Gilberto Freyre E O Futebol: Entre Processos Sociais Gerais E Biografias Individuais1
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DOSSIÊ GILBERTO FREYRE E O FUTEBOL: ENTRE PROCESSOS SOCIAIS GERAIS E BIOGRAFIAS INDIVIDUAIS1 Introdução JORGE VENTURA DE MORAIS* sua concepção sociológica a respeito dos atores sociais, bem É comum encontrarmos, JOSÉ LUIZ RATTON JÚNIOR** na obra de Gilberto Freyre a como a articulação do nível da microagência com os proces- descrição e análise de um fe- RESUMO nômeno de ordem macrosso- Este artigo analisa, a partir dos escritos de sos macrossociais mais amplos. Gilberto Freyre sobre o futebol, a articulação ciológica intercalado por re- metodológica entre trajetórias individuais de Examinamos também os pro- grandes jogadores (Leônidas da Silva, Domingos ferências a pessoas concretas da Guia, Pelé e Garrincha) com processos blemas teóricos e metodológi- sociais mais amplos: a ascensão do negro na de carne-e-osso2, pessoas estas sociedade brasileira através do futebol e as cos envolvidos nessa operação relações entre as culturas nacionais e as distintas que exemplifi cariam, ou an- formas de praticar o futebol. de redução dos processos ma- PPalavras-chave:alavras-chave Gilberto Freyre, futebol, tes, demonstrariam a existên- trajetórias individuais, processos sociais. crossociais ao âmbito micros- cia do fenômeno sob análise. social, assim como o problema ABSTRACT reverso que é o da agregação de As biografi as de tais pessoas, Based on Gilberto Freyre discussing about football, this article analyses methodological biografi as diversas a um fenô- que Freyre invoca constante- articulation between individual pathways of major players (Leônidas da Silva, Domingos da Guia, meno macrossociológico3. mente, seriam sufi cientes para Pelé and Garrincha) with wider social processes: the rise of Black people in society through football Dessa forma, como em evidenciar a concretude do fe- and the relations between national cultures and different ways to practice football. mais de uma obra Freyre lan- nômeno macrossocial referido. KKeywords:eywords Gilberto Freyre, football, individual ça mão de exemplos extraídos Considere-se, como ilustração pathways, social process. * Professor do Programa de Pós-Graduação em de percursos individuais para disto, o fenômeno da “ascensão Sociologia/Núcleo de Estudos e Pesquisas em Sociologia do Futebol, da Universidade Federal ilustrar a confi guração e a di- do bacharel e do mulato”. Para de Pernambuco (UFPE). nâmica de um determinado provar sua tese, Freyre recorre ** Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/Núcleo de Estudos e Pesquisas fenômeno social, podemos de- a diversos personagens de nos- em Sociologia do Futebol/Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência linear o foco deste trabalho: in- sa história – sendo Gonçalves e Políticas Públicas de Segurança, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). vestigar a construção dos tipos Dias, o famoso poeta român- e das trajetórias de vida indivi- tico, o seu exemplo mais cons- duais, sua relação com os processos macrossocioló- tante – e faz referência a episódios de suas vidas que gicos e os problemas de redução e agregação na obra ilustrariam o fenômeno social mais geral. Esta opera- de Gilberto Freyre, no que se refere aos seus escritos ção teórico-metodológica também aparece nas análi- sobre o futebol. ses que Freyre fez do futebol jogado no Brasil. 1. O problema agência-estrutura, as ligações É com relação a estes escritos – compostos de al- micro-macro e a obra de Gilberto Freyre guns artigos de jornais, o famoso prefácio à obra de Rodrigues Filho (2003) e passagens esparsas em al- Pode-se afi rmar que o tema da relação agência- gumas de suas obras mais famosas – que analisamos -estrutura é um problema central das ciências sociais, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 42, n. 1, jan/jun, 2011, p. 89-109 89 1182918291 - UUFCFC 4422 RREVISTAEVISTA CCIÊNCIASIÊNCIAS SSOCIAIS.inddOCIAIS.indd 8899 226/08/20116/08/2011 117:28:407:28:40 GILBERTO FREYRE E O FUTEBOL: ENTRE PROCESSOS SOCIAIS GERAIS E BIOGRAFIAS INDIVIDUAIS especialmente da sociologia. Com efeito, a forma de Estado português e de suas instituições, da formação entender a relação entre esses dois pólos tem preo- social brasileira”. Isto está admiravelmente posto em cupado várias gerações de pensadores na sociologia, Casa-Grande & Senzala e em Sobrados e Mucambos desde os clássicos até a sociologia contemporânea. (cf. ALBUQUERQUE, 2000, p. 46; SAMARA, 2003; Grosso modo, pode-se identifi car duas posições: SKIDMORE, 2003, p. 48). Por outro lado, é igual- o coletivismo metodológico e o individualismo me- mente claro que os processos de institucionalização todológico. No primeiro caso, apesar de os indivíduos se dão por intermédio dos indivíduos, vistos por serem os “portadores” da ação, a eles se atribui pouca Freyre não somente como conformados por tal pro- importância analítica, uma vez que grupos, classes e cesso, mas também como portadores, no sentido de instituições representam a concretude dos fenôme- serem agentes ativos, dos costumes e dos valores, já nos sociais, estes sim merecedores da atenção dos que, segundo