Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia

Aureliano Lopes da Silva Junior

Seis passeios pelas praias de uma ficção: notas sobre algumas movimentações de drag queens na cidade do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2011 Aureliano Lopes da Silva Junior

Seis passeios pelas praias de uma ficção: notas sobre algumas movimentações de drag queens na cidade do Rio de Janeiro

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Prof.ª Dra. Anna Paula Uziel

Rio de Janeiro 2011

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A

L864 Lopes, Aureliano. Seis passeios pelas praias de uma ficção : notas sobre algumas movimentações de drag queens na cidade do Rio de Janeiro/ Aureliano Lopes da Silva Junior. – 2011. 183 f.

Orientadora: Anna Paula Uziel. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia.

1. Travestilidade – Rio de Janeiro – 2009-2010 - Teses. 2. Transexualidade - Teses. 3. Homossexualidade e arte – Teses. I. Uziel, Anna Paula. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.

dc CDU 316.723-055.3(815.3)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação.

______Assinatura Data

Aureliano Lopes da Silva Junior

Seis passeios pelas praias de uma ficção: notas sobre algumas movimentações de drag queens na cidade do Rio de Janeiro

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 10 de junho de 2011.

Orientadora: Prof.ª Dra. Anna Paula Uziel Instituto de Psicologia - UERJ Banca Examinadora: Prof. Dr. Sérgio Luis Carrara Instituto de Medicina Social - UERJ

Prof. Dr. Marco Aurélio Máximo Prado Universidade Federal de Minas Gerais

Rio de Janeiro 2011 DEDICATÓRIA

À minha vó Quinha (in memoriam), que me amou incondicionalmente e me acompanhou em todas as minhas fantasias. AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Aureliano e Therezinha, por todo apoio e amor que sempre me deram ao longo da vida. Eu gostaria de estar mais perto, mas me sinto muito feliz e grato por terem me permitido sair. À minha irmã Tininha simplesmente por ser minha irmã e pela nossa relação de amizade e cuidado. Agradeço também ao seu companheiro Vinícius e sua família. A toda minha família, em especial Tia Vitória e a "que tem rodinhas" Tia Diza, sempre presentes em minha trajetória desde o nascimento. Aos meus lindos e maravilhosos amigos e amigas, que tornam a cada dia minha vida ainda mais especial, de diferentes formas: a incomparável e insubstituível Aline, a querida e companheira Lúcia e a divertida e batalhadora Elisângela em Lavras; meu amigo mais chique Worney em Montes Claros; a linda Milene que foi para Viçosa; a companheira Yonara que escolheu São Paulo e o "estrangeiro" Migue; a queridíssima, amorosa e sensata (sim!) Cynthia, que está em trânsito; a sensível Kety em São João del-Rei, assim como minha amada Cris, com quem compartilho muita cumplicidade e todos os afetos possíveis. Del, Bel, Sandra, Piré, Luiz, Beth, Mara, Meire, Érica, Isadora, Lidi, Vanessa, Renata, Lilian, Aline Leonel, Ciliane, Rita, Letícia e tantas e tantos outros que continuam ao meu lado em ótimos encontros. Vocês todos e todas são música pra mim! Aos meus amigos do Rio, com quem logo construí importantes e sinceros laços de amizade: Félix, Daniela, Ane, Carol, Marina, Aline Duque, Bruno, Paola, Pâmella, Daniele, Leandro e em especial Luana, uma cigana vermelha que veio compor muito bem com meu "devir coroinha". Vocês também são música pra mim! Às famílias Amaral e Souza Cruz, que afetuosamente me acolheram e me dão todo suporte e carinho, em especial Zeny, Paulo, Paula, Tarso e Telma. Não deixo de citar ainda a querida Sheila. Aos "amigos do Thalles", conquistados e grande parceiros: Thaís, Marcelo, Louzada, Filipe e Érica. À minha querida orientadora e agora amiga Anna Uziel, que apostou muito em mim e em meu trabalho, mesmo quando não entendia muito bem o que eu pretendia. Trabalhar com ela é um prazer repleto de leveza e aprendizagem. Aos professores Sérgio Carrara e Marco Aurélio Máximo Prado pela disponibilidade em participarem da construção deste trabalho, pelas tão importantes contribuições no momento do exame de qualificação e agora como avaliadores desta dissertação. Ainda agradeço ao querido Guilherme Almeida que prontamente aceitou ser suplente desta banca. Aos professores e professoras com quem cursei disciplinas e aprendi muito: Anna Uziel, Ana Jacó-Vilela, Eduardo Passos, Cristina Rauter, Sérgio Carrara, Maria Luiza Heilborn, Fabíola Rohden, Jane Russo, Horacio Sívori, Maria Cláudia Pereira Coelho e em especial Marisa Lopes da Rocha e Heliana Conde. À Anna Paula Vencato pelas indicações, prontidão e sua linda dissertação sobre drag queens, primeiro texto sobre o tema que entrei em contato. A todos e todas do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da UERJ e a CAPES pela bolsa concedida durante a realização deste trabalho. Aos companheiros e companheiras de GDE (Rio/UERJ e Lavras/UFLA), Diversidade Sexual na Escola (UFRJ) e LIDIS (UERJ). Às queridas companheiras e amigas de supervisão, que com muita animação e comilanças me ajudaram muito no momento final deste trabalho: Sônia, Daniele, Jimena, Carol, Célia, Gizele, Lia e Antônia. Às artistas que acompanhei neste trabalho pelo simples fato de insistirem em seus espetáculos e travestilidades. E também àqueles e àquelas que as apoiam e possibilitam terem seu espaço, como Almir França, grande admirador e responsável pela visibilidade da travestilidade e transformismo no Rio de Janeiro. A todos os cantores, cantoras, bandas, divas, artistas diversos, canais de música e entretenimento que eu amo da forma mais sincera possível. Isto torna a vida mais divertida e colorida. It's like riding on the wind and it never goes away, Touches everything I'm in, Got to have it everyday! E, finalmente, ao Thalles, pelo apoio incondicional, por nossa deliciosa relação de companheirismo e construção de uma bonita trajetória juntos. Por ser o maior interlocutor deste trabalho, ouvindo atentamente minhas ideias e contribuindo para a construção desta dissertação, além de ter me acompanhado na maioria destes passeios. E também por ter me trazido ao Rio...

Ela tem nome de mulher guerreira

E se veste de um jeito que só ela

Ela vive entre o aqui e o alheio

As meninas não gostam muito dela

Ela tem um tribal no tornozelo

E na nuca adormece uma serpente

O que faz ela ser quase um segredo

É o ser ela assim, tão transparente

Ela é livre e ser livre a faz brilhar

Ela é filha da terra céu e mar

Dandara

Ela faz mechas claras nos cabelos

E caminha na areia pelo raso

Eu procuro saber os seus roteiros

Pra fingir que a encontro por acaso

Ela fala num celular vermelho

Com amigos e com seu namorado

Ela tem perto dela um mundo inteiro

E à volta outro mundo, admirado.

Dandara

Francisco Bosco e Ivan Lins RESUMO

LOPES, Aureliano. Seis passeios pelas praias de uma ficção: notas sobre algumas movimentações de drag queens na cidade do Rio de Janeiro. 2011. 183 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

O presente trabalho tem por objetivo traçar breves notas sobre algumas movimentações de drag queens e outras artistas da travestilidade que tiveram lugar na cidade do Rio de Janeiro, nos anos de 2009 e 2010. Através de um trabalho de observação participante, foram selecionados alguns locais e espetáculos que poderiam ser representativos desta categoria artística, não se pretendendo um levantamento extenso sobre quem são e onde estão tais artistas. Nomeio como artistas da travestilidade aqueles corpos que têm o ato de travestir-se como central em sua construção artístico-cultural, principalmente construindo corporalidades baseadas em um gênero diferente daquele identificado socialmente no nascimento, como drag queens, atores transformistas, travestis e transexuais artistas. Apoiando-me em pressupostos dos métodos cartográfico e etnográfico assumi, nesta dissertação, o posicionamento de um pesquisador-espectador, objetivando o contato com aquilo que drag queens e outras artistas da travestilidade desejam tornar público, ou seja, seus shows e espetáculos. Acompanhei diversas apresentações deste tipo em teatros, boates, bares e clubes de bairro, bem como em outros locais nos quais se fizeram presentes, como na Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro e em alguns blocos do carnaval carioca. Tendo ainda como campo de diálogo alguns postulados da Esquizoanálise – vertente teórica fundamentada principalmente nas contribuições de Gilles Deleuze e Félix Guattari –, pretendi situar e afirmar as drag queens e a arte da travestilidade dentro dos estudos de gênero e sexualidade, principalmente aqueles mais diretamente relacionados às manifestações de uma subcultura camp e cultura gay e/ou homossexual.

Palavras-chave: Drag queen. Travestilidade artística. Camp. Corporalidade. Cultura gay. ABSTRACT

This paper aims to draw some brief notes on the contemporary drag queens' and other female impersonators artists movements, following what took place in the city of Rio de Janeiro during the years 2009 and 2010. Through a study of participant observation, I selected some sites and shows that could be representative of this art category, not intending to make an extensive survey of where they are or who these artists are. I name female impersonators artists those bodies which have the act of transvestiting themselves as central to their artistic and cultural construction/constitution, particularly building up corporalities based on a gender which is distinct from the birth-socially-identified one, e.g. drag queens, crossdresser actors, transvestites and transgender artists. Based on cartographic and ethnographic methods, I took the position of a spectator, that is, of a researcher-spectator, aiming at a connection with what drag queens and impersonators artists wish to make public, i.e., their concerts and shows. I followed various performances of this kind in theaters, nightclubs, bars and neighborhood clubs, as well as in other places in which they were present, as in Rio de Janeiro's LGBT Pride Parade and in some groups of Rio's carnival. Having also as a field of dialogue some postulates of Schizoanalysis ? the theoretical model based mainly on contributions from Gilles Deleuze and Felix Guattari ?, I meant to situate and affirm the drag queens and the female impersonation art within the studies of gender and sexuality, especially within those more closely related to manifestations of a camp subculture and gay or homosexual culture.

Keywords: Drag queen. Female impersonation. Camp. Corporality. Gay culture. SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...……………………………………………………...... 11

1 UM PASSEIO POR AÍ ...... 18

1.1 Life is a Cabaret, old chum, come to the Cabaret!...... ………….………...... 20

1.2 Come taste the wine, come hear the band ………..……….………………... 26

1.3 Come blow your horn, start celebrating …………………….……………… 30

1.4 It's only a Cabaret, old chum, and I love a Cabaret!...... 40 PASSEIOS HISTÓRICOS E MONUMENTAIS: “DIVINAS DIVAS”,

2 “AGORA É QUE SÃO ELAS” E “TURMA OK” ...... 55

2.1 She likes the theater and never comes late ………………………………… 57

2.2 She likes the free, fresh wind in her hair, life without care ……………….. 65

2.3 That's why the lady is a tramp! ………………………………………...... 71 PASSEIOS POR TEATROS EM COPACABANA E IPANEMA: 3 O PROJETO “LAURA DI VISON AUTO-RETRATO”, EDIÇÕES 78 2009 E 2010 ...... 3.1 Quand il me prend dans ses bras, Il me parle tout bas, 83 Je vois la vie en rose ………………………………………………………… 3.2 Il est entré dans mon coeur, Une part de bonheur, 89 Dont je connais la cause …………………………………………………….

3.3 Et dès que je l'aperçois, Alors je sens en moi, mon coeur qui bat ...... 96

3.4 Des ennuis des chagrins s'effacent, Heureux, heureux à en mourir ...... 107 PASSEIOS A CÉU ABERTO: “PARADA DO ORGULHO LGBT” E 4 109 “BANDA DE IPANEMA” ......

4.1 Chiquita Bacana, Lá da Martinica ...... 112

4.2 Se veste com uma casca, De banana nanica ...... 115 4.3 Não usa vestido, Não usa calção ...... 120

4.4 Inverno pra ela, É pleno verão ...... 126

4.5 Só faz o que manda, O seu coração ...... 129 5 PASSEIOS PELA NOITE DRAG OU A DRAG NA NOITE:

“CINECLUBE LGBT”, “QUIOSQUE RAINBOW” E “SAL Y PIMENTA” ...... 137

5.1 If you go hard you gotta get on the floor …………………………………… 140

5.2 If you're a party freak then step on the floor ………………………………. 147

5.3 Yeah we work on the floor ………………………………………………….. 155 PASSEIOS POR TRAVESTILIDADES OUTRAS: A DIVERSIDADE 6 DO TRAVESTIR-SE ...... 159 6.1 Eu não tenho culpa de ser chique assim ...... 162 6.2 Eu nasci assim e vou morrer assim ...... 167

REFERÊNCIAS ...... 173

11

Apresentação

Esta dissertação nasceu de uma viagem. Ela não apenas tem como mote metodológico viagens e o movimento de viajar como surgiu, da forma como será apresentada nas próximas páginas, da viagem que empreendi de Lavras, em Minas Gerais, para do Rio de Janeiro. Já tinha viajado de Lavras para São João del-Rei, local onde morei por cinco anos e fiz o curso de Psicologia na UFSJ. Durante estes anos conheci outros viajantes, pessoas de Belo Horizonte, Passos, Pirapora, Ouro Branco, São Sebastião do Paraíso, Espinosa, Montes Claros, Bocaiúva, Itabira, entre tantos outros lugares. Éramos viajantes mineiros, das diversas e diversificadas regiões do estado, e em São João del-Rei nos encontramos e compartilhamos não só este momento de formação, mas um verdadeiro tempo de vida: partilhas, laços afetivos, conflitos, trânsitos...

Passados estes cinco anos, alguns de nós permaneceram naquela cidade, outros tinham partido para um local diferente antes do fim desta viagem. A maioria, porém se dispersou, inicialmente para seus lugares de origem para logo em seguida tomarem um novo rumo e aportarem em novo destino. Saí de São João del-Rei e retornei a Lavras, vivenciando um momento de angústia e estranhamento, talvez uma verdadeira zona de fronteira: não estava mais em São João, mas não conseguia e também não queria estar em Lavras. Assim como Adriana Calcanhoto na canção “Esquadros”, me perguntava: “Eu ando pelo mundo; E meus amigos, cadê?”. Estava longe de um mundo que tinha construído e em contato com outro que conhecia desde sempre, mas que não era mais o mesmo, assim como eu. Neste caos de emoções e estares, comecei a refletir sobre algumas ideias que começava a ter sobre drag queens1 e, enquanto criava novos laços e territórios e trabalhava como psicólogo em um hospital psiquiátrico fui gestando um projeto de mestrado. Participei de algumas seleções e não passei, mas meu projeto ganhava cada vez mais fôlego e novos elementos. Não tinha um destino certo e na caminhada para um

1 Seguindo sugestão de Anna Paula Vencato (2002), utilizarei drag e drag queen sem destacá-las em itálico por estes termos de língua inglesa já estarem aportuguesados e presentes em nosso cotidiano, ao menos gramatical. 12

lugar que não sabia qual seria, acabei cruzando com outras pessoas e caminhos, me surpreendendo e quando vi já estava no Rio e matriculado na UERJ. Bela escolha, bela viagem.

Antes de chegar às drags me dedicava ao palhaço. Durante quatro dos cinco anos em que vivi em São João del-Rei fiz parte de um grupo de doutores-palhaços, os “Doutores Por um Triz...”. Fazíamos visitas semanais aos dois hospitais da cidade, Santa Casa de Misericórdia e Hospital Nossa Senhora das Mercês, objetivando um questionamento através do riso dos lugares de médicos e pacientes. Brincávamos seriamente de médicos e, por alguns breves minutos, tirávamos os internos do lugar de passividade que muitas vezes lhes era exigido e também assumido por eles. Neste ambiente, o Aureliano dava lugar ao Dr. Espetáculo, um médico de nariz e meias vermelhas, bermuda amarela, touca amarela e azul e camiseta listradinha de branco e preto, além do tradicional jaleco branco. O Dr. Espetáculo ganhou este nome de uma enfermeira que investia neste único homem do grupo, chamando-o de espetáculo pelos corredores do hospital. O nome demorou um pouco para ser assumido, mas veio a calhar, pois era um médico realmente espetacular e expansivo, além de curioso e que embarcava nas maiores viagens com seus pacientes e companheiras de trabalho.

“O clown é queer: o universo de riso, transgressão e criação das drag queens” era o nome do projeto de pesquisa com o qual entrei no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ. Pretendia estudar as drag queens como se fossem um tipo de clown, palhaças que supunha ter em sua constituição uma boa dose de material referente a questões de sexualidade e gênero. Digo palhaças, pois percebia na constituição de uma drag elementos muito próximos aos que encontrava em diversos estudos sobre palhaços e/ou clowns e também aos que experenciava ao personificar meu doutor-palhaço, “Dr. Espetáculo”. A ideia era pensar um personagem que alguém construía e que se transformava num tipo de duplo (mas sendo ele mesmo), de uma ficção baseada no humor e que se faz de forma extremamente plástica e maleável, permitindo um grande grau de interação com o público. O riso e o humor são temas que me fascinam já há algum tempo e foi me dedicando a esmiuçá-los e pensá-los de forma mais ampla que o trivial que cheguei às drags.

Humor, personagem, drag queens. Queria encontrar uma base teórica que me permitisse mostrar o quão sério podia ser o riso e uma construção calcada no humor, que tanto clowns como drags, além de serem simples divertimentos, poderiam ter outros sentidos em suas construções. 13

Encontrei alguns estudos psicanalíticos que, partindo dos textos freudianos “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905) e “O humor” (1927), me auxiliaram em meu projeto de refletir sobre os citados personagens cômicos e humorísticos e me davam a credibilidade de uma teoria que tornaria meu trabalho de alguma forma sério, quiçá acadêmico ou científico. Talvez tudo tenha ficado sério demais, não pela teoria que me fundamentava em si, mas por não ser a psicanálise um arcabouço que me satisfazia em minhas pretensões de pensar mais levemente tais criações artísticas. A viagem e os encontros no Rio deram início a transformações fundamentais no meu projeto: manter apenas o tema das drag queens e deixar que elas me guiassem à teoria que preferissem; me colocar ao acaso, mas sempre à espreita em busca de novos territórios, criações, movimentações...

Segui alguns sábios apontamentos dos que cruzaram meu caminho depois que aqui aportei e me esforcei para me colocar à deriva. Movimento um tanto quanto desesperador e fundamentalmente desestabilizador; por mais que refletisse e estudasse, por várias vezes pensei que não encontraria o fio desta dissertação. Parecia que o que tinha para dizer estava ali, mas não sabia como dar corpo a isto ou de que forma abarcá-lo-ia metodologicamente. Abandonei a tentadora e por vezes mais segura noção de ter um campo tradicional e bem delimitado, como trabalhar com determinadas drags ou um evento/local mais restrito, bem como a ideia de se fazer entrevistas com os/as artistas que encarnam drags. Então, o que faria? Valia a pena o risco de, como me foi sugerido em um seminário de pesquisa, errar, mas tentar algo metodologicamente mais drag.

O acaso e também a ajuda dada através das disciplinas que cursei durante o primeiro ano do mestrado e os trabalhos produzidos para estas, me fizeram reencontrar um livro de título poético e conteúdo ainda não desbravado tão vivamente por mim: “Seis passeios pelos bosques da ficção”, de Umberto Eco (1994). Voltando-me para este belo título veio a ideia para dele dar início à proposta metodológica deste trabalho: a noção de passeios. Eco, nesta obra, trata de algumas questões pertinentes à construção ficcional em literatura, trazendo em cada um dos seis capítulos exemplos pertinentes à sua argumentação, passeios por algumas obras de ficção. Cabe ressaltar que foram seis os seus passeios, pois este livro compõe-se das exposições de mesmo número proferidas por este teórico em 1993 no ciclo Charles Eliot Norton Poetry Lectures, ou simplesmente Conferências Norton, na norte-americana Universidade de Harvard, o qual é 14

tradicionalmente composto por seis falas de um autor considerado de renome no meio artístico e/ou teórico-cultural.

Valendo-me talvez de forma parodística deste título de Eco e de seu número seis, me propus a passear por esta obra de ficção que é uma drag queen, restringindo-me à cidade do Rio de Janeiro. De certo modo, espacializei a figura das drags, de forma a analisar sua construção e modos de ser e interação a partir de alguns locais nos quais elas se fizeram destacadamente presentes no espaço de tempo em que durou esta pesquisa: em shows no Teatro Gláucio Gill, Sala Baden Powell e Quiosque Rainbow no bairro de Copacabana, na Casa de Cultura Laura Alvim em Ipanema ou na Associação Atlética de Vila Isabel; em meio ao efervescente bloco carnavalesco “Banda de Ipanema” no bairro de mesmo nome e na “Banda das Quenga” na Lapa; em algumas noites coloridas das boates 1140, Sal y Pimenta, Le Boy e na sede da Turma OK; na Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro em meio à sua polifonia de modos de ser. Abrindo estas literais movimentações pelo Rio de Janeiro, passearei por alguns argumentos teóricos sobre esta construção metodológica e o próprio ato de passear e viajar, e encerrarei a dissertação com breves exemplos de diversificadas formas de travestilidade e alguns apontamentos sobre a possibilidade e potencialidade de uma travestilidade artística, objetivando um ponto de chegada provisório, apenas um cais para novos encontros e viajares.

Drag queens, personagens fictícias, mas tão reais, dotadas de nomes, cores, traços, localizações, estilos próprios... Personagem complexa que, apesar de ser geralmente vista ou se apresentar como um estereótipo, não se constitui desta forma. Aquela drag que conhecemos e que parece reduzida àquele nome e shows que muitas vezes sabemos de antemão qual será, é o suporte visual para um mundo de transformações e devires: a máscara drag é um passaporte para os encontros, interações, espetáculos, enfim, para uma falsificação e criação da/de vida. Maquiagens, perucas, sapatos altos, roupas coloridas e diversificadas, glitter, purpurina, perfume e outros itens criam visualmente uma drag, mas esta só existe ao se jogar no espaço entre esta sua personificação e o público. Como afirma Guacira Lopes Louro, uma drag é “uma personagem estranha e desordeira, uma personagem fora da ordem e da norma, ela provoca desconforto, curiosidade e fascínio” (2004, p.20). Ela é pulsante de afetos e se faz em movimento(s), alguns dos quais acompanhei para tentar dizer algo desta figura que só se faz em processo. 15

Esmiuçando um pouco mais a estruturação desta dissertação, neste primeiro capítulo navegaremos pelas discussões metodológicas da cartografia, como proposta por Deleuze e Guattari (1995) e desenvolvida por diversos outros autores como Laura Pozzana de Barros (2005), incluído seu trabalho com Virgínia Kastrup (2009); Suely Rolnik (2007) e sua parceria com Félix Guattari (2000); Virgínia Kastrup (2007, 2008); Liliana da Escócia e Silvia Tedesco (2009) e Eduardo Passos em seus escritos junto com Johnny Alvarez (2009) e André do Eirado (2009). Tentarei abandonar um mapa representativo para criar “um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem” (ROLNIK, 2007, p.15). Neste mesmo movimento, discutirei também algumas noções etnográficas, em especial sobre trânsitos e viagens, como postuladas principalmente por James Clifford (1997, 1999) e retomadas por Janice Caiafa (2007). Minha tentativa será a de esboçar uma metodologia que acompanhe fundamentalmente os movimentos e não os pontos estáticos, talvez uma possível heterotopologia, como nomeia Michel Foucault (2001) em seus ditos sobre as heterotopias: “o estudo, a análise, a descrição, a leitura, como se gosta de dizer hoje em dia, desses espaços diferentes, desses outros lugares, uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real do espaço em que vivemos” (p.416, grifos no original). Tratarei ainda daquilo que concebo como passeios, um acompanhar de movimentos não estáticos em um mapa rizomático.

No segundo capítulo estará em cena um histórico das artistas da travestilidade e os espaços e contextos que possibilitaram a emergência deste tipo de espetáculo no Rio de Janeiro. Apoiado em estudos de James Green (2000), João Silvério Trevisan (2007) e sobre o Teatro de Revista Brasileiro, principalmente nas palavras de Neyde Veneziano (1991), discorrerei sobre os famosos shows de travestis da década de 1960 e outras trajetórias da travestilidade nas décadas seguintes. Deterei-me ainda nos grupos e rede de sociabilidade homossexual das décadas de 1960 e 1970, como a Turma OK, que até os dias de hoje possui sua sede em funcionamento, na qual realiza uma série de espetáculos regulares. Em espaços deste tipo, o exercício da travestilidade se faz presente e é material de admiração e diversão.

O terceiro capítulo abarcará o projeto “Laura Di Vison Auto-Retrato”, série de shows realizados em outubro de 2009 no Teatro Gláucio Gill, em Copacabana e neste mesmo mês do ano de 2010 na Sala Baden Powell e Casa de Cultura Laura Alvim, esta última em Ipanema. Realizado pelo Grupo Arco-Íris e inserido dentro das comemorações da “Semana do Orgulho 16

LGBT”, tais espetáculos valeram-se da figura da diva trash Laura Di Vison para abrir espaço para diversas apresentações de drag queens, travestis e transformistas, divididas em espetáculos temáticos. Estes diversos estilos de shows e de artistas, geralmente ligados à cena gay, abre-nos espaço para discutir a existência e pertinência de uma estética do exagero nomeada como camp em tais manifestações e construções de personagens. O camp aqui será pensado como uma forma de performance artística, modo de subjetivação e subcultura.

O quarto passeio e capítulo dará continuidade a esta discussão acerca do camp, mas em outro território: a “Banda de Ipanema” e “Parada do Orgulho LGBT”. Apoiado nesta estética, discutirei a construção de uma corporalidade marcada pela travestilidade e sua visibilização como produto estético em contextos a céu aberto, como os festejos do carnaval e desfile do orgulho LGBT. Promoverei ainda uma reflexão desta corporalidade drag e a “montaria” que a marca como uma estética da existência, esta segundo concepção de Michel Foucault (2007).

Já no quinto capítulo, daremos um giro pela noite carioca e por alguns shows drag. Os diversos tipos de manifestações de transformistas e de drag queens encontram na noite e em determinadas boates seu espaço primordial de visibilidade e contato com o público. Neste passeio, teremos lugar nas boates Sal y Pimenta, Quiosque Rainbow e uma noite específica do projeto “Cineclube LGBT”, no Cine Odeon, na Cinelândia. Priorizarei neste capítulo a noção de performance artística desenvolvida nestes espaços, que inevitavelmente diz de uma performance de gênero bem como de uma noção de paródia (BUTLER, 2008) na constituição desta. Exercito ainda o “devir drag”, como sugerido por Anna Paula Vencato (2002) e possibilitado por alguns postulados de Félix Guattari (1987). Discorrerei também acerca do status que uma drag queen goza perante o público.

O sexto passeio finaliza esta caminhada e neste tento ressaltar o que podemos dizer dos movimentos e movimentações das drag queens que vimos no recorte do território aqui analisado da cidade do Rio de Janeiro em 2009 e 2010. O que de transformações e potencialidades as drags nos trazem? Penso que este não é o fim dos passeios, mas apenas um ponto final que se abre em reticências para outros modos de se ser drag queen e de performances que não se constituem neste exagero de um tipo de feminino, como a extinta banda recifense Textículos de Mary, as drag kings, o grupo Dzi Croquettes e o performer paulistano Alisson Gothz, entre tantos outros possíveis e imagináveis. 17

Esta dissertação é fundamentalmente sobre um estilo: a arte da travestilidade ou do transformismo. Travestilidade artística, expressão que utilizei ao longo deste texto, talvez diga mais de um modo de subjetivação ou identidade do que de uma manifestação e construção artística e/ou estética. Por mais que o termo transformismo fosse bastante preciso para dizer da afirmação de uma arte e possuir uma importante significação histórica acerca deste estilo de produção de femininos e feminilidades, acabei por não utilizá-lo. Não foi exatamente proposital, muito provavelmente essa opção se deu pelo caráter geracional que me separa deste termo, além do cuidado excessivo com o sufixo “ismo”, tão fixado a patologias no campo social e psi. O termo drag me parecia mais confortável, porém sua significação como um processo de transformação e construção de si, principalmente com fins artísticos, se mostra estranha a todos e todas nós imersos na língua portuguesa.

Os passeios pelas praias desta ficção são muito mais “drags” ou “transformistas” do que “de drag queens” ou “sobre drags”. Como o espectador produtor deste trabalho, lancei meu olhar para experiências artísticas de travestilidade para, através das figuras que a sustentam, afirmar este tipo de arte e estilo, me detendo mais detalhadamente na ideia e personificação de drag queens. Reconheço as implicações teóricas e políticas de diferenças entre a arte da travestilidade e a arte do transformismo. Além disso, vários termos e conceitos serão utilizados para também dizer deste estilo, como camp, estética da existência, paródia, heterotopia, montaria, devir drag, entre outros possíveis. Um estilo, uma teatralidade e um modo artístico de personificação de si perpassam heterogenicamente todas estas construções e será sobre estes que tentarei dizer algo. Comecemos então dando nossos primeiros passos... 18

Algo me diz pra ser sutil não faço ideia mas me resta um caminho.

(Sutil – Itamar Assumpção)

A superfície do mar é o plano para a decolagem. Trata-se de uma viagem, e toda viagem traz germens do devir.

(Eduardo Passos)

1

Um passeio por aí 19

Um dos grandes nós de uma pesquisa qualquer é o que diz respeito aos métodos escolhidos para que esta se efetive. Poderíamos dizer que metodologia e pesquisa se imbricam de tal forma que o significado destes dois termos por vezes torna-se o mesmo, já que o próprio ato de pesquisar, os objetivos propostos e resultados encontrados serão determinados pela forma como estruturaremos metodologicamente tal investigação. Não há nenhuma pesquisa isenta dela mesma, assim como não há um sujeito que age conscientemente sobre o mundo. Como afirmam Passos e Eirado (2009), “o mundo e o sujeito são contemporâneos ao ato cognoscente” (p.122), ou seja, não é possível estabelecermos uma separação objetiva entre o campo ou objeto da pesquisa e o pesquisador que supostamente traria uma maior compreensão sobre determinada realidade estudada. A realidade é modificada no momento mesmo em que nos propomos a conhecê-la; ela é construída performativamente quando dela me apercebo, o que não diz apenas de uma suposta consciência do mundo, mas de todo e qualquer movimento realizado por um “mim” performativo no meio social (NAVARRO-SWAIN, 2002).

Desta forma, nos perguntamos: como podemos construir um método que consiga dialogar com a realidade social e dizer algo sobre o que a pesquisa propõe, mas que isto seja feito sem pretensões de se estabelecer uma verdade ou de trazer à tona algo que se pressupõe oculto ou encoberto? Nesta tentativa de diálogo, duas propostas metodológicas esforçam-se em suas proposições: a cartografia e a etnografia. A primeira é derivada das pistas sugeridas por Deleuze e Guattari (1995) e vem sendo trabalhada como uma forma de se fazer e pensar a pesquisa, acompanhando as linhas arborescentes do mapa rizomático constituintes dos processos de produção das subjetividades, ou seja, parte do pressuposto de que nossas subjetividades são formadas pelo atravessamento de diversas instituições, as quais serão analisadas sem estabelecer uma única central que nos formaria e revelaria “quem somos”. É um modo performativo de se conceber a pesquisa, bem como os sujeitos, o mundo, a realidade social, etc. O pesquisador nunca estará em uma posição neutra, mas implicado na produção do campo e da pesquisa e o seu papel será o de analisar tais implicações.

Já a etnografia “é ao mesmo tempo um tipo de investigação e um gênero de escritura que se desenvolveu na tradição antropológica” (CAIAFA, 2007, p.135), tendo nascido com os estudos de Malinowski sobre as relações e instituições sociais dos trobriandeses. Fixou-se uma forma chamada antropológica de se fazer pesquisa, ressaltando-se a necessidade de se ir a campo 20

e através da observação participante desvendar este outro que se nos apresenta. Descrições pormenorizadas eram registradas nos diários de campo, além de serem interpretadas e recolocadas em relações funcionalistas dadas teoricamente pelo etnógrafo. Contemporaneamente, o método etnográfico abarca diversos modos de se fazer pesquisa muitas vezes divergentes como a escola interpretativa de Clifford Geertz (1989), a antropologia dialógica de Tedlock e Crapanzano (citados por CAIAFA, 2007; CLIFFORD, 2002) e experiências híbridas ditas polifônicas, baseadas na tradição antropológica e em proposições discursivas e literárias como as desenvolvidas por Bakhtin e Volochínov (citados por CAIAFA, 2007) e Roland Barthes (citado por CLIFFORD, 2002).

Utilizando-se de algumas contribuições da etnografia e da cartografia pretende-se pensar aqui na constituição de um método e nas possibilidades de encontro e criação de um território existencial (ALVARES E PASSOS, 2009) com drag queens e a arte da travestilidade. Discorrerei sobre alguns pressupostos dos referidos métodos que se me mostraram interessantes para, logo em seguida, experimentar a proposta de ser um espectador e passear pela paisagem drag da cidade do Rio de Janeiro.

1.1. Life is a Cabaret, old chum, come to the Cabaret!

De que forma seria possível, então, produzir uma cartografia drag queen? Que instrumentos utilizar? De que forma poderiam acontecer estes encontros e como seria o registro do que aí acontecesse?

Produzir uma cartografia que trouxesse a figura das drags e seu movimento de produção de si, mergulhar e se deixar afetar por estes encontros. Geralmente postula-se que o trabalho do cartógrafo ou do etnógrafo deve ser feito com o mínimo de expectativas em relação aos resultados e um grande grau de abertura ao campo. Ao contrário de um pesquisador que procurará testar suas hipóteses e afirmar sua autoridade como o que trará à luz o que antes estava oculto, os profissionais do tipo acima referidos procurarão se abrir ao seu tema de pesquisa, 21

deixando-se afetar pelo campo, produzindo sua pesquisa em um coletivo transindividual, como apontam Escóssia e Tedesco (2009).

Este coletivo transindividual contrapõe-se à concepção ainda dominante de coletivo como oposto ao individual; diz das “relações estabelecidas entre dois planos – o plano das formas e plano das forças – que produzem a realidade. Embora distintos, os dois planos não se opõem e sim constroem entre si relações de reciprocidade que asseguram cruzamentos múltiplos” (ESCÓSSIA E TEDESCO, 2009, p.94). O plano das formas é conceituado como um plano estático, de cristalizações e estabilizações. Como afirmam Escóssia e Tedesco e segundo a concepção de René Lourau este é o plano do instituído. Já o plano coletivo das forças é potente, em constante movimento e variável, podendo-se dizer que assim como o mágico mambembe do filme “Bye bye Brasil” (1978), este só se equilibra em movimento (LOURO, 2004, p.11).

Liliana da Escóssia e Silvia Tedesco (2009) postulam que é este plano coletivo das forças que deve ser ativado na pesquisa de modo a torná-la “hábil em afetar as condições de gênese dos objetos e assim fazer derivar, num processo de diferenciação, novas formas ainda não atualizadas” (p.99). Deste modo, o foco serão as linhas de fuga constitutivas da realidade estudada e não apenas suas representações cristalizadas, seus decalques (DELEUZE E GUATTARI, 1995). Ainda segundo as referidas autoras, “o coletivo transindividual é o plano instituinte e molecular do coletivo. No entanto, ele não é um plano transcendente, mas um plano concreto de práticas e de relações ético-políticas” (2009, p.98) e que será produzido performativamente no momento mesmo da pesquisa.

Na produção de uma pesquisa, esta noção de coletivo transindividual de forças está intimamente ligada à de território existencial, como concebida por Johnny Alvarez e Eduardo Passos (2009). Segundo estes autores, “é sempre pelo compartilhamento de um território existencial que sujeito e objeto da pesquisa se relacionam e se codeterminam” (p.131) e tal território se configura pela processualidade e mutualidade de tal compartilhamento. Pensando a pesquisa como o acompanhamento de processos e não como interpretação de decalques, tais estudiosos trazem a noção de dimensão rítmica de Deleuze e Guattari, outra das pistas que deram origem ao método cartográfico. 22

Nesta dimensão rítmica, há uma autonomia da expressão recusando-se um funcionalismo ou uma determinação hierarquizada; todos os habitantes de tal território existencial se produzem mutuamente, não se constituindo “como um domínio de ações e funções, mas sim como um ethos, que é ao mesmo tempo morada e estilo. Os sujeitos, os objetos e seus comportamentos deixam de ser o foco da pesquisa, cedendo lugar aos personagens rítmicos e às paisagens melódicas” (ALVAREZ E PASSOS, 2009, p.134, grifos no original). É um habitar com, se colocar ao lado sem pretender explicar o outro, despir-se de autoridade para juntos ser possível a sintonização nesta dimensão rítmica. Isto não significa que pesquisador e os supostos pesquisados irão se confundir, mas sim que não há um lugar prioritário de um ou outro. Mesmo em suas especificidades, ambos estarão partilhando e produzindo o mesmo plano de forças que é a própria pesquisa.

A cartografia, como pensada por autores como Rolnik (2007), Kastrup (2007; 2008; 2009) e Passos (2009), e a etnografia, como defendida por Caiafa (2007) e Clifford (2002), propõem a pesquisa produzida coletivamente e conferem ao profissional que a realiza um lugar junto aos outros (tradicionalmente os objetos) e não acima nem abaixo. Apesar do exercício da cartografia exigir flexibilidade e distração para se produzir e acompanhar “processos de produção de subjetividade” que já estão “na maioria das vezes (...) em curso” (BARROS E KASTRUP, 2009, p.58), seria ingênuo pensar que o cartógrafo é apenas levado quase que a esmo à sua pesquisa. A delimitação do que irá analisar, de que forma, onde, quando, entre outras questões, o que constitui o rigor da pesquisa, são também atravessados por diversas forças que aparentemente não diriam necessariamente daquela determinada pesquisa. Passos e Eirado (2009) contribuem para esta noção ao afirmarem que um fazer cartográfico é composto pela articulação de três ideias que poderíamos dizer transrelacionadas: “a de transversalidade, a de implicação e de dissolução do ponto de vista do observador” (p.109). Transversalidade porque uma cartografia produz e é produzida por diversas outras forças, não sendo uma disciplina exercendo sua competência entre outras (multidisciplinaridade) nem um novo campo do saber advindo da interseção de alguns outros (interdisciplinaridade). Uma concepção transversal trabalha em favor da produção de diferença, colocando os diferentes lado a lado de forma a aumentar-lhes o grau de abertura comunicável (PASSOS, 2009). Não é uma simples soma, mas um real atravessamento sem um ponto de apoio, um mapa rizomático que “experimenta o cruzamento de várias forças que vão se produzindo a partir dos encontros entre os diferentes nós de uma rede de enunciação da qual 23

emerge, como seu efeito, um mundo que pode ser compartilhado pelos sujeitos” (PASSOS E EIRADO, 2009, p.115-116).

Neste jogo de forças está incluída a figura do pesquisador. Este não é visto como o responsável ou autor de uma pesquisa, mas como um elemento desta rede, o que não significa que ele não tem um lugar delimitado neste rizoma. O pesquisador ocupa um lugar e justamente por isso faz-se necessário uma reflexão acerca deste seu território, uma análise de implicação. Diferentemente de esforço ou engajamento, o conceito de implicação foi pensado pela análise institucional para dar conta da participação e produção do sujeito na realidade social e institucional. Não há como não estarmos implicados, mesmo que tentemos ser o mais isento ou neutro possível de indiferenciação. Este conceito ganha força no esmiuçamento do processo através da análise de implicações. Analisar a forma e o grau em que estamos implicados diz de assumirmos nosso lugar produtor na rede social e, desta forma, podermos dizer dos jogos de força dos quais participamos. É um esforço cotidiano, voltado para os micro-lugares criados e mantidos continuamente, desnaturalizando-os. Constitui-se de forma a não escaparmos de nossas implicações e em assumirmo-nos como aquele “mim” apontado por Tânia Navarro-Swain (2002) ao afirmar que

(...) a identidade de gênero institui sua própria imagem e se realiza em sua atualização: o “eu” se torna possível enquanto sujeito através de práticas e representações de “mim”. Não preexiste à sua instituição. Talvez pudéssemos chamar “técnicas de mim” este processo em que de mim para mim e de mim para os outros eu digo e represento: “eu sou” (NAVARRO-SWAIN, 2002, p.330, grifos no original).

Outro ponto que podemos ressaltar acerca da experimentação cartográfica é o da dissolução do ponto de vista do observador, o qual é colocado como tarefa do cartógrafo, ou melhor, do aprendiz de cartógrafo (ROLNIK, 2007) já que este se encontra sempre se exercitando na prática da cartografia, desterritorizalizando-se para que novos territórios sejam possíveis. Nas palavras de Eduardo Passos e André Eirado (2009),

O cartógrafo acompanha esta emergência do si e do mundo na experiência. Para realizar sua tarefa não pode estar localizado na posição do observador distante, nem tampouco pode localizar seu objeto como coisa idêntica a si mesma. O cartógrafo lança-se na experiência, não estando imune a 24

ela. Acompanha os processos de emergência, cuidando do que advém. É pela dissolvência do ponto de vista que ele guia sua ação (PASSOS E EIRADO, 2009, p.129).

A produção da pesquisa advém do encontro e o cartógrafo, através de um tipo de sensibilidade aberta e atenta aos processos de produção de subjetividades, dará abertura para aqueles afetos produzidos coletivamente e que pedem passagem em nome da afirmação da vida (ROLNIK, 2007). Ao aprendiz de cartógrafo é necessário “entrar em sintonia com o problema que move a pesquisa” e, desta forma, treinar um tipo de atenção que se constituirá como uma política cognitiva e que se conforma como “concentração sem focalização, abertura, configurando uma atitude que prepara para o acolhimento do inesperado. A atenção se desdobra na qualidade de encontro, de acolhimento” (KASTRUP, 2007, p.18). O cartógrafo transitará distraída e atentamente pelos acasos.

Peter Spink (2008) também frisa a necessidade de abertura aos acasos cotidianos que nos atravessam, nos micro-lugares habitados pelo pesquisador e por todos nós. Podemos afirmar que aquele aprendiz de cartógrafo deve estar atento “para a importância do acaso diário, dos encontros e desencontros, do falado e do ouvido em filas, bares, salas de espera, corredores, escadas, elevadores, estacionamentos, bancos de jardins, feiras, praias, banheiros e outros lugares de breves encontros e de passagem” (SPINK, 2008, p.70). O que este autor defende é que é na processualidade do cotidiano que a pesquisa se faz e não em algum lugar isento, controlável e que daria a suposta coerência ao fenômeno investigado, como postulado pela vertente positivista e cientificista de pesquisa. E, apesar de ser território, tema de pesquisa e material para inúmeros tipos de reflexões, o cotidiano será sempre imprevisível, surpreendente.

Ao deslocar a pesquisa de um lugar sacralizado para o profano cotidiano, Spink nos traz a noção de campo-tema, a qual se contrapõe a concepções tradicionais do campo como um lócus excepcional e restrito de investigação:

Não estamos no campo porque fomos para um lugar distante (...). Estamos no campo porque estamos no campo-tema como matriz de questionamento e argumento, de ação e narração (Garfinkel, 1967). Tanto faz se estamos trabalhando com um financiamento científico, trabalhando com organizações advocatórias ou em projetos de pesquisa-ação, escrevendo, conversando, olhando anotações, participando de comissões assessoras, dando palestras ou tomando uma cerveja 25

numa sexta feira à noite e arguindo com amigos; estamos no campo-tema (...) (SPINK, 2008, p.73- 74).

Um pesquisador, independente de que método adote, sempre será levado ao campo-tema por inquietações que procurará minimamente colocar em análise. A forma como conduzirá sua pesquisa, analisará seus dados, divulgará o que for produzido e ainda a postura que adotará frente este processo é que diferirá entre os diversos métodos disponíveis e passíveis de serem criados. Desta forma, não posso afirmar que minha ida ao campo, bem como o dado de já estar em campo segundo as postulações de Spink (2008), é ingênua e absolutamente descompromissada. Talvez haja um limite bastante sutil, mas também bem definido: inquietações me conduzem, mas é necessário um alto (e auto) grau de abertura e afetação para que possa ser conduzido por elas.

Assumir e permitir embrenhar-se nos processos de uma pesquisa não é nunca por acaso, apesar de que muitas vezes nos interessamos por determinado tema e adotamos um tipo de pesquisa sem conseguirmos precisar como tudo aconteceu. Fomos afetados e não resistimos aos afetos, mas tenhamos cuidado para que não fiquemos aprisionados apenas neste registro afetivo de potencialidades nem caiamos no estabelecimento de cristalizações e regularidades. O método cartográfico se coloca à deriva, mas assim como a metáfora da viagem de James Clifford que veremos mais adiante, este “tem sido um sonho muito sério de traçar um mapa sem perder contato com a terra”2 (1999, p.46, grifos no original). Ainda nas palavras deste antropólogo, esta sintonização que dê conta dos afetos e os coloque como conceitos não aprisionados é uma luta para constantemente “manter alguma esperança e uma incerteza lúcida”3 (CLIFFORD, 1999, p.25).

Seguindo estas pistas cartográficas e suas linhas conectivas, mergulharemos e interviremos no cotidiano, produzindo-o lado a lado com a pesquisa. Toda pesquisa é intervenção, visto que esta sempre se dará na relação entre diversos níveis completamente imbricados e implicados em sua produção. Os participantes, o pesquisador, o problema de pesquisa e o campo de investigação constituem-se nos quatro níveis da pesquisa-intervenção, como destaca Virgínia Kastrup (2008). E estes níveis não existem de forma autônoma, mas

2 Tradução livre, no original: “ha sido un sueño muy serio de trazar un mapa sin perder ‘contacto con la tierra’” (CLIFFORD, 1999, p. 25). 3 Tradução livre, no original: “sostener alguna esperanza y una incertidumbre lúcida” (CLIFFORD, 1999, p.25). 26

somente produzindo-se mutuamente. Esforçar-se para conhecê-los, da forma como estes se nos apresentam, é dar visibilidade às intensidades que buscam expressão (ROLNIK, 2007, p.66), o que pensamos ser papel fundamental de qualquer pesquisa que se proponha investigar territórios que não buscam para si nada além de uma afirmação de existência.

1.2. Come taste the wine, come hear the band

Após estas breves notas sobre a cartografia, cabe discorrer um pouco sobre o método etnográfico. O objetivo não seria traçar um paralelo entre tais métodos, mas ressaltar o que das práticas da etnografia pode contribuir para um fazer cartográfico, principalmente porque, como afirma James Clifford acerca de novas formas de se fazer uma etnografia, “os termos se superpõem, designando complexos âmbitos de identificação e não identidades diferenciadas”4 (CLIFFORD, 1999, p.101). Não entrarei nas discussões e divergências entre as diversas correntes etnográficas; apenas pretendo trazer aqui alguns apontamentos que podem ser interessantes para a experimentação metodológica que aqui exercito, por enquanto restrito às teorizações de Janice Caiafa (2007) e James Clifford (1999; 2002).

Em alguns de seus textos, estes dois autores demonstram uma preocupação crítica em dizer o que segundo eles seriam versões centradas na figura e autoridade do etnógrafo e em uma interpretação dos dados de campo. Partindo dos pioneiros estudos de Malinowski, Caiafa (2007) irá afirmar que este “intentava antes de tudo descrever e, em ampla medida, interpretar à luz de teses funcionalistas, certas instituições sociais, que eram recortadas no contexto de um presente que se reduzia ao período de sua presença no grupo” (p.137). Seria uma forma de conceber o fato observado como ilustrativo do todo, talvez como um simulacro de como aquela sociedade analisada se estruturava e agia cotidianamente. É uma concepção um tanto quanto pretensiosa e individualista, ainda mais porque creditava ao etnógrafo a responsabilidade de trazer para “nós” este “outro” exótico e pesquisável. Porém, apoiada em Clifford, Caiafa (2007) sublinha que Malinowski coletou um grande volume de dados e muitos destes não foram interpretados

4 Tradução livre, no original: “Los términos se superponen, designando ámbitos complejos de identificación, no identidades diferenciadas” (CLIFFORD, 1999, p.101). 27

segundo seu modelo funcionalista de etnografia. Tais dados permaneceram crus em seu texto, sendo possível, segundo tal autora, percebermos nestes o eco das vozes dos trobriandeses, sociedade na qual Malinowski constituiu seus estudos etnográficos.

