar histórias fragmentadas. Mas, tanto no caso de Newton quanto de Bourdin e mesmo de Bailey, não é possível afirmar categoricamente se esses fotógrafos estavam de fato preocupados com os privilégios da dominação masculina (e por isso começaram a propor certa desconstrução sexual e de gênero) ou se souberam manter certa distância irônica em relação aos temas escolhidos (notavelmente a sexualidade feminina) e associados a relações manifestadas a partir da violência simbólica imposta pela branquidade nas páginas de Vogue. Vale lembrar as possíveis variantes “fora da norma” que o próprio corpo oferece, sugeridas por Marra (2008, p. 166): “[...] da alusão ao homossexualismo às provocações derivadas de situações sadomasoquistas [...] julgadas pecaminosas, mas também um gosto difuso pelo sangue e pela violência, recorrendo a atmosferas sempre inquietantes e misteriosas”. As análises realizadas até aqui parecem 171 apontar a existência de uma linha tênue entre distintos “modos de ver” que, na verdade, reforçam a (in) visibilidade estruturada e normativa da dominação masculina, branca e colonizadora. Como bem salientou Berger (1972), existem presenças fabricadas ao longo do tempo para que homens e mulheres se passem “por aquilo que não são”, construídas para que aparentem um poder que se exerce sobre outros – e que por sua vez se deixa ser exercido.

[...] a presença de uma mulher exprime a sua atitude para consigo própria e define o que se lhe pode ou não pode fazer. A sua aparência manifesta-se nos gestos, na voz, nas opiniões, nas expressões, na roupa que usa, no ambiente que escolhe, no gosto – na verdade, não há nada que faça que não contribua para a sua aparência. A aparência, para uma mulher, é tão intrínseca à sua pessoa que os homens tendem a considerá-la uma emanação pessoal, uma espécie de calor, um aroma ou uma aura (BERGER, 1972, p. 50).

Fotógrafos como Bruce Weber, Peter Lindbergh, Steven Meisel, Inez van Lamsweerde e Vinnodh Matadin atuaram em Vogue nas décadas de 1980 e 1990 (MARRA, 2008). Suas fotografias de moda podem ainda ajudar a entender como Vogue se apropria de discursos aparentemente ambíguos e associados ao corpo feminino para reproduzir dispositivos da distinção [branca] em um campo autônomo de produção artística e para naturalizar formas de dominação reconhecidas pela violência simbólica – na qual o homem é uma vítima relativa, como afirmou Bourdieu (LA SOCIOLOGIE..., 2001). Segundo Marra (2008, p. 177), na década de 1980 “os complexos rituais de cuidado com o corpo, que até aquele momento pareciam dizer respeito somente à mulher, agora interessam também ao homem”. Nesse sentido, pode-se dizer que a liberação da cultura gay se configurou socialmente como um fenômeno complexo, a partir do qual “o homem chega a infringir aqueles tabus que tinham regulado as manifestações de seu erotismo, aceitando, pelo menos, uma condição potencial de ambiguidade, que é prontamente registrada pela fotografia de moda”136. O fotógrafo norte-americano Bruce Weber foi um dos grandes responsáveis pela divulgação desta mudança cultural de gênero, impulsionado por uma espécie de “equilíbrio instável entre fórmulas de

136 Ibidem 172 erotismo”137. É importante ressaltar o quanto estas fórmulas eram ambíguas, podendo ser vistas em fotos de campanhas que Weber realizou para as marcas norte-americanas , Calvin Klein e Abercrombie & Fitch. A respeito das imagens produzidas por Weber, incluindo muitas edições de Vogue e produções cinematográficas, pode- se dizer que elas “vestem a moda toda de certa inocência made in USA”138 ao longo dos trinta anos de atuação, conforme divulgado no site da Vogue francesa. Uma breve pesquisa sobre seus trabalhos aponta a Flórida como uma das locações preferidas para fotos de moda feminina e de lifestyle [estilo de vida]. Em recente entrevista para a revista Flatt, o fotógrafo afirmou: “Eu realmente gosto da ideia de fazer um longa-metragem narrativo” (LESSA, 2012, p.1, tradução nossa). Salientando ainda a grande conexão entre o cinema e a moda no conjunto de sua obra, evidenciou a mútua influência desses universos em seu cotidiano. Nesse sentido, seu “modo de ver” a fotografia de moda é fruto e ao mesmo tempo alimenta determinado imaginário [branco] coletivo (Figura 41) típico de um período “completamente dominado pela fórmula da moda da fotografia” (MARRA, 2008, p. 183).

Figura 41: A inocência made in USA registrada em Islamorada (Flórida), por Bruce Weber para Vogue Editorial. Fonte: Weber (2013).

137 Ibid, p. 180 138 In: http://www.vogue.fr/thevoguelist/bruce-weber/108 173

Lessa (2012) aponta que a “combinação de sinceridade, capricho e um amor geral à vida” parecia inspirar os trabalhos de Weber. Assim, valores como simplicidade e conforto, que passavam a determinar novos estilos de vida no final do último século, foram revelados pelas lentes deste fotógrafo, que primava pela intimidade das experiências humanas. Vendendo a ideia de fotografia de moda como “fotografia total” (MARRA, 2008, p. 180), Weber propôs o fim da especificidade da fotografia de moda, acreditando na fotografia como prática comum da imagem. Segundo Marra (2008), este fotógrafo parece estar amparado por sua formação sentimental como um grande reservatório subjetivo. É como se a forte componente erótica de seus trabalhos estivesse ligada a uma melancolia perdida, mas reencontrada nas brincadeiras entre amigos (CELANT, 1996 apud MARRA, 2008). Portanto, o “modo de ver” deste fotógrafo revela a produção de um erotismo ambíguo, marcado tanto pela ideia de ingenuidade das relações amistosas entre homens e mulheres (por meio do uso constante da fotografia em preto e branco para eternizar os momentos vividos ou então pela presença de diversos modelos bastante jovens na mesma cena para reforçar o imaginário [branco] tribal) quanto pela “força da carne e dos músculos” (MARRA, 2008, p. 184), naturalizando hierarquias e desigualdades de raça/étnicas, sexuais/de gênero e classistas. Já o imaginário visual construído pelo fotógrafo polonês Peter Lindbergh era geralmente composto pela presença de instrumentos, maquinários e equipamentos, colocados estrategicamente em contraste com a “doce” presença da figura feminina (MARRA, 2008). Instalando- se no final da década de 1970 em Paris, Lindbergh trabalhou para edições italianas, inglesas, americanas, francesas e alemãs de Vogue ao longo das décadas de 1980 e 1990.

Sempre nas páginas da Vogue, e no mesmo ato, apresenta o mesmo comportamento, enquanto relaxa fumando ao lado dos equipamentos de iluminação de cena. Toda essa vocação que Lindbergh demonstra em relação àquilo que poderíamos chamar “uma fotografia dentro da fotografia”, também encontra uma explicação, talvez, no fato de que, depois de ter completado seus estudos de arte em Berlim e Düsseldorf, tenha dado seus primeiros passos no âmbito criativo como artista conceitual (MARRA, 2008, p. 200-201).

174

Este fotógrafo acreditava em uma espécie de “realismo ficcional”. Para ele, a fotografia apresentava um lado feminino que deveria ser colocado lado a lado com o aspecto técnico de sua própria produção (Figura 42). Exatamente por isso a ideia de construção de um evento fílmico o fascinava tanto, vista “por aquele espaço de trabalho no qual se prepara a filmagem, ou pela pausa que há entre uma tomada e outra”139.

Figura 42: O realismo ficcional de Peter Lindbergh para a Vogue inglesa, 1989. Fonte: Lindbergh (2012).

Martin Harrisson (1997, p. 2, tradução nossa), que escreve na introdução do livro Images of Women, de Lindbergh, identifica a marca pessoal do fotógrafo, pontuando aspectos que tornam sua assinatura imediatamente reconhecível: “cruamente dramática, singularmente poderosa e quase sempre nos tons sedutoramente ressonantes e profundamente saturados em preto-e-branco, por ele preferidos”.

Armado com este vocabulário, ele inventa em torno de suas modelos uma história; não uma história no sentido convencional, com um golpe

139 Ibid, p. 200 175

narrativo ou um enredo logicamente desenvolvido, mas uma situação cuidadosamente planejada que permite as suas modelos encenarem livremente e a ele próprio funcionar como um diretor de cinema dirigindo atores esporadicamente (HARRISSON, 1997, p. 2).

O criador Karl Lagerfeld afirma que, bem ao contrário de Helmut Newton, é sempre o rosto que desempenha o papel principal nas fotografias de Lindbergh, inclusive nas de nus. Assim como o presente é considerado um momento irrevogável, “mais forte do que qualquer noção de futuro e destino” (LAGERFELD, 1996, p. 2, tradução nossa). Talvez por isso a poética deste fotógrafo esteja ligada a uma espécie de “linha analítica” (MARRA, 2008, p. 201) da fotografia de moda. Segundo Harrisson (1997), Lindbergh produz fotografias com as quais as mulheres que formam a maioria do seu público primário (compradoras de modas e leitoras de revistas) são capazes de se identificar, de se relacionar. Este mesmo autor escreve ainda sobre o fotógrafo que “o fator mais importante reside em suas representações de mulheres” (HARRISSON, 1997, p. 2, tradução nossa). Este aspecto fundamental da obra de Lindbergh é visto por Lagerfeld, que se apropria de um discurso carregado de valores revolucionários franceses para naturalizar a liberdade feminina:

A pesquisa para o domínio da existência dessas mulheres nas fotografias de Peter Lindbergh poderia levar à conclusão de que em suas vidas os homens não desempenham um grande papel; esta normalmente teria sido uma condição para a materialização destas fotos. Exatamente o oposto é o caso. Algo nas mulheres de Peter Lindbergh cresceu fora do mundo dos homens, sem qualquer «ambiguidade». «Liberdade e igualdade» é o seu lema, talvez até «fraternidade» (LAGERFELD, 1996, p. 1, tradução nossa).

Como veremos no próximo capítulo, Carine Roitfeld e seus colaboradores constroem um ethos da cultura estético-erótica da nobreza francesa e do culto da livre atitude [republicana] da mulher parisiense, que na realidade reproduzem a branquidade por meio de um “republicanismo aristocrático” (SCOTT, 2012), por meio de imagens, narrativas e discursos por ele legitimados. 176

Lindbergh trabalhou para campanhas de Dior, Giorgio Armani, Jil Sander, Prada, Lancôme, e Calvin Klein ao longo das últimas décadas do século passado, retratando ainda diversas personalidades, tais como , Mick Jagger, Charlotte Rampling e Sharon Stone140. Fotografou alguns editoriais de Vogue Paris que fazem parte do corpus desta pesquisa, entre eles estão Ça, c’est Paris (Figura 59) e Air Libre (Figura 71), sendo abordados no próximo capítulo desta tese. Além disso, fotografou para o famoso Calendário Pirelli nos anos de 1996, 2002 e 2014. Nesta recente edição, produzida para celebrar os cinquenta anos do calendário, Lindbergh realizou fotos em preto e branco de seis consagradas manequins (, , Karolina Kurkova, e as brasileiras e Isabeli Fontana) (Figura 43), contando com a parceria do fotógrafo francês Patrick Demarchelier, que ficou responsável pelos registros coloridos da edição.

Figura 43: Foto realizada por Peter Lindbergh para o Calendário Pirelli 2014. Fonte: Lindbergh (2013).

140 In: http://www.vogue.fr/thevoguelist/peter-lindbergh/227 177

Como bem colocou Harrisson (1997, p. 2, tradução nossa), as modelos de Lindbergh são “como cifras para um tipo de mulher que tenha atingido um grau demonstrável de liberdade e independência”. Trata-se, portanto, de uma independência que fica retida nas imagens, pois este grande fotógrafo é mestre em nunca deixar a impressão de que suas mulheres são meramente manipuladas, apesar do improvável cenário ficcional por ele criado (HARRISSON, 1997). Pode-se dizer que o “modo de ver” de Lindbergh está em sintonia com a linha de fotógrafos de moda do fim do século, retomando poéticas significativas do século XX (MARRA, 2008). Seu realismo ficcional parece apostar na fusão de mundos distintos, por meio da naturalização da liberdade feminina [branca] em sintonia com o que Harrisson (1997, p. 4, tradução nossa) definiu como uma “redefinição moderna e fundamentalmente urbana de sofisticação”.

[...] um fator importante quando seus modelos são colocados em ambientes inesperados e não urbanos: o deslocamento dessas divas - em dunas de areia ou pradaria - é um componente essencial no frisson convincente da imagem. As mulheres estão em férias com o guarda-roupa errado e sua presença quase surreal é um dos principais atrativos da fotografia141.

É um mundo ficcional dramático e poderoso que se sobressai nas imagens de Lindbergh: mulheres incomuns [brancas, magras e jovens] e cheias de personalidade, liberavam o corpo no espaço, sendo ao mesmo tempo produtos idealizados e desejados, tanto nas primeiras fotografias de moda de Lindbergh quanto em suas mais recentes criações, como é o caso do calendário Pirelli – cuja presença “única” da modelo sul- sudanesa Alek Wek representa plástica e iconicamente realidade e ficção. A redefinição estética de ícones clássicos e altamente codificados foi proposta pelo universo de criação do norte-americano Steven Meisel, um dos fotógrafos de maior sucesso na indústria da moda e que iniciou a carreira em Vogue na década de 1980. Segundo Marra (2008, p. 204), Meisel “gosta de modo particular da poética da citação”, ou seja, produz fotografias de moda que remetem constantemente a estilos, épocas,

141 Ibidem 178 acontecimentos e/ou personalidades do passado, que são por sua vez recodificados, redefinidos, deslocados ou ainda ressignificados. Trabalhando principalmente para a versão italiana de Vogue, Meisel confirma sua “capacidade em colocar as tendências da moda em seu contexto social mais amplo”142, bem como seu gosto eclético por meio do cruzamento de outros estilos.

Entre soluções formais, narrativas, de reportagem e de cordial instantâneo, nada fica de fora de suas escolhas. Vejamos alguns exemplos apenas. Para a capa de abril de 2002, a modelo Eugenie Volodina é fotografada em “estilo Blumenfeld”, com o rosto completamente embranquecido, sobre o qual despontam dois perturbadores lábios vermelhos. Para a capa de novembro de 2001, Naomi Campbell é fotografada como se estivesse em um intervalo de seu trabalho, “à Lindbergh”, poderíamos dizer, sentada de atravessado em uma poltrona de bambu, com as pernas sobre os braços da poltrona (MARRA, 2008, p. 204).

Sem medo de controvérsias, Meisel foi identificado como um fotógrafo que deseja “empurrar os limites sociais da sexualidade, civilidade e políticos”143. A queda das duas torres do World Trade Center em 11 de setembro de 2001 é um bom exemplo, servindo de inspiração para que Meisel colocasse modelos como terroristas em um editorial de moda da Vogue italiana (setembro de 2006), causando grande impacto na imprensa mundial. No editorial It’s a Madcap World, publicado em fevereiro de 2009 na versão americana de Vogue, Steven Meisel retrata um mundo “onde misturas peculiares e lantejoulas malucas não faltam, e o ecletismo otimista governa o dia” (CODDINGTON, 2009, p. 147). Este texto de abertura do editorial traz muitos dos aspectos vistos ate aqui em relação à poética deste fotógrafo, revelando seu “modo de ver” jovens mulheres no século XXI como produtos artificiais de um glamour decadente (Figura 44), em um contexto de retrocesso temporal absolutamente nostálgico e artificial, representado a partir do clima da loucura, de tédio e desolação.

142 In: http://www.vogue.com/voguepedia/Steven_Meisel#cite_ref-0., 143 In: http://www.vogue.com/voguepedia/Steven_Meisel#cite_ref-0. 179

Figura 44: Foto realizada por Steven Meisel para a Vogue norte- americana, fevereiro de 2009. Fonte: Vogue (2009, p. 147).

De uma maneira geral, as cores pastéis, a luminosidade natural, os objetos antigos desgastados, as roupas bordadas em cores sóbrias, a poeira no ar, bem como as posturas desleixadas e as expressões apáticas são importantes significantes deste universo. Conforme foi publicado em Vogue, as modelos de Meisel “estão sempre ansiosas para se moldarem à sua visão”144, ou seja, as jovens mulheres representadas obedecem rigorosamente critérios estéticos e corporais por ele recodificados, ao realizar então uma “operação refinadíssima que confirma sua grande habilidade em saquear criticamente um imaginário já sedimentado” (MARRA, 2008, p. 206).

144 In: http://www.vogue.com/voguepedia/Steven_Meisel#cite_ref-0 180

3.3.1 Mario Testino

“Quando conheci Gisele, a minha fantasia virou realidade. Mario Testino”. (BRANDÃO; SCHOLZ, 2003, p. 162).

O peruano Mario Testino, que se instalou em Londres em meados da década de 1970, tornou-se um dos grandes fotógrafos de moda das últimas décadas não somente porque teve seu trabalho consagrado pela elite da moda europeia e norte-americana, mas porque soube reuni-la constantemente em grandes eventos. Com isso, acabou tendo sua imagem associada à fotografia de retratos de celebridades mundiais, entre elas Madonna, Penélope Cruz, e Brad Pitt, Gisele Bündchen, Kate Moss, Princesa Diana (cuja beleza e espontaneidade lhe renderam um livro145), do casal real britânico Kate Middleton e príncipe William (na ocasião do noivado e do casamento). Trabalhando para consagradas revistas de moda, como Vogue (versões americana, britânica, francesa e brasileira) e Vanity Fair, realizou ainda campanhas publicitárias para marcas de alta moda e prêt- à-porter de luxo, entre elas Burberry, Dolce & Gabbana, Gucci, , Chanel e Lancôme146. Ao longo da primeira década de nosso século, suas fotografias de moda foram expostas em diferentes museus e galerias do mundo, tais como National Portrait Gallery (Londres), Museo Thyssen-Bornemisza () e Fotografiemuseum (Amsterdam)147, além de circularem em Milão, Edimburgo, Tóquio, Cidade do México, Lima e Rio de Janeiro. Em 2012, Testino exibiu seu trabalho pela primeira vez no The Today Art Museum (Pequim) e no Museu de Arte de Xangai, além de ter exposto suas fotografias no prestigioso Museum of Fine Arts of Boston148. Em 2010, a editora Taschen publica seu livro Kate Moss by Mario Testino, uma edição limitada na qual o fotógrafo homenageia a top model inglesa em imagens que testemunham admiração e cumplicidade, escolhendo grandes momentos de suas carreiras e mostrando pela fotografia de moda porque foi um dos principais responsáveis pelo sucesso da modelo

145 Diana, Princess of Wales by Mario Testino at Kensington Palace. Los Angeles: Taschen America LLC, 2006. 146 In: http://www.mariotestino.com/about/. 147 In: http://www.vogue.fr/thevoguelist/mario-testino/285 148 In: http://www.mariotestino.com/about/ 181 desde a década de 1990. Porém, a citação retirada de uma das edições de 2003 de Vogue Brasil (do início deste tópico) revela que a paixão declarada deste fotógrafo não se restringe à modelo inglesa. Após a chegada de Gisele Bündchen no circuito internacional da moda, no início dos anos 2000, pode-se dizer que Testino viu na modelo brasileira a “personificação de suas fantasias”, expondo assim um “modo de ver” a beleza da topmodel a partir da esfera da intimidade (Figura 45), pois as produções fotográficas que realizou com Gisele desde então foram cada vez mais sustentadas por laços de amizade fora das câmeras, como alias também ocorreu com Kate Moss. A fascinação de Testino por mulheres como Gisele Bündchen e Kate Moss remeteu-me aos escritos de Natacha Baboulene-Miellou, que abordou em sua recente tese de doutorado a mítica relação pigmaleônica entre criadores (homens) e criaturas (mulheres), a partir de imagens (notavelmente de mulheres ligadas ao star system). Para a pesquisadora, a sedução é a priori o ponto de encontro entre o masculino e o feminino, bem como essas estrelas “correspondem a um desejo masculino [...] e suas imagens cristalizam as fantasias que os homens mantêm a respeito das mulheres” (BABOULENE-MIELLOU, 2012, p. 43, tradução nossa). É interessante ainda notar que muitas das imagens de estrelas norte-americanas e europeias fotografadas para Vogue contribuem para “reatualizar o mito da sedução para torná-lo apropriado à nossa época” (BABOULENE-MIELLOU, 2012, p. 363), incluindo nesta lógica a estrela brasileira Gisele Bündchen desde os anos 2000.

Figura 45: Gisele por Mario Testino na matéria Gisele fala. Fonte: Vogue Brasil (2003, p. 161-162).

182

Como veremos no próximo capítulo, representações do desejo sexual masculino podem ser vistas a partir da erotização do corpo da mulher para justamente melhor dominá-lo simbolicamente, naturalizando de forma estratégica uma relação de gênero desigual de poder. Desta forma, é possível compreender discursivamente porque ocorre, na fala de Testino, uma espécie de inversão de papéis nesta relação – explícita na figura do fotógrafo e de sua modelo. Ele afirmou ao jornal Folha de São Paulo que “a beleza da modelo está acima de tudo, inclusive do meu ego como fotógrafo. Por isso elas se entregam” (WHITEMAN, 2011, p. 66). Tomando como exemplo as imagens sensuais de Gisele Bündchen por ele registradas, é possível notar como o ethos das supercelebridades [brancas] se torna hexis, postura energética, espontânea e hipnótica. O olhar de Testino ajuda a construir, portanto, uma estética da intimidade – sendo que o papel privilegiado e quase monopolista na produção simbólica de informações, saberes e conhecimentos desempenhados pelos dominantes, “homens/ricos/Brancos/heterossexuais/de mais de 50 anos” (BOUAMAMA; CORMONT; FOTIA, 2012, p. 324) faz parte da imposição da dominação. Apaixonado pelo calor, pela sensualidade fácil, pela liberdade sexual e pela paixão à vida – aspectos associados culturalmente aos cariocas – este fotógrafo traz ainda outras imagens de Bündchen na capa e nas páginas do livro Mario de Janeiro Testino, publicado em 2009, cujo prefácio foi escrito por Caetano Veloso. Esta obra, que virou exposição, é uma homenagem ao Rio de Janeiro (cidade por ele conhecida desde a adolescência), incluindo logicamente garotos e garotas de Copacabana e Ipanema que tanto o inspiraram, bem como atores, atrizes, modelos e outras celebridades (Figura 46). Segundo Whiteman (2011, p. 66, tradução nossa), Testino “fotografou de anônimos na praia a bonitões globais como Cauã Reymond e Fernanda Lima”. Desde então, confessou estar em uma “fase de retorno à América Latina, depois de muito tempo entre os EUA e a Europa”149.

149 Ibid, p. 70 183

Figura 46: Imagens do livro Mario de Janeiro Testino. Fonte: Testino (2012).

Pode-se dizer que o “modo de ver” de Testino em Vogue joga com o corpo sensual e erotizado que o Brasil vende ao mundo, contribuindo para o “autoexotismo” da natureza e da cultura popular brasileira, este estreitamente ligado a um nacionalismo elitista e distintivo de determinado status social [branco], marcado pela intersecção de classe, gênero e raça – como procuro mostrar mais detalhadamente no próximo capítulo. Além disso, a ausência da associação dos termos “latino” ou “hispânico” à imagem de Gisele Bündchen (tanto na mídia brasileira quanto na mídia norte-americana), como veremos no próximo capítulo, chama atenção para o fato de que o melting pot brasileiro produz faces globalizadas, mas com “menos traços de estereótipos étnicos” (MAIA, 2012). Gostaria de problematizar outro editorial de moda fotografado por Testino, que também faz parte das edições do corpus desta pesquisa e aborda a questão da mistura racial no contexto francês: Melting Top, publicado na edição de dezembro 2001/janeiro 2002 de Vogue Paris (Figura 47). Vimos, no capítulo anterior, que Carine Roitfeld fez sua primeira edição como redatora chefe da Vogue francesa na edição de fevereiro de 2001 no editorial Noir Blanc (Figuras 11 e 13), fotografado justamente 184 pelo amigo Mario Testino. Novamente requisitado, o fotógrafo peruano é então inspirado para representar esteticamente a fusão étnica da Europa com a África.

Figura 47: Foto de Mario Testino para o editorial Melting Tops. Fonte: Vogue Paris (2001/2002, p. 206-207).

Carine Roitfeld escreve sobre o editorial: “Quando você vive na França, você vê muitas garotas da África usando boubous. Misturar – isto é o que eu tentei fazer nesta estória” (ROITFELD; ZAHM; HORYN, 2011, p. 217). Mais uma vez a mistura étnica de Vogue é marcada pelo ethos da branquidade, sendo que aqui a beleza feminina [branca] retratada por Testino é fruto de uma apropriação simbólica de peças da indumentária africana (boubous), mas sem abrir mão da superioridade racial. Mario Testino fotografou ainda o editorial 95 C. (Figura 48), publicado em agosto de 2003 em Vogue Paris. Desta vez, a ênfase é no “poder dos seios” que, de forma ambígua como veremos no próximo capítulo, ajuda a construir a imagem da mulher parisiense liberada porque apelam a uma cultura estético-erótica francesa. O texto que acompanha uma das fotos de Testino revela linguística e iconicamente a erotização fragmentada do corpo feminino: “Voluptuosidade à moda dos anos 50, plásticos em relevos que se movimentam e lábios de fogo erotizam uma moda mais perto do corpo e celebram a tentação dos pontos fortes da carne” (ROITFELD, 2003, p. 169). 185

Figura 48: Fotos de Mario Testino para o editorial 95 C. Fonte: Vogue Paris (2003b, p. 168-169).

Mas é importante salientar que não se trata do mesmo erotismo. As lentes de Mario Testino, que no contexto brasileiro mostram um corpo “despido” – no sentido de preparado para o desnudamento (GOLDENBERG; RAMOS, 2007), parecem jogar com a eroticidade de outra forma, concebendo-a no contexto francês como um “significado socialmente incorporado, atribuído pelo olhar do Outro” (LEITÃO, 2007, p. 201), ou seja, um corpo “coberto por signos distintivos” (GOLDENBERG; RAMOS, 2007, p. 38). Portanto, os diferentes “modos de ver” de Testino e dos fotógrafos de Vogue em geral refletem diversas relações de dominação a partir da branquidade e da violência simbólica por ela imposta, incluindo ainda algumas produções de matérias e editoriais de moda de Miro, Patrick Demarchelier e Jacques Dequeker, que colaboraram em edições de Vogue (Paris e/ou Brasil) no período correspondente ao corpus desta tese (2001-2010).

186

3.3.2 Miro

“Depois da publicação desse anúncio, meu trabalho passou a ser mais requisitado. Uma foto de uma mulher que pensa” (MIRO, 2013 apud ESTEVES, 2013)150.

Fotógrafo brasileiro consagrado, que viveu em Paris durante a década de 1970, Azemiro de Souza (Miro) trabalhou para revistas de moda europeias e brasileiras, entre elas Elle, Marie Claire, Vogue e Cláudia não só naquela época, mas ao longo das décadas que se seguiram. Foi um dos pioneiros na fotografia de moda brasileira, realizando editoriais Rhodia, bem como diversas campanhas publicitárias ao longo dos quarenta anos de carreira – incluindo a memorável campanha do primeiro maiô de Lycra . Entre as personalidades brasileiras que posaram para suas lentes estão Marília Pêra, Raul Cortez, Clodovil, Juscelino Kubitschek, além das modelos Gisele Bündchen e (ZARAMELLA, 2009). Em 2002, Miro fotografou dez mulheres brasileiras para a capa da edição 287 de Vogue Brasil (Figura 49): Xuxa, Carolina Ferraz, Luana Piovanni, Fernanda Tavares, Malu Mader, Camila Pitanga, Ana Hickmann, Fernanda Lima, Ana Tereza Bardella e Bruna Lombardi.

Figura 49: Foto de Miro para a capa de Vogue Brasil. Fonte: Vogue Brasil (2002).

150 Sobre a imagem de Carla Pádua para a campanha do perfume Eleven, da Atkinsons, no final da década de 1970. 187

A intenção de Patricia Carta e demais produtores de Vogue Brasil foi a de trazer para Vogue a “beleza da mulher brasileira” (BRANDAO, 2002, p. 119), como veremos mais detalhadamente no próximo capítulo. Nesse sentido, pode-se dizer que Vogue constrói, também pelo “modo de ver” de Miro, o padrão neoclássico de beleza (baseado em uma nudez bem dosada, marcada por uma sensualidade notavelmente harmoniosa e equilibrada). E, desta forma, ocorre novamente no contexto brasileiro de Vogue o “autoexotismo” da cultura brasileira e o embranquecimento da mulata pela apropriação estética de um estilo predominantemente europeu, que chega ao Brasil no inicio do século XIX. Praticamente todos os fotógrafos de Vogue (em sua grande maioria homens), ao longo de sua história, tiveram que abrir mão do gosto pessoal para atender às exigências deste periódico algumas vezes, mas em outras parecia haver de fato uma sintonia intuitiva entre o projeto do contratante e a arte do contratado. Miro é de fato “conhecido pelo perfeccionismo, minúcia e precisão”151. Em 2010, o fotógrafo lançou “Miro – O Artesão da Luz”, livro de fotografias que compila 150 dos melhores trabalhos realizados por ele. Segundo Costa (2010, p. 1), “entre imagens de campanhas publicitárias superproduzidas, retratos bem construídos e trabalhos pessoais, talvez o momento mais primoroso de toda sua obra seja a série ‘Vaidades’, que foi fotografada no início dos anos 90”. Nesta série, Miro se inspirou em quadros figurativos e naturezas-mortas de mestres do Renascimento e do Barroco europeus (Figura 50), como Rembrandt, Tintoretto, Caravaggio, Vélasquez, Botticelli e El Greco.

Figura 50: Foto da série “Vaidades” de Miro, 2010. Fonte: Miro (2013a).

151 In: http://revista.vogue.globo.com/lifestyle/cultura/o-livro-do-miro/.

188

Acredito que a capa de Vogue Brasil produzida em 2002 (Figura 49) seja fruto não somente do desejo de nobreza, elegância e sobriedade vendido à elite [branca] brasileira por meio do universo simbólico deste periódico, mas também do capital cultural deste fotógrafo, adquirido por meio de experiências de fotografia de moda no contexto europeu (notavelmente o francês) e no brasileiro (onde foi protagonista). Em Paris, Miro conheceu Peter Knapp (diretor artístico da revista Elle), além dos consagrados fotógrafos franceses Sarah Moon e Guy Bourdin, cujos traços podem ser identificados em algumas obras da trajetória de Miro, mesmo que instintivamente. Ou seja, a própria trajetória – pessoal e profissional – deste fotógrafo influencia esteticamente suas escolhas fotográficas, tanto plástica quanto iconicamente. Nesse sentido, a obra de Miro é vista como eclética e autoral. Em junho de 2009, Miro realizou o editorial “Panteras Negras” (Figura 51) para um suplemento do jornal Folha de São Paulo, justamente em uma época na qual a indústria brasileira da moda discutia a cor da pele das modelos tanto quanto as tendências de moda da estação. Estava em pauta a questão do Termo de Adiantamento de Conduta (TAC), que determinava a presença de 10% de modelos negros, afrodescendentes ou indígenas por desfile realizado, notavelmente no evento São Paulo Fashion Week. O referido ensaio fotografado contou com a edição de Camila Yahn, o styling [estilo] de Simone Pokropp e Junior Guarnieri e a produção de cabelo e maquiagem de Theo Carias. Cinco modelos participaram do editorial, tendo entre 18 e 24 anos. São elas: Anabela Ferreira, , Samira Carvalho, Janaína Santos e Lays Silva (FILHO, 2009). Três delas eram na época exclusivas da agência Ford e duas da agência Way Models. Anabela Ferreira se mudou para Nova York; Samira Carvalho trabalhou em Tóquio, Paris, Barcelona, Londres, Milão e Los Angeles; Lays Silva trabalhou na Alemanha e Gracie Carvalho fez campanhas publicitárias para Gap e Donna Karan Jeans.

189

Fig ura 51: Fotos de Miro para o editorial “Panteras Negras”, 2009. Fonte: Filho (2009).

Considero que o fato de Miro ter realizado em 2009 o editorial “Panteras Negras” e, no ano seguinte, ter lançado o livro em homenagem à sua carreira com referências renascentistas e barrocas contribuiu enormemente para que incluísse a beleza negra no “modo de ver” a mulher brasileira – captando-a sem pieguice. Em novembro de 2012, homenageando o “Dia da Consciência Negra”, Miro realizou a exposição “Pérolas Negras” (Figura 52) no Museu Afro Brasileiro, situado na cidade de São Paulo. Fotografou personalidades negras como Milton Gonçalvez, Zezé Motta, Luiz Melodia, Adriana Alves, Haroldo Costa e Zózimo Bulbul (CARVALHO, 2013), bem como negros nascidos na África. 190

Figura 52: Imagens da divulgação da exposição fotográfica de Miro, “Pérolas Negras”, 2012. Fonte: Miro (2013b).

A ideia inicial de Miro para a exposição era fotografar modelos negros sobre fundo preto, com tecidos pretos. Mas o processo criativo sofreu algumas alterações, como afirma o fotógrafo:

A primeira (etapa) ficou um pouco fashion demais. Comecei a pensar em outras coisas e a mudar a textura dos tecidos. Ficou meio pop. Voltei atrás e comecei a pesquisar uma coisa mais africana. Eu não queria que ficasse como fantasia, queria algo que desse mais para a origem do que só a foto de um negro. Comecei a produzir tudo em preto e só um pouquinho em color. Conheci angolanos que moram em São Paulo e decidi fotografá-los (MIRO 2013 apud CARVALHO, 2013, p. 1).