ele, sociólogos. Em contrapartida, no caso do individua- lismo metodológico, sem que isto signifi que abraçar A pessoa humana, o homem social ou o socius se afi rma não só conservador da uma visão atomista, há a crença de que todos os fe- herança cultural que lhe é comunicada nômenos sociais, em princípio, podem ser reduzidos pela geração anterior, como assimilador de analiticamente à instância dos indivíduos. culturas de outros grupos que entrem em Quanto a Gilberto Freyre, muitos argumentam contato com o seu, e, ainda – sendo maior que, por estar interessado no “homem concreto, de sua potencialidade – um criador, pelo que carne e osso”, sua análise sociológica mostraria uma acrescente, sozinho ou com poucos outros, à herança do seu grupo ou à cultura de seu “face” mais compreensiva, por dar atenção ao deta- tempo (FREYRE, 1957, p. 121; cf. também lhe e à especifi cidade das vidas, das culturas, dos es- pp. 114, 119, 120, 122, 526, 631, 635 e 636, paços geográfi cos etc. Há, neste tipo de argumento, entre outras).5 a sugestão de que a sociologia de Freyre faria pouco uso de tipologias e classifi cações tendo em vista esse Por isso, qualquer estudioso familiarizado com a “lado mais humano” (cf. ALBUQUERQUE, 2000). obra de Gilberto Freyre sabe que a análise que ele faz Porém, embora o foco analítico deste trabalho sejam da “história da sociedade patriarcal no Brasil” é far- as relações entre processos sociais e seus componen- tamente ilustrada por trajetórias de vida de indivídu- tes microssociológicos na obra de Gilberto Freyre, é os, por assim dizer, concretos. Skidmore afi rma que também nosso objetivo chamar a atenção para o fato “Casa-Grande & Senzala não possuía uma história de que a análise que este autor faz dos atores sociais ou acontecimentos dramáticos, heróis ou vilões. Na não está desprovida de categorizações e do uso de verdade, havia poucos indivíduos identifi cáveis em tipologias4. suas seiscentas páginas” (2003, pp. 56-57). Contudo, É quase consenso apontar a família como a se a sociologia histórica de Freyre não é uma narra- unidade analítica que percorre a obra de Gilberto tiva de heróis6 e grandes feitos, um processo de exer- Freyre, o que, aliás, o próprio autor afi rma em mui- cício teórico-metodológico se inicia claramente em tos momentos, pois, nas palavras de Souza (2003, p. Sobrados e Mucambos e continua, de forma marcante, 70), “a família é a unidade básica, dada a distância do em Ordem e Progresso (cf. OLIVEIRA, 2003), no qual 90 Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 42, n. 1, jan/jun, 2011, p. 89-109 1182918291 - UUFCFC 4422 RREVISTAEVISTA CCIÊNCIASIÊNCIAS SSOCIAIS.inddOCIAIS.indd 9900 226/08/20116/08/2011 117:28:407:28:40 JORGE VENTURA DE MORAIS e JOSÉ LUIZ RATTON JÚNIOR as trajetórias de vida individuais ganham relevo na Nabuco, de Oliveira Lima, entre outros, aparecem explicação de processos macrossociais. No dizer de constante e recorrentemente para ilustrar processos um intérprete, Freyre macrossociais impessoais, evidenciando a metodolo- gia esboçada por Freyre na Introdução à segunda edi- [...] articula o homem a sua situação e ção de Sobrados e Mucambos. A utilização de biogra- procura compreendê-lo a partir de suas vivências [...]. Capta nessas vivências inter- fi as aparece também na análise que Freyre faz, nesta -relações, interações, interferências, com- mesma obra, da relação entre o pai e o fi lho. plementaridades, oposições, antagonis- Em relação ao livro Ordem e Progresso, esse pro- mos, confl itos que escapam por entre os cesso torna-se mais evidente pela metodologia de “de- dedos de tantas disciplinas encarceradas poimentos pessoais” empregada por Freyre (1959a, (ALBUQUERQUE, 2000, p. 48). pp. XIX-CLXIX, mais especialmente, pp. LXXXVI- Com efeito, na descrição e na análise da “deca- CXVII; 1959b, p. XLIV). dência do patriarcado rural e desenvolvimento urba- É importante destacar que esse tipo de “história no” – subtítulo de Sobrados e Mucambos –, ao consi- oral” (cf. FARIA, 1998, p. 145; OLIVEIRA, 2003, p. derar os fenômenos sociais e os diversos fatores ou 141) não se refere somente a percepções dos atores variáveis envolvidos, Freyre procura constantemente sociais entrevistados acerca dos processos sociais por ilustrá-los, recorrendo a passagens da vida de indiví- eles vividos, mas também – ou, talvez, principalmen- duos que ele conheceu ou que tiveram uma vida in- te – a suas trajetórias de vida, à moda de uma auto- tensa e publicamente ligada ao fenômeno analisado. biografi a, dado o nível de detalhamento do questio- Nesta obra, o sociólogo pernambucano levanta nário proposto por Freyre. Tanto isso é verdade que a questão em termos puramente teórico-metodológi- alguns se recusaram delicadamente a responder ao cos, conforme se observa no trecho a seguir: questionário com o argumento de que, se o preen- chessem, estariam antecipando as memórias que pre- Para acompanharmos a degradação dos tendiam publicar (cf. FREYRE, 1959a, p. XLIII). Para valores menos visíveis, característicos da Freyre, a personalidade tem um componente coleti- poderosa instituição, é que necessitamos de vo, ou seja, o agente social expressa, além de suas ca- estudá-la nas suas intimidades mais sutis e esquivas [...].