Este eco de outras vozes é um ponto importante na etnografia: como, no relato de um pesquisador, aparecerão os outros sujeitos participantes do campo? O etnógrafo, ao final de sua pesquisa, analisará sua estada em campo e produzirá um relato escrito. O que este deve contemplar? De que forma?

Apoiados nos estudos linguísticos de Bakhtin, tanto Clifford (2002) quanto Caiafa (2007) defenderão a polifonia do campo, o exercício de experimentação de formas de escrita que contemplem toda a diversidade do campo, incluída a participação implicada do pesquisador, nunca neutro nem apenas um observador-participante. Assim como na cartografia, o pesquisador neste tipo de etnografia é despido de autoridade e colocado ao lado de outros na produção do campo.

Recorrendo novamente a Janice Caiafa e sua forma de pensar o trabalho de campo, encontramos a ideia de que este é um tipo de viagem na qual ocorrerá a experimentação de um estranhamento disponível “para a exposição à novidade, quer a encontre muito longe ou na vizinhança” (CAIAFA, 2007, p.149). Este estranhamento é processual e um tipo de método- pensamento que, assim como a “política cognitiva” do cartógrafo, norteará o posicionamento e inserção do pesquisador no campo. Antropofagicamente5 amparada em escritos de Deleuze e Guattari, esta autora defende o trabalho de campo como “se deixar afetar pelos acontecimentos no campo” (CAIAFA, 2007, p.151), acompanhando os agenciamentos produzidos neste. Ela indica que a simpatia é o afeto que conectará pesquisador e campo, pois esta não provoca nem o distanciamento do “olhar do entendimento” nem uma identificação que nos confundiria com o outro (CAIAFA, 2007, p.152). Simpatia permite o agenciar com, talvez possamos dizer que é fazer rizoma com. Este afeto “envolve algo diferente, um feeling with, sentir com (...) partilhar a paixão (...) a simpatia é a afecção nos agenciamentos. Para o trabalho de campo é preciso

5 Nas palavras de Oswald de Andrade em seu “Manifesto Antropofágico” (1928): “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. Seria uma proposta de que estamos sempre em um movimento de produção antropofágica da realidade. Suely Rolnik recupera esta ideia para pensar a hipótese antropofágica da constituição das subjetividades no Brasil em consonância com a esquizoanálise proposta por Deleuze e Guattari (1998). 28

simpatia” (CAIAFA, 2007, p.153-154). A simpatia não será dada, mas é um exercício de produção da pesquisa e do campo.

Não se encontra ausente da etnografia polifônica ou dialógica uma busca por significados, porém estes só existirão se cunhados no campo, coletiva e performativamente. Não há um significado a priori que seria revelado na análise posterior dos dados; ao contrário, o significado se faz no campo, reduzido ao momento da pesquisa e às relações estabelecidas naquele recorte. É parcial, provisório, em movimento, “uma arena carnavalesca de diversidade” e não um “tour de force de totalização cultural ou histórica” (CLIFFORD, 2002, p.49-50). Desta forma, a etnografia se aproxima da cartografia em suas tentativas de se constituírem enquanto métodos produtores de realidades e abertos aos acasos e ao cotidiano.

James Clifford (1999) nos dá um belo exemplo destes movimentos e imprevisibilidade do campo ao resgatar a breve trajetória de Bernard Deacon, antropólogo que faleceu aos 24 anos em 1926, enquanto ainda estagiava na Ilha de Malekula, na região das Novas Hébridas. Deacon não teve tempo para escrever e organizar sua obra, mas suas cartas enviadas à amiga Margaret Gardiner foram publicadas e, nas palavras de Clifford, “preservam a raridade irredutível e a originalidade de sua maneira de pensar. Dotado de uma inteligência suprema, se permite estar confundido”6 (CLIFFORD, 1999, p.67). Este narrador adverte que este registro é composto por cartas de amor e confissões pessoais, porém podemos pensá-los como outra forma de experimentação da escrita, na qual as impressões e análise de implicações do pesquisador se fazem absolutamente sensíveis: “ao longo das cartas, os discursos amorosos e científicos se mesclam inesperada e emocionadamente”7 (CLIFFORD, 1999, p.68-69). Deacon acabou por fazer um trabalho cambiante, entre o científico e o literário.

Afirmar que os dados serão provisórios e cunhados no campo não tira do material da pesquisa a potencialidade de tornar-se vivo em novos arranjos ou diálogos posteriores: o trabalho acadêmico pretende dizer algo sobre determinada realidade e no momento mesmo em que se efetiva e é tornado público, oferece-se vulneravelmente a outros pesquisadores ou quem possa se

6 Tradução livre, no original: “preservan la rareza irreductible y la originalidad de su manera de pensar. Dotado de una inteligencia suprema, se permite estar confundido” (CLIFFORD, 1999, p.67). 7 Tradução livre, no original: “A lo largo de las cartas, los discursos amorosos y científicos se entremezclan inesperada y conmovedoramente” (CLIFFORD, 1999, p.68-69). 29

interessar por aquele material. Poder ser recriado e relido de diversas outras formas é premissa básica de sua vivacidade e sentido que um texto acadêmico poderá ter.

O método cartográfico se preocupa com a forma como será o registro escrito de toda a diversidade e vozes produzidas no campo, mas talvez não tenha se debruçado tanto sobre a composição de tal registro como a etnografia. O diário de campo é ferramenta básica para o etnógrafo desde o surgimento deste método. Mas o que deve constar neste? Defende-se que ele deve ser um registro o mais livre e fiel ao campo, mas qual será o seu lugar no feitio da análise etnográfica?

Renunciando a pretensões interpretativas, podemos conceber o registro etnográfico como uma experimentação, já que este também se encontra circunscrito ao todo coletivo da pesquisa. Este exercício de trazer para o texto escrito as muitas vozes do campo levou a diversos exemplos, como o discurso direto e a transcrição literal da fala dos informantes. Porém ele deve ser mais do que isto e conseguir um diálogo flexível, no qual “os discursos se interferem em alguma medida” e haja uma despreocupação com as fronteiras da escrita levando o etnógrafo a por “sua voz em enunciação coletiva com as vozes que entram em seu relato” (CAIAFA, 2007, p.165). As referidas cartas de Bernard Deacon nos parecem deste tipo, a acreditarmos nos escritos de James Clifford sobre estas (1999).

Desta forma, tentar-se-á aqui uma produção coletiva que dissolva a autoridade, além de assumir-se como produção e não interpretação. Talvez caiba a afirmação de Deleuze e Guattari sobre escrever a dois, circunscrita aqui à produção do livro “Anti-Édipo”: “O processo é aquilo a que chamamos o fluxo. Ora, ainda aí, o fluxo é uma noção de que precisávamos como noção qualquer não qualificada. Isso pode ser um fluxo de palavras, de ideias, de merda, de dinheiro (...): isso supera todas as dualidades. Sonhávamos este livro como um livro-fluxo” (DELEUZE E GUATTARI, 1976, p.61, grifos meus). A tentativa da escrita etnográfica seria a tentativa de um livro-fluxo? Ambos se arriscam em suas experimentações objetivando acompanhar os processos coletivos em toda sua diversidade. Pensar estes tipos de escrita pode ser um caminho tanto para a etnografia quanto para a cartografia. Ou mesmo para uma nova forma híbrida ou não plenamente nomeada de pesquisa.

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1.3. Come blow your horn, start celebrating

E o que seria esta forma outra de pesquisa? Seria mesmo diversa ou apenas um novo arranjo de métodos já conhecidos e estabelecidos? Não tenho aqui a pretensão de criar um novo método; apenas quero utilizar-me das ferramentas metodológicas que dispomos para experimentar um caminho que seja o mais coerente possível com os movimentos e movimentações de drag queens sobre os quais pretendo alguma coisa dizer. O esforço é para nos abrirmos à construção de uma ciência nômade que acompanhe estes movimentos drag, pois, como nos diz Deleuze e Guattari, “o díspar, como elemento da ciência nômade, remete mais ao par material-forças do que ao da matéria-forma. Já não se trata exatamente de extrair constantes a partir de variáveis, porém de colocar as próprias variáveis em estado de variação contínua” (2008, p. 38, grifos meus).

Concebemos uma drag queen como uma personagem exuberante e provocativa, na maioria das vezes constituída sob um viés cômico ou parodístico. Conforme afirmamos, “na contemporaneidade encontra seu espaço em festas, eventos e boates voltados para o público homossexual. Elas são um tipo de embaixadoras da causa gay, a comissão de frente, o destaque principal e o próprio carro alegórico de uma carnavalização da homossexualidade” (LOPES; UZIEL, 2010, p. 145). Esta personagem brinca com seu corpo através da construção de uma corporalidade marcada pelo movimento: uma bricolagem de elementos será produzida e recriada constantemente, dotando aquele ser do frescor da novidade e da surpresa. Drag queen se relaciona a transformações, à criação de um ser sempre outro e novo e é esta possibilidade de movimento que pretendo destacar neste trabalho. Cabe ressaltar que, ao mesmo tempo em que pensamos esta constante recriação de si, vejo as drag queens como uma categoria de contornos definidos e mais ou menos fixos; há um constante trânsito e diálogo entre micro e macro, transformações e cristalizações, de modo que estes se efetivam não em oposição, mas sim em uma complexa e diversa complementaridade na constituição dos corpos.

Na tentativa de dizer destes movimentos sem capturá-los de forma estéril, utilizarei nesta construção metodológica algumas teorizações de James Clifford (1999) e Guacira Lopes Louro (2004) sobre viagens e o ato de viajar, como também lançarei mão do tratado de nomadologia de Deleuze e Guattari (2008). Isto posto, proporei esta noção de passeios, inspirada na 31

experimentação dos bosques de Umberto Eco (1994) e no campo (tema) de pesquisa propriamente dito.

* * *

Ru Paul é uma drag queen norte-americana conhecida mundialmente e que tem a seguinte máxima: “You are born naked and the rest is drag” (citada por VENCATO, 2002, p.35). Ser uma drag queen é basicamente transformar-se, ou melhor, se montar. Este termo, juntamente com sua versão gramaticamente substantivada “montaria”, é apontado por Vencato (2002) como o indicador do ato da travestilidade feminina8. A montaria, assim como o trabalho de personificação das female impersonators não seria apenas a simples colocação de roupas, maquiagem e acessórios femininos, mas todo um processo de tornar-se um ser feminino e assumir-se deste modo (o que pode ser feito de diversas formas e nuances). Deste modo, uma drag só existiria em sua transformação, em sua potencialidade de ser outro/a/s, em um devir- drag9. Novamente recorro às palavras de Guacira Lopes Louro,

De que material, traços, restos e vestígios ela se faz? Como se faz? Como fabrica seu corpo? Onde busca as referências para seus gestos, seu modo de ser e de estar? A quem imita? Que princípios ou normas cita e repete? Onde os aprendeu? A drag escancara a construtividade dos gêneros. Perambulando por um território inabitável, confundindo e tumultuando, sua figura passa a indicar que a fronteira está muito perto e que pode ser visitada a qualquer momento. Ela assume a transitoriedade, ela se satisfaz com as justaposições inesperadas e com as misturas. A drag é mais de um. Mais de uma identidade, mais de um gênero, propositadamente ambígua em sua sexualidade e em seus afetos. Feita deliberadamente de excessos, ela encarna a proliferação e vive à deriva, como um viajante pós-moderno (LOURO, 2004, p.21, grifos no original).

8 Utilizarei o termo travestilidade em detrimento de travestismo. Apesar deste último ser largamente utilizado e reconhecido por muitas drags e, principalmente, por transformistas e artistas travestis e transexuais, faço aqui uma investida no potencial afirmativo do termo travestilidade. O sufixo “ismo” denota um caráter patológico e remete a um comportamento negativamente desviante, como em “homossexualismo”. Este, apesar de muitas vezes ter sido e ainda ser utilizado de forma positiva e não preconceituosa, pode, ao menos linguista e discursivamente, facilmente ser associado às diversas síndromes e transtornos que brotam com cada vez mais força em nossa sociedade. Assim como na preocupação teórica, social e política de se transformar o “homossexualismo” em “homossexualidade”, travestilidade será utilizada de forma ampla e abarcando as mais diversas nuances deste modo de se ser feminino. 9 Posteriormente retomarei esta noção do devir-drag. 32

A drag seria uma viajante e somente acompanhando seu movimento de fazer-se entre outros que podemos dizer algo sobre ela. Guacira Louro ainda sugere que talvez ela seja uma espécie de nômade (2004 p.21) e que se situa em local fronteiriço. Sobre este posicionamento, recorre a James Clifford para afirmar que “a fronteira é lugar de relação, região de encontro, cruzamento e confronto” (2004, p.19). A fronteira seria então a localização da própria viagem, região de difícil denominação identitária, pois apesar de muitas vezes querer-se delimitar e separar precisamente um local de outro, as misturas entre estes são inevitáveis. E este movimento é marcado pela ambiguidade e pode ser mesmo paradoxal.

Clifford postula que de diversas formas e em diferentes graus, todos estamos em algum tipo de trânsito e relações, além de que as localizações advêm de um trânsito anterior. Para este, “os centros culturais, as regiões e territórios delimitados, não são anteriores aos contatos, mas se afirmam por seu intermédio e, neste processo, se apropriam de incansáveis movimentos de pessoas e coisas, e os disciplinam”10 (CLIFFORD, 1999, p.14). Este antropólogo desenvolverá, por exemplo, a ideia de que mesmo a etnografia clássica de uma comunidade localizada no tempo e no espaço não está isenta de alguns trânsitos, como o do etnógrafo que para lá foi; seu posicionamento no campo sendo constantemente negociado entre o que pretende, é obrigado ou acha melhor fazer; as relações mantidas por aquela comunidade com outras; membros que viajaram e voltaram; pessoas que partiram e não retornaram; entre diversos outros movimentos possíveis. Não há como estarmos fora de trânsitos, mesmo aquele que permanece fixo em um lugar está em relação – ou mesmo à espera – de pelo menos alguns daqueles que transitam. As culturas, bem como nossas subjetividades, se constituem através destes diversos trânsitos e a pretensão de abarcarmo-las como uma totalidade qualquer é apenas uma ilusão. Clifford propõe concebermos o trabalho de campo como uma metáfora transversal “encontros de viagem”, ao contrário do “campo como prática naturalizada de residência”11 (CLIFFORD, 1999, p.89, grifos no original). Apesar de buscar uma desinstitucionalização desta noção de campo, este também nos alerta para o risco de institucionalizarmos esta nova concepção como melhor do que a que busca residência ou outras.

10 Tradução livre, no original: “Los centros culturales, las regiones y territorios delimitados, no son anteriores a los contactos, sino que se afianzan por su intermedio y, en ese proceso, se aproprian de los movimientos incansables de personas y cosas, y los disciplian” (CLIFFORD, 1999, p. 14). 11 Tradução livre, no original: “encuentros de viaje” “el campo como práctica naturalizada de ‘residencia’” (CLIFFORD, 1999, p.89). 33

Além disso, como se faz este trânsito de viagens? James Clifford chamará a atenção para a naturalização, e um possível etnocentrismo transfigurado de etnografia, que ocorre ao pensamos a viagem etnográfica partindo do Ocidente (lê-se América do Norte e Europa) para o Oriente ou países periféricos. É reconhecido ainda que se analisarmos o histórico acadêmico de práticas etnográficas (sem considerarmos os relatos de viagens), veremos que quem viaja é um sujeito masculino, ocidental e de classe média alta (CLIFFORD, 1999, p.88). Seguindo estes ecos de Clifford, Guacira Louro perguntará “quem é e quem pode ser viajante?” (LOURO, 2004, p.18, grifos no original): quais os trânsitos permitidos para homens, mulheres, índios, negros, nordestinos e tantos outros? E o trânsito do migrante que busca uma localidade para fixar-se? O do exilado que é obrigado a se refugiar em outro lugar? Ou ainda o de tantas pessoas violentamente traficadas para trabalhos forçados, entre outros? Não são equivalentes e sujeitos diferentes experienciam diversamente os trânsitos a que lhe são permitidos.

Novamente recorrendo a James Clifford, notamos que este se interessa pela viagem como uma metáfora e, segundo suas palavras,

A viagem, tal como utilizo o termo, abarca uma variedade de práticas mais ou menos voluntaristas de abandonar o lugar para ir a outro lugar. O deslocamento ocorre com um propósito de ganhos: material, espiritual, científico. Envolve obter conhecimento e/ou ter uma experiência (excitante, edificante, agradável, de estranhamento ou de ampliação de horizontes)12 (CLIFFORD, 1999, p.88, grifos no original).

Apesar de insistir na viagem como metáfora e que o trabalho de campo deveria ser visto como encontros de viagem, este teórico parece não conceber a viagem como o próprio trabalho de campo. Clifford sublinha a sobreposição de culturas e lugares e alerta para a inexistência de uma sociedade que seja abarcável em si mesma; para ele, não há culturas isoladas nem uma comunidade que não possua viajantes. Este argumento é interessante, mas onde se poderia tentar nomear uma viagem como o próprio campo de pesquisa, o referido autor parece não se permitir arriscar tanto quanto a concepção de sua proposta de viagem como metáfora exigiria. Uma viagem e todos os seus percursos não poderia se constituir como um campo? Para Clifford parece

12 Tradução livre, no original: “El ‘viaje’, tal como utilizo o término, abarca una variedad de prácticas más o menos voluntaristas de abandonar ‘el hogar’ para ir a ‘otro’ lugar. El desplazamiento ocurre con un propósito de ganancia: material, espiritual, científica. Entraña obtener conocimiento y/o tener una ‘experiencia’ (excitante, edificante, placentera, de extrañamiento o de ampliación de horizontes)” (CLIFFORD, 1999, p.88). 34

que não e exemplo disto é que ele não abandona por completo a necessidade de um trabalho de campo tradicional e que este ainda se encontra no cerne da formação de um antropólogo ou etnógrafo. Este campo é concebido por ele como atravessado por diversos tipos de trânsitos, porém se faz necessário dentro da antropologia e da etnografia.

A viagem e os trânsitos, incluindo as movimentações do pesquisador que viaja com fins acadêmicos, fazem parte do campo, mas este não pode se constituir como aqueles. James Clifford parece querer assinalar a necessidade de uma análise mais ampla do que tradicionalmente se concebe como campo e que este nunca se institui de forma isolada. Ele frisa que um campo é sempre algo produzido e nunca ontologicamente dado e que “este deve ser trabalhado, transformado em um espaço social distinto, pelas práticas concretizadas da viagem interativa”13 (CLIFFORD, 1999, p.73), viagem esta que pode ser concebida como a ida do pesquisador ao que delimitou como seu campo ou mesmo o exercício de construção daquilo que será nomeado como seu campo. Porém nos postulados deste autor e em sua proposta de experimentação etnográfica, as fronteiras disciplinares da etnografia e o lugar historicamente construído de seu profissional/pesquisador têm um peso bastante grande. Clifford dissertará sobre as fronteiras disciplinares da antropologia com outros campos do saber, como a sociologia com a qual mantém certa separação e diferenciação ou os estudos culturais, que muitas vezes podem facilmente ser confundidos com a antropologia (CLIFFORD, 1999, p.82-83). O trabalho de campo e uma visão antropológica advinda da construção deste aparecem aqui como marcadores fundamentais de diferenciação disciplinar e nos dizeres de Clifford, principalmente o primeiro funciona “como rito de passagem e como marca de profissionalismo”14 (CLIFFORD, 1999, p.82).

Clifford se esforça para abrir importantes brechas nas fronteiras que delimitam o que nomearíamos como trabalho de campo e cabe aqui transcrever as palavras nas quais dirá um pouco mais acerca da maleabilidade de sua noção de viagem e provisoriedade dos nomes e conceitos, tornando-os transitórios e em também em viagem:

Insisto na viagem como termo de comparação cultural, devido precisamente a sua conotação histórica, suas associações com corpos raciais e de gêneros distintos, privilégios de classe, meios

13 Tradução livre, no original: “Este debe ser trabajado, transformado en un espacio social distincto, por las prácticas corporizadas del viaje interactivo” (CLIFFORD, 1999, p. 73). 14 Tradução livre, no original: “como rito de pasaje y como marca de profesionalismo” (CLIFFORD, 1999, p.82). 35

específicos de transferências, caminhos trilhados, agentes, fronteiras, documentos, etc. O prefiro a outros termos aparentemente mais neutros e teóricos (...) não existem termos ou conceitos neutros, não contaminados. Um estudo cultural comparativo precisa trabalhar, de forma autocrítica, com ferramentas comprometidas, advindas de uma trajetória histórica.

Hoje tenho trabalhado (...) a viagem como um termo de tradução. Por termo de tradução quero dizer uma palavra de aplicação aparentemente geral, utilizada para comparação de um modo estratégico e contingente. A viagem tem um tom preciso de localização por classe, gênero, raça, e certo caráter literário. É uma boa lembrança de que todos os termos de tradução utilizados em comparações globais, tais como cultura, arte, sociedade, agricultor, modo de produção, homem, mulher, modernidade, etnografia, nos satisfazem durante um tempo e logo se desmoronam. Traduttore tradittore15 (CLIFFORD, 1999, p.55-56, grifos no original).

Esta metáfora da viagem me parece flexível o suficiente para ser um termo de tradução adaptável e transformado segundo necessidade do pesquisador, ao contrário de um termo generalista que pretenda abarcar um conceito universalizante. A linha entre os dois movimentos parece tênue, porém é praticamente inegável que trabalhamos com diversos tipos de categorizações e mesmo comparações, as quais podem ser arbitrárias e hierarquizantes, mas também concebidas como provisórias e heterogêneas. Os conceitos e o modo como os criamos e utilizamos estão igualmente em trânsito, possuem suas fronteiras e se fazem como viajantes.

Ressalto novamente as fronteiras, trânsitos e tensões entre as muitas disciplinas acadêmicas nas quais nos inserimos e produzimos. O que a psicologia tem de antropologia, filosofia e artes e estas daquelas e de outras? E a psicologia social onde se insere, aliás, que tipo de psicologia social? Não arriscarei uma resposta, problematizá-las é minha intenção. E não de uma forma gratuita para apenas limitar e defender territórios, mas de forma a reconhecermos que nossas produções também se fazem em trânsitos e são transitórias. Só assim poderemos dizer algo de nossos temas, objetos, etc. A realidade – e a ficção que nela transita – é viva e nos obriga a transitar por diferentes saberes e locais, dissolvendo fronteiras. Nosso esforço deve ser o de manter este espaço fronteiriço, nos sustentarmos neste “entre” de indeterminação – e muitas

15 Tradução livre, no original: “Insisto en el ‘viaje’ como término de comparación cultural, debido precisamente a su coloración histórica, sus asociaciones con cuerpos raciales y de distinto género, privilegios de clase, medios específicos de traspaso, caminos trillados, agentes, fronteras, documentos, etc. Lo prefiero a otros términos aparentemente más neutrales y ‘teóricos’ (...) no hay términos o conceptos neutrales, no contaminados. Un estudio cultural comparativo necesita trabajar, autocríticamente, con herramientas comprometidas, provistas de un bagaje histórico.

Hoy he trabajado (...) el ‘viaje’ como un término de traducción. Por ‘término de traducción’, quiero decir una palabra de aplicación aparentemente general, utilizada para la comparación de un modo estratégico y contingente. El ‘viaje’ tiene un tinte inextinguible de localización por clase, género, raza, y cierto carácter literario. Es un buen recordatorio de que todos los términos de traducción utilizados en comparaciones globales, tales como ‘cultura’, ‘arte’, ‘sociedad’, ‘agricultor’, ‘modo de producción’, ‘hombre’, ‘mujer’, ‘modernidad’, ‘etnografía’, nos llevan durante un trecho y luego se desmoronan. Traduttore tradittore. (CLIFFORD, 1999, p. 55-56)”. 36

tensões – ao invés de criarmos um novo território com nome, normas e regras delimitadas e irredutíveis. Mas não confundamos esta irredutibilidade com o rigor e princípios necessários a qualquer investigação acadêmica/científica/artística. É necessária “uma dessacralização prática do espaço” (FOUCAULT, 2001, p. 413), a qual, segundo Michel Foucault, ainda não foi totalmente efetivada. Apesar de haver diversos trânsitos na contemporaneidade e o espaço se organizar segundo “relações de posicionamentos” (FOUCAULT, 2001, p.413), as fronteiras continuam sendo vigiadas e reafirmadas em toda sua sacralidade, amém.

Talvez o caminho para aqui trilharmos seja o de uma abordagem heterogênea para sujeitos heterogêneos – os quais, em última análise, seriam todos e todas nós! –, pretendendo, assim como os ensaios de Clifford e a proposta cartográfica de acompanhamento das linhas que formam nossas subjetividades, traçar “um caminho, não um mapa. Como estes, seguem o contorno de uma paisagem intelectual e institucional específica, um terreno que tenho tratado de evocar com a justaposição de textos referidos a ocasiões diferentes e sem unificar a forma e estilo de minha escrita”16 (CLIFFORD, 1999, p.24). Proponho-me a construir caminhos, no plural, passeando pela paisagem drag queen do Rio de Janeiro, experimentando acompanhá-las nesta “mistura de estilos [que] evoca estas práticas múltiplas e desemparelhadas de investigação, tornando visíveis os limites do trabalho acadêmico”17 (CLIFFORD, 1999, p.24). O trabalho acadêmico é local e provisório e nossas teorizações são apenas “cortes secos” (PASSOS, 2009) no dinâmico e performativo fluxo social.

Uma drag queen parece se constituir na materialização de movimentos de devires. Ou melhor, esta se constitui tanto de movimentos como de cristalizações. Temos ali um ser com um nome – que muitas vezes nomeará também o/a artista que encarna aquela drag –, características, montarias e números mais ou menos fixos que logo identificam aquela personagem específica. Apesar de usar as mais variadas e inesperadas roupas e acessórios, Suzy Brasil mantém caracteres básicos em sua constituição, como o mesmo tom de voz, gestos, diversas pintas pelo rosto, cabelo desgrenhado independente do tipo e cor da peruca e aqueles seus dentes da frente sempre ausentes, emoldurados por sua boca escrachada em tons de vermelho ou outras cores vívidas. Ou

16 Tradução livre, no original: “caminos, no un mapa. Como tales, siguen el contorno de un paisaje intelectual e institucional específico, un terreno que he tratado de evocar con la yuxtaposición de textos referidos a ocasiones diferentes y sin unificar la forma y el estilo de mi escritura” (CLIFFORD, 1999, p.24). 17 Tradução livre, no original: “La mezcla de estilos evoca estas prácticas múltiples y desparejas de investigación, haciendo visibles los límites del trabajo académico” (CLIFFORD, 1999, p.24). 37

a histórica drag Isabelita dos Patins, um verdadeiro ícone e modelo de personagem da travestilidade: cabelos negros sempre presos em um coque e encimado por uma tiara, rosto branco com olhos bela e artisticamente desenhados, roupas detalhadamente ricas e com variações de sua saia tipo tutu, leque vivo à mão e seus tradicionais patins que, mesmo quando substituídos por botas, deslizam em seu andar elegante e imponente.

E temos também uma abertura e busca pelo inusitado, pela novidade e o improviso atuando constitutivamente no ser e estar das drag queens. A desestabilização e possibilidades abertas pelo movimento e acontecimento tomam um lugar de grande destaque, são o grande foco ativo-afetivo da ação, o que parece a colocar em um posicionamento no qual os movimentos e ações potencialmente libertárias são possíveis. E estes devem escapar no momento mesmo de sua criação, sendo processados de diferentes formas por distintos espectadores. Talvez a memória os guarde, mas não sem sempre transformá-los a cada vez que desejar acessá-los.

O nomadismo e a possibilidade nômade também seriam libertários e, apesar de James Clifford resistir em conceber ao menos terminologicamente sua noção de viagem no trabalho etnográfico como nômade, tais concepções podem ser pensadas como justapostas ou mesmo em algum tipo de complementaridade. Clifford postula que prefere o termo viagem a “termos tais como nomadismo, frequentemente generalizado, sem resistência aparente por parte das experiências não ocidentais. (Nomadologia: uma forma de primitivismo pós-moderno?)”18 (CLIFFORD, 1999, p.55). Ainda que tomem como referência para suas teorizações os nômades do deserto (o que para Clifford poderia ser um ocidentalismo preconceituoso ou este primitivismo pós-moderno), Deleuze e Guattari (2008) nos trazem um interessante modelo de uma máquina de guerra dotada de movimento, potencialidade de afirmação e luta contra o Estado19.

Estes autores conceberão o Estado como o aprisionador por excelência e que toda produção advinda deste será também aprisionadora. Não haveria como se formular qualquer política de Estado que não promovesse uma massificação dos sujeitos e desta forma inventar-se- ia determinado sujeito para aquele Estado: ao ter leis e normas para cumprir desde sempre, os sujeitos serão formados segundo tais preceitos. Porém, contrapondo-se a esta máquina do Estado,

18 Tradução livre, no original: “términos tales como ‘nomadismo’, a menudo generalizado, sin resistencia aparente por parte de lãs experiencias no occidentales. (Nomadología: ¿una forma del primitivismo posmoderno?)” (CLIFFORD, 1999, p.55).

19 Apesar do termo Estado neste texto de D&G se referir ao Estado nacional propriamente dito, pensemo-los como o instituído e não apenas esta macroesfera político-econômica. 38

há a máquina de guerra nômade, a qual, apesar de guerrear contra o Estado, afirma positivamente sua existência independente de um Estado contra o qual se opor. Ela é exterior ao aparelho do Estado e advém daí sua afirmação positiva e seu enfrentamento àquele. Como alertam Deleuze e Guattari, “o que complica tudo é que essa potência extrínseca da máquina de guerra tende, em certas circunstâncias, a confundir-se com uma ou outra das cabeças do aparelho de Estado. Ora se confunde com a violência mágica de Estado, ora com a instituição militar de Estado” (DELEUZE E GUATTARI, 2008, p.15), as quais guardam certa independência ao Estado, além de facilmente apropriarem-se e institucionalizarem práticas guerreiras nômades.

Mas o que seria esta máquina de guerra? Os referidos autores vão dizer que ela é uma outra lógica, outra forma de estruturação, em outros espaços. São devires-nômades, desterritorializadores sem necessidade de uma rápida reterritorialização. A máquina de guerra se faz contra o Estado regente como contra a própria virtualidade de um Estado e, nas palavras de Deleuze e Guattari, suas regras “animam uma indisciplina fundamental do guerreiro, um questionamento da hierarquia, uma chantagem perpétua de abandono e traição, um sentido da honra muito suscetível, e que contraria, ainda uma vez, a formação do Estado” (DELEUZE E GUATTARI, 2008, p.21).

A máquina de guerra não se permite fixar-se e quando ocorre de sua lógica ser capturada pelo Estado, transmuta-se em outra. Deleuze e Guattari discorrerão sobre uma ciência régia e uma ciência nômade, a primeira tendo “um poder teoremático ou axiomático (...) [de] subtrair todas as operações das condições da intuição para convertê-las em verdadeiros conceitos intrínsecos ou categorias” (2008, p.42, grifos no original), ao passo que uma ciência nômade ou ambulante contentar-se-ia “em inventar problemas, cuja solução remeteria a todo um conjunto de atividades coletivas e não científicas, mas cuja solução científica depende, ao contrário, da ciência régia, e da maneira pela qual esta ciência de início transformou o problema” (DELEUZE E GUATTARI, 2008, p.42, grifos no original). São modelos diferentes e não necessariamente excludentes, ao passo viverem em constante combate.

E se pensássemos nos nômades de hoje, quem seriam? Deleuze e Guattari dissertarão sobre um nomadismo do pensamento, de modo que figuras como o filósofo e o artista poderiam ser nomeados como nômades. Mas não basta pertencer à determinada categoria para se ser nômade, muito ao contrário: a filosofia em sua história serviu mais ao Estado do que à liberdade, 39

do mesmo modo que artistas foram empregados e coadunadores diretos de poderosos. Talvez a arte e a filosofia, assim como outras disciplinas e/ou territórios, guardem a potência de virem a ser nômades, desde que se façam no devir, na afirmação da diferença, criando “novas formas de vida e de sensibilidade” (SCHÖPKE, 2004, p.174).

Parece haver um componente nômade na constituição do processo de criação artística, uma potência que se transformará em objeto estético dos mais variados tipos e finalidades. Uma drag então pode ser nômade, como também pode não ser. Os fluxos e os jogos de força e posicionamentos é que determinarão a implicação nômade. Cabe lembrar que este nomadismo conquistado a duras penas pode se perder em um segundo; “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”, como cantaria Gal Costa na belíssima e apropriada canção “Divino maravilhoso”, dos também um dia nômades e tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil. Além disso, não seria o nomadismo por si só que caracterizaria algo como aberto aos fluxos e devires, nem algo minimamente estático que não tenha o menor grau de movimento: fluxos e formas se relacionam de forma performativa e complementar, de modo que um movimento não necessariamente deve ser considerado melhor do que outro. Foco aqui nos fluxos e movimentos e se por vezes tenho falado de trânsitos, fronteiras e devires, talvez promovendo um elogio a tais movimentos, é com o objetivo de reconhecê-los na constituição da personagem drag queen, bem como no meio social, constituição dos corpos, entre outros. Não se trata de substituir um modelo por outro, mas sim trazê-los em toda sua complexidade e complementaridade e o “elogio às movimentações” se faz como uma luta contra uma investida estéril em determinado modelo.

Este nomadismo proposto por Deleuze e Guattari se efetiva como uma exterioridade em um espaço liso que deve ser ocupado sem a pretensão de medi-lo, controlá-lo ou traçar rotas precisas e funcionais. O espaço liso guarda a potencialidade de infinitos traçados e movimentos, sendo sempre um espaço virtual de transformação. O nômade, neste registro, não se definirá pelo movimento de um ponto a outro, mas sim pela permanência neste espaço de imprecisão, potencialidade e virtualidade. Devido a isso, ele pode ser “aquele que não se move. Enquanto o migrante abandona um meio tornado amorfo ou ingrato, o nômade é aquele que não parte, não quer partir, que se agarra a esse espaço liso onde a floresta recua, onde a estepe ou o deserto crescem, e inventa o nomadismo como resposta a esse desafio” (DELEUZE E GUATTARI, 2008, p.52, grifos no original). O nômade faz sua casa na corda bamba, só se equilibra se há a 40

possibilidade de movimento ou se o sedentarismo se aproxima e ameaça se instaurar. É um apaixonado pela possibilidade de existir, um viajante pronto para passear, seja por bosques, praias, estepes, platôs... Passeemos por sua arte!

1.4. It's only a Cabaret, old chum, and I love a Cabaret!

Umberto Eco em sua obra “Seis passeios pelos bosques da ficção” percorre alguns bosques referentes à criação literária e seus títulos nos são mais do que ilustrativos: “Entrando no bosque”; “Os bosques de Loisy”; “Divagando pelo bosque”; “Bosques possíveis”; “O estranho caso da rue Servandoni” e “Protocolos ficcionais” (ECO, 1994, p.5). Este teórico italiano utiliza- se da noção de passeios por bosques para discorrer sobre temas como o lugar da literatura no meio social, processos de criação de uma história, estratégias narrativas, entre outros. Sobre o título de seu livro, Eco diz:

Já que tento justificar todos os títulos que tolamente escolho para minhas obras, permitam-me também justificar o título de minhas conferências Norton. Bosque é uma metáfora para o texto narrativo, não só para os textos dos contos de fadas, mas para qualquer texto narrativo. Há bosques como Dublin, onde em lugar de Chapeuzinho Vermelho podemos encontrar Molly Bloom, e bosques como Casablanca, no qual podemos encontrar Ilsa Lund ou Rick Blaine.

Usando uma metáfora criada por Jorge Luis Borges (...), um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção (ECO, 1994, p.12).

Este autor caminha por algumas trilhas, criando nos leitores a ambígua sensação de diversidade e unidade ao mesmo tempo. Seus ensaios são diversificados, mas seu projeto de dizer sobre algumas construções literárias parece ser um só. Eco não tem pretensões de abarcar um período histórico, um estilo literário, um autor, um tema específico... Ele segue caminhando e seu único fio condutor é a relação entre ficção e realidade nas ditas obras literárias ou ficcionais. Para este autor, um mundo ficcional pode ser mais confortável do que o mundo real, visto a não obrigatoriedade de uma coerência concreta ao passo que também pode ser mais complexo 41

justamente por ser um espaço liso e aberto às mais diversas fabulações e criações. Novamente nos encontramos equilibrando-nos na corda bamba. Quem encontraríamos nos nossos bosques?

O foco de Umberto Eco é a criação, seja ela fictícia ou real. Ele tentará quebrar estas barreiras, transitar por entre esta fronteira de ficção e realidade, seja através de teóricos argumentos lógicos, seja através de exemplos, como o estranho e curioso caso da criação da Ordem Rosa Cruz que teria suas raízes em narrativas ficcionais ou mesmo episódios reais que são adaptados para a ficção sem o fiel respeito aos fatos historicamente relatados. Sem entrarmos especificamente nas questões literárias e ficcionais que ele discute, detamo-nos no título de sua obra e em sua justificativa. Parece claro que este bosque, como concebido por Eco, é um espaço heterotópico, de encontros e passagem, além de não ter especificamente um trajeto obrigatório, como frisa o autor. Assim como , é um lugar de justaposições e diversos significados. Mesmo em seu por vezes tom sombrio – e talvez justamente por isso – o bosque guarda em si movimentos e possibilidades, um espaço de real utopia, como nos diria Foucault.

Por um bosque ou ao largo do bosque podemos sempre passear, pisar seu chão de leve, tocar suas árvores e folhas, nos demorar ali ou nos adiantar. Observar de longe ou embrenhar por suas trilhas. Porém, sempre temos ali aquele espaço de efetivação de experiência, por isso os passeios pelos bosques de Eco me interessa tanto neste trabalho: por que não passear pelos bosques da ficção drag queen? Ficção porque uma drag é uma criação artística que dialoga quiçá desconstruindo o real e criando uma nova realidade diletante e potencialidade transformativa. Mas talvez as drags, pelos menos as da cidade do Rio de Janeiro, não caibam bem em um bosque e não as encontremos lá. Visto todo este sol e calor que ultrapassa os 40 graus, acredito que as drag queens cariocas preferem uma praia e a sombra do guarda-sol ao de uma árvore.

Desta forma, saí dos bosques da literatura pelos quais Eco caminhou e me entreguei às praias abertas e múltiplas das drags queens – obra de arte sempre viva – na cidade do Rio de Janeiro. Nada mais conveniente, principalmente nesta trajetória em que elas foram acompanhadas em espaços diversificados como teatros, boates, uma associação atlética de bairro, em meio ao movimento da rua e algumas vezes literalmente à beira mar. Mesmo quando habitaram as paredes fechadas de uma boate ou de um teatro, sempre estiveram atentas aos movimentos, reações e intervenções do público, como também àquela zona de indefinição entre quem entra e quem sai, entre quem está ali e quem ainda poderá vir. A atenção a esta zona obriga o/a artista a sair de uma 42

posição confortável, jogando-se no imprevisível. Nada está estruturado ou pronto, mesmo que o show tenha sido repassado inúmeras vezes.

Nas praias também estão presentes os movimentos das ondas, as quais nunca sabemos como virão. Sabemos que elas sempre se fazem presentes e conhecemos minimamente seu quebrar, porém, nunca adivinhamos sua força, intensidade ou o modo como nos tomará, podendo inclusive nos lançar à areia. As drags e seus shows parecem se fazer assim como as ondas, ao passo que um livro, mesmo que seja concebido como aberto e com sua narrativa deixada nas mãos do leitor, não guarda o grau de abertura de algo executado e constituído ao vivo. Por isso preferi as praias com seus coloridos e surpresas aos bosques, muito calmos e estruturados para serem drag – mas não quero dizer com isso que os preteri, apenas preferi ficar junto ao mar neste momento. Como nos diz James Clifford, “as praias, lugares de interação de viagem, constituem a metade da história”20 (CLIFFORD, 1999, p.37). Cabe lembrar ainda que as praias são o grande cartão postal do Rio e são constitutivas da subjetividade de grande parte dos cariocas. Rio de Janeiro, mar, sol e calor! Muito calor!

Praia ainda se refere a áreas de interesse, o que poderia ser condizente com a ideia de um campo-tema como posto por Peter Spink (2008), mas tenhamos em mente aqui a noção da praia como um local aberto, de trânsito, encontros, misturas e movimentações. Foram algumas destas movimentações nas praias – em ambos os sentidos – habitadas pelas drag queens da cidade do Rio de Janeiro que acompanhei e apresentarei nas páginas a seguir. Preocupei-me em manter no formato da apresentação, na metodologia experimentada e no texto escrito, esta noção de movimento, que condiz com a potencialidade e criatividade presentes na constituição de uma drag queen.

Os capítulos desta dissertação guardam certa heterogeneidade, pois trazem diferentes espetáculos, apresentações, estilos e gerações de drag queens, transformistas, caricatas, travestis e transexuais que se dedicam ao show, traçando um panorama do que foi por mim acompanhado nos anos de 2009, 2010 e início de 2011 na cidade do Rio de Janeiro, principalmente em sua região central e zona sul. Porém, tanto estas artistas quanto os capítulos deste trabalho dialogam entre si, mas sem uma preocupação de um traçado linear: ora os capítulos se conectam

20 Tradução livre, no original: “Las playas, sitios de interacción de viaje, constituyen la mitad de la historia” (CLIFFORD, 1999, p.37). 43

claramente, ora conservam perceptíveis limites – dos relatos de campo e argumentações teóricas e/ou históricas – entre si. Provocado por determinado passeio, abordei um ou mais temas teóricos que julguei pertinente àquele corpus do campo em cada capítulo. Não sei se esta dissertação chega a também ser drag, mas a simples existência desta possibilidade tornou seu fazer mais prazeroso e livre de amarras tradicionalistas e cânones acadêmicos.

Mantendo esta tensão e o trânsito, exercitarei aqui a noção de passeios. Nestes, seguirei um método de colagem, ainda mais porque “seguir não é o mesmo que reproduzir, e nunca se segue a fim de reproduzir” (DELEUZE E GUATTARI, 2008, p.39, grifos no original), de modo que ela será aqui produtora de diferença. A colagem me serve como uma estética e um elogio à heterogeneidade e, como afirma James Clifford sobre sua própria utilização deste mesmo método de investigação e escrita,

O propósito de minha colagem não é diminuir, mas antes disso justapor formas distintas de evocação e análise. O método da colagem afirma uma relação entre elementos heterogêneos em um conjunto significativo. Une suas partes sem deixar de manter a tensão entre elas. O presente conjunto [ensaios que compõem o livro] desafia os leitores a envolverem-se com suas distintas partes de modo diferente, uma vez que permite às peças interagir em estruturas mais amplas de interferência e complementaridade. A estratégia não é só formal ou estética. Ao longo deste livro, tenho buscado um método para marcar e cruzar fronteiras (neste caso, aquelas vinculadas com a expressão acadêmica). Minha intenção tem sido mostrar que os domínios discursivos, tanto como as culturas, se constituem em suas margens controladas e transgredidas21 (CLIFFORD, 1999, p.24).

Tomei esta noção de passeios porque foi desta forma que saí e que geralmente saímos para ver um espetáculo. Fazemos um passeio para nos divertir. Paulo Nery (1998) se debruçou sobre os passeios feitos pelas classes populares do Triângulo Mineiro rumo à “prainha”, uma praia artificial delimitada à beira de um lago formado pelo represamento de um rio e que oferece descanso e divertimento, o “mundo da folga” em contraponto ao cotidiano “mundo do trabalho” (NERY, 1998, p. 134). Nery ressalta ainda que todo o trajeto rumo à “prainha” constitui em si

21 Tradução livre, no original: “El propósito de mi collage no es opacar sino más bien yuxtaponer distintas formas de evocación y análisis. El método del collage afirma una relación entre elementos heterogéneos en un conjunto significativo. Une sus partes sin dejar de sostener la tensión entre ellas. El presente conjunto desafía a los lectores a comprometerse con sus distintas partes de modos diferentes, a la vez que permite a las piezas interactuar en estructuras más amplias de interferencia y complementaridad. La estrategia no es sólo formal o estética. A lo largo del libro, he buscado un método para marcar y cruzar fronteras (en este caso, aquellas vinculadas con la expressión académica). Mi intención ha sido mostrar que los dominios discursivos, tanto como las culturas, se constituyen en sus márgenes controlados y transgredidos” (CLIFFORD, 1999, p.24). 44

mesmo um passeio, visto as tradicionais paradas em pontos específicos. Uma vez na “prainha”, frequentadores assíduos ou novatos ocupam cada qual seu canto, sendo que no caso dos primeiros é mais nítido o encontro com seus “amigos de prainha” e o partilhamento deste espaço de prazer, descanso e divertimento. Principalmente para estes, a “prainha funciona como catalizador de uma disposição culturalmente definida de encontrar os outros, sendo esses outros sua própria gente, nosso pessoal, nosso grupo, nossa turma” (NERY, 1998, p. 137, grifos no original).

Este autor afirma ainda que “os passeios populares podem ser compreendidos como rituais que se dirigem ao quintal da casa da gente, porque se trata de ir a um lugar retórico onde as condições do se pôr à vontade são imediatamente associadas ao estar em casa” (NERY, 1998, p.219, grifos no original). E acredito que é esta sensação de acolhimento e prazer, associada à provocação e partilhamento de uma manifestação estética, que as drag queens produzem juntamente com seu público. Hipoteticamente, o quintal da casa pode ser aberto por aquela senhora não tão estranha assim e então ouvimos muita música juntos, nos divertimos e observamos seus espetaculares movimentos de dança. A prosa segue os mais diversos temas, indo desde uma interação lúdica, afirmação de feminilidades, fofocas sobre os homens que todos ali desejam (ou não) e liberdade para se dizer palavrões ou debruçar-se sobre situações e construções escatológicas, até xingamentos, deboches de estereótipos positiva e negativamente associados à homossexualidade e a colocação em pauta de momentos de precariedades diversas, constrangimentos, discriminações e violências. E tudo de uma forma na qual a diversão nunca se perde e sempre se faz presente.

Complementando sua noção deste “estar em casa”, Paulo Nery recorre a estas palavras de Vincent Descombes, as quais cabem perfeitamente nos sentidos da interação entre drag e público:

Onde o personagem está em casa? A questão diz respeito menos ao território geográfico do que ao território retórico (tomando a palavra retórico no sentido clássico, sentido definido por atos retóricos como a peroração, a acusação, o elogio, a censura, a recomendação, a advertência etc.). O personagem está em casa quando fica à vontade na retórica das pessoas com as quais compartilha a vida. O sinal de que se está em casa é que se consegue se fazer entender sem muito problema, e ao mesmo tempo se consegue entrar na razão de seus interlocutores, sem precisar de longas explicações. O país retórico de um personagem para onde seus interlocutores não compreendem mais as razões que ele dá de seus fatos e gestos, nem as queixas que ele formula ou as admirações que ele manifesta (DESCOMBES citado por NERY, 1998, p.219, grifos no original).

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Um passeio estabelece uma relação e cria um ambiente convidativo e de diálogos, em diversos níveis, sentidos e formas de se comunicar. Nesta pesquisa, tais passeios ainda possibilitam, metodologicamente, a manutenção de meu propósito de dizer primordialmente de um caráter estético na constituição de uma drag queen e nas relações estabelecidas com seu público. E se, como afirma Perlongher, “não há melhor maneira de estudar o trottoir do que fazendo trottoir” (2008, p.56), não há melhor maneira de estudar shows e espetáculos de drag queens do que sendo seu espectador.