O cuidado com a luz, com as cores e com os detalhes das imagens do editorial e da exposição configura talvez a expressão máxima do perfeccionismo de Miro, que retratou a beleza negra brasileira como sendo tanto “pérola” quanto “pantera”. Percebo que, assim como Mario Testino demonstrou estar em uma fase de retorno à América Latina nos últimos anos, Miro pode estar refletindo sobre determinadas escolhas estéticas “europeizadas” em seus trabalhos mais recentes, favorecendo tanto a visibilidade do corpo negro quanto a invisibilidade do privilégio branco na fotografia de moda.

191

3.3.3 Patrick Demarchelier

“Talvez estar sempre cercado de homens me fez querer me cercar de mulheres em meu trabalho”152.

Este fotógrafo francês, que cresceu em uma família de muitos garotos, mudou-se aos vinte anos para Paris, onde trabalhou como assistente do fotógrafo Hans Feurer. Em meados da década de 1970, se instala ainda jovem em Nova York, sendo convidado pelo diretor artístico de Vogue, Alexandre Liberman, a realizar seu primeiro trabalho para a editora Condé Nast, mais precisamente no ano de 1974. Nesta época, fotografou modelos como Rosie Vela, Janice Dickinson, Patti Hansen, Lisa Taylor e nas décadas que se seguiram, testemunhou a primeira geração das supermodelos – , Linda Evangelista, , Naomi Campbell e Shalom Harlow. Em 1989, Demarchelier tornou-se o primeiro fotógrafo não-britânico oficial da família Real153. Seu sucesso inclui ainda capas para as revistas Harper’s Bazaar, Marie Claire, Elle, além da direção de outras revistas norte-americanas e de campanhas para Dior, Versace, Chanel, Calvin Klein, entre outras marcas de luxo. É importante ressaltar que o “modo de ver” de Demarchelier trouxe para a fotografia de moda um novo estilo artístico, aprimorado desde que iniciou em Vogue.

Ele [Demarchelier] prima pelas fotografias instantâneas, desenvoltas e borbulhantes. Ele capta com virtuosidade o instante no qual a mulher esqueceu o fotógrafo, a faísca que desnuda sua personalidade. É a personalidade da modelo que é valorizada, seu frescor e seu brilho (LELIEVRE, 2013, p. 1, tradução nossa).

Conhecido, portanto, por “destacar o frescor e a autenticidade das mulheres”154, Demarchelier faz da surpresa a principal técnica de escolha fotográfica, revelando: “Eu não busco uma relação de força quando eu faço um retrato. Eu preparo minha foto, mas amo a espontaneidade. Avedon adoraria mostrar a obscuridade das pessoas. Eu, contrariamente, amo desvendar o lado positivo, simpático”

152 In: www.vogue.com/voguepedia/Patrick_Demarchelier 153 In: www.vogue.com/voguepedia/Patrick_Demarchelier 154 In: http://www.vogue.fr/thevoguelist/patrick-demarchelier/170 192

(DEMARCHELIER 2013 apud LELIEVRE, 2013, p. 1, tradução nossa). Além disso, mostra-se um artista “aficionado pelas imagens em preto e branco, dotadas de humor e de sensualidade”155. Três editoriais por ele fotografados e apresentados em edições de Vogue Paris correspondentes ao corpus desta pesquisa revelam esta paixão: Athlète du Style, de abril de 2005 (Figura 53); La Belle Américaine, de agosto de 2005 (Figura 54) e Le Chant des Sirènes, de junho/julho de 2008 (Figura 55).

Figura 53: À direita, foto de Patrick Demarchelier para o editorial Athlète du Style. Fonte: Vogue Paris (2005a, p. 186-187).

Figura 54: À esquerda, foto de Patrick Demarchelier para o editorial La Belle Américaine. Fonte: Vogue Paris (2005b, p. 174-175).

155 In: http://www.vogue.fr/thevoguelist/patrick-demarchelier/170 193

Figura 55: À esquerda, foto de Patrick Demarchelier para o editorial Le Chant des Sirènes. Fonte: Vogue Paris (2008b, p. 130-131).

De fato, as três imagens de abertura dos editoriais citados (Figuras 53, 54 e 55) apresentam muitas semelhanças plásticas, que evocam determinado modo de representar a beleza feminina [branca] que Vogue deseja inspirar na primeira década de nosso século. Em sintonia com o “estilo Demarchelier”, embora tratando de temas diferentes, elas remetem a um “modo de ver” que coloca em primeiro plano a naturalidade e a espontaneidade do momento retratado. A pouca e direcionada iluminação utilizada pelo fotógrafo proporciona alto grau de contraste, contribuindo para a valorização das figuras em relação aos fundos, das texturas e formas, das posturas corporais e expressões faciais das modelos, assim como o registro em preto e branco remete iconicamente à ideia de atemporalidade. Desta forma, é possível identificar como a fotografia de moda de Demarchelier ajuda a produzir simbolicamente uma sensualidade feminina marcada pela livre atitude da mulher parisiense, como veremos ainda no próximo capítulo. Trata-se, portanto, de um fotógrafo afinado com as ideias de Roitfeld e das editoras de moda de Vogue Paris, revelando signos visuais que se complementam com as mensagens linguísticas para mostrar a pureza monástica, linhas esportivas, a mistura de gêneros, o visual preto e branco elegante e fluído (SAUVÉ, 2005a) (Figura 53), a figura da heroína ícone da cena pop, referências puritanas desviadas, a feminilidade voluptuosa (ROITFELD, 2005) (Figura 54) ou ainda a 194 mistura de tradição e transgressão, a aparência pitoresca e a sedução em águas turbulentas (ROITFELD, 2008d) (Figura 55).

3.3.4 Jacques Dequeker

“Sempre gostei de mulheres com personalidade forte, quase bravas. Acho que a imagem fica mais poderosa. Pode ser influência do boxe, quem sabe?156

Pode-se dizer que este fotógrafo franco-brasileiro especializado em moda e beleza trilhou um caminho tardio no campo da moda brasileira, mas que ao longo de uma década o fez trocar a profissão de professor de boxe por uma paixão: a fotografia de moda. Antes de se declarar fotógrafo profissional, Dequeker trabalhou como assistente de Pedro Flores, Paulo Vainer, Enio Berwanger, Mauricio Nathas e Jairo Goldflus, além de conhecer o maquiador Duda Molinos e os melhores profissionais do mercado brasileiro157, nas cidades de Porto Alegre e São Paulo. No início da década de 2000 realizou seu primeiro trabalho como autônomo para Vogue Brasil e desde então, tornou-se um dos mais requisitados fotógrafos de moda do país. A busca por originalidade é uma de suas principais características, por isso Dequeker se considera um fotógrafo experimental (sendo inclusive o primeiro a trazer de volta a fotografia 3D para a moda). Segundo ele, “a moda é feita de novidades e você precisa se reinventar a cada estação”158. Porém, observo que entre escolhas poéticas com evidente carga erótica, vontades explícitas de transgressão e a recuperação maliciosa e provocatória do erotismo e da sexualidade em geral, os “modos de ver” dos fotógrafos de Vogue parecem estar atrelados a uma espécie de voyeurismo masculino [colonizador, branco, heterossexual] fotográfico que dificilmente sofrem alterações, variações, reinvenções e mesmo rupturas na mesma velocidade exigida pelo sistema da moda contemporânea. E Jacques Dequeker não fica de fora.

156 In: http://photos.uol.com.br/materias/ver/57123. 157 In: http://www.modelsbrasil.com/jacques-dequeker-o-fotografo-das-tops 158In: http://photos.uol.com.br/materias/ver/57123 195

A novidade, então, diz respeito aos modos, às formas do erotismo, que curiosamente acabam por se entrelaçar com o que podemos definir uma espécie de predisposição teórica do meio fotográfico. O que nele sobressai é, de fato, uma pulsão voyeurista que, evidentemente, se identifica com o próprio ato de fotografar (MARRA, 2008, p. 166).

Sobre os fotógrafos mais antigos que influenciaram sua carreira, Dequeker destaca nomes como Avedon, Horst, Penn, Newton e Bailey. Mais recentemente, tem se inspirado nos trabalhos de Steven Meisel, pensando nele como um artista159. Ou seja, Jacques Dequeker perpetua de alguma forma os “modos de ver” dos grandes fotógrafos da história de Vogue. Em 2007, Dequeker fotografou a modelo Carol Trentini para o editorial “Classe à Beira-mar” (Figura 56), publicado na edição brasileira de Vogue. Como veremos mais detalhadamente no próximo capítulo (Figura 87), a ideia de luxo e elegância deste editorial surge principalmente da iluminação “natural” e do contraste entre as cores verde-amarelo (incluindo o dourado) e preto-branco dos biquínis, a partir da qual a imagem da mulher [branca, loira e magra] é representada na figura de uma “nativa cultivada à moda europeia”, associada a uma “essência nacional”, marcada notavelmente pela estética romântica.

Figura 56: Fotos de Jacques Dequeker para o editorial Classe

à beira-mar. Fonte: Vogue Brasil (2007a, p. 98-99).

159 In: http://www.modelsbrasil.com/jacques-dequeker-o-fotografo-das-tops 196

Ao longo de uma década, Dequeker fotografou supermodelos como Gisele Bündchen, Isabeli Fontana, Ana Claudia Michels, Luciana Curtis, Mariana Weickert, Ana Hickmann, e Agyness Deyn, incluindo personalidades como o estilista . Em 2010, realizou o editorial Body Couture, comentado no capítulo anterior (Figura 7). Gostaria apenas de ressaltar que Dequeker contribui para a valorização do poder de sedução feminino no contexto contemporâneo global de beleza corporal e feminilidade, representado no corpo [branco] da moda. Assim, o “modo de ver” a beleza feminina de Vogue, no contexto brasileiro e pelas lentes de Jacques Dequeker (Figura 57), revela de fato a ambígua estética da magreza extrema, personificada por Kate Moss na década de 1990 e retomada no final da década de 2000.

Figura 57: Foto de Jacques Dequeker para o editorial Body Couture.Fonte: Vogue Brasil (2010b, p. 124-133).

As fotografias de moda em Vogue são, portanto, construções discursivas e imagéticas de um imaginário [branco], que naturalizam simbolicamente o privilégio branco. Revelam, como vimos, diferentes “modos de ver” da mesma violência simbólica racial. Segundo Antelo (2004, p. 87), uma tradição se arma “a partir de uma relação de força, de extradição, de formas dominantes”, mas não sem introduzir algum tipo de deslocamento ou de ruptura, uma vez que tanto possibilidades quanto potências são restituídas a um valor exaustivo, repetido, recorrente, cíclico. 197

Como nos alerta Berger (1972), o poder pode ser moral, físico, temperamental, econômico, social e/ou sexual, mas sua incidência é sempre exterior ao homem. Desta forma, pode-se dizer que as produções de moda dos fotógrafos de Vogue, que pouco apresentam a figura masculina em cena, revelam o quanto ”uma presença masculina sugere sempre o que o homem pode fazer por nós ou para nós” (BERGER, 1972, p. 49). No caso desta pesquisa, a branquidade produzida por Vogue entrelaça desejos sexuais, papéis sociais de gênero e representaçoes de classe, a partir de relações raciais (in) visíveis de poder, em contextos específicos da Europa (França) e da América Latina (Brasil) – passando necessariamente pela questão do desejo colonial [branco] ou do colonialismo desejante, que erotiza e exotiza o Outro160 e a si.

3.4 ECONOMIA SEXUAL DO DESEJO COLONIAL [BRANCO]

“A repugnância sempre carrega a marca do desejo”. (YOUNG, 2005, p. 181).

A economia sexual de desejo nas fantasias de raça no contexto da colonização europeia é alimentada, segundo Young (2005), pela contradição [sexual] da erotização da relação de poder e domínio entre proprietários brancos e escravas negras. A confirmação pública desse desejo branco pelo corpo negro no Caribe e nas Américas realizava-se pelo estupro ou pela exploração coercitiva, incluindo a exaltação “das belezas negras e da cor de açafrão das Índias Ocidentais” (EDWARDS apud YOUNG, 2005, p. 186). Ou seja, tal economia legitimava historicamente o desejo [branco] por meio de uma ambivalente construção sociocultural da raça, em pleno clima de “obsessão pela questão racial” da década de 1860. A segunda metade do século XIX é fortemente marcada pelo “fantasma

160 O uso deste termo em itálico se refere a “o outro”, “o diverso”, “o exótico”. Tal distinção é habitualmente marcada com a grafia do “O” maiúsculo, tendo conforme Burke (2004) uma gênese histórica e política precisa – aquela da teoria francesa clássica sobre L’Autre, na qual “os outros”, quaisquer que sejam, têm suas particularidades homogeneizadas em um único Outro não diferenciado. 198 imaginário da miscigenação racial”, a partir do qual a construção cultural de raça “sempre foi incentivada pela conjunção corrupta de tais discursos sexuais e econômicos híbridos” (YOUNG, 2005, p. 173). O autor reitera que a teoria racial não pode ser separada do seu próprio momento histórico.

[...] [a teoria racial] desenvolveu-se numa época particular de expansão colonial britânica e européia no século XIX, que culminou com a ocupação ocidental de nove décimos do território da superfície terrestre. Há uma evidente conexão entre as teorias raciais de superioridade branca e a justificação para essa expansão, que levanta questões acerca da cumplicidade da ciência, bem como da cultura: o racismo não conhece divisão alguma entre as ciências e as artes161.

Se, de um lado, o universalismo iluminista do século XVIII pregava a doutrina da igualdade humana, apostando em uma totalidade da ética da igualdade sexual e racial (“o mesmo, mas diferente” ou “diferença reconhecida, uniformidade concedida”), de outro, o relativismo do século XIX (aparentemente menos etnocêntrico) reconhecia a diferença humana, apostando em uma teoria e prática da desigualdade (“diferente - e também diferente, desigual”).

Na fase imperial, da década de 1880 em diante, a ideologia cultural da raça tornou-se de tal maneira dominante que a superioridade racial e a virtude da civilização, que a acompanhava, sobrepujou até mesmo o ganho econômico ou o trabalho missionário cristão, como a ideia justificadora que presidiu o avanço do império. Ambas confluíram na proposição com que os ingleses começaram a descrever-se a si próprios: a ‘raça imperial’. O ‘racialism’ era uma ideia tanto cultural como científica, a que poderíamos chamar, seguindo Walter Benjamin, ‘o trabalho da cultura na era da reprodução colonial’. Assim, tal como a etnia, a raça foi sempre uma elaboração cultural, bem como política, científica e social (YOUNG, 2005, p. 112).

161 Ibid, p. 111 199

Assim, o apelo “popular” da teoria racial, movido por interesses econômicos, operava (e ainda opera) fortemente no nível cultural. E o que me interessa de certa forma nessa discussão é justamente a questão da sobrevivência do que Young (2005) considerou como a “perversidade da lógica da teoria racial”, baseada no fato de que os argumentos mais consistentes a favor da raça foram sempre argumentos culturais e estéticos. Aproximando a relação entre cultura ocidental e diferenciação cultural, pode-se compreender a civilização como elemento definidor da brancura. E quando a primeira fundiu-se com o seu quase sinônimo “cultivo”, a escala da diferença que separava a raça branca das demais raças rapidamente se entendeu, tornando-se a cultura “o traço distintivo das classes alta e média” (YOUNG, 2005, p. 116). Desta forma, surgiram fantasias de qualidades de classe intrínsecas ao dilema sociocultural das formulações da diferença racial, que nada mais eram do que diferenciações de classe de cunho racial, particularmente óbvias em sua dimensão estética e simbólica.

O sujeito europeu civilizado definia-se a si mesmo especificamente por meio da exclusão do que foi identificado como sujo e baixo. Mas a aversão sempre carrega a marca do desejo. Esses domínios baixos, aparentemente rejeitados como “Outro” retornam como objeto de nostalgia, aspiração e fascínio. A floresta, a feira, o teatro, o cortiço, o circo, o hotel de balneário, o ‘selvagem’: todos situados nos limites exteriores da vida civil, se tornam conteúdos simbólicos do desejo burguês (STALLYBRASS; WHITE apud YOUNG, 2005, p. 139).

O colonialismo não era apenas uma máquina de guerra, de burocracia, administração e sobretudo de poder; era também uma “máquina desejante”, com seu “apetite ilimitado por extensão territorial, por ‘crescimento e auto-reprodução infinitos’, por fazer conexões e disjunções, continuamente forçava territórios, histórias e povos díspares a se reunir como corpos estrangeiros na noite” (YOUNG, 2005, p. 119). Nesse contexto, o sexo é um traço estritamente reprimido do “maquinismo proliferante da colonização”, pois a atração sexual dos homens brancos pelas mulheres negras e amarelas está na base tanto do nascimento quanto da queda das civilizações. 200

O esquema racial é então estendido até o sexo/gênero e a diferença de classe, ao mesmo tempo em que ocorre uma transposição das qualidades do gênero para a raça. A diferença sexual foi traduzida na divisão sexual da raça e assim o objeto do desejo do homem branco deslocado para o outro lado da divisão racial. Tal princípio da diferença sexual (e a interação entre raças sexualizadas) fornece as bases da cultura e da civilização, segundo a hierarquia estabelecida das relações de gênero. Assim:

As relações “naturais” de gênero da sociedade europeia mais uma vez são utilizadas para estabelecer a autoridade das leis naturais que determinam as relações entre as raças. Assim como o homem branco governa seu próprio país, ele também é o senhor no estrangeiro. A hierarquia ortodoxa dos gêneros é confirmada e reafirmada no nível da raça, a qual por sua vez feminiza homens e mulheres igualmente nas raças negra e amarela. Ao que parece, todas as hierarquias, juntamente com os seus valores culturais, podem ser assimiladas, contanto que o homem branco permaneça no topo162.

De fato, o patriarcalismo vigente no Brasil pré-urbano e industrial constituiu uma base sólida para a formação de uma estrutura social e econômica assimétrica e vivenciada cotidianamente, amparada por um sistema de produção que só poderia ser compreendido no contexto de uma sociedade escravocrata. E, nesse sentido, embora Gilberto Freyre tenha sido alvo de críticas quanto à sua “perenidade” em tratar as diferenças raciais, sexuais e classistas em Casa-grande & senzala, entre natureza e cultura, adotando inclusive a visão do homem branco e senhor (CARDOSO, 2006; BOCAYUVA, 2001), suas contribuições inspiradoras sobre a rica trama sociocultural das relações entre os atores sociais do período é bastante relevante ainda hoje. No ano de 1978, Edward Said direcionou o estudo do colonialismo para suas operações discursivas, mostrando como o “Orientalismo” é uma disciplina que se desenvolveu como uma construção discursiva, de forma que “a estrutura conceitual e de linguagem determinasse tanto o que poderia ser dito como o que deveria

162 Ibid, p. 135 201 ser reconhecido como verdadeiro” (YOUNG, 2005, p. 195), a partir de práticas ideológicas colonialistas. Desta forma, faz-se necessário também apreender no nível discursivo a linguagem e as formas de conhecimento que foram desenvolvidas em narrativas textuais e imagéticas deste periódico especializado em moda, ou seja, quais conceitos e representações do Outro foram (re) significados culturalmente e publicados entre 2001 e 2010. Este é justamente o objetivo do quarto capítulo desta tese, por meio do qual busco principalmente questionar se o processo de erotização/exotização do Outro (produzida por Carine Roitfeld em Vogue Paris) e de si mesmo (produzida por Patricia Carta em Vogue Brasil) não seriam diferentes faces de uma mesma violência simbólica. Embora tal questão (de sermos – ou não – ocidentais) não nos seja colocada muito frequentemente, nos percebemos historicamente como um país à margem, seja do ponto de vista econômico ou de difusão cultural. Estranhos e distantes, nós, brasileiros.as estamos no polo do Outro. As análises de Débora Leitão em diversos periódicos franceses de moda (Elle France, Vogue Paris, L’Officiel, Votre Beauté etc.) demonstraram a predominância de uma construção discursiva referente ao Brasil como um país não ocidental, realizada com o intuito de “marcar diferenças e reforçar estranhezas” (LEITAO, 2007, p. 261). Por enquanto, cabe retomar o que a perspectiva da teoria literária e cultural de Said pode oferecer o que considero como instrutivo para melhor compreender as maneiras pelas quais a Europa [branca] conhece, científica ou artisticamente o Outro (o Oriente, incluindo o Brasil “não Ocidental” anteriormente contextualizado): a ideia de que construção cultural autorizada do Orientalismo não foi simplesmente determinada por fatores econômicos, havendo certa autonomia da esfera cultural (YOUNG, 2005). O conceito de imaginative geography, de Said (2003), ressalta que a linha que separa o Ocidente do Oriente é menos um fator da natureza do que um fator da produção humana. Trata-se de uma “geografia simbólica”, que divide arbitrariamente relações discursivas e eurocêntricas de poder. Nesse sentido, são pertinentes as considerações de Gustavo Lins Ribeiro (2001) sobre o “Tropicalismo”, espécie de Orientalismo aplicado aos trópicos e, mais especificamente, ao Brasil. De acordo com Ribeiro (2001, p. 248), tanto esse tropicalismo quanto o seu equivalente europeísmo (geralmente aplicado à Argentina), seriam “[...] em larga medida, aceitos tanto pelas elites quanto pelas massas dos dois países, como modo de representar pertencimento aos dois Estados-nações”. Quando somos nós mesmos os Outros, ou seja, 202 não “tão ocidentais” aos olhos europeus, desejamos transformar nossas produções culturais em produções exóticas. Nós, originários de um “extremo ocidente à margem”, ao mesmo tempo familiares e desconhecidos, somos “território simbólico para o exotismo” (LEITÃO, 2007, p. 264). Essa questão será amplamente abordada no próximo capítulo, sobretudo quando analiso em Vogue Brasil o discurso do “autoexotismo” da natureza e da cultura popular, bem como da erotização e do embranquecimento da figura da mulata brasileira, considerando a “multiplicação discursiva e imagética sobre o caráter erótico do Brasil” (KLANOVICZ, 2010, p. 103) percebida ao longo do primeiro decênio do século XXI. Considero que a violência simbólica racial, presente em Vogue Brasil por meio da branquidade, abre espaço para entender outras formas de dominação, sendo instituída justamente porque a versão brasileira deste periódico dispõe apenas de instrumentos de conhecimento que ela possui em comum com a “matriz discursiva Condé Nast” para pensar em sua própria relação com esta última – quando não pode então discordar da dominação estrangeira. Nesse sentido, retomo Bourdieu (1988, p. 41) para antecipar que esta versão é “apenas a forma incorporada da relação de dominação”, aparentemente natural.

203

4. POTÊNCIAS DA IMAGEM: ENTRE EROTIZAÇÃO E EXOTIZAÇÃO DO OUTRO E DE SI

Vimos, no capítulo anterior, que determinados “modos de ver” reproduzem o poder simbólico de uma branquidade construída pelo olhar masculino [branco e colonizador], valorizando representações sociais legitimadas pelas elites dominantes, usualmente não marcadas ou não nomeadas, a partir de dispositivos específicos da distinção racial. Estes, por sua vez, são interseccionados por outras relações de poder e posições de classe, sexuais e/ou de gênero, instituindo uma hierarquização cultural baseada na incorporação e na naturalização da dominação. Pretendo mostrar que a produção simbólica da branquidade no contexto francês está histórica e discursivamente associada à cultura estético-erótica da nobreza e ao culto da livre atitude da mulher (pelas figuras da cortesã chique e da Parisiense); já no contexto brasileiro, molda-se simbolicamente pelo “autoexotismo” da natureza e da cultura popular (embranquecimento da mulata, da sertaneja, da índia nativa). Desta forma, discursos e narrativas produzidos por Carine Roitfeld (Vogue Paris) e Patricia Carta (Vogue Brasil) configuram páginas de uma mesma violência simbólica, oscilando entre erotização e exotização do Outro e de si mesmo. Pode-se dizer que o ser feminino é um “ser-percebido” (BOURDIEU, 1998), a partir do qual seu corpo percebido [corps perçu] é duplamente determinado: é um produto social justamente pelo que possui de “mais natural em aparência”, dependente tanto de suas condições sociais de produção (trabalho, hábitos alimentares, maneiras de se vestir e de se cuidar etc.) quanto de suas propriedades apreendidas por esquemas de percepção (atrelados à posição social ocupada no espaço social). Assim, a maneira particular de vestir o corpo, de apresentá-lo aos outros, expressa, antes de tudo, a “distância entre o corpo praticamente experimentado e o corpo legítimo e, pela mesma razão, uma antecipação prática das chances de sucesso das interações que contribui para definir essas chances” (BOURDIEU, 1998). Tal afirmação torna-se válida para a compreensão de como uma identidade social é naturalizada sob a forma, por exemplo, da “vulgaridade” ou da “distinção” dita natural.

O olhar assim é um poder simbólico no qual a eficácia depende da posição relativa deste que 204

percebe e daquele que é percebido a partir do grau pelo qual esquemas de percepção e de apreciação operados são conhecidos e reconhecidos deste ao qual eles se aplicam163.

Por isso se tornou crucial, nas análises das páginas de Vogue, mapear sua história, incluindo a história dos muitos agentes que fizeram e fazem deste produto da mídia feminina um símbolo de excelência no mercado editorial de luxo. Quais permanências, quais esquemas de percepção e de apreciação dos princípios da visão dominante foram assegurados em Vogue ao longo da primeira década de nosso século, mesmo que dificilmente acessíveis à consciência? Pode-se dizer que a questão da violência simbólica observada nas páginas de Vogue sinaliza, antes de tudo, o papel das mulheres [brancas] numa economia de bens simbólicos, bem como o valor simbólico dessas mulheres disponíveis para troca. Paradoxalmente, as mulheres da pequena burguesia são as vítimas privilegiadas da dominação simbólica, mas também os instrumentos designados para retransmitir os efeitos na direção das categorias dominadas (BOURDIEU, 1998).

Sendo assim socialmente inclinadas a tratarem-se elas mesmas como objetos estéticos e, em consequência, a prestar uma atenção constante a tudo o que toca à beleza, à elegância do corpo, da vestimenta, do cuidado, elas se sobrecarregaram naturalmente, na divisão do trabalho doméstico, em tudo o que saiu da estética e, mais amplamente, da gestão da imagem publica e das aparências sociais dos membros da unidade doméstica, das crianças, evidentemente, mas também do esposo, que a delega muitas vezes suas escolhas vestimentares; são elas também que assumem o cuidado e a preocupação com a decoração da vida cotidiana, da casa e de sua decoração de interior, da parte de gratuidade e da finalidade sem fim que se encontra sempre o seu lugar, mesmo nas casas dos mais pobres164.

163 Ibid, p. 71 164 Ibid, p. 106 205

O capital cultural tornou-se um elemento cada vez mais importante nas sociedades contemporâneas e é através dele que ocorre a reprodução de diversos tipos de desigualdade. Transmitido muitas vezes no seio das famílias, este conceito nos convida a refletir sobre o papel dos homens no contexto da dominação simbólica, na qual a dominação masculina é bastante particular. Segundo o sociólogo, os homens também se tornaram vítimas da dominação, embora tenha deixado evidente que são vítimas relativas, pois não se modificaram tanto ao longo da história e ainda há muitos comportamentos sociais masculinos arraigados em seus inconscientes (LA SOCIOLOGIE..., 2001). Mas, se por um lado, o sociólogo chama a atenção para o sofrimento do dominante, muitas mulheres não têm plena consciência do quanto são dominadas simbolicamente. E é justamente essa a maior problemática da violência simbólica, ou seja, o quanto o dominado é “cúmplice da dominação a qual está submetido”165. A particularidade da dominação masculina é que ela resulta do fato de que homens e mulheres apresentam determinadas maneiras de ver e de pensar como frutos da dominação, “colaborando à sua própria dominação”166.

Tentando dar conta fotograficamente de um país, ele mesmo envolvido num projeto de aproximação a modelos (culturais ou não) estrangeiros, a literatura fica ainda bem mais longe de seu desejo mimético. Em busca de um modelo que, por sua vez, também tenta reduplicar outro, mais parece tratar-se de uma casa de espelhos, onde todos querem refletir uma imagem que, de sua parte, é igualmente o reflexo de outra (SÜSSEKIND, 1984, p. 39).

No início da década de 1980, Flora Süssekind chamava a atenção para o fato de que não há nada mais condenável, em uma ótica estritamente nacionalista, do que a repetição de alguma fórmula estrangeira: “de um lado, há a exigência documental ao país; de outro, a obrigação de não se copiar nada que tenha vindo de outro lugar”167. Como o discurso ideológico, também o nacionalista se caracteriza pelo ocultamento da divisão, das diferenças e da contradição.

165 Ibid. 166 Ibid. 167 Ibid, p. 39 206

Compreender qual lógica está implícita no princípio de transformação que rege a “importação” das ideias estrangeiras a partir da produção do discurso em Vogue Brasil significa considerar para além de transformações históricas determinadas no caso de uma sociedade “dependente”, na direção de uma transformação primeira que se opera na ideologia “importada” frente à cultura que a adota – neste caso, a cultura brasileira em relação à cultura francesa. Segundo Pierre Bourdieu e Luc Boltanski (1975, p. 12, tradução nossa), “o poder sobre a língua é sem dúvida uma das dimensões mais importantes do poder”. Baseados nos escritos do linguista Ferdinand de Saussure, apontam para o fato de que “não é o espaço que define a língua, mas a língua que define seu espaço”168. Ou seja, esta lógica autônoma permite a existência de um “código legislativo das práticas comunicativas”, para além de seus utilizadores e de seus usos, apresentando todas as propriedades comumente reconhecidas pela língua oficial – esta última, portanto, beneficiando as condições políticas e institucionais necessárias à sua imposição.

[...] assim, reconhecida e conhecida (mais ou menos desigualmente) pelo conjunto dos “sujeitos” de uma nação, ela contribui para reforçar a unidade política que funda sua dominação, assegurando entre todos os membros desta unidade o mínimo de comunicação que é a condição da produção e mesmo da dominação simbólica169.

Identifiquei, nas páginas da seção “Ponto de Vista” das edições brasileiras de Vogue, os seguintes termos escritos por seus editores, entre eles Ignácio de Loyola Brandão e Daniela Falcão: “panorama vol d’oiseau” (BRANDÃO, 2004, p. 67); “faça as malas já e bon voyage!” (FALCÃO, 2007b, p. 137); “para férias comme il faut” (FALCÃO, 2009, p. 112). Nesse sentido, estaria a língua francesa legitimada simbolicamente no campo da moda brasileira apresentada por Vogue? Pode-se dizer que sim, pois vimos, e veremos ao longo deste capitulo, o quanto os profissionais da “produção do discurso” da elite [branca] se apropriam de termos estrangeiros (principalmente de origem francesa) no contexto da eficácia simbólica da “capital da moda”.

168 Ibid, p. 3, tradução nossa 169 Ibid, p. 3, tradução nossa 207

Cabe ainda ressaltar a relação de força simbólica que “afeta realmente o valor que é objetivamente conferido aos produtos linguísticos dos diferentes locutores e desta forma modifica suas disposições e suas práticas” (BOURDIEU; BOLTANSKI, 1975, p. 5, tradução nossa), cujos efeitos são de ordem econômica e política. Isso inclui pensar essa relação no contexto de duas línguas diferentes, faladas em duas formações sociais diferentes – não estando o Brasil, entretanto, em uma condição econômica e política de completa independência em comparação à França no mercado globalizado da alta moda e do prêt-à- porter de luxo. O “fetichismo da língua” discutido por Bourdieu e Boltanski (1975) está relacionado com as teses de Bernstein e Labov (no contexto do mercado escolar e do trabalho) e diz respeito à negação – em nome de um relativismo elementar – do “fato da legitimidade” da língua, ou seja, do que é “socialmente reconhecido como absoluto – e não somente pelos membros da classe dominante –, quer dizer o uso dominante, desconhecido como tal, então reconhecido como legítimo” (BOURDIEU; BOLTANSKI, 1975, p. 8, tradução nossa). Desta forma, tal fetichismo estaria deixando de perceber os fundamentos sociais do valor atribuído ao uso legítimo e objetivo da língua. As escolhas dos termos em língua francesa presentes nos textos de Brandão e Falcão em Vogue Brasil podem mesmo ser vistas como “mecanismos objetivos segundo os quais se formam os preços atribuídos aos diferentes tipos de discursos e que tendem a assegurar o mais alto valor aos produtos linguísticos dos membros da classe dominante”170. Assim, o capital linguístico deste periódico operado no contexto brasileiro produz sua distinção editorial no mercado nacional de periódicos de moda e subsiste apenas “por e para um campo de produção e de circulação funcionando enquanto mercado para a classe correspondente de bens culturais ou, se preferirmos, por e para um conjunto de produtores-consumidores suficientemente convencidos do valor dos jogos considerados”171. Desta forma, diferentes níveis do discurso geram um valor social na confrontação sobre um mesmo mercado, apresentando sobre as relações diferenças que são significativamente sociais. Isso nos faz pensar que o próprio efeito de uma dominação simbólica é bem melhor percebido quando invisilizado ou mesmo abolido.

170 Ibid, p. 8 171 Ibid, p. 12 208

O acesso a uma língua até aqui dominada ao estatuto de língua oficial, quer dizer politicamente e culturalmente legítima, investido de uma espécie de autoridade intrínseca enquanto instrumento de expressão autorizada da autoridade, tem logicamente como efeito, como o vemos no momento onde países até aqui colonizados conquistam a independência, de legitimar os detentores desta língua para se apropriar das posições de poder e das gratificações materiais correlativas172.

Esses mesmos autores salientam ainda a existência de uma sociologia da linguagem, da mesma forma que uma sociologia do corpo, identificando ainda que o caráter estrtutural de ambas “[...] coloca os sistemas estruturados de diferenças linguísticas sociologicamente pertinentes em relação com sistemas igualmente estruturados de diferenças sociais173. Usufruindo da capacidade de falar a “língua legítima” ou do poder de se “apropriar da língua socialmente reconhecida como a única digna de ser apropriada”174, os editores de Vogue Brasil devem possuir, portanto, a competência linguística e cultural suficiente para formar frases suscetíveis de serem compreendidas pelas leitoras da revista quando se apropriam da língua francesa no interior de seus discursos sobre a moda brasileira. Nesse sentido, competência linguística deve ser entendida enquanto “maneira socialmente condicionada de realizar uma potencialidade natural que apresente as mesmas variedades existentes nas condições sociais de aquisição”175. Pode-se dizer que Vogue Brasil busca leitoras deduzidas de uma parte do efeito de distinção, quer dizer do “valor de raridade que os produtos linguísticos [...] recebem, tanto sobre o mercado de trabalho quanto sobre o mercado de bens simbólicos, tendo em vista sua posição na estrutura da distribuição dos produtos (e das competências)”176. Assim, a língua é – pelo efeito de apropriação exclusiva – um

172 Ibid, p. 13, tradução nossa 173 Ibid, p. 14, tradução nossa, grifo do autor 174 Ibid, p. 29, tradução nossa 175 Ibid, p. 14, tradução nossa 176 Ibid, p. 16, tradução nossa 209 instrumento de apropriação de perfis materiais e simbólicos, um “princípio de diferenças e de legitimação dessas diferenças”177. Muitos dos “relatos midiáticos” encontrados em Vogue, considerados como efeitos discursivos determinados no tempo e no espaço, definem nos primeiros anos de nosso século as condições de exercício de suas funções enunciativas. Nesse sentido, a construção da branquitude em Vogue Paris permite observar como outros marcadores sociais são tramados, articulados, interpenetrados:

[...] não são as diferenças visíveis enquanto tais, mas o valor que a sociedade atribui a essas diferenças, que é o fundamento da rejeição e da exclusão. O termo raça deve, então, ser entendido aqui em seu sentido mais amplo. Ele engloba ao mesmo tempo a cor e uma constelação de marcadores frequentemente visíveis, supostos a representar o pertencimento étnico, a origem nacional, a religião e a cultura (KEBABZA, 2009, p. 146, tradução nossa).

Ou seja, as funções enunciativas devem ser vistas a partir de uma estrutura relacional de poder e de um evidente desejo de renovação, pois se realizam sob a forma de uma hierarquia de valores classistas, de domínios pessoais, de representações étnicas, raciais, sexuais e de gênero, de linguagens, de sujeitos construídos socioculturalmente e, sobretudo, de competências legitimadas e reproduzidas – mesmo que às vezes pareçam ser contestadas no e pelo campo da moda contemporânea de vanguarda, mais especificamente por Carine Roitfeld.

4.1 VOGUE PARIS POR CARINE ROITFELD: IMAGENS, DISCURSOS E NARRATIVAS DE UMA REVOLUCIONÁRIA?

Foi a primeira vez que eu [Roitfeld] atuei no topo de uma revista, e desde o início eu me cerquei do melhor: os melhores estilistas, fotógrafos e jornalistas. Se você escolhe o melhor, você não faz isso para ditar ou impor o que você quer fazer com eles. Eu não sou em absoluto castradora. O

177 Ibid, p. 18, tradução nossa 210

que eu fiz foi deixar a bola rolar e então Vogue Paris recuperou o seu sentido de luxo. Eu acho que eu consegui restaurar a imagem de Vogue Paris, ao rejuvenescer esta instituição, e estou orgulhosa disso (ROITFELD, ZAHM; HORYN, 2011, p. 360, tradução nossa).

Olivier Zahm afirma que hoje os editores de moda, fotógrafos e diretores de arte não estão simplesmente criando imagens de moda, eles próprios são “a imagem viva da moda”. Para ele, Carine não é apenas mais um ícone do street-style178, é também a musa dos designers do momento, que a olham como uma inspiração – logicamente sua influência se deve ao fato de que comandou e revolucionou completamente as edições da Vogue francesa entre 2001 e 2011.

A influência de Carine Roitfeld é antes de tudo o seu próprio fazer - fruto desse glamour nervoso, chique e ousado que é dela e só dela. Seu estilo é tanto forte e assertivo quanto de difícil descrição, por isso depende muito mais de como ela usa as roupas e de quais marcas e grifes ela escolhe. Isto é o que faz da atitude de Carine Roitfeld tão inimitável, e, ao mesmo tempo, a torna um modelo importante para os outros. Na América, seu estilo é considerado subversivo porque ela brinca com códigos eróticos. E, ainda, a própria Carine Roitfeld é certamente menos obviamente sexy do que muitas mulheres Americanas. Síntese da Parisiense chique e a quintessência da linha feminina Francesa, o maior temor de Carine é cometer um passo em falso na moda. Então ela se veste adequadamente, sobretudo de preto ou bege, justapondo diferentes texturas ou peças de couro com diferentes brilhos, adicionando traços de branco aqui e ali, enquanto evita o exagero de cores vivas (ROITFELD, ZAHM; HORYN, 2011, p. 5, tradução nossa).

178 “Estilo de rua”, como o próprio termo define. Faz referência ao que está sendo usado pelas pessoas nas ruas de diferentes lugares do mundo, sobretudo em grandes centros urbanos. Historicamente está associado ao processo de democratização da moda, remetendo a um estilo “autoral” de vestir, rompendo com padrões estéticos de gosto ditados pela (alta) moda contemporânea. 211

O consenso é que, entretanto, o estilo burguês criado por Carine (que cresceu em um bairro próspero de Paris) possui uma qualidade rock and roll mais libertadora e ousada do que aquelas de alguns de seus colegas. Deve ser porque Carine confia em seu próprio instinto e sensibilidade179. Segundo Zahm, além de Carine ser uma estilista francesa com descendência russa que inventou a estética porno-chic, é ainda o “homônimo da mulher Parisiense, apesar de seu estilo de assinatura minimalista ter sempre uma aresta erótica discreta”180, que ama a lingerie luxuriosa mas sabe dosar sua carga erótica com elegância e estilo próprio.

Como qualquer mulher Parisiense que se preze, ela ama a lingerie luxuriosa, meias ao invés de calças justas, e couro preto. Mas estes tons eróticos devem ser discretos, refinados e escolhidos com cuidado, de gosto assegurado. Não há lugar para vulgaridade no sex appeal poderosamente assertivo de Carine Roitfeld. Para uma mulher com acesso ilimitado a cada novo look concebido e nova moda, é impressionante como Carine tem sido capaz de se manter fiel a ela mesma e a seu próprio estilo. Ela nunca parece como se estivesse “vestida” por uma grife de moda181.

Ainda conforme Zahm, Carine Roitfeld pode ser vista como uma “mulher Newtoniana”, mesmo que nunca tenha trabalhado com o fotógrafo Helmut Newton182, o “mestre do fetichismo”183. Newton dizia que em suas fotos deveria haver certo aspecto de disponibilidade na mulher fotografada: “Eu acho que a mulher que aparenta estar disponível é sexualmente muito mais excitante do que uma mulher que está completamente distante. Este senso de disponibilidade eu acho erótico”184. Esta é a lição que, na opinião de Zahm, pode ser aprendida

179 Ibid, p. 7, tradução nossa 180 Ibid, p. 7, tradução nossa 181 Ibid, p. 7, tradução nossa 182 Citado no capítulo anterior, este fotógrafo teve um profundo efeito na jovem Carine, agindo transversalmente entre moda e sexualidade. 183 Ibid, p. 9, tradução nossa 184 Ibid, p. 9, tradução nossa 212 sobre o estilo de Carine: sempre criar a impressão incerta que a mulher está disponível, sem nunca o dizer abertamente. Moda, para Carine, parece estar em “pé de igualdade” com boas condutas, quando o assunto é erotismo:

Isso mantém os homens à distância, ao mesmo tempo em que os atrai. Ela exerce uma mistura inteligente de elegância e convenção burguesa, de um lado, e provocação e liberdade, de outro. Este é o lado Belle de Jour de Carine Roitfeld, que faz dela – lado Russo não suportado – a quintessência da mulher Francesa. Disso você pode estar certo (e eu sei, porque eu tentei esta linha de questionamento inúmeras vezes): você jamais irá encontrar algo sobre a vida sexual de Carine185.

Segundo Cathy Horyn, Carine não tem medo de ser audaciosamente sofisticada e sexual nas imagens que cria, se educadamente indisponível. Ela parece compreender que

[...] as raízes de toda a moda são o esnobe, o caro, o erótico, e que isso depende de um panorama de mulheres difíceis – instintivamente femininas e refinadas, mas não excessivamente educadas – para convencer o resto de nós a ignorar nosso melhor julgamento e jogar junto186.

Diferentemente de outros periódicos voltados ao público feminino, em Vogue Paris as funções de redação geral e direção artística ficaram a cargo da mesma pessoa: Carine Roitfeld, que atuou, portanto, também na linha estilística do periódico entre 2001 e 2010. Roitfeld precisou de certa ousadia para distanciar-se das “convenções românticas dos ensaios editoriais – belos como aliás devem ser, com disfarces e matizes de excentricidade – e olhar para dentro, embora raramente mais do que a profundidade da pele”187, moldando um caráter baseado em sua própria personalidade provocadora:

185 Ibid, p. 9, tradução nossa 186 Ibid, p. 14, tradução nossa 187 Ibid, p. 14, tradução nossa 213

Atualmente, eu amo violar os códigos da elegância burguesa. Eu amo saltos altos com calças compridas e um sutiã preto embaixo de uma camisa branca. É provavelmente uma reação à minha educação burguesa, mas é também uma forma de mostrar um guarda-roupa de mulher por um ângulo diferente, ultrapassando a convenção e perturbando as regras da sedução188.

Nesse sentido, tratar a carga erótica com elegância parece ser uma escolha estratégica de Roitfeld, que acabou garantindo sua permanência no comando da versão francesa de Vogue, bem como sua posição junto ao grupo Condé Nast por dez anos. Pode-se dizer que a branquidade produzida no período analisado (correspondente ao período no qual Roitfeld foi a redatora-chefe) está em sintonia com o próprio modo de conceber e apresentar o corpo [branco] em Vogue Paris, mascarando discursivamente o privilégio racial e classista com boas doses de erotismo, liberdade e elegância – aspectos culturais e simbólicos que acabam naturalizando historicamente as míticas figuras da courtisane chic [cortesã chique] e da Parisienne [Parisiense].

4.1.1 A cultura [branca] estético-erótica francesa

Isabelle Paresys (2012), em Corps, apparences vestimentaires et identités en France à la Renaissance, identifica o corpo vestido aristocrático francês como um “corpo constitutivo da distinção, tão bem interiorizado pela elite social”189. Ele é, ao mesmo tempo, eloquente (marcador de identidades sexuais, sociais, étnicas), constrangido (causa impressão de dignidade e de nobreza) e magnificado (pela ornamentação, pelas cores e acessórios vestimentários). Herança de alguns séculos, a “elegância francesa” foi descrita notavelmente no século XIX, sendo vista por Charles Baudelaire à luz de grandes contradições e incertezas da modernidade. Nessa época, emerge justamente a figura da cortesã, mulher vinda de meios populares que se lança na conquista de Paris tendo como única arma o poder de seu sexo. Considerada um “luxo público”, a cortesã era muitas vezes um

188 Ibid, p. 137, tradução nossa 189 Ibid, p. 6, tradução nossa 214 caro privilégio reservado às classes mais altas, uma espécie de signo exterior de prestígio, possessão e riqueza. Muitas dessas mulheres inspiraram os escritos de Émile Zola, peças do filho de Alexandre Dumas, além das gravuras em cartazes de Toulouse Lautrec – que criou o famoso cartaz Reine de Joie em 1892, baseado no romance de Victor Joze, ilustrando “os amores venais de um banqueiro” (LORQUIN, 2002, p. 4). Caroline Otero, Liane de Pougy e Lina Cavaliéri (Figura 58), além de Cora Pearl e Nana (pintada por Édouard Manet, em 1877), todas elas brancas, andavam cobertas de joias e usavam vestidos extremamente sofisticados. É interessante notar como as cortesãs de maior sucesso tornaram-se símbolos eróticos nacionais [brancos] a partir da construção de uma branquidade legitimada pelos prazeres proporcionados pelo luxo burguês.

Figura 58: As courtisanes Caroline Otero, Liane de Pougy e Lina Cavaliéri. Fonte: Ebel (2012).

Ao contrário da figura da esposa burguesa preservada dentro de casa como um tesouro secreto e exibido somente em grandes ocasiões, a cortesã tem seu custo legitimado pela permanente exposição. A imagem desta última retornou à cena da alta moda e do prêt-à- porter de luxo no final do primeiro decênio de nosso século: escandalosamente erótica, foi vista como objeto simbólico de um consumo ostentador e associado ao ethos do erotismo parisiense – notavelmente o de Madame Claude, que inaugurou um bordel de luxo na década de 1950, na região dos bosques de 215

Boulogne (um dos lugares de prostituição mais conhecidos em Paris). Em setembro de 2009, Vogue Paris evoca o estilo courtisane chic [cortesã chique] (Figura 59), que, segundo Loïc Prigent (2009, p. 235, tradução nossa), é um “eco do pornô chic dos anos 90 [...] é o novo movimento que soa a sentença de morte do humor crise. Uma onda detectada nas passarelas que celebra antes o corpo e a estação dos prazeres”.

A prostituição é então um dos grandes temas da estação. Os criadores a vislumbram de forma totalmente apolítica, sem pinças nem hipocrisia, apenas algumas sobrancelhas de jornalistas americanos que pareciam nervosos nos momentos mais evidentes da tendência. O fantasma de Madame Claude assombra as coleções. Há o nome Claude escrito na altura das coxas de uma calça estreita e aberta entre as pernas em Charles Anastase. Ele propõe também o traje inteiramente em paetê preto, exceto dois pequenos círculos de paetê vermelho, sobre os seios. Na Chanel, havia Freja em um vestido decotado fulgurante, e podíamos vê-lo como uma alusão às recepcionistas de muita classe que podiam ter triplex na avenida Foch nos anos 70190.

Rendas, transparências, decotes e micro-peças fizeram parte das propostas de criação apresentadas por marcas norte-americanas e europeias nas semanas de moda de Paris, notavelmente , Dior, Louis Vuitton, Miu Miu, Prada e Hussen Chalayan.

Figura 59: Imagens da matéria Courtisane chic!. Fonte: Vogue Paris (2009b, p. 235 e 236).

190 Ibid, p. 235, tradução nossa 216

Todo o espírito sexual, trágico e expressivo de jovens mulheres que se divertem, que n’ont jamais froid aux jambes [jamais têm frio nas pernas] representou, no final da primeira década de nosso século, uma opulência pós-crise que exibe o corpo na falta da riqueza: “após a princesa altiva intocável, aqui está a jovem segura de seus charmes, que não hesita em acrescentá-los fortemente para fisgar o, a ou os clientes”191. Desta forma, acredito que as análises qualitativas dos editoriais de moda publicados em Vogue Paris neste capítulo demonstram o quanto “o erótico é uma construção sociocultural, ligado às estruturas de poder que permeiam a experiência”, como afirmou Luciana Klanovicz (2010, p. 99). No contexto francês mais recente, Roitfeld retoma o antigo estilo porno-chic, reatualizando-o na figura emblemática da cortesã chique. Tal manobra de mercado reflete o quanto “a relação entre poder e erotismo só é entendida situando o erótico em relação a outros sistemas que examinamos” (KLANOVICZ, 2010, p. 99). No ano anterior, Vogue Paris produz o editorial Ça, c’est Paris (Figura 60). Fotografado por Peter Lindbergh e realizado por Carine Roitfeld, faz parte de uma edição dedicada à França, na qual Roitfeld e sua equipe empenham-se na representação ideal da mulher francesa já na abertura dos editoriais de moda da edição:

Como definir a mulher francesa? Em algumas palavras. LIVRE e sofisticada. Talentosa para o PRETO e a NUDEZ. Indiferença do gesto, vivacidade do espírito. Uma maneira IMPRESSIONANTE de movimentar, de fumar. Uma APARÊNCIA indefinível. Ela se consome com PAIXÃO, ela inspira. Yves Saint Laurent, CHANEL, , ou ainda NICOLAS GHESQUIERE, para citar apenas estes, traçaram os contornos de seu ESTILO, dão a ela suas cartas de NOBREZA. De repente, mesmo que hoje a MODA vibre em escala mundial, a FRANÇA conserva um LUGAR À PARTE. Este número é a PROVA disso (ROITFELD, 2008c, p. 36, tradução nossa, grifo do autor).

É possível afirmar, logo de início, que a associação simbólica da mulher francesa com a atitude de liberdade e com o senso de

191 Ibid, p. 236, tradução nossa 217 sofisticação é construída linguisticamente a partir da eficácia simbólica e distintiva da França (ou melhor, de “Paris”, como ressaltei já no segundo capítulo desta tese) em relação a outros lugares do mundo. As imagens do editorial ajudam a entender ainda melhor esta construção e serão analisadas neste momento.

Figura 60: Imagens do editorial Ça, c’est Paris. Fonte: Vogue Paris (2008b, p. 172-183).

Lançando uma perspectiva histórica sobre o uso político do discurso da moda no contexto francês, Kate Best (2008, p. 4) afirmou que a moda tornou-se o “significante privilegiado da criatividade Francesa”. Em Ça, c’est Paris, pode-se ler o seguinte texto, logo na primeira página do editorial:

Pequenos vestidos pretos, detalhes lingerie, gosto declarado pelo acessório e senso refinado de provocação… Talhada no couro ou cortada na seda, ornamentada de joias de criadores ou de tesouros da Alta joalheria, a panóplia da Parisiense, olhadela nas garotas de Madame Claude, emprega todos os charmes de sua 218

mitologia (ROITFELD, 2008c, p. 172, tradução nossa, grifo do autor).

A branquidade produzida por meio de signos de liberdade e sofisticação (como a nudez e o preto, por exemplo) é construída justamente a partir do valor simbólico que a sedução adquire na maneira de pensar a identidade nacional francesa. Mas a sonhada liberdade republicana parece se dissolver discursivamente diante da herança da cultura estético-erótica associada à nobreza francesa, incorporando traços de um “republicanismo aristocrático” (SCOTT, 2012), que será abordado mais adiante, ainda neste tópico. Vogue Paris refere-se frequentemente à figura da Parisienne, esta arquetípica mulher que, como bem definiu Agnès Rocamora (2006, p. 48), constitui de uma só vez “a essência da feminilidade Francesa e um ser superior, cuja identidade reside em seu pertencimento ao território Parisiense”. As nobrezas são essencialistas, como disse Bourdieu (2007). Este editorial que analiso é um bom exemplo de como a construção discursiva da figura da Parisienne perpetua a emanação de uma essência. Trata-se de um essencialismo que, além de se manifestar claramente nos matizes da maneira de ser, “leva-as [as nobrezas] a impor a si mesmas o que lhes impõe sua essência – ‘noblesse oblige’ (quem é nobre deve proceder como tal) -, a exigir de si mesmas, ou seja, de sua essência” (BOURDIEU, 2007, p. 28). Best (2008, p. 4) apontou que “a figura de La Parisienne tornou- se a expressão mercantilizada da feminilidade na moda e ‘parisien’ estava em primeiro plano no discurso como a variante chave do desejo”. A moda francesa não é somente um poderoso significante da criatividade francesa, mas “do simbolismo aristocrático de poder e prestígio” (BEST, 2008, p. 4). Nesse sentido, signos visuais e linguísticos operam em conjunto por meio de um jogo simbólico, à espera de interpretação. A escolha do preto e branco conota toda a sofisticação e o refinamento que Vogue quer associar à imagem da mulher Parisiense, ou melhor, das mulheres – pois ganham força estética, plástica e icônica por sua presença constante, que reforça a “mitologia” das garotas de Madame Claude, garantida ainda pela grande semelhança entre elas – não somente física [brancas, jovens, altas e extremamente magras].

La Parisienne, como a celebridade, é um modelo para a emulação. Em Vogue [Paris] isso é mais claramente epifanizado na seção ‘Fille en Vogue’ 219

e no mais recente ‘une Fille, un Style’, onde o estilo sofisticado da mulher da capital é desvendado às leitoras. Estes são os detentores do alto ‘capital cultural’ demonstrado por meio do conhecimento, quando eles compartilham dicas e acessórios de moda, e também por suas possessões, quando revelam seus itens favoritos. Aparecendo ao lado de páginas com modelos profissionais, estas mulheres são transformadas por direito próprio, posando em suas roupas modernas. Sua presença em Vogue, o ponto alto da mídia de moda Francesa, é legitimado pelo lugar no mapa da moda Francesa192.

Determinadas posturas e olhares fazem parte da maneira como a Parisiense quer ser vista e desejada: representada por mulheres que interagem entre si com “indiferença de gesto” e “vivacidade de espírito”, como bem definiu Roitfeld, que fixam seus olhares no observador todo o tempo, numa espécie de “provocação” erótica, mas com uma classe absoluta. Trata-se da produção de signos distintivos do espírito parisiense, que fazem da Parisienne uma mulher “impressionante”, “apaixonada” e positivamente “indefinível”. Neste contexto, os clássicos vestidinhos pretos [petites robes noires], as abundantes joias de grife, a lingerie e as meias pretas longas, os altíssimos saltos do tipo agulha, os braceletes de couro e os cabelos presos em ondas legitimam claramente a cultura da sedução francesa. As pernas à mostra revelam uma nudez bastante ligada à imagem de Roitfeld – conforme fica evidente, no editorial La joueuse... aux jambes nues [A jogadora.. de pernas nuas], no qual ela mesma produz uma espécie de auto-retrato193. Ainda em Ça, c’est Paris, a “aura de Paris” é celebrada por um dos símbolos mais conhecidos no mundo e associado diretamente à imagem da capital da moda: a Tour Eiffel, posicionada estrategicamente em uma zona erotizada do corpo feminino, histórica e socioculturalmente.

Ao lado da femme fatale, a garçonne ou a femme active, La Parisienne é uma das identidades femininas em oferta na imprensa de moda. E

192 Ibid, p. 49, tradução nossa, grifo do autor. 193 ROITFELD, Carine. La joueuse... aux jambes nues. Vogue Paris. Paris: Les Publications Condé Nast S.A., n. 834, février 2003, p. 156-163. 220

como a palavra ‘Paris’, ela tem sido apropriada pela retórica da moda para significar moda, ou, conforme Barthes coloca como ‘roupa escrita’, ‘para transmitir uma mensagem cujo conteúdo é: Moda’ (1990:8). Transformada numa categoria de moda, La Parisienne é o resultado de um processo [...]. Paris, por meio de La Parisienne, permanece firmemente colocada na esfera superior de todas as coisas. A aura de Paris é ainda mais reforçada e, deste modo, sua dominância sobre o resto da França mais legitimada194.

A Parisienne se torna uma incorporação material da capital francesa, “da mesma forma que o espírito de Paris ainda é celebrado, possui então algo de sua manifestação carnal”195. Pode-se dizer, portanto, que é Paris que dá à mulher parisiense sua identidade. Na mesma edição, a matéria French Touch [Toque Francês] traz a figura de (Figura 61), com o seguinte texto: “beleza star doravante florescida no cinema, um rosto de , LAETITIA CASTA é segundo os Franceses das mais populares. Caminho de atriz, uma jovem mulher, falando sem rodeios, que está bem DECIDIDA a tomar o tempo de crescer. Sem trapacear” (CHAON, 2008, p. 162, tradução nossa, grifos do autor).

Figura 61: Imagem da matéria French touch. Fonte: Vogue Paris (2008b, p. 162 e 163).

194 Ibid, p. 54, tradução nossa, grifo do autor. 195 Ibid, p. 51, tradução nossa 221

Trata-se de um bom exemplo de como a sedução francesa é apropriada no discurso midiático de Vogue, incorporando valores de um “republicanismo aristocrático”, a partir dos quais se pode ver a construção da branquidade em Vogue Paris. Na entrevista, Laetitia Casta fala sobre a encarnação de um “francês chique”, da associação de sua imagem à figura de Marianne por meio da representação da República Francesa, da liberdade de ser mulher e de padrões estéticos de beleza:

-Você está na capa desta Vogue especial França: você se sente a encarnação de um francês chique? LAETITIA CASTA: (ela ri e hesita) Não realmente! Mas isso me dá um grande prazer! Na verdade, eu sempre viajei e eu sinto que sou uma alma de nômade. -Você foi uma Marianne também… Sim, mas há algo mais simpático para se fazer! Eu não achava muita semelhança alias, mas não importa, isso pertence aos outros. Na época, eu gravava La Bicyclette bleue e achava que havia uma coerência com a história que se produzia. Eu tenho sempre necessidade de estar aqui para todos e ao mesmo tempo de não pertencer a ninguém. Tenho necessidade desta liberdade, mesmo em minha vida, é meu equilíbrio. -Mesmo com seus homens? … Sim, eu não vejo porque (ela ri!) você diz "meus homens"! Enquanto mulher, tenho necessidade principalmente de me pertencer, de ser livre e estou aqui por escolha, não porque é imposto… Eu frequentemente senti este estatuto de mulher objeto e me separar hoje deste olhar é muito importante. Às vezes, o que se propõe às mulheres é um pouco limitado. Eu mesma, eu veiculo esta imagem e hoje eu adoraria falar sobre isso: propomos às mulheres algo de perfeito, porém inteiramente falso, construído. […] É uma falsa liberdade, contamos a elas mentiras. Do contrário, são as primeiras rugas que deveríamos mostrar. A caminhada que estou prestes a realizar é justamente para chegar a isso: sentir-me bem enquanto mulher196.

196 Ibid, p. 168, tradução nossa 222

Atuando em importantes desfiles de marcas de luxo francesas (como Louis Vuitton e Yves Saint Laurent, por exemplo), não foi difícil para Casta ter sua imagem associada à figura da República Francesa. Não podemos negligenciar o fato de que esta atriz francesa vinha sendo legitimada no campo da moda ao longo da primeira década de nosso século, sendo eleita para ser o modelo do busto da Marianne de l’an 2000197, assunto que logicamente fez parte da pauta da entrevista da edição Junho/Julho de 2008. Na imagem da matéria citada (produzida por Carine Roitfeld), Casta parece incorporar de fato uma “revolucionária extremamente sedutora”, uma mulher jovem e ativa, provocante e provocadora ao mesmo tempo. A brancura europeia é revelada pela nudez parcial e estrategicamente programada para fazer referência ao corpo despido – atrás do vestido que a atriz segura com uma das mãos, com destaque para os seios, o quadril e as coxas – de formas notavelmente curvilíneas, realçadas pelos efeitos da iluminação escolhida por Mario Testino. As ondas dos cabelos castanhos avermelhados, os olhos pretos, a boca marcada, as longuíssimas botas pretas de renda com amarração em cordões, assim como o conjunto da postura corporal assumida por ela (pernas abertas, tronco levemente inclinado para frente e a outra mão posicionada sobre uma das coxas), contribuem para deixar Laetitia ainda mais sexy. Segundo Joan Scott, a sedução é uma teoria especificamente francesa. Quando esta autora cita outras feministas como Mona Ozouf e Zrinka Stahuljak, que se opuseram a uma sedução pródiga no lugar da igualdade – pois para elas esta é uma “versão naturalizada, a-histórica, da inegalidade” (SCOTT, 2012, p. 158), procura então reforçar que tal teoria estaria dando voz a uma antiga tradição artística e literária ostentadora dos “louvores” de toda uma cultura estética e erótica típica da nobreza francesa. A sedução francesa, ao mesmo tempo pública e privada (SCOTT, 2012), estaria propondo assim uma espécie de versão fantasiosa do passado, baseada justamente na perpetuação discursiva de uma característica nacional:

197 Concurso organizado pela Association des maires de France (AMF), com a presidência de Jean-Paul Delevoye. Outras celebridades emprestaram seus traços à representação da Marianne: (1968), Mireille Mathieu (1978), Catherine Deneuve (1985), Inès de la Fressange (1989), Evelyne Thomas (2003). Fonte: . 223

A sedução permitiria tornar homogênea a liga ideológica incoerente entre a hierarquia (a aristocracia) e a igualdade (a república) que é o republicanismo aristocrático; ela oferece, além disso, uma forma de neutralizar as tendências equalizadoras da democracia ao apelar à tradição histórica. É neste sentido que ela sublinha não a historia, mas o mito na definição dada por Lacan: “O mito é sempre [...] uma organização significante, um rascunho se assim preferir, que se articula para suportar as antinomias de certas relações psíquicas” (SCOTT, 2012, p. 159, tradução nossa).

É desta forma que podemos entender porque a imagem da mulher parisiense está simbolicamente associada ao “senso de provocação inato apreendido de Paris” ou ainda a “todos os charmes da mitologia de Madame Claude” – termos usados por Roitfeld nos textos da citada edição (junho/julho de 2008) de Vogue Paris. O mito francês da sedução é particularmente interessante porque “ele difere das representações do gênero e da família geralmente utilizadas para descrever a organização dos Estados e dos traços de uma característica nacional”198. Assim, as comodidades da sexualidade (que a teoria francesa da sedução considera como componentes essenciais das relações entre os gêneros) não dizem respeito nem à família nem aos filhos, pois são regidas pelo ritual, assentadas sobre um conhecimento mútuo da regra do jogo:

A sedução não cumpre nenhuma função social evidente e, portanto, nos escritos dos proclamadores da “especificidade francesa”, ela se torna um modelo para certos aspectos do funcionamento da sociedade. Neste modelo, a diferença é vista como um terreno de jogo; este terreno não é aquele da guerra dos sexos nem o da luta de classes. O conflito, a coerção e a dominação masculina não possuem nenhuma parte nesta visão da sedução. Contrariamente, aos diferentes desejos das mulheres e dos homens é concedida a mais ampla liberdade. Cenas mostrando a conquista alegre do prazer sexual

198 Ibid, p. 160, tradução nossa 224

convidam o leitor a se identificar com tais imagens, estimulando seu próprio desejo de endossar os mesmos papéis e de ver neles o fundamento de um outro sistema de relações entre as pessoas199.

A partir de certa economia passional, a sedução pode ainda ser traduzida pelo investimento “meio-sério, meio-irônico dos famosos papéis tradicionais” (RAYNAUD, 1989 apud SCOTT, 2012, p. 162), numa aparente contradição que ajuda a entender um pouco mais sobre as representações da incorporação das maneiras refinadas aristocráticas nas práticas republicanas.

4.1.2 O culto da livre atitude [republicana] da mulher parisiense

Em abril de 2002, Carine Roitfeld declara seu ponto de vista no texto intitulado À chacun son destin, celebrando o “destino de cada um”:

Sem caminhos que se separam, ou barcos na noite, ou estações, sem o trágico aos kilômetros. Vogue vos poupa dos lugares comuns dos destinos sentimentais, de toda miscelânea banal do fatal. Niki, Gore, Marisa, Calvin, Claudia, Anne, Yoko, Marlon, Joana, Steve, Andrea, Athina… Suas imagens, roubadas (por Ron Galella, pelo olho de Vogue) ou construídas - por , Nathaniel Goldberg, Mario Testino, David Armstrong, Inez van Lamsweerde e Vinoodh Matadin - são os instantâneos de vidas reais ou sonhadas, as rajadas de tantos destinos. Felizes ou sombrios, extravagantes ou secretos, nenhum é simplesmente sofrido, todos são assumidos, revindicados, vividos plenamente. É neste ponto que eles se encontram, que se cruzam. E é o que torna cada um deles único (ROITFELD, 2002, p. 173, tradução nossa, grifo do autor).

199 Ibid, p. 161, tradução nossa

225

Na mesma edição francesa, os editoriais I Love Joana [Eu Amo Joana] (Figuras 62 e 68) e Hawaiian Punch [Pegada Havaiana] (Figuras 63 e 69) são bons exemplos para uma reflexão sobre a reprodução de imagens de mulheres [brancas] com cigarros em suas bocas no contexto francês. Assim como os editoriais Le Style Chanel [O Estilo Chanel] (Figuras 64 e 70) e Air Libre [Ar Livre] (Figuras 65 e 72), de edições de 2004 e 2007, respectivamente, nos quais Roitfeld parece reproduzir uma vontade de “emancipação e elegância feminina” construída principalmente com base na inversão de papéis sociais de gênero – embora em diferentes contextos e ambiências.

Figura 62: Imagem do editorial Figura 63: Imagem do editorial

I Love Joana. Fonte: Vogue Paris Hawaiian Punch. Fonte: Vogue (2002, p.179). Paris (2002, p. 207).

Figura 64: Imagem do editorial Figura 65: Imagem do editorial Le Style Chanel. Fonte: Vogue Air Libre. Fonte: Vogue Paris Paris (2004, p. 181). (2007, p. 171).

226

Segundo Carine Roitfeld, “você não pode negar que uma mulher fica ótima quando ela está fumando, tão livre e elegante. Mas isso não é mais permitido. Eu me convenci, entretanto, é mais fácil fazer uma foto bem sucedida com um cigarro” (ROITFELD, ZAHM; HORYN, 2011, p. 115, tradução nossa). Ela declara ainda, logo após deixar Vogue Paris, que não costuma se censurar, exceto com relação ao cigarro, mais recentemente. Outras imagens, que fazem parte do editorial L’Emprise des Sens [A Influência dos Sentidos] (Figura 66), foram publicadas na Vogue francesa em abril de 2005 e aparecem ainda no já citado livro Irreverent (sobre Carine Roitfeld), sendo acompanhadas do seguinte comentário: “Usando uma bolsa Chanel como um cinzeiro – muito típico de mim. Eu não uso cigarros em minhas fotos mais. Mas você pode imaginar Serge Gainsbourg sem um cigarro? Isso não é possível. Isso é tão romântico. Isso é Les Fleurs du Mal”200.

Figura 66: Imagens do editorial L’Emprise des Sens. Fonte: Vogue Paris (2005a, p. 171 e 177).

Na edição de junho/julho de 2008, Carine Roitfeld produz o editorial Le Chant des Sirènes [O Canto das Sereias], tendo como locação o famoso Mont Saint-Michel [Monte Saint-Michel] (Figuras 56 e 67). Uma das imagens desta produção foi também publicada no livro de Roitfeld, acompanhada do seguinte o texto: “Cadeia de fumar – isso é

200 Ibid, p. 41, tradução nossa 227 tão Francês. Foi fotografado no Mont Saint-Michel, o lugar mais visitado na França depois de Paris. Eu nunca tinha ido antes. Mont Saint-Michel é uma pequena ilha com um monastério. Eu amo esta imagem. É a França” (ROITFELD, 2008d, p. 21, tradução nossa).