Desta forma, decidi não entrar no camarim. Partilhar deste espaço, bem como da vida, motivações e pensamentos daquele sujeito que encarna uma drag queen ou outra artista da travestilidade poderia ser de extremo interesse para meu propósito e certamente complementaria a vertente estética que priorizei ao me voltar para os espetáculos. Alguns autores discorreram sobre travestilidades artísticas, abarcando obviamente seus espetáculos e interações, mas focando principalmente nas trajetórias daqueles sujeitos na constituição de sua personagem e drag queen. Anna Paula Vencato (2002) nos trouxe de forma bonita e afetiva esta dimensão das drag queens de Florianópolis/SC; Mônica Siqueira (2004) tocou de leve o mundo do show em sua dissertação e entrevistas com algumas travestis na velhice do Rio de Janeiro/RJ; de Brasília/DF, Cyntia Santos (2008) apresentou-nos uma análise do processo de montaria de sua própria drag queen, Lilith Luna.; já Gustavo Corrêa (2009) brincou no carnaval do Rio de Janeiro/RJ com as drag queens e a figura de Carmen Miranda, também não trabalhando com entrevistas; Juliano Gadelha (2010) se debruçou pormenorizadamente sobre as drags de Fortaleza/CE, realizando mais de 50 entrevistas; e Jô Fagner (2008), em menor amplitude, fez trabalho parecido com as drags de Natal/RN. Outros dois trabalhos, talvez pioneiros em sua abordagem da travestilidade artística, se juntam a estes mencionados: a etnografia de Rosemary Lobert (1979) sobre a vida e arte do debochadamente andrógino grupo brasileiro Dzi Croquettes e o fascinante e injustamente não traduzido para o português Mother Camp – Female Impersonators in America, de Esther Newton (1979).

Diante deste panorama, meu trabalho sempre correu o risco de ficar incompleto ou de não atingir a potencialidade que poderia caso a voz das drags e seus alter egos aparecessem aqui com mais veemência e realidade. Mas não era a voz do sujeito que eu queria ouvir e sim aquela que ele ou ela coloca no palco. Apesar de seus trânsitos e brechas, meu limite foi aquela mesma linha 46

que separa a coxia do palco, quando o artista deixa de lado seus possíveis nervosismos e tensões, respira fundo, dá um passo à frente e permite que a ficção literalmente aconteça. Para tanto, parti de um acompanhamento dos eventos e locais onde drag queens estavam ou poderiam estar, de início sem saber exatamente como me utilizaria de tal material. Assim como Gregory Bateson (2006), “não via claramente nenhuma razão por que devesse inquirir mais sobre uma questão do que sobre outra” (p.287), ou melhor, não sabia como nem o que priorizar, principalmente no momento anterior à decisão de me dedicar excepcionalmente à personagem drag queen: seria melhor analisar alguma categoria de drag, com alguma linha de trabalho ou característica próximas?; me restringir a algum local físico específico e sobre este versar? me dedicar a como uma drag queen se monta?; entre muitas outras possibilidades. Como ainda afirma Bateson,

Em geral, o antropólogo tem algum interesse definido em algum aspecto da cultura que ele está estudando, seja a reconstrução histórica, a cultura material, a economia, seja a análise funcional, e reunirá ao menos um suprimento adequado de material para escrever um livro permeado por seu ponto de vista particular. Contudo, eu não tinha esse interesse orientador quando estava no campo; era (e ainda sou) cético a respeito das reconstruções históricas; não conseguia (e ainda não consigo) ver como a análise funcional ortodoxa pode conduzir a qualquer parte; e finalmente minhas próprias abordagens teóricas (Oceania, 1932, pp. 484ss.) mostraram-se muito vagas para serem de qualquer utilidade no campo (BATESON, 2006, p.287).

Decidi assumir minha ambição mais geral de tentar acompanhar ao máximo os movimentos e movimentações de drag queens, sem nenhum recorte mais específico a priori. Tinha apenas a confiança de que era necessário ousar e experimentar uma forma de ver e falar de drag queens mais próxima do modo como estas se mostram, ou seja, espalhadas por diversos palcos e em ação como personagem, não como sujeitos “reais”. Novamente ressalto que um modelo não é melhor ou está em oposição a outro; é apenas uma visão das drag queens por outro prisma que não o feito no interior de metodologias estabelecidas de pesquisa que partem do sujeito para dizer de seu personagem e manifestação estética. Talvez a diferença seja que neste tipo tradicional de prática de pesquisa o caráter de realidade pode se mostrar mais presente, ao passo que me entreguei deliberadamente à ficção acreditando que ela dialoga com o real ou mesmo é uma forma deste se apresentar. Talvez caiba aqui a afirmação norteadora do trabalho de Néstor Perlongher (2008) de que “no caso das cidades a exigência de unidade de lugar ou território único deverá ser deixada de lado em benefício da plurilocalidade das sociedades complexas, privilegiando os espaços 47

intermediários da vida social, os percursos, trajetórias, devires da experiência cotidiana” (PERLONGHER, 2008, p. 51, grifos no original). Porém, mesmo ressaltando esta plurilocalidade de territórios, estes ainda constituem um recorte e podem ser localizados: as drag queens e outras artistas da travestilidade deste trabalho foram vistas majoritariamente na zona sul do Rio de Janeiro, restritas aqui a diversos locais dos bairros de Copacabana e Ipanema. Em menor número de eventos, também as acompanhei na região central da cidade, como na Lapa, e nos bairros de Vila Isabel e Jacarepaguá, respectivamente zona norte e oeste da cidade. Alguns destes shows e eventos ocorreram em ambientes particulares e as artistas consistiam nas atrações da noite, como na Associação Atlética de Vila Isabel, Turma OK, Quiosque Rainbow e nas boates Le Boy, 1140 e Sal y Pimenta. Os outros eventos foram organizados e realizados pelo Grupo Arco-Íris, “organização de referência na promoção da autoestima e cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais – LGBT” (ORGULHO CONTRA A HOMOFOBIA, 2010, p.04), como a série de espetáculos de 2009 e 2010 “Laura de Vison Auto-Retrato” e a Parada do Orgulho LGBT de 2010 e sua festa oficial no Cine Ideal, sendo que a Parada e sua programação de eventos contavam com o apoio de instâncias públicas, como o Governo do Estado do Rio de Janeiro, Governo Federal, Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e a estatal Petrobras. A “Banda de Ipanema” faz parte do calendário carioca de blocos carnavalescos, sendo apoiada pela Prefeitura da cidade, além de empresas particulares. Foquei-me no que era estética e o que esta trazia consigo, assumindo o risco e a implicação de que esta imagem seria criada por um espectador ao entrar em contato com esta arte. Porém, considerando que se em uma observação participante ou uma clássica entrevista etnográfica o que é dito e experimentado também passa pelo crivo e construção do pesquisador, me senti mais tranquilo e tentei uma atenção difusa, objetivando captar ao máximo estas movimentações e presença das drags – ou da travestilidade artística – pela cidade do Rio de Janeiro, registrando inicialmente estes passeios em diário de campo, para depois refletir e exercitar o formato como este material poderia ser analisado e apresentado como o resultado da minha pesquisa. Investi no lugar do espectador por acreditar ser o mais pertinente para acompanhar os espetáculos e shows de drag queens. Tradicionalmente o espectador é visto apenas como um ser passivo, que se senta e recebe aquilo que os atores (ativos) lhe passarão. Em seu célebre 48

“Dicionário de Teatro”, Patrice Pavis (1999) nos traz uma noção de espectador em verbete de mesmo nome:

1. Por muito tempo esquecido ou considerado quantitativamente negligenciável, o espectador é, no momento, o objeto de estudo favorito da semiologia ou da estética da recepção. Falta, todavia, uma perspectiva homogênea que possa integrar as diversas abordagens do espectador: sociologia, sociocrítica, psicologia, semiologia, antropologia etc. Não é fácil apreender todas as implicações pelo fato de que não se poderia separar o espectador, enquanto indivíduo, do público, enquanto agente coletivo. No espectador-indivíduo passam os códigos ideológicos e psicológicos de vários grupos, ao passo que a sala forma por vezes uma entidade, um corpo que reage em bloco (participação) (PAVIS, 1999, p.140).

Pavis continua seu verbete discorrendo um pouco mais sobre a abordagem sociológica, semiológica e estética da recepção. Postula que a primeira destas, “limita-se na maioria das vezes, a investigar a composição dos públicos, sua origem sociocultural, seus gostos e reações” (PAVIS, 1999, p.140), utilizando-se para tal instrumentos que possam mensurar as reações quantitativas e qualitativas dos espectadores, ainda que muitas vezes não se relacione estas reações à “uma percepção das formas teatrais” (PAVIS, 1999, p.140) e a análise do acontecimento teatral como um todo fique prejudicada. Já a semiologia se preocupará com “a maneira pela qual o espectador fabrica o sentido a partir das séries de signos da representação, das convergências e distâncias entre os diversos significados” (PAVIS, 1999, p.140), ao passo que a estética da recepção “está em busca de um espectador implícito ou ideal. Ela parte do princípio, a bem dizer bastante discutível, de que a encenação deve ser recebida e compreendida de uma única e boa maneira e de que tudo é agenciado em função desse receptor onipotente” (PAVIS, 1999, p.140).

Estas correntes nos mostram visões diversificadas do espectador de teatro, o que parece denotar uma multiplicidade de modos de se conceber e se construir este elemento do acontecimento teatral. Não me utilizarei exatamente de nenhuma destas correntes apontadas por Pavis, mas sim da ideia geral de que o espectador desempenha lugar fundamental no fazer teatral, fato que o leva a ser objeto de reflexão de diversos campos do conhecimento.

Segundo postulados do homem de teatro Peter Brook (2002), o elemento humano é primordial para a existência e desenvolvimento da ação teatral e este é necessário tanto no palco quanto na plateia. Defendendo a ideia de que é preciso experimentação e profissionalismo – este último entendido aqui como dedicação, responsabilidade, não exatamente um título de 49

profissional – para que um ator possa converter o banal em sublime, Brook (2002) irá afirmar que o simples fato de haver uma plateia contribui para que em cena seja desenvolvido aquele algo mais que transformará o cotidiano em ação teatral. É na obviedade de que só haverá espetáculo se houver um público a quem este seja direcionado que reside a mágica e a simplicidade do teatro; este é relação, independente de como esta será conduzida ou experimentada.

Qualquer teatro só encontra seu sentido no contato com seu espectador. Experimentações contemporâneas, como o teatro pós-dramático e outras correntes, desenvolvem-se de forma a exigir outro lugar do espectador, tornando-o ativo e claramente mais participante do espetáculo de dança ou teatral. Como defende Carmen Valdez (2009) acerca do teatro pós-dramático, “uma noção de imprevisibilidade e de não enquadramento em um padrão previamente estabelecido” (2009, p.11) torna o espectador uma espécie de bricoleur que estruturará sua experiência teatral de acordo consigo mesmo e seu posicionamento ativo perante este tipo de espetáculo. Porém, acredito que qualquer espectador, de qualquer vertente teatral, é ativo na construção do acontecimento teatral em si. Novamente recorro à obviedade de Peter Brook, para quem o espectador “não precisa intervir nem manifestar-se para participar: participa constantemente por meio de sua presença atenta. Esta presença deve ser encarada como um estimulante desafio, como um ímã diante do qual não é possível proceder de qualquer jeito. Em teatro, de qualquer jeito é o maior e mais sutil inimigo” (BROOK, 2002, p. 07, grifos no original).

A simples presença do espectador torna o teatro, teatro e foi acreditando em um espectador por definição participante que escolhi “apenas” assistir a espetáculos de drag queens, transformistas e travestis e transexuais artistas. Jacques Rancière (2010) é outro teórico que nos traz esta vertente ativa do espectador, naquilo que ele nomeou como “paradoxo do espectador” e que se resumiria da seguinte forma:

(...) não há teatro sem espectador (ainda que se trate de um espectador único e oculto, como na representação ficcional de “O filho natural” que dá lugar às “Conversações” de Diderot). Agora sim, dizem os acusadores, ser espectador é um mal, e isto o é por duas razões. Em primeiro lugar, olhar é o contrário de conhecer. O espectador permanece perante uma aparência, ignorando o processo de produção desta aparência ou a realidade que esta encobre. Em segundo lugar, É o contrário de atuar. A espectadora permanece imóvel em seu espaço, passiva. Ser espectador é estar 50

dissociado ao mesmo tempo da capacidade de conhecer e do poder de atuar (RANCIÈRE, 2010, p.10, grifos no original)22.

Rancière irá argumentar contra esta ideia de passividade do espectador, apontando para outra concepção de acontecimento teatral que não aquela baseada no esquema ator = ativo, espectador = passivo. Retomando a ideia básica no teatro de que etimologicamente drama (de gênero dramático) em grego significa ação, ele defenderá a investida em uma lógica na qual atores e espectadores sejam ativos, rompendo com a “rede de pressupostos, o jogo de equivalências e de oposições (...) entre público teatral e comunidade, entre reflexão e passividade, exterioridade e separação, mediação e simulacro; oposições entre o coletivo e o individual, a imagem e a realidade vivente, a atividade e a passividade, o domínio de si mesmo e a alienação”23 (RANCIÈRE, 2010, p.14).

O movimento de criação de atores e espectadores é o mesmo, porém, ao passo que atores, diretores e outras “gente de teatro” exteriorização na forma de um espetáculo aquilo que selecionaram e transformaram em material com algum sentido para si, os espectadores farão este mesmo movimento de criação com o espetáculo que têm diante de si e toda sua trajetória e experiências outras. Apenas guardarão consigo esta sua composição, um poema nos termos de Rancière (2010, p.19), ou melhor, não o colocarão no palco – não ao menos num literal palco teatral.

Não se trata de inverter o sistema de valores: um espectador não deixa de ser de certa forma passivo no momento em que se coloca disponível para o que se verá no palco. Mas este mesmo silêncio não deixa de ser uma posição ativa, já que pode denotar um grande grau de atenção ou mesmo tédio e o espetáculo acontecerá diferentemente para cada uma destas reações. E também não se trata de levar o espectador para o palco e a ação dramática para as cadeiras do teatro para que aquele seja ativo. O que precisamos é de “conectar o que se sabe com o que

22 Tradução livre, no original: “(...) no hay teatro sin espectador (aunque se trate de un espectador único y oculto, como en la representación ficcional de El hijo natural que da lugar a las Conversaciones de Diderot). Ahora bien, dicen los acusadores, ser espectador es un mal, y ello por dos razones. En primer lugar, mirar es lo contrario de conocer. El espectador permanece ante una apariencia, ignorando el proceso de producción de esa apariencia o la realidad que ella recubre. En segundo lugar, ES lo contrario de actuar. La espectadora permanece inmóvil en su sitio, pasiva. Ser espectador es estar separado al mismo tiempo de la capacidad de conocer y del poder de actuar” (RANCIÈRE, 2010, p.10). 23 Tradução livre, no original: “(...) la red de presupuestos, el juego de equivalencias y de oposiciones (...) entre público teatral y comunidad, entre mirada y pasividad, exterioridad y separación, mediación y simulacro; oposiciones entre lo colectivo y lo individual, la imagen y la realidad viviente, la actividad y la pasividad, La posesión de sí mismo y la alienación” (RANCIÈRE, 2010, p.14). 51

ignoramos, de ser ao mesmo tempo atores que exibem suas competências e espectadores que observam o que suas competências podem produzir em um contexto novo, diante de outros espectadores”24 (RANCIÈRE, 2010, p.27).

Rancière afirma ainda que a noção de que o espectador é um ser passivo guarda a pretensão de que seria possível a transmissão direta e idêntica de um conhecimento ou uma ideia; esta seria a lógica do “pedagogo embrutecedor”25 (2010, p.20), a qual deveríamos combater caso acreditemos em uma construção do conhecimento não baseada em rígidas hierarquias de poder- saber. Arrisco afirmar que uma aposta em um espectador ativo é paradoxal por destronar o artista de um total controle sobre seu público, apesar deste ter ido vê-lo e nutrir por aquele os mais diversos sentimentos. Como também afirma Rancière acerca do todo de uma encenação teatral, “(...) não é a transmissão do saber ou do espírito do artista ao espectador. É uma terceira coisa da qual ninguém é proprietário, daquela que ninguém possui o sentido, que se estabelece entre os dois, descartando toda transmissão idêntica, toda analogia da causa e do efeito”26 (RANCIÈRE, 2010, p.20-21). Esta é a mesma premissa de que toda observação ou descrição é produção, já que não é a realidade em si mesma que se nos apresenta, mas sim uma versão desta contada por algum pesquisador.

* * *

Esforcei-me para exercitar estes passeios de forma sutil, plena de leveza. Esta leveza seria para Ítalo Calvino um modo de operar que, por conhecer o peso da matéria, consegue considerar “o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle” (CALVINO, 2007, p.19). A leveza foi o primeiro tema desenvolvido por Calvino nas suas conferências Norton, proferidas no ano letivo de 1985-86 da Universidade de Harvard. O escritor

24 Tradução livre, no original: “(...) se trata de ligar lo que se sabe con lo que se ignora, de ser al mismo tiempo performistas que despliegan sus competencias y espectadores que observan lo que sus competencias pueden producir en un contexto nuevo, ante otros espectadores” (RANCIÈRE, 2010, p.27).

25 Tradução livre, no original: “pedagogo embrutecedor” (2010, p.20).

26 Tradução livre, no original: “No es la transmisión del saber o del espíritu del artista al espectador. Es esa tercera cosa de la que ninguno es propietario, de la que ninguno posee el sentido, que se erige entre los dos, descartando toda transmisión en lo idéntico, toda identidad de la causa y el efecto” (RANCIÈRE, 2010, p.20-21). 52

ítalo-cubano versaria sobre suas seis propostas literárias para o milênio que se aproximava, mas não teve tempo de proferi-las, morrendo antes de suas palestras e da escrita da que seria a sexta temática: Consistência. Além da leveza, os outros temas contemplados foram Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade.

Os originas destas conferências se transformaram posteriormente, no ano de 1988, no livro “Seis propostas para o próximo milênio”. Umberto Eco menciona Calvino e estas suas conferências nos seus passeios pelos bosques da ficção, que também foram escritos para o mesmo ciclo Norton. A leveza, conforme postulada por Calvino, atuaria no momento da criação, abrindo o pensamento e o agir para “(...) o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que sobreleva o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém o segredo da leveza, enquanto aquela que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos, estrepitante e agressiva, espezinhadora e estrondosa, pertence ao reino da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados” (CALVINO, 2007, p.24).

Calvino ressalta que a leveza não é uma fuga nem negação do peso e que para ele esta “está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório. Paul Valéry foi quem disse: É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma” (CALVINO, 2007, p.28, grifos no original). É na tentativa de adquirir esta leveza feita de escolhas, imprecisões e rigor, que proponho os referidos passeios. Dotado de leveza, tento me mover como um pássaro em “um espaço liso heterogêneo, esposa um tipo muito particular de multiplicidades: as multiplicidades não métricas, acentradas, rizomáticas, que ocupam o espaço sem medi-lo, e que só se pode explorar avançando progressivamente” (DELEUZE E GUATTARI, 2008, p.38, grifos no original).

Ao contrário da Medusa, morta por Perseu de forma leve segundo Calvino (2008), talvez o monstro contra o qual aqui temos que lutar é o de uma cientificidade arbitrária, que aprisiona a realidade em regras duras. Como também alertam Deleuze e Guattari, uma ciência nômade não é melhor do que uma ciência régia e vice-versa; ambas apenas se prestam a diferentes fins e modos de produção de mundos. Escolher e exercitar determinada ciência não guarda a obrigatoriedade de exclusão do outro modelo, até porque nos situamos entre a composição macro e micro do tecido social. Mas isto também não significa que devemos ser tolerantes com concepções e fazeres científicos que se colocam a favor de diversos tipos de dominações e disciplinamentos ou 53

que nos isentemos de escolher e assumir o modelo e experimentação que utilizamos em nossas produções.

Escolho aqui um tipo de passeio que talvez seja como uma viagem sutil, já que toca o real sem penetrá-lo a fundo e sem a tentativa de explica-lo, mesmo quando definições são formuladas. Invisto na ficção e neste meu posicionamento de espectador, em constante atenção em busca do tensionamento de seus limites e problematização de sua razão de ser, já que de acordo com Peter Brook (2002):

(...) deve ser muito difícil para os espectadores serem informados da responsabilidade de uma plateia. Como pode isso ser encarado na prática? Triste seria o dia em que as pessoas fossem ao teatro por obrigação. Uma vez dentro do teatro, a plateia não se pode forçar a ser melhor do que é. Em certo sentido, não há nada que um espectador possa fazer. E, entretanto, tudo depende dele (BROOK, 2002, p.10).

Qual o exercício da leveza na relação entre espectador e drag queen ou outra artista da travestilidade e o que conseguirei dizer deste encontro? Habito como espectador-pesquisador um território impreciso e mutante, como as ondas do mar. Sobre o mar, Deleuze e Guattari dirão que este “espaço liso é claramente um problema específico da máquina de guerra. É no mar, como mostra Virilio, que se coloca o problema do fleet in being27, isto é, a tarefa de ocupar um espaço aberto com um movimento turbilhonar cujo efeito pode surgir em qualquer ponto” (DELEUZE E GUATTARI, 2008, p.28). Arrisquemo-nos por este mar e façamos nosso passeio no barco possível e poeticamente descrito por Michel Foucault, naquele:

(...) pedaço de espaço flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado em si e ao mesmo tempo lançado ao infinito do mar e que, de porto em porto, de escapada em escapada para a terra, de bordel a bordel, chegue até as colônias para procurar o que elas encerram de mais precioso em seus jardins, você compreenderá por que o barco foi para nossa civilização, do século XVI aos nossos dias, ao mesmo tempo não apenas, certamente, o maior instrumento de desenvolvimento econômico (não é disso que falo hoje), mas a maior reserva de imaginação. O

27 Segunda definição de Paul Virilio, “o fleet in being é a presença permanente em mar de uma frota invisível, que pode golpear o adversário em qualquer lugar e a qualquer momento (...), é uma nova ideia da violência que já não nasce do afrontamento direto, porém de propriedades desiguais dos corpos, da avaliação das quantidades de movimentos que lhes são permitidas num elemento escolhido, da verificação permanente de sua eficiência dinâmica. (...) Não se trata mais da travessia de um continente, de um oceano, de ir de uma cidade a outra, de uma margem a outra, o fleet in being inventa a noção de um deslocamento que não teria destinação no espaço e no tempo” (citado por DELEUZE E GUATTARI, 2008, p.62). 54

navio é a heterotopia por excelência. Nas civilizações sem barcos os sonhos se esgotam, a espionagem ali substitui a aventura e a polícia, os corsários (FOUCAULT, 2001, p. 421-422).

Que possamos todos e todas, então, ser espectadores, acompanhar e passear por essas praias drag, navegando, aventurando-nos ao invés de testar hipóteses, como corsários envolvidos e implicados ao invés de cientistas em busca da verdade. À deriva em um barco, a cartografar, a simplesmente passear... 55

Até que um dia mamãe se separa deste padrasto e disse: “você vai ter que trabalhar para me ajudar”. Foi quando entrei para a TV Rio e comecei a maquiar todas as cantoras da Rádio Nacional: Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Emilinha Borba, Elis Regina, Roberto Carlos e muitos outros. Tornei-me uma pessoa muito popular, porque Elizete Cardoso dizia que devia ir para o palco, Fernanda Montenegro afirmava o mesmo. Eu respondia: “como vou para o palco vestida de homem?”. Fernanda me explicava: “mas meu filho, no palco não existe nem homem nem mulher, existe artista, vocação e muito talento”.

(Rogéria)

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Passeios históricos e monumentais:

“Divinas Divas”, “Agora é que são elas” e “Turma Ok” 56

“Divinas Divas” é um espetáculo que também pode ser colocado no rol de shows iniciados ou inspirados naqueles da década de 1960 e sobre os quais discorrerei neste capítulo. Em 2011 ainda está em cena no Rio de Janeiro. Fruto de um convite e idealização da atriz Ângela Leal, diretora do Teatro Rival Petrobrás, na Cinelândia, este espetáculo foi criado para relembrar os famosos shows de transformistas e travestis nas décadas de 1960 e 1970 no ano em que o Rival completava 70 anos de atividades, em 2004. O espetáculo fez grande sucesso e ganhou reapresentações em outros espaços e outras localidades do país, estando em cartaz até os dias de hoje.

Acompanhei duas de suas apresentações na Sala Baden Powell, em Copacabana, nos dias 22 e 27 de novembro de 2010, dentro da programação de eventos da 15ª Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro. Os espetáculos tiveram Brigitte de Búzios como mestre de cerimônias, que apresentou brevemente o show e anunciou as amigas e colegas de trabalho que entrariam a cada número. Marqueza, Andrea Gasparelli, Fujika di Hallyday, Camille K, Paula Braga e Jane Di Castro fizeram um espetáculo com muita música e brilho. Todas apresentaram números clássicos de seus repertórios particulares, como Camille que se utilizou de seu corpo extremamente magro para arrancar risos na pele de uma faxineira do teatro, que estava ali trabalhando, varrendo e um pouco aborrecida com as divas cheias de exigências no camarim. Ela discorreu sobre os mais diversos temas e rememorou locais e costumes mais antigos, como lojas e produtos que já não existem mais. Várias piadas entrecortavam este seu monólogo, com destaque para o momento em que narrou um “causo” do dia da eleição que daria a vitória a Dilma Rousseff, primeira presidenta do Brasil. Após elogiar brevemente o ex-presidente Lula e afirmar que põe sua confiança em Dilma, provocou gargalhadas ao constatar que se agora uma mulher na presidência do país não der certo, o que resta é eleger uma travesti, como Jane Di Castro que já é síndica de seu prédio em Copacabana.

Jane, aliás, foi a grande estrela do espetáculo, soltando a voz ao fim das duas noites e utilizando-se muito bem de todo o espaço do palco, decorado apenas com uma imensa garrafa de champanhe em seu centro. Um luxo, pura riqueza! Ouvimos a clássica La vie em rose, sucesso na voz de Edith Piaf, e algumas outras, como a surpreendente “Um Sonhador”, de César Augusto e Piska, conhecida na voz do cantor sertanejo Leonardo. Uma bela e vigorosa interpretação. Andrea Gasparelli também deixou sua marca, seja dublando perfeitamente a cantora Gal Costa 57

em “Canta Brasil”, de Alcir Pires e David Nasser, ou em um sugestivo número em que, no palco, transforma-se de homem em uma linda e exuberante mulher, de forma sincronizada à música na qual ouvimos um dueto cantado inicialmente por um homem e logo em seguida por uma mulher.

Os espetáculos contaram ainda com a participação da atriz Berta Loran, diretora desta peça. Berta subiu ao palco para contar piadas bastante chulas e declamar um poema por ela escrito e intitulado “Ser atriz”. Neste, discorria suas amarguras dentro desta profissão, denunciando o peso e preconceito que muitas sofrem de diretores e outros profissionais por não serem mais uma “garota bonitinha da novela” e necessitarem de alguns cuidados e um ritmo menos frenético durante as gravações. Porém, segundo ela ainda existe o público, aquele que sabe reconhecer sua arte e dar forças para insistir neste ofício ao qual entregou sua vida toda e que ao fim de tudo lhe traz realizações.

A plateia do espetáculo era maciçamente formada por idosos e idosas, possivelmente os frequentadores regulares da Sala Baden Powell. Assim como o público de outros espaços, muitos dos presentes pareciam se conhecer e se divertiram muito com estas divinas divas, incluindo a ilustre Isabelita dos Patins que, desmontada, aproveitou o espetáculo de sua cadeira na primeira fila do teatro. Foram duas noites de casa cheia e memórias cantadas e resignificadas no palco.

2.1. She likes the theater and never comes late

Traçando um histórico da homossexualidade no Brasil desde os tempos coloniais até a atualidade, João Silvério Trevisan (2007) localiza a presença de uma cena travestida no país no século XVIII28. Porém, esta cena travestida não se relaciona diretamente com artistas que se assumem ou são vistos como travestis, mas sim com um decreto assinado em 1780, no reinado de dona Maria I, proibindo a presença de mulheres tanto no palco como nas plateias e bastidores teatrais com o objetivo de moralizar este nicho tido como infame e marginal. Deste modo, eram os homens que interpretavam papéis femininos e alguns se especializaram neste tipo de interpretação e travestilidade, como observou, por exemplo, o médico alemão Robert Avé-

28 Este autor possui esta perspectiva histórica linear, dispondo tipos de travestilidade em um continuum. Respeitei aqui este formato de seu texto. 58

Lallement sobre uma apresentação que assistiu em 1858 em Porto Alegre: “as heroínas principais eram homens, em trajes femininos, que aliás desempenharam bem os papéis de moças” (citado por TREVISAN, 2007, p.237). Esta prática também podia ser vista no Teatro Elisabetano na Inglaterra do século XVII (SCHACHT E UNDERWOOD, 2004), bem como nos autos jesuítas que por aqui aportaram no século XVI, segundo Trevisan (2007).

Este mesmo autor apontará outro gênero teatral presente em nossos palcos no qual a travestilidade também encontrou seu lugar: o teatro de revista. Neyde Veneziano (1991) localiza em 1859 a montagem da primeira Revista de Ano brasileira no país, a peça “As surpresas do Senhor José da Piedade”, levada à cena no Teatro Ginásio no Rio de Janeiro. As Revistas de Ano, inspiradas pelas Revistas de Ano portuguesas importadas pela Corte até meados do século XIX (RUIZ, 1988), passavam “em revista os acontecimentos do ano anterior, esta forma de construção dramática seguia o modelo português. Só que os assuntos, os tipos, o humor e a irreverência já se caracterizavam como bem brasileiros. O foco central destas revistas era sempre o Rio de Janeiro (...)” (VENEZIANO, 1991, p.30). Neste gênero, um fio condutor ligava os diversos quadros dramáticos que iam à cena, mostrando personagens populares e característicos do período, caricaturas, alegorias, histórias que tomaram conta do noticiário da cidade e do meio teatral, entre outros temas que fossem tidos como pertinentes. Uma destas histórias estreou em

(...) 18 de janeiro [de 1886], no Sant’Anna, a poucos metros do Lucinda, na mesma rua do Espírito Santo – atual Pedro I – praticamente na esquina da Praça Tiradentes – então do Rocio – e onde atualmente está o Carlos Gomes.

Essa revista intitulava-se ‘A mulher-homem!’ e fora escrita por Valentim de Magalhães e Filinto d’Almeida. Defendia-a a Companhia de Jacinto Heller e glosava, por seu turno, o escândalo do homem que se empregou como doméstica, vestido de mulher” (RUIZ, 1988, p.23- 24).

A história é tida como verídica e sua encenação ainda ocorreu em local apontado como “predileto dos pederastas do tempo” (ALMEIDA citado por TREVISAN, 2007). Atores travestidos também foram registrados em encenações pelo país, como o português José Ricardo, que em 1897 impressionava e divertia o público com sua interpretação de Sarah Bernhardt ou a montagem da revista também portuguesa “Tintim por Tintim”, que estreou no Rio de Janeiro em 1892, mas que foi montada com um elenco exclusivamente masculino na histórica cidade mineira 59

de São João del-Rei, em 1917 (VENEZIANO, 1991). Neyde Veneziano cita ainda o “popular caso de Ivaná, um bailarino francês, filho de portugueses, que Walter Pinto transformou em travesti na sua companhia” (VENEZIANO, 1991, p.53), a qual esteve na ativa de 1941 a 1963.

Sobre as Revistas de Ano, Tânia Brandão, prefaciando a citada obra de Roberto Ruiz (1988), alerta para a diversidade de formas teatrais que acabaram sendo nomeadas como Teatro de Revista Brasileiro, entre os séculos XIX e XX. Nesta diversidade, muitas mulheres se destacaram e não foram proibidas de participar de tais peças, porém, sempre foram vistas como de “má fama”, desde as primeiras atrizes das Revistas até as coristas – posteriormente chamadas de girls – que compunham, geralmente em trajes sumários, o corpo de baile destas encenações. Este maior destaque ao corpo feminino, que revolucionou a nudez ao abandonar as meias e exibir as pernas em público, ocorreu com a importação das Revistas francesas, no início da década de 1920, que acabaram sobrepondo-se ao modelo português que norteava as criações das Revistas brasileiras até então (VENEZIANO, 1991).

O corpo feminino exibido em tons espetaculares e sensuais, junto aos temas cada vez mais picantes que tomaram conta das Revistas no início do século XX (SUSSEKIND, 1986), pode ser apreciado na seguinte valsa presente na Revista Gavroche, de 1899:

Eu sou a Revista de Ano

Brasileira.

Quem diz que as artes profano,

Diz asneira.

Aqui, como em toda a parte,

Sou benquista,

Porque há sempre um pouco de arte

Na revista.

Sem que à sociedade ofenda,

Sou risonha,

E não devo dessa prenda

Ter vergonha

Nesses tempos tão bicudos 60

Me parece

Que quem cura os carrancudos

Bem merece.

Eu sou a Revista de Ano

Brasileira.

Tenho um sorriso magano!

Sou faceira! (SUSSEKIND, 1986, p.105-106).

Elementos como o humor, sensualidade e crítica social foram característicos das Revistas de Ano em seus muitos momentos e desdobramentos e podemos nos questionar se tais caracteres também não influenciaram o que mais tarde seria caracterizado como show de transformistas ou mesmo drag queens. Outro componente que pode ter tido influência considerável em espetáculos de artistas da travestilidade foram os chamados “quadros de fantasia” que começaram a aparecer com mais força nas Revistas a partir da década de 1920 e que nos anos 1940 e 1950 eram números de dança coletiva deslumbrantes e luxuosos, muito bem iluminados e coreografados (VENEZIANO, 1991). Os corpos, principalmente os femininos, se exibiam com muita sensualidade e glamour, e o sexo tomava grande projeção em tais quadros e nas Revistas como um todo. Luís Francisco Rabello (citado por VENEZIANO, 1991) afirma que o erotismo e o exotismo tinham lugar primordial e “o erotismo que a revista propõe socorre-se por igual de elementos visuais, musicais e textuais: os figurinos que entre plumas, lantejoulas e sedas deixam entrever pernas e seios; o ritmo sensual ou trepidante das danças; as alusões carregadas de duplo sentido, não raro escatológico do diálogo” (RABELLO citado por VENEZIANO, 1991, p.107).

A preponderância do sexo no palco – velado e desvelado, falado e apontado no corpo, sugerido ou tornado relação sexual – talvez seja o que permitirá a entrada de travestis no Teatro de Revista ou espetáculos nestes moldes. Estes espetáculos específicos de travestis surgiram e ganharam força na década de 1960, após um momento tido por alguns estudiosos e críticos como o período áureo do Teatro de Revista brasileiro.

Neyde Veneziano (1991) aponta o dia 31 de dezembro de 1940 como a inauguração de uma nova e espetacular fase do Teatro de Revista no Brasil: o início da trajetória de Walter Pinto no Teatro Recreio. Em atividade desde 1889, neste princípio da década de 1940 o Teatro Recreio 61

passou por reformas que lhe deram pioneirismo em aspectos físicos, por exemplo, com a introdução de cadeiras estofadas na plateia, como também em sua dinâmica teatral, já que as funções foram divididas entre diretores musicais, de cenografia, carpintaria, coreógrafos, iluminadores e professores diversos que lhe deram um caráter teatralmente mais elaborado e profissional. Como afirma esta referida autora, “a forma suplantou de vez a ingenuidade e a improvisação. As coreografias, que chegavam a conter quarenta girls, eram rigorosamente precisas. Cortinas de veludo, cenários suntuosos, plumas, iluminação feérica, ao som da orquestra que tocava retumbante, faziam parte da grande ilusão” (VENEZIANO, 1991, p.51). A irreverência tinha sido mantida, mas agora o teatro era glamouroso e deslumbrante: “Cascatas não faltavam. Havia cascatas de fumaça, cascatas de espuma, cascatas de água, cascatas de mulheres” (VENEZIANO, 1991, p.51), bem como uma escada girante ao centro do palco, pela qual desciam vedetes e divas da Revista como Mara Rúbia, Araci Cortes, Virgínia Lane e Dercy Gonçalves.

Foi um período de apogeu do Teatro de Revista brasileiro e que durou até 1963, ano em que um incêndio destruiu o Teatro Recreio e, como creem alguns, a espetacularidade do que ali era encenado. Segundo a já citada teatróloga Neyde Veneziano, após o auge vem a decadência e é sob tal subtítulo que ela nos diz da fragmentação deste gênero teatral; as chanchadas no cinema, o início da televisão no Brasil, os “shows de exportação” que tomavam conta de cassinos com números de dança e sensualidade – como os shows de mulatas de Sargentelli – e uma tendência dos espetáculos serem caracterizados pelo “descuido, mau gosto e apelação” (VENEZIANO, 1991, p.52) colocaram um ponto final naquilo que, mesmo em sua diversidade, manteve um mínimo de características e foi conhecido como Teatro de Revista. Se foi o fim deste gênero teatral, um novo se iniciou:

Sem atrizes, com pobres mocinhas que mal sabiam dizer um texto, mas que tiravam a roupa, à deriva, a cena da revista aguardava o retorno das grandes vedetes. Elas chegaram. Travestidas.

A partir do show Les Girls, de Meira Guimarães (1965), os travestis pegaram para si o papel da mulher do teatro de revista, da mulher que perdera o charme dos tempos áureos. Como o frisson e o aplomb de la vedête qui rentre, as estrelas Rogéria, Valéria e Brigitte de Búzios subiram à cena como irreverentes, como o grotesco luxuoso, para a burguesia da Galeria Alaska29.

29 Também grafada como Galeria Alasca, esta era localizada no bairro de Copacabana e foi um local muito frequentado por homossexuais nas décadas de 1960-70 (GREEN, 2000). 62

E terminaram se auto-acreditando como um grande apelo sexual. Dentro destas experiências bem sucedidas também foi muito interessante o trabalho dos Dzi Croquettes.

Das glórias das grandes mulheres para esta fase de revista-gay, faz-se também uma curva. O inusitado assume proporções maiores e cai, imediatamente, no vulgar, no grosseiro. Desce as escadarias em direção aos teatros de quinta categoria onde hoje, tristemente, um playback entoa Hello Dolly, ou New York New York para dublagens baratas das grandes stars do cinema americano. Chamam a isto revista. Mal-aventurados os desinformados, os pobres de espírito (VENEZIANO, 1991, p.53).

Vulgar, grosseiro e em lugares de quinta, para pessoas mal-aventuradas, desinformadas e pobres de espírito. Se isto é triste para alguns, para outros e outras é algo muito feliz, pois foi desta forma e com entusiasmados aplausos que Sissy Diamond dublando Hello Dolly e Magaly Penélope dublando New York New York foram recebidas pela plateia que lotou o salão cuidadosamente decorado da Associação Atlética de Vila Isabel, em uma reapresentação do espetáculo “Agora é que são elas”, no dia 07 de outubro de 2010.

Na tarde desta quinta-feira, mais precisamente às 17 horas, tinha início um baile voltado para a terceira idade, principalmente os frequentadores desta associação atlética localizada na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. O salão estava enfeitado em tons de preto e branco, muitos balões e fitas decorando o ambiente composto por um pequeno palco e diversas mesas espalhadas pelo local, deixando um considerável espaço livre no centro, reservado à pista de dança. Casais de idosos dançavam animadamente ao som de clássicos da MPB, embalados por uma cantora de faixa etária próxima a da maioria dos presentes e cujas qualidades musicais poderiam ser questionadas, além de um senhor que a acompanhava com uma base pré-gravada de um teclado musical. Garçons serviam as mesas e o ambiente era de muita descontração e verdadeiro encontro, já que a maioria ali se conhecia pelo nome e partilhavam diversos laços afetivos.

Por volta de 19 horas foi anunciada a última música do show e muita gente correu para a pista para tal momento. Ao som de “O que é o que é” de Gonzaguinha e seus versos “Viver! E não ter a vergonha de ser feliz! Cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz” cantados em coro, o show teve seu fim, a cantora despediu-se e foi anunciado o espetáculo que muitos ali, inclusive eu e alguns amigos que me acompanhavam, aguardávamos: “Agora é que são elas”. Tendo em seu elenco naquele início de noite as travestis e transformistas Suzy Parker, Marqueza, Paula Braga, Fujika di Halliday, Sissy Diamond e Magaly Penélope, “Agora é que são 63

elas” trouxe para os presentes o brilho, luxo e exuberância das dublagens, personificações e canções ao vivo destas artistas que primam pelo glamour e uma boa dose da estética camp30 em seus fazeres artísticos, além de uma marota pitada de humor, principalmente nas intervenções de Magaly Penélope e em um número específico de Fujkia di Halliday. Diversas canções francesas desfilaram por entre as mesas, sempre adornadas por senhoras que trajavam vestidos de gala e brilhantes, saltos altos e elegantes, muitas plumas e dois jovens bailarinos que as acompanhavam com muita jovialidade e sorrisos. Eram verdadeiras divas, que ainda pareciam partilhar com aquele público outros tempos, outras canções, outros tipos de espetáculo e modos de se portar.

O show teve um início apoteótico no modesto salão da Associação: ao som de uma animada canção em francês, Sissy Diamond, Paula Braga e Suzy Parker foram entrando no ambiente uma a uma, todas ricamente vestidas em preto e branco e tendo um pequeno momento individual de dublagem, o qual parecia uma forma de apresentarem-se ao público. Após este início, cada uma ganhou um número individual: Paula Braga requebrou como Carmem Miranda e rodopiou como Clara Nunes; com um exuberante vestido e capa dourados, Marqueza cantou ao vivo Life is a Cabaret, do musical Cabaret; Fujika di Halliday surgiu toda em vermelho para provocar numerosos risos em sua interpretação para Malambo nº 1, de Yma Sumac, na qual Fujika fazia caretas e gesticulava com um leque acompanhando o alcance vocal e acento desta cantora. Número que levantou a plateia foi o de Magaly Penélope dublando a canção “Garota Solitária”, de Adelino Moreira. Com um singelo vestido branco de bolinhas pretas, cabelos desgrenhados, longas luvas encimadas por pulseiras de plástico, um imenso óculos de sol azul e a boca vermelha gesticulando ao máximo, Magaly repetia os versos “Será que eu sou feia?/ Não é não senhor/ Então eu sou linda?/ Ah! Você é um amor”. O público participava de forma veemente e dizendo às gargalhadas àquela garota solitária que ela não era feia, apesar de sua aparência querer indicar o contrário. Magaly Penélope ganhou aplausos ao tirar um senhor da plateia para dançar, sendo muito apoiada por sua esposa, que não conseguia parar de rir.

Exceto por Betina e Wellington que apresentaram um número de dança um tanto quanto à parte do restante do espetáculo, todas as artistas também se situavam na chamada terceira idade, ou quase, e deixavam transparecer em suas apresentações as marcas de quem tem uma longa trajetória de travestilidade, seja esta artística ou cotidiana, caracterizada por uma efetiva

30 Discutirei mais detalhadamente esta estética no capítulo três deste trabalho. 64

afirmação de si e sua arte. Interessante notar que, obviamente sofrendo modificações em seu elenco e números musicais, este último espetáculo parece ter se mantido e envelhecido junto com suas artistas. Agora são outros corpos, elas sofreram visíveis modificações físicas com o passar do tempo e estas e o show parecem ter se reinventado. O glamour e o brilho se mantiveram, mas os gestos, coreografias e marcação da dança não são mais os mesmos, ainda que Suzy Parker tenha se apresentado com as pernas de fora em um número da canção “Copacabana”, aqui em versão remix na voz de Eliana Pittman. Suzy, inclusive, parece ter sido uma das responsáveis por este show ter se realizado em Vila Isabel e ao final do espetáculo, após todas e todos terem desfilado perante o público com bonitos trajes brilhantes, agradeceu o público e em tom afirmativo disse que isto é que é espetáculo, ao contrário de apresentações de qualquer coisa que são feitas hoje em dia. Afirmou que um espetáculo tem que ser bem cuidado, ter luxo, brilho, riqueza, com adereços que custaram caro, pois o público merece o que há de melhor. E isto, segundo ela, elas sabem oferecer.

A apresentação foi um sucesso, tanto que uma segunda foi marcada no mesmo local para o dia 09 de dezembro de 2010. Desta vez, o pequeno salão foi substituído pela grande quadra de esportes da referida Associação Atlética. Algumas outras artistas se integraram ao elenco que primeiro apresentou tal espetáculo em Vila Isabel, como Divina Aloma e Cláudia Celeste. A maioria dos números foram reapresentados, excetuando-se as novas artistas que abrilhantaram ainda mais este show e Magaly Penélope, que substituiu New York, New York, inconfundível na voz de Frank Sinatra e na versão apresentada de Liza Minelli, e a impagável “Garota Solitária” por uma singela Over the Rainbow, do filme “O Mágico de Oz” e o grande sucesso drag queen do filme “Priscilla, a rainha do deserto”, I Will Survive, de Gloria Gaynor.

Ao contrário da primeira apresentação, esta parece não ter empolgado tanto o público como aquela. As pessoas pareciam se divertir, mas a quadra de esportes era muito grande para tal evento, de modo que muitas mesas não foram preenchidas e as artistas tinham que fazer enorme esforço para conseguir manter a atenção de todo o público. Se elas permaneciam próximas da entrada do espaço reservado para a apresentação do show, as mesas do final não as acompanhavam muito bem e vice-versa. Esta questão do espaço, juntamente com o alto barulho da forte chuva que caía sobre a cobertura de zinco do ginásio e uma goteira bem ao centro que poderia levar ao chão qualquer uma que desta se descuidasse, parece ter atrapalhado o próprio 65

andamento do espetáculo e as artistas se mostravam um pouco dispersas e não tão integradas entre si e seus números. De qualquer forma, belíssimos números foram executados com virtuoso profissionalismo; o que fez a diferença foi o acolhedor momento de encontro e criação de um ambiente de partilha entre artistas e plateia que tivemos no primeiro espetáculo em Vila Isabel.

2.2. She likes the free, fresh wind in her hair, life without care

“Agora é que são elas” é datado originalmente como de 1967. James Green (2000) afirma que entre 1965 e 1967 diversos espetáculos de transformismo, nos moldes de um Teatro de Revista decadente ou uma “revista-gay” nos dizeres de Neyde Veneziano (1991), tomaram conta do Rio de Janeiro: “Boas em liquidação” (1965), “Bonecas na quarta dimensão” (1965), “Bonecas de minissaia” (1967), “Les girls em alta tensão” (1967) e o próprio “Agora é que são elas” (1967). Antes deste último e os citados espetáculos deste tipo, Les Girls foi um marco da travestilidade em nossos palcos, estreando no clube Stop, na Galeria Alasca, em fins de 1964. O pioneiro foi The International Set, montado no início de 1964 neste mesmo clube Stop, com números de travestis que ficaram famosas nos bailes de carnaval. Segundo James Green (2000), algumas travestis faziam shows em determinadas boates gays no início da década de 1960, mas eram dublagens de divas famosas, ao passo que The International Set trouxe um maior profissionalismo e estruturação enquanto espetáculo teatral de travestis. Les Girls foi montado segundo este modelo e atraia público da classe alta e a imprensa que vinha noticia-lo, viajando inclusive para São Paulo e o Uruguai. Green afirma que,

O enredo de Les Girls era simples. A ação se passava no consultório de um psiquiatra, que ouvia os problemas de belas mulheres que eram, é óbvio, travestis. Entre uma cena e outra, o público testemunhava a transformação do enfermeiro José Maria em Maria José. O elenco cantava, dançava e desfilava com fantasias elegantes. Os transformistas assumiam seu papel de mulher com perfeição, e a metamorfose de José Maria declarava o desejo dos homens de se vestir como mulheres (GREEN, 2000, p.373).

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Diferentemente de uma travestilidade – ou travestismo – carnavalesco ou com fins cômicos e de deboche do gênero feminino, tais shows colocavam em evidência a feminilidade e espetacularidade dos corpos travestis, dando “a impressão de serem mais femininas do que as próprias divas” (GREEN, 2000, p.375). Alguns nomes despontaram neste cenário. O mais famoso deles foi Rogéria. Nascida Astolfo Barroso Pinto, nome que nunca procurou esconder e ao qual se refere de forma humorística, Rogéria foi uma das estrelas do espetáculo Les Girls e também “apresentou-se em ricas produções no estilo Las Vegas de Carlos Machado” (GREEN, 2000, p.376). James Green (2000) aponta que ela viajou por diversos países como Angola e Espanha até chegar ao famoso clube Carrousel em Paris, conhecido por seus shows de travestis. Já Neuza Oliveira (1994), em sua obra sugestivamente intitulada “Damas de Paus”, afirma que ela foi censurada com o fechamento político de fins da década de 1960, sendo proibida de aparecer na TV, cinema e teatro. Em meados de 1970 volta à cena – ou ao Brasil em 1973, como afirma Green (2000) – tornando-se definitivamente uma figura pública, uma estrela ou celebridade. Desde então, Rogéria tem estado na ativa e em evidência, participando de diversos tipos de manifestações artísticas, como montagens teatrais, alguns longas e curtas-metragens no cinema e, principalmente na primeira década dos anos 2000, fez frequentes aparições e participações em diversificadas obras televisivas. Cabe mencionar ainda que o trabalho de Rogéria é bastante reconhecido, sendo ilustrativo de tal reconhecimento sua conquista, no ano de 1980, do “Troféu Mambembe, outorgado pelo Instituto Nacional de Artes Cênicas (Inacen), como Revelação de Atriz (no Rio de Janeiro), por seu trabalho na peça O desembestado, de Ariovaldo Matos” (TREVISAN, 2007, p.245).

Diversos nomes provenientes desta geração poderiam ser aqui citados, como Jane Di Castro, Eloina e tantas outras. O sucesso do show de travestis na década de 1960 é notório:

O espetáculo Gay Fantasy, dirigido pela veterana Bibi Ferreira, fica um ano em cartaz no Rio de Janeiro e é recomendado pela crítica especializada como evento de primeira categoria. Depois vieram o Rio Gay, Travestis S/A, espetáculos caros e luxuosos que tinham como estratégia de lucro a figura ambígua do travesti como peça fundamental de consumo (OLIVEIRA, 1994, p. 63).

A ambiguidade certamente era uma marca de tais corpos e espetáculos, mas talvez possamos afirmar que esta era mais sugerida do que realmente exibida. A travesti que ganhou 67

projeção nestes espetáculos, alcançando certa fama e status de estrela, foi a travesti extremamente feminina, aos moldes das grandes divas do cinema ou da Revista. Estes corpos primavam por sua feminilidade, colocada em cena com muita sensualidade, glamour, sex appeal... em uma construção que afirmava ainda mais um estereótipo feminino do que efetivamente o estabelecia sob outras bases. Ambígua mesmo seria a década de 1970 e alguns de seus importantes expoentes: Dzi Croquettes, Secos & Molhados e alguns elementos e apresentações dos Tropicalistas, como Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Dzi Croquettes foi o nome de um grupo e espetáculo levado à cena no Rio de Janeiro no ano de 1972. Inicialmente contando com oito homens e posteriormente, entre entradas e saídas no grupo, fixando-se em treze componentes, Os Dzi Croquettes tinham uma proposta ambígua e bastante indefinível: uniam dança, teatro e música em uma apresentação ao mesmo tempo espetacular, exuberante, parodística, lúdica, sensual e humorística, envolta em muita purpurina, figurino exagerado e glamour. Corpos masculinos travestidos com elementos femininos não negavam sua masculinidade nem pretendiam constituírem-se como uma síntese do binarismo homem-mulher. Em suas aparições, mesclavam vida e teatro, pois o grupo vivia todo junto em um tipo de comunidade e as relações por eles estabelecidas não passavam em branco no que era construído para o palco. Esta comunidade também dialogava com seus fãs, nomeados de tietes, e que eram verdadeiros seguidores do espetáculo e perseguidores de seu estilo de vida.

Segundo Rosemary Lobert (1979), de início os Dzi nomearam seu espetáculo de “show de travestis” objetivando nortear o espectador acerca do que encontraria ao entrar no teatro. Mas a proposta também foi autodenominada como andrógina e efetivamente exercitada sem nenhum caráter classificatório, seja em termos teatrais e/ou sociais. O que importava era sua arte e que eram gente, forma como se denominavam31. Fizeram temporadas de extremo sucesso no Rio e em São Paulo, como também viajaram pela Europa passando por , Itália e França. Aclamados em Paris, substituindo, por exemplo, a diva Josephine Baker, morta em cena em sua temporada no Teatro Bobino, em 1976 voltam ao Brasil, diretamente para a Bahia, onde o grupo sofre uma crise e alguns membros se separam, dando início a uma fase de idas e vindas de componentes e montagem de novos espetáculos, que acabaram tendo o primeiro deles como um

31 Rosemary Lobert iniciou sua pesquisa como tiete e acabou por assumir funções administrativas e posteriormente teatrais (iluminadora) dentro do grupo, momento em que ocorreu a “transformação da antropóloga em gente” (1979, p.27), segundo palavras dos próprios Dzi. 68

tipo de espectro. O grupo e esta fase duraram até início da década de 1990, quando foi decretado oficialmente seu fim. mais detalhadamente a este grupo no capítulo final desta dissertação.

Dialogando com esta ambiguidade dos Dzi Croquettes, entra em cena no ano de 1973 o grupo musical Secos e Molhados. Tendo o cantor Ney Matogrosso nos vocais, o grupo de rock utilizava-se de vivazes figurinos e maquiagem que talvez possa ser comparada a uma máscara teatral. No palco, Ney era a figura central: seu figurino era o mais exótico e sensual, deixando parte de seu masculino corpo à mostra, compondo com sua voz aguda e expansivos rebolados uma personagem andrógina, ambígua e, quiçá, inclassificável, como ele viria cantar já em carreira solo mais de trinta anos após o fim do grupo em 1975. Sua carreira solo passou por diversas personificações, sempre tendo em seu corpo mutante e seminu, voz e rebolado característicos, elementos cruciais de sua trajetória artística.

Atitudes ambíguas também estiveram presentes no grupo de cantores conhecidos como Tropicalistas, principalmente Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa – Os Doces Bárbaros. Não se chegou a uma travestilidade em si ou uma proposta que trabalhasse nestes moldes; o que tais cantores levaram para o palco foi uma proposta de prazer e liberdade, incluída aí a sexualidade e as construções de gênero. Neuza Oliveira (1994) cita um show realizado por Caetano Veloso em 1973 que considerou histórico e no qual este cantou “com indumentária feminina, brincos enormes e boca pintada” (1994, p.64). Boatos sobre uma suposta homossexualidade de Gil e Caetano, bem como de Bethânia e Gal sempre rondaram nosso imaginário midiático e musical, sendo negada pelos primeiros e, se não afirmada, ao menos não foi desmentida no caso das segundas. Estes exemplos da década de 1970 nos mostra o quanto a categoria gênero, na qual a travesti e a travestilidade se situaria, se relaciona com a categoria sexualidade, pois estas travestilidades ambíguas também assim o são em seus afetos e construções de si. Não temos apenas um corpo travestido que se exibe, mas sim politicamente posicionado frente às convenções sociais e o contexto de ditadura militar que o país vivia, mesmo que isto não estivesse clara ou didaticamente presente em suas proposições.

Apesar de não serem mais frequentes no formato do Teatro de Revista, shows e espetáculos de travestis e travestilidades continuaram ganhando destaque a partir da década de 1970. Estas artistas e outras que surgiriam nestes novos espaços foram acolhidas por boates e outros locais da 69

noite, exercitando-se nos mais diversos tipos de shows e integrando-se às noturnas cenas undergrond, de entretenimento, homossexuais, etc. Absorvidas pela noite, desempenhariam diferentes funções, como atrações principais ou secundárias de casas noturnas, hostess32 ou extraordinárias figuras que apenas vagam por estes ambientes quando a luz do dia não se faz mais presente. Este ainda é o principal cenário de visibilidade de artistas da travestilidade no Brasil e possivelmente no mundo. Muitas artistas mantêm contratos com boates, apresentando-se como residentes e muitas vezes fazendo shows em mais de um local na mesma noite.

Uma figura mítica da noite carioca é Laura Di Vison. Ela foi uma importante personagem na história da travestilidade artística brasileira, sempre escrachada e rompendo barreiras com suas performances sucessivamente surpreendentes. Utilizava as mais inusitadas roupas e fantasias, como uma de vaca que esguichava leite no público, e sua tradicional maquiagem branca, com olhos bastante marcados em cores fortes e cílios postiços e boca preta. Fez do espaço Bohêmio, na Lapa, sua casa e ali permaneceu divertindo, surpreendendo e chocando por quase duas décadas. Ronald Villardo nos descreve um de seus shows realizados em São Paulo, no qual “ingere cérebros de animais (se recusa a revelar de que animal), levando alguns espectadores a fechar os olhos (...) chupa o próprio peito, põe o dedo no nariz e depois na boca e exibe sua nudez sem constrangimento” (1997, sn), além de ter trocado de roupa inúmeras vezes durante tal número, motivada pelas intervenções do público que lhe sugeria o que vestir. Villardo diz ainda que “ao final, o público se mostra alegre. Aplaude de pé e disputa animadamente os brindes oferecidos por Laura – latas de goiabada, absorventes...” (1997, sn). Laura e seu alter-ego Norberto Chucri David, como era conhecido o professor de História que ela também encarnava nas horas vagas, faleceram no dia nove de julho de 2007, deixando muitas histórias, memórias e saudades.

É neste cenário de boates, festas e personagens notívagos que a figura das drag queens começou a ganhar corpo. Dialogando com tantas outras travestilidades, pode-se afirmar que foi na década de 1990 que travestilidades foram constituídas e nomeadas como drag queens. Nesta década, temos uma espécie de boom drag: seres coloridos, exagerando e reinventando ainda mais

32 Hostess é a profissão daquelas pessoas, geralmente figuras femininas, que recepcionam convidados em locais como festas, boates, restaurantes, etc. Além deste entretenimento e recepção inicial, são vistas também como uma espécie de cartão de visita daquele local, dando-lhe visibilidade. O termo original em inglês já foi aportuguesado desta forma, constando em diversos dicionários, como a versão digital do Dicionário Aulete (2011). 70

os traços característicos do feminino, estas rainhas logo tornaram-se visíveis. Como afirma João Silvério Trevisan, “a atuação das drag queens foi facilitada por englobar um componente lúdico e satírico semelhante ao das caricatas do carnaval, o que as levou a transitar por áreas jamais imaginadas, como as concorridas festas de socialites, shows beneficentes e colunas sociais da grande imprensa” (2007, p.246, grifos no original). Apesar do termo drag queen e o modelo de construção de personagem ser de origem norte-americana, não há como ignorarmos as caricatas tão presentes em nosso carnaval e cujo tipo de construção de personagem também ocupou palcos e boates, como menciona Trevisan. Alguns atores transformistas se nomeiam como caricatas ao invés de drag queens e este parece ser um marcador geracional.

O estilo de apresentação de atores transformistas e travestis e transexuais artistas seria mais glamouroso do que o de drag queens, que por definição seria mais debochado ou humorístico. Além disso, há todo um aparato do qual uma drag queen participa, como um verdadeiro trottoir pela noite, exibindo seu corpo mediatizado em prol do evento ou casa noturna pela qual foi contratada. Ali então atua como hostess, divulga determinada festa ou local de diferentes formas – uma muito comum é estampar o flyer ou folheto de divulgação daquela boate – apresenta seu show, circula por entre os presentes interagindo com estes, entre outros modos de se fazer ser notada.

Da mesma forma que atores se nomeiam como transformistas-caricatas, drag queens se nomeiam como top drags, ou seja, aquelas que fazem shows mais espetaculares, focados em um novo ideal de beleza e feminilidade. Podem se nomear também como drag caricata ou tantas outras denominações possíveis, que geralmente segue o estilo de show priorizado por aquela artista. Algumas vezes utilizamos drag queen e transformista para nomear a mesma figura e/ou estilo de show, o que também ocorre na cultura europeia e/ou anglo-saxã ao utilizarem também de forma ambígua e cambiante os termos female impersonator e drag queen, respectivamente. Cabe ressaltar que estes não são modelos e lógicas necessariamente importados.

Conforme foi afirmado anteriormente, talvez possamos localizar que no Brasil as drag queens ganharam maior visibilidade na década de 1990, mas nos é difícil precisar quando tal fenômeno teve início, justamente por esta ambiguidade na nomeação daquele ser. Transformista ou caricata, por definição não seriam o mesmo que drag queen, mas todos estes termos podem ser utilizados para nomear uma única persona. Duas características presentes nas drag queens e que 71

poderiam dar pistas sobre o uso da ideia de exagero que marca sua corporalidade seria a aparente não-naturalidade de seu feminino e o humor, característico tanto de suas performances e interações quanto da própria constituição de si. Explorarei melhor esta construção drag queen no capítulo quatro deste texto.

2.3. That's why the lady is a tramp!

Outro espaço que também permitiu um exercício de travestilidades (artísticas) foram as festas particulares promovidas por grupos de amigos que se identificavam como homossexuais ou turmas formadas por este mesmo público. Um desses grupos foi o formado pelos leitores do jornal “O Snob”, periódico doméstico de temática homossexual que circulou entre os anos de 1963 e 1969. De acordo com Rogério Costa (2010), este “era dividido em colunas assinadas ou não, envolvendo fofocas, pontos de encontros, divulgação e comentários de festas e concursos, além de tornar público os encontros amorosos” (p.09). O jornal “O Snob”, cujo slogan que o definia era “Um jornal informativo para gente entendida. Um jornal para gente bem. Um jornal para você que é de bom gosto” (GREEN, 2000, p. 300), circulou por uma verdadeira rede de sociabilidade homoerótica, formada principalmente pelos homossexuais autodenominados ou nomeados como “bichas”, categoria que se contrapunha a “bofe”, ou seja, homens que faziam sexo com homens, mas não se viam como homossexuais, além de ser desejável que estes fossem extremamente viris. Uma “bicha” se relacionava com um “bofe” e este era o arranjo possível, ansiado e mantido por tal rede. Entendido também era outro termo identitário utilizado para definir homossexuais ou o “terceiro sexo”33.

A rede de sociabilidade que formava “O Snob” concebia seus membros como pertencentes a uma “sociedade bichal na qual eram a nata – a high society” (COSTA, 2010, p. 09, grifos no original). Definitivamente, formavam uma rede camp que tinha como um de seus pontos altos as festas e concursos que promoviam em apartamentos de seus membros. Na década de 1960,

33 Para uma discussão acerca das categorias identitárias performatizadas no jornal “O Snob”, suas fixações e transformações, ver principalmente a dissertação de mestrado intitulada “Sociabilidade homoerótica masculina no Rio de Janeiro na década de 1960: Relatos do jornal O Snob”, de Rogério Costa (2010) e trechos do trabalho de James Green (2000), “Além do Carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX”. 72

período no qual o “O Snob” foi publicado, os concursos oficiais de “Miss Brasil” eram extremamente populares, arrastando verdadeiras multidões para o Ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Muitos homossexuais viam este espaço como um momento festivo, de encontros e glorificação de um ideal de beleza, feminilidade e glamour, elementos estes presentes na estética camp construída por aqueles mesmos homossexuais, ainda que não nomeada desta forma por tais bichas.

Os concursos de beleza pareciam oferecer grandes atrativos para homossexuais da época e alguns membros da rede “O Snob” frequentavam também o concurso de beleza negra “Miss Renascença”. Os homossexuais desta rede de sociabilidade – principalmente as “bichas”, já que “bofes” podiam participar das festas, mas apenas como companheiros destas – também promoviam seus concursos de beleza, os quais foram importantes espaços de exercício da estética que pode ser nomeada como camp e de travestilidades, as quais poderiam se transformar em identidades travestis ou transexuais no futuro ou apenas visibilizarem-se naqueles breves momentos como uma afirmação festiva, brilhante e luxuosa de si. Novamente recorro a Rogério Costa (2010), que traz um interessante resgate do material de “O Snob” e relato destes concursos:

Nos primeiros anos, todavia, eram fortemente influenciados pelos concursos oficiais, e as candidatas proclamavam em sua inscrição os estados que defendiam (miss Pernambuco, miss Guanabara etc.) ou se apresentavam como representantes de algum clube.

Os organizadores estruturavam esses concursos em torno de dois tipos: “em travesti” e “gay” (como “terceiro sexo”), relacionados, o primeiro, à vestimenta feminina e aos aparatos de maquiagem (Miss luxo, Miss elegância, por exemplo), o segundo, à trajes masculinos, valorizando a elegância cotidiana das “bichas” (Miss Praiana, Concurso de camisa, entre outros).

Esta distinção torna-se importante em nossa análise por trazer à tona o que eles entendiam como travesti, visão, aliás, bastante diversa da que temos hoje. Para a rede, o travestismo não traz componente identitário, seus elementos não se consideravam nem se nomeavam travestis, nem mesmo quando paramentados com vestimentas femininas (“montadas”), como ilustram estes relatos: “Tratando-se de um desfile ‘GAY’ e não em travesti, apareceram algumas delas, totalmente depiladas e maquiadas”; “recorreu a traje feminino, o que como outras candidatas, quebrou um pouco a ética do desfile”.

Havia, como podemos observar, forte crítica aos participantes que “confundiam” os dois estilos de concurso. As “bichas” que se maquiavam como mulheres, se depilavam e vestiam-se em trajes femininos para o concurso “gay” eram desclassificadas.

Na comunidade então se expressava a atividade de se travestir com as expressões “meu travesti”, “seu travesti”, “em travesti”, “o travesti de”, sinalizando um tipo de ação momentânea e pontual ou externa (uma incorporação): “Althea vai comprar sapato alto para treinar em casa. Pois a mesma pretende botar travesti. Viva! Na Festa das Rosas”[grifo meu]. 73

Portanto, ao se travestirem, os sujeitos “incorporavam” personagens distintos deles mesmos. Segundo os relatos contidos de O Snob, não eram travestis; acreditavam que “tinham” um travesti. O travestismo, para a rede, era, portanto, uma ação pontual e não uma condição que lhes conferisse identidade (COSTA, 2010, p.81-82, grifos no original).

Outro grupo participante da rede do jornal “O Snob” foi a Turma OK: um clube fundado por um grupo de amigos, tendo surgido dessas “pequenas coletividades, numa das costumeiras reuniões que se realizavam semanalmente ou, no máximo, de 15 em 15 dias, no apartamento de Antônio Peres, no Edifício Varsóvia (...). Exatamente no dia 13 de janeiro de 1961” (TURMA OK, 2010). Assim como na rede de “O Snob”, as reuniões aconteciam nas casas dos membros do grupo, havendo um revezamento acerca do local dos encontros, o que ocorreu periodicamente de 1961 a 1969. Após um breve intervalo, a Turma OK voltou à ativa em 1972 e o crescimento do grupo já não permitia mais que o espaço das casas e apartamentos fosse ocupado, de modo que passaram a utilizar o “Clube 1º de Maio, em São Cristóvão, por deferência de seu Presidente, Sr. Milton Botelho, ou o Cabaré Casanova, por gentileza de seu proprietário, Sr. Nilson Salgueiro” (TURMA OK, 2010).

Emoldurando o conteúdo do site da Turma OK e em letras que se destacam e movimentam- se a todo o momento, há uma pequena definição que o próprio grupo faz de si:

A Turma OK não é um grupo de militância gay, nem mesmo uma boate ou bar gay. É um clube social, estritamente familiar, na tradição carioca gay do centro do Rio. Faz parte daquele cenário, assim como estão a Gafieira Estudantina, o Bar Luis e o Clube do Bola Preta. É uma verdadeira confraria gay, localizada na Lapa (TURMA OK, 2010).

No ano de 1982, esta autodenominada confraria passou a fazer de um antigo centro cultural que funcionava num casarão de três andares na Rua do Rezende, número 43, na Lapa carioca, sua morada. Desde 2008 ocupam outro espaço, o número 42 da mesma Rua do Rezende, e foi lá que assisti a um delicioso espetáculo comandando por Lorna Washington. Este show foi basicamente de dublagens, excetuando-se alguns números nos quais Lorna assumia o microfone para interagir com a plateia e convidadas ou nos momentos em que soltava a voz em clássicos da MPB. O exercício da travestilidade em performances teatralizadas através de gestos e dublagens parece 74

sempre ter sido o foco das festas da Turma OK, como afirmam no trecho a seguir, também presente em seu site:

Mas a grande curtição dos sócios da Turma OK são os shows de dublagem. Hoje em dia, esse tipo de show não tem para as novas gerações, a importância que teve para os fundadores da Turma OK. No início dos anos 60, não existia qualquer tipo de manifestação cultural dentro da comunidade homossexual brasileira.

Não havia militância gay, nem um gueto livre com bares, boates, saunas. Não era possível encontrar uma leitura disponível como jornais e revistas gays, nem eram feitos filmes ou séries de televisão com temática (pró) homossexual. Ninguém imaginava que um dia iria existir a internete, e as pessoas teriam em contato umas com as outra, em qualquer parte do mundo.

Estavam todos emparedados. E a única expressão cultural gay era possível eram esses shows de dublagem. Hoje quando os Okeis homenageiam os ídolos como Carmem Miranda, Bette Middler ou Madonna, estão celebrando a cultura gay, e afirmando sua própria inserção dentro da sociedade. A dublagem é uma tradição cultuada pelo grupo.

Só que no caso deste clube, os espetáculos são superproduzidos. Num pequeno palco acontecem coisas de deixar o público boquiaberto. Isso acontece por uma simples razão: o time dos que trabalham nestes espetáculos conta com grandes profissionais do show business e da TV, que participam gratuitamente, só pelo prazer de fazer um espetáculo muito bacana (TURMA OK, 2010).

Tanto a dublagem quanto a travestilidade são cultuadas, como nos concursos de misses e em festas como a “Esses homens maravilhosos e suas mulheres misteriosas”, na qual homens que nunca se montaram apresentam-se em trajes femininos, mas de forma diversa do deboche carnavalesco da mulher encontrado no carnaval carioca. Tais “homens”, termo grafado entre aspas no site da Turma OK (2010), assumem esta feminilidade, brincando com seus tons neste espaço festivo e de verdadeiras relações de amizade. Segundo comentário de Mr. Bharoum, esta é “Seguramente a festa mais divertida e ansiada porque nesse dia os machões que não se montam liberam a maravilhosa entidade feminina que habita dentro de si. É um luxxxxxo!” (TURMA OK, 2010, grifos no original).

Uma pequena e discreta porta, sinalizada apenas com um cartaz feito de tecido vermelho e no qual se lê em dourado Turma OK – já no estreito hall de entrada que dá acesso à escadaria –, não dá a dimensão do salão de festas que encontraremos logo no andar de cima. O espaço não é grande e tem o formato de um longo retângulo: em uma de suas extremidades fica um bar e, na outra, portas com pequenas sacadas que dão para a rua, não tão movimentada como a Mem de Sá e outras maiores da Lapa. No centro ficam espalhadas diversas mesas e cadeiras e ainda há um 75

pequeno palco no qual são apresentados os muitos espetáculos realizados pela Turma OK. Este palco é bastante estreito, mas bem acomodado ao salão e possui uma bela cortina prateada ao fundo, a qual pode receber diversos elementos ou ceder lugar a outros tecidos e cores dependendo do evento, além de ser todo emoldurado imitando o barrado de um teatro clássico e luxuoso. Destacam-se ainda diversas fotos espalhadas pela parede do salão, um quadro de avisos e eventos e a esguia figura de uma grande diva, em pose de grande aristocrata camp em tons de preto e prata.

O palco da Turma OK é o seu grande atrativo e diverso em suas atividades, possibilitando festas como a “Noite das Estrelas”, na qual um concurso de dublagens elege as Estrelas de Ouro, Prata e Bronze; o concurso de dublagem masculina “Galo de Ouro”; a “Convenção das Bruxas”, que transforma a Turma OK em um castelo cheio de monstros e diferentes figuras fantasmagóricas; festas juninas e outras que seguem temas do calendário festivo nacional. Há também a apresentação de diversos espetáculos comandados por estrelas habitués da casa, cuja periodicidade é bastante variada, como o “ABC Diamond” de Sissy Diamond, “Noite do Branco, Prata e Dourado” de Carlos Salazar, “Nas ondas do Rádio (AM/FM)” de Elaine Parker, “Sexta dos Maduros” comandada por artistas variadas, “Simplesmente Patrícia”, de Patrícia Saint- Laurent, “Rio’s Ladies” da regional carioca do BCC – Brazilian Crossdresser Club, entre outros.

Vários concursos também são realizados e parecem ser muito apreciados pelos associados e visitantes da Turma OK. Os eventos “Rainha OK”, que elege como rainha uma grande colaboradora no grupo naquele ano, e “Lady OK” e “Mister OK”, competições de beleza para aquelas e aqueles que já passaram dos 40 anos de idade, geralmente agitam a sede do grupo. Um concurso em especial e certamente o mais importante do grupo é o “Musa OK”, que no ano de 2010 teve lugar de gala na casa de shows Asa Branca, na Lapa. Como também divulgado no site do grupo sobre esta última edição,

A Musa OK, inicialmente denominada Musa de Inverno, tornou-se um concurso anual, onde concorriam a priori sócios que tinham idade entre 18 e 39 anos. Entende-se que, este concurso era e é exclusivamente para transformistas, rapazes que se transformam em personagens femininos para eventos específicos e shows na Turma OK, sendo o primeiro realizado no ano de 1972 e foi eleita a primeira Musa – Petula – que foi reeleita mais dois anos, recebendo o título de “Musa Eterna”. Hoje estamos na 34ª edição, sendo a atual, hoje denominada apenas Musa OK – Fabíola Fontinelle (TURMA OK, 2010, grifos no original). 76

No dia 11 de outubro de 2010 foi levado ao palco da Turma OK o espetáculo “Lorna Muito Especial”. Comandado por Lorna Washington, o show teve início com um bonito número da canção-título do musical Dreamgirls, sucesso da Broadway de autoria de Henry Krieger e Tom Eyen. Apoiadas em uma dublagem muito bem executada e uma sutil e precisa coreografia que se destacava nas mangas esvoaçantes das blusas coloridamente estampadas de Lorna e suas companheiras Luiza Moon e Kemilly Hanner, o refrão era mais do que propício para dar o tom da noite: “Nós somos as Dreamgirls, garotos/ Nós iremos lhes fazer felizes... yeah!/ Nós somos suas Dreamgirls, garotos/ Nós sempre cuidaremos [de vocês] / Nós somos suas Dreamgirls, Dreamgirls nunca deixarão vocês/ Não, não e tudo que você tem que fazer é sonhar, querido.../ Nós estaremos lá/ Sonhos...” (KRIEGER E EYEN)34.

Logo após este belo número, sozinha ao palco Lorna dublou uma canção que possuía diversos trechos distorcidos. Sua boca e caretas acompanhavam a música a cada vez que esta saía do tom e ritmo, provocando gargalhadas na plateia majoritariamente masculina e de meia-idade que ali estava e que possivelmente era composta por associados e tradicionais frequentadores do local. Os presentes foram brindados ainda com clássicos e sedutores números de Luana Muniz, que inicialmente se apresentou com um vestido longo de canutilhos brancos e brilhantes e uma fenda que periodicamente revelavam suas pernas. Ela também se apresentou com muitas joias e um vestido novamente longo, mas todo preto e colado ao corpo, com um cinto brilhante que destacava ainda mais suas curvas. Luana iniciou este número junto ao bar da Turma OK, de costas para a plateia, de modo que se virava sedutoramente acompanhando a música, em uma versão platinada de Jessica Rabbit, famosa personagem do desenho “Uma cilada para Roger Rabbit”.

Luiza Moon e Kemilly Hanner voltaram ao palco, mas em números individuais. Enquanto Luiza se apresentou em um longo vestido de gala vermelho, com uma grande capa que foi por ela utilizada na dublagem da canção You gotta be, de Des’ree, Kemilly apresentou uma vigorosa dublagem que foi por ela interpretada em um leve e ousado vestido com estampas que pareciam imitar a pele de uma onça ou desenhos similares. As duas portavam bonitos arranjos de penas na cabeça, cada qual combinando com seu vestido.

34 Tradução livre, no original: “We're your Dreamgirls, boys/ We'll make you happy...yeah!/We're your Dreamgirls, boys/ We'll always care/ We're your Dreamgirls, Dreamgirls will never leave you./ No, no and all you've got to do is dream, baby.../ We'll be there/ Dreams…” (KRIEGER E EYEN). 77

Tivemos ainda mais três apresentações: uma travesti que acabava de retornar ao Rio e cujo nome não consegui entender e acabei deixando passar, a cantora e apresentadora trans Fabianna Brazil, que executou várias canções ao vivo acompanhada de dois músicos, e Carlos Salazar, que apresentou um número de dublagem masculina em uma sóbria e elegante roupa social, mas que destoou um pouco das diversas travestilidades que tomaram conta do palco naquela noite. Momentos impagáveis do espetáculo foram os protagonizados pela travesti primeiramente mencionada; ela estava visivelmente bêbada – ou extremamente nervosa – e apresentou sua dublagem de forma bastante histriônica, incluindo um requebrar que deixava sua calcinha à mostra ao final do espetáculo, enquanto Fabianna Brazil cantava e todos e todas as artistas faziam-se presentes no palco.

Ao longo do show, Lorna Washington interagiu bastante com o público, inclusive chamando ao palco um tímido jovem que levou ao espaço da Turma OK para comemorar seu aniversário. Envergonhado, ganhou um “Parabéns a você” cantado por Lorna e todos os presentes que responderam ao seu apelo e a acompanhou. Lorna foi bastante afetiva tanto com as artistas que eram suas convidadas, como com a plateia que com a baixa estatura do palco da Turma Ok se encontrava muito próxima dela. Lorna era a dama da noite, mas também mais uma dos participantes desta confraria. A noite, aliás, parece ter sido bem afetiva para todos pois o clima era de mais um prazeroso encontro de grandes amigos. E, claro, com muito luxxxxxo! 78

Os homossexuais seriam sujeitos montados a partir de outros processos de subjetivação, sujeitos que, muitas vezes, investem conscientemente em sua própria fabricação. Sujeitos que literalmente se inventam e reinventam, que mudam de nome, de aparência, de desejo e de sexo, seres que mudam até de corpo, na busca de construírem territórios para seu desejo habitar, de corpos para materializar esse desejo. Drag queens na vida, drag queens do tempo, mesmo quando de cara limpa e corpo nu.

(Durval Muniz de Albuquerque Júnior)

Autenticamente fake ou verdadeiramente poser

(Dudu Bertholini)

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Passeios por teatros em Copacabana e Ipanema:

O projeto “Laura Di Vison Auto-Retrato”, edições 2009 e 2010 79

Num início de noite de sexta-feira, dia 23 de outubro de 2009, fui com meu companheiro jogar baralho na casa de um amigo em Copacabana. Estávamos animados, pois vários amigos queridos estariam presentes e desejávamos tal reunião. Descemos do ônibus em frente à Praça Cardeal Arcoverde e caminhávamos para a rua que dava acesso à casa de nosso amigo quando vimos, no outro lado da rua, em frente ao Teatro Gláucio Gill, uma drag queen berrando com um megafone que naquela noite ali teria espetáculo.

Esta era Eula Rochard em trajes de gala, cartola vermelha brilhante assim como o maiô, adornado com diversos babados dourados no pescoço e na longa cauda, completados com meia arrastão vermelha, plataformas douradas e longas luvas também vermelhas com enormes laços dourados. Era uma rainha ou talvez um tipo de vedete de uma elegante corte européia do século XIX. A elegância contrastava com sua voz estridente no megafone e seu palavreado nada nobre. Acompanhando-a estava a bela Luiza Moon, extremamente feminina e recatada, com um corpete preto com listras vermelhas, a mesma cor escolhida para sua farta echarpe de plumas, sua meia arrastão, sua cartolinha repleta de longas penas e seus sapatos finos e brilhantes. Eula e Luiza formavam uma dupla díspar, entre o deboche e a exuberância e desta forma convidavam e recebiam o público para o primeiro dos três espetáculos do projeto “Laura Di Vison Auto- Retrato”.

O folder de divulgação dos espetáculos exaltava a diva Laura Di Vison e convidava o público para participar destes, os quais tinham o tom de uma celebração da cultura gay, drag e transformista:

Musa do underground carioca nas décadas de 70, 80 e 90, Laura Di Vison foi um ícone LGBT! Espontânea, crua e irônica, esta estrela charmosérrima provocou e levou ao êxtase plateias lotadas! Alegre e apaixonada por prazer e plumas, deixou de queixo caído de renomados sociólogos a personalidades internacionais. Venha se deliciar neste projeto assistindo aos espetáculos em homenagem a Laura Di Vison, com participação pra lá de especial de grandes artistas da cena LGBT Carioca e o conforto do Teatro Gláucio Gill. Você vai ser seduzido por esta série de eventos em homenagem a saudosa Laura Di Vison! (2009).

Naquela noite, joguei baralho e não vi o espetáculo. Ao ver aquela cena de Eula e Luiza, atravessei correndo a rua e me dirigi apressadamente à bilheteria, mas os ingressos já estavam esgotados. Na verdade, o espetáculo já estava quase começando e a maior parte do público que 80

tinha conseguido uma entrada já aguardava sentado no conforto do teatro. Várias pessoas chegavam à procura de ingressos e também se frustravam. Algumas iam embora, outras ficavam e poucas convidadas entravam. Continuei por ali, à espera de algo acontecer, talvez algum dos meus poucos conhecidos no Rio aparecer naquele momento com pelo menos um ingresso sobrando. Mas nada aconteceu, as pessoas se dispersaram, Eula e Luiza também entraram e a noite de jogatina teve que ser a melhor opção, não sem antes ter garantido os ingressos (que tinham o preço popular de R$1,99) para os dois próximos espetáculos.

Esta série de shows compreendeu três apresentações com diferentes artistas em cada dia. O primeiro, realizado na sexta-feira, 23 de outubro de 2009, foi “Elas fazem rir!” com Rose Bombom, Suzy Brasil e convidadas. O espetáculo II foi “É babado!”, apresentando Lorna Washington, Luana Muniz e Nepopô na noite de sábado, 24 de outubro de 2009. E fechando este ciclo no domingo, 25 de outubro de 2009, tivemos Ângela Leclery, Paula Braga e Marlene Casanova apresentando “Homenagem a Laura Di Vison”. Ressalto que o ingresso para este último dia informava que também seria uma homenagem às cantoras Clara Nunes e Edith Piaf. Os referidos espetáculos abriram a semana de eventos em prol da “14ª Parada do Orgulho LGBT Rio 2009” e foram organizados pelo Grupo Arco-Íris. Constituiu-se como importante celebração da cultura drag/transformista e realmente foi um sucesso, tendo todas as sessões lotadas e o público aplaudindo veementemente cada número visto no palco.

No ano de 2010 tivemos novamente uma edição do projeto “Laura Di Vison Auto- Retrato”. Desta vez foram quatro apresentações, dispostas da seguinte forma: no dia 27 de outubro o espetáculo “Ao Sair Deixe Suas Lágrimas”, com Rose Bombom, Suzy Brasil, Karina Karão, Paula Braga, bailarinos e convidadas foi apresentado na Sala Baden Powell; exatamente uma semana depois, no dia 03 de novembro, Lorna Washington e Rose Bombom receberam algumas convidadas como Nepopô na apresentação de “Dama da Noite” na Casa de Cultura Laura Alvim; neste mesmo espaço, no dia 05 de novembro, Luana Muniz apresentou-se com bailarinos e algumas jovens travestis o espetáculo “Esquinas”, talvez o mais forte e sensível desta série de shows; e fechando o projeto tivemos a reapresentação de “Ao Sair Deixe Suas Lágrimas”, com Rose Bombom, Karina Karão e Paula Braga, no dia 06 de novembro na mesma Casa de Cultura Laura Alvim. Todos os espetáculos, tanto os de 2009 como os de 2010, tiveram seus ingressos vendidos à R$1,99! 81

* * *

Voltemos um pouco, ao dia 27 de junho de 2009, quando em uma reunião promovida pelo mesmo Grupo Arco-Íris, dentro dos eventos do “Dia Mundial do Orgulho LGBT”, pretendeu-se criar uma associação de drag queens, transformistas e artistas da noite gay do Rio de Janeiro.

Com o título “Roda de Conversa ‘Promovendo a Cultura LGBT, o transformismo na cena gay’” e ocupando o espaço do Centro Cultural Oduvaldo Vianna (Castelinho do Flamengo), o objetivo foi reunir artistas e outros interessados a fim de tentar-se firmar um tipo de associação que englobasse tais artistas, lhes garantindo alguns supostos benefícios trabalhistas. O discurso dos promotores desta roda de conversa foi o de que estas diversas artistas sempre apoiaram e participaram dos eventos e ações da militância, mas nunca foram reconhecidas de outra forma que não como entretenimento. A criação desta associação seria uma forma de reconhecer a importância deles e delas dentro do movimento gay, dando-lhes um crédito que talvez não tenha sido pedido, além de promover-se desta forma uma gestão dos contratos de trabalho das artistas com as boates que as abrigam.

Vários e diversificados interessados participaram da roda, mas apenas duas drag queens e um ator-transformista que realiza shows apenas esporadicamente foram os/as artistas presentes. Nenhum representante das boates compareceu e não tomei conhecimento se tinham sido convidados. Esperavam-se mais artistas e talvez um dos motivos de sua baixa participação foi o fato, explicitado de diversas formas na reunião, de que cada artista mantém um contrato independente com a boate em que se apresenta e talvez ninguém tenha interesse ou coragem de ir contra seus contratantes, apesar de reconhecerem que os cachês são muito baixos e que não há nenhum contrato legal de trabalho que as ampare. Ou porque simplesmente esta não era uma questão interessante e todas tinham seus shows para fazer.

Outro ponto de análise foi o de que a reunião foi proposta por uma ONG já instituída, não partindo a tentativa de associação dos/as artistas interessados/as. Estes/as teriam mesmo o interesse de criar uma associação para subsidiar suas carreiras? Os/as chamados/as artistas da 82

noite não têm o direito de terem carteira profissional de ator, atriz ou outro cargo artístico, salvo os casos em que também desempenhem profissionalmente funções artísticas, tendo feito cursos técnicos que os capacitem para tal. Uma drag queen pode ter registro de ator, desde que tenha feito formação, tenha uma trajetória de trabalho e faça a sindicalização no SATED35 de seu estado. Porém, esta sindicalização necessária para atuação na área artístico-teatral ocorre devido à formação profissionalizante e após registro no Ministério do Trabalho, ou seja, a formalização como ator é fundamental, o que exclui uma gama de manifestações e artistas que aprenderam seu ofício no exercício diário de sua arte, como a grande maioria das artistas da travestilidade. Será que para estas tal registro é mesmo importante?

O que me parece mais importante é o reconhecimento por parte do público e de ninguém mais. Como todo artista ou outro profissional, certo reconhecimento é desejável, mas não é imprescindível para o exercício do trabalho, ainda mais para pessoas frequentadoras e defensoras de uma cultura de certa forma underground ou nômade, que não deseja ser formalizada ou sindicalizada. A iniciativa de colocar em evidência este “travestismo na cena gay” me parece ser interessante, mas que seja para celebrá-lo, resgatar sua história, suas personagens, aprender a respeitá-lo e não exatamente para institucionalizá-lo, segundo a acepção tecnocrata do termo. Fortalecer uma categoria não é simplesmente abarcá-la nos limites de um regimento ou legalidade.

No encontro, várias pessoas defenderam a importância de apoio às drags e artistas da travestilidade e decidiu-se que uma nova reunião seria marcada para dar continuidade ao debate iniciado nesta primeira. Porém, posteriormente nenhuma foi agendada e segundo os organizadores existiam várias outras atividades a serem realizadas que estavam demandando todo o tempo do grupo, de forma que a continuidade desta roda de conversa teve seu fim decretado talvez em seu início.

35 SATED – Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões. Segundo site do SATED/RJ, os documentos necessários para registro neste órgão são os seguintes: “1) Original e xerox da Carteira Profissional (pág. foto e verso), xerox Identidade e CPF; 2) Xerox de comprovantes de residência e escolaridade; 3) Apresentar Curriculum com todas as comprovações de trabalho na função solicitada. (cartazes, filipetas, programas, contratos, notas contratuais, recibos ou carteira assinada); 4) Diploma de Curso Profissionalizante (em caso de Escola Profissionalizante); 5) Pagar taxa de administração no valor de R$ 30,00 (trinta reais); 6) Receber Atestado de Capacitação (caso tenha sido aprovado) para levar a DRT/RJ, mediante pagamento da taxa: Registro Provisório de R$ 160,00 (cento e sessenta reais), Registro Definitivo de R$ 110,00 (cento e dez reais); 7) Se o requerente já possui registro provisório, favor trazer a xerox do carimbo” (SATED/RJ, 2010). Desta forma, estão excluídos da sindicalização e reconhecimento legal todos os artistas da noite, mesmo estes sendo reconhecidos pelo meio, terem vasta trajetória e formação por tempo de ofício, porém não-formalizada. 83

A ideia de uma Associação de Artistas da Noite Carioca, formalizando de alguma forma o trabalho de drag queens e outras artistas da travestilidade não deu muito certo, se pensarmos que o sucesso aqui seria a criação de um sindicato. Mas será que os shows que vimos nos três dias de outubro em que o Teatro Gláucio Gill foi ocupado pelas mesmas artistas que compareceram ou não à reunião do Castelinho do Flamengo não foi tal associação que deu certo e à pleno vapor? Em 2010 este encontro voltou a acontecer, em sua maior parte na Casa de Cultura Laura Alvim, com mesmo sucesso de público e esmero das artistas. Associar-se aqui dizia de um estar junto, ao lado, e não sindicalizados. Quando esta associação tinha como objetivo shows e espetáculos, as artistas compareceram e mostraram todo seu profissionalismo, seu brilho, sua vontade e disposição para estarem ali, no palco, em contato com o público. Isto nos leva a pensar na importância deste tipo de manifestação e personagens enquanto formas estéticas, discussão que iniciarei agora.

3.1. Quand il me prend dans ses bras, Il me parle tout bas, Je vois la vie en rose

Fabiano Gontijo no livro “O Rei Momo e o Arco-Íris: Homossexualidade e Carnaval no Rio de Janeiro” (2009) analisa os sentidos da(s) homossexualidade(s) no carnaval carioca e em uma nota de rodapé faz o interessante comentário de que a drag queen “seria a rainha do travestimento”, afirmando que ela “parece ser a própria anulação do sexo e da sexualidade, no travestir-se pelo prazer de travestir-se e não para viver plenamente o papel do gênero feminino na vida cotidiana” (GONTIJO, 2009, p.37, grifos no original). Ora, se a travestilidade e consequentemente toda a construção de uma drag queen não estão voltados para uma vivência destes na cotidianidade, qual o objetivo da criação de tal figura? Não sendo uma nova categoria de gênero, como se faz e o que pretende este corpo? Já que neste tipo de construção não se reivindica uma materialização cotidiana de seu suposto gênero, qual o sentido da noção de personagem – teatral, dramático, “fictício” – na constituição de uma drag queen como um tipo de arte performática?

Uma drag queen se monta por se montar. Vários objetivos e direções estão presentes neste montar-se, principalmente porque é através deste processo e constituição de uma personagem que 84

uma drag se fará e atuará amadora e profissionalmente. Ressalto aqui que o termo amadora se refere tanto àquele que exerce determinado ofício sem ter formação profissional que lhe garantiria certo título, como por exemplo, atores que atuam sem ter uma formação de ator mais sistemática, como também diz daquele que ama, um diletante que pratica determinada atividade por prazer. E o travestir-se de uma drag é pelo prazer e o seu trabalho advirá desta sua criação, não o inverso. Ela não se adéqua a uma função; faz seu projeto de vida e de arte ser partilhado e admirado por todos.

Um conceito bastante interessante – e diletante! – que pode nos ajudar a pensar esta construção drag queen é o nomeado como camp. Este termo vem do ensaio seminal de Susan Sontag, Notes on Camp, publicado originalmente em 196436. Anteriormente, em seu romance “O mundo ao anoitecer” (original editado em 1954), Christopher Isherwood já teria discorrido brevemente sobre a estética camp, inclusive dividindo-o em alto e baixo camp, mas foi com Susan Sontag que este ganhou corpo, ao menos teórica ou ensaisticamente. Sontag abre seu ensaio dizendo justamente desta nomeação do camp: “muitas coisas nesse mundo não têm nome; e muitas coisas, mesmo que tenham nome, nunca foram definidas” (SONTAG, 1987, p. 318). Ela afirma que é muito difícil se nomear uma sensibilidade, principalmente porque compreendê-la na forma de um ensaio é o mesmo que transformá-la em uma ideia ou conceito e não mais em uma sensibilidade. Além disso, alega que só conseguiu falar sobre esta após se sentir “fortemente atraída pelo Camp e quase tão fortemente agredida” (SONTAG, 1987, p.319), pois esta repulsa a levou a vê-lo talvez de forma mais objetiva do que quem o compartilha. Sontag diz que o modo que encontrou para falar do camp foi através de notas de alguns de seus traços, talvez os mais visíveis, de modo a percorrê-lo sem abarcá-lo, passeando por esta estética sem solidificá-la em uma coerência exclusivamente identitária.

Longe de querer aprisionar uma sensibilidade em um nome, o que Sontag parece ansiar é simplesmente dizer de uma sensibilidade estetizante, demonstrando como esta se faz presente no cotidiano e na produção de subjetividades. Nomeando e discorrendo sobre, dá-se vida a esta

36 Esta foi a única oportunidade na qual Susan Sontag explorou a temática do camp. Carl Rollyson e Lisa Paddock (2002), dois de seus biógrafos, afirmam que seu “Notes On Camp” foi o primeiro momento no qual Sontag recebeu destaque e caiu nas graças da mídia. Sugerem ainda que este ensaio era para ter sido publicado em uma revista de luxo e de grande alcance de público, o que talvez justifique algumas críticas, como as de John Simon, para quem “o catálogo [de Sontag] se lê de forma muito semelhante ao Chique é... da Harper’s Bazaar, ou ao As pessoas estão falando de... da Vogue, ou qualquer das numerosas relações do que é in e o que é out” (citado por ROLLYSON; PADDOCK, 2002, p.111, grifos no original). 85

sensibilidade que paira por aí e é partilhada por muitos, mas sem fechá-la neste nome. Dá-se a vida e deixa-se viver, em todos os seus processos transformativos e trilhas abertas. Meu esforço aqui é bastante parecido; nomear o “travestir-se” artístico como camp não se faz com fins explicativos ou reducionistas, mas sim procurando dizer desta forma de estetização da vida cotidiana, do imbricamento do palco e de uma personagem artística a uma existência teatralizada e assumida como artifício.

David Bergman discorda de alguns postulados de Sontag, principalmente de seu posicionamento e pretensão de discorrer sobre o camp. Para este autor, ao afirmar que o camp seria uma forma de integração social desejada por homossexuais, aquela não creditou a esta sensibilidade seu potencial disruptivo de criação de uma subcultura (BERGMAN, 1993, p.11). Bergman concebe o camp como uma cultura minoritária, não exatamente homossexual, mas sempre construída e posicionada contra uma cultura dominante. Posição que dialoga com os postulados de David Bergman é a de Gilad Padva (2000), para quem o camp seria um recurso contra normativos modos de se ser homossexual, constituindo-se como uma “visibilidade desviante, desde suas primeiras expressões, tem sido uma política com um componente essencial advindo de uma contrapraxis queer”37 (PADVA, 2000, p.222). Apesar de seus contornos por vezes bem delimitados, poderíamos aproximar o camp do nomadismo de Deleuze e Guattari: é um jogo que precisa de um espaço liso para se mover segundo as relações de força, constituindo- se sempre como uma linha de fuga e criação de novos territórios e possibilidades (DELEUZE e GUATTARI, 2008).

O personagem Charles, do referido livro de Christopher Isherwood, também diz sobre esta sensibilidade camp. Em conversa com Stephen, protagonista do romance, afirma que respeita e até admira a solidariedade, sinceridade e falta de sentimento de culpa dos quarkers, grupo religioso do qual seu companheiro Bob faz parte, mas que detesta a falta de estilo deles. Travam então o seguinte diálogo, iniciando por Stephen:

37 Tradução livre, no original: “Its deviant visibility, since its earliest expressions, has been a political one as an essential component of queer counterpraxis” (PADVA, 2000, p.222). 86

– Mas essa é a grande bandeira deles, entende? Acreditam na simplicidade.

– A simplicidade não exclui a elegância; pelo contrário, requer ainda mais elegância. De qualquer forma, elegância não é a palavra certa... Nas suas viagens au bout de la nuit38, você com certeza se deparou com o termo ‘desvario’?