Figura 67 : Imagem do editorial Le Chant des Sirènes.

Fonte: Vogue Paris (2008d, p. 133).

Retomo outros dois editoriais, I Love Joana (Figuras 62 e 68) e Hawaiian Punch (Figuras 63 e 69), pois é importante compreender que tal emancipação fez parte não somente do gosto pessoal da redatora chefe, mas de um discurso mais amplo, voltado para a consagração da livre atitude da mulher [parisiense] no século XXI – legitimada no universo da moda e presente em editoriais publicados em 2004, 2005, 2007 e 2008. Se por um lado, este discurso personifica esta imagem principalmente quando Roitfeld fala às leitoras que os destinos são “assumidos, revindicados e vividos plenamente”, por outro sabemos que tais destinos não são os de pessoas comuns. De fato, as celebridades da moda contemporânea são citadas por Roitfeld apenas por seus primeiros nomes, fato que reforça discursivamente a legitimação de uma branquidade construída pelo lugar ocupado por tais figuras no seio de uma elite [branca] francesa, no período de sua veiculação. 228

O editorial I Love Joana (Figura 68), realizado pela editora de moda Emmanuelle Alt e fotografado por Terry Richardson, fala da história da jovem cantora e humorista Joana Preiss, “nova figura livre da moda” (POINTURIER, 2002, p. 181). Nascida na cidade de Marseille, Joana soube “conservar seu jeans e suas botas”, uma espécie de anedota que, juntamente com suas fotos, contam uma parte dela mesma.

Figura 68: Imagens do editorial I Love Joana. Fonte: Vogue Paris (2002, p. 174-185).

Uma história contada plástica e iconicamente em preto e branco, na qual “sem rodeio nem encenação, Joana […] caminha sozinha pela rua, equilibrando seus contrastes violentos”201. Suas características ambíguas, seu corpo mignon e sua aparência por vezes andrógina marcam discursivamente que tudo nela fala dela mesma:

Seu rosto é uma partição inclassificável, intensa e móvel. Ela possui a luz magnética dos que vibram um pouco mais que outros. Seu carisma complexo faz fundir uma graça tenebrosa e a espontaneidade de uma criança feliz. É sua personalidade que

201 Ibid, p. 176, tradução nossa 229

fotografamos, e as roupas escolhidas poderiam ser os seios. Uma sessão de moda, como por restaurar a concordância dos estilos. "Há uma verdadeira correspondência entre o que sou fisicamente e aquilo que canto", diz ela tão naturalmente. Portanto, nos perguntamos como uma voz tão forte pode sair de um corpo tão gracioso202.

Os contrastes estão marcados não apenas pela escolha do preto e branco (como já vimos inclusive em outros editoriais franceses), mas também pelo jogo de presença/ausência de texturas e estampas (seja pelas informações visuais da rua ou das roupas), por imagens externas e de estúdio. Assim, entre as ruas de uma grande metrópole contemporânea e o estúdio fotográfico, sua caminhada parece de fato ser “mais intuitiva que intelectual”203, por meio da qual Vogue constrói a imagem da mulher livre, absolutamente autêntica, misteriosa e encantadora:

Certa vez, em Nova York, ela registrou os sons de um aquecedor público, de um caminhão de entregas. A moda é para ela uma coincidência, uma bela história de circunstâncias. O encontro com Nicolas Ghesquière, diretor artístico de , marca uma transformação que ela mesma qualifica de coerente. Ela desfila, encarna a nova campanha. Ele faz dela uma de suas musas. Ainda aqui nós a vemos como ela mesma, por sua força e naturalidade. Ainda aqui ela explora uma nova colaboração porque tudo a encanta: a personalidade do criador, as roupas, a atitude. Ela tem o oportunismo afetivo e bem nos rendemos a ele204.

Fascinada pela improvisação musical, a figura de Joana inspira a produção deste editorial, que transfere para a moda uma interpretação resultante do trabalho de criação de uma espécie de diva underground, a partir de uma narrativa não linear, complexa, instigante. Portanto, as imagens de Joana evocam sua liberdade de expressão ao mesmo tempo em que a naturalizam, por meio de um discurso que celebra as tramas de

202 Ibid, p. 176, tradução nossa 203 Ibid, p. 176, tradução nossa 204 Ibid, p. 176, tradução nossa 230 seu destino, situado exatamente na intersecção entre música, arte e moda contemporânea. Já no editorial Hawaiian Punch (Figura 69), como sugere o próprio título, a liberdade feminina está associada à força da punção, do ímpeto, da “pegada” mais especificamente havaiana. Fotografado por Inez van Lamsweerde e Vinoodh Matadin no hotel Hana Maui (Hawaí) e realizado pela editora de moda Marie-Amélie Sauvé, alterna imagens coloridas e em preto e branco:

Figura 69: Imagens do editorial Hawaiian Punch. Fonte: Vogue Paris (2002, p. 206-221).

Para compreender as representações do uso feminino do cigarro na Vogue francesa faz-se necessário desvendar ainda algo que esteja servindo como fio condutor em suas mensagens visuais. Vale ainda lembrar que, no contexto mais amplo do culto da livre atitude [republicana] da mulher parisiense, a produção da branquidade em Vogue só pode ser entendida no entrelaçamento de aspectos classistas, étnicos, raciais, sexuais e de gênero, bem como no conjunto de signos plásticos, icônicos e linguísticos (JOLY, 1996). Assim, a simples alternância entre presença/ausência de cores já sugere certo deslocamento temporal, contribuindo provavelmente para algumas rupturas no nível narrativo, de forma a causar certo estranhamento estético. Iconicamente, parece haver um Outro, que faz parte do ethos havaiano, e o próprio distanciamento temporal torna-se 231 também espacial, reforçado pelo uso de cores em tonalidades mais suaves, com efeito solar. Roupas leves, extremamente femininas de inspiração romântica contrastam com a ausência de volume nos cabelos e botas pesadas, assim como incomuns olhos claros são carregados de preto. Seria a evocação de uma liberdade andrógina por meio da exotização do “primitivo”? Ao mesmo tempo, é como se a mulher [branca] representada encarnasse todas as facetas de um novo romantismo, carregado de experimentação existencial: seus olhares, suas expressões faciais e poses corporais alternam sensações e movimentos ambíguos, tais como rigidez, tensão, surpresa, êxtase, dor, prazer, apatia e sedução. A imagem em que vemos o cigarro em sua boca abre o editorial, revelando uma atitude ousada, destemida, provocante e provocadora – típica de uma “libertina”, assumindo o papel social do gênero masculino no jogo das fantasias exóticas e eróticas – completamente à vontade para fazer o que desejar. Não somente a figura da jovem Joana Preiss serviu de fonte de inspiração para a afirmação social feminina [branca] em edições francesas de nosso século. O cigarro também apareceu no editorial Le Style Chanel (Figura 70), na edição de junho/julho de 2004, junto à boca da mítica figura de Mademoiselle Chanel. Fotografado pelo próprio estilista da marca, Karl Lagerfeld, este editorial teve como locação o apartamento onde viveu Coco Chanel.

Figura 70: Imagens do editorial Le Style Chanel. Fonte: Vogue Paris (2004, p. 170-181).

232

Emmanuelle Alt, editora de moda, apropriou-se discursivamente da imagem de uma mulher notavelmente emancipada e elegante do início do século XX para construir um ethos particular, neoclássico e glamouroso, a partir do qual se pode ler o seguinte texto:

Selo chique para além das modas e do tempo, o estilo Chanel, capturado aqui nos apartamentos da célebre Mademoiselle é uma inspiração que continua a pulsar ao acaso nas coleções. Como se o tweed de lã franjado, o preto absoluto, as joias em excesso, os tailleurs talhados à mão ou as silhuetas andróginas fossem sempre uma retórica implacável de uma mulher que ama o luxo, a audácia e a liberdade. Bom jogador, Karl Lagerfeld, o espírito de Mademoiselle hoje, fotografou suas criações, bem como as de seus colegas de moda os quais a chama Chanel continua a inspirar (ALT, 2004, p. 170, grifo do autor, tradução nossa).

Chanel inspira não somente uma nova feminilidade por meio de sua moda andrógina, mas também uma nova atitude da mulher francesa, disposta a jogar com os papéis sociais do gênero. Mas, é importante observar como a afirmação de identidades masculinas e femininas se dá por meio da submissão individual ou coletiva a um grupo étnico dominante, a partir da consciência de pertencer a uma casta (BARTHELEMY; CAPDEVILA; ZANCARINI-FOURNEL, 2011). Tal discurso, constantemente reproduzido em Vogue Paris, neste caso é evidenciado pela associação entre luxo, audácia e liberdade – uma fórmula que está presente no “estilo”, no “espírito”, na “chama” e no “selo chique” Chanel. Além disso, a extrema juventude da modelo remete iconicamente a esta capacidade de renovação constante do “espírito” Chanel, que passou a ser vendido também a uma geração mais nova. Nesse sentido, Lagerfeld foi um dos grandes responsáveis por conseguir perpetuar o legado simbólico e aumentar ainda mais a chama ligada à imagem de Chanel, com ações de marketing bastante inovadoras e criativas. Como exemplo, cito a exposição The Little Black Jacket205 (Figura 71), organizada por ele e Carine Roitfeld em Paris, que trouxe imagens

205 Exposição Chanel. La Petite Veste Noir/ The Little Black Jacket. Local: Grand Palais, Paris. Novembro, 2012. 233 fotografadas por Lagerfeld de muitas celebridades da moda, da música, do cinema e das artes em geral – sendo algumas delas oferecidas em formato poster aos visitantes.

Figura 71: Fotos da exposição The Little Black Jacket, Paris. Fonte: Novelli (2012).

Ainda em Le Style Chanel, o luxo predominante na decoração dos ambientes (em colunas, molduras e peças douradas de estilo neoclássico) pode ser também visto plasticamente na escolha dos vestidos longos pretos e dos cabelos presos em ondas. Já determinados signos da audácia e da liberdade aparecem em pequenas doses, mais diretamente no corte reto do tailleur (com saia e calça) e em algumas posturas corporais da modelo (incluindo uma das imagens na qual o cigarro aparece em mãos). Portanto, pode-se afirmar que o cigarro funciona iconicamente como um signo associado à livre atitude feminina, seja nas mãos de Joana Preiss, de “Chanel” ou mesmo de uma jovem desconhecida à beira da praia, como no caso do editorial Air Libre (Figura 72). O editorial Air Libre apresenta o seguinte texto: “Sob as pedras do calçamento, a praia: couros brutos, cravejados e metalizados, tendência streetwear. Cidadãos partem eles próprios em busca de recursos, segundas peles cúmplices nas quais nos sentimos lá fora e por tudo, como em nós mesmos” (ALT, 2007, p. 168).

234

Figura 72: Imagens do editorial Air Libre. Fonte: Vogue Paris (2007, p. 168-185).

Produzido por Emmanuelle Alt e fotografado por Peter Lindbergh, este editorial foi publicado em junho/julho de 2008, em uma edição dedicada à semana de moda carioca, que trouxe inclusive na capa a frase En direct de Rio [Ao vivo do Rio]. É, sem dúvida, o espírito de liberdade que guia a produção imagética desta mensagem visual, mas uma liberdade ambígua em vários sentidos – como alias temos visto em outros editoriais nos quais o uso de cigarros está presente, coincidentemente ou não. Neste caso, signos linguísticos como “pedras do calçamento” e “couros brutos” (que podem remeter ao estado selvagem, virgem e pesado das coisas) contrastam plástica e iconicamente com a “cumplicidade” das segundas peles (resultante de um estado mais puro, essencial e ingênuo das formas). A forte presença de corpos [brancos] jovens, magros e bronzeados à mostra neste editorial acaba evocando a ideia do próprio corpo como “segunda pele”. A cumplicidade a ela referida pode estar representada na cena em que as duas modelos (muito semelhantes fisicamente) se abraçam, por meio de uma naturalização de atitudes espontâneas e essencializadas no contato direto com a natureza (praia deserta) e no uso do preto e branco. Mas esta espécie de ingenuidade juvenil exaltada em gestos e olhares é também carregada de momentos provocantes, audaciosos e sexualmente “maliciosos”, principalmente 235 por meio da exposição dos seios, dos cabelos desalinhados, das posturas inusitadas e das jaquetas pesadas sobre a pele que acompanham o uso do cigarro – signos historicamente associados ao universo juvenil masculino. Diferentemente do Brasil, parte das representações corporais observadas na Vogue francesa evidenciou não apenas o uso de cigarros pelas mulheres [brancas], mas também seus seios à mostra. Tais padrões estéticos e corporais devem ser interpretados como representativos de comportamentos socioculturais atrelados historicamente ao gênero feminino, bem como ao tipo de feminilidade admirado pelas leitoras de Vogue Paris no primeiro decênio do presente século, no caso desta pesquisa. Gostaria de sugerir que muito provavelmente os seios à mostra nas produções comandadas por Carine Roitfeld e suas editoras de moda sejam representações simbólicas e icônicas do ethos de uma paradoxal liberdade feminina, constituída pela nudez feminina completamente natural, assim como por sua intencional erotização, dependendo dos contextos em questão. Lembro-me da mítica figura da “liberdade guiando o povo” (La Liberté guidant le peuple, pintura à óleo realizada em 1830 por Eugène Delcroix), sendo representada alegoricamente por uma mulher com um dos seios completamente à mostra. Vestida modestamente, usa em sua cabeça um bonnet phrygien [barrete frigiano] vermelho e, segurando a bandeira da França em uma das mãos, mantem-se de pé, entre corpos de soldados mortos durante uma barricada em Paris. Não pretendo aqui discutir de que forma a estética romântica desta representação reproduz alegorias da Liberdade e da República nascidas depois de 1789, como as de Antoine-Jean Gros ou Nanine Vallain. Interessa-me ressaltar que o ethos da liberdade paradoxal de Vogue pode ter relação com a ambígua idealização do corpo “popular” que alimenta o imaginário revolucionário francês, pois se trata de uma idealização patriótica, heróica, violenta e mórbida, representada notavelmente pela nudez bela e suave dos seios femininos – mesmo que esta não tenha sido necessariamente a intenção do pintor no passado ou que a possibilidade de significação social não alcance logicamente a mesma eficácia simbólica nos dias de hoje. Conforme o trecho da entrevista de Jean-Claude Kaufmann concedida em 2008, a liberdade dos seios nus carrega hoje, em suas condições de possibilidade de significação, a própria limitação da norma – atrelada ao padrão estético de beleza em vigor:

236

Hoje, resta ainda a magia dos seios nus. Um pormenor que possui a graciosidade e a força de contar o difícil equilíbrio entre liberdade e regras sociais. Não mais na praia, nós fazemos o que nos convém. Cada vez que eu perguntava aos entrevistados se todas as mulheres podem ficar em topless, a resposta mais clássica era: cada um faz o que quer, mas... ? Todos estavam satisfeitos em afirmar um princípio de liberdade, mas eles pareciam querer sempre acrescentar alguma coisa, talvez em voz baixa: certamente uma mulher de mais idade, se ela quer fazê-lo, deixaríamos, mas seria realmente um horror. Eles diziam o contrário do que exatamente eles gostariam. Então, insistia em minhas perguntas, e a resposta inevitavelmente era esta dos belos seios normais aos quais era permitida a máxima exposição (TORRENZANO, 2008, p. 1, tradução nossa).

Desta forma, os seios nus – e a aparente liberdade comunicada a partir deles – coloca em evidência o fato de que não é qualquer corpo que pode ser exposto, permitindo uma reflexão mais ampla sobre a(s) liberdade(s) diante das transformações das sociedades democráticas:

As liberdades oferecidas pelas sociedades democráticas são marcadas por uma ambiguidade intrínseca: elas são ao mesmo tempo verdadeiras e (em parte) ilusórias. Elas captam sua fonte no universo da representação que, ao proclamá-las, alcança uma força real, mas sem que esta última atinja a pureza dos princípios mostrados. Por meio de discretos mecanismos perversos, novos limites às liberdades são de fato massivamente introduzidos, até desarrolhar sobre o paradoxo atual onde a produção normativa se tornou uma atividade muito mais importante que nas sociedades antigas (KAUFMANN, 2010, p. 65, tradução nossa).

O aparente paradoxo contemporâneo apontado por Kaufmann, que questiona a suposta “liberação do corpo”, “promovida e endossada por alguns discursos a respeito do topless, argumentando que a liberação dos seios comporta grande parcela de controle sobre eles” (LEITÃO, 2011, p. 67), contribui para a compreensão da nudez dos seios em 237

Vogue Paris. É interessante ressaltar que, se por um lado, as consumidoras europeias (notavelmente as francesas) pesquisadas por Débora Leitão consideraram o biquíni brasileiro bastante revelador do corpo, por outro estas mesmas mulheres eram adeptas mais comumente do topless, “que quase não existe no Brasil enquanto prática, ao menos no espaço público da praia”206. Segundo a pesquisa Les Français et les seins nus à la plage, realizada pelo instituto de pesquisa Brulé Ville et Associés (BVA)207 para os jornais Le Parisien magazine e Aujourd’hui magazine (publicada no dia 26 de julho de 2013)208, 18 % das mulheres (francesas) desejam se bronzear de seios nus, sendo que 21 % desta porcentagem abrange a faixa de 18 a 24 anos: “uma mulher a cada cinco, não é nada!, julga ele [Kaufmann]. A baixa aparente da prática não deve fazer esquecer que existe um desejo subjacente” (JEROME; DHOQUOIS, 2013, p. 1, tradução nossa). Segundo esta mesma pesquisa, em sua grande maioria, os franceses concordam com a ideia de que o topless “é a liberdade de cada mulher”:

Criada em 1964, impulsionada notadamente pela febre de Maio de 68, a prática do topless está hoje definitivamente fixada nos espíritos: 87 % dos pesquisados concordam com a ideia de que o topless « é a liberdade de cada mulher ». Ou seja, está a cargo de cada uma a decisão de retirar a parte de cima, ou não. Para acreditar que as praias francesas se tornaram paraísos para os seios, e que a canicule ajudando, os peitos desnudados aparecem em massa sob os guarda-sóis. Não é tão simples. Tal discurso de tolerância não impede a prática de recuar. Pois se ninguém, ou quase, não

206 Ibid, p. 67 207 Um dos primeiros institutos de sondagem na França, criado por Michel Brulé e Jean-Pierre Ville na década de 1970. Conhecido atualmente como Institut d’Études de Marché & d’Opinion. Ver: http://www.bva.fr/fr/accueil/. 208 Pesquisa realizada com uma amostragem de 989 franceses, recrutados por telefone e interrogados pela Internet nos dias 17 e 18 de julho de 2013. São pessoas representativas da população francesa com idade superior a 15 anos; a representatividade da amostragem foi assegurada pelo método das cotas aplicadas às variáveis seguintes: sexo, idade, profissão do chefe e depois estratificação por região, em categoria de aglomeração (JEROME; DHOQUOIS, 2013).

238

contesta o direito ao bronzeamento de topless, quantas mulheres vão aderir a ele ainda? Somente 18 % desejam se bronzear de seios nus hoje, enquanto que 38 % já experimentaram o exercício no passado. [...] Numerosos nos anos 1980 e 1990, os veranistas em monokini parecem ter, em parte, desaparecido do litoral (JEROME; DHOQUOIS, 2013, p. 1, tradução nossa).

Gostaria de ressaltar que, entre respostas de homens e mulheres, se 87% dos entrevistados acredita na liberdade de cada mulher como o principal significado do bronzeamento dos seios, o perigo da exposição ao sol (84%) e a ausência das marcas que os maiôs deixam no corpo (82%) foram apontados logo em seguida pelos entrevistados (JEROME; DHOQUOIS, 2013). Essas três associações socioculturais ao bronzeamento dos seios, na França, formaram o principal bloco de crenças. Um segundo bloco de crenças apontou para outras três associações: a naturalidade (68%, sendo notavelmente a média de 77% dos homens e 59% das mulheres), a perda da sedução em relação a um maiô bonito (64%, sendo notavelmente a média de 52% dos homens e 75% das mulheres) e o constrangimento da prática às pessoas muito idosas (61%). Em seguida, outras quatro crenças formaram um terceiro bloco de respostas: a provocação pela proximidade de famílias com filhos ou de grupos de adolescentes (49%), o fato de ter passado de moda (47%, notavelmente a média de 36% dos homens e 57% das mulheres), a igualdade com os homens, que estão de peitos nus na praia (46%, notavelmente a média de 56% dos homens e 37% das mulheres) e o fato de incomodar os que estão bem próximos (46%, notavelmente a média de 36% dos homens e 55% das mulheres) (JEROME; DHOQUOIS, 2013). Outras duas crenças – a indecência (39%, notavelmente a média de 31% dos homens e 46% das mulheres) e a não indicação pelo complexo dos seios muito grandes, muito pequenos ou refeitos (38%, sendo respondido apenas por mulheres, no caso com idade entre 18 e 64 anos) – formaram um quarto bloco de respostas. É importante ainda ressaltar que a crença de que o bronzeamento dos seios na praia seja contra a moral ou a religião atingiu a média de 20% dos entrevistados (homes e mulheres), conforme (JEROME; DHOQUOIS, 2013). 239

Assim, desde a histórica liberação nas praias de Saint-Tropez à recente midiatização dos seios nus, pode-se observar que a França e a mentalidade dos anos 1980 não são aquelas de 2013:

A feminista [Jacqueline Feldman, socióloga e uma das iniciadoras do Movimento de liberação das mulheres, no final dos anos 1960] aponta para nossa sociedade hiper-erotizada. O mundo comercial se apoderou do corpo e exibe as jovens nuas para vender perfumes e iogurtes. «Isso não me surpreende e, por reação, algumas pessoas estão tendo vontade de ser pudicas», diz ela (JEROME; DHOQUOIS, 2013, p. 1, tradução nossa).

Os seios nus parecem ser legitimados pela moda de vanguarda produzida por Carine Roitfeld como signos irrelevantes de uma liberdade paradoxal. Enquanto signos para serem interpretados, podem expressar certa naturalidade feminina, essencializada por meio de uma nudez “não erotizada”, “não construída”, perfeitamente integrada, por exemplo, à personalidade de uma das editoras de Vogue que ama a “elegância interior”, no caso do editorial Deux ou trois choses que je sais d’elle [Duas ou três coisas que eu sei sobre ela] (Figura 73).

Figura 73: Imagem do editorial sobre Marie-Amélie Sauvé. Fonte: Vogue Paris (2003a, p. 195)

240

Trata-se de um autorretrato imaginário de Marie-Amélie Sauvé, assentado na “ideia de um natural, de uma linha pura, alongada ao extremo. A energia interior de uma Nova Onda” (SAUVÉ, 2003, p. 193). A imagem em preto e branco, na qual vemos os seios nus de uma jovem modelo que representa a figura de Sauvé, reforça a ideia de naturalidade, estando acompanhada de um texto que fala sobre os inúmeros cuidados dedicados ao rosto, já que: “Ela não se maquia. Nunca” (SAUVÉ, 2003, p. 195). Neste caso, a ausência de qualquer peça de roupa faz parte do conjunto significador da mensagem visual deste editorial e, portanto, da produção imagética plástica, icônica e textual que envolve a construção simbólica da naturalidade e da intimidade femininas associadas à nudez dos seios. No mesmo ano, Vogue Paris traz o editorial Précieux et chair [Precioso e carne] (Figura 74), que incorpora o imaginário estético- erótico da nobreza encarnado pelo periódico de moda ao longo de nosso século. Pode-se ler logo na primeira página: “As mais belas joias são tidas como supérfluas. Não vale a pena complementar. Estes diamantes em fogos mais ardentes do que aqueles do sol florescem sobre o algodão suave de um corpo ou o aveludado tremor da pele” (ROITFELD, 2003, p. 148).

Figura 74: Imagem do editorial Précieux et Chair. Fonte: Vogue Paris (2003c, p. 148).

241

A “pele” ganha discursivamente uma conotação tão natural quanto o “sol” ou o “algodão”, apelando para os sentidos das leitoras por meio das representações a eles associadas, como sendo da ordem do “natural”. Não é à toa que a seção “Édito” desta edição de novembro, assinada por Roitfeld, fala da “obsessão do essencial, retorno sobre si, pesquisa do natural” ou ainda de uma “atitude boêmia”, celebrando “um minimalismo concentrado no essencial, sem esquecer os fogos ardentes das mais belas pedras, e os olhos esmeralda de um mito Panthère ressucitado”209. Uma pantera de seios nus. A nudez dos seios pode expressar discursivamente este imaginário, ao lado de joias, peles e posturas decadentes, como no caso do editorial La joueuse... aux jambes nues [A jogadora... de pernas nuas] (Figura 75), desta vez representando o autorretrato de Carine Roitfeld: “Ela ama seduzir à loucura. É um jogo. Perfeitamente controlado. Seu papel de inspiradora chega a mistificar o cotidiano mais banal”210.

Figura 75: Imagem do editorial sobre Carine Roitfeld. Fonte: Vogue Paris (2003a, p. 162).

209 Ibid, p. 30, tradução nossa 210 Ibid, p. 157, tradução nossa 242

Trata-se de uma nudez que “assume o aspecto fascinante de uma heroína de Dostoïevski”, no contexto do “brilho de loucura em um mundo de aristocratas que tropeça”211. Se as pernas à mostra remetem ao título do editorial, os seios nus reforçam este imaginário erótico, chique e artístico incorporado na figura que representa a editora, estando inclusive com o bico de um dos seios pintado de batom na cor rosa, acompanhado do seguinte texto: “Os seios maquiados lembram as telas de Oskar Kokoschka”212. No editorial Hawaiian Punch [Pegada Havaiana] (Figura 69), no qual realizei algumas análises anteriores sobre o uso de cigarro, os seios à mostra aparecem combinados com posturas corporais típicas do universo masculino e/ou da construção da masculinidade (Figura 76), conotando iconicamente tanto a sedução (pernas e braços em forma de “v” apoiados na grade, com a garrafa de água muito provavelmente substituindo a garrafa de cerveja ou outra bebida alcoólica) quanto a força (braços abrindo a camisa para mostrar o tórax, simulando o ato de “chamar para a briga”).

Figura 76: Imagens do editorial Hawaiian Punch. Fonte: Vogue Paris (2002, p. 212 e 214).

211 Ibid, p. 156, tradução nossa 212 Ibid, p. 163, tradução nossa 243

Roitfeld escolhe uma modelo com seios pequenos, intencionalmente ou não; além disso, não podemos esquecer que a androginia é um aspecto importante deste editorial, como vimos anteriormente (Figura 69).

Eu não nego que minhas fotos possuam frequentemente um lado sexual e toquem em muitas áreas que são tabus. Mas isso não é pornografia. Meu pai produzia filmes eróticos, então eu sei que "pornografia" e "erotismo" são duas coisas completamente diferentes. Eu prefiro que as pessoas usem o termo "erotic-chic" para descrever o que eu faço (ROITFELD, ZAHM; HORYN, 2011, p. 124).

A ideia da “liberdade de cada mulher” associada à nudez dos seios – apontada pela maioria dos entrevistados na citada pesquisa sobre os franceses e os seios nus na praia – pode ultrapassar o contexto das praias, sendo apropriada por Vogue Paris justamente pela intencional erotização desta parte do corpo feminino. Portanto, a nudez dos seios, que pode não ser necessariamente erotizada em determinados contextos (como o vivido nas praias francesas por exemplo) pode ser também produzida (discreta e perversamente, como apontou Kaufmann) enquanto objeto de desejo sexual [masculino], como vimos no capítulo anterior da tese. É como se, entre a nudez e a roupa, o desejo sexual pudesse ser visto como um fenômeno de “deslocamento do desejo para uma parte do corpo que não é necessariamente sexualizada e, nesse caso, o detalhe e a parte é que se tornam foco de interesse, afastando a sexualidade do todo, do conjunto corporal” (LEITÃO, 2011, p. 69). No editorial Les Péchés [Os Pecadores] (Figura 77), os generosos seios de – uma das modelos preferidas de Carine Roitfeld – aparecem nus, em outubro de 2010.

244

Figura 77: Imagem do editorial Les Pechés. Fonte: Vogue Paris (2010, p. 581).

A mesma modelo – Lara Stone – estampa a capa da histórica edição comemorativa dos 90 anos de Vogue Paris (Figura 78), cuja capa foi considerada icônica pela redatora chefe: “Um camafeu, uma máscara, grandes seios. Isto é Vogue” (ROITFELD, ZAHM; HORYN, 2011, p. 305, tradução nossa).

Figura 78: Imagem da capa da edição histórica dos 90 anos de Vogue Paris. Fonte: Vogue Paris (2010).

245

Neste caso, o “excesso” relacionado aos seios nus conota (plástica, icônica e linguisticamente) toda a abundância que acompanha o discurso associado ao luxo e vendido por Vogue. Ou, melhor ainda, à “luxúria”, pois é exatamente dela que se fala na imagem selecionada de Les Péchés [Os Pecadores], fotografada por Steven Klein e produzida por Carine Roitfeld. Como o próprio título sugere, a intencional erotização dos seios nus passa muito provavelmente pela questão do “empoderamento sexual feminino”, por meio da inversão performática de papéis sexuais [e de gênero] socialmente construídos. Segundo Roitfeld:

Eu não quero retratar mulheres como vítimas do desejo masculino, fazendo delas objetos sexuais ou objetos do desejo em primeiro grau. Mesmo quando eu tenho produzido imagens erotizadas, eu tenho sempre tentado alcançar certa elegância. Mesmo que eu faça apelo a muitos escravos [risos]. Mas quando eu tenho mostrado uma mulher amarrada, como uma das modelos de Araki, ela está sempre chique e não parece estar sofrendo - e isso a faz mais forte, eu acho. No final do dia, é a beleza da imagem que conta mais. É o que eu coloco em primeiro lugar 213.

A editora afirmou ainda que há muitas mulheres dentro dela, destacando ao menos duas entre elas: uma que é sábia (vive em casa e cuida de suas crianças e do homem que ama) e outra que é tola (deixa tudo aparecer em suas fotos e expressa suas mais secretas fantasias nelas). Tal dualidade lhe permite “apreciar transgressões tanto quanto boas criações, ser punk e princesa ao mesmo tempo. (...) é uma balança perfeita”214. Roitfeld foi capaz de apresentar um ecletismo bastante grande de mulheres nas capas de Vogue, principalmente se comparado com a versão brasileira do periódico no mesmo período (2001-2010). Se Vogue Brasil privilegiou as jovens modelos brasileiras em sua maioria absoluta, Vogue Paris trouxe mulheres legitimadas principalmente nos universos da moda, do cinema e da música, que atuaram e/ou atuam como modelos, atrizes, cineastas e comediantes (Figura 79).

213 Ibid, p. 115, tradução nossa 214 Ibid, p. 280, tradução nossa 246

Figura 79 : Capas de Vogue Paris. Fonte : Vogue Paris (2001a ; 2001b ; 2002 ; 2003b ; 2004/2005 ; 2005b ; 2006 ; 2006/2007 ; 2008b).

Entre elas: Kate Moss (Février 2001; Décembre 2001/Janvier 2002); as veteranas Linda Evangelista (Octobre 2001), (Avril 2002) e Naomi Campbell (Février 2008); (Août 2003); Sofia Coppola (Décembre 2004/Janvier 2005); a veterana Demi 247

Moore (Août 2005); Charlotte Gainsbourg (Août 2006); Drew Barrymore (Décembre 2006/Janvier 2007) e Laetitia Casta (Juin/Juillet 2008). Esta legitimação é representada plástica, icônica e linguisticamente, a partir de signos que atuam para a construção da branquidade de luxe de Vogue Paris, podendo ser lida pelo conjunto das imagens selecionadas. Passa, por exemplo, pela escolha das cores dourada e/ou derivados do amarelo, aplicados nas fontes de várias capas para conotar todo o brilho associado ao ouro e ao glamour; por personalidades consagradas (como citado anteriormente) para conotar a ideia de excelência, de nobreza, tradição e classicismo associados aos atributos deste periódico de luxo; por termos como sacré [sagrado], destin [destino], vérité [verdade], mise en scène [encenação], charme français [charme francês] e parisienne [parisiense], que conotam discursivamente valores da cultura francesa produzidos por Roitfeld. Fruto da própria construção da branquidade em Vogue Paris, a potência simbólica do “espírito francês” pode ser vista ainda por meio das posturas, dos pequenos gestos e olhares dessas mulheres [brancas] de capa, convidadas a incorporar traços de um luxo feminino associado historicamente à cultura estético-erótica da nobreza, mas renovado pelo culto à liberdade republicana. Talvez seja este o sentido de “rejuvenescimento” que Roitfeld acredite ter proporcionado ao periódico francês ao longo de seus dez anos de comando. De fato, durante uma década de atuação profissional para o grupo Condé Nast, ela foi provavelmente a redatora-chefe mais audaciosa e aberta à experimentação em toda a história da Vogue francesa, capaz de revelar uma face provocadora do “instinto Vogue”, qualquer coisa da ordem do impalpável e ligada diretamente ao seu talento como diretora artística. Nesse sentido, é preciso ainda ressaltar o kitsch e o camp, categorias associadas a reprovações classistas (ECO, 2007). A primeira delas remonta à segunda metade século XIX, exemplificada com “os anões de jardim, as imagens devocionais, os falsos canais venezianos de Las Vegas, o falso grotesco do célebre Madonna Inn californiano, que pretende fornecer ao turista uma experiência ‘estética’ excepcional”215, definida pela “alta” cultura. Mas, seguindo a lógica volátil da sensibilidade estética, pode-se dizer que quem aprecia o kitsch considera que está usufruindo uma “experiência qualitativamente alta”216.