– Já, em certos bares. Acho que se refere a...

– Acha que se refere a rapazolas delicados, com cabelos oxigenados, chapéus de plumas e boás, imitando Marlene Dietrich? De fato, no mundo gay, isso é chamado de desvario. Faz um certo sentido, no contexto, mas trata-se de algo bastante degradante... – os olhos de Charles brilhavam de excitação. Parecia estar agora de ótimo humor, curtindo o momento. – O sentido que eu atribuo a essas palavras é bem mais profundo. Podemos chamar o sentido mais óbvio de Baixo Desvario, se quisermos; nesse caso, o sentido por mim atribuído teria de ser chamado de Alto Desvario. Alto Desvario é a base emocional do balé, por exemplo, e, logicamente, da arte barroca. O Alto Desvario autêntico sempre contêm um fundo de seriedade. Não é possível desvairar algo que não levamos a sério. Expressamos aquilo que nos é essencialmente sério através do divertimento, do artifício e da elegância. A arte barroca é o desvario da religião. O balé é o desvario do amor... Dá pra perceber o ponto que quero chegar? (ISHERWOOD, 1992, p.100-101, grifos meus).

Ressalto que o tradutor optou pelo termo “Desvario39” para substituir o camp na edição brasileira e este não me parece satisfatório; pode servir à fluidez da leitura do romance, mas descaracteriza o que o personagem Charles quis ressaltar na referida passagem. Ao menos desvario apela à imaginação e ao exagero e/ou extravagância, o que não deixa de ser característico do camp. Charles queria dizer da assunção da elegância ao patamar de uma estetização da vida, a qual não necessariamente nos remeteria à posse de bens materiais ou ser um membro de classe social nobre, apesar do camp deliberadamente assumir um tom aristocrático, ao menos como uma atitude poser.

“Dama da noite” foi um espetáculo elegante e absolutamente altivo. Seu mote era a relação entre uma grande diva, Lorna Washington, e sua camareira, Rose Bombom. Sentada em uma pequena mesa que parecia situada em um camarim, Lorna dizia em tons saudosistas para a companheira que queria fazer um espetáculo como nos velhos tempos, que fosse especial e para tal ia elencando qualidades que não poderia faltar. A cada diálogo, um número musical era apresentado, ora por estas duas, ora por Lorna e/ou suas convidadas, como Nepopó, que

38 Esta expressão possivelmente se refere ao livro “Viagem ao fim da noite” de autoria de Louis-Ferdinand Céline, publicado em 1932, ou a ideias que de alguma forma tal obra abarcou. Céline é considerado um autor maldito e sua obra é atravessada por ideais antissemitas e niilistas, além de utilizar-se de vocabulário considerado bastante vulgar. Sua obra poderia ser caracterizada pela “grosseria, crueza, violência, deformação” (D’AGUIAR citada por MOTTA, 2008, p.194). Talvez o sentido desta expressão neste contexto repouse em um submundo ou locais não muito respeitáveis, como bares e casas de espetáculo. 39 Nota-se também que assim como nas “Notas sobre o Camp” de Susan Sontag (1964), o termo Desvario como traduzido por José Roberto O’Shea (1992) e que aqui corresponde ao camp, aparece iniciando com maiúscula. Utilizei o termo em minúsculas por ser esta a forma como vem aparecendo em publicações posteriores a estas, como o livro de Esther Newton (1979) ou a coletânea organizada por David Bergman (1993). Mantive apenas o destaque em itálico por ser um termo de língua inglesa e que não é muito popularizado no Brasil, ao contrário de drag queen. 87

elegantemente trouxe o brilho dos tempos áureos da canção e glamour franceses para o brasileiro palco da Casa de Cultura Laura Alvim.

O tema do amor e suas diferentes fases nos relacionamentos também se fez presente e foi desenvolvido a partir de uma dublagem de um antigo número de Dercy Gonçalves, já clássica no repertório de Lorna, como ainda através de uma versão ao vivo da canção “Bilhete”, de Nelson Gonçalves, trazendo para a noite as brigas e desencontros de um relacionamento amoroso. Diversos tipos também tiveram lugar no palco, como uma engraçada mãe discorrendo sobre sua situação de pobreza ou uma Black Power cantando ao vivo “Olhos coloridos” (composição de Macau, sucesso na voz de Sandra de Sá), todas sempre acompanhadas por pontuações silenciosas, precisas e cheias de caras e bocas de Rose Bombom. Esta também ganhou um número solo: em um vestido de gala, de tecido vermelho brilhante, exagerou na dublagem de I will always love you, grande sucesso na voz de Whitney Houston.

Impagáveis foram os momentos nomeados como educativos: utilizando-se de um vibrador mantido na altura da virilha de Rose, Lorna ensinou como reagir ao se deparar com um pênis verdadeiro, desde entusiasmadas (e muitas vezes falsas) exclamações, até o momento e modo corretos de se usar uma camisinha. Mantendo ainda este caráter “grotesco educativo”, Rose Bombom surgiu com uma malha que imitava um ficcionalizado corpo feminino nu. Com a ajuda de Lorna, debochadamente instruiu a plateia em como se realizar um exame de toque nas mamas e no restante do corpo, como naquela sua imensa, profunda e destacada vagina, que a levou a exclamar “Como eu sou larga!” ou alguma outra expressão parecida. Por mais surpreendentes que possam ser, foram assaz educativos e informativos!

Outro número de destaque dentro desta miscelânea que levou a plateia às gargalhadas foi uma dublagem de uma música da antiga cantora infantil Mara Maravilha. Uma malha preta colada ao corpo, um cocar encimando uma peruca preta com longas tranças laterais, penas desenhando uma característica, quiçá estereotipada, veste indígena e desmedidos lábios rosados de um material aparentemente emborrachado, que dava a impressão de um grande bico de ave. Esta era a Lorna indígena que movia estes lábios/bico rapidamente no refrão “Tuiuiu iu iu, Sou curumim iê iê, Tuiuiu iu iu, Sou curumã arauê”, criando uma imagem extremamente cômica em uma possível leveza desta exagerada forma. 88

Uma tocante – e por que não sublime? – apresentação fechou a noite: em bonitos vestidos longos, Lorna Washington, Rose Bombom e Nepopó se alternaram na dublagem da música francesa Je suis toutes les femmes, de Dalida. Declamando estes versos, as três se revezavam no proscênio:

Eu sou todas as mulheres Vivo suas alegrias e melodramas Eu sou sentimental e por vezes também femme fatale Que me condenem se meu coração se inflama À frente dos refletores Quem me alveja o coração, todas as noites

Eu sou todas as mulheres Eu canto, eu danço, é todo um programa Eu sou a rainha da música disco e também amiga de Pierrot Que me perdoem, uma vez que eu me dou E eu vivo as minhas canções através das estações da minha vida

Eu sou todas as mulheres Eu amo as lantejoulas, strass, os telegramas As noites de estreia e as seguintes também E a minha vida de estrela acaba na escuridão Quando as luzes se apagam E o silêncio reina na noite (MICHAELE E SEBASTIAN, 1980)40

No acelerar da canção, aceleraram também seus passos e movimentos e iniciaram um strip-tease que pouco a pouco revelava aqueles corpos agora masculinos e marcados pelo passar do tempo, com rugas e sinais de sobrepeso evidentes. Descalços e maquiados, só de cueca e peruca, os três encararam a plateia e terminaram o número retirando vigorosamente de suas cabeças este último acessório, sincronizados com a batida final da música. Os aplausos foram de pé.

40 Tradução livre, no original: “Je suis toutes les femmes/ Je vis vos joies et vos mélodrames/ Je suis sentimentale et parfois femme fatale aussi/ Que l'on me condamne si mon cœur s'enflamme/ Devant les projecteurs/ Qui me visent en plein cœur chaque nuit. Je suis toutes les femmes/ Je chante je danse c'est tout un programme/ Je suis reine du disco et l'amie de Pierrot aussi/ Que l'on me pardonne lorsque je me donne/ Et je vis mes chansons à travers les saisons de ma vie. Je suis toutes les femmes/ J'aime les paillettes, les strass, les télégrammes/ Les soirées de première puis la une et la der aussi/ Et ma vie de star finit dans le noir/ Quand les lumières s'éteignent/ Et le silence règne dans la nuit” (MICHAELE E SEBASTIAN, 1980). 89

3.2. Il est entré dans mon coeur, Une part de bonheur, Dont je connais la cause

Como afirma Susan Sontag, o camp é generoso e pretende divertir, além de não basear-se em qualificações do tipo bom ou ruim, feio ou bonito, entre tantas outras antíteses. Esta estética promove a partilha, quer estabelecer conexões, bons encontros, no sentido espinosista da expressão41. Se na roda de conversa do Castelinho do Flamengo algumas pessoas importaram-se mais em atacar outras, no Gláucio Gill isso não ocorreu. Neste espaço, o encontro baseou-se na estética e formas de estetizar-se ao lado de outros, ancorando-se em diferentes parâmetros e modos de se relacionar. Havia outro propósito que não uma tradicional reunião de pessoas interessadas em determinada questão. O camp favorecendo tais encontros e partilhas não se coloca como uma sensibilidade que salvaria ou purificaria os sujeitos que com ela se identificam, evitando conflitos e embates Não há nada para ser salvo, simplesmente porque a partilha camp se dá em outro nível que não no pessoal, mas em um território existencial como o colocado no capítulo primeiro. É em uma comunidade, em um comum e como uma estética da existência que o camp se fará.

Talvez possamos dizer que no palco do Gláucio Gill e posteriormente na Casa de Cultura Laura Alvim criou-se efetivamente este território existencial, que se estendia para todo o teatro, abarcando artistas, organizadores, diretor, cenógrafos, assistentes e tantos outros que de alguma forma deram de si e foram generosos para com aquele momento. Além do público que compareceu em peso, se divertiu e se emocionou naquelas espetaculares noites. No início da segunda noite da edição de 2009, vimos Lorna Washington surgindo com uma enorme capa preta que se abria revelando um interior repleto de pequenas luzes para logo depois se despir de maiores brilhos e cara a cara com o público agradecer às pessoas que a auxiliaram durante uma internação devido a problemas vasculares nas pernas, causados por sua diabetes. Lorna disse que deu entrada em um hospital de Copacabana e o prognóstico era de que não voltaria a andar, mas foi tão bem cuidada por tantas pessoas que acabou saindo andando de onde tinha entrado em uma cadeira de rodas. Um tocante depoimento pessoal, mas totalmente integrado ao show; talvez tenha ocorrido uma incorporação e transformação camp. Esta estética não se pauta nos polos

41 Para Espinosa, não haveria o mal ou o bem em si, mas potencialidades de composição que poderiam ser efetivadas ou não, gerando bons e maus encontros. O bom encontro é justamente aquele que aposta nesta potencialidade, expandindo-a. A alegria e a tristeza seriam os indicadores destes encontros, sendo esta última resultado de um mau encontro, aquele que não estimulou nenhuma potência de vida. Já a alegria adviria de uma bela composição e construção de um comum, sendo também ética e política, pois estas são inseparáveis da epistemologia espinosista (BRUNO, M., 2009, informação verbal). 90

pessoal ou coletivo, mas se produz e é produzida em um meio social – ou socius – que lhe dá vida e sentido, de modo que artifício ou uma construção ficcionalizada de si perpassará aquilo que poderíamos conceber como o mais pessoal ou individual.

Como afirmam Carl Rollyson e Lisa Paddock (2002), há uma ambiguidade constitutiva no “modo camp de ser”, já que “nunca fica claro se um artifício é apenas um artifício ou se visa a algo mais sério. O performer o faz de duas maneiras: Mae West é uma mulher; ela também é uma mulher fingindo ser uma mulher” (p.107). Não nos seria possível precisar o limite entre ficção e realidade, já que mesmo os ditos fatos reais são mediatizados segundo premissas desta estética camp ou outra qualquer. Tudo se torna estético e o pessoal personifica-se em uma figura pública e publicizada.

A generosidade que se pode creditar ao camp não necessariamente diz respeito à bondade ou altruísmo, acepções mais comuns ao termo, mas sim ao sincero partilhamento de um jogo (estético), códigos, maneirismos, enfim, determinado mundo discurso ou forma de se produzir e encarar o mundo. É a capacidade de se estabelecer uma relação em prol ou através de uma estética. Neste sentido, também foi de grande generosidade os momentos extremamente engraçados e/ou espetaculares em que Luana Muniz, a travesti rainha da Lapa, dividiu o palco com bailarinos ou com drag queens, mostrando que ali não importava em qual categoria se encaixava. Seu corpo travestido como uma senhora religiosa ou seminu, apenas coberto por plumas e adornos dourados de uma passista de escola de samba, se colocava à disposição do espetáculo e daquele momento no qual o que importava era aquele amor ao qual Sontag credita ser o que faz as coisas serem camp. Para esta autora, o camp é sério, porém de uma “seriedade que falha. Evidentemente, nem toda seriedade que falha pode ser resgatada como Camp. Somente aquela que possui a mistura adequada de exagero, de fantástico, de apaixonado e de ingênuo” (1987, p.327, grifos meus). É a intensidade e a ingenuidade de um amor que faz o camp ocorrer e criar um acontecimento extraordinário. Susan Sontag diz que o camp pretende o extraordinário (1987, p.328), mas aquele que nos remete a momentos mágicos, talvez de efetivação de utopias como nos diz Foucault (2001). Extraordinário não porque advém de esforços, mas porque um espaço especial de beleza e deslumbramento foi criado e partilhado de graça, por prazer, com aqueles e aquelas que ali estavam naquele momento. 91

Na estética camp esta predileção pelo belo alcança tons literais: através do exagero estilístico há um deslocamento do que poderia ser considerado importante para a aparência – ou o aparente, como apontamos em outro momento (LOPES e UZIEL, 2010) – de modo a torná-la plástica e maleável, maximizando as potencialidades de existência e liberdade de si. Susan Sontag menciona a ideia de que teríamos três grandes sensibilidades artísticas: a primeira seria a cultura erudita, baseada na moralidade; a segunda encontraria nos extremos arroubos das ditas vanguardas contemporâneas sua expressão, colocando-se como uma tensão entre a moralidade e a paixão estética; e a terceira seria o camp, sensibilidade totalmente estética (SONTAG, 1987, p.332). Sontag afirma que tal sensibilidade camp “é a experiência do mundo consistentemente estética. Ela representa a vitória do estilo sobre o conteúdo” (SONTAG, 1987, p.332, grifos no original) e recorre a dois autores, a seu modo malditos em sua época, mas idolatrados por homossexuais e estudiosos da cultura gay na contemporaneidade, para dizer que “A afirmação de Genet de que o único critério de um ato é sua elegância praticamente equivale, enquanto afirmação, à de Wilde: Em questões de grande importância, o elemento vital não é a sinceridade, mas o estilo. Contudo, o que conta, finalmente, é o estilo no qual as ideias são afirmadas” (SONTAG, 1987, p.332).

Sendo prioritariamente estilo, não importa as possíveis querelas de um espaço de conversas como o referido encontro do Castelinho do Flamengo; a relação artística no palco é outra e, apesar de muitas vezes os bastidores transparecerem naquilo que veremos no palco, o tom do espetáculo é o prioritário e o estilo vence sobre o conteúdo. Contrariando uma lógica na qual o estilo apenas seja concebido como a forma de expressão de um conteúdo ou ideia, está implícita naquela afirmação de Sontag um imbricamento tal entre estilo e conteúdo que tudo se tornaria estético: a predominância do estilo aqui parece muito mais um deslocar-se da ênfase no conteúdo do que uma simples inversão de uma lógica estilo versus conteúdo. É uma nova proposta.

Esta construção camp possui três características fundamentais segundo os postulados de Esther Newton: “incongruência, teatralidade, e humor. Todas estas três estão intimamente relacionadas com a condição e estratégia homossexual. Incongruência é o tema do camp, 92

teatralidade seu estilo, e humor sua estratégia”42 (NEWTON, 1979, p.106). Jack Babuscio (1993) é um autor que também discorre sobre estas mesmas características, porém nomeando a incongruência como ironia e acrescentando à sua lista a noção de estética, a qual permeia toda esta discussão sobre o camp. Para aquela autora, a incongruência se relaciona à homossexualidade justamente por esta orientação ou vivência sexual se mostrar incongruente em relação à heterossexualidade, que seria a via normal e desejável, como também nos mostra Judith Butler em suas teorizações acerca da heteronormatividade e sua constante reafirmação, as quais regeriam nossos modos de organização social (BUTLER, 2007). Sobre esta incongruência, Newton ainda afirma que objetos ou pessoas podem ser nomeados como camp, mas isto não bastaria para dotar-lhes com esta qualidade, pois tal estética não é inerente a corpos ou coisas e depende do contexto em que se manifesta ou da associação que será efetivada. O camp advém desta tensão e ela menciona algumas associações incongruentes geralmente apropriadas por este, como justaposições entre juventude e velhice, sagrado e profano, masculino e feminino, entre outras.

Ressaltando o caráter teatral do camp, Esther Newton postula que este se manifesta de três formas inter-relacionadas: como um estilo, uma forma dramática e através da máxima da “vida como teatro”, como mencionada por Sontag (NEWTON, 1979, p.107). Para Newton o estilo no camp é bastante marcado e este deixa de ter uma função decorativa justamente por ser a base na qual este se constrói (NEWTON, 1979, p.107); não se faz como uma simples estilização, mas como uma proposta estética que também envolve um posicionamento ético e político.

Michel Foucault também nos traz uma ideia bastante próxima ao dizer que “É preciso usar de sua sexualidade para descobrir, inventar novas relações. Ser gay é ser se tornando [c’est être en devenir] e, para responder à sua questão, acrescentaria que é preciso não ser homossexual, mas insistir em ser gay” (FOUCAULT citado por FREIRE COSTA, 1995, p.131). Ser gay neste caso parece um esforço de constante criação de novas possibilidades que não apenas ser homossexual, ao mesmo tempo em que se continua sendo gay. É um tipo de plasticidade que guarda certa fixidez em si mesma, mas que só conseguiria se produzir por sempre se abrir à criação, como a estética camp. Não deixo de me remeter à música “Sou travesti”, da drag queen paulistana

42 Tradução livre, no original: “ (...) incongruity, theatricality, and humor. All three are intimately related to the homosexual situation and strategy. Incongruity is the subject matter of camp, theatricality its style, and humor is strategy” (NEWTON, 1979, p.106). 93

Silvetty Montilla, principalmente a introdução na qual dedica sua canção “pra você minha amiga gay, homossexual, marca de sabão em pó, você que tem peito, cabelão” (MONTILLA, 2006). Marca de sabão em pó refere-se ao tradicional sabão Omo, substituto que ela utiliza para se remeter ao prefixo homo, de homossexual. Ser gay, ou ainda uma drag ou gay camp, talvez implique em rejeitar este sabão em pó em prol da liberdade que se conquista por não se ser e não se desejar ser tão “limpinho” como os sujeitos lavados e purificados com (H)Omo, os quais tem que se policiar constantemente para manter esta coerência e limpeza. Lembremo-nos apenas do slogan deste produto, “porque se sujar faz bem”, e joguemos a embalagem com o sabão fora.

Esther Newton ainda afirma que relacionado com esta estilização, há toda uma construção dramática no camp por este exigir um/uma performer e uma plateia, ou seja, assim como nos shows e intervenções drag, há uma relação entre algo que é apresentado por um sujeito e um público com o qual dialoga, por menor que este seja. Este palco no qual um/a camper43 ou uma drag se apresenta acaba sendo transposto para a rua e cotidiano do sujeito e vice-versa, de modo que os contornos entre ficção e realidade são bastante borrados. A vida é realmente um teatro e o teatro faz-se juntamente com a vida, como podemos ver no exercício de nomeação de uma drag queen. O nome de uma drag é parte importante de sua construção ao mesmo tempo que lhe traz um reconhecimento social (VENCATO, 2002, p.59) e este nos é um exemplo daquele entrelaçamento entre ficção e realidade pois não há limites rígidos na nomeação de uma drag e do indivíduo que a encarna.

No último dia de apresentações da edição 2009 do projeto “Laura di Vison Auto-retrato”, Lorna Washington se fez presente ao palco para ler o nome de todas as drags, travestis e transformistas que conseguiram lembrar. Ela subiu desmontada e todos/as tratavam aquele sujeito de bermuda, camiseta e boné por Lorna. Talvez a maioria nem soubesse seu nome como consta em sua certidão de nascimento; ele efetivamente se chama Lorna Washington. Nepopô e Eula Rochard participaram com trajes masculinos da roda de conversas no Castelinho do Flamengo em junho de 2009 e foram tratadas exclusivamente por tais nomes. Ressalto que tal borramento ou trânsito na nominação sucedeu-se em espaços que favoreciam sua ocorrência, mas esta nos parece não se restringir apenas aos locais onde a drag se faz, ao menos verbalmente, presente.

43 Camper se refere ao sujeito que se assume como e efetiva a estética camp. Mantive o termo no original por não encontrar um correlato satisfatório em português. 94

Anna Paula Vencato afirma o mesmo sobre a drag queen Vogue Star, acompanhada e entrevistada por ela em sua pesquisa sobre as drags de Florianópolis, “uma vez que montada ou não as pessoas sempre se referem a ela como Vogue” (VENCATO, 2002, p.58).

Haveria ainda na construção da teatralidade camp, segundo Newton, um componente que seria o do estigma da homossexualidade44. Concebendo em seu estudo a estética camp como intimamente relacionada com a homossexualidade, esta antropóloga afirma que para se conseguir ser um/a camper ou mesmo uma drag queen, é necessário que se assuma que se é gay (ao menos para si próprio) e que isto pode não ser tão fácil ou desejável, que é realmente um estigma. Ela utiliza esta terminologia de Erving Goffman para abarcar todos os preconceitos e discriminações contra os quais um/a homossexual tem que lutar para se afirmar enquanto sujeito e para esta autora este só será livre ao reconhecer em si tal estigma. Newton ainda vai além ao não restringir a teatralidade camp apenas a shows e espetáculos: concebe-a também como os diversos tipos de falsificações presentes nos cotidianos homossexuais, como o esforço que muitos fazem para não serem identificados como gays na escola, em seus trabalhos, família, etc. Desta forma, segundo suas palavras, “na verdade, tudo na vida é interpretação e teatro – aparência”45 (NEWTON, 1979, p.108) e talvez estes o sejam não apenas para homossexuais ou grupos estigmatizados, mas para toda e qualquer pessoa em relação com outras.

A última característica apontada por Newton na construção do camp é a que possibilita que este referido estigma não seja algo sufocante ou mortificador: o humor. Para Susan Sontag, o tipo de humor presente na sensibilidade camp é uma forma de prazer amorosa e , mesmo que por vezes pareça maldosa ou cínica (SONTAG, 1987, p.336). Este humor visa estabelecer conexões, ainda que carregue em si duras críticas. Esther Newton também o concebe desta forma e em suas postulações está mais clara a ideia de que o humor é um tipo de arma e estratégia para lidar com estigmas e momentos dolorosos. Esta autora conta que em diversos momentos se sentiu surpresa ao ver a forma lúdica com que momentos de extrema dor eram trabalhados via camp no grupo de female impersonators com quem trabalhou (NEWTON, 1979, p.109), o que a leva a afirmar que “somente por um total abarcamento do estigma nele mesmo que alguém pode

44 Mantenho aqui o termo utilizado por Esther Newton, porém acredito que este processo de estigmatização mereça uma discussão mais detalhada – e que não será realizada neste espaço – contrapondo-o, por exemplo, aos processos de criação de estereótipos, termo este que penso bastante pertinente a esta reflexão. 45 Tradução livre, no original: “In fact, all of life is role and theatre – appearance” (NEWTON, 1979, p.108). 95

neutralizar a ferida e torná-la risível”46 (1979, p.111). Ela também frisa que nem todos homossexuais ou impersonators utilizam-se do humor, mas quando o empregam, o fazem com orgulho, já que isto advém de outro nível de percepção e posicionamento e de uma “liberdade emocional”47 (1979, p.110), como uma de suas entrevistadas lhe afirmou.

O humor me parece característica básica dos diversos tipos de drag queens, sendo mais saliente naquelas que declaradamente se nomeiam como do tipo caricato. Este não se confunde com o riso ou uma situação cômica, mas os possibilitam; é um tipo de percepção e ação que podem ser sutis, mas que penetram nos modos de ser e agir de diversos seres, dotando-os positivamente de uma nova forma de encarar a vida. Assim como o camp e muitas vezes confundido com este, o humor também é um tipo de sensibilidade que visa expandir nossas possibilidades de criação de mundo(s) e modos de nos ligarmos aos outros, favorecendo a solidariedade e o encontro. Esther Newton também partilha desta qualificação para o camp e afirma que “é importante frisar novamente que o camp é um fenômeno pré ou pró político. O anti-camp neste sistema é uma pessoa que quer se dissociar do estigma para ser como os opressores. O camp diz, Eu não sou como os opressores”48 (NEWTON, 1979, p.111, grifos no original). Apesar de muitas vezes nascer de um estigma ou de uma estereotipia negativa, o camp se faz principalmente como uma afirmação de si e como uma forma de prazer consigo mesmo.

As duas noites que acompanhei no Gláucio Gill – e certamente a primeira desta série de três, aquela para qual não consegui entradas – foram noites camp de muito brilho, teatralidade e humor, como na figura de Lorna Washington, uma linda e elegante diva vestida de preto, lantejoulas prateadas e penas adornando a cabeça, tendo seu show interrompido por uma Luana Muniz caracterizada como uma respeitável espectadora que, levantando-se da plateia, subia ao palco com seus bobs no cabelo, xale, sacola plástica em uma mão e um pacote de biscoitos de polvilho na outra, mostrando-se chocada com aquele tipo de espetáculo. O embate entre as duas era de um humor impagável, a luta entre uma simples e expansiva senhora e uma luxuosa e ponderada artista. Ou ainda a figura exuberante da mesma Luana Muniz, com um decotadíssimo

46 Tradução livre, no original: “Only by fully embracing the stigma itself can one neutralize the sting and make it laughable” (NEWTON, 1979, p.111). 47 Tradução livre, no original: “(...) emotional freedom” (NEWTON, 1979, p.110). 48 Tradução livre, no original: “It’s important to stress again that camp is a pre- or proto-political phenomenon. The anti-camp in this system is the person who wants to dissociate from the stigma to be like the oppressors. The camp says, ‘I am not like the oppressors’” (NEWTON, 1979, p.111). 96

e curto vestido todo de brilhantes canutilhos vermelhos e peruca de mesmo material, ressaltando sua feminilidade em contraponto aos músculos aparentes e extremante trabalhados de seus dois bailarinos. Luana ainda foi protagonista de uma cena que involuntariamente arrancou risos da plateia: ao contrário da artista e de seu outro companheiro de palco, um dos bailarinos não executava precisamente a coreografia que foi criada para a canção Take me home, grande sucesso da cantora Cher. O efeito cômico justapunha-se à espetacularidade da apresentação. A plateia aplaudiu!

Nepopô e Paula Braga foram artistas que mostraram sua extremada teatralidade. Seus movimentos, olhos e boca eram de grande cuidado, além de seus excepcionais figurinos. A cada entrada destas no palco, a plateia punha-se em contato com outra artista, outra diva que era personificada em suas apresentações. E havia grandes diferenças entre uma e outra; era como se a cada número que apresentavam, elas embarcassem em outro tipo de vibração, outro tom, efetivamente uma outra pessoa. Mesmo Magaly Penélope, que se constrói de forma bastante humorística, conseguia nos trazer todo o glamour e energia de Liza Minelli em seu auge. É a potencialidade de criação camp viva no palco.

3.3. Et dès que je l'aperçois, Alors je sens en moi, Mon coeur qui bat

Se o palco é considerado um lugar sagrado para os mais diversos artistas, naquelas duas noites no Gláucio Gill vimos muitas deusas serem louvadas: Josephine Baker ganhou uma homenagem em brilhos e plumas de Nepopô; Carmen Miranda apareceu um tanto quanto nervosa, Charles Chaplin ao som de “O bêbado e a equilibrista” de João Bosco e Aldir Blanc, se transformou em Elis Regina para logo depois se transmutar em Clara Nunes a rodopiar seus balangandãs e colares, um malandro tirou a roupa e vimos a mulatíssima Elza Soares, Edith Piaf apareceu toda pequena e frágil, todas estas personificadas pela grande Paula Braga; Piaf apareceu novamente na voz de Ângela LeClery e no bis improvisado da até então apenas espectadora Jane Di Castro; Liza Minelli ganhou tributo com tons caricatos de Magaly Penélope e Dercy Gonçalves literalmente baixou em Lorna Washington, que dublou com perfeição um número de nossa mais saudosa e escrachada vedete. Tivemos também alguns deuses, poucos, mas marcantes 97

e cantados ao vivo na voz de nossas anfitriãs: Tom Jobim e Vinícius de Morais por Marlene Casanova e Ângela LeClery, Chico Buarque em um “O meu guri” emocionante na interpretação de Lorna Washington.

Na Casa de Cultura Laura Alvim e na única noite na Sala Baden Powell, as divas apareceram em menor número, porém muito bem representadas: Paula Braga personificou Carmen Miranda em um colorido turbante de sombrinhas, juntamente com bailarinos com coreografados guarda-chuvas de tecido de arco-íris em punho, e também uma comedida, mas forte Maria Bethânia ao som de “Reconvexo”, de Caetano Veloso. No espetáculo “Esquinas”, Paula Braga apareceu como Clara Nunes e esta noite contou também com uma orixá Oxum dublando poeticamente “É D’Oxum”, de Gerônimo e Vevê Calanzans, na voz de Elba Ramalho. Whitney Houston teve toda sua potência vocal presente na bonita sincronia com que Alexia Brasil e Angel apresentaram o dueto Same Script For Different Casting, daquela com Deborah Cox, e também na já mencionada I Will Always Love You, que Rose Bombom transformou em um espetacular-deboche no show “Dama da noite”.

Sobre estas relações do público com suas divas drags e trans e destas artistas com suas musas inspiradoras, acho bastante conveniente recordar as belíssimas palavras que o artista plástico Ulysses Rabello teceu em homenagem à grande diva Carmen Miranda. Presente na exposição comemorativa do centenário de nascimento que ocupou o museu Carmen Miranda no ano de 2009, “Carmen Miranda – Notável Para Sempre”, o referido texto trazia o histórico da relação deste artista com Carmen, além de apresentar a escultura em tamanho natural de Miss Miranda que Rabelo produziu para tais comemorações. Na impossibilidade de citar aqui as palavras exatas, deixo registrado que estas eram extremamente tocantes, pessoais e de agradecimento: reverenciavam Carmen Miranda e todos e todas artistas que o encantaram e que de alguma forma participaram de sua vida, tornando-a mais colorida e poética.

Carmen é bastante conhecida das artistas da travestilidade e do público homossexual, sendo apontada por muitos como verdadeiro ícone gay e quiçá a pioneira de um estilo de teatralização drag. A drag queen norte-americana Ru Paul, em passagem pelo Brasil no ano de 1996, chegou inclusive a afirmar que era filha de Carmen Miranda (TREVISAN, 2007). As palavras de Ulysses Rabello expressam um pouco a relação de proximidade e afinidade, estabelecida em maior ou menor grau, entre divas e um público gay: elas estão ali fazendo seus 98

shows e divertindo aqueles e aquelas que se permitem entrar em contato com elas. Algo indefinível e terno é produzido nesta relação; um pouco de brilho é jogado sobre aqueles e aquelas que assumem tal faiscar ao mesmo tempo em que são colocados/as em uma matriz marginal de produção de exclusão.

Charles, o personagem de Christopher Isherwood (1992), considera esta travestilidade com plumas e boás pertencente ao baixo camp. Interessante pensar nesta sua colocação, o que nos mostra que mesmo dentro desta estética que se propõe generosa há espaço para hierarquias e possíveis discriminações. Mas não nos apressemos em tomar aquelas palavras do personagem Charles como verdade para o camp. Não isento a sensibilidade camp de hierarquizações e quando estas ocorrem, uma feminização exacerbada parece ser aquela que ocupa o mais baixo estrato em tal divisão. Mas Charles é um médico burguês que vive entre aristocratas ingleses, o que não lhe permitira se aproximar deste baixo camp. Seus exemplos dados a Stephen do que seria camp são todos eruditos: Mozart, El Greco, Dostoievski. Ele chega a afirmar que seu companheiro Bob tenta acompanha-lo, mas logo se aborrece com sua “Ética Médica. Atitude profissional. Senso de humor comedido. Conversas com as senhoras Dolgelly, sobre as condições do tempo” (ISHERWOOD, 1992, p.102). Segundo ele, Bob gostaria de aproximar-se de movimentos revolucionários em favor dos homossexuais e ter uma vida mais dinâmica, talvez heroica.

A construção deste personagem e sua dissertação sobre o camp, possivelmente a primeira que se tem notícia49, assumem um tom camp, mas parece reduzir-se em suas possibilidades de compreensão deste ou ao menos não procura expandir esta estética de modo a torna-la mais leve, permitindo-se divertir-se com ela. Charles não se aproxima dos riscos do mau gosto, os quais podem ser extremamente prazerosos: “A descoberta do bom gosto do mau gosto pode ser bastante liberadora. (...) o gosto Camp sucede ao bom gosto como um hedonismo audacioso e espirituoso. Torna jovial o homem de bom gosto, quando antes ele corria o risco de se frustrar cronicamente. É bom para a digestão” (SONTAG, 1987, p.336). Susan Sontag insiste ainda que o camp é uma forma de prazer e apreciação, não de julgamento, o que nos incentiva a não tentar criar hierarquias dentro da estética camp e, se acaso forem criadas, que escolhamos para nós o

49 Carl Rollyson e Lisa Paddock (2006) afirmam que este pioneirismo creditado a Isherwood por Susan Sontag é mais uma frase de efeito do que um real histórico sobre o camp, que poderia ter sua origem buscado nos séculos XVIII e XIX por um estudioso um pouco mais pedante e menos sedutor e espetacular do que Sontag. 99

baixo camp, o qual pode nos fornecer experiências muito mais libertadoras do que aquelas formas que levam o tom aristocrático a sério demais.

Apesar de se apoiarem em divas como Piaf, Elis Regina, Elza Soares, Liza Minelli, Carmen Miranda, Clara Nunes ou diversas outras, as artistas drag queens e da travestilidade não gozam do mesmo prestígio que suas inspirações. Seguindo os rastros do Charles de “O mundo ao anoitecer” de Isherwood ou de muitos outros que ainda possuem poder de decisão no meio artístico cultural, como órgãos do tipo SATED, drags e artistas da travestilidades talvez nem sejam consideradas como manifestações artísticas-culturais, a não ser que já tenham falecido, como a maioria das divas que muitas vezes só recebem este título depois de uma vida de marginalidade e morte trágica. Como também afirma Sontag, “o tempo libera a obra de arte da relevância moral, entregando-a à sensibilidade Camp... Outro efeito: o tempo reduz a esfera da banalidade (...) O que era banal, com a passagem do tempo pode se tornar fantástico” (SONTAG, 1987, p.329). Mas para a plateia que disputou quase a tapa os ingressos para os três dias de espetáculos da primeira edição do projeto “Laura Di Vison Auto-retrato” ou aqueles/as que se anteciparam e garantiram suas entradas para a segunda edição na Casa de Cultura Laura Alvim, elas são divas da mais alta classe camp e ícones de uma subcultura que não se pretende hegemônica nem normativa.

A estética camp não sobrevive sem o brilho, o glamour e este tom dramático/teatral divinizado que figuras artísticas como drag queens, transformistas, travestis e transexuais podem nos dar. Ao mesmo tempo em que podem ser transformadas em estereótipos, também se constituem como elevado espaço de exercício das potencialidades de si. Da mesma forma como Michel Foucault, anteriormente citado, concebe o esforço para se ser gay, tais figuras máximas da travestilidade, principalmente em sua vertente artística, esforçam-se para se situarem em um devir drag, reconstruindo a si e categorias como sexo e gênero da forma como bem entenderem ou como o momento/show pedir. Como afirma Marjorie Garber, “se o travestimento oferece uma crítica das distinções binárias de sexo e gênero, isso não acontece simplesmente porque faz tais distinções reversíveis, mas porque desnaturaliza, desestabiliza e desfamiliariza os signos de sexo e gênero” (GARBER citado por VENCATO, 2002, p.10). 100

Este devir drag50, segundo concepção de Vencato, guarda seu mistério na “própria inquietude/curiosidade criada a partir do ocultamento do espaço de transformação (tendo aqui como pressuposto eu há vários territórios aqui sendo ocultados concomitantemente: o temporal, o espacial e o corporal)” (VENCATO, 2002, p.36). Não sabemos de antemão como aquela drag se apresentará, ainda que conheçamos muitos de seus números e desejamos sua reapresentação. A interação da drag com seu público será sempre renovada no momento mesmo do contato e a surpresa do que e de que forma virá, além do que decorrerá a partir daí, faz com que dificilmente ela seja abarcável de forma completa. Ela sempre está em movimento e escapulindo de maiores classificações. Como também afirma Vencato ao final de seu trabalho, “se me perguntassem hoje afinal de contas o que é uma drag queen? Teria como resposta vários relatos de pesquisa de campo que não conseguiriam responder a essa indagação. Drags não são, quando muito estão” (VENCATO, 2002, p.116).

E ao mesmo tempo em que geram este fascínio podem também incitar medo ou perigo, porque talvez sejam por demais excessivas e perturbadoras, como a zona fronteiriça de trânsitos e justaposições para qual Guacira Louro chama a atenção (LOURO, 2004, p.21). Talvez possamos pensar que há algum tipo de autorização para aproximar-se de drags e outras artistas da travestilidade em momentos específicos e bem marcados. Talvez importe a direção do movimento que nos leva a tais figuras. Tanto no teatro Gláucio Gill, em 2009, como na Casa de Cultura Laura Alvim, em 2010, o clima era de festa, alegria e celebração, mas cabe lembrar que todos nós nos dirigimos até aquele espaço porque queríamos ver tais espetáculos. Será que se as referidas artistas pegassem o público de surpresa em local outro que não aquele onde seriam esperadas o sucesso seria tanto? Por exemplo, Eula Rochard que em 2009 estava com seu megafone anunciando os shows na porta do teatro em Copacabana. Atraía muitos olhares e risos, mas também comportamentos de indiferença, principalmente daqueles que não queriam participar deste jogo, não se permitiam ou não se interessavam por visitar esta fronteira. Será que seriam motivos de chacota ou vergonha caso ali se permitissem uma brincadeira ou um sorriso? E se entrassem no teatro, estariam condenados à culpa e à vergonha por aqueles momentos mágicos de partilha e descontração?

50 Desenvolverei melhor esta noção no capítulo cinco. 101

O que são e onde se localizam nos parece abertos à criação e recriação, mas novamente os contornos são bem definidos no momento em que estão. Partilho da afirmação de Sônia Maluf, para quem

(...) pensar essa Pessoa que se metamorfoseia (sobre a noção de pessoa) pode nos abrir janelas onde soprem novos ares para se pensar as diferenças e o gênero. Essa pessoa do travesti, da dragqueen [sic], do transexual não pode ser apreendida a partir da noção de identidade. Ela é um ser em transformação, um vir a ser – que se reatualiza de forma continuada esse devir. Um ser que se faz sendo. Essa inscrição de um desejo em um corpo deve ser sempre reatualizada, reafirmada. Sujeito soberano em seu desejo: é ele que faz e refaz o ser, nem deus, nem a natureza, nem, de uma forma, a Cultura – com C maiúsculo (MALUF, 1999, p.274, grifos no original).

Porém, este devir-drag ou desejo-travestilidade se inscreve em uma rede, fazendo-se em uma subcultura que lhe oferece o plano de consistência necessário para sua existência. Por mais que alguém deseje desafiar, transgredir ou subverter normas sociais, este/a dificilmente estará sozinho/a, pois o desafio pode ser demais cruel ou mortífero. Uma mínima rede o sustenta, possibilitando que seu potencial criativo e transformativo possa emergir e ganhar as ruas, os palcos, os espaços que melhor lhe aprouver. Tal fato retira-lhe qualquer conotação absolutista ou de divindade, apesar de continuarem sendo rainhas e divas. São rainhas e divas outras, de outros espaços, um pouco mais camp e possíveis do que o usual. Talvez sejam “divinidades”!

Outro ponto de contato entre o camp e as drag queens é que apesar destes termos serem utilizados para nomear uma pessoa ou coisa, ambos também são utilizados como verbo. Na verdade tal nome advém de um movimento anterior, de uma ação – do drag ou to camp – que possibilita que a nomeação aconteça. Após discorrer sobre a duplicidade do camp, que não se relaciona ao par sentido literal/sentido simbólico, mas sim por este ser constituído pela “diferença entre a coisa significando alguma coisa, qualquer coisa, e a coisa como puro artifício” (SONTAG, 1987, p.325), Susan Sontag afirmará que

To camp é uma forma de sedução – uma forma que emprega maneirismos extravagantes sujeitos a uma dupla interpretação; gestos cheios de duplicidade, com um significado espirituoso para entendidos e outro, mais impessoal, para leigos. Do mesmo modo e por extensão, quando a expressão se torna um substantivo, quando uma pessoa ou uma coisa é Camp, implica uma duplicidade. Por trás do sentido geral direto no qual podemos entender alguma coisa, encontramos uma experiência pessoal absurda com esta coisa (SONTAG, 1987, p.325). 102

Deste modo, para algo ser camp faz-se necessário um processo de transformação, a coisa não significando ela mesma, mas adquirindo novas significações sobrepostas e partilhadas por uma comunidade ou grupo. Um exemplo desta qualificação camp é a conotação do termo anglo- saxão queen. Queen poderia significar apenas rainha, seja a do jogo de baralho ou xadrez, a da titulação daquela que se destaca em algum ramo ou simplesmente a da maior autoridade feminina de um reino. Porém, queen também se refere a homossexuais masculinos, sendo sempre utilizado no feminino “aquela queen” e tendo sua máxima e exagerada representação no nome drag queen. Segundo Esther Newton, drag pode funcionar como um nome ou adjetivo, o qual qualificará coisas ou pessoas ou será utilizado junto ao verbo do na locução verbal do drag, literalmente traduzida como fazer drag e lida como constituir ou criar drag (NEWTON, 1979, p.03). Este “fazer drag” se refere ao personificar-se de uma drag já que ela só é drag por se montar em outro/a. Newton dirá que queen é o nome de qualquer homossexual masculino – talvez o correspondente de queen para o português seja o termo “mona”, “bee” ou análogos que se atualizam constantemente – mas uma queen torna-se uma drag queen ao travestir-se de forma feminina e aqui ao mesmo tempo que surge uma personagem artística extremamente fértil em suas potencialidades de criação, parece que uma lógica normativa também se instaura.

Uma drag é encarnada – criada, exercitada, montada – por um artista, geralmente homem e homossexual, mas não há esta obrigatoriedade em sua criação. Quando se fala em drag queen, o movimento é de um homem travestindo-se de mulher, ou melhor, de um feminino caricato e/ou espetacular, ao passo que quando ocorre de uma mulher travestir-se de homem, ela recebe o nome de drag king. Mas uma travesti ou um/uma transexual pode vir a ser uma drag queen ou drag king. Tal questão é extremamente interessante, pois, apesar de acreditar que drag queens e kings abalam nossas noções de masculino e feminino justamente por brincar com estas, teatralizando-as e desnaturalizando-as ao transformá-las em material para brincadeira e piada, sua lógica de construção é basicamente binária: homem vira drag queen, mulher vira drag king. E vai além, pois esta pode ser lida como: homem homossexual vira drag queen, mulher homossexual vira drag king. Assim como algumas autoras afirmam a existência de uma heteronormatividade e obrigatoriedade de uma coerência linear no sistema sexo-gênero-sexualidade (BUTLER, 2003), parece que a construção de uma drag queen também não foge muito desta lógica. A coerência apenas seguiria outros moldes e variáveis. O que, então, ela teria de novo? 103

Talvez um ponto fundamental de distinção entre a lógica da criação de uma drag e a da heteronormatividade como postulada por Judith Butler (2003) é que na primeira não há uma rigidez nesta construção, ao passo que na segunda ela é defendida como obrigatória e reiterada de diversas formas no cotidiano. Na categoria artística nomeada como drag queen estão diversos tipos de travestilidades e propósitos, como travestis, sujeitos andróginos e mesmo mulheres51. Ou melhor, muitas artistas travestis dividem espaço – e muitas vezes o mesmo palco – com drag queens. Por vezes, são tipos de shows diferentes, sendo o das travestis mais espetaculares, focados em dublagens, danças, movimentos coreografados e o foco em maquiagens e figurinos que realcem o feminino. Elas não se fazem como uma caricatura deste feminino; se apropriam de traços nomeados como tal e a partir daí constroem seu corpo via vestimentas, mas principalmente por alterações corporais, como cirurgias plásticas, depilações, implantes de silicone e dosagens hormonais. Por vezes parece um desafio: a tentativa de mostrar o quanto um ser tido como homem pode ser muito mais feminino do que um ser reconhecido como uma mulher. Drag queens também se preocupam com modificações corporais, como retirada total de pelos do corpo (principalmente pernas, axilas e rosto), colocação de seios postiços ou implantes de silicone e um cuidado especial com a maquiagem, a qual funcionará como um agente modificador deste corpo, fazendo-se como um prolongador de suas possibilidades plásticas.

Se não há um novo tipo de lógica quando falamos em drag queens ou mesmo travestis e transexuais, pelo menos seus limites definidores são muito mais borrados e passíveis de constantes recriações. Não seria a abertura às possibilidades tão exercitadas e características da própria criação artística entrecortando e entrecortada pelos tais problemas de gênero (e também de sexo e sexualidade)? Um ser ao fazer-se nesta travestilidade artística não estaria se reinventado estilística e elegantemente? Este não seria um/a camper: aquele/a que através desta sensibilidade e estética cria um modo de ser para si que é um modo artístico de subjetivação?

A performer Paula Braga é um perfeito exemplo destas referidas possibilidades plásticas de um sujeito. Seu corpo parece a serviço de sua arte e no momento em que pisa no palco não nos interessa se ela é homem, mulher, travesti, drag queen... Interessa-nos sua força em se

51 Lilitt Luna é uma drag queen personificada por uma mulher. A análise de sua construção e performances foi feita pela própria artista/pesquisadora que a encarna (2008). Confesso que esta é a única mulher que tomei conhecimento de ser declaradamente uma drag queen. É mais um alargamento desta categoria que agrega diversos artistas, mas é imprecisa e não reivindica nenhum caráter identitário. 104

transformar em outras/os, como as já mencionadas Carmen Miranda, Carlitos, Elis Regina, Clara Nunes, um malandro carioca, Elza Soares e Edith Piaf. A Carmen de Paula Braga estava posicionada imponente e sorridente no centro do palco do Teatro Gláucio Gill, no segundo dia de apresentações do “Laura Di Vison Auto-Retrato” em 2009, quando as cortinas se abriram. Possuía plataformas, roupas brilhantes e os balangandãs de Miss Miranda, além das características mãos que não paravam quietas um minuto, acompanhando cada nota musical. Carlitos chegou com seu tradicional terno surrado, cartolinha na cabeça, bigodinho destacando seu olhar terno e vívido e sua bengala a rodopiar no ar, marcando seu andar compassado como o de um pinguim. Quando ele começou a se despir, Elis Regina apareceu como num passe de mágica. Já desconfiávamos, pois a música que lhe servia de trilha era “O bêbado e a equilibrista”, hino da resistência nacional frente à ditadura militar de nossos anos de chumbo. Não foi à toa que a Elis de Paula abria dramaticamente seus braços dentro de uma bela camisa ricamente bordada com a bandeira brasileira. De braços abertos, Elis gingava para lá e para cá, parada em seu lugar e equilibrando-se com a cabeça adornada com curtos cabelos pretos e tronco levemente inclinado para trás. Sua força vinha de seus braços, a voar como a das asas da PanAir tão presente em seu repertório através de “Conversando no Bar”, de Milton Nascimento e Fernando Brant.