215 Ibid, p. 394 216 Ibid, p. 397 248

Clement Greenberg afirmou que, enquanto a vanguarda (entendendo-a, em geral, como arte em função de descoberta e invenção) imita o ato do imitar, o Kitsch imita o efeito da imitação: ao fazer arte a vanguarda evidencia os procedimentos que levam à obra e os elege como objetos de seu próprio discurso, enquanto o Kitsch evidencia as reações que a obra deve provocar e elege como objetivo da própria operação as reações emocionais do fruidor217.

Já o camp foi considerado por Susan Sontag (1964) como uma forma de sensibilidade que, mais que transformar o frívolo em sério, transforma o sério em frívolo. É também a experiência do kitsch para aqueles que sabem que o que estão vendo é kitsch. Nesse sentido, é “manifestação de gosto aristocrático e, de todo modo, de esnobismo” (ECO, 2007, p. 411). Mas no camp o excesso é inocente, sério, não calculado ou intencional.

O Camp não se mede com base na beleza de algo, mas no seu grau de artifício e estilização, e define- se tanto como um estilo, quanto como uma capacidade de olhar para o estilo alheio. Deve existir no objeto camp algum exagero e alguma marginalidade (costuma-se dizer ‘é bom ou importante demais para ser camp’), além de alguma vulgaridade, mesmo quando pretende refinamento218.

No editorial Baptême en Diable [Batismo em Diabo] (Figura 80), fotografado por Terry Richardson, Carine Roitfeld oscila entre os universos de “bruxa bem amada e Rosemary's baby” para propor uma “aparência atrevida que se diverte ao exorcizar demônios e malefícios, sem um espírito maligno, mas brincando com o fogo, a água e o ar, sem vergonha” (ROITFELD, 2006/2007, p. 260).

217 Ibid, p. 397, grifo do autor 218 Ibid, p. 408, grifo do autor 249

Figura 80: Imagens do editorial Baptême en Diable. Fonte: Vogue Paris (2006/2007, p. 260-267).

Trata-se de uma produção kitsch e camp: ao mesmo tempo em que este humor evocado “imita o efeito da imitação”, também “transforma o sério em frívolo”. É nesse duplo sentido que importantes signos plásticos, icônicos e linguísticos são acionados para conotar o lema que guiou Roitfeld nesta produção: “o humor é a melhor das religiões”219.

O poder das palavras não está nas palavras mas nas condições que dão poder às palavras, produzindo a crença coletiva, quer dizer a ignorância coletiva da arbitrariedade da criação de valor que é realizado através de um uso determinado de palavras (BOURDIEU; DELSAUT, 1975, p. 23, tradução nossa).

Pode-se dizer que a mensagem visual deste editorial representa um “capital de autoridade estética”220, ou seja, uma espécie de transgressão simbólica de vanguarda que, na verdade, é fruto de um absoluto domínio estético legitimado:

219 Ibid, p. 260 220 Ibid, p. 19, tradução nossa 250

Seria dizer que os primeiros responsáveis da reclassificação dos objetos desclassificados, negócio tão bem sucedido economicamente e simbolicamente, cuja reabilitação de gêneros populares, vulgares ou vulgarizados é um caso particular, devem deter um capital de autoridade estética tal que sua escolha não pode, em nenhum caso, constar como uma falta de gosto: é lógico que esta transgressão inicial cabe aos artistas e intelectuais de vanguarda (os primeiros hoje a exaltar o kitsch) que encontram na recusa em reconhecer as normas da propriedade estética em vigor uma maneira conveniente de lembrar que eles são a fonte de toda a legitimidade estética221.

De maneira geral, dedos sujos de fumaça de vela, colheres sobre os olhos, flores na boca, rostos cobertos de farinha e água, uma poderosa cuspida de leite, poses inusitadas, vestidos coloridos, o vermelho dos cabelos e do tapete, olhares misteriosos, texturas da natureza e da cozinha fazem parte de um jogo luxuoso simbolicamente programado para causar reações emocionais. Nesse sentido, talvez tenha sido este o maior objetivo de Carine Roitfeld em Vogue Paris: causar esteticamente reações emocionais legitimadas no e pelo campo da moda contemporânea, para vender uma branquidade construída principalmente a partir da apropriação discursiva da cultura estético-erótica da francesa e do culto da livre atitude [republicana] da mulher parisiense.

4.2 VOGUE BRASIL POR PATRICIA CARTA: IMAGENS, DISCURSOS E NARRATIVAS DE UMA BRANQUIDADE CONSERVADORA?

Tornar-se “independente”, como dizem pretender aqueles que produzem a moda brasileira contemporânea, não é processo simples, fácil e linear, sobretudo num campo onde são justamente essas “referências européias” que definem padrões de gosto. Uma das possibilidades vislumbradas

221 Ibid, p. 19, tradução nossa 251

para tanto foi a de aspirar transformar-se em outro, em exótico, tentando agradar, a um só tempo, o mercado interno e externo. Essa possibilidade, entretanto, também não é simples, e abre espaço para a presença de tais tensões e contradições (LEITÃO, 2007, p. 339, grifo do autor).

Em 2002, Patricia Carta e demais colaboradores de Vogue Brasil trazem “a beleza da mulher brasileira” (BRANDÃO, 2002, p. 119) em capa dupla (Figura 49), comemorando os 27 anos de publicação do periódico no Brasil. Fruto de uma ação conjunta com o Shopping Iguatemi e “[...] com a escolha de um comitê de notáveis, chegamos a 11 entre as mais lindas mulheres brasileiras. Elas podem ser vistas num especial, fotografadas por Miro, [...] mestre em imagens duradouras”222. Apesar de Brandão ter escrito “11 mulheres” no texto de abertura da edição comemorativa, foi possível constatar que elas eram dez, conforme observado na capa e ainda nas referências numeradas em relação a cada uma delas, trazidas junto à mesma imagem reduzida, no sumário. Rostos bastante conhecidos da televisão, da moda e do cinema conotam iconicamente as eleitas, sendo elas: Xuxa, Carolina Ferraz, Luana Piovanni, Fernanda Tavares, Malu Mader, Camila Pitanga, Ana Hickmann, Fernanda Lima, Ana Tereza Bardella e Bruna Lombardi. Plasticamente, a imagem apresenta um jogo simultâneo de contrastes e de semelhanças, equilibrando o ritmo harmonioso do olhar em termos de cor, forma e textura. Cito alguns exemplos, iniciando pelo contraste entre o preto (que caracteriza a ausência completa de luz) e as nuances do rosa e do lilás (suaves e iluminadas), que é amenizado pelo agrupamento (por família de tons) dessas últimas, criando assim pontos por semelhança. Isso acaba dividindo as mulheres em três grandes grupos, sendo que as de preto podem ser consideradas como elementos de integração, distribuídas estrategicamente entre os grupos de rosa e lilás. Os vestidos (longos e vaporosos em sua maioria) são outro exemplo de contraste e semelhança, sendo usados por algumas como se fossem realmente longos (cobrindo as pernas) e, por outras, de forma contrária; há ainda uma “personalização” das modelagens conforme a sensualidade e a feminilidade de cada uma delas, que cria

222 Ibid, p. 119 252 imediatamente a ilusão de uma grande variedade de estilos – mas que, na realidade, são apenas pequenas variações dentro do mesmo estilo (clássico, ou melhor, neoclássico), predominante nesta produção. Quanto aos cabelos, se muitas delas possuem cabelos longos e soltos com efeito natural e caindo em movimento (também associados ao estilo neoclássico), algumas os têm mais curtos ou os usam presos. Ocorre também com gestos e posturas corporais um jogo dinâmico de movimentos de pernas, braços e troncos, pois a maioria delas se encontra sentada e/ou apoiada em bancos, tablados ou no próprio chão – isso permite maior liberdade de movimentos, ao contrário das mulheres que estão em pé. Há ainda um contraste de texturas, marcado pela nobreza dos tecidos dos vestidos em relação à simplicidade e modernidade dos materiais escolhidos como assento. Portanto, Patricia Carta muito provavelmente tenha tido a intenção de representar iconicamente as eleitas de Vogue Brasil como “deusas do século XXI”, por meio da construção simbólica de uma branquidade legitimada por valores estéticos associados historicamente à Antiguidade Clássica. Tanto as mais jovens (como Luana Piovanni, Fernanda Tavares, Ana Hickmann, Fernanda Lima) como as de outra geração (como Xuxa, Bruna Lombardi, Malu Mader, Carolina Ferraz) encarnaram de fato uma beleza clássica [branca] idealizada. As dez eleitas de Vogue são nascidas em cinco Estados brasileiros: São Paulo (Luana Piovanni, Bruna Lombardi e Ana Tereza Bardella), Goiás (Carolina Ferraz), Rio de Janeiro (Malu Mader e Camila Pitanga), Rio Grande do Norte (Fernanda Tavares) e Rio Grande do Sul (Xuxa, Ana Hickmann e Fernanda Lima). Boa parte delas é descendente de europeus, notavelmente as gaúchas. Nesse sentido, gostaria de salientar que as semelhanças produzidas contribuem sobremaneira para que Vogue alcance uma espécie de “homogeneidade racial” desejada justamente pela idealização estética neoclássica [branca]. Segundo Stephanie Dennison (2013, p. 294, tradução nossa), “a associação de Xuxa com o mundo da moda também lhe permitiu promover a si mesma como um ícone de estilo”. Citando determinados valores simbólicos da brancura – tais como luz, virtude, pureza, excepcionalidade, transcendência, beleza, civilização, autocontrole – esta autora mostra como a forma extrema da brancura de Xuxa no contexto do Brasil “é o que lhe permite assumir uma posição de 253 superioridade e de apreciar o tipo de adoração geralmente reservado para as divindades”223. Ao mesmo tempo, Camila Pitanga e Fernanda Tavares se tornam brancas, assemelhando-se a qualquer uma dessas mulheres (exceto às gaúchas, muito claras e loiras) por meio de um embranquecimento estético (e social), que deve ser lido à luz da própria construção da branquidade no contexto brasileiro. Tanto a iluminação quanto o bronzeamento são fundamentais para o “equilíbrio” em favor da pele branca: estrelas brancas são muitas vezes “iluminadas de modo que sua pele pareça muito bronzeada - um bronzeado associado à boa saúde, juventude e status”224. A estética neoclássica apropriada simbolicamente por Vogue primou ainda pela sofisticação de materiais e de cores neutras no cenário e nas roupas (como cinza e preto), suavizadas por nuances leves, sublimes, etéreas. Não foi o Brasil verde e amarelo o escolhido para representar nossas mulheres. Assim, para conotar plástica e iconicamente toda a nobreza, a elegância e a sobriedade atribuídas ao universo simbólico de Vogue, os vários signos percebidos atuam como efeitos discursivos de uma nudez bem dosada, de uma sensualidade harmoniosa e equilibrada, em sintonia com a racionalidade tipicamente neoclássica europeia, sustentada tanto pela ideia de simplicidade e naturalidade quanto pela ideia de suntuosidade e monumentalidade. Como vimos no capítulo anterior, o “modo de ver” de Miro contribuiu de certa forma para a reprodução de uma beleza neoclássica no contexto brasileiro. O Neoclassicismo, estilo predominante na Europa do início do século XIX, dirigido à nobreza e à burguesia emergentes, estendeu-se a toda sociedade dita moderna. Contrapondo- se, aqui, aos mais de trezentos anos de Barroco como a expressão apaixonada da arte colonial até então em vigor:

No Brasil, acompanhando as tendências europeias, Dom João funda, no Rio de Janeiro, a Academia Imperial de Belas Artes, responsável, desde então, pela formação dos artistas e pela orientação estética e cultural da nossa produção artística. Dirigida por europeus, a Academia viria a colaborar de forma significativa para as

223 Ibid, p. 298, tradução nossa 224 Ibid, p. 294, tradução nossa, grifo do autor 254

transformações no gosto estético dos brasileiros.225.

É importante salientar que o novo estilo refletia grandes transformações propagadas por um espírito desenvolvimentista, preocupado com a formação de uma identidade nacional “apoiada em símbolos e traços culturais, capazes de fazer convergir sobre si os diferentes grupos étnicos e sociais que aqui conviviam, desenvolvendo um sentimento de coletivismo”226. Desta forma, intensificava-se o contato com a Europa, bem como o intercâmbio de ideias. Tal projeto de modernização, controle e centralização das atividades artísticas teve sua almejada continuidade justamente com a chegada de Dom João, em 1808, quando trouxe para o Brasil a chamada “Missão Artística Francesa”, que desejava acabar com toda uma cultura colonial e barroca. Pintores como Auguste-Marie Taunay, Jean Baptiste Debret e Grandjean de Montigny influenciaram a produção artística brasileira.

Nossa produção artística se internacionalizava e apagava os vestígios de miscigenação, nossos artistas se profissionalizavam e a obra de arte se tornava, ao mesmo tempo, mercadoria e objeto de distinção social. Incorporávamos, assim, junto com o modo de ver e representar da Europa, a maneira de ser e ter do capitalismo europeu227.

O retrato foi outro gênero pictórico bastante desenvolvido no século XIX, permitindo a ascendência de uma elite [branca] que se mostrava “desejosa de tal tipo de distinção social”228. É importante ressaltar que biografias, textos de historiadores e romances de época estão repletos de relatos e citações nos quais a imagem da mulher da elite paulista deste período representava seu orgulho e sua autoridade por estar integrada ao processo produtivo, que “dividia ombro a ombro com seu marido as funções econômicas e sociais dentro de suas propriedades e que controlava a família, os filhos e os escravos com

225 Ibid, p. 82 226 Ibidem 227 Ibid, p. 84 228 Ibid, p. 94 255 mão de ferro”229. Mas o gosto neoclássico de influência europeia vigente não conseguiu entrar em sintonia com os retratos brasileiros, que causaram surpresa e estranhamento ao apresentarem a peculiaridade de um estilo artístico mais próximo do Realismo (Figura 81), mais severo e indiferente à ostentação da “idade acentuada pelos cabelos grisalhos, pelos vincos nos cantos da boca, pela ausência de maquiagem e retoques” (COSTA, 2002, p. 100).

Figura 81: Imagem da obra Veridiana Prado, de Carlo de Servi. Fonte: Costa (2002, p. 191).

Figuras como a de Veridiana Prado tornam-se “matriarcas imortalizadas” pela estética realista do retrato. Nesse sentido, além de exibir as marcas do tempo (de uma vida difícil e laboriosa), a força desse modelo estético estava contida na própria representação não só de homens, mas especialmente de mulheres dignas e honradas. A partir do século XX, a “alma feminina” de mulheres românticas e sensuais passa a influenciar a criação de cenas de costumes, que constituíram um gênero artístico no qual era possível observar representações da figura feminina neoclássica. Tais cenas caracterizavam-se por um intenso romantismo, envolto pela

229 Ibid, p. 106 256 simplicidade próxima da natureza e repleto de momentos da vida cotidiana agrícola ou doméstica. Muitas delas apresentavam uma ambientação estrangeira, como é o caso da obra “Maternidade” (Figura 82), pintada por Eliseu D’Angelo Visconti.

Figura 82: Imagem da obra Maternidade, de Eliseu D’Angelo Visconti. Fonte: Visconti (1906).

Pode-se dizer que tais cenas introduzem no imaginário [branco] dos Novecentos uma nova figura feminina, a partir da qual “a mulher sensual e sensível, de vida cotidiana, é simples mas plena de sentimento e secreto prazer”230 e, nesse sentido, colocavam em questão a imagem da mulher idealizada no contexto do “aburguesamento” de uma sociedade que se industrializava, consumia e se urbanizava aceleradamente. Os nus artísticos completavam o triângulo dos gêneros pictóricos, comprovando que a figura da mulher tornava-se gradativamente mais presente na arte brasileira. Muitas vezes, apesar da nudez da modelo, “a pose acadêmica, a artificialidade dos gestos e a expressão insípida, típicas dos nus, tornavam as mulheres dessas pinturas menos sensuais do que as das cenas de costumes”231. Despidas discretamente ou não, apareciam geralmente em poses polêmicas. No ano de 1894, seis anos após a Abolição da Escravatura no Brasil, Oscar Pereira da Silva

230 Ibid, p. 114 231 Ibid, p. 93 257 apresenta “Escrava Romana” (Figura 83), “com formas arredondadas, seu olhar sedutor e a nudez pouco assumida não deixam dúvidas sobre uma possível associação entre as escravas brancas de Roma e as existentes no Brasil, na mesma época, servindo sexualmente ao homem branco da elite” (COSTA, 2002, p. 94).

Figura 83: Imagem da obra Escrava Romana, de Oscar Pereira da Silva. Fonte: Silva (1894).

Este é um bom exemplo de como nus mais ousados e sensuais eram suavizados pela escolha de temas históricos ou míticos, pois a nudez deveria ser sempre uma atitude distante e impessoal na pintura neoclássica. Os diferentes gêneros pictóricos deste período no Brasil retrataram, por meio do universo feminino, o irresistível apelo ao “novo” trazido por grandes transformações econômicas, políticas e sociais que viriam a ocorrer mais intensamente no século XX. Novas propostas e posturas estéticas entraram em discussão logo nos primeiros anos da década de 1910, entre elas “as exposições de Lasar Segall, em 1914, e a de Anita Malfatti, em 1917” (COSTA, 2002, p. 125). Artistas plásticos, músicos e poetas apresentaram seus trabalhos em acontecimentos culturais e artísticos que ficaram conhecidos como marcos do Modernismo brasileiro, tendo como ápice a Semana de Arte Moderna de 1922, promovida em São Paulo. 258

O momento era de enfrentamento ao classicismo estilístico, quando alguns artistas de vanguarda desafiaram os mais conservadores da elite econômica e intelectual paulista, que justamente havia apoiado as primeiras iniciativas e manifestações artísticas. A própria semana de arte de 1922 foi mal recebida pelo público e pela crítica, embora a emergência de uma produção artística com temática e linguagem nacionais parecesse implacável em seu objetivo maior de “integrar o legado das diversas culturas existentes no País e de promover a formação de uma identidade cultural brasileira”232. A avidez por uma forma mais autêntica de expressão estética incentivou a produção crescente de uma “arte vigorosa e de profundas raízes nacionais emergentes”, tomando do Brasil, do México e de outros países da América Latina (COSTA, 2002), mesmo apesar da forte influência dos movimentos artísticos europeus:

Adaptando modelos estrangeiros a um gosto estético nacional que já fazia história, os modernistas brasileiros estimularam a atitude de experimentação e pesquisa, quase desconhecida dos nossos artistas. Desse conflito de estilos e visões de mundo, dessa inquietude que resulta da curiosidade e da busca pela própria identidade, surge uma arte representativa de uma época233 (COSTA, 2002, p. 127).

Embora as diversas tendências com características plurais e os diferentes artistas com soluções contraditórias tivessem marcado o Modernismo brasileiro, é possível, segundo Costa (2002), identificar alguns pontos convergentes que contribuíram para que houvesse certa homogeneidade: a pesquisa envolta em uma linguagem brasileira, a produção de uma arte de forte cunho social e a busca de temas e motivos nacionais. Nesse sentido, é fundamental ressaltar a aproximação histórica entre o Modernismo e o processo de modernização brasileira. Robert Pechman (1996) aponta para o fato de que nossa modernização seria comandada por intelectuais nacionalistas, de perfil autoritário. Chamando a vertente conservadora do movimento modernista de 1922 de “grupo nacionalista verde-amarelo”, este autor coloca a hegemonia de São Paulo logo como a primeira face desse viés autoritário. O grupo,

232 Ibid, p. 126 233 Ibid, p. 127 259 liderado por Menotti del Pichia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo, acreditava que “o problema brasileiro estava em nos diferenciarmos – pela nossa singularidade – dos demais países europeus no seu caminho para a modernidade” (PECHMAN, 1996, p. 340). Além disso, o regionalismo seria uma alternativa para unir as enormes diferenças culturais, a partir de uma espécie de “culto das tradições ameaçadas pelas ideias importantes do estrangeiro”234. Era a defesa do caráter ruralista da civilização brasileira que estava em jogo, opondo a cidade ao campo justamente pela via da cultura local-regional:

Tratava-se, pois, de articular o regional ao nacional no sentido de dar inteligibilidade, ao mesmo tempo, à idéia de povo e de nação, expurgando todos os aspectos cosmopolitas- urbanos que pudessem contaminar essa articulação, pois, para os verde-amarelos, a Geografia, e não a História, era explicativa de nossa singularidade. Isto é, o campo, e não a cidade, deveria ser o fundamento para a identidade nacional235.

A imagem de “povo brasileiro” precisava ser concebida, do ponto de vista étnico, social e visual. Assim, muitos artistas ressaltavam “a miscigenação, a mestiçagem e certa maneira de ser que ia da rusticidade a uma calorosa sensualidade” (COSTA, 2002, p. 127), aspectos culturais que passavam por determinada representação cenográfica: “o traçado das paisagens, a luminosidade, as cores da cultura e, até mesmo, as frutas da terra, que substituíam as uvas nas naturezas-mortas de inspiração européia”236. Surgia a construção do povo pelo Estado – “utilizando a mesma linguagem do poder e proclamando sua vocação para a elite dirigente” (PECHMAN, 1996, p. 341). Mas a geração de intelectuais que atuou entre as décadas de 1920 e 1940, inventando a política como sua própria missão, não conseguiu “ir além do projeto de consolidação da ordem nacional pela restauração do Estado e da Nação”, mesmo “nacionalizando” ou “regionalizando”237 o pensamento.

234 Ibid, p. 340 235 Ibidem 236 Ibid, p. 128 237 Ibidem 260

Trata-se de uma história complexa, que envolve antes o desejo de estabelecer um Estado nacional multicultural por parte das elites republicanas da América Latina. É assim que, na segunda metade deste mesmo século, inspiradas por modelos europeus, tais elites “convergem radicalmente para construir os Estados-nacionais unitários, impondo sua autoridade sobre territórios que elas consideravam como parte integrante do espaço nacional” (BARTHELEMY; CAPDEVILA; ZANCARINI- FOURNEL, 2011, p. 16, tradução nossa).

4.2.1 O “autoexotismo” da natureza e da cultura popular brasileira

A moda brasileira que “quer ser nacional” no processo de internacionalização, como apontou Leitão (2007), reinventa nossas tradições por meio de modelos a partir dos quais são estabelecidas continuidades com um “determinado passado histórico”, ou seja, aquele que nos serve, onde novos elementos são percebidos como existentes “desde sempre” (HOBSBAWN, 2006). Nesse sentido, concordo com a afirmação de que “embora a exotização seja claramente percebida pelos produtores de moda como estratégia que dá bons resultados, ela não parece ser jamais sentida como embuste” (LEITÃO, 2007, p. 337). Quando arrisco dizer que Patricia Carta e os colaboradores de Vogue Brasil “autoexotizam” nosso país discursivamente, quero enfatizar que a produção da branquidade é construída pela celebração de uma Europa imaginada (notavelmente Paris), por meio da apropriação de modelos estéticos e valores socioculturais eurocêntricos que conduzem o olhar sobre os “modos de ver” o Brasil. Lembro-me então da seguinte frase: “éramos, sim, estranhos e distantes, mas era como se ainda nos unisse uma proximidade de matriz ocidental, língua neolatina e herança cultural europeia”238 – sobretudo francesa, no campo das artes e da moda. Ainda nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras décadas do século seguinte – entre o movimento romântico e a voga realista – o país testemunhou alguns impasses de um “paradigma racial” por parte da intelectualidade do país, a partir do qual Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha foram expressões vivas da defesa da inferioridade das raças não brancas, da incapacidade do mestiço de

238 Ibid, p. 261 261 assimilação à civilização e dos prejuízos da mestiçagem (MURARI, 1999). O descompasso entre o projeto nacionalista e a formação da população brasileira que fundamentou muitos dos esforços realizados pelos intelectuais brasileiros nas primeiras décadas do século XX foi determinante para o estabelecimento de modelos estéticos e discursos socioculturais de integração de uma comunidade política autônoma em pleno contexto histórico de um “ideário civilizador de origem europeia” (MURARI, 1999). A singularidade brasileira podia ser identificada em obras literárias, de crítica e historiografia, baseada em ideias de exotismo e nacionalismo, mesmo que contraditórias. Como exemplo, as representações da natureza foram vistas, por Ventura (1991), como associadas à ideia de “autoexotismo”, ou seja, a identificação com o que haveria de original no país, em contraste com o Velho Mundo (principalmente no que dizia respeito à natureza tropical, fonte rica de imagens capazes de simbolizar nossa singularidade). Embora a expressão “autoexotismo” tenha sido aplicada no contexto da produção literária brasileira por Roberto Ventura, acredito ser bastante apropriada também para a produção imagética, textual e discursiva de um periódico nacional de moda, pois a concepção deste termo mostra-se válida para a interpretação de um processo histórico de exotismo pautado na identidade ou originalidade do país, bem como na exploração do tropical e do pitoresco no sentido europeu – em representações da natureza e da cultura popular brasileira, que combinam “o olhar voltado para aquilo que é estrangeiro e a percepção de si mesmo” (MURARI, 1999, p. 47) nas páginas de Vogue. Schwarcz (1993) emprega o termo “imperialismo interno” para definir uma postura partilhada entre estudiosos de formação científica em relação à questão racial no Brasil, aplicado à etnografia e à questão nacional no período de 1870 a 1930. Para ela, trata-se de um processo de apropriação nacional de conceitos científicos amplamente utilizados pela política imperialista para a legitimação da expansão europeia em regiões habitadas por populações de raças consideradas como inferiores. Ou seja, no caso brasileiro, marcado pela escravidão negra, tais doutrinas de fundo imperialista teriam assim “constituído um discurso voltado para o mapeamento das diferenças internas, no sentido da definição de hierarquias políticas e sociais” (MURARI, 1999, p. 46), justificando o paradigma racial construído na virada do século XX. Segalen (1996) foi um dos primeiros teóricos a conceituar o exotismo, em seu inacabado Essai sur l’exotisme, como sendo essencialmente uma forma de reconhecimento da existência do Outro – 262 considerando que este último não seria única e necessariamente o que estaria geograficamente distante. Estabelecendo uma tipologia de exotismos, apontou três tipos importantes: geográfico, temporal (ou histórico) e sexual. No primeiro deles, a distância do Outro é dada espacialmente e marcada frequentemente por diferenças étnicas e culturais (é o mais conhecido e comumente encontrado porque exotismo e conhecimento aprofundado da realidade diversa não coexistem para Segalen, sobretudo em sua vertente tropical); o segundo remete ao exotismo de um outro momento histórico idealizado, a partir do qual pode ocorrer a valorização de um passado idílico ou ainda de utopias aplicadas ao tempo futuro; no terceiro (menos abordado pelo pesquisador), a diferença entre o masculino e o feminino ocorre sem que haja um afastamento espacial ou temporal, ou seja, tem lugar em um mesmo lugar e em um mesmo tempo (SEGALEN, 1996). É interessante notar que todos eles representam quase sempre algum tipo de idealização do Outro, supondo que ele pode ser em grande medida imaginado. Apesar de ser visto como uma positivação deste Outro devido principalmente à curiosidade e ao pouco ou quase nenhum conhecimento sobre ele, isso não impede que ocorra justamente o contrário, ou seja, sua negativação – aproximando exotismo de eurocentrismo:

Maneira de ver e atitude frente aos outros, o exotismo é, ao contrário do racismo, uma positivação do outro. Seus costumes, seu modo de vida, seus valores, sua produção, não apenas são dignas de estima, mas mesmo almejadas. Através dele as características do que é diverso adquirem valência positiva. Mas ainda que se mostre enquanto celebração do outro, o exotismo talvez não esteja tão distante daquele que em aparência é o seu oposto, o etnocentrismo. Indo da desconfiança à hostilidade, este último rejeita toda forma cultural que seja diferente da sua própria. É nesse ponto que etnocentrismo e exotismo se aproximam. Mesmo que difiram em conteúdo, um valorizando e outro repelindo, ambos tem em comum o fato de ser um enunciado sobre si próprio ainda mais do que sobre o outro (LEITÃO, 2007, p. 266, grifo do autor).

263

Concordo com Murari (1999, p. 47) quando esta defende que podemos ver a própria expressão autoexotismo como “uma contradição em seus termos, à medida que combina o olhar voltado para aquilo que é estrangeiro e a percepção de si mesmo”. E ainda, os estereótipos muitas vezes “tomam a forma de inversão da auto-imagem do espectador” (BURKE, 2004, p. 157). No imaginário europeu, o Brasil pode ser visto como país não ocidental (LEITÃO, 2007), sendo inclusive um território simbólico para o exotismo. O ano de 2005 ficou conhecido como o “Ano do Brasil na França” e pode ser um bom exemplo de como a beleza brasileira imaginada – aos olhos europeus e segundo a Vogue francesa – foi atribuída à questão da heterogeneidade étnica do Brasil e da miscigenação, em uma espécie de héritage morphologique [herança morfológica], que “grâce à ce métissage [...] le corps brésilien est devenu cette silhouette désirée par le monde entier”239. Talvez por isso Leitão (2007) ressalte que a volta da moda nacional às “coisas brasileiras” ao longo da primeira década do século XXI situa-se em um registro mais geral dos fluxos internacionais, no qual sublinhar (ou reinventar) particularidades nacionais, nesse caso, “significa poder apresentar-se, perante o mercado global – em alguma medida interessado nas ‘particularidades’ dos outros – a partir do diferencial competitivo ‘brasileiro’” (LEITAO, 2007, p. 336). Mas se “fazer bem brasileiro”, entretanto, em alguma medida, é “construir autenticidades alçadas por parâmetros que certas vezes pendem para o pitoresco, o ‘turístico’”240, até que ponto a moda brasileira vendida em Vogue elabora, ela mesma, uma crítica a respeito de suas próprias práticas, quando se propõe a transformar-se em exótica? Tanto o exotismo quanto o nacionalismo se referem, portanto, a “posturas simplesmente relativas, uma vez que o objeto de interesse só se constrói comparativamente ao olhar daquele que observa e estabelece um julgamento de valor” (MURARI, 1999, p. 47). Logicamente não podemos esquecer uma questão global fundamental envolvida nesse duplo processo: a hegemonia dos “velhos centros” difusores de moda – principalmente Paris, como demonstrado ainda no segundo capítulo da tese, notavelmente no que tange à eficácia (histórica e simbólica) da “capital da moda” no cenário internacional. Segundo Leitão (2007, p. 264, grifo do autor), a ideia de que os brasileiros não são, aos olhos europeus, “tão ocidentais”, nos situa “mais

239 “graças a esta mestiçagem [...] o corpo brasileiro se tornou esta silhueta desejada pelo mundo todo” (LEITÃO, 2007, p. , tradução nossa). 240 Ibid, p. 337 264 claramente na categoria de outro [...] nós, não ocidentais originários de um ‘extremo ocidente à margem’, ao mesmo tempo familiares e desconhecidos, somos território para o exotismo”. As representações do que é o Brasil aos olhos franceses passa, portanto, pelo próprio imaginário brasileiro sobre nosso país. Como já apontado, a construção da branquidade em Vogue Brasil está associada ao nosso próprio exotismo, ou seja, ao “autoexotismo” pautado em representações do corpo [branco] em meio à natureza tropical. O que dizer ainda sobre o “autoexotismo” identificado na cultura brasileira por Ventura (1991) e perceptível também nas produções estéticas de Vogue Brasil, se o próprio exotismo é por natureza paradoxal?

[...] sem se considerar essa manifestação [o exotismo] mera cópia de modelos culturais estrangeiros, as origens da representação exótica do Brasil podem ser buscadas no imaginário europeu e na visão ambígua que nele se formou a respeito do Novo Mundo (MURARI, 1999, p. 48).

De maneira geral, ao longo da primeira década de nosso século, a versão brasileira de Vogue privilegiou um corpo [branco] extremamente jovem, magro e fabricado a partir de uma visão de beleza feminina bastante próxima do padrão europeu, configurando o que considero como autoexotismo a partir de alguns editoriais de moda (Figuras 84, 85 e 86). Contrariando o famoso “cruzamento histórico e cultural de etnias” imaginado pela versão francesa de Vogue sobre a “herança morfológica” (anteriormente citado), a maioria dos editoriais trouxe modelos brasileiras com olhares naifs e atitudes ambiguamente ingênuas e sensuais:

265

Figura 84: Imagem do editorial Classe à Beira-mar. Fonte: Vogue Brasil (2007a, p. 98).

Figura 85: Imagem do editorial Jardim Lisérgico. Fonte: Vogue Brasil (2008a p. 106 e 107).

Figura 86 – Imagem do editorial Radical Chic. Fonte: Vogue Brasil (2010a, p. 157).

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Representações exóticas do Novo Mundo, que opuseram frontalmente Europa e América nos séculos XVIII e XIX, estavam, segundo Murari (1999), associadas, por um lado, à ascensão de um sentimento nativista em relação aos valores físicos e naturais de uma América ainda “primitiva” e, por outro, ao poderoso referencial para a crítica da sociedade europeia.

À América foi lançada tanto a condenação por sua extrema juventude, ou imaturidade, quanto por sua antiguidade. A Europa, por sua vez, foi inúmeras vezes definida como um continente a caminho da decrepitude, devido à limitação territorial e ao virtual esgotamento de seus recursos naturais, enquanto ao Novo Mundo foi atribuído o sentido de futuro, de redenção e de vanguarda da humanidade (MURARI, 1999, p. 49).

A visão sublime do Brasil é construída a partir de uma vida natural, espontânea e harmoniosa em relação ao mundo. No verão de 2007, Vogue anuncia que “janeiro é sinônimo de pouca roupa, pés no chão e cabeça fresca”, convidando a leitora para “ficar o dia inteiro de biquíni, estirada na grama ou na areia, vendo o tempo passar sem nenhuma preocupação” (FALCÃO, 2007a, p. 97). Mas a América tropical de Vogue não é primitiva. Ao contrário, é sofisticada, como o próprio título do editorial “Classe à beira-mar” (Figura 87) sugere, bem como o restante da mensagem linguística do editorial: “O passaporte para o verão está nos biquínis e maiôs com detalhes sofisticados, que resgatam o estilo clássico” (FALCÃO, 2007c, p. 98).

267

Figura 87: Imagens do editorial Classe à beira-mar. Fonte: Vogue Brasil (2007a, p. 98-107).

As tonalidades de verde e amarelo, incluindo o dourado, contrastam com o preto e o branco dos biquínis e da iluminação, reforçando a ideia de luxo e elegância. A paisagem grandiosa, generosa e exuberante parece ser um importante significante plástico e icônico de uma “essência nacional” marcada por uma estética romântica que valoriza o passado nostálgico e perdido, onde “seria possível recuperar virtudes que faltam à realidade presente” (MURARI, 1999, p. 50). Mas, diferentemente da atitude romântica que abandona o mundo burguês em favor da vida rural e do passado primitivo que tenha sido preservado de algum modo, a mulher [branca] deseja usufruir de todos os privilégios e benefícios de uma branquidade que lhe garante o tal “passaporte para o verão”. A figura da nativa aparece “civilizada”, cultivada à moda europeia, embora personificada pela potência juvenil e por toda a sensualidade naturalizada à brasileira que exala de Carol Trentini. A modelo gaúcha, segundo Vogue, era na época “uma das tops brasileiras mais disputadas pelas grifes internacionais” (FALCAO, 2007a, p. 97). Fotografada por Jacques Dequeker (“amigo de longa data da top” segundo a editora de Vogue), Carol mostra que “sabe como poucas ser sensual sem perder a elegância” (FALCÃO, 2007a, p. 97). Denise Sant’Anna (1995, p. 122) chama a atenção para a existência do “antigo 268 sonho de ser moderno e civilizado”, que há muito persegue as elites [brancas] do Brasil, sendo inclusive revelado pelo gesto que embeleza. Talvez seja por isso que Carol tenha sido escolhida para este editorial, revelando a parte traseira do seu corpo com discrição e sofisticação, com um modelo de biquíni imaginado pelo olhar estrangeiro (de dimensões maiores do que as geralmente usadas pela maioria das mulheres brasileiras). Provavelmente este autoexotismo construa a “maneira brasileira” de ser branca e rica. Mas é possível identificar a erotização do corpo da modelo, que se torna também objeto do desejo colonial [branco], como se sua imagem remetesse, em alguns momentos, à figura da índia nativa – aqui embranquecida, mas ainda disponível sexualmente (seus cabelos às vezes desalinhados, selvagens, suas expressões faciais e corporais convidam ao prazer do voyeur) e, outras vezes, à figura de uma mulher [branca] quase inacessível.

Essa mestiçagem americana desenvolveu-se associada, obviamente, a um forte componente sexual e sensual, fertilizado pela particular condição de uma ocupação eminentemente masculina – de europeus e africanos –, forte baixa no número de homens entre os nativos do Novo Mundo e presença dos corpos femininos nus – índias, africanas e nascidas na América que raramente se ligaram a preceitos religiosos cristãos (PAIVA, 2011, p. 85).

No ano seguinte, em uma edição dedicada justamente à Carol Trentini e considerada “histórica” por trazer mais de 50 páginas com ela, Daniela Falcão (2008a, p. 96) evidencia no texto de abertura dos editoriais de moda “seu carisma, profissionalismo, beleza e um jeito único de fotografar”. Para a editora, “nada mais justo que convocar a nata da fotografia de moda do Brasil para clicá-la [Carol]”. No editorial “Jardim Lisérgico” (Figura 88), não somente signos plásticos e icônicos são importantes para a interpretação de possíveis significados de uma rica produção discursiva, mas também a mensagem linguística se torna fundamental nesse processo, que é também parte da mensagem visual. Pode-se ler na primeira página: “A moda se volta para a natureza, resgata ideais da década de 70 e desconstrói o look romântico em clima surrealista de uma nova sociedade alternativa” (FALCAO, 2008b, p. 102). Este é o texto trazido por Vogue Brasil quando fala sobre a inspiração do editorial, no qual Miro fotografa Carol Trentini: 269

Figura 88: Imagens do editorial Jardim Lisérgico. Fonte: Vogue Brasil (2008a, p. 102-115).

Produzindo um jardim “alucinógeno” e sinestésico, Vogue escolhe o universo surrealista para evidenciar o estilo boho241 dos anos 1970, por meio de uma atmosfera repleta de imaginação e de um rico jogo de cores, luzes, estampas, texturas e formas. Trata-se de um estilo que retorna no final dos anos 2000 como uma importante tendência de moda (e de estilo de vida) na Europa, nos Estados Unidos, em alguns países da América Latina e, logicamente, no Brasil. Cores predominantes no cenário e na iluminação – verde, amarelo, rosa , laranja, vermelho – aparecem em tonalidades bastante vivas, ajudando a compor plasticamente este universo. Mas como se configura o surrealismo evocado por Vogue Brasil, neste caso? Trata-se de uma inspiração artística datada do início do último século que, por meio da construção simbólica de uma branquidade alternativa, acaba sendo mais um exemplo de “autoexotismo” da natureza e da cultura popular brasileira, realizado por Patricia Carta e os editores de moda Daniela Falcão e Giovanni Frasson.

241 Estilo marcado por um visual confortável, mas elaborado a partir de um “desleixo premeditado”, que mistura ecleticamente elementos dos estilos hippie, étnico, boêmio, folk, vintage e/ou romântico, com personalidade e ousadia. 270

Na criação de um exotismo brasileiro, nossa moda recorre ao uso de elementos culturalmente associados à dimensão da autenticidade e da tradição. Reforçam-se estereótipos sobre um corpo erotizado, um caráter nacional muito influenciado por nossa natureza exuberante, uma determinada cultura popular brasileira autêntica, entre tantos outros. Ao mesmo tempo, tais estereótipos são aliados a novas representações, como a de que o Brasil pode tornar-se importante produtor de modas “étnicas” e exóticas, assim como de bens voltados para o consumo ético, ecológico e socialmente engajado (LEITÃO, 2007, p. 336).

A busca pela autenticidade é de fato uma das principais características associadas ao estilo boho. No “Ponto de Vista” da edição, pode-se ler sobre o editorial Jardim Lisérgico: “looks românticos em clima surrealista resgatam o espírito da moda com ares boho dos anos 70, uma das tendências fortes do próximo inverno” (FALCÃO, 2008a, p. 96). Desta forma, Vogue se refere a uma “nova sociedade alternativa”, remetendo iconicamente ao contato direto com a natureza e com um estilo de vida mais alternativo. Como bem identificou Débora Leitão, na citação anterior, há uma tensão simbólica, uma espécie de luta discursiva entre autenticidade e tradição. Não por acaso identificamos termos como “resgate” e “desconstrução”, que podem ser utilizados em diferentes contextos, sendo opostos ou complementares. Neste jogo simultâneo de signos, misturam-se folhagens, frutas, árvores, rasteiras nos pés, cabelos despenteados, roupas leves, descontraídas e esvoaçantes, violão, posturas relaxadas e sensuais, olhares de ingenuidade e estranhamento, atitudes despojadas e estrategicamente displicentes (“sem pose”). Trata-se de uma tradição importada pelo “olhar europeu”, por isso Vogue mostra um retrato artificial do Brasil, muito bem simbolizado por um jardim lisérgico. O tipo de construção vista logo nas primeiras páginas do editorial – feita com tábuas de madeira, algumas pintadas em forma de janela – funciona plasticamente como uma espécie de instalação artística e remete à estética do “barraco de favela”, já conhecido pelos estrangeiros que vêm geralmente ao Rio de Janeiro ou à Bahia. Vimos que exotismo e nacionalismo possuem uma estreita relação no que diz respeito à singularidade brasileira. Vogue é também nacionalista: há uma escada, também de madeira, que conduz a dois 271 balões estampados com a bandeira do Brasil, representando iconicamente um país alegre, divertido e “sonhador”. Tal relação funciona da mesma forma para a questão racial abordada no editorial: os “nativos” deste jardim lisérgico são brancos – signos visuais que refletem mais uma vez a luta discursiva entre autenticidade e tradição. Eles podem estar representando jovens brancos que, alternativamente, optaram por um estilo de vida semelhante ao dos índios e/ou nativos do país, estando bronzeados pelas condições socioculturais da vida em comunidade junto à natureza; ou podem estar representando a dominação racial historicamente associada às elites brancas colonizadoras europeias, por meio de um evidente branqueamento estético, étnico, social, econômico.

De fato, por intermédio das condições econômicas e sociais que elas pressupõem, as diferentes maneiras, mais ou menos separadas ou distantes, de entrar em relação com as realidades e as ficções, de acreditar nas ficções ou nas realidades que elas simulam, estão estreitamente inseridas nos sistemas de disposições (habitus) características das diferentes classes e frações de classe. O gosto classifica aquele que procede à classificação: os sujeitos sociais distinguem-se pelas distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu intermédio, exprime-se ou traduz-se a posição desses sujeitos nas classificações objetivas (BOURDIEU, 2007, p. 13).

Dois anos depois, o universo do surfe é tema de Vogue no editorial “Radical Chic” (Figura 89). Daniela Falcão apresenta o verão de Vogue Brasil em clima de buena onda – título de abertura dos editoriais de moda da edição 377, que anunciam um “revival” dos anos 1980: “a década dos excessos que foi reabilitada em grande estilo pelo establishment fashion e prossegue firme neste início de 2010” (FALCÃO, 2010a, p. 151).

272

Figura 89: Imagens do editorial Radical Chic. Fonte: Vogue Brasil (2010b, p. 152-161).

Cores cítricas (laranja, amarelo, verde, rosa pink) que acenderam o guarda-roupa dos excessos ganham destaque sob a luz do sol, na Praia dos Carneiros, “novo hot spot do litoral pernambucano, onde tons fluo e um toque utilitário embalam os dias da surfista fashion” (FALCÃO, 2010a, p. 151). E, nesse contexto, se a praia era o mais novo point, a surfista tinha que ser fashion – ambos são termos usados para evidenciar discursivamente a legitimação da moda praia trazida por Vogue, bem como da atitude radical por ela inspirada e autorizada. Plástica e iconicamente, a beleza natural da praia ainda deserta – com grandes coqueiros, mar dourado e areia fofa – sugere que o dia está apenas começando, iluminado pelo sol e por um céu azul com grandes nuvens brancas. Logo nas duas primeiras páginas do editorial, a jovem modelo [branca] de cabelos oxigenados e longas pernas contempla a paisagem sobre o capô de um carro esportivo, segurando uma prancha de surfe. Veste um biquíni colorido (rosa pink na parte de cima e laranja flúor na parte de baixo) sob uma regata branca transparente; usa ainda óculos colorido (amarelo cítrico) e relógio preto. Sobre o teto do carro, há mais duas pranchas de surfe – que se tornam importantes signos deste universo, pois funcionam discursivamente como marcadores da distinção feminina, uma vez que muito provavelmente a surfista “cairá 273 no mar” usando um tipo de prancha associado majoritariamente a surfistas homens. A mensagem linguística do editorial é revelada pelo seguinte texto: “Os anos 80 invadem a Praia dos Carneiros, no litoral pernambucano, resgatam o surfe como esporte oficial e imprimem cores cítricas à cartela de 2010” (FALCÃO, 2010b, p. 152). A fusão da moda com o surfe é, portanto, explícita: moda de praia, praia da moda. Nossa moda praia já era bastante conhecida no circuito internacional da moda em 2010, sendo cada vez mais desejada porque associada à sensualidade da mulher brasileira. Tais universos se cruzam a partir de uma “estetização regionalizada do Brasil”, operada pelo olhar de uma elite [branca] brasileira. O gosto sofisticado se impõe mesmo na praia, sendo conotado principalmente pelo carro esportivo de luxo, pelas peças e acessórios de grifes e pela postura da jovem – reforçando assim a ideia do que seria radical e chique para Vogue em termos de performance, muito mais do que a ideia de uma surfista de verdade (que não iria cair na água com tais acessórios, nem com o modelo de biquíni escolhido). Ou seja, tudo é produzido para criar emulação, empatia e mesmo identificação com o ethos criado pela imagem da surfista chique, “antenada” e radical. Desta forma, a eficácia simbólica deste editorial se dá em seu conjunto, mais especificamente no nível narrativo, que conta imageticamente o dia a dia da surfista fashion imaginada: radical chic! O espírito “radical” estaria sendo evocado por signos de simplicidade e utilitarismo (posturas descontraídas, roupas leves, curtas e com modelagens simples, acessórios, natureza da praia, espírito alternativo do esporte, entre outros). O estilo “chic” estaria, por sua vez, sendo evocado por signos de elegância e da última moda (roupas e acessórios coloridos estilo “anos 1980”, gestos e olhares displicentes e indefinidos, cabelos médios e geométricos, formas minimalistas). Gostaria ainda de salientar que a sensualidade feminina brasileira pode ser vista como o “fio condutor” do editorial, sendo naturalizada quando associada à imagem da jovem surfista, à forma de usar as peças, ao uso de transparências, à nudez das pernas, costas e seios. Portanto, a partir do universo do surfe, em uma praia da moda, a imagem da “menina-mulher” fotografada por Jacques Dequeker é estrategicamente escolhida por Patricia Carta e editores. Segundo entrevista de Giovanni Frasson, editor de moda de Vogue Brasil:

Começo passando a ideia para o fotógrafo. Se ele gostou, vem a decisão dos dois, e partimos para 274

saber qual modelo vai fazer a matéria. Às vezes se perdem dias para se escolher a modelo. Em várias situações, o fotógrafo quer um nome, a diretora de arte, que também participa do processo, quer outro, e o editor, um terceiro nome [...]. No Brasil a situação é meio cruel com as pessoas que passam dos 30 anos [...]. Às vezes uma mulher de 30 tem a experiência que você precisa e que uma de 14 anos certamente não terá. Em alguns casos, vale a experiência, e num outro momento você convoca uma menina linda de 14 anos (GUERRA, 1995, p. 160).

O Brasil é ainda mostrado em Vogue por meio de representações simbólicas regionalizadas que autoexotizam sua natureza e/ou sua cultura popular, estando associadas à imagem da mulher carioca [branca] urbana e “marrenta” (Figuras 90 e 93), à figura de uma Maria Bonita [branca] chique, jovem e sem muitas preocupações sociais (Figura 91 e 94) e ainda ao exotismo da fé afro-brasileira junto e da natureza tropical (Figura 92 e 96).

Figura 90: Imagem do editorial Figura 91: Imagem do editorial Flagrada . Fonte: Vogue Brasil O Sertão está na Moda. Fonte: (2005, p. 158). Vogue Brasil (2006a, p. 117).

275

Figura 92: Imagem do editorial Jardim Lisérgico. Fonte: Vogue Brasil (2008a, p. 123).

A edição 318 de Vogue “Gisele dez! Vogue Brasil, trinta!” é comemorativa dos trinta anos de Vogue no Brasil e dos dez anos da carreira de Gisele Bündchen. Publicada em 2005, inovou no mercado editorial nacional produzindo seis capas com a supermodelo. Segundo Ignácio de Loyola Brandão (2005, p. 93), esta edição de Vogue “se completa com algo inédito na imprensa brasileira, uma vez que tem seis capas diferentes. Cada uma delas marcada por uma das letras do nome Gisele. Para colecionadores, para fãs, para cultuar a beleza”. Gostaria de ressaltar ainda outros discursos que fazem parte do “Ponto de Vista” desta edição: “Há em todos um brilho e uma legenda: quero ser a nova Gisele”, a respeito dos olhares de centenas de jovens entre 14 e 17 anos que se aglomeram no jardim da Carta Editorial todos os meses para tentar uma única chance de conseguir fazer parte do casting das editoras de moda de Vogue; “Ela [Gisele] foi ao Rio, penetrou no Projac da Globo, saiu nas ruas incógnita. Gisele de batom vermelho, Gisele se depilando, Gisele adolescente”242. Fotografada por Paulo Vainer e Veronica Casetta, Gisele é “vigiada” nas ruas da capital carioca para o editorial “Flagrada” (Figura 93). Somos informados que se trata do Rio por Brandão logo no início da edição, no texto anteriormente citado.

242 Ibid, p. 93 276

Figura da cidade, tal como a “passante” (ROCAMORA, 2007), a modelo parece encarnar uma feminilidade urbana [branca] na condição de brasileira e estrela da moda. É, antes de tudo, a mensagem icônica que nos chama a atenção desta produção: Gisele e Rio de Janeiro, a modelo e a cidade “maravilhosas”. Porém, não mais tão glamourosas como em outras épocas, afinal a intenção aqui muito provavelmente é mostrar artística e realisticamente a atitude destemida e completamente desenvolta da top global por meio do diálogo com a expressão cultural da moda “de rua”.

Figura 93: Imagens do editorial Flagrada. Fonte: Vogue Brasil (2005, p. 152-163).

Trata-se da construção de uma branquidade legitimada que se apropria de elementos da cultura popular e de referências estéticas bastante evidentes do universo das (sub) culturas urbanas étnicas, musicais e esportivas, a fim de produzir o que se conheceu na moda daquele período como hi-lo243. Entre as peças e acessórios vestidos por

243 Também conhecido como high-low, é a mescla de peças que, separadas, seriam vistas como opostas: tecidos nobres com rústicos, entre o artesanal e o industrial, do “refinado, elegante, com o pop” (LEITÃO, 2007, p. 318) são bons 277

Gisele, destacam-se o calção de boxe, o blusão e as correntes usados por cantores e artistas da cena hip-hop; colares e coletes com aplicações artesanais, macacão estampado, saia plissada e megahair244 no estilo rastafári inspirados no movimento hippie; saia de tule no estilo balé clássico; sandálias de saltos altos; blusa e luva utilizadas no ciclismo; caneleira de futebol; biquíni e tops pequenos. O estilo hi-lo adotado em Vogue torna-se exemplar quando pretendo mostrar o movimento de adaptação da produção popular à produção da alta moda e do prêt-à-porter de luxo, por meio da associação “da ‘brincadeira’ com os códigos da elegância a um conjunto indumentário maior, onde apenas uma peça seja ‘destoante’, mantendo (e fortalecendo) a ideia do contraste” (LEITÃO, 2007, p. 317). Nota-se que os intermediários e especialistas do campo ocupam um papel central na reprodução do (bom) gosto hegemônico da elite [branca] brasileira. Neste jogo contrastante, a rua, o asfalto, as calçadas sujas, grades e portões fechados, bem como as várias imagens fragmentadas e ainda praticamente duplicadas, dividem as fronteiras simbólicas do sexo/gênero, da classe social e da raça/etnia: estereótipos da prostituta glamourosa e da carioca “marrenta” são evocados.

O uso do megahair surge como extensão do eu corporal, uma alteração da auto-imagem radical, pois ele participa de um movimento de vulgarização e de democratização da body-art (arte corporal) no Brasil. As aparências são manipuladas, a sedução luta contra o destino anatômico. Assim, a atual moda do megahair deve também ser associada a esta onda de neo- narcisismo corporal, colocada em evidência por Baudrillard, movimento que faz da aparência física ao mesmo tempo um capital e um investimento (MALYSSE, 2008, p. 113).

Entre natureza e cultura, natural e artificial, ficção e realidade, uma narrativa voyerista cinematográfica e/ou fotográfica (com enquadramentos e ângulos de tomada plongé), convida as leitoras a mergulhar plasticamente no universo criado por Vogue para “espiar” exemplos deste recurso estilístico, conceitual e comportamental utilizado no campo da moda na década de 2000. 244 “[...] ao mesmo tempo superlativo e extensão do cabelo no espaço visível do corpo” (MALYSSE, 2008, p. 108). 278

Gisele (até mesmo com sua cachorrinha “Vida” no colo) e desfrutar da performance da supermodelo, mesmo sendo desafiadas por ela. Se, por um lado, Vogue pretende reforçar o “ideal brasileiro da mistura harmoniosa enquanto forma do Brasil pensar sobre si mesmo” (LEITÃO, 2007, p. 312) para vender nosso país ao resto do mundo, por outro legitima no campo da moda brasileira uma espécie de “nacionalismo cool e provocativo” incorporado na figura de Gisele. Suas atitudes, seus gestos corporais e faciais revelam, por vezes, pequenas doses de uma reação típica dos menos favorecidos socialmente: indignação, astúcia, rebeldia. Corroboro com Leitão (2007, p. 316) quando esta diz que a apropriação de tais elementos populares parece ser mais um “jogo possível a partir do completo domínio dos códigos de (bom) gosto do que propriamente abertura ou recusa de tais códigos”. Ambiguamente atraídos e repelidos por nossa elite [branca], tais códigos acabam reforçando o exotismo da cultura popular brasileira, no sentido que procurei mostrar já no início deste tópico – nesse sentido, associado à “autoexotização” de nosso país. O popular vira fonte de inspiração e acaba permanecendo dentro dos padrões de gosto das classes médias e altas porque é exotizado245. Outro exemplo de como estereótipos populares são “lapidados” de acordo com o gosto da classe alta consumidora (LEITAO, 2007) está no editorial “O Sertão está na Moda” (Figura 94), publicado no ano seguinte. Nele, a modelo Marcelle Bittar é fotografada por André Passos:

245 Ibid, p. 317 279

Figura 94: Imagens do editorial O Sertão está na Moda. Fonte: Vogue Brasil (2006a, p. 116-125).

Seguindo a primeira página, pode-se ler o seguinte texto: “Os tons de terra são a coqueluche desta temporada, o look Maria Bonita fica completo com tecidos leves contrastando com meias 7/8 – visual que foi parar até no desfile verão 2006 da Prada” (FALCÃO, 2006, p. 116). Pode-se dizer que Vogue associa linguisticamente a imagem do sertão Nordestino (bem como de Maria Bonita) aos “tons de terra” e ao contraste de “tecidos leves” com “meias 7/8”. Mas o sertão de Vogue não se resume exclusivamente a tecidos e meias. Há, plasticamente, outros significantes que conotam contrastes, sendo percebidos: no brilho das meias e dos acessórios com a opacidade da terra (seca e árida) e do algodão das peças; no céu (azul profundo) com a terra (marrom intenso), divididos pela linha do horizonte; na luminosidade do branco, do bege (e suas nuances derivadas) com a escuridão das sombras escuras (marrons e pretas); nos sapatos pesados com vestidos leves; nas posturas rígidas e gestos calculados com as poses languidas e casuais; nos olhares altivos e levemente sensuais com expressões de estranhamento, recusa ou apatia. Gostaria de salientar que tais contrastes marcam discursivamente uma clara distinção simbólica de classe, de gênero e étnica/racial, a partir da construção de uma branquidade legitimada e operada dentro da mensagem visual do editorial e logicamente pela própria posição ocupada pelo periódico entre a elite [branca] brasileira. 280

A presença de uma mala de viagem da marca Louis Vuitton indica de imediato que não se trata de uma retirante qualquer, uma vez que este objeto remete iconicamente ao luxuoso universo de ostentação da aristocracia francesa do século XIX, como foi ressaltado no segundo capítulo da tese.

[...] em todos os campos, a estilização da vida, ou seja, o primado conferido à forma em relação à função, à maneira em relação à matéria, produz os mesmos efeitos. E nada determina mais a classe e é mais distintivo, mais distinto, que a capacidade de constituir, esteticamente, objetos quaisquer ou, até mesmo, ‘vulgares’ (por serem apropriados, sobretudo, para fins estéticos, pelo ‘vulgar’) ou a aptidão para aplicar os princípios de uma estética ‘pura’ nas escolhas mais comuns da existência comum – por exemplo, em matéria de cardápio, vestuário ou decoração da casa – por uma completa inversão da disposição popular que anexa a estética à ética (BOURDIEU, 2007, p. 13).

Se a “auto-exotização” da natureza e da cultura popular brasileira em Vogue Brasil mostra o quanto nosso país foi e ainda é o exótico do europeu, mostra também que o “povo” é o exótico da elite fashion brasileira, como bem definiu Leitão (2007, p. 320). Nesse sentido, determinadas características histórica e socioculturalmente associadas à condição social da figura inspiradora e icônica de Maria Bonita (bandoleira, cangaceira, libertária, clandestina, invasora) estão ausentes do discurso de Vogue, deixando de serem elementos importantes no processo de “encarnação” da sertaneja. Patricia Carta e os colaboradores desta produção parecem privilegiar apenas o lado “vaidoso” de Maria Bonita, apropriando-se da estética do cangaço para legitimar um visual que “foi parar até no desfile verão 2006 da Prada” – marca italiana de luxo bastante desejada por mulheres brasileiras de médio a alto poder aquisitivo. Mas também não se trata literalmente da Maria Bonita de Lampião, pois esta remeteria diretamente ao “popular” (Figura 95). Cito Bourdieu (2007, p. 37), porque se trata exatamente de uma experimentação formal vista como uma “recusa de comunicação escondida no âmago da própria comunicação em uma arte que dissimula e recusa o que ela parece manifestar tão bem na cortesia burguesa, cujo 281 impecável formalismo é uma permanente advertência contra a tentação da familiaridade”.

Figura 95: À esquerda, Maria Bonita na década de 1930, com os cães Ligeiro e Guarany e à direita, ao lado de Lampião e do suposto fotógrafo sírio Benjamin Abrahão. Fonte: Sousa (2011).

Do autêntico e popular visual de Maria Bonita à figura da sertaneja [branca] do século XXI de Vogue (Figura 94), parece haver o que Bourdieu (2007) chamou de “distanciamento estético”, um deslocamento do interesse do “conteúdo” em direção à “forma”, aos efeitos propriamente artísticos que se apreciam apenas relacionalmente pela comparação com outras obras, completamente exclusiva da imersão na singularidade da obra imediatamente dada. O embranquecimento da figura da sertaneja baiana é um poderoso significante das concepções hegemônicas da brancura no Brasil. Nesse sentido, há uma ênfase na luminosidade e na radiação da pele branca de Marcelle Bittar – com exceção apenas na segunda imagem (sentada, com as duas mãos levadas ao rosto), onde a pele está bronzeada do “sol quente do sertão”, embora aqui também o bronzeado funcione como signo de status e não de penosas andanças na caatinga nordestina. Portanto, pode-se dizer que Vogue “reutiliza certos tropos da brancura, a fim de definir-se para além de e manter um ar de superioridade para as massas Brasileiras” (DENNISON, 2013, p. 292, tradução nossa). Ainda sobre o “autoexotismo” da natureza e da cultura popular brasileira, gostaria de retomar outras imagens do editorial “Jardim Lisérgico” (Figura 96), já comentado neste tópico. Vimos que se tratava principalmente de um jardim surrealista, marcado por um contexto 282 simbólico de autenticidade e tradição e construído para representar uma “sociedade alternativa”. A fim de abordar agora mais especificamente outras imagens deste mesmo editorial, pretendo mostrar como elas constituem bons exemplos da “autoexotização” da fé religiosa (notavelmente baiana) associada à natureza tropical do Brasil, construída a partir da importação do “olhar europeu”.

Figura 96: Imagens do editorial Jardim Lisérgico.

Fonte: Vogue Brasil (2008a, p. 112, 113 e 114 ).

Em imagem de página dupla, à esquerda, Carol Trentini está sentada entre plantas, folhas e árvores, sombra e raios de sol, sobre um grande tapete branco (felpudo, artesanal), estendido sobre o jardim do Clube Hípico Santo Amaro (conforme créditos da ultima página do editorial). Também sobre o tapete, um imenso objeto decorativo (em bronze) em forma de cabo e folhas, um emaranhado de fios e uma pequena mesa quadrada de madeira bruta com algumas frutas (carambola, limão verde, côco), um vaso (verde) com mudas, alguns frascos com líquido escuro em seu interior e outras pequenas coisas. Carol usa um vestido de chiffon e óculos escuros Ray Ban. Ao lado da modelo, uma imensa fita “Lembrança do Senhor do Bonfim” encontra- se depositada no chão e ao fundo, na outra extremidade da imagem, mais uma fita desce do alto, no campo correspondente à metade esquerda da imagem, no qual predomina a natureza. Muitos dos objetos comentados, analisados no conjunto da imagem, remetem visualmente a uma fusão simbólica da religiosidade afro-brasileira celebrada na Bahia com a natureza tropical amazônica do Brasil, por meio da “auto-exotização” da cultura popular e da natureza. Signos como as fitas “Lembrança do Senhor do Bonfim”, que foram 283 adotadas pelos hippies baianos na década de 1960 e são comercializadas até hoje nas ruas de Salvador (vendidas para turistas de outras partes do Brasil, da Europa, dos Estados Unidos e outros países), aumentam de tamanho para mostrar a imensa fé do povo brasileiro, por meio da linguagem surrealista. Os frascos com líquido escuro em seu interior, depositados sobre a mesinha de madeira bruta, podem remeter a frascos de azeite de dendê, mas também a algum preparado à base de ervas, ou ainda de algum perfume, loção milagrosa ou poção “mágica”. Desta forma, a fé brasileira estaria também sendo associada por Vogue à feitiçaria (pagã), pela apropriação estratégica e simbólica de signos místicos como fruto do desejo pelo desconhecido (primitivo) por parte dos estrangeiros, como os europeus por exemplo.

Falando sobre os grigris246 brasileiros, amuletos de sorte, a revista francesa [L’expressmag, 21 de março de 2005] anuncia para sua leitora e consumidora que sua riqueza e diversidade são infinitas. Nossos amuletos, ricamente adornados e muito coloridos, por vezes remetendo a uma religiosidade mágica cristã, por outras a religiosidade afro-brasileira (comumente confundida nessa mesma imprensa francesa de moda com o vodu), ou ainda com um quê indígena pagão e primitivo, teriam o poder de enfeitiçar – positivamente – o consumidor europeu justamente porque estão além (ou aquém?) de qualquer possibilidade de compreensão por parte “dos ocidentais” (LEITÃO, 2007, p. 262).

Há, na expressão facial e na própria linguagem corporal de Trentini uma postura de indiferença e alienação em relação aos objetos em torno dela na imagem de página dupla, fato que pode conotar justamente a “falta de compreensão” apontada por Leitão (do consumidor francês em relação aos amuletos do Brasil). Pode-se dizer que Patricia Carta, Daniela Falcão e os demais produtores deste editorial realizam o que considero como “autoexotismo” da religião afro-

246 Palavra utilizada na França para designar amuletos, sendo a denominação dada principalmente aos amuletos das Antilhas e da África (LEITÃO, 2007). 284 brasileira, legitimando simbolicamente a dominação branca em relação à cultura popular negra por exemplo.

A associação da baiana à magia responde a um imaginário que busca nos mitos arcaicos a explicação para o que foge à ordem reinante. O laço concreto da baiana com o misticismo é o candomblé, observado com distanciamento e desconfiança pelo outro civilizado (GARCIA, 2004, p. 125).

Carol Trentini, à direita (Figura 97) – de cabelos soltos, usando vestido branco de seda com camiseta branca, colar, pulseiras grandes e rasteira nos pés – apoia-se em uma escada de madeira e deixa uma parte do corpo encostada em um tronco de árvore, com as duas mãos para cima. O próprio contexto analisado até o momento contribui para o reconhecimento de poses ritualísticas e esquemas perceptivos de uma inversão simbólica e estratégica: o “tronco”, significante que remete iconicamente ao sofrimento físico de escravos negros desobedientes e/ou fujões durante o período da colonização brasileira, aparece como um elemento-chave da dominação branca. A branquidade construída baseia-se, portanto, na negação do negro, mas por meio da “autoexotização” de signos populares associados historicamente ao complexo universo simbólico do negro escravo e pobre.

Aqueles que hoje enfatizam suas diferenças geográficas e históricas podem na realidade estar apenas repetindo de modo pouco crítico as próprias estratégias de divisão do colonialismo. Contudo, neste momento da era colonial, quando procuramos compreender o funcionamento e os efeitos da história colonial, a homogeneização do colonialismo também precisa ser confrontada com suas particularidades históricas e geográficas. Para qualquer teoria sobre o discurso colonial, a questão é saber se ela pode afirmar, e apreciar devidamente, ambos os níveis (YOUNG, 2005, p. 203).

No clima surrealista do jardim lisérgico criado por Vogue Brasil, fitas enormes do Bonfim e quadros desalinhados com o lema da Nação 285

Brasileira (Ordem e Progresso) estão literalmente sobre o chão. Esta composição de signos particulares, históricos e geográficos pode estar contribuindo visual e linguisticamente para a manifestação simbólica da “desordem” (e, por associação, do “atraso”) – aspectos iconicamente associados ao Brasil no exterior – reforçando assim a “autoexotização” de nossa própria cultura.

4.2.2 Nacionalismo, erotização e embranquecimento da mulata brasileira

Como mulher-corpo, mulher-sedução, a mulata se engaja em um tipo de mediação/comunicação bastante distante do modelo de mulher que viabiliza, como signo, através do casamento e das identidades de esposa e mãe, a aliança entre duas famílias. A mulata não se apresenta como um valor por referência ao grupo familiar – filha, irmã – que irá funcionar como valor-signo na mediação entre famílias, mas, ao contrário, como mulher sem família, exposta, disponível, cujo valor advém exclusivamente da sexualidade (GIACOMINI, 1994, p. 220).

Raça, corpo e nação encontram-se inter-relacionados nas representações da mulher brasileira, levando-nos a refletir sobre algumas configurações discursivas relacionadas ao uso do corpo da mulher como objeto da Nação. No caso de Vogue Brasil, a construção nacionalista, conservadora e elitista da branquidade envolve também o processo de embranquecimento social de figuras femininas em contextos particulares – como inclusive foi possível observar até então. Abordando o tema da figura feminina na pintura modernista, Costa (2002) ressalta a importante participação da mulher na formação da sociedade brasileira, tornando-se um símbolo privilegiado na formação da identidade e da cultura nacional. Mas, como vimos anteriormente, esse privilégio ligado a uma parte da elite [branca] conservadora serviu aos cânones de um modelo modernizador e nacionalista de sociedade. Se a imagem da mulher pode ser vista como protagonista de temas diversos – “lavadeiras, camponesas, bordadeiras, vendedoras de frutas, prostitutas, dançarinas de cabaré, mulheres em parques e ruas e 286 no interior das residências, elaboram uma crônica visual do Brasil rural, urbano, plural” (COSTA, 2002, p. 130) – sendo tomada inclusive como elemento essencial de criação artística e liberdade estilística – tal multiplicidade conviveu ao lado de certas convergências ao longo da primeira metade do século XX. A própria indústria da moda, que é transnacional, busca majoritariamente um corpo [branco] como padrão estético, com características significantes de uma brancura específica. Susana Maia (2012), que procurou identificar a branquidade inominada nas representações sobre a modelo Gisele Bündchen na mídia transnacional (Brasil e Estados Unidos), aponta para a ausência da associação dos termos “latino” ou “hispânico” à imagem da modelo brasileira.