Após este voo, a bandeira do Brasil era recolhida e por baixo dos panos surgia um rústico vestido branco, como os da guerreira Clara Nunes. Correndo como Clara, Paula ia até o fundo do palco e num tom de reverência tomava nas mãos uma peruca que reproduzia os fartos cabelos da homenageada e ao colocá-la em si, “clareava”: dublava com perfeição as palavras e a dança carregadas de religiosidade afro de Clara Nunes na canção “Guerreira”, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro. Após os versos finais no qual dizia “Eu sambo pela noite inteira/ Até amanhã de manhã/ Sou a mineira guerreira/ Filha de Ogum com Iansã/ Epa Rei, Oiá” não houve quem não aplaudisse entusiasticamente estas apresentações da grande Paula Braga.

Ao final deste espetáculo Ângela LeClery subiu ao palco para cantar uma das músicas mais famosas de seu repertório: Non je ne regrette rien, de Michel Vaucaire e Charles Dumont, eternizada na voz e interpretação de Edith Piaf. Ângela soltava a voz quando surgiu no fundo do palco uma Piaf pequena, extremamente frágil, de gestos contidos e expressão quase triste. Esta nova personificação de Paula Braga vestia-se elegantemente de preto e chegou àquela que 105

cantava uma de suas mais marcantes canções para apenas dar-lhe a mão a admirar aquele momento. Foi uma cena de intenso lirismo e grande emoção.

Alguns números musicais de Ângela LeClery e Marlene Casanova depois, aparece ao palco um malandro de braços abertos e gestos expansivos. Todo cheio de malemolência, de terno, camisa listrada e um pandeiro na mão, gingava vagarosamente pra lá e pra cá até o momento em que de supetão tirava esta sua roupa para dar lugar a um curtíssimo vestido dourado, de um brilho esfuziante. Num piscar de olhos do público, o chapéu do malandro já não estava mais na cabeça e ali agora havia uma peruca black power. Animados gritos e aplausos davam as boas vindas à Elza Soares, que requebrava sem parar ao som de “Se acaso você chegasse”, de Felisberto Martins e Lupicínio Rodrigues; a sequência em que sambava de perfil, a passos curtos e em linha reta, deixou a plateia maravilhada. Paula-agora-Elza mais uma vez ouviu uma grande salva de palmas.

Paula Braga, Paula Soares, Paula Regina, Paula Piaf, Paula Miranda, Paula Nunes... Tantas e tão diversificadas Paulas vimos ali naquele palco e como foi bonito ver a emoção do público e da intérprete que dava vida àquelas tão importantes e admiradas divas. Interessante vermos como todas estas estavam ali, mas como também víamos Paula Braga nelas. Seu corpo, gestos e principalmente seu rosto estava em todas, apesar destas estarem excepcionalmente representadas. Até na perfeição da reprodução dos olhos puxados de Elza Soares reconhecíamos Paula Braga. O que então acontecia? Quem era esta que também era uma outra? Mistério...

Já o espetáculo “Esquinas”, em 2010, na Casa de Cultura Laura Alvim, foi iniciado com uma curiosa personificação: Lorna Washington cruzava o bonito cenário que representava a esquina, a rua que tinha por fundo os tradicionais Arcos da Lapa, aos berros com um homem que logo caia em uma cadeira e levava uma bofetada sincronizada aos dizeres “Tá pensando que travesti é bagunça?”. A plateia ria, principalmente por reconhecer esta cena e seu efeito, mas um leve desconforto pairava no espaço. No dia 25 de maio de 2010 o programa da Rede Globo “Profissão Repórter” exibiu uma reportagem sobre prostituição, tematizando esta em masculina, feminina e travesti. Um repórter acompanhava algumas travestis na Lapa, entre elas Luana Muniz, que após três dias sem nenhum cliente foi abordada por um jovem visivelmente alterado (por bebidas alcoólicas ou algum tipo de droga), que a levou para o outro lado da rua. A câmera mostrava o jovem sem nenhum controle sobre si e sobre o que desejava com Luana, momento em que esta lhe dá uma violenta surra, com murros e chutes e dispara que a tirou de seu lugar à toa, 106

que a está fazendo perder seu tempo e se ele “tá pensando que travesti é bagunça”. Logo após Luana se encontra com o repórter e pergunta se ele viu a cena e repete o “tá pensando que travesti é bagunça?” e diz que o cara bebe, enche a cara e vem tirar onda com ela, aludindo a desrespeitos cometidos contra travestis prostitutas. Ainda afirma não sentir orgulho de seu gesto. Porém após este programa ser exibido na TV, a breve cena ganhou o site de vídeos www.youtube.com e diversos blogs e redes sociais e virou um verdadeiro bordão. O fato acabou sendo apropriado de diversas formas: algumas pessoas reconheciam a discriminação sofrida por travestis, mas repudiavam o ato que julgaram abusivo e violento, ao passo que uma grande parcela LGBT o transformou em diversão: de certa forma Luana virou musa e o “tá pensado que ... é bagunça” se tornou uma frase aplicável a diversos contextos e categorias.

Esta foi a cena que abriu o espetáculo “Esquinas”, em uma espécie de prólogo que durou apenas alguns minutos. O palco se acendeu e logo se apagou para dar lugar à própria Luana Muniz que chegava do fim da plateia, com uma bonita veste e turbante brancos característicos de religiões de matriz africana, tocando uma adjarin enquanto o pot-pourri candomblecista/umbandista “Saudação/Abertura”, de Rita Ribeiro e Jongui, era tocado em alto e bom som. Luana adentrou o palco e após alguns gestos ritualísticos e de dança, juntamente com dois bailarinos que ali a aguardavam, se despiu na mudança de tom da canção e revelou uma curta saia e top de um vermelho vivo e brilhante, extremamente sensuais. Enquanto dublava a música e dançava, diversas entidades da umbanda e candomblé iam compondo o cenário: Exus, Cigana e Pomba-Gira interagiam com Luana e transformam aquela Lapa ali representada em um verdadeiro terreiro, marcado pela travestilidade de suas figuras da noite. Logo após este belo número, foi levado à cena a rapidamente mencionada apresentação de “É D’Oxum”. Yone Karr, uma linda negra de olhos verdes, dublava e representava muito bem a música em comedidos gestos, como uma entidade no centro do palco, portando seu espelho dourado e um lindo e leve figurino, com correntes de mesmo tom e gotas brilhantes. Ao fundo, dois bailarinos balançavam um igualmente leve tecido azul, trazendo movimentos de água para o palco.

O tom afro também apareceu na Clara Nunes de Paula Braga, o que torna interessante pensarmos tanto na espetacularidade e teatralidade de tal temática e os rituais a esta relacionados, como também no status marginal que tais religiões ainda têm no Brasil. E ali no palco, como 107

possivelmente na plateia, o corpo travesti se unia às entidades afro-brasileiras, ganhava força e uma significação positiva e bela era produzida.

Outras divas e números espetaculares, carregados na dramaticidade, passearam pelo show, interpretados pela própria Luana Muniz, Lorna Washington e várias jovens travestis que apaixonadamente se entregaram a esta arte da travestilidade e àquele palco. Certamente era a primeira vez que as recebia. Ao fim, a dona da rua Luana Muniz retomava a cena inicial de Lorna e em tom agressivo explicava para o cara ali sentado o porquê de “travesti não ser bagunça”; exigia respeito e desabafava energicamente todas as dificuldades que travestis e transexuais encontram nas esquinas, em seus trabalhos, amores, nas imagens que delas são pintadas, enfim, em seus cotidianos e em praticamente todos os espaços que ocupam ou desejariam ocupar. A última cena foi festiva, Luana brilhava em um vestido, capa e coroa dourada e todas e todos artistas compareceram ao palco. Em declaração emocionada, a “Rainha da Lapa” agradecia a todos e todas, sua família, amigos e todo o público que ali estava.

3.4. Des ennuis des chagrins s'effacent, Heureux, heureux à en mourir

No início do segundo dia de espetáculos no Teatro Gláucio Gill, em 2009, antes da Carmen Miranda de Paula Braga ser apresentada ao público, uma voz em off introduzia o show. Era Almir França, na época vice-presidente do grupo Arco Íris e visivelmente o grande idealizador deste projeto. Cabe ressaltar que este é o mesmo Almir que teve a iniciativa de realizar a roda de conversas sobre travestismos na cena gay no Castelinho do Flamengo meses antes. Através deste belíssimo texto, todas drags, travestis, transexuais, female impersonators, atores-transformistas e outro/as possíveis foram homenageados. Ao final do espetáculo do último dia de shows ouvíamos na voz e presença de uma Lorna Washington desmontada o nome de todas as drag queens, atores-transformistas e trans que os/as presentes ali conseguiam lembrar, 108

fossem elas vivas ou já transformadas em purpurina52. Enquanto Lorna lia todos os nomes, as artistas que estavam no teatro naquele momento subiam ao palco.

Com todas no palco, juntamente com a atriz Léa Garcia e duas senhoras com idades declaradas acima dos 90 anos, grande apoiadoras destas artistas e modalidade de shows, Jane Di Castro encerrou a noite atendendo aos pedidos para cantar La vie en rose, composta pela própria Edith Piaf, que a imortalizou, e Louis Gugliemi. A música veio à capela e a plateia acompanhou- a. Ao som dos clássicos La-ra-ra-ra-ra-ra la-ra-ra-ra-ra-ra da canção, esta noite e o projeto “Laura Di Vison Auto-retrato”, edição 2009, teve fim. Foi um momento de grande celebração, da mesma forma que na edição de 2010 tivemos reiterada a potencialidade e importância da artista da travestilidade em nosso cenário artístico e social, seja este reduzido à população LGBT ou não. Almir França foi novamente o responsável por tal marcação e contextualização dos espetáculos. Na noite em que “Esquinas” foi levado à cena, um novo momento de celebração e protesto foi ouvido: Indianara leu um poético texto que reconhecia as especificidades trans, ao mesmo tempo que reividincava por cidadania à categoria.

Palavras introduziram as duas edições do projeto “Laura Di Vison Auto-retrato”. Estas tiveram seu impacto e lugar, mas certamente não se equiparavam aos shows e emoções vívidas e vividas naqueles palcos que habitaram este projeto. O conteúdo se fez estilo e vice-versa; as damas da noite fizeram rir, divertiram, emocionaram e partilharam um pouco de sua arte com todos e todas presentes. Foi babado!

52 É bastante conhecido o ditado popular de que “bicha não morre, vira purpurina” e aqui faço menção a tal expressão inspirado pelo poético e emocionante uso que os diretores Tatiana Issa e Raphael Alvarez fizeram desta no fim de seu documentário “Dzi Croquettes” (2009). Tatiana tinha cinco anos quando seu pai se juntou aos Dzi como fotógrafo do grupo. No início do documentário diz lembrar-se deles como palhacinhas coloridas que a colocavam pra dormir enquanto assistia aos ensaios entre as cadeiras do teatro. Este tom terno é retomado ao final, quando Tatiana diz que seu pai lhe ensinou que bicha não morre, mas se transforma em purpurina e desta forma apresenta as datas que os membros do Dzi Croquettes viraram purpurinas, incluindo a morte de seu pai entre elas. Não há como não se emocionar com este momento de grande beleza e ternura. 109

Some girls they have natural ease They wear it any way they please With their French flip curls And perfumed magazines Wear it up, let it down This is the best way that I've found To be the best you've ever seen

I put on some make-up Turn up the eight-tack I'm pulling the wig down from the shelf Suddenly I'm Miss Farrah Fawcett From TV Until I wake up And I turn back to myself

(Wig in a box – Trilha do filme Hedwig and the angry inch)

4

Passeios a céu aberto:

“Parada do Orgulho LGBT” e “Banda de Ipanema” 110

Foi com uma grande decepção comigo mesmo que iniciei meus trabalhos de campo referentes à 15ª Parada do Orgulho LBGT do Rio de Janeiro, em 2010. Não acompanhei a 14ª edição da Parada, realizada no ano de 2009, pois sua data coincidiu com o XV Encontro Nacional da ABRAPSO que teve lugar na cidade de Maceió/AL, do qual participei. Decidi então acompanhar apenas a Parada do ano de 2010, que aconteceria no dia 10 de outubro de 2010. Porém, esta data foi alterada para o dia 14 de novembro do mesmo ano, o que me fez reprogramar minha agenda e cancelar importantes encontros para que não tivesse minha pesquisa prejudicada, pois a Parada é um local de grande visibilidade LGBT e geralmente conta com considerável participação das mais diversas formas de travestilidade.

14 de novembro foi uma data que ficou fixa em minha mente e talvez esta fixação tenha sido tamanha que ao ler e-mails de divulgação e o cartaz que anunciava o show de abertura da 15ª edição da Parada do Orgulho LGBT do Rio, logo reservei a data de 13 de novembro de 2010. Porém o show foi no dia 13 de outubro e não de novembro, como um lapso me fez acreditar, de modo que perdi as presenças de Jane Di Castro, Lorna Washington, Rose Bombom, Núbia Pinheiro, Luana Muniz, Karina Karão, Luiza Moon, Paula Braga, Eula Rochard e Stephanie Camburão no palco do Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes.

Dentro da programação oficial da Parada de 2010, acompanhei os já mencionados espetáculos da segunda edição do projeto “Laura Di Vison Auto-Retrato, a “Festa de Celebração da 15ª Parada do Orgulho LGBT do Rio”, no Cine Ideal, e a Parada em si, na orla de Copacabana. Esta festa no Cine Ideal teve lugar numa quinta-feira, anterior ao domingo em que seria realizada a Parada, e era uma espécie de comemoração de abertura do festivo fim de semana, que contaria com festas e eventos (oficiais e não oficiais) espalhados por diversas boates e espaços da cidade. Foi uma festa de debutantes: comemorando seu 15º ano do desfile do orgulho LGBT pela orla carioca, as principais atrações da noite estavam todas em lindas e brilhantes roupas brancas, a começar por Eula Rochard, que exibia um elegante vestido rodado branco com diversos detalhes em dourado. Uma princesa!

Após enfrentar a fila na entrada do local, no qual Eula é a hostess, dentro da pista principal várias pessoas aguardavam a primeira atração da noite, a exibição da peça “Os Assumidos – a Comédia”. Divulgada como inspirada no extinto seriado inglês e/ou norte-americano Queers as 111

Folk53, a peça vista não tinha nada que se relacionasse a tal programa televisivo, a não ser alguns nomes de personagens. Foi uma montagem extremamente amadora – em um sentido não positivo do termo – e contava com uma personagem drag queen que conduzia o espetáculo, ou melhor, um ator que se esforçava para interpretar uma drag queen, mas que não parecia constituir-se como este tipo de persona. Eula Rochard foi convidada especial da peça e apresentou um pequeno número. Excetuando esta sua entrada, tudo era muito feio e não parecia agradar ao público presente.

Após a peça, um DJ comandou o som da boate e as pessoas se espalharam pela pista de dança. Como o espaço é bastante grande, a festa parecia não estar lotada, mas muita gente estava presente. O mezanino do Cine Ideal estava aberto e funcionando apenas para convidados selecionados, os quais pareciam ser principalmente aqueles e aquelas que se relacionavam de alguma forma à organização da Parada do Orgulho LGBT. As drag queens e artistas da travestilidade presentes estavam neste ambiente e não demorou muito para serem chamadas ao palco da pista principal. O show iria começar.

Para surpresa da maioria dos presentes e, aparentemente das próprias artistas, não haveria show. Lorna Washington, Nepopó, Desiree, Eula Rochard, Lola Batalhão e Isabelita dos Patins subiram ao palco e improvisadamente cada uma fez um breve convite para que todos e todas participassem do desfile da 15ª Parada no domingo próximo. E só. Todas estavam lindamente vestidas em trajes brancos e brilhantes, no tom da temática debutante da Parada. Porém, infelizmente não se apresentaram e, após este lacônico momento, desceram do palco, o som recomeçou na pista do Cine Ideal, a maioria destas artistas retirou-se do local e a festa continuou pelo restante da noite.

53 Este seriado foi criado inicialmente no Reino Unido, tendo duas temporadas nos anos de 1999 e 2000. Uma versão norte- americana levou ao ar cinco temporadas entre os anos de 2000 e 2005. Traduzida no Brasil como “Os Assumidos”, este seriado retratava um grupo de amigos homossexuais, seus dramas e a comunidade da qual faziam parte. 112

4.1. Chiquita Bacana, Lá da Martinica

Um desfile de subjetividades ou identidades nomeadas como lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis pode ser observado nas Paradas do Orgulho LGBT. Festa que se situa entre o divertimento e a política, é assim caracterizada por Carrara e Ramos (2006):

Sendo uma das mais extraordinárias manifestações de massa desse início de milênio no Brasil, as paradas têm se consolidado como eventos simultaneamente lúdicos e políticos. Tal caráter foi traduzido em números pela pesquisa por nós realizada em 2003, no Rio de Janeiro (Carrara; Ramos e Caetano, 2003), segundo a qual razões de ordem política motivaram o comparecimento de 48.1% dos entrevistados, seguidas por outras de natureza lúdica (“por curiosidade”, “para se divertir” ou “para paquerar”). Além de merecerem uma reflexão que as aborde enquanto fenômeno social e político, as paradas reúnem gays, lésbicas e transgêneros que, de outro modo, dificilmente poderiam ser alcançados por qualquer tipo de investigação sociológica, oferecendo oportunidade ímpar para o seu conhecimento. Dadas, sobretudo, as segmentações geracional, de classe e identitária que marcam essa população, ela não poderia ser abordada em sua extrema diversidade em qualquer outro espaço social (seja de lazer, de trabalho ou mesmo de ativismo político). E se isso ocorre, talvez seja pelo fato de as paradas se organizarem justamente em torno de uma espécie de denominador comum que agrega todo esse universo: a luta contra a discriminação e o preconceito que atingem as diferentes minorias sexuais (CARRARA E RAMOS, 2006, p. 14).

Constituindo-se em uma espécie de “carnaval político”, as Paradas também são um importante palco de visibilidade para drag queens, artistas da travestilidade ou qualquer outro que deseje exercitar algum tipo de travestilidade em um ambiente público e, atualmente, reconhecido nacionalmente como uma festa da diversidade sexual em suas mais diferentes facetas. Não pretendo fazer aqui uma análise das Paradas do Orgulho LGBT e suas implicações sociais, mas apenas trazer um pouco do desfile da diversidade travestida que passou pela orla de Copacabana no nublado domingo em que a 15ª Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro ocorreu.

O dia amanheceu chuvoso, mas no início da tarde havia apenas nuvens sobre a orla de Copacabana. A chuva ameaçou e caiu apenas de leve sobre os participantes da Parada que pouco a pouco iam chegando e caminhando por entre os trios elétricos que já se encontravam em fila para o desfile. Estes recebiam os últimos retoques e as pessoas que levariam ali em destaque também iam se aproximando ou tomando seus lugares.

Um pequeno palco foi armado para o início da Parada e contou com várias autoridades e personalidades como Júlio Moreira, presidente do Grupo Arco-Íris, o principal organizador do desfile, Cláudio Nascimento, superintendente de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos do 113

Estado do Rio de Janeiro, o deputado federal eleito Jean Wyllys, a Miss Gay Rio de Janeiro 2010, Michelle Ronda, o carnavalesco Milton Cunha e diversas outras, como muitos profissionais da imprensa que queriam garantir fotos do evento. Eula Rochard estava com uma roupa cheia de lantejoulas coloridas, formando listras como as do arco-íris e desempenhava a função de hostess do palco das autoridades e personalidades. Jane Di Castro era uma delas e com um vestido azul, a bandeira do Brasil jogada sobre os ombros e um enorme guarda-chuva de arco-íris aguardava o momento inicial da Parada, no qual entoou performaticamente o Hino Nacional Brasileiro. Diversos discursos também foram ouvidos e aplaudidos e a Parada teve seu início.

Todos os carros possuíam arcos de balões, a maioria seguindo os tons do arco-íris. Outros indicavam a especificidade daquele carro, como branco e prateado para o primeiro a desfilar, talvez em alusão aos 15 anos do evento; lilás para as Mulheres Lésbicas e Bissexuais e diversos outros adereços bastante coloridos que também decoravam os carros. A gigantesca bandeira do arco-íris vinha aberta logo após o desfile do segundo carro, marcando simbolicamente aquele território LGBT desde o início de sua Parada. O público que compareceu era bastante diversificado, sendo possível ser vistas as mais diversas homossexualidades, grupos de amigos, famílias e um considerável número de pessoas aparentemente heterossexuais, que viam a importância de sua participação ou eram apenas curiosos em um vultuoso evento turístico. O Grupo Arco-Íris estimou em 1,2 milhão o número de participantes, conflitando com a estimativa divulgada pela Polícia Militar de que seriam 250 mil pessoas na orla de Copacabana.

Independente do número mais próximo do que foi visto em Copacabana, o certo é que foi uma bonita festa e todos e todas puderam se divertir sob as cores do arco-íris e estilosos cartazes com o slogan deste desfile de 2010, “Orgulho contra a Homofobia”. Muitas travestilidades passearam pela Parada, desde travestis e transexuais até composições muito próximas de fantasias, como temáticas de vaca, mulatas, bailarinas, gueixas, tigresas, entre muitas outras. Corpos travestidos exibiam-se segundo tais temáticas ou se montavam com elementos femininos, principalmente perucas, roupas e maquiagem, criando feminilidades que se não eram exatamente de uma drag queen ou outra artista da travestilidade, eram corporalidades para serem vistas e festejadas naquele momento. A Avenida Atlântica se tornou um grande palco e passarela de visibilidade de corpos travestidos e em festa. 114

Apesar de não ser a maioria dos presentes, os corpos travestidos para a Parada do Orgulho LGBT davam um novo brilho e cor à festa. Pareciam alegorias, que divertiam ou simplesmente assumiam momentaneamente aquela feminilidade ali exercitada. Muitas demonstravam cuidado e horas de preparação, outras queriam apenas “dar pinta” e se divertir na avenida, formando um grande e diversificado mosaico da travestilidade em um dos mais tradicionais cartões postais da cidade do Rio de Janeiro. Talvez fossem uma forma potencializada de afirmação da homossexualidade e travestilidade, uma apropriação camp de si permitida e coloridamente exercitada naquele espaço.

Muitas drag queens ou jovens aspirantes a estas profissionais eram vistas por entre o público e também nos trios elétricos. Muita pose e jogação de cabelo marcavam suas presenças. Algumas mais conhecidas tinham lugar cativo nos carros, como a travesti Luana Muniz e várias de suas companheiras, que desfilaram em um trio que condenava a discriminação contra travestis e transexuais. Drag queens ou caricatas também subiram neste carro, como uma excelente personificação da presidenta recém-eleita naquele momento, Dilma Rousseff. Esta Dilma drag sorria e acenava serena, com uma calça branca, casaco vermelho, colar de pérolas e a característica faixa presidencial sobre seu corpo.

O projeto “Entre Garotos”, do Grupo Arco-Íris, trouxe muitos go go boys em seu carro e algumas travestilidades, como uma versão da cantora Amy Winehouse e a divertidíssima Lola Batalhão, acompanhada de seus meninos. Tradicionais boates gays cariocas desfilaram muitas cores e adereços, mais go go boys e as principais atrações de suas noites. O carro da boate Papa G, por exemplo, trouxe Kayka Sabatella e no da Boate 1140, Suzy Brasil, Desiree, Karina Karão e outras artistas foram destaques em roupas prateadas e cibernéticas, como algum tipo de super- heroínas. Cada carro comandava a multidão que se reunia em seu entorno, com muita música e animação. Estas boates e muitas outras que participaram do desfile, ou mesmo aquelas que não tiveram seus carros na orla de Copacabana, fariam após a Parada animadas festas em suas dependências, pois ali a festa tinha hora pra acabar, mas nas boates não. Drags e outras artistas da travestilidade ainda teriam longas horas de trabalho e entretenimento junto ao animado público que tomava conta da Avenida Atlântica. As boates tiveram intensa programação em todos os dias que antecederam a Parada propriamente dita, aproveitando-se do maior número de turistas e 115

homossexuais pela cidade, principalmente por conta do feriado do dia 15 de novembro, que transformou esta segunda-feira em um novo domingo de festa pintada com as cores do arco-íris!

4.2. Se veste com uma casca, De banana nanica

Objetivando refletir sobre tais corpos drag queens, bem como os corpos que não se constroem desta forma, retomo aqui a máxima anteriormente citada da drag norte-americana Ru Paul, “você nasce nu e o resto é drag”54 (citada por VENCATO, 2002, p. 35). Ela parece apontar para as normas sociais e culturais que incorporamos desde o mais tenro momento de nossa existência, tornando aquele corpo nu recém-nascido dotado de significação, expectativas e direcionamentos que a todo momento nos indicam o que podemos e o que não podemos ser. Esta frase de Ru Paul é maliciosa e ela brinca com o termo drag para referir-se à categoria das drag queens, da qual é uma grande expoente, como também para sugerir que somos constituídos desde o nascimento por montarias, ficções, personificações, performances e uma série de outros termos que poderiam indicar que neste processo de subjetivação nada é natural, mas sim fabricado em diversificados e diferentes níveis de coerências e rupturas com o meio cultural no qual nos formamos. Fundamentalmente, nosso corpo é drag, mesmo que não sejamos uma queen.

Historicamente o corpo humano tem sido tratado de diversas formas, bem como tem sido apropriado por diferentes campos do conhecimento, cada qual naturalizando seu discurso como o mais apropriado, o melhor desenvolvido ou o único válido e legítimo sobre o(s) corpo(s). Esta variedade de discursos e formas de abordar o(s) corpo(s) apontam para algo que parece ser consensual em diversos círculos acadêmicos, pelo menos nos que carregam, mesmo que sutilmente, a marca dos estudos foucaultianos: a ideia de que o corpo é construído e não algo natural ou dado anteriormente à qualquer tipo de teia de saber e poder que incide sobre este. Histórias, discursos, concepções extremamente diversas atravessam a noção de corpo de diferentes sociedades ou grupos, o que impossibilita falarmos de um corpo que se apresente como o modelo exclusivo de validade. Aliás, qual o sentido em se falar de um corpo único senão como uma prática normativizante que visa alguma forma de controle dos corpos? Ao se considerar

54 No original “You are born naked and the rest is drag”. 116

determinado corpo como legítimo, faz-se necessário o constante cuidado para que este mantenha seu padrão de normalidade, da mesma forma que os corpos ilegítimos – ou abjetos, segundo noção de Judith Butler (2007) – devem ser controlados para que alcancem o status de sujeito, ao mesmo tempo em que são reiterados como abjetos, pois, o “habitar sob o signo do inabitável é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito” (BUTLER, 2007, p.155, grifos no original). Butler tece esta rede produtiva de poder que permeia a inscrição do sujeito, afirmando que através de normas regulatórias, sua forçada reiteração e a valência da abjeção, recontextualiza-se a “questão de se saber quais corpos pesam e quais corpos ainda devem emergir como preocupações que possam ter um peso crítico” (BUTLER, 2007, p.156). Saber e demarcar quais corpos são sujeitos válidos e legítimos, quais devem ser tolerados, quais devem ser corrigidos, quais serão exterminados, etc.

Esta diversidade de corpos e toda a rede necessária para mantê-los como válidos ou não- válidos expõem a fragilidade e localidade da própria construção dos corpos, o que nos distancia ainda mais de sua suposta naturalidade. Cabe ressaltar que o interesse de Judith Butler, pelo menos nestes estudos acerca dos “problemas de gênero” e subjetivação e materialidade dos corpos, é na sociedade ocidental contemporânea; é um foco muito restrito e se fôssemos nos debruçar por sociedades e sistemas de organização e subjetivação diversos encontraríamos os mais diferentes corpos e formas de subjetivação55, levando-nos à questão: o que seria então um corpo natural? Ele existe ou é apenas uma ficção?

Alguns autores defendem algo como uma “antropologia mínima”, nos dizeres de Francisco Ortega, que seria “a existência de invariantes corporais (...), entre outros, a posição ereta, a assimetria frente/dorso do corpo, a tendência recessiva da visceralidade e mesmo a relação indivíduo-ambiente” (ORTEGA, 2008, p. 212). Este autor faz a ressalva de que estes invariantes seriam provisórios, pois estas noções poderiam sempre ser alteradas em algum momento de nossa História, a qual acaba sendo vista como única ou como a conquista da civilização – mas que ele

55 Um exemplo bastante interessante sobre um modo de subjetivação diferente do que temos na nossa sociedade ocidental europeizada é o estudo Guardians of the Flutes, de Gilbert Herdt (1981). Herdt descreve como os Sambia (nome fictício adotado por ele para a sociedade que estudou na Melanésia), se organizam em torno da figura masculina, porém não vendo as mulheres como complementares aos homens, e sim como algo extremamente perigoso e com possibilidades mortais. São necessários rituais de purificação após o contato sexual com as mulheres, além da formação dos meninos ser feita apenas entre homens, incluindo a ingestão de sêmen dos mais velhos pelos mais novos como forma de incorporação de algum tipo de energia vital (masculina). É um tipo de organização que não encontra um tipo de analogia com a sociedade ocidental; mesmo se quiséssemos aproximar este lugar das mulheres sambia com a posição ainda de inferioridade das mulheres perante os homens em nossa sociedade, isto não seria possível nem legítimo. São tipos diferentes de lógicas estruturais. 117

dá a entender que ainda não aconteceu. Se quiséssemos pensar nesta “antropologia mínima”, poderíamos até dizer que algo que convencionaríamos nomear como característico do ser humano seria encontrado em todas as sociedades, como uma própria noção de corpo humano, organização em grupos ou sociedade, preocupação com a reprodução, entre diversos outros. Mas qual o sentido de se querer tal generalização? Não se preocupar em estabelecer uma verdade universal do corpo humano seria o mesmo que admitir um descrédito do corpo local? O corpo está mesmo em análise ou o que realmente está em jogo é uma luta entre campos diversos do saber buscando cada qual estabelecer a sua visão de corpo e de mundo como a melhor, mesmo que isso não seja dito explicitamente?

Qualquer generalização constitui-se como frágil e de extremada redução, pois uma realidade, qualquer que seja esta, parece mais complexa do que podemos supor e sempre nos escapa em sua apreensão: não existe total isenção, nem demonstrabilidade fiel do que poderia ser chamado realidade. Por mais que nos empenhemos em nossas teorizações e análises estas serão parciais por serem estabelecidas de um ponto determinado. Aqui penso ser interessante o conceito de performatividade, como postulado por Judith Butler (2008) com bases nos estudos linguísticos, principalmente de Jacques Derrida: produz-se uma realidade no momento mesmo em que esta é nomeada e suas proposições são constantemente reiteradas, de modo que seus contornos são criados e materializados através de uma realidade discursiva que se instaura concomitantemente à materialização. Produto e ato de produção coincidem em sua instituição.

Afirmar que um corpo é construído pelo discurso e em redes de poder não é o mesmo que negar sua materialidade. O que construcionistas como a tão louvada e atacada Judith Butler argumentam é que “a matéria dos corpos será indissociável das normas regulatórias que governam sua materialização e a significação daqueles efeitos materiais” (2008, p.155). O que esta teórica afirma é que não há como se pensar um corpo dado a priori sobre o qual agiríamos voluntariamente, mas que ser e ter um corpo está de tal forma imbricado que se tornaria inviável pensar a materialidade deste fora de sua construção discursiva – a qual não se resume apenas ao discurso linguístico, mas a toda gama de significação e sua circulação dentro de dado grupo ou cultura. O corpo sempre seria local de interpretações e disputas e estes discursos são performativos, pois a forma como percebemos nossos corpos – e seus nós – será este corpo. Não há como separarmos o que vemos como corpo de um suposto corpo em si, puro, ainda mais 118

quando não aceitamos reduzi-lo ao seu estatuto biológico, quantificável e mensurável que nosso viés positivista concebe como o verdadeiro corpo.

David Le Breton (2002) também argumenta acerca desta localidade do corpo humano. Diferentemente de Judith Butler e Francisco Ortega e seus respectivos seguidores ou círculos, este teórico abordará o corpo de forma histórica, mas também preocupado com a validade dos discursos sobre os corpos. Le Breton afirma que para nós, humanos, nada é mais misterioso do que o corpo e que as diversas sociedades refletiram sobre este e se esforçaram para abarcá-lo de alguma forma em suas visões de mundo, representações e práticas. O corpo parece sempre investido de sentido e valor e as concepções formuladas para explicá-lo, ou simplesmente representá-lo, gestaram distintos discursos sobre tal, como alguns histórico e geograficamente localizados nos quais a noção de corpo coincidiria com a própria noção de pessoa. Estariam ausentes deste tipo de concepção os dualismos corpo versus mente e homem versus mundo, fundantes e característicos da racionalidade ocidental moderna (LE BRETON, 2002).

Um exemplo deste tipo de concepção é o modelo de sexo único, trazido por Thomas Laqueur (2001): a quantidade de calor vital recebido por um corpo é que determinaria se seria masculino ou feminino. Homens e mulheres não eram vistos como seres ou gêneros opostos, mas sim diferentes devido ao recebimento deste calor vital; estavam num mesmo continuum e suas genitálias eram análogas, sendo que a masculina foi externalizada por maior recebimento de tal calor e a feminina, como recebeu menos calor, acabou ficando interna e junto às vísceras corporais. Mesmo se encontrando nesta espécie de continuum, o fim era o masculino, já que este recebeu mais calor vital e, portanto, se desenvolveu mais do que o feminino.

O modelo do sexo único pautou a concepção dos corpos desde a Antiguidade até fins do século XVIII e ainda incluía em seu arcabouço outros seres animados e inanimados, que eram dispostos nesta hierarquia também pela quantidade de calor que receberam. Os corpos e seres eram diferenciados, mas não de forma tão radical e por vezes incompatível como na contemporaneidade. Tanto esta visão dos gêneros como a concepção do corpo em si eram mais fluídas e nesta última está presente a noção de que os “fluidos – sangue, sêmen, leite e excrementos variados – são substituíveis, transformam-se uns nos outros, e cujos processos – digestão, menstruação e outros sangramentos – não eram tão facilmente distinguíveis ou tão 119

facilmente assinaláveis para um sexo ou outro como se tornaram depois do século XVIII” (LAQUEUR, 2001, p.30).

Laqueur postula que já no início do século XIX “uma anatomia e fisiologia de incomensurabilidade substituiu uma metafísica de hierarquia na representação da mulher com relação ao homem” (LAQUEUR, 2001, p.17) e em fins do referido século, esta “nova diferença podia ser demonstrada não apenas em corpos visíveis mas também em seus blocos microscópicos” (LAQUEUR, 2001, p.17). É a partir desta racionalidade que nós, pós-modernos ou simplesmente contemporâneos de nós mesmos, concebemos nossas visões, articulando-as das mais diferentes formas e direções. Novamente é importante ser ressaltado que não há um corpo natural anterior à sua representação ou percepção enquanto corpo em nenhuma sociedade; ele sempre é construído segundo símbolos, representações, imaginários, entre outros movimentos.

Estas breves considerações acerca de algumas representações do corpo e suas disputas nos servem como exemplo de que falar do corpo é sempre falar dessas suas representações e apropriações; ele é o corpo daquela sociedade particular, localmente situada no espaço e no tempo. Thomas Laqueur, ao discorrer acerca da “invenção do sexo”56, afirma que “o corpo privado, incluso, estável, que parece existir na base das noções modernas de diferença sexual, é também produto de momentos específicos, históricos e culturais. Ele também, como os sexos opostos, entra e sai de foco” (LAQUEUR, 2001, p.27). E pensando sobre este sexo ou corpo sempre contextual, ele nos lança uma interessante questão ao dizer que “Longe de negar qualquer dessas coisas, eu pretendo insistir nelas. Meu ponto específico arquimediano, contudo, não é no corpo transcultural real mas no espaço entre ele e suas representações” (LAQUEUR, 2001, p.27, grifos no original). É neste espaço, ressaltado estrategicamente por Laqueur em sua tese, que penso residir o interesse deste capítulo: discutir a corporalidade das drag queens e travestilidades artísticas como que bailando entre o corpo contemporâneo e sua representação, entre o que em nossa época é tido como o corpo dado, natural, e sua possível não-naturalidade.

56 O título original do livro de Thomas Lacquer é “Making sex – Body and gender from the greeks to Freud”, que foi traduzido para o português como “Inventando o Sexo – Corpo e gênero dos gregos à Freud”. A tradução é coerente, mas acabou perdendo- se o humor e duplicidade de leitura contido em Making Sex, que pode ser tanto “Inventando o Sexo” como “Fazendo Sexo”, com conotações de relação sexual. “Fazendo Sexo” também poderia ser lido dentro dos postulados performativos de Judith Butler, referidos anteriormente. 120

4.3. Não usa vestido, Não usa calção

David Le Breton em sua obra “Adeus ao corpo – Antropologia e sociedade” (2009) se esforça para erigir diversos indicativos de relações possíveis com o corpo e que o transforma em artefato absolutamente maleável no contemporâneo, seja por intervenções estéticas como a body art e cirurgias plásticas ou o estabelecimento de novos fundamentos da vida que tomam o corpo como “o rascunho a ser corrigido” (LE BRETON, 2009, p.16), via manipulações biotecnológicas e tecnocientíficas. Há uma produção farmacológica de si e modulações cibernéticas de órgãos e tecidos, que não somente concebem o corpo como uma máquina, mas efetivamente tentam “abolir o corpo, eliminá-lo pura e simplesmente, substituindo-o por uma máquina da mais alta perfeição” (LE BRETON, 2009, p.17).

Um dos exemplos de “corpo rascunho” utilizado por Le Breton é o da transexualidade. Localizando esta corporeidade no mesmo patamar da body art e outras intervenções deste tipo, este autor postula que

O transexual suprime os aspectos demasiado significativos de sua antiga corporeidade para abordar os sinais inequívocos de sua nova aparência. Modela para si diariamente um corpo sempre inacabado, sempre a ser conquistado graças aos hormônios e aos cosméticos, graças às roupas e ao estilo da presença. Longe de serem a evidência da relação com o mundo, feminilidade e masculinidade são o objeto de uma produção permanente por um uso apropriado dos signos, de uma redefinição de si: conforme o design corporal, tornam-se um vasto campo de experimentação (LE BRETON, 2009, p.32, grifos meus).

É necessária aqui uma diferenciação entre este “viajante em seu próprio corpo, cuja forma e cujo gênero mudam à sua vontade, levando a termo a condição de objeto de circunstância de um corpo, que se tornou modulável e determinável não mais com relação ao sujeito, mas ao momento” (LE BRETON, 2009, p.34), nos termos de Le Breton, de uma vivência trans que poderíamos localizar como identitária ou uma efetiva transformação de gênero. Esta experimentação de si como afirmada por Le Breton parece mais próxima da experiência drag queen e de outras travestilidades voluntariamente moldadas com um fim específico, como shows e espetáculos, do que de uma transexualidade ou travestilidade. 121

Desde fins da década de 1950, discursos biológicos e psicanalíticos erigiram o que Berenice Bento (2006) nomeou como “dispositivo da transexualidade”, ou seja, um conjunto de concepções e práticas que deram corpo à categoria do “transexual” como aquele sujeito masculino preso num corpo feminino ou vice-versa, os quais desejam e necessitam passar por diversificados procedimentos médico-cirúrgicos para adequarem seus corpos à visão que têm de si. A transexualidade é descrita no Código Internacional de Doenças (CID-10) e no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV) 57, mas vivências trans são possíveis e positivadas independente deste crivo médico-científico ou o acesso a seus serviços. Há uma diversidade de corpos, construções e vivências dentro da categoria da transexualidade, desde pessoas que desejam passar pela cirurgia de transgenitalização até aqueles e aquelas que se sentem transexuais e operam outras formas de modificação de seus corpos, como vestimentas e intervenções locais. No caso da passagem do gênero masculino para o feminino, há ainda a categoria travesti que nomeia corpos tornados femininos, mas que não veem suas genitálias masculinas como passível de readequação ou modificações; esta é apenas uma suposta readequação, já que para tais corpos não há o desejo de extirpar seus pênis e estes se encontram completamente integrados a esta corporalidade. A genitalidade, tão central na nomeação e classificação de nossos corpos e gêneros, é vivenciada dentro da feminilidade daquele corpo, criando “pênis femininos”, como muito bem percebeu Hélio Silva em sua etnografia de travestis da Lapa carioca (1996).

Estas vivências transexuais e travestis não podem ser reduzidas a uma body art ou a um ato de intervenção corporal, pois são transformações de gênero mais completas e complexas. Mesmo que concebamos a body art e outras similares também como criadoras de novos corpos e percepções de si, estas se constituem como outro tipo de vivência e não necessariamente operam modificações de gênero; em alguns momentos body art e travestilidade podem se encontrar, mas não são coincidentes nem seguem a mesma lógica de construção. Nos termos anteriormente citados de David Le Breton, talvez possamos afirmar que na transexualidade e travestilidade temos sim uma “evidência da relação com o mundo” e suas normas e produções de gênero e, apesar de qualquer corpo ou pessoa operar os mais diversos graus e tipos de experimentação de

57 A patologização das categorias transexual e travesti é discutida por Jorge Leite Júnior em sua tese de doutoramento intitulada “‘Nossos corpos também mudam’: sexo, gênero e a invenção das categorias "travesti" e "transexual" no discurso científico” (2008). O autor traçará o histórico de como tais categorias foram capturadas pelo discurso científico, principalmente a medicina, e utilizadas como dispositivos de normatização de corpos. 122

si, aquele “vasto campo de experimentação” postulado por Le Breton seja condizente com as travestilidades experimentadas no campo de manifestações artístico-culturais, meu foco neste trabalho.

Uma construção artística da travestilidade, levada ao palco ou vivenciada entre amigos e em ambientes mais restritos, é diversa daquela vivenciada no cotidiano, mesmo que a travestilidade artística em alguns momentos possa servir como um campo de experimentação de futuras transformações de gênero. A construção de um corpo estético e que será visibilizado para determinada plateia marca a travestilidade artística. Deste modo, pode-se afirmar que um corpo drag queen é um corpo para ser visto, o que pode ser compreendido de duas formas: a) é um corpo artístico, ou seja, uma obra de arte construída sobre um corpo “natural” como também construtora de determinada corporalidade, a qual b) constitui-se sob o signo do exagero, percepção marcada desta forma por contrapor-se à determinada normatividade produtora de “naturalizações” que regem nossos modos de subjetivação (corporificados).

Conforme afirma Luis Alberto Brandão Santos, na experiência e acontecimento teatral há uma,

Inter-relação de corpos. Corpos que interagem no espaço da cena. Corpos que interagem no espaço da audiência. Corpos no palco interagindo com corpos na plateia. Mesmo que tais espaços sejam intercambiáveis, há sempre um jogo de mútua presencialidade dos corpos. E é através desse jogo que surge o para-além do corpo: sua ficcionalização. Tempo, espaço, ação: vetores inerentes ao vetor principal: o diálogo de corpos mediado por um algo mais de sentido: o caráter explícito da representação (SANTOS, 2000, p.280, grifos no original).

Este autor ressalta ainda que o corpo no teatro não atua apenas para difundir determinada ideia ou conteúdo (ficcionalidade), sendo mero veículo da personagem, mas sua “significação do corpo, como corpo, coexiste com sua ficcionalidade, não estando subordinada a ela. O corpo do ator efetivamente veicula a ideia de personagem, mas excede tal ideia, isto é, o ator – corpo – coexiste com a personagem – imagem” (SANTOS, 2000, p.280-281). Há, portanto, a criação de um novo corpo teatral, que tanto nos remete ao ator que desempenha determinado papel como a corporificação daquela personagem ali interpretada. E este movimento dualista abre espaço para 123

uma nova significação, a experimentação de um corpo estético que também necessita de uma plateia para existir.

Um pacto ficcional, firmado entre todos os participantes do acontecimento teatral, se faz necessário e cremos naquela personagem da forma como se mostra. Se, por exemplo, no caso das drag queens, nos é tentador discutir quais as transformações de gênero ela pode estar trazendo em sua performance, muitas vezes para ela esta performance ocorre sem este tipo de preocupação. A criação de seu corpo e corporalidade segue aquilo que ela deseja construir como performance, podendo não estar tão claro possíveis movimentos de transgressão das normas e padrões sociais vigentes. Estes poderão ser colocados em xeque e percebidos deste modo por seu público, o que advém de sua implicação com questões de seu tempo social, não necessariamente um direcionamento de sua arte para que esta se efetue como questionadora, transgressora, subversiva, normativa, etc. Como afirmamos anteriormente sobre o camp,

Apesar de Susan Sontag dizer que uma sensibilidade camp seria “descompromissada e despolitizada – pelo menos apolítica” (1987, p.320), talvez esta seja política justamente por ser descompromissada. Tal tipo de sensibilidade parece não ser engajada em nada além dela mesma, ou melhor, não se permite ligar-se a algo que lhe exigiria abdicar da possibilidade de criação e recriação de si e do mundo. Sua estetização pela via do artifício se faz por seu compromisso de transformação e compartilhamento com outrem (LOPES E UZIEL, 2010, p.144).

O compromisso da arte é com ela mesma e o que pode ser percebido a partir de determinada manifestação artística são consequências do desenrolar de qualquer processo artístico. A ficção pode ser vista como um recurso artístico-político, mas que dialoga necessariamente com o real; é produto e produção de real na realidade. Ironicamente, a ficção não é fictícia, apenas não carrega consigo o peso e necessidade de coerência do real. Não é à toa que qualquer escritura artística é uma forma de exercício de criação, muitas vezes reduzida ao plano ou forma de registro de determinada manifestação, mas que não impõe limites ao que ali pode ser criado. O corpo das artistas da travestilidade, portanto, seguirão norteadores outros que não uma necessária e consciente ação de produção de corporalidades; o “travestir-se por travestir-se” se mostra muito mais forte do que qualquer outra implicação e talvez justamente por isso este pode ser tão potente. 124

A corporalidade drag queen é fabricada na forma de um processo de montaria. Montaria é o termo nativo que indica a personificação de uma drag queen ou outra artista deste tipo, o qual envolve a construção de suas roupas, maquiagem, peruca e qualquer outro acessório que transforme aquele sujeito em sua personagem drag. Angelo Vip e Fred Libi apontam este processo em dois verbetes de sua “dicionária” de gírias homossexuais: “Montação – S.f. Processo de vestir-se com roupas de mulher, geralmente com certo exagero” e “Montado – Adj. 1. Bem vestido; 2. Relativo ao cross-dressing ou à biba vestida de mulher” (2006, p.92). A montaria não se constitui como um simples vestir-se com roupas femininas, mas sim àquele “algo mais” criado em uma manifestação artístico-teatral que efetivamente dá origem a uma personagem; é a assunção de uma personagem de forma mais ou menos independente da vida do ator que a encarna.

A construção da montaria é a própria construção de uma drag queen e, como afirma Anna Vencato, esta montaria indicará em que tipo aquela drag se encaixa, principalmente entre os dois tipos mais conhecidos, “top drag” (mais exuberante seguindo padrões de beleza) ou “caricata” (mais escrachada e geralmente cômica). Esta autora afirma ainda que este processo de montaria ocorre entre as paredes de um camarim e apenas seu produto final pode ser tornado público:

É a montaria que as diferencia entre si, assim como performances narrativas e outras performances corporais. É a montaria, acrescida dos textos e das performances que diferencia um feminino-drag de outros femininos e um masculino-drag de outros masculinos. (...) É um corpo de homem, afinal, seminu, transformando-se em um feminino que, mesmo que lhe caia bem, não lhe foi dado o direito de uso. É apenas o produto final do que se processa no camarim que pode e precisa ser exposto. (VENCATO, 2000, p.40-41, grifos no original).

A personagem vai tomando corpo através de várias horas investidas em sua produção, as quais parecem ter seu ápice no processo de maquiagem que dará àquele rosto e corpo uma nova identidade e imagem de si. Novamente recorrendo a Anna Vencato, “parece que pintar o corpo ritualmente é uma prerrogativa de transformar-se de pessoa em persona. É o que algumas drags relatam ao afirmarem que é quando passam o batom ou terminam de fazer o olho que a drag ‘baixa’, ou seja, que se tornam efetivamente a personagem” (2000, p. 46, grifos meus). E é com esta persona que nos relacionaremos em nossas idas aos shows e espetáculos drag; é seu corpo fictício e cuidadosamente moldado ao seu bel prazer que é oferecido ao seu público, não 125

importando naquele momento “quem é” o sujeito que encarna aquela persona, por mais que diversos tipos de associações entre sujeitos e personagens não se mantenham veladas para boa parte da plateia que de forma prerrogativa conhecem tal sujeito e seu alter-ego drag:

Há diferentes graus de identificação entre pessoa e personagem no caso das drags que pesquiso. Dividiria esses graus de identificação em três grupos: 1) rapaz que se identifica muito com sua personagem drag, chegando a assumir em sua vida cotidiana a personagem; 2) rapaz diferente de sua personagem drag, mas que não se preocupa com o fato de por vezes identificar-se ou ser identificado com ela; 3) rapaz diferente de sua personagem drag, que evita (chegando mesmo a excluir a possibilidade de) qualquer identificação. A maior parte das drags pertenceria ao segundo grupo. É possível que a vinculação direta com a homossexualidade tenha algum peso na escolha por viver ou não a experiência drag. Mesmo que seja difícil não ser, estando-se desmontado, associado à personagem drag que se faz, ou reconhecido como “o cara que é/faz a drag tal”, há drags que preferem que essas duas esferas de suas vidas mantenham-se completamente dissociadas. Conforme explicitado na Apresentação, o fato de esses sujeitos serem usualmente confundidos com travestis e transexuais também pode ter alguma influência nessa escolha de não tornar o fato de montar-se de conhecimento público (VENCATO, 2002, p.40).

Estes corpos drag partilham e utilizam-se das mesmas premissas válidas para todos os outros corpos no contemporâneo, podendo situar-se em alguns casos na produção de um corpo travesti ou transexual. Porém, também se situam em um tipo de subcultura camp e no registro de uma afirmação de feminilidade que marca a experiência homossexual. O feminino drag é mais homossexual do que efetivamente um “feminino-mulher”, o que distancia este tipo de criação de travestis e transexuais. Talvez este feminino drag ou mesmo camp seja um vetor de afirmação daqueles diferentes graus de feminilidade e afetação que um corpo homossexual torna visível ou tenta esconder, dependendo de diversos outros fatores, construções pessoais e momentos.

É apropriando-se de normas e prerrogativas sociais que ditam o que cabe ao masculino e ao feminino e recriando-as de acordo com uma construção ficcionalizada de si que uma personagem drag queen será marcada pelo exagero. O exagero é frente aos modos de se ser feminino e se portar perante outrem. Não pretendo reforçar aqui qualquer estereótipo de uma drag histriônica, mas o exagero se faz presente em uma construção drag queen através de seus traços que se fazem livres para adquirirem o formato que ela bem desejar. Por mais paradoxal que seja esta ideia, mesmo em sua discrição, uma drag é marcada pelo exagero e este se faz ao menos enquanto potência passível de ser atualizada naquele corpo. Uma boca que pode aparecer em qualquer formato e cor, um olho pintado de um modo não convencional, um vestido que em qualquer outra 126

figura pareceria excessivo ou um salto geralmente alto que dota esta feminilidade de um status excepcional e destacado. Excepcionalidade de um feminino vivenciado enquanto arte e produto estético, criado para ser visto e, de preferência, aplaudido!

4.4. Inverno pra ela, É pleno verão

A corporalidade drag queen e a estetização camp por esta empreendida diria efetivamente de um cuidado de si, tomando emprestada a expressão de Michel Foucault (1985): uma estética da existência, “um esforço para afirmar a própria liberdade e dar a sua própria vida uma certa forma na qual podia se reconhecer e ser reconhecido por outros e onde a posteridade mesma poderia encontrar como exemplo” (FOUCAULT, 2007, p.289).

O camp tem esta predileção pelo artifício, tornando-se uma forma plástica de construção de si, uma arte da existência e do viver que tem no exagero e na teatralidade sua constituição, além de ter sua exteriorização como uma sensibilidade que alguém assume e desenvolve ou mesmo um modo de subjetivação, como certas formas de se ser bicha ou gay. É um estilo de vida e uma modalidade de estabelecimento de comunicação ou de uma comunidade. Também cabem para o camp e corpos travestidos as palavras que Frédéric Gros dedica ao cuidado de si:

Foucault não deixa de insistir sobre esse ponto: o cuidado de si não é uma atividade solitária, que cortaria do mundo aquele que se dedicasse a ele, mas constitui, ao contrário, uma modulação intensificada da relação social. Não se trata de renunciar ao mundo e aos outros, mas de modular de outro modo esta relação com os outros pelo cuidado de si (GROIS citado por RAGO, 2006, p.247).

Este conceito do cuidado de si juntamente com seu desdobramento como uma estética da existência, ambos de Michel Foucault, pode nos ajudar a pensar nesta corporalidade estética efetivada pelas drag queens e outras formas de travestilidade artísticas. Segundo Edgardo Castro, esta noção cunhada por Foucault seria um tipo de

127

(...) modo de sujeição, isto é, como uma das maneiras pelas quais o indivíduo se encontra vinculado a um conjunto de regras e de valores. Esse modo de sujeição está caracterizado pelo ideal de ter uma vida bela e deixar a memória de uma existência bela. Um indivíduo, então, aceita certas maneiras de comportar-se e determinados valores porque decide e quer realizar em sua vida a beleza que eles propõem. A vida, como bíos, é tida como o material de uma obra de arte. (CASTRO, 2009, p.150)

Paradoxalmente este modo de sujeição visa uma libertação. Tomando como referência a antiguidade clássica grega analisada por Foucault em seu cuidado de si (1985), pode-se afirmar que esta sujeição é uma estilização da forma como se deveria lidar com os prazeres objetivando não se tornar um escravo de si mesmo. O cuidado de si e a atenção às condutas pretendem a construção de uma existência bela porque pode ser experenciada segundo princípios de uma comunidade. Talvez possamos dizer de uma ética desta estética, já que apesar de se bastar em si mesma, esta não almeja o isolamento ou um banal culto a si e ao corpo. Somente na partilha e no encontro que podemos efetivamente conceber um cuidado de si.

Esboça-se aqui um elogio ao estilo e à elegância, os quais não nos parecem construções egoístas ou narcisistas, mas um modo de afirmação de si que por não apelar à razão ou à alma/interioridade, faz-se naquilo que é ou aparenta ser. A aparência não pressupõe um entendimento anterior ou posterior; caso haja necessidade de algum tipo de explicação ou reflexão, esta é feita de forma plástica no momento mesmo da exposição e do contato. Não há nada escondido ou a se esconder, o que é realmente importante é material básico do que se é, da forma como se apresenta, valendo aqui a máxima de Oscar Wilde de que “Somente as pessoas superficiais não julgam pelas aparências. O mistério do mundo está no visível, não no invisível” (WILDE citado por LOPES, 2002, p.89). Como também assinalamos anteriormente

A ênfase dada aqui é na possibilidade construcionista que se abre quando deslocamos o olhar para o visível. Como afirma Esther Newton, “Primeiramente, camp é estilo. A importância desloca-se do que uma coisa é para o que ela parece, de o que é feito para como isto é feito” (1979, p.107, grifos no original). Abandonar um “é” e um “o que” em favor de um “parecer” e um “como” é transitar em planos flexíveis e passíveis de criações e recriações. Se a coisa não é algo, ela pode ser tudo (LOPES e UZIEL, 2010, p.145, grifos no original).

Assim como o exagero presente na feminilidade drag queen pode existir como possibilidade de atualização, esta ênfase no corpo visível e visibilizado dota-o de uma 128

significação outra. Sua plasticidade é exaltada e sua suposta naturalidade é questionada e retrabalhada segundo outros valores, como beleza, glamour e um caráter de vanguarda, em um sentido relacionado à moda e à cultura pop. E este corpo “montado” deseja partilhar com outros e poderíamos dizer que necessita desta interação para ser percebido em sua materialidade artística e estética. Uma drag só se torna queen se possui seus súditos e outros admiradores.

Margareth Rago acredita que a Modernidade foi fundada em valores masculinos, focados no individualismo, narcisismo e competição (RAGO, 2006). Deste modo, a elegância e a estilística não seriam tão importantes quanto os referidos valores ou ainda não seriam desejáveis, já que poderiam apontar para uma feminização de si, a qual deve ser evitada e extirpada por aqueles que gozam de uma masculinidade plena e superior. Esta autora ainda afirma que este voltar-se para si narcisista ao contrário de trazer maiores compreensões de si e posicionamentos libertários, “leva a uma dissociação de si, já que se trata de um investimento para adequar-se a um modelo exterior, imposto pelo mercado e pela mídia. Nesse caso, o indivíduo assume e adere sem mediações à fantasia que projeta de si mesmo” (RAGO, 2006, p.238).

Contrapondo-se a este modelo narcisista e totalitário, Foucault irá dizer de uma estética da existência, que tem seu modelo na Antiguidade Clássica, nos cuidados de si dos gregos que visavam uma liberdade e o efetivo partilhamento das subjetividades entre si e estabelecimento de uma comunidade. O cuidado de si só pode ser concebido como também cuidado com o outro, além de ser um modo de subjetivação que busca neste voltar-se para si o cuidado com o desejo, o prazer e melhores formas de se viver:

E a experiência de si que se forma nessa posse [de si] não é simplesmente a de uma força dominada, ou de uma soberania exercida sobre uma força prestes a se revoltar; é a de um prazer que se tem consigo mesmo. Alguém que conseguiu, finalmente, ter acesso a si próprio é, para si, um objeto de prazer. Não somente contenta-se com o que se é e aceita-se limitar-se a isso, como também apraz-se consigo mesmo (FOUCAULT, 1985, p.70-71, grifos no original).

O cuidado de si objetivava uma moral não concebida como regras condenatórias como no Cristianismo, mas como artes do viver e um viver com, em comunidade. Margareth Rago ainda afirma que esta estética da existência se faz urgente na contemporaneidade, pois cabe a nós buscarmos uma nova ética, “novas referências para a construção dos códigos norteadores da ação 129

–, enquanto os códigos modernos de sociabilidade desmoronam por falta de fundamentos éticos e a noção de identidade é criticada como forma fascista de construção e afirmação de personalidades autoritárias e egocêntricas” (RAGO, 2006, p.7-8).

4.5. Só faz o que manda, O seu coração

Outro espaço de exercício e visibilidade para corpos marcados pela travestilidade é o carnaval. Para muitos e muitas, a Festa do Momo é um pretexto para brincadeiras e transformações de gênero, mesmo que estas sejam restritas àqueles dias e não tenham nenhuma intencionalidade nesta transição. No carnaval, travestir-se pode ser a oportunidade para transformações de si, como pode ser uma simples brincadeira e a vestimenta do outro gênero não ser nada além de mais uma fantasia. Porém, é marcante o fato de que a grande maioria das travestilidades carnavalescas é de seres inicialmente masculinos para figuras femininas, o que parece indicar um importante componente de gênero nesta travestilidade.

James Green (2000) aponta alguns locais e épocas nos quais o período do carnaval permitiu uma espetacularização da travestilidade, não sem polêmicas e resistências. A mesma Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, que em 1886 abrigou a já mencionada Revista de Ano “A mulher- homem!”, passou a acolher, a partir dos anos 1940, um número cada vez maior de bailes de carnaval frequentados por homossexuais e nos quais muitos iam “de travesti”, ou seja, travestidos com roupas identificadas como femininas. Cabe ressaltar aqui que nesta época ainda não existia a figura da travesti como a categoria identitária que conhecemos hoje e homens que se identificavam com o sexo feminino exercitavam suas travestilidades em espaços restritos, como em festas particulares e em tais bailes carnavalescos.

Green chama a atenção para a análise de fotos tiradas na década de 1950 em tais bailes: a grande maioria do público não recorria a nenhum tipo de fantasia ou fantasiavam-se de figuras masculinas, como marinheiros, piratas ou soldados romanos (2000, p. 345). Porém, a mídia focava nos homens que debochadamente se vestiam de mulheres ou aqueles que se produziam femininamente e participavam dos concursos de fantasias. Este mesmo autor menciona uma foto 130

de 1953 na qual um homem vestido com um biquíni e fantasia de baiana dançava sobre “um pequeno palco improvisado sobre a carroceria de uma picape. A legenda diz ‘Este concebeu seu tipo sob a influência da praia e do teatro de revista. É o travesti bem acomodado à época, e que não dispensa nem um palco ambulante’” (GREEN, 2000, p.347, grifos no original). A travestilidade aparece associada aqui à sua espetacularização.

Ao mesmo tempo em que ganhava visibilidade, a presença de homossexuais nestes bailes e as travestilidades ali encontradas sofreram repressões. Conforme também postula James Green (2000), não nos é possível afirmar ao certo se esta hostilidade era praticada por alguns cidadãos claramente contra a manifestação de algum tipo de homossexualidade e travestilidade, os quais partiam para a agressão física na porta de entrada dos bailes de carnaval mais frequentados por homossexuais, ou se era a opinião e reação da maioria da população. Do mesmo modo, não se sabe também se este tipo de violência era recorrente ou transformada em sensacionalismo pelas revistas da época, como a Manchete que em edição de nove de março de 1957 publicou o seguinte relato:

Desde que a lei o permitiu, a decência foi posta de lado, realizando-se o escandaloso e vergonhoso baile de segunda-feira no Teatro João Caetano, verdadeiro desfile de aberrações, ajuntamento de anormalidades e aleijões morais que devia fazer corar as autoridades. Para que o leitor possa ter uma ideia do que aconteceu na festa das chamadas “meninas do Paraíso”, deve saber que nem foi permitida a entrada de fotógrafos, a fim de que a vergonheira não ficasse graficamente documentada (GUTEMBERG citado por GREEN, 2000, p.354-355).

O ano de 1957 parece ter sido mesmo marcado por tumultos no carnaval gay da Praça Tiradentes e “no ano seguinte a governo proibiu o concurso de fantasias e pôs a polícia na porta dos eventos, supostamente para evitar a repetição da cena das multidões vaiando e jogando pedras” (GREEN, 2000, p.356-357). Durante a ditadura militar, como no ano de 1971, sob a égide do Ato Institucional nº 5 – AI-5, muitas travestis e travestidos foram proibidos de participar de bailes carnavalescos, sendo barrados pelos organizadores na porta de entrada. Mas os bailes resistiram e um deles se destacaria: o “Baile dos Enxutos”. Existente desde 1949, data em que teve sua primeira edição no Theatro Recreio, este baile precedia os dias do Carnaval Oficial e talvez tenha sido o espaço mais tradicional para o exercício de travestilidades no período carnavalesco, principalmente na década de 1960, quando já era bastante conhecido. A partir dos 131

anos 1970, passou a ganhar grande cobertura da imprensa, como das revistas O Cruzeiro e Manchete, esta a mesma que em momentos anteriores se posicionou contra a folia travestida. Censura e proibições pareciam conviver contraditoriamente com uma permissividade, curiosidade e tolerância a tais bailes.

A maior parte dos Bailes dos Enxutos ocorreu no extinto Cine São José, local que além de abrigar, antecipou o fim deste baile na Praça Tiradentes no ano de 1982 devido à demolição de seu prédio. Em 1981, a Revista “Fatos e Fotos/Gente” resgatou o histórico do Baile dos Enxutos:

No início, era o caos. Enrustir era necessário. De preferência em longos bem-comportados e sem exageros sensuais. Tudo na mais perfeita Lady. Naquele início dos anos 60 vivia-se um período de transição, tipo água-mole-em-pedra-dura, prenúncio da liberação. No início do século, nos bailes de máscaras, que faziam as delícias do carnaval, muita gente escondeu água dentro da bacia. No bloco de sujos, com a desculpa de que era só brincadeirinha, muitos se prepararam para adentrar gloriosos no I Baile dos Enxutos, que Álvaro Marzullo e Walter Pinto criaram em 1950, aproveitando o sucesso de um concurso de fantasias que Raul Roulien e Dercy Gonçalves bolaram para os travestis dois anos antes. Foi como o estopim de uma bomba de alta potência. Todo mundo quis conferir. (FATOS E FOTOS/GENTE citado por CORREA, 2009, p. 75).

Após sua saída da Praça Tiradentes, o Baile dos Enxutos passou a ser realizado na Zona Sul carioca. Em 1983 ocorreu no Olímpico Clube, em Copacabana, não sendo aprovado pelos antigos frequentadores. Após passar por alguns outros locais, como o Asa Branca em 1985, o Baile dos Enxutos acabou por extinguir-se, cedendo espaço para outras festas que surgiam, como o Grande Gala Gay. Desde sua estreia em 1981, na recém-extinta casa de shows Canecão, no bairro de Botafogo, este baile mantém-se como o mais glamouroso e tradicional evento carnavalesco de brilhos e travestilidades da cidade do Rio de Janeiro, sendo ainda realizado na casa de espetáculos Scala, no Leblon.

O grande cartão-postal do carnaval carioca certamente é aquele formado pelos “Desfiles das Escolas de Samba do Grupo Especial”, na Marquês de Sapucaí. Estes são televisionados e divulgados como “o maior espetáculo da Terra”. Suntuosa e verdadeira paixão carioca, esta competição entre diversas Escolas de Samba constrói a cada ano enredos que contam as mais diversas histórias e reúne uma diversidade de pessoas tanto no palco deste desfile como em sua plateia. Plumas, brilho, efeitos especiais e visuais, corpos à mostra... enfim, diversos elementos que compõem este clima competitivo e festivo facilmente atraem diferentes travestilidades e 132

mesmo um cativo público gay. Porém, parece que atualmente o carnaval carioca e as possibilidades que esta festa cria só ocorre efetivamente em sua manifestação na rua, em blocos e bandas espalhados pela cidade do Rio de Janeiro.

Segundo Fabiano Gontijo, atualmente os termos “banda” e “bloco” são utilizados sem uma preocupação conceitual de se diferenciar um de outro; ambos parecem se referir a coletivos “organizados de maneira informal em torno de uma bateria – a banda, composta por instrumentos de percussão e de sopro, tocando samba e marcha – desfilando pelas ruas de certos bairros e incorporando o máximo de pessoas em sua passagem” (GONTIJO, 2009, p.51, grifos no original). Este mesmo autor afirma que aqueles que desejam tal diferenciação entre “banda” e “bloco” o fazem com base em discriminações sociais, sendo “banda” reservada aos grupos que desfilam na zona sul e reúnem a classe média e intelectual carioca e “bloco” àqueles grupos formados por negros e mestiços provenientes das camadas baixas e que fazem seu carnaval nas ruas da zona norte da cidade.

A Riotur, “empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro S.A. – sociedade de economia mista, (...) órgão executivo da Secretaria Especial de Turismo e [que] tem por objeto a implementação da política de turismo do Município do Rio de Janeiro” (RIOTUR, 2011), informou em seu site que para o carnaval do ano de 2010, 461 blocos carnavalescos foram autorizados para desfilar na cidade do Rio de Janeiro. Estes foram divididos da seguinte forma: “39 na Zona Oeste, 54 na Barra, 55 na Tijuca, 83 na Zona Norte, 96 no Centro e 172 na Zona Sul, totalizando 499 desfiles, pois alguns blocos saem mais de uma vez” (RIOTUR, 2011). A Riotur ainda informou que se comparado ao ano anterior, este número de blocos parece muito superior ao desfilado em 2009; a maioria já existia e promovia suas festas pelas ruas da cidade, porém não eram cadastrados na Riotur, que regula e autoriza suas datas, horários, itinerários e estrutura oferecida pela Prefeitura, como banheiros químicos, segurança, etc.

Os blocos e bandas que desfilam pela cidade atraem todo tipo de público. Há aqueles para quem quer sair fantasiado, para quem quer apenas sambar, para dançar ao som de músicas regionais como o Maracatu, de marchinhas, entre muitos outros. A irreverência também marca os nomes de vários blocos, como o “Suvaco de Cristo”, “Galinha do Meio-dia”, “Vá tomar no Grajaú”, “Katuca que ela pula”, “Largo do Machado, mas não largo do copo” e diversos outros que brincam com duplos ou muitos sentidos das expressões, muitas vezes provocados por piadas 133

de cunho erótico ou relacionadas ao abuso de bebidas alcoólicas. Um bloco que acompanhei em suas três saídas durante o carnaval carioca de 2010 foi a Banda de Ipanema: no último sábado (30) de janeiro, em um aquecimento para o carnaval; novamente no sábado (13), porém agora dentro dos festejos carnavalescos e na terça-feira gorda, dia 16.

A “Banda de Ipanema” desfila pela orla deste mesmo bairro e foi criada no ano de 1965 por um grupo de artistas, intelectuais, profissionais de todos os tipos como da imprensa, advogados, arquitetos, entre outras profissões daqueles que moravam ou eram frequentadores assíduos das redondezas da Praça General Osório, em Ipanema (GONTIJO, 2009, p.59). Talvez pela notoriedade deste bairro reunir e acolher uma considerável parcela de gays de camadas médias – cujo exemplo máximo é a tão divulgada rua Farme de Amoedo, uma espécie de território “conquistado” e pela qual casais gays circulam livremente –, a presença deste público na “Banda de Ipanema” é bastante grande. Drag queens e outras travestilidades também participam da banda, como diversos grupos de amigos e suas fantasias que brincam com feminilidades.

Nestas três saídas deste bloco em 2010, diversas drag queens se fizeram presentes, geralmente as mesmas e em menor número do que observado em anos anteriores, segundo relato de alguns frequentadores. Elas marcaram presença na Banda quase como uma comissão de frente: iam à frente do carro que abria caminho para a banda musical e o bloco passar, fazendo pose, brincadeiras e tirando inúmeras fotos com foliões que a elas se dirigiam com este fim.

Como afirma James Green, nas últimas décadas as drag queens veem alcançando maior destaque durante os quatro dias do carnaval (GREEN, 2000, p.41), os quais acabam sendo estendidos ao máximo na cidade do Rio de Janeiro. Como vimos na “Banda de Ipanema” e como também coloca Fabiano Gontijo acerca da extinta “Banda Carmen Miranda” (2009), as drags presentes nestes blocos realmente gozam de status de rainhas, tendo sua figura admirada, exaltada e acessada mesmo quando em menor número. Parece não haver como não percebê-las e elevá-las ao posto de símbolos de um tipo gay de carnaval. Mas nos diversos blocos de rua e manifestações carnavalescas, outras formas de travestilidade se fazem presentes, como as tradicionais caricatas, homens que se travestem femininamente de forma a apropriarem-se de algum modo deste gênero. São homossexuais ou não e apresentam múltiplas variações do que consideram feminino, desde caricaturizações escrachadas a produções impecáveis. Nas palavras de Green, 134

Embora alguns homens possam tentar realizar imitações perfeitas de mulheres bonitas e glamourosas, outra forma de travestismo durante o carnaval contém um elemento de paródia lúdica, destinada menos a simular do que a mimetizar e exagerar a feminilidade. As representações mais comuns incluem homens vestidos de noiva grávida ou as femme fatales com peitos e bundas enormes. Mediante a imitação bizarra de mulheres, esses foliões do sexo masculino dão um certo ar camp à sua personificação do feminino. David Bergman sugeriu características comuns do camp que parecem se aplicar às atitudes desses brasileiros durante o carnaval: a estilização extrema, artificial e exagerada; as relações tensas com a cultura de consumo, comercial ou popular; o posicionamento alheio à cultura dominante; e a afiliação à cultura homossexual ou ao erotismo consciente que questiona a visão natural do desejo. (GREEN, 2000, p.336, grifos no original).

Parece haver uma maior permissividade de borramentos das fronteiras de gênero nestas travestilidades, apesar de que a tese de que tais caricaturizações denegririam as mulheres também poder se mostrar válida. Um estudo que discorre sobre figuras carnavalescas e carnavalizadas é o de Mikhail Bakhtin (1999) sobre a carnavalização na obra de Rabelais, abarcando práticas e concepções da Idade Média e do Renascimento europeu. Bakhtin trata do “exagero, o hiperbolismo, a profusão, o excesso” (1999, p.265) que caracterizariam um estilo grotesco e que se faz muito presente nas festividades populares carnavalescas, destacadamente nas imagens do corpo. Talvez possamos dizer de uma carnavalização de si, a qual o período do carnaval permite e incentiva, como as diversas travestilidades carnavalescas que nesta breve época do ano é exaltada e admirada.

Nas saídas da “Banda de Ipanema” no ano de 2010 várias drags e outras travestilidades fizeram a festa junto aos animados foliões: uma bela e luxuosa Carmem Miranda de meia-idade; duas jovens drags que se vestiam como algum tipo de guerreira/heroína e marcaram presença nos três dias; uma Mulher Gato e sua companheira, que possuía uma réplica do MAC de Niterói em seu adorno de cabeça (o homenageado da Banda naquele ano foi Oscar Niemeyer); a Rainha do Silicone, com excessivas nádegas e seios e um enorme guarda-sol nos tons do arco-íris; três amigas cada qual com fantasias em tons de rosa, laranja ou verde; uma que com um top, saia longa dourada e uma cabeleira enorme parecia imitar Maria Bethânia ou Gal Costa, entre várias outras. Todas elas circulavam por entre o público, fosse durante sua concentração ou em sua dispersão e momentos finais, já que no desfile propriamente dito boa parte delas saíram em sua parte inicial, à frente dos carros da Prefeitura que viabilizavam a passagem da banda.

A Mulher Gato chegou inclusive a brincar com uma caminhonete que trazia a placa do “Choque de Ordens” da Prefeitura, sendo fotografada por inúmeras pessoas e vários profissionais 135

do jornalismo. A Operação “Choque de Ordens” tem levado a “ordem” pela cidade do Rio de Janeiro, multando e rebocando carros, ambulantes ou qualquer indivíduo que se encontre fora das normas da Prefeitura para aquele local e momento. Quem faz xixi na rua também pode ser multado, independente se o número de banheiros químicos disponibilizados é infinitamente menor do que se necessitaria em eventos de massa como os blocos de carnaval.

Impressionava a quantidade de pessoas que queriam tirar fotos com as drag queens e outras travestilidades, principalmente no primeiro dia de desfile. Os flashes não paravam e as drags tiraram fotos até o fim do desfile e fato curioso foi que se afastaram um pouco da multidão e da Banda e acabaram sendo a grande atração do início do bloco. Pareciam uma espécie de comissão de frente da Banda, mas de uma forma um tanto quanto independente. O público que solicitava suas fotos era em sua maioria hetero e de diferentes idades. Eram famílias, crianças, grupos de amigos e amigas, etc.

Algumas caricatas também se encontravam próximas ao carro da banda. Digo caricatas para nomear diversas pessoas que se travestiam, mas sem maiores preocupações em se parecer com drag queens ou femininas. Este foi um fato notado durante todo o desfile da banda: havia vários homens como caricatas, em sua maioria do tipo “sarados” e possivelmente frequentadores habituais do bairro de Ipanema, como também havia vários grupos de amigos travestidos com alguma temática feminina. Por exemplo, estava presente um grupo com camisetinhas, sainhas e sombrinhas rosas, todos com perucas e vestidos como a personagem Penélope Charmosa, mas não sem deixar os contornos de seus musculosos masculinos corpos à mostra. Outro grupo se posicionou junto às drag queens que iam na frente abrindo o desfile e estavam personificados como (talvez) Elza Soares: peruca Black Power, uma máscara que fazia um biquinho, óculos escuros, vestidinho imitando o calçadão de Copacabana, leques neste mesmo tema, meia arrastão e saltos altos. Também se faziam presentes grupos de aeromoças, líderes de torcida, entre diversos outros. Estes homens tiveram um cuidado muito grande com suas roupas e personificação, mas pareciam fazer questão de mostrar que eram “homens” ao deixarem seus pelos à mostra, fossem os do peito, braços, pernas ou mesmo barba, em alguns casos. A maioria destes homens parecia ser gay, porém de um tipo mais másculo do qualquer um afeminado que se traveste femininamente ou utiliza-se de elementos do feminino em seu cotidiano. 136

O espaço do carnaval e em especial este da Banda de Ipanema, no Rio de Janeiro, tornou-se grande momento de exercício de travestilidades e montarias, sejam aquelas abertamente gays ou trans que desejam o carnaval para se afirmarem, ou aquelas outras que querem brincar e a travestilidade constitui-se como lúdica fantasia. Outro bloco do carnaval carioca que atrai grande número de travestilidades e muitas profissionais drag queens, caricatas e transformistas é a Banda das Quengas, que desfila nas proximidades do “Bar das Quengas”, situado na Lapa Carioca. Elegendo no ano 2010 Magaly Penélope como “Rainha das Quengas” e Luana Muniz como a “Madrinha da Banda das Quengas”, esta manifestação é uma grande afirmação de travestilidades, mas diferente da Banda de Ipanema. Apesar de atrair considerável número de foliões, o bloco é menor e muitos dos presentes parecem se conhecer. Diversas gerações ali se encontram, musas de carnavais passados, montadas e desmontadas. É considerável o número de senhores gays e senhoras travestidas que participam da “Banda das Quengas”, bem como de jovens grupos de amigos e amigas. Ali todos e todas parecem partilhar algum tipo de proximidade ou mesmo intimidade, sejam desconhecidos foliões em mais um espaço LGBT do carnaval carioca ou companheiras de trabalho nas noites em que as travestilidades se montam para o palco ou para a pista. Em um clima de muito brilho, cores, animação e descontração, brinca-se o carnaval das “quengas”. É um grande encontro de amigos e convidados, em uma exaltação das travestilidades e alegrias, em uma bonita e verdadeira festa da diversidade. 137

Beauty's where you find it Not just where you bump and grind it Soul is in the musical That's where I feel so Beautiful Magical Life's a ball So get up on the dance floor

(Vogue –Madonna)

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Passeios pela noite drag ou a drag na noite: “Cineclube LGBT”, “Quiosque Rainbow” e “Sal y Pimenta” 138

O projeto Cineclube LGBT, realizado desde 2008, praticamente lota o Cine Odeon, na Cinelândia, nas últimas sextas-feiras de cada mês. Com programação diferente a cada edição, o Cineclube é um espaço de visibilização de filmes de temática LGBT. O público que assiste a curtas, médias e longas-metragens, documentais ou ficcionais, em animação ou diversas outras linguagens cinematográficas, recentes ou realizados há anos ou mesmo décadas, é prioritariamente gay; apesar de ser LGBT em seu nome, poucas são as mulheres lésbicas (ou mesmo heterossexuais) e mais raras ainda são as travestis e transexuais que frequentam este espaço. A plateia majoritariamente jovem e masculina, mesmo em suas nuances de feminilidade, transforma o Cine Odeon em uma grande festa: risadas e brincadeiras são ouvidas constantemente e os filmes vistos na tela grande são pontuados por afetuosas manifestações ao longo da projeção, tornando aquelas quase 600 pessoas um grupo que de alguma forma partilha sentimentos muito próximos naquele momento.

As projeções começam por volta de 21h ou 22h e após a exibição das obras daquela noite, um DJ comanda o som e é hora de dançar, interagir, paquerar e se divertir ainda mais. O dia 22 de outubro era aguardado com um pouco mais de ansiedade pelos frequentadores do Cineclube LGBT, pois teríamos uma maratona com a exibição do documentário “Rainhas” (2008), de Fernanda Tornaghi e Ricardo Bruno, “Eu matei minha mãe” (2009) de Xavier Dolan e um show da escrachada drag queen Suzy Brasil. Por diversas ocasiões o público já demonstrou seu apreço por tal figura, seja se entregando aos seus shows ali e em outros espaços, como através das gargalhadas efusivamente ouvidas nas vezes em que o curta fictício-documental “Suzy Brasil – A Deusa da Penha Circular” (2008), de Renata Than, foi exibido em tais sextas do Cine Odeon.

Ao que tudo indicava, o show de Suzy Brasil seria antes da exibição dos filmes, mas a organização foi ao palco informar que Suzy estava presa no trânsito e que exibiriam o documentário da noite enquanto aguardavam sua chegada. O filme “Rainhas” é um interessante documentário sobre o concurso Miss Brasil Gay. Os jovens diretores, que estavam presente no Cine Odeon para o lançamento deste filme, acompanharam os bastidores e premiação do Miss Gay Rio de Janeiro no ano de 2004. Seus personagens e histórias vieram à tona, como o regulamento e lógica que rege o concurso. Ao contrário do que muitos podem pensar, como eu também supunha, o Miss Gay é gay e não travesti; as feminilidades ali construídas são moldadas através de maquiagens, perucas, roupas, depilações e espumas que darão o contorno desejado aos 139

corpos, já que é vetado aos candidatos modificações corporais “definitivas” em razão de um feminino, como próteses de silicone e cirurgias de transgenitalização. Acompanhamos na tela a transformação daqueles diversos masculinos em lindas e esculturais misses, que se exibem nos moldes dos tradicionais concursos que lotavam o Maracanãzinho nas décadas de 1960 e 1970 e que hoje ainda gozam de certo prestígio, mas sem o brilho e esplendor daquele momento de glória na vida daquelas mulheres. Cada miss gay representa um estado, mas há uma circulação entre aquelas que representarão determinado estado naquele ano; um candidato que representou o Rio de Janeiro neste ano poderá concorrer por Santa Catarina no ano seguinte e assim sucessivamente.

A câmera que registrou os bastidores deste concurso acompanhou a trajetória de Fábio, um jovem da cidade de Porto Velho, no estado de Rondônia, que venceu o Miss Gay Rio de Janeiro no ano de 2004, sendo automaticamente classificada para disputar a final nacional que naquele ano ocorreu excepcionalmente na cidade do Rio de Janeiro; a cidade mineira de Juiz de Fora é o território e sede “oficial” do concurso nacional. Fábio fala de si, de seu trabalho, de seu duradouro relacionamento com seu companheiro e grande apoiador, da profissão de cabeleireiro, mostra a casa simples em que os dois moram e com orgulho revela todos seus esforços – materiais, financeiros, corporais, etc – para a conquista do tão sonhado título de Miss Brasil Gay. Juntamente com as outras candidatas, após estes momentos em sua terra natal, vemos Fábio na disputa do título nacional juntamente com outros muitos rapazes que perseguem e constroem ali um ideal de vida, beleza, feminilidade ou qualquer outro que este seja. Fábio, ou melhor, Michelle Ronda fica em terceiro lugar, perdendo o título para a Miss Pernambuco, Renata Finsk, a grande vencedora da noite. Mas no Cine Odeon o filme e suas misses foram aplaudidos com o costumeiro entusiasmo.

E Suzy Brasil? Não conseguiu chegar ao Odeon, quiçá pelo trânsito ou pelos muitos compromissos que uma estrela drag queen tem nas noites de sexta-feira. Após um intervalo, o segundo filme da noite foi exibido. “Eu matei minha mãe” mostra uma história de um intenso relacionamento entre mãe e filho, discutindo questões comuns e problemáticas das relações familiares de jovens homossexuais. Ao fim desta exibição, a maior parte do público ali permaneceu e a música logo tomou conta de todo o ambiente. Jovens gays circulavam por todo lado e um pequeno cercadinho na porta de entrada dava ainda mais visibilidade para aqueles e 140

aquelas que ainda teriam uma longa noite e, se não curtiram as piadas de Suzy Brasil, aproveitaram dois interessantes filmes, incluindo as rainhas que desfilaram pela tela. Mas os possíveis encontros que ainda poderiam acontecer dava outro clima para a noite.

5.1. If you go hard you gotta get on the floor

Uma pergunta que sempre ronda este trabalho é: qual o sentido de se estudar drag queens? Qual o lugar desta temática dentro dos estudos da sexualidade e gênero? E da psicologia? E mesmo dentro do campo artístico? Parece-me que em qualquer destes três campos as drag queens não têm um lugar muito definido e talvez esta falta de lugar seja o que torne potente transformá-las em temática de pesquisa. Acredito na potencialidade das drag queens e acho extremamente precisa e instigante uma ideia que Anna Vencato nos lançou ao final de seu trabalho sobre drags: “se me perguntassem hoje afinal de contas o que é uma drag queen? Teria como resposta vários relatos de pesquisa de campo que não conseguiriam responder a essa indagação. Drags não são, quando muito estão” (VENCATO, 2002, p.116, grifos no original). E este “estar” é seu modo de “ser”, é neste processo impreciso que elas se fazem e se refazem constantemente.

Vencato sugere falarmos de um devir drag, o qual guarda seu mistério na “própria inquietude/curiosidade criada a partir do ocultamento do espaço de transformação (tendo aqui como pressuposto que há vários territórios aqui sendo ocultados concomitantemente: o temporal, o espacial e o corporal)” (VENCATO, 2002, p.36). Ao entrarmos em contato com uma drag, nos deparamos com um corpo fabricado, cuja produção não temos acesso. Talvez por isso sua materialidade só possa ser afirmada através do potencial transformativo que tais figuras apresentam ao seu público: o que é exteriorizado é um corpo oferecido como espetáculo via uma interação artística estabelecida dentro de diversos limites e graus de intercâmbio entre artistas e plateias.

Esta interação das drags com seu público será sempre renovada no momento mesmo do contato e a surpresa do que e de que forma virá, além do que decorrerá a partir daí, faz com que 141

dificilmente ela seja abarcável de forma completa. Elas sempre estão em movimento e escapulindo de maiores classificações, não exatamente na forma como se pensam e se constroem e sim, principalmente, pelo tipo de interação que estabelecem com sua plateia. Retomando os dizeres de Rancière (2010), a relação público-plateia implica uma mútua participação ativa, de modo que espectadores comporão “seu próprio poema com os elementos do poema que tem diante de si. Participam na performance refazendo-a à sua maneira (...) assim como o fazem à sua maneira atores ou dramaturgos, diretores de teatro, bailarinos ou performers” 58 (RANCIÈRE, 2010, p.19).

O devir drag diria exatamente desta abertura à possibilidade, de uma zona de indefinição passível de atualização a todo e qualquer momento. Dialogando com formas e categorias, o devir é da ordem das relações, do “agenciamento de pessoas, de funções, de relações econômicas e sociais, voltado para uma política global de libertação” (GUATTARI, 1987, p.66, grifos no original). Talvez possamos dizer que este se situa no “entre”, naquele espaço onde as coisas se conectam. Por exemplo, o espaço relacional entre uma drag e seu público: só ali ela se fará efetivamente como uma drag queen; a drag não existirá desta forma se não houver um público – ainda que este seja composto por uma única pessoa – juntamente com o qual construirá sua intervenção. Será que alguma drag se monta e não agencia?

Guattari nos diz que todo devir é um devir mulher, pois este só pode ser minoritário e nunca coincidente à ordem ou poder fálico. Porém isto não significa que este devir mulher seja uma resposta ao poder fálico – ou heteronormativo, se quisermos utilizar a nomenclatura de Judith Butler (2008) e outras autoras feministas –; ele é afirmação da diferença e de desejos e afetos que sempre pedem passagem, pedem corpo, forma e reatualizações. Segundo as palavras deste autor, “de modo mais geral, toda organização dissidente da libido deve assim compartilhar de um devir corpo feminino, como linha de fuga do socius repressivo, como acesso possível a um mínimo de devir sexuado, e como última tábua de salvação frente à ordem estabelecida” (GUATTARI, 1987, p.36, grifos no original). O devir mulher é aquele que se desloca na busca e efetivação do desejo.

58 Tradução livre, no original: “Compone su propio poema con los elementos del poema que tiene delante. Participa en la performance rehaciéndola a su manera, (...) tal y como lo hacen a su manera actores o dramaturgos, directores de teatro, bailarines o performistas” (RANCIÈRE, 2010, p.19). 142

Interessante pensar ainda que um devir drag se relaciona diretamente com transformações corporais, teatralizações, estetizações. Há um corpo que está continuamente em modificação: há uma persona que mantém um nome, características mais ou menos fixas como determinado estilo de se vestir, falar e fazer seus shows, porém outros elementos são sempre sobrepostos àqueles, tornando sempre original aquilo que iremos ver – mesmo os números clássicos daquela drag e que ela sempre reapresenta se torna inédito na atualização de seu devir. E este é o ponto: há uma atualização que parece inevitável e talvez drag diga muito mais do movimento de se travestir e “agenciar com” do que do estabelecimento de uma forma última. Talvez também advenha daí a dificuldade de se nomear alguma pessoa como drag queen, ou melhor, apenas como uma drag queen. Esta nomeação é fluída e negociável; interesses e relações de poder (no sentido foucaultiano de produção do poder) perpassam toda sua construção.

Na tentativa de dar ênfase ao processo de travestir-se que tenho me exercitado a falar em artistas da travestilidade como uma categoria que abarque em sua positividade toda a heterogeneidade de formas de travestilidade produzidas com fins artísticos: drag queens, travestis, atores transformistas, female impersonators, performers, entre outras. Artistas da travestilidade não é um nome reconhecido por aqueles e aquelas que este pretende abarcar. Conforme afirmado anteriormente, é mais um cuidado teórico do que uma proposta cotidiana de nomeação. Cada qual se nomeia como melhor entender, muitas vezes dependendo do momento e do tipo de intervenção que fará. Além de tentar escapar de uma patologização do termo travestismo, penso que travestilidade mantém ainda a noção de um processo de transformação fundamentalmente inacabado e de uma afirmação positiva do ato de travestir-se; positiva porque a travestilidade é produção e não falta, desvio ou patologia. É uma política de afirmação de si, “uma prática micropolítica que só tomará sentido em relação a um gigantesco rizoma de revoluções moleculares, proliferando a partir de uma multidão de devires mutantes (...) tantas maneiras de inventar, de maquinar novas sensibilidades, novas inteligências da existência, uma nova doçura” (GUATTARI, 1987, p.139, grifos no original).

Há algo potente e que sempre escapará à norma na constituição de nossos corpos. Nossos corpos estarão sempre sendo atualizados nestas normas que os fixam ao mesmo tempo que os constituem virtualmente abertos para as possíveis e potenciais transformações. Talvez esta seja a inscrição do desejo, a afirmação de uma potência de vida que faça com que “os corpos, 143

todos os corpos, consigam livrar-se das representações e dos constrangimentos do corpo social, bem como das posturas, atitudes e comportamentos estereotipados” (GUATTARI, 1987, p. 43, grifos no original). Penso que o que podemos afirmar sobre uma drag queen e outras formas de travestilidade é da ordem deste devir, pois se fixarmos em uma forma última com a qual temos contato – aquela drag específica ali montada – corremos sérios riscos de categorizá-la e reduzi-la em sua potência de vida ao limitarmos seu contorno e potencialidades. Qualquer ser é passível de categorização e vivemos em categorias; o foco ser no processo e não no produto nos leva para os fossos de devires e não para a definição do que aquela figura é, uma suposta verdade última sobre tal ser.

Faz-se necessário ainda o cuidado para não cairmos na sedução de estabelecermos figuras que apontam para as transformações de gênero como os grandes protótipos ou uma evolução das formas como nossos gêneros serão construídos. As drags “estão” e nunca poderão “ser”: não precisamos elegê-las como aquelas que naturalmente trazem em si a marca das possíveis e exercitadas transformações de nossos modos de ser. E a linha entre dizer que elas apontam para a potencialidade de tais transformações, mas nem por isso são a transformação em si é muito tênue. Novamente, pensemos no processo de transformação e não para seu possível fim.

Talvez tenha sido uma radicalidade neste cuidado que levou Judith Butler ir de uma espécie de elogio às drag queens ao final de seu livro “Problemas de gênero – Feminismo e subversão da identidade” (original de 1990) a um maior cuidado crítico a performances deste tipo no capítulo Gender is burning: questions of appropriation and subversion de seu Bodies that matter – On the Discursive Limits of “Sex” 59 (1993), afirmando que nem toda performance drag seria subversiva, ao contrário, muitas vezes estaria reafirmando a norma que almejariam/deveriam subverter (BESSA, 2007).

No referido livro “Problemas de gênero – Feminismo e subversão da identidade”, Butler sugere que ao se constituir como uma paródia, a drag rejeitaria a noção de originalidade de sua imitação e colocaria em xeque a não naturalidade de nossas identificações generificadas. A

59 Mantive aqui o título original em inglês, mas utilizei-me da edição traduzida para o espanhol, de 2008, cujo capítulo citado e livro no qual consta publicado respectivamente foram traduzidos como El género en llamas: cuestiones de apropriación y subversión e Cuerpos que importan – Sobre los límites materiales y discursivos del”sexo” (2008). 144

performance drag estaria apontando para a própria performatividade do gênero, mas de uma forma artística e através da brincadeira. Esta autora afirma que

(...) a paródia do gênero revela que a identidade original sobre a qual molda-se o gênero é uma imitação sem origem. Para ser mais precisa, trata-se de uma produção que, com efeito – isto é, em seu efeito – , coloca-se como imitação. Esse deslocamento perpétuo constitui uma fluidez de identidades que sugere uma abertura à re-significação e à recontextualização; a proliferação parodística priva a cultura hegemônica e seus críticos da reinvindicação de identidades de gênero naturalizadas ou essencializadas. Embora os signos de gênero assumidos nesses estilos parodísticos sejam claramente parte da cultura misógina, são todavia desnaturalizados e mobilizados por meio de sua recontextualização parodista. Como imitações que deslocam efetivamente o significado do original, imitam o próprio mito da originalidade (BUTLER, 2008, p.197).

Sobre este movimento ela ainda dirá que “por mais que crie uma imagem unificada da mulher (ao que seus críticos se opõem frequentemente), o travesti também revela a distinção dos aspectos da experiência do gênero que são falsamente naturalizados como uma unidade através da ficção reguladora da coerência heterossexual” (2008, p.196, grifos no original). Ressalto aqui que a tradução substituiu a indefinição do pronome pessoal inglês it pelo nome travesti na sentença citada anteriormente, o que não seria o mais pertinente: it tanto poderia apontar para o processo de travestir-se e sua imprecisão identitária como para as drag queens ou as female impersonators de Esther Newton (1979), mencionadas nos parágrafos anteriores do texto de Butler. Há sim nas drag queens – e talvez em menor grau em outras formas de travestilidade – a criação de uma personagem feminina unificada e que muitas vezes em um primeiro olhar denotaria em sua constituição uma reificação das rígidas normas que em nossa sociedade regem e dá legitimidade aos corpos femininos, masculinos e àqueles que se encontram à margem destes dois modelos, mas que lhes servem como parâmetro de validade e normalidade. Porém o que parece ser mais interessante neste caso é o devir drag que citei anteriormente, as possibilidades de transformação que sempre se encontrarão abertas nas entrelinhas de nossos corpos.

Judith Butler também nos dirá destes “fossos e fissuras que podem ser vistos como as instabilidades constitutivas dessas construções, como aquilo que escapa ou excede a norma, como aquilo que não pode ser totalmente definido ou fixado pelo trabalho repetitivo daquela norma” (2008, p. 164). Esta autora está aqui dizendo sobre a materialização do sexo como um atributo 145

naturalizado de nossos corpos, processo este que nunca seria plenamente efetivado, necessitando de uma constante reiteração das normas que o regem:

O fato de que essa reiteração seja necessária é um sinal de que a materialização não é nunca totalmente completa, que os corpos não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta. Na verdade, são as instabilidades, as possibilidades de rematerialização, abertas por esse processo, que marcam um domínio no qual a força da lei regulatória pode se voltar contra ela mesma para gerar rearticulações que colocam em questão a força hegemônica daquela mesma lei regulatória (BUTLER, 2008, p.154).

Talvez possamos afirmar que estes “fossos e fissuras” de Judith Butler vão ao encontro do devir mulher (drag) de Félix Guattari: a virtualidade daquilo que nossos corpos poderão ser atualiza a potência daquilo que somos e nos abre para movimentos de recriações e resignificações de modos de ser e de nos constituirmos no mundo. Apesar desta virtualidade não ser palpável enquanto materialidade nem tão passível de localização como institucionalmente o são nossos dados biológicos, corporais, genéticos, etc, ela é real enquanto processo de produção de corporalidades e circulação do desejo, como afirmado por Deleuze nestas um pouco longas, mas belas e elucidativas palavras:

(...) desejo não comporta qualquer falta. Ele não é um dado natural. Está constantemente unido a um agenciamento que funciona. Em vez de ser estrutura ou gênese, ele é, contrariamente, processo. Em vez de ser sentimento, ele é, contrariamente, afeto. Em vez de ser subjetividade, ele é, contrariamente “hecceidade” (individualidade de uma jornada, de uma estação, de uma vida). Em vez de ser coisa ou pessoa, ele é contrariamente, acontecimento. O desejo implica, sobretudo, a constituição de um campo de imanência ou de um “corpo sem órgãos”, que se define somente por zonas de intensidade, de limiares, de gradientes, de fluxos. Esse corpo é tanto biológico quanto coletivo e político; é sobre ele que os agenciamentos se fazem e se desfazem; é ele o portador das pontas de desterritorialização dos agenciamentos ou linhas de fuga. O corpo sem órgãos varia (o da feudalidade não é o mesmo do capitalismo). Se o denomino corpo sem órgãos, é porque ele se opõe a todos os estratos de organização, tanto aos da organização do organismo quanto aos das organizações de poder. São precisamente as organizações do corpo, em seu conjunto, que quebrarão o plano da imanência e imporão ao desejo um outro tipo de “plano”, estratificando a cada vez o corpo sem órgãos (DELEUZE, 1996, p. 20).