[...] as melhores agências do mundo estão voltadas para o Brasil na busca do “next big face” (próximo rosto famoso). Porém, não para a totalidade do Brasil, e sim, para as “descendentes de imigrantes alemães, com pernas longas, e que se estabeleçam no sul do país”. Dentre as razões para justificar esta tendência geográfica na indústria da moda, o diretor da Elite no Brasil menciona o “melting pot” brasileiro (mistura brasileira), capaz de produzir “faces globalizadas”, mas que possuam “menos traços de estereótipos étnicos”. Através dessas representações, podemos ler como uma estética embranquecida, coincidente com o que é encontrado nas elites transnacionais, é equacionada com uma estética “globalizada”, epifenômeno do colonialismo universalista (MAIA, 2012, p. 319, grifo do autor).

Em 2003, Vogue Brasil traz Gisele na capa da edição 296, onde é possível observar que a supermodelo desfruta do privilégio branco (físico, simbólico, e social) no mundo da moda por ser de fato uma descendente de imigrantes alemães, com pernas longas, estabelecida no sul do país – como bem salientou Maia (2012). Esta edição correspondeu ao número de Vogue considerado o “mais completo do mundo sobre Gisele Bündchen” (BRANDÃO, 2003, p.148), conforme citado no segundo capítulo. Pode-se dizer que Gisele é também produto do “modo de ver” do amigo e fotógrafo Mario Testino (como vimos no capítulo anterior). Algumas imagens suas (Figura 97) permitem 287 identificar a construção simbólica corporal desta figura da moda nos primeiros anos de nosso século.

Figura 97: Capa da edição e imagens da matéria Gisele fala. Fonte: Vogue Brasil (2003, p. 157, 161 e 162).

Como apontou Maia (2012), Gisele não deve ser necessariamente representativa da típica mulher brasileira, justamente pela idealização estética que faz dela um “ícone de brasilidade”:

Pelo contrário, um ícone deve representar um ideal, embora pleno de potenciais ambiguidades. A complexidade de seu corpo é resultante do espaço transnacional que ocupa, e em que diferentes projetos nacionais intersectam. A capacidade de circulação transnacional da mídia faz com que as mensagens expressas através de seu corpo se tornem significativas para os sistemas de representações sobre raça, nação, gênero (MAIA, 2012, p. 335).

A supermodelo possui cabelos loiros e olhos verdes, posando bronzeada para Vogue. É magra, mas com formas arredondadas. Icônica e plasticamente, pode-se dizer que seu padrão estético, há tanto almejado pelas elites brasileiras, promove um ideal de beleza que “favorece um ideal de embranquecimento que ainda persiste largamente na sociedade brasileira” (MAIA, 2012, p. 336). 288

Richard Miskolci (2013) aponta para a criação do embranquecimento como um modelo bem brasileiro de modernidade pela elite (brasileira), ainda no final do século XIX, impulsionado pela fobia social dos negros que, após a abolição, passou a significar “medo do povo”. Esta elite, conservadora e modernizadora ao mesmo tempo, procurou instaurar, por meio de um ideal higienista e disciplinador, a construção da nação a partir de um retrato idealizado dos países mais desenvolvidos da Europa. Desta forma, é possível compreender a necessidade de um diferencial que pudesse nos distinguir como “povo novo”, apartado de seus vínculos com o passado colonial, como bem salientou Tânia da Costa Garcia (2004), para quem acabávamos reafirmando a superior ancestralidade do colonizador. Analisando o “it verde e amarelo” de Carmen Miranda (1930-1946), esta autora mostra como a célebre cantora portuguesa, que conseguiu “criar a fantasia que a eternizaria no imaginário nacional e internacional como símbolo da brasilidade” (GARCIA, 2004, p. 101), se apropriou do modelo brasileiro de branqueamento:

Reconhecia-se que o que marcava a nossa diferença era a miscigenação, porém para ser positiva, deveria objetivar o branqueamento. Nossos intelectuais, quando se dedicavam aos temas populares, o faziam ainda impregnados de um olhar estrangeiro, reafirmando o distanciamento entre os segmentos sociais247.

Ao mesmo tempo, o biótipo que outrora foi considerado “exótico” fora e dentro de nosso próprio país começa a dar vazão no mundo da moda (Figura 98), segundo Raisa Carlos de Andrade (2013, p. 1): “modelos com ascendência negra e indígena estão se destacando por sua beleza misturada, não apenas aqui, mas também em Paris, Milão e Nova York. Em grupo, elas representam um novo perfil estético nas passarelas”.

247 Ibid, p. 114 289

Figura 98: Da esquerda para a direita, as modelos Mariana Nery, Carolinne Prates, Mariana Santana e Daniela Braga.

Fonte: Andrade (2013).

Estas modelos foram recentemente fotografadas para campanhas publicitárias e/ou desfilaram para importantes marcas do prêt-à-porter de luxo nas temporadas brasileiras (Herchcovitch, Victor Dzenk, Patrícia Vieira, Tufi Duek, Reinaldo Lourenço, Forum, Gloria Coelho, Osklen, Iódice) e europeias (Miu Miu, Givenchy, Dior, Alexander McQueen). Para a baiana Marina Nery, a força do perfil brasileiro é uma questão geográfica:

“Temos cara de meninas brasileiras. Brasileira não tem cara de loira”. Assim como ela, outras conterrâneas contemplam a evidência deste período. Marina aponta Simone Carvalho, Indira, Mariana Santana e Daiane Sodré entre os rostos que serão vistos com frequência a partir de agora. “Nós temos uma união muito grande e sabemos que o mercado é complicado pra gente. Nós devíamos era representar cada vez mais o nosso país”. [...]. “Como já há muitas loiras na Europa, lá fora a nossa beleza morena é vista como diferente. E estamos ganhando com isso agora” (ANDRADE, 2013).

Com 17 anos, a modelo mineira Carolinne Prates, de Montes Claros, é estreante no mundo da moda. De acordo com ela, “esse time de meninas dá outra luz ao desfile [...]. A morena tem uma pegada mais exótica, pisa com mais ousadia, tem uma pele que realça algumas roupas” (ANDRADE, 2013). Já a baiana Mariana Santana foi uma das quatro primeiras negras que desfilaram para a marca Céline, por 290 exemplo, além de fazer uma série de campanhas internacionais. Em recente entrevista, ela afirma que:

“Finalmente as pessoas estão começando a dar vez para pessoas como eu, Daniela Braga, Marina Nery. A gente é uma mistura. Em alguns lugares consideram a gente negra; em outros, morena”. [...]. “Tenho ascendência de negros, índios. Sou uma mistura, mas gosto de dizer que sou pretinha”, explica (ANDRADE, 2013).

A modelo Daniela Braga percebe que a moda vê no seu biótipo uma novidade, afirmando que:

“A moda preferiu outro padrão durante um bom tempo, sem trazer nada diferente. Acho legal porque somos a minoria. É muito legal ver que isso agora está se expandindo, crescendo, mudando, porque sempre está mudando”, reflete. Há um ano, a paulistana também se mudou para Nova York. Para ela, o Brasil está reproduzindo agora algo que já vem sendo visto no exterior. “É uma mudança que está começando agora. Tem meninas maravilhosas negras, morenas… São lindas, mas não fazem certos desfiles por conta do padrão”, opina a modelo de 21 anos. (...). De olhos claros e cabelos lisos, ela define sua beleza puxando para o lado africano da família. “Eu me considero negra. Acho que de tanto me considerarem negra em Nova York, fiquei com isso na cabeça. Chego no Brasil e viro morena”, brinca (ANDRADE, 2013).

Tais discursos reforçam de fato a ideia de raça como um “significante flutuante” (HALL, 2013, p. 95), abordada no segundo capítulo, assim como remetem à noção de mestiçagem. Capucine Boidin (2008) afirma, em seu artigo Métissages et genre dans les Amériques [Mestiçagem e gênero nas Américas], que a genealogia da mestiçagem data pelo menos do século XVI, quando as ideias de nação, povos e raças – assim como suas misturas – tinham ainda um outro sentido.

291

A noção de raça sobre o continente americano a partir do século XVI até o século XVIII, com a emergência dos discursos científicos (botânico, biológico, médico) conheceu uma longa transformação: de religiosa (fidelidade à fé católica sobre diversas gerações), política (lealdade), social (reputação), econômica (série e tipo de atividades), jurídica (estatuto da escravidão, tributária, livre, etc.), moral e cultural (língua, hábitos), a problemática do cruzamento se tornaria biológica: genealógica ou fenotípica (BOIDIN, 2008, p. 2, tradução nossa).

A própria construção do imaginário mestiço remete à construção do melting-pot colonial, por meio de um longo processo histórico da americanização do mundo ou da globalização mestiça, “o que equivale afirmar a conquista universal do mestiço, muito mais ampla e intensa que tudo o que antes existiria nesse sentido” (PAIVA, 2011, p. 101) após o século XVI. Emergia a concepção de uma hierarquia planetária precisamente elaborada com as experiências coloniais deste século, a partir da qual as ideias “modernas” de raça foram moldadas de uma parte à outra do Atlântico. Os estudos feministas anglo-saxões criticaram precisamente a tendência dos estudos pós-coloniais de criar categorias monolíticas e abstratas, tanto do colonizado quanto do colonizador. Elas sublinharam a dupla colonização vivida pelas mulheres colonizadas, assim como a posição ambígua das mulheres brancas, ao mesmo tempo dominadas e dominantes.

Com elas, a análise do espaço doméstico e da intimidade tornou-se central para compreender a colonização. As múltiplas relações econômicas e afetivas nos espaços domésticos, incluindo esposo, esposa, concubinas e proprietárias, mas também damas de leite, serventes, escravos e protegidos tornaram-se sujeitos de pesquisa. Uma questão salta particularmente: para desvendar o imaginário e a realidade das uniões de homens brancos com mulheres colonizadas, é preciso pensar a sua lógica ‘inversa’: as uniões entre mulheres brancas e homens colonizados (BOIDIN, 2008, p. 3, tradução nossa).

292

Compreender a relação entre mulheres e Estados-Nações nas ideologias da mestiçagem significa considerar que a questão da invisibilidade dos homens indígenas da América do Sul operava na medida em que a mulher se tornava ela mesma o único símbolo da indianidade [indianité], prefigurando a “mulher-mãe” como metáfora da nação. Já os homens, divididos em ativos e passivos por Simon Bolívar no século XIX, constituíam o corpo eleitoral, o Estado. Como vimos anteriormente, a partir dos anos 1920 a mestiçagem passa do discurso médico e antropológico à literatura e às artes plásticas, quando esta se torna a “tropa” das diferentes nações (México, Cuba, Brasil, Paraguai) a partir de uma “culturalização dos discursos raciais” (BOIDIN, 2008, p. 10, tradução nossa).

Em um movimento surrealista de outra ordem de sensibilidade, o movimento antropofágico cultural dos anos 1920 no Brasil proclama ao contrário o caráter essencialmente subversivo da antropofagia cultural que consiste em absorver todo elemento proveniente da Europa em uma matriz alternadamente tupi e africana. A ironia extraordinária dos textos de Oswald de Andrade entra em contraste com a maneira pela qual muitos autores brasileiros – Gilberto Freire com Casa grande e Senzala (1936), por exemplo – vão situar o nascimento da nação brasileira no leito do homem branco e de sua escrava e amante [maîtresse] negra, dando nascimento à emblemática figura da nação brasileira sob os traços da mulher mulata, livre, sobretudo de seu corpo248.

A problemática do “colorido todo especial da população brasileira” é retomada de forma mais explícita na década de 1930 e no contexto de um período fecundo de estudos e de dúvidas sobre a cultura brasileira. Um bom exemplo é a obra Macunaíma, do escritor modernista Mário de Andrade em 1928. Nela, o mito das três raças formadoras desta nação é exaltado pelas figures do índio, do negro e do branco – metaforicamente, “o herói de nossa gente, um ‘preto retinto’ vira branco, um de seus irmãos vira índio e outro vira negro (branco na

248 Ibidem, grifo do autor, tradução nossa 293 palma das mãos e na sola dos pés)” (SCHWARCZ, 2000, p. 100). A cultura mestiça despontava como representação oficial da nação brasileira:

Na verdade, no Brasil dessa época, dois grandes núcleos aglutinam conteúdos particulares de nacionalidade: o nacional popular e, sobretudo a mestiçagem, não tanto biológica como cada vez mais cultural. Enfim, era a cor que passava a associar uma imagem estética a uma apreciação moral e também cultural. Nessa perspectiva, o país se apresentaria como uma mescla, uma boa mescla, onde a cor – mais do que a raça – constituía um elemento explicativo fundamental249.

No contexto da criação de símbolos corpóreos ligados à identidade nacional, muitas ambiguidades podem ser observadas, tanto no que diz respeito ao corpo branco [e loiro] quanto ao corpo moreno. Este último pode ser “apenas a mulher ou o homem branco com pele mais escura e cabelos pretos, como a personagem de Alencar; pode ser também o sinônimo do corpo mulato; ou pode ser ainda um dos cento e tantos rótulos com que eufemisticamente se denomina ou se autodenomina o negro em distintas regiões do Brasil ou em diferentes situações de interação social” (PEREIRA, 2000, p. 93). Em “O Guarani”, José de Alencar aponta a figura da morena como símbolo de brasilidade – personificada por Isabel por meio de um corpo hibrido, mestiço, de cor jambo e com modos brejeiros, insinuantes. Já a figura da branca e loira simboliza, de um lado, o valorizado ideal de europeização da sociedade brasileira e, de outro, a estranheza ao país autêntico e tropical (PEREIRA, 2000). Se a população negra foi historicamente distribuída pelo território brasileiro a partir dos grandes ciclos da economia brasileira – sendo o ultimo deles o da lavoura cafeeira na então província de São Paulo, o povoamento de boa parte da região Sul do país foi feito, no final do século XIX, por imigrantes europeus – notadamente alemães, italianos do norte e poloneses, estando geograficamente localizados desta maneira “os estoques de brancos da população brasileira” (PEREIRA, 2000, p. 93). Na já citada obra “Casa-grande & senzala”, Gilberto Freyre retrata, em 1933, a experiência privada das elites nordestinas associada

249 Ibid, p. 102 294 ao novo modelo de identidade multirracial brasileira por meio da convivência entre as “três raças”, na qual introduz os estudos culturalistas como modelo de análise. “Se do branco vinha a ‘civilização’, do indígena alguns costumes alimentares e higiênicos, era entre os negros que se reconheciam traços de sociabilidade, marcas rituais e mesmo comidas, temperos e hábitos arraigados” (SCHWARCZ, 2000, p. 103). Porém, sobrepondo a convivência cultural das cores à desigualdade social, Freyre não aborda na década de 1930 conceitos como superioridade e inferioridade de raças. Segundo Schwarcz (2000), ocorre paralelamente um processo de “desafricanização” de vários elementos culturais, simbolicamente clareados e de um enaltecimento da “cor nacional”.

Era numa determinada cultura popular e mestiça que se selecionavam os ícones da nacionalidade: da cozinha à oficialidade, a feijoada saía dos porões e transformava-se em prato tradicional. Mais uma vez as cores do ‘novo prato nacional’ definiam a sua nacionalidade. Era como se a tonalidade virasse carteira oficial, neste país tão afeito à criação de critérios de identidade (SCHWARCZ, 2000, p. 106).

Ao lado do convencionalismo social da superioridade da mulher branca, encontrava-se tanto a inferioridade da mulher negra quanto a preferência sexual pela mulata já no Brasil recém-colonizado. Esta última, fruto do resultado biológico da mestiçagem em versão feminina e desde cedo admirada nas regiões escravistas americanas foi, a partir do século XIX, associada ao “genuinamente nacional e até à contribuição americana para o mundo (o que não é historicamente verdadeiro) em algumas das jovens nações, que buscavam constituir símbolos identitários próprios” (PAIVA, 2011, p. 86).

No dia a dia das populações americanas, tão profundamente mixadas, contrapuseram-se práticas culturais que, generalizadas, não permitiram a completa desqualificação do passado e do presente mestiços, nem uma absoluta deformação das matrizes negras. A música popular da época, a culinária, a indumentária, a sensualidade do viver, a estética corporal, todas 295

muito mescladas, já se encontravam impregnadas de nacionalismos e identidades populares, evocadas por vários grupos [...]. A americanização do mundo, tão marcante nos séculos XVI e XVII, parecia querer revigorar-se, e a civilização mestiça, sobretudo a brasileira, pretendeu-se modelo universal de sociedade. Nessa altura, a mulata já era a tal e até hoje não perdeu o rebolado250.

Os primeiros censos brasileiros, realizados em 1872 e 1890, focalizaram seus maiores interesses na obtenção de informações sobre pretos [“escravos” e “livres”], brancos e mestiços. Neles, a questão da raça misturava-se com o tema da cor, fazendo com que o critério fosse afirmado ou negado em contextos diferentes. Em 1950, o censo distribuiu a população brasileira em quatro grupos, ainda segundo a cor: brancos, pretos, amarelos e pardos [os que registraram declarações como índio, caboclo, mulato, moreno ou até os que não declararam a cor]. Em 1960, essas últimas quatro cores de classificação racial foram mantidas, sendo que os índios foram considerados separadamente, formando assim o quinto grupo. Em 1980, o recenseamento utilizou as categorias de 1950 (quatro grupos), mas enquadrando como pardos também mestiços, mamelucos, cafuzos e índios – que retornaram a esta categoria (SCHWARCZ, 2000)251. Tamanha indeterminação nas distinções raciais revela o quanto traços físicos (formato, tipo de cabelo, coloração de pele) se transformaram nas principais variáveis da diferença, caracterizando o uso elástico da cor no Brasil. Se nos censos a cor era determinada pelo pesquisador, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE em 1976, cento e trinta e seis cores foram atribuídas pela população a ela mesma, confirmando que no país o critério fundamental da classificação racial é, acima de tudo, “estético”. Alguns dos termos encontrados na pesquisa mencionada foram: alva; alva-escura; alva-rosada; agalegada; alvinha; amarela; amarela- queimada; acastanhada; amorenada; avermelhada; azul; bahiano; bem branca; bem morena; branca-morena; branca-pálida; branca-sardenta; branca-suja; branquiça; branquinha; branca; bronzeada; bugrezinha- escura; cabocla; café; café-com-leite; canela; clara; clarinha; chocolate;

250 Ibid, p. 106 251 Ver J.E.M. Posada, “Cor segundo os censos demográficos”. Manuscrito utilizado por Lilian Schwarcz (2000). 296 cor-de-cuia; crioula; escura; escurinha; jambo; loira-clara; loura; lourinha; marrom; meio-amarela; meio-morena; meio-branca; meio- preta; mestiça; morena-clara; morena-canelada; morena-jambo; morena- escura; morenão; mulata; mulatinha; negra; pálida; parda; polaca; pouco-morena; ruiva; sarará; vermelha (SCHWARCZ, 2000). Na referida pesquisa, pouco se falou de “origem” no processo de autoidentificação racial, “nenhum dos termos remete à África e, a não ser no caso de ‘polaco’ e ‘baiano’, a descendência não é sequer mencionada, isso para não insistir no claro branqueamento geral presente nas definições” (SCHWARCZ, 2000, p. 115).

Essa miríade de termos e as diferentes denominações fenotípicas e/ou sociais presentes nos diversos nomes revelam, em primeiro lugar, um ‘cálculo racial brasileiro’. O dado notável não é só a multiplicidade de termos, mas a subjetividade e a dependência contextual de sua aplicação. De fato, a identificação racial é quase uma questão relacional no Brasil: varia de indivíduo, depende do lugar, do tempo e do próprio observador252.

Trata-se, portanto, de um “uso social da cor” no contexto brasileiro, a partir do qual imaginários culturais entram em cena, sendo representados a partir de apropriações simbólicas de status racial e construídos pelas condições sociais, políticas e econômicas associadas à própria produção da branquidade, no caso desta pesquisa, em Vogue Brasil, ao longo da primeira década de nosso século. Vimos que tanto o exotismo quanto o nacionalismo possuem uma estreita relação com a construção do objeto de interesse e o olhar daquele que observa e estabelece um julgamento de valor, conforme disse Murari (1999). É justamente nesse sentido que proponho entender a construção de uma branquidade conservadora, que se apropria da mítica figura da mulata para erotizar o corpo feminino (atendendo assim ao olhar masculino, branco, europeu), ao mesmo tempo em que reproduz, por meio do corpo branco da moda, o desejo nacionalista historicamente associado ao projeto modernizador da elite [branca] dirigente brasileira. Nesse sentido, alguns editoriais de moda produzidos por Vogue Brasil constituem bons exemplos desta apropriação simbólica da imagem da mulata brasileira – e/ou de universos

252 Ibid, p. 117 297 culturalmente a elas relacionados – por meio da associação visual e linguística às figuras de uma prostituta de luxo (Figura 99), de uma célebre lavadeira (Figura 100) e de uma rainha da folia (Figura 101).

Figura 99: Imagem do editorial Figura 100: Imagem do A Bela da Tarde. Fonte: Vogue editorial Lata d’Água. Fonte: Brasil (2004a, p. 79). Vogue Brasil (2005, p. 321).

Figura 101: Imagem do editorial Folia de Rainha. Fonte: Vogue Brasil (2008, p. 121).

No contexto da globalização do luxo, a filosofia de vanguarda cultuada por Vogue no Brasil é produto de uma “história incorporada” (BOURDIEU, 1980) e, como vimos, o habitus deste periódico está inscrito em suas próprias condições particulares de produção. Nesse sentido, como bem afirmou Mariza Corrêa (1996), analisar 298 discursivamente a “figura imaginária da mulata” significa de fato discutir a relação entre raça e gênero. E acrescento ainda a classe (ou representações de classe), pois o elevado capital cultural exigido por Vogue de suas leitoras está notavelmente associado ao elevado capital econômico por elas desfrutado. Em 2004, a edição 307 de Vogue tem como temas principais a indústria da moda e a cidade de São Paulo, que comemorou seus 450 anos na época. O “Ponto de Vista” de Vogue apresentou “uma panorâmica a vol d’oiseau de tudo o que acontece na moda como negócio e glamour” (BRANDÃO, 2004, p. 67). Linguisticamente, pode-se perceber de imediato uma espécie de troca discursiva entre o nacional e o estrangeiro, que remete à ideia de modernização, pois a apropriação de termos de outras línguas que são reconhecidos e legitimados no campo da moda pelo universo simbólico e distintivo de Vogue parece estar pautada em uma miscigenação simbólica. Na mesma edição, o editorial de moda “A Bela da Tarde” (Figura 102) traz a modelo Ana Beatriz Barros, fotografada por J. R. Duran:

Figura 102: Imagens do editorial A Bela da Tarde.

Fonte: Vogue Brasil (2004a, p. 68-79).

Logo abaixo do título deste editorial pode-se ler: “Completamente urbana, ela passeia por uma São Paulo em festa, abusa do luxo e combina as texturas do Jersey, dos cetins e da gabardine para 299 provar que a atitude pode paralisar uma metrópole” (CARTA, 2004b, p. 68). Esta mensagem linguística parece convidar as leitoras de Vogue a um passeio diurno pela maior cidade do país, repleto de “luxo” e “atitude” – signos associados tanto à metrópole urbana quanto ao conceito de vanguarda cultuado pelo periódico. O título (A Bela da Tarde) é mais bem apreendido pelas mensagens plásticas e icônicas (JOLY, 1996) do editorial, que remetem em seu conjunto à imagem da mulher urbana, jovem, bela, sensual e sexualmente disponível: uma prostituta do dia, ou melhor, da mulher casada e traidora. Nesse sentido, percebe-se que muito provavelmente esta produção que homenageia São Paulo tenha sido inspirada na imagem Séverine, a protagonista do filme Belle de Jour, estrelado pela atriz francesa Catherine Deneuve, dirigido por Luis Buñuel em 1967 e baseado no romance de Joseph Kessel. Segundo Desbois (2005), o filme é um “receptáculo ao mesmo tempo austero e perturbador da loucura e das perversões dos homens”. Séverine representa a imagem de uma mulher com extrema dualidade: de um lado, uma burguesa pudica, casada com um médico brilhante, que mesmo infeliz na relação não demonstra qualquer atitude para transbordar seus mais profundos sentimentos de humilhação e submissão (sexual) violenta e vergonhosa; de outro, uma mulher curiosa, que decide ser pensionista de um bordel sempre durante as tardes, sob o pseudônimo de Belle de Jour (por isso esta escolha), para realizar suas próprias fantasias sexuais com outros homens.

Sua timidez inicial desaparece gradualmente para fazer dela [Séverine] a pérola do bordel, graças à sua associação entre sua classe natural e sua obediência absoluta. A ausência de tabus, bem como de remorsos da personagem, que aprecia na mesma medida as duas facetas de sua existência, se traduz visualmente por suas roupas com duplo sentido: grandes casacos de couro preto, vestidos bem ajustados ao corpo e roupas íntimas brancas parecem de fato castas e extraordinariamente sensuais, dependendo do contexto em que eles são usados (DESBOIS, 2005, p. 1, tradução nossa).

O cartaz do filme de Buñuel (Figura 103) já revela esteticamente a dualidade existencial de Séverine:

300

Figura 103: Imagem de Séverine no filme Belle de Jour. Fonte: Père (2013).

O editorial de Vogue foi publicado em uma edição de verão, sendo a sensualidade feminina da personagem na versão brasileira carregada de significantes: a “bela da tarde” encarnada por Ana Beatriz usa casacos leves e estampados, vestidos fluidos, decotes e blusas com babados, peças que conforme os movimentos escolhidos revelam boa parte dos seios, das pernas e das formas da modelo. As cores predominantes são verde, laranja e preto, mas pode-se notar a presença de tonalidades variadas de amarelo e marrom – remetendo assim a uma espécie de “miscigenação simbólica” pela combinação de cores que conotam o estilo “tropical” (alegre, extravagante, vivo) com o estilo “clássico” (sóbrio, intimista, sofisticado). O corpo, bronzeado, ganha uma tonalidade ainda mais morena com a iluminação escolhida por J. R. Duran e, juntamente com cabelos cacheados e armados, remete visualmente à figura da mulata brasileira. Mas a figura da mulata, por sua vez, é negada por meio de uma branquidade que dela se apropria simbolicamente ao embranquecê-la e erotizá-la. A histórica erotização da mulata brasileira passa não somente por “nossa famosa vocação de morenidade” (CORREA, 1996, p. 37), construída por discursos marcados pela naturalização da sensualidade das mulatas, que teriam esta característica inata, exacerbada, “à flor da pele” – como demonstrado em outros momentos neste capítulo. Parece- me que Vogue escolheu apenas uma das facetas de Séverine: a da “atitude”.

301

[...] tonalidades correspondiam também a atitudes, ou comportamentos, esperados de uma “mistura” não só de cores como de disposições inatas, herdadas. (Pré) disposições negativas no caso da entrada de herdeiros do primitivo mundo africano no civilizado mundo latino, primeiro, depois predisposições negativas das classes inferiores de imigrantes quando postas em contato com as classes superirores dos herdeiros dos legítimos conquistadores da terra, os lusos253.

Nesse sentido, a erotização passa pela associação simbólica da imagem da “bela da tarde” com a figura da prostituta, disponível ao sexo durante as tardes. Pode-se dizer que há um conjunto de significantes plásticos, linguísticos e icônicos que permitem as leitoras de Vogue apreendê-los social e culturalmente a partir desta associação, como: título do editorial, que faz alusão ao pseudônimo escolhido pela condição de prostituta da puritana (Séverine); ambientação escolhida (ruas, bares), que reforça o universo público da “oferta sexual”; corpo sentado ou deitado de forma desinibida, com pernas cruzadas, mãos nas bolsas (pequenas) e na boca, que evocam a “brejeirice” associada às mulatas e remetem ao próprio jogo da sedução no contexto da prostituição; olhares provocantes, que sugerem “uma intimidade maliciosa e sensual na qual a iniciativa e o savoir-faire [...] estão do lado da mulata” (GIACOMINI, 2006, p. 95). Aprovo a ideia de Giacomini (1994, p. 221) quando esta afirma que a “autêntica mulata brasileira revela-se, então, a mulher sedutora por excelência – sedutora porque sensual e disponível”. Mas é importante salientar que, no caso deste editorial, a apropriação do código estrangeiro como símbolo de superioridade (GARCIA, 2004) significa distinção: a imagem da “bela da tarde” se distancia da noite, um espaço-tempo “em que paira fortemente a sugestão de uma identificação com a prostituta” (GIACOMINI, 1994, p. 97). Nesse sentido, a condição diurna e/ou vespertina, a partir da qual as fantasias sexuais imaginadas de Vogue são acionadas pela própria personagem do editorial, contribui para distinguir simbolicamente a luxuosa “bela da tarde” [branca] da figura da prostituta das noites metropolitanas – mulatas e pobres.

253 Ibid, p. 42 302

Assim como falamos da atitude (sexual) associada à figura da mulata, a partir da qual “atributos considerados típicos da mulata são acionados” (GIACOMINI, 2006, p. 86), é fundamental tratar agora a questão de seu embranquecimento, operado por Vogue. A mineira Ana Beatriz Barros (Figura 104) era, já naquela época, uma das modelos brasileiras mais cotadas no circuito da moda europeia e norte-americana. Seus cabelos, embora bastante cacheados no editorial, são mantidos loiros; seus traços são visivelmente associados à raça branca e seus olhos são verdes, como se pode ver a seguir.

Figura 104: A modelo Ana Beatriz Barros. Fonte: LatinTRENDS (2012).

Mas o embranquecimento da figura da mulata passa, necessariamente, por outro signo apontado anteriormente: o “luxo”. Esta mulher [branca] usa peças em tecidos nobres (gabardine, Jersey e cetim), assim como relógios e pulseiras de ouro e colares de pérolas (negras e brancas), passeia “abusando do luxo”, provavelmente adquirido com o dinheiro que ganhou prostituindo-se durante as tardes, mas com classe! Não somente o glamour de Paris encanta as mulheres, mas também as inúmeras fantasias e experiências amorosas que a maior metrópole brasileira (São Paulo) pode proporcioná-las. Portanto, Vogue Brasil traduz o estilo francês presente em Belle de Jour por meio de códigos culturais localmente identificáveis, embora isso não signifique 303 que um discurso regionalista não incorpore representações dicotômicas para atender à narrativa de brasilidade. No ano seguinte, Patricia Carta publica o editorial “Lata d’Água” (Figura 105), em uma edição comemorativa dos trinta anos de Vogue e dos dez anos da carreira de Gisele Bündchen, na qual procurei analisar outro editorial ainda neste capítulo (Figura 93).

Figura 105: Imagens do editorial Lata d’Água. Fonte: Vogue Brasil (2005, p. 130-145).

Lembro que anteriormente foi possível identificar, a partir da “autoexotização” da cultura popular brasileira, a predominância do estilo hi-lo adotado em Vogue, ilustrativo da apropriação da produção popular pela produção da alta moda e do prêt-à-porter de luxo. Em Lata d’Água, Vogue mantém essa mesma linha estilística, mas escolhendo agora o fotógrafo espanhol J. R. Duran (o mesmo do editorial de moda analisado anteriormente, Bela da Tarde), um dos grandes responsáveis pela construção do “imaginário da nudez feminina brasileira”, fotografando desde a década de 1970 incontáveis mulheres famosas – período no qual passou a viver no Brasil. Fazem parte de sua trajetória profissional ensaios de nu, de moda e de publicidade e revistas como Vogue, Elle Brasil, Harper’s Bazaar USA e – para esta última, fotografou Adriane Galisteu (1995), 304

Leila Lopes (1997), Tiazinha (1999), Mel Lisboa (2004), Flávia Alessandra (2009), Scheila Carvalho (2009), entre outras (PEREIRA, 2011). Em recente entrevista, feita pelo jornalista Bruno Torturra para a revista TPM, J. R. Duran afirma: “no fundo, busco uma fotografia naturalista. Um tipo de luz que não saiu de mim desde o verão de 1969” (TORTURRA, 2013). Reconheço em Lata d’Água, de fato, a vontade de “capturar o tempo”, de “segurar o registro” pela imagem manifestada nas entrelinhas pelo fotógrafo. Pode-se dizer que as mensagens plásticas e icônicas deste editorial são bastante expressivas e comunicativas, contribuindo para uma ausência intencional de textos na mensagem linguística. Nesta última, é exclusivamente o título do editorial que mantém com as imagens uma relação de direcionamento de leitura, cumprindo assim uma função de ancoragem para deter a “cadeia flutuante do sentido” (JOLY, 1996). Desse modo, é possível inferir que as letras grandes e largas das palavras LATA D’AGUA representam o objeto “lata d’água”, que se torna um significante da mensagem para remeter iconicamente à imagem de mulheres negras e mulatas que subiam (e ainda sobem) os morros da favela com latas de água em suas cabeças (geralmente para lavar roupas), suprindo assim a falta d’água vivida por grande parte da população negra e mestiça brasileira, em condições de extrema pobreza econômica e exclusão social. Nesse sentido, as palavras LATA D’AGUA dispostas no extremo canto inferior esquerdo da primeira página podem estar significando essa realidade dos que se encontram “à margem” e o fato de estarem na vertical e na horizontal sugere a icônica “subida” que acompanha a “lata d’água”. Lata d’água remete ainda ao “samba do morro”, como canta Elza Soares na música de mesmo nome; à figura de “Maria Lata D’Água”, famosa mulata que começou a desfilar no carnaval carioca com uma lata d’água na cabeça em 1949, que “sobe o morro e não se cansa”, como lembra a tradicional marchinha de carnaval que leva seu nome (SILVA, 2009) ou ainda à lavadeira que “remexe aqui, equilibra dali, lata d’água não vai cair, e lava roupa na cachoeira”, conforme a letra da música “Lata Dágua”, da baiana Banda Beijo. Iconicamente, “lata d’água” é um bom exemplo de significante que conjuga simultaneamente marcadores de gênero, raça e classe. Mas gostaria de salientar que, no editorial Lata d’Água de Vogue Brasil, ocorre – também iconicamente – o que já apontei em Bela da Tarde: a figura da mulata é negada pela branquidade que dela se apropria simbolicamente ao embranquecê-la e erotizá-la. É Gisele Bündchen, bastante bronzeada, quem “encarna a lavadeira”, contribuindo para a 305 legitimação da distinção racial, classista e social branca por meio do distanciamento estético (deslocamento do interesse do “conteúdo” em direção à “forma”) em relação ao “popular”. Trouxas de roupa “suja” viram acessórios de cabeça, criados por Felipe Veloso. O próprio nome de J. R. Duran em destaque, contrastando com o título do editorial, funciona como um significante distintivo, pois carrega toda a conotação de prestígio e brasilidade associadas à imagem deste fotógrafo, como vimos anteriormente. Funciona simbolicamente como “assinatura de uma obra-prima”, que retrata ninguém menos que a supermodelo (Bündchen) – ambos legitimados e autorizados pela posição que ocupam no sistema de capitais da moda de luxo, nacional e internacional. Produzido pelo editor Giovanni Frasson, este editorial contou ainda com a colaboração do artista plástico carioca José Bechara para a concepção cenográfica, reconhecido pelo caráter experimental e utilização de métodos e materiais diversificados. Realizou várias exposições no Brasil (São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Vitória, Belo Horizonte, Curitiba etc.) e no exterior (Braga, Porto, Lisboa, Miami, Nova York, Valladolid, Coruña, Bruxelas, Londres etc.), participando ainda de exposições coletivas. Algumas destas últimas estavam baseadas de alguma maneira no Brasil, como: This is Brazil! 1990-2012 (2012, Coruña); 1911-2011: Arte Brasileira e Depois na Coleção Itaú (2012, Curitiba); Construção e Desconstrução da Arte Brasileira (1900-2000) (2012, Bruxelas); 1910-2000: Coleção Gilberto Chateaubriand: Um Século de Arte Brasileira (2006, Rio de Janeiro); É HOJE na arte brasileira contemporânea: Coleção Gilberto Chateaubriand (2006, Porto Alegre); Arte Brasileira Hoje (2005, Rio de Janeiro); Brazilian artists (1996, Londres) (ZAFFARONI, 2013). Pode-se dizer que Bechara imprimiu de fato seu estilo no editorial de Vogue, criando um clima de “improvisação” para conotar visualmente a “estética do morro”, por meio do uso de madeira velha em tábuas, mesas, pedaços de portões (que viraram escada), restos de portas e corrimões, de entulhos de construções, de pedaços de plástico na cor laranja (que viraram toalhas de mesa), tudo estrategicamente disposto em um ambiente com paredes desgastadas pelo tempo e tomadas por plantas, escadas de pedras, árvores e matos que invadem o chão de terra. É neste cenário que Gisele Bündchen usa peças sofisticadas de marcas do prêt-à-porter brasileiro de luxo (Ellus, Gloria Coelho, Fause Haten, Reinaldo Lourenço, Cori), como vestidos e top bordado com paetê dourado, bem como relógios e pulseiras ( para Alberta) e scarpins dourados (sapatos fechados e altos). 306

Todo o luxo e o glamour conotados por tais significantes são ainda mais legitimados porque associados à imagem de Gisele, que por sua vez posa sensualmente, deixando seu “magnetismo brasileiro” guiar a performance inspirada na mítica figura da mulata – do Rio de Janeiro ou da Bahia, dos morros e dos carnavais. Desta forma, a mensagem visual deste editorial de Vogue Brasil contribui para a construção e reprodução de privilégios raciais/étnicos, sexuais/de gênero e classistas típicos de uma branquidade que erotiza e embranquece esta figura mítica. Vogue erotiza para ser desejada e embranquece para ser aceita! Retomo Gilberto Freyre (1987), quem exaltava o corpo da mulher brasileira como um corpo “equilibrado de contrastes”, mestiço, propondo assim uma espécie de consciência brasileira ao afirmar que as mulheres brasileiras deveriam seguir as modas adaptadas ao clima tropical, muito mais do que seguir “passivamente e algumas vezes grotescamente as modas européias ou americanas”, percebidas nas roupas, nos sapatos, nos acessórios, no cabelo, no perfume, na forma de caminhar, no sorriso, no beijo, no comportamento, na forma de ser mulher. Ao mesmo tempo em que na França a produção da aparência pessoal se concentra principalmente nas próprias roupas, no Brasil é o corpo que parece estar no centro das estratégias da maneira de se vestir, como constatou Malysse (2007) ao comparar os corpos das mulheres brasileiras e francesas.

[...] processos culturais são, em grande parte, os responsáveis pela definição dos padrões estéticos e da própria beleza corporal. É obvio que, constituindo intervenções da cultura sobre o corpo e por condicionarem a percepção que dele se tem, esses padrões, bem como a concepção de beleza corporal, sofrem variações conforme os diferentes contextos culturais que se sucedem ou coexistem no espaço e no tempo. Por outro lado, numerosas manifestações [...] apontam para a indiscutível atuação de condicionamentos psicobiológicos universais, seja na apreciação estética relativa ao corpo, seja no estabelecimento de critérios de atratividade, que expressam respostas adaptativas selecionadas em nosso passado evolucionário (QUEIROZ; OTTA, 2000, p. 47).

307

Segundo Pereira (2000), a bunda é vista como “preferência nacional” no plano estético erótico no imaginário popular brasileiro, estendendo-se aos Estados Unidos e Europa especialmente por meio de Gisele Bündchen, que teve a erotização desta parte do corpo da mulher brasileira associada ao estilo sexy, selvagem e natural. Como exemplo, duas capas que a brasileira posou para as revistas V Magazine, em 2008 (Figura 106), e Vogue Paris, em 2012 (Figura 107), além da campanha publicitária estrelada para a marca BLK DNM, em 2013 (Figura 108).

Figura 107: Capa de Vogue Paris. Figura 106: Capa da V Magazine. Fonte: V Magazine (2008). Fonte: Vogue List (2013).

Figura 108: Campanha da BLK DNM, 2013. Fonte: Vogue Itália (2013).

308

Mas a beleza da mulher “tanajura”, que durante muito tempo foi objeto de desejo masculino e culturalmente associado aos atributos físicos de nádegas generosas, cedeu lugar, ao longo das ultimas décadas do século XX, ao modelo de esbelteza. Ou seja, o formato ideal do corpo feminino estaria se tornando tubular, substituindo o formato “violão”. A partir de um estudo sobre as curvas das modelos de Vogue entre 1901 a 1993, realizado por Nigel Barber em 1998, foi possível identificar neste longo intervalo de tempo uma redução associada à “elevação do nível de instrução e à maior participação da mulher na economia” (QUEIROZ; OTTA, 2000, p. 45). Os resultados apontaram para o fato de que o armazenamento de gordura corporal é inversamente proporcional ao status econômico das mulheres. Embora este fato configure o contexto norte-americano, chama a atenção para a estreita relação entre variantes da economia, de classe e de beleza feminina, além de retratar o papel crucial que a moda e a cirurgia plástica passaram a ocupar globalmente na construção de um novo ideal de padrão estético e de atratividade (papel melhor explorado no segundo capítulo). Três anos depois, Vogue Brasil publica o editorial de moda “Folia de Rainha” (Figura 109), fotografado por Gui Paganini. Nele, a modelo Carol Trentini “encarna uma passista de escola de samba com queda pelo street, mesclando plumas com boné, paetês com regatas e jeans com muito brilho” (FALCÃO, 2008a, p. 96). Estas são palavras da editora de moda Daniela Falcão, escritas para a abertura dos editoriais de moda da edição 354 de Vogue Brasil.

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Figura 109: Imagens do editorial Folia de Rainha. Fonte: Vogue Brasil (2008a, p. 112-121).

Na primeira página deste editorial, Trentini aparece coberta com um longo “vestido feito sob medida com plumas” (FALCAO, 2008c, p. 112). Na mesma imagem, pode-se ler o seguinte texto: “Entre em ritmo de festa sem compromisso com o dress code. Valem longos de plumas e boné, paetês gritantes e regatas de algodão, jeans e glam total. Afinal não existe nada mais bacana que ser maravilhosa sem fazer força” (FALCÃO, 2008c, p. 112). Palavras estrangeiras, recorrentes em Vogue, funcionam iconicamente como “passaporte para uma sociedade moderna, aqui representada pelo mundo do entretenimento” (GARCIA, 2004, p. 94). Desta forma, palavras como street [rua], dress code [código do vestir] e glam [abreviação de glamour] legitimam discursivamente o elevado capital cultural associado às leitoras de Vogue e revelam ao mesmo tempo um ethos constituído pela globalização “americana” apontada por Hall (2013) e abordada ainda no segundo capítulo. É interessante notar como Vogue Brasil participa de um movimento de interdependência simbólica (geralmente entre nosso país e Estados Unidos e/ou França) para naturalizar o capital cultural adquirido por suas leitoras – fruto de um (in)visível privilégio racial – 310 que as permite justamente apreender os sentidos atribuídos aos termos linguísticos empregados nos editoriais de moda, tais como “ser maravilhosa sem fazer força” ou “sem compromisso com o dress code”. Além do vestido de plumas, Trentini usa maiôs (de malha dupla- face e de paetê), jaqueta (jeans com brilho), jardineira (jeans), camiseta e regata estampadas, bermuda (de plumas), além de pingentes, acessórios de cabeça de Walério Araújo e um adereço carnavalesco antigo da Escola Beija-Flor. A composição visual das peças citadas contribui para a reprodução do já comentado efeito hi-lo – recurso estilístico, conceitual e comportamental utilizado no campo da moda na década de 2000, presente também neste editorial e percebido notavelmente pela fusão do estilo glamouroso (clássico, deslumbrante, sofisticado) com o estilo casual (esportivo, jovem, descontraído). Iconicamente, pode-se dizer que hi-lo, abreviatura de high-low [alto-baixo] significa mistura “do caro com o barato”, “do chique com o brega”, “do nobre com o simples”. E por que não “da elite com o povo”? A “passista” de Vogue usa sandálias e patins; simples regatas não são tão simples assim (Balenciaga); peças de R$ 28,00 e R$ 11.160,00 fazem parte do mesmo visual [look]; o industrial vira artesanal; maiôs são usados com jaquetas, plumas com bonés e jeans com muito brilho. A presença do preço confere a Vogue um caráter “distintivo”. Pode-se dizer que Folia de Rainha revela a produção discursiva de uma branquidade que se apropria de referências estéticas da cultura popular – como é o caso do carnaval e do universo da rua [street] – para mesclar determinados significantes (étnicos/raciais, de gênero/sexuais e de classe) de forma que eles conotem uma espécie de “harmoniosa de contrastes”, representando esteticamente uma identidade nacional (brasileira) democrática e multicultural. Como apontou Peter Fry:

A conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais não apenas oculta uma situação de dominação racial mas torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la. Quando se convertem símbolos de ‘fronteiras’ étnicas em símbolos que afirmam os limites da nacionalidade, converte-se o que era originalmente perigoso em algo ‘limpo’, ‘seguro’e domesticado (FRY, 1982, p. 53).

O fundo branco escolhido por Gui Paganini pode remeter à neutralidade, mas tendo em vista o contexto de produção da branquidade 311 neste editorial sugiro que ele pode ir mais além: representa a vontade de “limpeza”, de “domesticação” e “segurança” apontada por Fry (1982), simbolizando assim a dominação racial [branca]. Carol Trentini é jovem, alta, magra, loira e de olhos claros, possui uma “forma extrema de brancura” (DENNISON, 2013, p. 294) que se torna um poderoso significante de determinados valores simbólicos da brancura (luz, virtude, pureza, excepcionalidade, transcendência, beleza, civilização, autocontrole), como apontou Dennison (2013) em relação à Xuxa no Brasil. Em Vogue, a “conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais” (FRY, 1982, p. 53) abrange a apropriação da figura da mulata brasileira (evocada pelos meios de comunicação de massa no Brasil quando o assunto é carnaval), que em Rainha da Folia é um significante (in)visível – negada e evocada. Nesse sentido, se por um lado algumas posturas corporais mais rígidas e angulosas parecem desconstruir a sensualidade associada social e culturalmente à figura da mulata (porque vindas do universo do esporte), por outro alguns gestos, a própria nudez revelada e determinados olhares reificam este atributo. O acessório de bananas na cabeça de Trentini (Figura 107) é um significante plástico e icônico que remete aos arranjos de frutas que a mítica baiana estilizada por Carmen Miranda costumava usar nas décadas de 1940 e 1950, quando mostrou seu traje ao Cassino da Urca e aos Estados Unidos, por meio do cinema nacional (GARCIA, 2004). Os laços identitarios de Carmen não eram com a tradição baiana, mas “com a cidade espetáculo, com o mundo do entretenimento” (GARCIA, 2004, p. 111), ou seja, trata-se de um bom exemplo de como a reinvenção da indumentária da cantora foi construída no diálogo entre o local e o global – menos regional e mais cosmopolita. Assim, determinados signos associados cultural e historicamente à elite [branca] são estrategicamente manipulados por diretores, produtores, editores e fotógrafos para exotizar a cultura popular brasileira em prol de um nacionalismo racista e conservador, mantido pelo interesse político dos que estão “interessados no exótico das festas”254. Arrisco ainda dizer que a construção simbólica da figura da passista em Rainha da Folia enfatizou ou omitiu certos aspectos típicos de trajes (do carnaval brasileiro) para acrescentar outros a partir de referências estrangeiras. Percebe-se, portanto, uma espécie de aproximação simbólica dos produtores de discurso de Vogue com o universo afro-brasileiro, a partir

254 Ibid, p. 122 312 da qual a figura da mulata é novamente negada pela branquidade que legitima diferenças sociais ao se apropriar simbolicamente desta figura, embranquecendo-a e erotizando-a.

A negação da fruição inferior, grosseira, vulgar, venal, servil, em poucas palavras, natural, que constitui como tal o sagrado cultural, traz em seu bojo a afirmação da superioridade daqueles que sabem se satisfazer com prazeres sublimados, requintados, desinteressados, gratuitos, distintos, interditados para sempre aos simples profanos. É assim que a arte e o consumo artístico estão predispostos a desempenhar, independentemente de nossa vontade e de nosso saber, uma função social de legitimação das diferenças sociais (BOURDIEU, 2007, p. 14, grifo do autor).

Ao longo dos anos 2000, nota-se o embranquecimento das “rainhas de baterias”, marcado justamente pela substituição das tradicionais mulatas (provenientes das próprias comunidades que representavam) por mulheres brancas (consideradas musas do carnaval), sendo em sua maioria atrizes, modelos e/ou artistas da televisão brasileira, como Grazi Massafera (Figura 110) e Adriane Galisteu, que desfilaram em 2007 e 2008 para as escolas de samba Grande Rio e Unidos da Tijuca, respectivamente.

Figura 110: Grazi Massafera no desfile da Grande Rio, em 2007. Fonte: Inventhar Comunicacão Digital (2014) .

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No carnaval evocado por Vogue (Figura 109), a passista “encarnada” por Trentini é rainha, a “rainha da folia” – uma imagem que pode remeter iconicamente à figura da rainha de escola de samba do carnaval do Rio de Janeiro. Um ano após a publicação de “Rainha da Folia”, Carol Trentini desfilou como destaque da escola Grande Rio (Figura 111), na época a convite do carnavalesco Cahê Rodrigues. O título do samba enredo cantado na Sapucaí foi Voilá, Caxias! Para Sempre Liberté, Egalité, Fraternité, Merci Beaucoup, Brésil! Não Tem de Quê!, cuja letra homenageava “as cores de Debret”, “o grande cabaré, na Cidade Luz”, contava que “a Ouvidor era Paris a desfilar” e ainda proclamava: “Le mon amour é a França”.

Figura 111: Carol Trentini com o símbolo da Tour Eiffel em sua fantasia. Fonte: Modelinia (2009).

Pode-se considerar que Carol Trentini é uma das pouquíssimas top models de prestígio internacional a desfilar na Sapucaí, se não for a única. Embora algumas rainhas (incluindo Galisteu e Massafera) tenham desfilado em eventos consagrados de moda no país, bem como feito algumas campanhas publicitárias para marcas de luxo, não se deve afirmar que a imagem dessas rainhas [brancas] do carnaval está de alguma forma associada à imagem de Vogue Brasil. Apesar de serem mulheres brancas, loiras e terem olhos claros, acabam não atendendo ao critério do peso corporal e/ou da estatura ditados pelo padrão estético europeu cultuado pela moda internacional e por Vogue. Conforme apontou Scrinzi (2008, p. 81): “A nacionalidade, as relações Norte/Sul e o racismo constituem uma dimensão crucial para explicar a multiplicidade das posições e das experiências das mulheres no seio de uma mesma sociedade”. Sendo assim, acredito que de alguma 314 forma as rainhas [brancas] podem estar contribuindo para a reprodução simbólica da branquidade no Brasil porque são ícones populares que, indiretamente, circulam e influenciam o imaginário social de boa parte das mulheres brasileiras – e por que não das leitoras de Vogue Brasil? Portanto, tanto o editorial Rainha da Folia quanto outros editoriais analisados anteriormente, apontam para a necessidade de se considerar diferenças regionais e sociais como resultados da “interação de diversas culturas que alteraram substancialmente o modelo europeu e ‘branco’ que deveria ser transplantado para a Colônia” (RASPANTI, 2011, p. 185). Propondo uma espécie de inventário sobre a moda no Brasil desde os primórdios de sua colonização, Raspanti (2011) afirma que o luxo, a vaidade e a ostentação, embora condenados pelos moralistas da Igreja e do Estado durante os séculos XVII e XVIII, passaram a fazer parte de uma elite aristocrática que apreciava o caráter efêmero dos modismos. Desta forma, “estar na moda” significava imitar o que era usado pela alta nobreza; as cortes mais importantes alternavam-se como grandes referências do que deveria ou não ser vestido, sendo o modelo europeu – com regras rígidas de como cada grupo social podia se apresentar publicamente – importando ao Brasil. A indumentária funcionava como um marcador social de classe, distanciando a “nobreza” colonial – formada de senhores de engenho, grandes proprietários de terra e traficantes de escravos – do restante da população. É importante ressaltar que Espanha, Inglaterra, Veneza, Florença e principalmente a França ditavam moda. Portugal jamais ocupou um lugar de destaque entre as nações europeias no que diz respeito à influência vestimentária no Brasil. A própria corte portuguesa que aqui vivia também foi bastante influenciada pela moda europeia, ávida pela chegada de navios provenientes da Europa, que traziam novos produtos e notícias sobre a moda vigente nas cortes europeias – embora sempre com atraso (RASPANTI, 2011). Com o passar do tempo, formou-se uma classe fidalga local, geralmente sem título, mas com posses e “disposta a provar a todo custo seu caráter nobre e distinguir-se da ‘gentalha de cor’, como se dizia então, com desprezo” (RASPANTI, 2011, p. 190). A indumentária era uma das formas de externar tentativas de embranquecimento e inserção social, mesmo para aqueles que haviam deixado para trás o estigma da cor e do trabalho árduo. Relatos da época contendo informações sobre o luxo do vestuário dos brasileiros demonstravam que tanto as roupas quanto os modos da elite quase sempre pecavam pelo exagero.

315

A vaidade não era apenas feminina, apesar de as mulheres terem sido alvo preferido dos rigorosos pregadores e cronistas, afinal, as “filhas de Eva” eram consideradas as grandes responsáveis pelos pecados da luxúria. Quando eram bonitas e atraentes, o perigo da tentação era maior ainda. Os homens também eram vaidosos e esmeravam-se na hora de aparecer em público. Atrasada em relação aos modismos e com acesso limitado às novidades, a aristocracia local tentava se destacar exibindo tecidos e materiais nobres (ouro, prata, pedrarias, bordados, rendas, sedas e veludos)255.

Embora o costume da cópia sem pudor dos modismos franceses tenha sido trazido para a América justamente pelos lusitanos – que, por sua vez, tinham fama de “carolas” na Europa, diversas leis da Coroa tentaram limitar os excessos ao longo do século XVIII, procurando diminuir a importação de tecidos de outros países, bem como restringir o uso de tecidos e ornamentos luxuosos em roupas de baixo ou ainda incentivar a nacionalização do traje lusitano. Vale destacar que mesmo o advento da Revolução Francesa, que havia modificado notavelmente os costumes e a moda na Europa, chegara tarde aos trajes de Portugal e, consequentemente, as simplificações radicais foram esquecidas em terras lusitanas. Até o século XIX, as mulheres fidalgas que viviam no Brasil “pouco podiam sair às ruas, a não ser para ir às igrejas, em comemorações de datas religiosas, procissões ou nas festas do Estado”256. Assim, com poucas oportunidades para exibir seus encantos, elas costumavam de fato se arrumar demasiadamente bem quando saíam de casa ou se vestir com luxo mesmo para ficarem nas janelas, observando os passantes.

Quando circulavam, quase sempre em direção à Igreja, as mulheres seguiam acompanhadas de parentes do sexo masculino (pais, irmãos ou maridos) e de suas mucamas. Nessas ocasiões, nossas damas costumavam vestir uma capa ou mantilha (de renda, sarja ou mesmo lã), que lhes cobria todo o corpo e deixava apenas os olhos de fora. Por baixo de tanto recato, vestiam-se à moda

255 Ibid, p. 192 256 Ibid, p. 196 316

francesa, com tecidos de boa qualidade e muitas joias – as brasileiras adoravam tais mimos257.

Helena Bocayuva (2001, p. 83) chama a atenção justamente para a elite urbanizada do século XIX que viveu “nos sobrados, vizinha à proliferação de mocambos, de artesãos, de pequenos comerciantes, ou de pequenas indústrias instaladas nos quintais, que geravam um formigamento de bens e serviços antes produzidos pelos escravos”, em um período por ela considerado como semipatriarcalismo.

[...] o homem das classes dominantes brasileiras do século XIX viajaria para completar sua formação na Europa. Da França viriam, por suas mãos, as modas, os tecidos, os cosméticos e perfumes, compondo o que Freyre chamou de “afrancesamento” [...]. Algumas dessas novidades tiveram como divulgadoras as “mulheres públicas européias”, “cantoras, dançarinas, modistas” – que emergiram como prostitutas de luxo em meados do século XIX. Gilberto Freyre retoma o assunto em Ordem e Progresso, afirmando que a convivência com as cocottes serviu de “banho de civilização” para alguns intelectuais ou políticos em ascensão com a Proclamação da República, que não haviam tido a oportunidade de viajar à Europa (BOCAYUVA, 2001, p. 80, grifo do autor).

Portanto, é visível na história da moda brasileira a influência direta da moda francesa, assimilada em maior ou menor grau por nossa elite branca (moderna) por meio da apropriação simbólica de um conjunto de hábitos, comportamentos, estilos e gostos estrangeiros dominantes há mais de dois séculos.

257 Ibidem 317

CONCLUSÃO

O objetivo desta tese foi o de analisar qualitativamente a produção discursiva da branquidade em Vogue (Paris e Brasil) a partir do corpo feminino, entre os anos 2001 e 2010. Considerei como pressuposto o fato de que esta produção estaria entrelaçando distintas relações de dominação classista e sexual/de gênero nos contextos francês e brasileiro, mas tais diferenças fariam parte de uma mesma violência simbólica racial. Os estudos realizados demonstraram que a raça é de fato uma importante construção discursiva que organiza a diferença, ao mesmo tempo em que é um “significante flutuante” (HALL, 2013), pois sua significação é sempre relacional. Nesse sentido, foi fundamental entender diferentes linguagens, imagens, narrativas, discursos, “modos de ver” e sistemas de significações para enfim conseguir interpretar o funcionamento dos regimes de representação do corpo [branco] feminino convocado pelo discurso de vanguarda em Vogue. Nesse sentido, a questão da androginia abordada no segundo capítulo foi exemplar para mostrar como o ethos da branquidade é situado, sendo atravessado por diferentes representações de gênero conforme os distintos contextos de sua produção. No contexto francês foi possível ainda identificar a produção de uma branquidade discursivamente “revolucionária”, baseada em uma apropriação paradoxal da sedução francesa a partir da fusão das figuras da cortesã e da Parisiense. Signos de liberdade, erotismo e elegância, associados historicamente à cultura estético-erótica francesa e ao culto da livre atitude republicana, incorporavam na realidade valores de um “republicanismo aristocrático” (SCOTT, 2012), apelando “aos charmes da mitologia de Madame Claude” ou ao “senso de provocação inato apreendido de Paris” (VOGUE PARIS, 2008b), por meio da tradição histórica. Nesse sentido, a nudez do corpo [branco] em Vogue Paris alternou nuances de naturalidade e erotização intencional, a partir das quais seios à mostra, lingeries transparentes, joias e cigarros podiam ser vistos como importantes significantes (plásticos e icônicos) de feminilidade no primeiro decênio de nosso século. Já a “autoexotização” da natureza e da cultura popular brasileira identificada em Vogue Brasil teve sua representação historicamente construída a partir do “olhar estrangeiro” masculino e colonizador, acentuando-se no contexto da globalização. Assim, a erotização do corpo [branco] feminino no contexto brasileiro atendeu a uma 318 branquidade discursivamente “conservadora”, em sintonia com o antigo projeto nacionalista e modernizador da elite [branca] dirigente: figuras míticas como a sertaneja Maria Bonita, a mulata baiana e a índia da Amazônia sofreram um embranquecimento social estratégico e excludente. Desta forma, Vogue Brasil reafirmou que o branqueamento é um importante aspecto da branquidade no contexto brasileiro (BENTO, 2002). Retomo ainda o pressuposto de que diferentes relações de dominação seriam distintos habitus de um mesmo poder simbólico ou de uma mesma imposição social, econômica e simbólica, produzidos pela “matriz discursiva Condé-Nast” em Vogue. As análises realizadas confirmaram a hipótese desta pesquisa, mostrando que a produção discursiva da branquidade neste periódico de moda – seja ela “conservadora” ou “revolucionária” – tem como objetivo comum garantir o reconhecimento da legitimidade de um discurso dominante que naturaliza hierarquias (e desigualdades) econômicas e socioculturais classistas, étnicas, sexuais e de gênero, contribuindo para tornar invisível o privilégio racial branco e de elite. Mas, como apontei ao longo do quarto capítulo, a violência simbólica instituída por essa matriz no Brasil é exemplar de como a versão brasileira de Vogue (Patricia Carta e seus colaboradores) dispõe apenas de instrumentos fornecidos pelo conhecimento comum que é gerado pela “matriz discursiva Condé-Nast” para pensar sobre sua relação com ela, uma vez que não pode discordar do poder simbólico estrangeiro. Nesse sentido, a produção discursiva (textual e imagética) de Vogue Brasil é “a forma incorporada da relação de dominação” (BOURDIEU, 1988), natural apenas aparentemente. Esta consideração foi uma das mais importantes que esta tese proporcionou traçar, sendo também o resultado teórico de minha rica experiência de estágio na França. Isso me levou inclusive a mapear os “modos de ver” dos grandes fotógrafos que fizeram a história de Vogue desde o início do século XX (de Meyer, Steichen, Hoyningen-Huene, Horst, Blumenfeld, Beaton, Avedon, Penn, Bailey, Newton) para conseguir perceber porque os “modos de ver” de alguns fotógrafos de Vogue Brasil no período correspondente ao corpus desta pesquisa (Miro, e Jacques Dequeker) estavam muitas vezes em sintonia com a reprodução simbólica do olhar masculino colonizador, promovida também pelos fotógrafos de Vogue Paris (Lindberger e Demarchelier). Foi possível ainda perceber que Mario Testino ocupa um lugar estratégico em Vogue, atuando para as versões brasileira, francesa, 319 norte-americana, espanhola, entre outras; suas produções fotográficas para Vogue Brasil revelaram uma “estética da intimidade” a partir da erotização do corpo da mulher brasileira para reatualizar o mito da sedução feminina, legitimado simbolicamente ainda pela relação deste fotógrafo com nosso país (notavelmente sua admiração pelo Rio de Janeiro e por Gisele Bündchen). Outro fotógrafo que apresentou uma particularidade interessante à pesquisa foi Miro, que realizou muitos trabalhos para a Vogue brasileira ao longo de uma carreira bem sucedida, com notável influência europeia em seu “modo de ver” a mulher brasileira, provavelmente por ter vivenciado Paris na década de 1970. A própria trajetória de pesquisa levou-me a descobrir que Miro realizou um editorial de moda ressaltando a beleza negra brasileira em 2009 e uma exposição fotográfica no Museu Afro Brasileiro em 2012. A emergência de modelos brasileiras com ascendência negra e indígena no campo da moda internacional (Mariana Nery, Carolinne Prates, Mariana Santana e Daniela Braga) pode ser um indicativo de que a mestiçagem ganha aos poucos certa visibilidade social ao representar um novo perfil estético, embora seja absolutamente necessário um estudo aprofundado sobre quais representações sociais estão sendo associadas ao perfil mestiço nos diferentes contextos de sua produção. Como procurei sinalizar, a própria construção do “imaginário mestiço” remete ao longo e histórico processo de construção do melting-pot colonial, bem como à criação ambígua de signos corpóreos ligados à identidade nacional. Alguns dos regimes de representação citados foram mais bem compreendidos levando-se em consideração que uma identidade étnica está situada em um lugar e em uma história, notavelmente ligada à noção de território. Isso justifica, por exemplo, a eficácia simbólica tanto da capital francesa quanto de suas centenárias marcas – Dior, Louis Vuitton e Chanel – no campo da moda mesmo na era da globalização do luxo, comprovada por meio de documentários de moda, de matérias e editoriais de Vogue, de registros visuais da semana de moda de Paris, bem como de artigos e teses científicos produzidos na França, nos Estados Unidos e no Brasil, utilizados como referência de pesquisa nesta tese. Procurei demonstrar, durante a escrita da tese, de que forma a legitimidade imposta continuamente por Vogue se apoia em um corpus de discursos, um corpo de produtores e um conjunto de lugares de produção de discursos e produtores de discursos (BOURDIEU; BOLTANSKI, 2008) no universo da alta moda e do prêt-à-porter de 320 luxo. Este periódico mostrou-se um veículo privilegiado para a reprodução social de hábitos e valores norte-americanos e europeus, a partir dos quais os gostos são “marcadores privilegiados da classe” (BOURDIEU, 2007). Portanto, acredito que muitas das contribuições da tese, resultantes tanto de um estudo científico de tema delimitado quanto de um trabalho experimental, empírico e dinâmico, envolveram inquietações e acontecimentos latentes do tempo presente, trazidos à tona por uma perspectiva crítica-reflexiva e interdisciplinar, principalmente pela interpretação da produção contemporânea da branquidade à luz dos Estudos de Gênero e Pós-coloniais. Acabei estabelecendo, durante a escrita da tese, uma relação “orgânica” a partir da fusão interdisciplinar e intuitiva entre teoria e método, inspirada pelo papel privilegiado que Pierre Bourdieu atribuiu à análise de correspondências como “a técnica mais adequada para captar configurações relacionais entre o conjunto de variáveis ativas que nos permite empiricamente mapear a estrutura de um campo” (WACQUANT, 2007, p. 40). Nesse sentido, no campo da alta moda e do prêt-à-porter de luxo, foi possível identificar de que forma a “matriz discursiva Condé-Nast”, baseada em um classicismo intemporal, moldou hábitos, comportamentos e valores na França e no Brasil a partir do corpo [branco] feminino. Reforço que o fato de procurar compreender qualitativamente como a violência simbólica naturaliza o desejo colonial [branco e masculino], bem como incentiva o autoexotismo da cultura popular e a erotização da mulher em Vogue me permitiu considerar as “potências da imagem” apresentadas nas páginas deste periódico a partir da metodologia de análise de Martine Joly. Também as considerações de historiadores especializados em fontes visuais e fotográficas foram primordiais para a realização desta pesquisa. Aprendi na prática da escrita que a interdisciplinaridade envolve a “recuperação da perspectiva de reflexão e compreensão” (FERNADES, 2010, p. 67) e isso me fez ter maior consciência dos limites de meu próprio saber, da importância das pessoas nessa construção, do quanto uma tese deste gênero é uma aventura, de que sucessos rápidos e fáceis não bastam e de que é de fato necessário investir no projeto de pesquisa. Posso dizer que iniciei o doutorado considerando-me uma maffesoliana, mas termino esta etapa extremamente válida em todos os sentidos para minha atual existência contagiada pela perspectiva bourdieniana, notavelmente pela questão da violência simbólica em imagens. 321

Finalmente, as análises das produções discursivas (textuais e imagéticas) de Vogue serviram para tornar visível um corpo incolor, neutro, transparente, como a “porta de vidro” de Piaza (2002). Esta é uma das principais contribuições desta tese, somada ao seu grau de ineditismo, justamente pela carência de pesquisas nacionais e internacionais que analisem a branquidade no campo da Moda, especificamnete em Vogue. Espero ter “marcado” e “nomeado” uma cultura [branca] hegemônica a partir do universo da moda para tornar a branquidade mais visível aos dominantes, apontando diferentes dimensões brasileiras e francesas do mesmo privilégio branco – estas ligadas tanto a um “lugar de vantagem” quanto a um “ponto de vista”, como bem salientou Frankenberger (1993). O tema desta tese foi, é e será ainda um convite para tratar o corpo [branco] como possibilidade de reflexão, por meio de novas análises que investiguem, em um maior recorte temporal e nos mesmos contextos, a dominação racial branca.

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