Este estabelecimento e efetivação de desterritorializações ao mesmo tempo em que nos constitui como formas ou categorias identitárias, provoca borramentos de nomeação e tumultos, talvez os mesmos causados por uma drag queen em nossas certezas corporificadas e colocadas 146

em relação com estas nos momentos de interação entre artista e público. Uma argumentação que me parece bastante interessante e que diz um pouco deste nó que tanto subverte quanto reifica nossos corpos é a que foi colocada por Sandra Azeredo, em palestra realizada no 8º Seminário Internacional Fazendo Gênero (2008) 60. Acerca da tradução do inglês para o português do título do livro de Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and Subversion of Identity para “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade”, ela observou que a palavra trouble não seria melhor traduzida por “problema”, mas sim por “encrenca”. Encrenca remeteria ao cotidiano, aos micro-lugares (SPINK, 2008) que habitamos e construímos diariamente, e suas diversas tensões não passíveis de serem resolvidas por movimentos homogeneizadores ou normativizadores. Ao contrário, encrenca talvez fosse a necessidade de assumir tais tensões e suas potenciais imprecisões. Então não estaríamos falando de encrenca ao falarmos de drag queens ou qualquer movimento que coloque mais claramente em xeque os mecanismos normativos de produção do gênero e da sexualidade? Uma drag não estaria então em suas despretensiosas proposições e presunçosa preocupação artística efetivamente fazendo e brincando de gênero?

Cabe lembrar que para muitas travestis e transexuais, talvez principalmente aquelas que mais tarde viriam a se dedicar a shows e espetáculos, a travestilidade como brincadeira em momentos de festa ou teatrais pode ter se prestado a um exercício de real transformação corporal; há toda uma experimentação do gênero desejado e que não é o mesmo com qual fomos identificados via normas sociais e construções identitárias cotidianas. O momento excepcional do show abre espaço para a criação e experimentação de novos corpos, que poderão ser assumidos na cotidianidade após o fechar das cortinas ou simplesmente se bastar àqueles breves momentos. Ao menos prestou-se à realização de momentos de beleza, já que, como afirma João Moreira

Salles “o universo funcionaria perfeitamente sem o cinema e sem a literatura ou as artes em geral. Adoro aquele célebre verso de W.H. Auden: A poesia não faz nada acontecer. Os poemas, os filmes, as pinturas são inúteis. Eis o que os enche de beleza em um mundo absolutamente utilitarista” (citado por AZEREDO, 2010, p.182, grifos da autora).

60 Esta proposta foi apresentada por Azeredo no 8º Seminário Internacional Fazendo Gênero – Corpo, Violência e Poder, em Florianópolis, agosto de 2008. Foi parte de sua fala intitulada “O Ensino de Gênero na Universidade”, proferida na “Mesa 21 – Gênero e Educação”, no dia 26 de agosto de 2008. 147

5.2. If you're a party freak then step on the floor

Apesar de já ser um espaço instituído da travestilidade na cidade do Rio de Janeiro em suas noites de domingo, o Quiosque Rainbow sempre guarda surpresas, já que literalmente se situa no entre, localizando-se entre as areias da turística praia de Copacabana e seu famoso calçadão. Geralmente ali se apresentam Magaly Penélope, Xaxu, Sara Car e Cláudia Pantera, invariavelmente contando com a presença de convidadas e convidados. Como um quiosque que é, o Rainbow é um local semiaberto: é formado pelo quiosque propriamente dito, onde são preparados drinks, petiscos e outros itens de seu cardápio, e uma plataforma (de madeira e concreto), rodeada de vasos com plantas em todo seu contorno, delimitando seu espaço sobre as areias da praia de Copacabana, na qual algumas mesas e guarda-sóis são dispostos. Os espetáculos são apresentados em um pequeno espaço de tal plataforma, de modo que as artistas ficam bem próximas do público, muitas vezes bailando entre este durante suas performances. Além disso, há a proximidade com a rua e o característico ondulado em branco e preto do calçadão, o que atrai curiosos, turistas e qualquer tipo de passante pelos quais o show certamente não passa incógnito.

O Quiosque Rainbow conta com certa estrutura, como equipamento de som, microfone e banheiros anexos que são utilizados como camarim, mas se coloca à mercê do movimento da rua e do tempo, como a chuva que no verão insiste em comparecer no fim do domingo. Uma das noites que acompanhei quase não aconteceu, já que uma chuvinha fina tornava a realização do show incerta. Era 31 de outubro de 2010 e um espetáculo temático seria apresentado em comemoração ao dia do Halloween, festa norte-americana do dia das bruxas por nós parcialmente adotada e celebrada nesta data. Mas a noite também era emoldurada por um momento histórico prestes a ser confirmado: a vitória nas eleições da primeira mulher, Dilma Rousseff, como presidenta do Brasil. Pessoas passavam a todo o momento pelo calçadão portando bandeiras do Brasil e do PT, o Partido dos Trabalhadores, ao qual Dilma é filiada. As apresentações no Rainbow ocorriam um tanto quanto alheias a este movimento, exceto por Xaxu que fez um desabafo supostamente criticando uma despolitização do eleitorado brasileiro e do público presente no Quiosque Rainbow. Mas suas críticas também foram à presidenta eleita e ao candidato José Serra, que fazia oposição e disputava a eleição com Dilma; uma espécie de metralhadora que a todos atacava exaltou os ânimos de Xaxu, que não encontrou eco para suas 148

declarações entre as outras artistas, nem na plateia que curtia o fim da noite de domingo e as travestilidades ali em cena.

Xaxu estava vestida toda de negro, em um vestido longo e com tecidos transparentes, como também Sara Car, que elegeu um vestido preto curto e uma capa transparente que cobria seus ombros. Sara apresentou uma vigorosa dublagem de uma canção em espanhol, dançando animadamente e contagiando a todos e todas. Magaly Penélope se destacava em um longo e sombrio vestido preto, como também o era sua maquiagem muito bem executada: sobre uma base branca, Magaly apresentava olhos negros esfumaçados, marcas como cicatrizes por todo rosto e uma boca negra da qual uma imitação de sangue escorria. Em seu pescoço também havia uma enorme cicatriz e grande quantidade de sangue marcando seu colo. Do alto de seus saltos, desfilava por entre o público, causando não exatamente espanto, mas fascínio perante aquela personificação tão bem executada. Assim como Xaxu, Magaly executou vários números na noite, entretendo o público que se encontrava sentado nas mesas do Rainbow, como também em pé no calçadão, admirando aquelas marcantes presenças junto às areias de Copacabana. Marcante ainda era a figura de Cláudia Pantera, a última artista a compor o quarteto habitual do Quiosque Rainbow.

A construção de sua própria beleza marca a presença de Cláudia Pantera. Ela não se parece nenhum pouco com o que esperaríamos de uma drag, transformista ou outra diva qualquer. Pele negra coberta por diversas bandagens de retalhos e pedaços de tecidos, diversos acessórios espalhados pelo corpo, sem nenhuma aparente preocupação de combiná-los, outros pedaços de tecidos variados compondo o que seriam seus cabelos e seios e maquiagem exagerada em um rosto no qual a falta de seus dentes frontais provoca desde risos até desconforto frente sua figura. Na noite em que a acompanhei no Quiosque Rainbow, em Copacabana, Cláudia chegou em um longo vestido verde brilhante, tecidos compondo um par de longas luvas em seus braços, leque em punho e uma exótica peruca em tons acobreados. Um véu preto cobria seu rosto, naquela noite em que a festa do Halloween era comemorada no Rainbow, o qual só foi retirado por Xaxu no meio da apresentação de Cláudia, que aparentemente se esqueceu que este encobria boa parte de si para o público naquela sua dublagem de uma canção de Donna Summer.

Cláudia é tida por todos e todas como uma figura exótica e naquela noite piadas foram proferidas pelas outras artistas afirmando, por exemplo, que ela “era o próprio Halloween” ou “o 149

próprio terror”. O público ria, mas nada disto parecia abalar Cláudia Pantera, que não demonstrava reação positiva ou negativa perante o que era dito sobre si. Ela foi uma diva absoluta, que subiu no salto e personificou um modo camp de ser, aristocrática e segura de si. Parecia estar ali para exibir seu show e se fazer presente, levando este posicionamento estético como uma máxima inabalável. E ela bailava ao desfilar por entre a plateia e abrir e fechar seu leque, provocando barulhos e sustos. Não havia diva maior e em muito este seu posicionamento se parecia com o de outras figuras divinizadas, como Pepper LaBeija, uma das personagens centrais do documentário Paris is burning (1990), dirigido por Jennie Livingston.

Livingston nos apresenta neste filme a ball culture, uma competição que mobilizava principalmente a comunidade homossexual latina e afro-americana em meados dos anos 1980, em Nova Iorque. Através de desfiles temáticos carregados de estilo e poses imitando ícones de revistas de moda como Vogue e Harper’s Bazaar, os concorrentes se apresentavam usando desde exuberantes trajes femininos até vestimentas militares, de colegiais, alta costura, entre as mais diversificadas categorias que pudessem criar.

Pepper LaBeija e Dorian Corey, figuras centrais do documentário e aparentemente deste cenário, afirmam que estas competições passaram de desfiles de drag queens usando “trajes deslumbrantes, plumas e lantejoulas” querendo ser coristas de Las Vegas, possivelmente nos anos 1960, para na década de 1970 reinar o estilo das grandes estrelas do cinema como Marilyn Monroe e Elizabeth Taylor. A década de 1980 retratada por Livinsgton neste filme é caracterizada pelo desejo de posar ou modelar e ser como os grandes nomes da moda e estilo mundiais, como Iman, Maud Adams ou Paulina Porizkova. LaBeija afirma que

Esses shows [balls] representam nossa fantasia de sermos superstars. É como ir ao Oscar ou desfilar em uma passarela como modelo. Muitos desses garotos não têm nada na vida. Alguns não têm nem o que comer. Eles vêm aos desfiles mortos de fome. Dormem no albergue do grupo 21, no píer ou aonde der (LIVINGSTON, 1990).

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Um estilo camp afirmado nestas competições e a criação de um tipo de sociabilidade possibilitada pela formação de comunidades nomeadas como “casas”61 parece se sobrepor à qualquer dificuldade ou discriminação que cotidianamente estas pessoas vivem, canalizando seus desejos e aspirações para os momentos da ball, nos quais exercitam e demonstram suas habilidades, bem como são reconhecidas e aplaudidas por estas. Dorian Carey afirma que é um tipo de vício que lhe instiga a querer cada vez mais aplausos. Porém este seria um vício saudável, que não lhe prejudicaria de nenhuma forma, além de que o mundo seria muito mais divertido se todo mundo trocasse seus outros vícios pelas competições da ball.

Em uma caracterização inicial da ball culture, um frequentador afirma que esta “É como entrar no País das Maravilhas. Você entra lá, e se sente 100% bem de ser homossexual”, ao passo que a voz de Livingston pergunta “E isso não acontece no mundo real, não é?” e recebe como resposta “Não é o que acontece no mundo, mas deveria ser assim” (LIVINGSTON, 1990). No espaço da ball culture, há uma espécie de positivação de um estereótipo negativo da homossexualidade, de forma análoga ao encontrado nos relatos das female impersonators, principalmente de Chicago, da etnografia de meados da década de 1960 de Esther Newton:

Uma camp é uma pessoa impertinente que declarou liberdade emocional (...) o tempo inteiro ela é despreocupada. Muito raramente uma camp é triste. Uma camp tem que ser irreverente. (...) Já a “homossexualidade não é” camp. Mas você pega uma camp e ela dá uma rodada e torna a homossexualidade engraçada, mas não ridícula; engraçada, mas não ridículo... esta é uma arte formidável. Esta é uma coisa fina... (...) É uma coisa do tipo rir de si mesmo ao invés de chorar. E uma boa camp fará você rir com ela, até onde você repentinamente sinta... você não se sinta como se tivessem feito graça com você. Ela é do tipo que fez uma situação ruim ficar mais leve62. (NEWTON, 1979, p.110-111, grifos no original).

61 As casas (houses) de Paris is burning são verdadeiros laços de parentesco e sociabilidade, dispondo os participantes de determinada casa (moradores literais ou componentes do grupo) em um modelo hierárquico e que, segundo Judith Butler, seria uma importante “construção discursiva e social de uma comunidade, uma comunidade que reúne, cuida e ensina, que protege e habilita” (BUTLER, 2008, p.199). Há “mães” que cuidam das casas e seus membros utilizam o sobrenome destas, como a House of Xtravaganza, House LaBeija, House Ninja, House Pendavis, entre outras. Tradução livre, no original: “(...) la construción discursiva e social de una comunida, una comunidad que une, cuida y enseña, que protege e habilita” (BUTLER, 2008, p.199). 62 Tradução livre, no original: “A camp is a flip person who has declared emotional freedom. (...) the whole time she’s light- hearted. Very seldom is camp sad. Camp has got to be flip. (...) Now ‘homosexuality is not’ camp. But you take a camp, and she turns around and she makes homosexuality funny, but not ludicrous; funny but not ridiculous... this is a great, great art. This is a fine thing... (...) It’s sort laughing at yourself instead of crying. And a good camp will make you laugh along with her, to where you suddenly feel... you don’t feel like she’s made fun of you. She’s sort of made light of a bad situation” (NEWTON, 1979, p. 110-111, grifos no original). 151

O camp ou esta estilização de si presente na ball culture, e que também poderia ser nomeada como camp, talvez seja inicialmente motivada por uma discriminação ou situação de vulnerabilidade à discriminação que acaba por levar ao encontro destes “marginais”, que então criam um tipo de comunidade e modos de vida positivados. E estes modos de vida e de se relacionar não se restringiriam a uma simples resposta à discriminação; são verdadeiras afirmações de si e construção de novos códigos que pautam a vida daquele grupo específico. Não é apenas um recurso contra uma heteronormatividade opressiva e agressiva, como também não é a mera possibilidade de se travestir que subverteria normas de gênero, localizando estes corpos em uma relação binária de subversão ou transgressão de gênero.

Discorrendo sobre o documentário Paris is burning, Judith Butler retoma alguns de seus postulados sobre a temática das drag queens e travestilidade artística, esclarecendo alguns posicionamentos seus que talvez não tenham sido interpretados como esta gostaria:

Embora muitos leitores tenham interpretado que em Problemas de Gênero eu defendia a proliferação das performances drag como um modo de subverter as normas dominantes do gênero, gostaria de destacar que não há uma relação necessária entre drag e subversão, e este tipo de travestilidade pode ser usado tanto a serviço da desnaturalização como da reidealização das hiperbólicas normas heterossexuais de gênero. Na melhor das hipóteses, parece que drag é um local de certa ambivalência, o qual reflete a situação mais geral de se estar implicado nos regimes de poder pelos quais o sujeito é constituído e, por isso, de se estar implicado nos mesmos regimes de poder aos quais este se opõe (BUTLER, 2008, p. 184)63.

Butler continua sua argumentação dialogando tanto com a psicanálise lacaniana como com o filme de Livingston, postulados estes que aqui nos interessa. Ela irá reafirmar a noção de que se a travestilidade constitui-se como uma imitação de gênero, a heterossexualidade também o é e necessita de constantes reafirmações para se constituir do modo como a concebemos socialmente. Para Butler, a travestilidade colocaria em xeque a “pretensão de naturalidade e

63 Tradução livre, no original: “Aunque muchos lectores interpretaron que em “El género en disputa” yo defendía la proliferación de las representaciones travestidas como un modo de subvertir las normas dominantes de género, quiero destacar que no hay una relación necesaria entre el travesti y la subversión, y que el travestismo bien puede utilizarse tanto al servicio de las desnaturalización como de la reidealización de las normas heterosexuales hiperbólicas de género. Parecería que, em el mejor de los casos, el travestismo es um sitio de cierta ambivalencia que refleja la situación más general de estar implicado en los regímenes de poder mediante los cuales se constituye al sujeto y, por ende, de estar implicado em los regímenes mismos a los que uno se opone” (BUTLER, 2008, p.184). 152

originalidade da heterossexualidade”64 (BUTLER, 2008, p.185). Porém, a ambivalência marca o exercício da travestilidade, o que faz com que esta possa ser uma apropriação e uma subversão ao mesmo tempo ou estar “presa em uma tensão que não pode ser resolvida e às vezes o que se dá é uma apropriação fatalmente não subversiva”65 (BUTLER, 2008, p.189). Não há um direcionamento necessário na travestilidade e tanto Judith Butler como bell hooks e outras autoras feministas chamam a atenção para um caráter misógino, racista e homofóbico presentes em diversas criações. No caso de Paris is burning, este caráter parece ser reforçado por um desejo de se ser uma estrela, de ter algum grau de reconhecimento e almejar ser rico ou como afirma Peppe LaBeija, “estar mais perto deste mundo real de glória, do mundo da fama e do dinheiro, do estrelato e das luzes” (LIVINGSTON, 1990).

Para Butler, haveria a reiteração de uma normatividade que marca as construções dos personagens do filme: não há uma aparente subversão, já que operam uma corporização do normativo e desejam partilhar deste mundo. Além disto, o documentário seria problemático porque

Jennie Livingston se aproxima de seu tema como alguém de fora que observa. Desde que sua presença como cineasta mulher/lésbica branca está ausente de Paris is burning, aos espectadores resulta fácil imaginar que estão vendo um filme etnográfico que documenta a vida de nativos gay negros e há dificuldades em reconhecer que estão observando uma obra modelada e produzida em uma perspectiva de um ponto de vista específico de Livingston. Ao mascarar cinematograficamente esta realidade (podemos ouvir suas perguntas, mas nunca a vemos), Livingston não se opõe à maneira pela qual a condição branca hegemônica representa a negritude, mas sim assume uma posição autoritária onisciente que de modo algum pode ser considerada progressista ou contra-hegemônica66. (HOOKS citada por BUTLER, 2008, p.195, grifos no original)

64 Tradução livre, no original: “(...) desafía la pretensión a la naturalidad y originalidad de la heterosexualidad” (BUTLER, 2008, p.185). 65 Tradução livre, no original: “(...) atrapada em uma tensión que no puede resolverse y a veces lo que se da es una apropriación fatalmente no subversiva” (BUTLER, 2008, p.189). 66 Tradução livre, no original: “Jennie Livingston se aproxima a su tema como alguien de afuera que observa. Puesto que su presencia como cineasta mujer/lesbiana blanca esta “ausente” de “Paris en llamas”, a los espectadores les resulta fácil imaginar que están viendo un filme etnográfico que documenta la vida de “nativos” gay negros y les cuesta reconocer que están observando uma obra modelada y formada en una perspectiva y desde un punto de vista específico de Livingston. Al enmascarar cinematográficamente esta realidad (podemos oír sus preguntas, pero nunca la vemos), Livingston no se opone a la manera em que la condición blanca hegemónica “representa” la negritud, sino que más bien asume una posición imperial omnisciente que en modo alguno puede considerarse progresista o contrahegemónica” (HOOKS citada por BUTLER, 2008, p.195). 153

Deste modo, a paródia enquanto uma possibilidade ambivalente, que se atualizaria de diversas formas e em diferentes contextos, não seria tão potente de transformação em Paris is burning. O foco destes argumentos de hooks e Butler de que um desejo do normativo perpassa os modos de vida das personagens do filme retira-lhes sua própria potencialidade. Em sua maioria homens gays negros e latinos criam um mundo no qual elementos racistas e homofóbicos são retrabalhados dentro de um jogo; claramente vemos a construção de modelos hierárquicos, mas seriam estes tão opressivos como a exigência de normatividade e exclusão de nossos modos de subjetivação cotidianos?

Do mesmo modo, apontar esta suposta onisciência e exercício de um poder através do qual Livingston seria uma “benfeitora que oferece a estas pobres almas negras uma forma de realizar seus sonhos” (HOOKS citada por BUTLER, 2008, p.196) ignora o caráter básico de desejo de visibilidade daqueles que participam das competições da ball. Há um desejo de posar e se mostrar e a câmera de Livingston me parece mais pertinente a mais um olho que admira estes corpos do que um instrumento opressivo que abusa dos sonhos destas “estrelas”.

Este é o mesmo problema que se coloca para o pesquisador que se lança ao campo: até onde estaria autorizado a se aproximar de seus “nativos”? Não seria por demais radical e separatista a exigência de uma partilha coerente e de certa forma normativa entre pesquisados/pesquisador? Este comum não poderia ser heterogêneo? Não nos esquecemos do potencial de ação dos “observados” – que nunca são literalmente observados, mas constroem esta observação e a forma como se deixam mostrar – e das entrelinhas que advém do encontro deste espectador que o retrata e o artista que se mostra e vice-versa?

Estas me parecem questões também ambivalentes, como o seriam a potencialidade das drag queens e suas travestilidades parodísticas. Podem reforçar um estereótipo ou normas sociais como também podem promover importantes resignificações. Há ainda um componente de prazer nestas travestilidades e no ato de travestir-se que não pode ser ignorado. As personagens de Paris is burning parecem estabelecer um tipo de comunicação, de relações entre si em uma espécie de um lúdico jogo estético; estabelecem uma comunidade discursiva marcada por uma subcultura camp e de construção de corporalidades femininas diversas. Como afirma um dos entrevistados no início da projeção, “os passatempos preferidos desta sociedade são o basquete e o futebol [americano]. O nosso é o show [ball], nos preparamos pra isso. Passamos mais tempo nos 154

preparando para os shows, do que alguém passaria para fazer qualquer outra coisa. Os shows são o nosso mundo” (LIVINGSTON, 1990).

Mas é Freddie Pendavis, grande companheiro e camareiro da diva Kim Pendavis, que desfila pelas passarelas da ball, quem mais claramente afirma o prazer de construir e participar desta subcultura que envolve todos e todas em uma espécie de mágica: “O que ganho? É simples, ganho alegria, satisfação. Nada mais. Na verdade é que eu não peço muito. De vez em quando, ao final coloco alguma roupa” (LIVINGSTON, 1990). Muitas vezes o prazer de determinado ato ou criação é simplesmente sua existência, não necessitando de maiores explicações ou justificativas coerentes. A seu modo e emoldurada por diversas pressões, marginalizações e opressões, em torno da ball se produz vida e seus participantes se realizam e criam suas alegrias e formas de felicidade, as quais me parecem muito mais afirmativas do que conformadas a um posicionamento inferior em uma possível escala social. Seu devir minoritário é maior do que a desvalorização socialmente posta destes corpos.

Apesar de versar sobre uma temática diferente da ball culture de Judith Butler e bell hooks, quem talvez possa contribuir para esta argumentação acerca da ambivalência da paródia e deste exercício camp de construção de si e suas apropriações de feminilidades e masculinidades no fenômeno drag/travestilidade artística é Donna Haraway e seu irônico mito político dos ciborgues:

A blasfêmia sempre exigiu levar as coisas a sério. Não conheço, dentre as tradições seculares- religiosas e evangélicas da política dos Estados Unidos, incluindo a política do feminismo socialista, nenhuma posição melhor a adotar do que essa. A blasfêmia nos protege da maioria moral interna, ao mesmo tempo em que insiste na necessidade da comunidade. Blasfêmia não é apostasia. A ironia tem a ver com contradições que não se resolvem – ainda que dialeticamente – em totalidades mais amplas: ela tem a ver com a tensão de manter juntas coisas incompatíveis porque todas são necessárias e verdadeiras. A ironia tem a ver com o humor e o jogo sério. Ela constitui também uma estratégia retórica e um método político que eu gostaria de ver mais respeitados no feminismo socialista. No centro de minha fé irônica, de minha blasfêmia, está a imagem do ciborgue (HARAWAY, 2000, p.39, grifos meus).

Não necessariamente a imagem do ciborgue de Haraway que dialogaria com as travestilidades de Paris is burning ou com as muitas outras que encontramos pelas noites drag do Rio de Janeiro; o que parece dialogar é a possibilidade da paródia e da blasfêmia, da seriedade 155

para se assumir não-sério frente uma série de convenções e instituições sociais, aparentemente por simples prazer ou motivações apolíticas, como Susan Sontag (1987) concebe o camp. É a “vitória do estilo sobre o conteúdo”, frase já citada de Oscar Wilde e que aqui se faz como uma máxima que talvez pudesse ser reescrita da seguinte forma: “é a vitória do estilo concomitante ao conteúdo”. Mas afirmado teatralmente como estilo em uma estética da existência.

5.3. Yeah we work on the floor

Drag queens e artistas da travestilidade encontraram na noite gay e locais de sociabilidade homossexual espaço para suas apresentações ou simples desfile de suas presenças entre o habitual público que tem tais locais como ponto de encontros e diversão. Sal y Pimenta, Papa G, 1140, Cabaré Casanova, Cine Ideal, Le Boy e muitas outras são boates que promovem regulares shows de drag em suas dependências. Várias possuem palcos e estruturas teatrais para a realização destes e outros tipos de shows. Se em momentos anteriores espaços de sociabilidade homossexual eram extremamente marginalizados, atualmente ainda são marcados por esta especificidade, mas adquiriram outro status, talvez o mesmo tipo de aceitação e/ou respeito que a homossexualidade vem ganhando na sociedade. Ainda lutamos contra a homofobia e crimes de ódio contra gays, lésbicas e principalmente travestis são noticiados quase diariamente no Brasil, porém a população LGBT vem ganhando visibilidade e em muitos casos, notoriedade.

Gilles Lascar, fundador e responsável pela boate Le Boy, afirma que antes da inauguração desta casa na zona sul carioca no ano de 1992, “as casas noturnas gays do Rio de Janeiro nunca tinham figurado em jornais ou revistas importantes. Foi a partir da LE BOY que frequentar boite gay virou moda e passou a ocupar um espaço na mídia. Essa foi uma contribuição decisiva para que a sociedade em geral pudesse ver o gay por outra óptica” (1996, p.41). Gilles credita a esta boate um novo tipo de visibilidade à noite gay e ao seu frequentador assíduo, antes restrito a locais que não gozavam de credibilidade frente aos meios de comunicação de massa. A “encrenca” entre visibilidade e marginalidade realmente marca uma tensão, pois os espaços nos quais drag queens e artistas da travestilidade se fazem presentes são os mais variados possíveis, como prestigiosas boates e teatros cariocas ou saunas e locais explicitamente organizados para 156

encontros sexuais (“puteiros”). Mas em todos estes parecem ser divas e figuras de referência para seus diversificados frequentadores.

Percorrendo algumas destas boates, tive como foco a relação estabelecida entre artista e público e o agenciamento, ainda que para dizer destes eu tenha que me focar muito mais na figura das drags do que objetivamente nas reações e respostas da plateia. Desejo de ficção e seus possíveis diálogos com outrem, aquilo que a drag nos oferece e que de diversas formas é parte produtora dos modos de subjetivação de quem partilha junto com elas, ao menos naquele momento, da mesma comunidade discursiva. Nestas trocas e relações, as drags, especificamente, gozam de um interessante status junto ao público gay, se constituindo como figuras de referência na produção de subjetividades gays ou homoeróticas. Assim como Madonna, o grande ícone gay da minha geração, Cher, Lisa Minelli, Judy Garland, as mais recentes Britney Spears, Beyoncé, Lady Gaga e tantas outras divas que tornam a vida de tantos gays e lésbicas dotadas de certo sentido, graça, vitalidade, diversão..., penso que muitas drags se transformam em um tipo de “diva acessível”. Será aquela figura que assume todo seu glamour e/ou deboche, partilha do mundo pop de seu público e oferece-lhe uma releitura deste. É um ser divinizado ao mesmo tempo em que assume a mesma marginalidade de seu público.

Uma drag no cenário de uma boate é definitivamente uma estrela. As pessoas irão à festa de qualquer forma, mas a drag dará o brilho e a garantia de que aquele evento possui um “algo a mais”. São verdadeiros símbolos corporificados de um mundo/cultura gay ou homossexual, produzindo partilhas diversas e estabelecimento de diversos graus de comunidades discursivas e sociais por bares e boates espalhados pela noite carioca, como a observada no boate Sal y Pimenta.

Desconhecia a programação da noite do Sal y Pimenta, mas estava curioso para acompanhar as atividades drag da boate, principalmente porque este era um fim de semana que emendaria com um feriado e era possível haver maior movimento e/ou maior investimento na programação. Ledo engano. Cheguei, acompanhado de meu companheiro, por volta de 00h e o espaço térreo da boate, onde funcionava o bar principal e era composto por um pequeno palco e diversas mesas, estava praticamente lotado. Tivemos que ficar junto ao balcão do bar. A noite era de videokê e muitos casais e grupos aparentemente de amigos comiam e bebiam enquanto davam uma pausa e iam cantar uma música qualquer no videokê. Poucas pessoas ocuparam o palco e 157

algumass se revezavam na hora de cantar, em sua maioria músicas mais antigas do cancioneiro (bem) popular brasileiro.

A pista de dança no piso superior da boate ainda não estava aberta quando chegamos, mas após um tempo foi liberada para os frequentadores. Subimos para tal piso e havia apenas uma única pessoa dançando. O som era composto por músicas remixadas bastante recentes e populares junto ao público gay e adolescente, como Madonna, Lady Gaga, Ke$ha, Beyoncé, Rihanna, entre outras. Em sua maioria eram músicas de artistas femininas. Sentamos próximos à pista de dança e ficamos curtindo o som e observando o bonito jogo de luzes e lasers que ali se formava. O ambiente da boate é bastante simples, com paredes descascadas e/ou mal pintadas e cadeiras, mesas e outros acessórios. O público parece ser de pessoas de classes mais populares, muitos jovens (que chegaram para o show de drags) e alguns de idade mais avançada que estes, por volta de 50 ou 60 anos. A pista de dança foi brevemente movimentada por um grupo de três pessoas nesta casa de idade e que dançaram bastante, fazendo companhia para aquele único que ali ainda permanecia. Algumas pessoas e mesmo grupos subiam, davam uma pequena circulada e logo desciam. Outros jovens ainda, tanto masculinos como femininos, entravam e saiam da própria boate, provavelmente tentando descobrir qual seria a melhor da noite, entre tantas opções que a Lapa carioca oferecia.

Ficamos ali por acreditar que o show das drag queens seria naquele palco. Após um tempo descemos também e no palco do ambiente de baixo estava ocorrendo um show voz e violão de MPB. Um jovem cantor cantava algumas músicas, principalmente das cantoras Ana Carolina e Cássia Eller. Eram canções bastante populares e as pessoas reagiam e cantavam animadamente. Ficamos ali e algumas músicas mais tarde (por volta de 1h30, conforme nos tinha sido informado quando chegamos), este se despede – não antes de um bis – e a drag queen Samara Rios se anuncia pelo microfone de dentro do balcão do bar para logo em seguida tomar conta do pequeno palco. Dubla e dança “Brasil”, sucesso de Cazuza aqui na voz de Gal Costa. Durante sua performance, tira o vestido chamativo que usava e fica apenas de bustiê e uma calcinha cheia de penas e adereços. Ela também tirou a peruca de cabelos castanhos e desarrumados para ficar com uma loira na altura dos ombros. Foi bastante aplaudida, pegou o microfone e conversou melhor com o público e logo chamou ao palco a colega da noite, Stephanie Camburão. Esta chega em um leve vestido branco, com uma longa peruca loira, com cabelos fartos e muito desgrenhados. 158

Interage verbalmente com Samara e passa a impressão de total improviso entre elas. Não há uma cena previamente ensaiada e as duas ficam trocando farpas e provocações, como Stephanie rasgando um flyer de outra festa que teria Samara como principal atração (seu rosto em close estampava tal flyer).

O público parecia se divertir muito com a interação das duas e o ambiente, um tanto quanto pequeno, estava apinhado de pessoas, em sua maioria jovem masculina, apesar de haver mulheres jovens também. Após mais alguns minutos de interação entre as referidas drags, em seguida entra Desiree, que chega vestida como a apresentadora Xuxa e faz um número divertidíssimo ao som da música “Quem quer pão”. Com um saco de pão de forma na mão, minissaia, blusinha, bota e peruca loira com duas “xuquinhas” dubla tal música enquanto vai colocando fatias de pão na boca de Stephanie, uma fatia após a outra até esta estar, inacreditavelmente, com quase todas as fatias do saco de pão na boca. Desiree também vai para a plateia e tenta colocar pão na boca de alguns espectadores, tendo sucesso com alguns e fracasso com outros. Após tal canção, as três artistas interagem entre si fazendo diversas piadas – como a referência a estereótipos de bairros da cidade, que parece ser um clássico entre drag queens de diversas partes do país – e divertem o público que se aperta naquele pequeno espaço. Muitas piadas fazem referência a coisas bastante presentes no mundo gay, como o par ativo/passivo, pegação, roupas, etc.

Desiree é a que conseguia arrancar mais risos da plateia e fazer números realmente engraçados, mostrando saber fazer piada com muitas situações cotidianas e estabelecer uma interessante interação com seu público. Após mais alguns momentos de piadas, as três encerram o show, que durou em seu total apenas 30 minutos. A impressão que deu foi de que, apesar de divertido, o espetáculo foi muito improvisado e encerrou-se também de forma improvisada. Após o show, muitos dos presentes foram embora da boate. Ao lado havia outra boate voltada ao público LGBT e que tinha uma considerável fila na entrada, indicando qual ainda poderia ser a boa da noite.

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It was like Punk but maybe it wasn't so aggressive. It was completely theatrical in a way, the very opposite of what you were expected to look like on the street. It was confrontational, and there was this sort of gender blurring.

(Leigh Bowery)

There's nothing you can do that can't be done Nothing you can sing that can't be sung Nothing you can say, but you can learn how the play the game It's easy

There's nothing you can make that can't be made No one you can save that can't be saved Nothing you can do, but you can learn how to be you in time It's easy

All you need is love

(John Lennon e Paul McCartney)

6

Passeios por travestilidades outras: a diversidade do travestir-se 160

Mary antes de se castrar e arrancar a própria genitália, ela tinha um que se chamava de Belmiro e costumava fazer programas no centro da cidade do Recife, na Dantas Barreto, nessas ruas. Numa noite quando ela não consegue nada, sem conseguir dinheiro, ela entra num banheiro público ali da Dantas Barreto e encontra um grupo de caras que tão lá fumando um baseado. Nisso ela entra, pede pra dar um pega e começam a conversar e não sei o que, vai rolando uma historinha, começam a fazer um sexo (gemidos) e no final disso perguntam se ela tem dinheiro e ela diz q não tem. Então eles revoltados quebram ela de cacete e deixam ela lá toda jogada no chão, toda ensanguentada. Depois ela se revolta e tira a gilete que ela guardada na gengiva e arranca a própria genitália e vai embora, né, deixando um rastro de sangue e desaparece do mapa. Ninguém nunca mais viu Mary. E os restos genitais dela ficaram lá, os testículos e o pau, sofrendo a mistura com urina, ureia, flora bacteriana, todas aquelas nojeiras do banheiro público, juntando com, mais associado ao calor da cidade deu uma reação mutante que surgiram então os três testículos, os três travestículos do Textículos de Mary.

E depois disso elas ficaram perambulando pelo centro da cidade junto com prostitutas, travestis e cheira-colas e costumavam ser sempre perseguidas pela polícia. Numa dessas noites de fuga ela entrou num bar que tavam tocando uma banda e ninguém sabe se era de forro ou se era de mangue, só se sabe que ela não aguentava mais escutar aquela música e voaram em cima da banda e mordendo cada músico contaminou eles, que sofreram também uma reação como se o fator mutagem não entrasse dentro na corrente sanguínea. E eles se transformaram então nesses travestis zumbis que acompanhavam a banda e se formando então a Banda d’As Cachorra (2005).

Este é o relato mitológico da criação do grupo Textículos de Mary, segundo seus próprios integrantes na abertura do curta-metragem “Textículos de Mary e Outras Histórias” (2005), de Flávia da Rosa Borges. Formato por Chupeta (Fábio Mafra), Lollypop (Henrique Durand) e Silene Lapadinha (Tony), o trio trash performático é acompanhado ainda pela Banda d’As Cachorra, seu suporte musical. A banda apresentou-se pela primeira vez em 1998, no Festival de Música Venusiana no Recife, sua cidade natal, e teve uma meteórica e marcante carreira musical até 2003, lançando os cds demo “Xivúla” (1999) e “Tivira” (2000), o longplay “Cheque Girls” (2002) pela gravadora Deckdisc e “Bissexuástica” (2003), sua derradeira obra, lançada de forma independente após perder apoio da gravadora.

Autodenominando-se como uma “invasão dos monstros notívagos no maravilhoso mundo musical dos caranguejos com cérebro” (2003, p.04), os Textículos de Mary pretenderam ser uma outra via performática e sonora da cena musical recifense, na época muito marcada pelo estouro nacional do Mangue Beat. Surpreendentes, bizarras, trash, afeminadas, vulgares, agressivas, escrotas, vanguardistas, saudosistas... muitos e ambíguos adjetivos podem ser usados para qualificar àqueles três travestículos de meia arrastão, salto alto, corpetes, maquiagem chocante com muito preto e imitação de sangue, além dos mais diversos apetrechos e referências a manifestações sexuais e eróticas. O trio reunia tudo que poderia haver de marginalidade e escracho, cantando músicas que proclamavam versos como “Eu quero ser tua cadela/ Engatada 161

no teu pau/ Suicida agarrado na tua perna/ O coração exposto pela via anal/ Um animal obediente/ O teu capacho paciente/ Tua xoxota artificial/ A nicotina do teu dente/ O teu estado indiferente/ Teu recipiente seminal” (Propóstata, 2003) ou ainda uma versão para a infantil canção She-Ra, na qual a apresentadora Xuxa Meneguel narrava o romance dos personagens animados She-Ra e He-Man. Os versos de Xuxa foram parodiados deste modo na versão punk rock nomeada de “Todinha Sua” pelos Textículos: “Porque eu sou Bee-xa/ Me apresenta pro He- Man/ Teu irmãozinho é uma gracinha/ E eu sou todinha do bem/ Porque eu sou Bee-xa/ He-man é um gato alto astral/ Desculpe se eu sou ousadinha/ Beijinho, beijinho, Pau, pau” (2002).

O interessante relato do jornalista Luciano Matos na extinta Revista Bizz retrata brevemente o show que o trio fez no festival Rec Beat, tradicional manifestação realizada paralelamente ao carnaval do Recife e que no ano de 2001 reuniu uma média de 10 mil pessoas por noite. O “massacre de loucura” (2001, p.14) promovido pelos Textículos foi ao palco entre grandes nomes da música recifense e nordestina, nomeada como alternativa e/ou regional dentro do panorama musical nacional, como Wado, Cordel do Fogo Encantando, entre outros. Segue a impressão de Luciano Matos:

Imagine três bichas assumidas, ultraextravagantes, com um visual de travestis mutantes, tocando punk e rock setentista com letras escabrosas que falam do submundo de gays, michês e prostitutas. Eles são a Textículos de Mary, que pararam a Rua da Moeda. Quem nunca tinha visto não acreditou, quem conhecia acompanhou e se acabou em músicas como “Bicha Escrota”, “Charles Bronson Song” e Sexta-feira 13 – A Vingança de Jeisakelly”. A performance é uma ofensa para qualquer associação de mães. Fazem poses eróticas, arrastam-se, beijam-se e ficam de quatro, deixando o público passar a mão, dedos e qualquer objeto onde bem entenderem (2001, p.14).

Apesar de terem na travestilidade a base sob a qual construíram sua carreira punk rock ou “hittler-rock”, como nomearam seu retorno no lançamento do cd “Bissexuástica” (2003), os Textículos de Mary estão longe de serem drag queens. Constroem uma espécie de vigorosa feminilidade, utilizam salto alto, maquiagem e uma série de elementos geralmente caracterizados como do feminino em nosso meio social, mas não há por que querer encaixá-las na categoria nomeada como drag queen. Isto nos leva ao resgate de outras formas de travestilidade que não aquela tida como um “feminino clássico” ou uma paródia e diálogo mais direto com este. Ou ao 162

menos a menção de alguns nomes e manifestações, já que dar conta de tantas e diversas travestilidades seria tarefa árdua, impossível e não pretendida neste espaço.

6.1. Eu não tenho culpa de ser chique assim...

Qual critério seria possível utilizar para elencarmos travestilidades artísticas? O mais óbvio e simples seria determo-nos a qualquer tipo e algum grau de modificação corporal na construção de determinada manifestação artística. Comumente concebemos a travestilidade, seja de travestis, transexuais, crossdressers e drag queens como a construção de uma feminilidade sobre um corpo anteriormente masculino ou o exercício de uma masculinidade baseada em um corpo tido como feminino em seu nascimento, como as drag kings. Há uma ideia de inversão de gênero e muitas vezes estas são buscadas nos caracteres e comportamentos mais estereotipados que teríamos do gênero que desejamos construir.

Conforme apontei no capítulo anterior, acredito que mesmo naquela construção que identificaríamos como a mais reiterativa da hegemônica norma social há um grau de criação e transformação que não conseguimos precisar. Mesmo a imitação guarda a virtualidade de um devir. Deste modo, drag queens e outras artistas da travestilidade mencionadas ao longo deste trabalho constroem a seu modo um feminino reiterativo e potencialmente transformativo. Assim também são as drag kings, categoria marcada por certa invisibilidade em sua manifestação.

As drag kings se constituem basicamente como travestilidades do feminino em masculino, mas não de forma tão espetacular como as drag queens. Estas priorizam o brilho e exuberância em sua constituição, ao passo que as drag kings seguem personificações mais sóbrias e marcadas por traços que seriam comuns ao masculino, como poses mais comedidas e uma aparente virilidade em seus gestos e modos de ser. Conforme afirma Eliane Berutti (2003), uma definição precisa de quem seria esta persona seria tarefa difícil; do mesmo modo venho alternando nomear ora drag queens ora artistas da travestilidade, visto a diversidade de modos de ser “travestidos” para shows e/ou cotidianamente. 163

Berutti menciona Judith Halberstam, autora que parece ter se dedicado mais à temática dos drag kings e que localiza esta estética dentro da comunidade lésbica e não trans. Deste modo, drag kings se relacionam mais a estetizações de gênero e momentos de shows ou lúdicos do que transformações corporais cotidianas identitárias de femininos para masculinos. Mas cabe a ressalva de que aqui também está presente a ambivalência desta construção de si:

Este performer pode ser uma mulher heterossexual que assume uma persona masculina apenas para fazer o show, uma butch67 que encontra uma forma de expressar sua masculinidade, ou até mesmo um homem gay. Cumpre ressaltar que o drag king não limita sua existência ao palco. Ele pode fazer uso apenas do palco para existir como também, ao inverso, fazer uso do drag para existir. Neste último caso, encontram-se algumas butches que não estabelecem diferenças entre o palco e sua vida pessoal. É interessante comentar aqui que a ausência de uma definição precisa em relação ao drag king dificulta, por exemplo, o trabalho dos jurados em shows de competição. O que julgar – o esforço da transformação por que passa uma pessoa para representar um homem ou a masculinidade inata em algumas mulheres que não precisam se transformar, mas apenas ter um espaço longe da sociedade transfóbica para ser? (BERUTTI, 2003, p.55-56).

Drag kings ou experimentações de travestilidades no masculino parecem também se constituir como uma espécie de subcultura, mas sua visibilidade como espetáculo em bares, boates e outros espaços públicos é bastante restrita. Exemplo de intervenção drag king interessante é a série de foto-performance “Heterotipos”, de Juan Manuel Burgos (20--?). Imagens drag kings de mulheres personificados no masculino, ora encarando a câmera fotográfica ora em poses descontraídas e aparentemente documentais, foram fixadas em banheiros públicos masculinos da cidade argentina de Córdoba. Os homens que entrassem nestes banheiros deparar-se-iam com estas fotografias defronte os mictórios, no momento em que encontrar-se-iam com seus “pênis entre as mãos” 68 (BURGOS, 20--?, p.14). Segundo este artista, “a obra se tornou efêmera, sofreu intervenções e violências por profundas e arraigadas fobias sociais, como também se resgatou sua dimensão estética, lúdica e de diálogo devido à atividade grafiteira que caracteriza estes espaços”69 (BURGOS, 20--?, p.14), reação esta que talvez tenha acontecido pelo questionamento daquele gênero supostamente inquestionável e dominante,

67 Butch constitui-se na identidade de uma lésbica masculinizada e que se assume desta forma. Talvez análogos em português poderiam ser “sapatão” ou “fanchona”, porém estes termos muitas vezes são utilizados de modo pejorativo. 68 Tradução livre, no original: “(…) su pene entre las manos” (BURGOS, 20--?, p.14). 69 Tradução livre, no original: “ La obra se tornó efímera, fue intervenida y violentada por profundas y arraigadas fobias sociales, como así también se rescato su dimensión estética, lúdica y de intercambio debido a la actividad graffitera que caracteriza a estos espacios” (BURGOS, 20--?, p.14). 164

operando uma reflexão, ainda que breve e fugaz, sobre “a masculinidade como uma identidade antiperformativa (como aquele que não se pode representar)”70 (BURGOS, 20--?, p.12), principalmente de forma estética e teatral.

Travestilidade também bastante provocativa, mas de forma e meio de construção diferente foi o grupo Dzi Croquettes. No capítulo dois toquei brevemente em sua trajetória, mas cabe aqui retomar esta travestilidade ambígua e das mais espetaculares. Os Dzi Croquettes tomaram de assalto todo conservadorismo da ditadura militar com seus corpos musculosos e seminus, situados entre os pêlos e a virilidade de uma masculinidade e a delicadeza e exuberância da dita feminilidade, mas sem pretender ser uma síntese destas duas polaridades. Inovaram ao apresentar seus espetáculos inclassificáveis, num misto de dança, teatro, humor e personificações diversificadas. E Dzi era algo indefinido, como muito bem reforçou Rosemary Lobert no título de sua dissertação de mestrado: “A palavra mágica Dzi: uma resposta difícil de perguntar” (1979). Como os próprios diziam, eram gente. Acima de qualquer classificação, eram gente, esforço que podemos tentar estender a todas formas de travestilidade ou modos de subjetivação; somos gente, antes de qualquer outro nome nos encaixotar em um roteiro previamente definido e estruturado, o qual muitas vezes poderá nos causar dor e sofrimento pelas paredes de nossa caixa serem por demais estreitas frente aos movimentos que gostaríamos de fazer.

O projeto estético Dzi Croquettes mantinha profundas relações com a vida cotidiana daquele grupo de pessoas e o modo como se organizavam e se relacionavam. Palco e vida se imbricavam de maneira imprecisa e os diálogos entre estes eram constitutivos de tais âmbitos, em uma espécie de “festa privada dos atores, dentro da representação teatral, que por definição é pública” (LOBERT, 1979, p.29). Como postula Rosemary Lobert (1979):

O espetáculo apresentado pelos Dzi era a expressão pública de um projeto de vida e teatro dinâmico que se formulava, desfigurava, e recuperava sem fim, no curso do tempo e como resposta prática a uma série de fatores internos e externos. A fórmula adotada exigiu de seus próprios autores-atores a contínua manipulação dos princípios que estruturavam a peça, fundamentalmente ambígua; da organização da sua vida comunitária e das estreitas relações mantidas com parte de seu público (LOBERT, 1979, p.02).

70 Tradução livre, no original: “(…) la masculinidad como uma identidad antiperformativa (como aquello que no se puede representar) (BURGOS, s.d., p.12). 165

Focando nesta categoria “gente” e na ambiguidade que o espetáculo e seus corpos possuíam, apresentavam-se da seguinte forma no “Monólogo de Abertura” do espetáculo Dzi Croquettes:

Nem senhores, nem senhoras

Gente dali, dente daqui

Nós não somos homens, também não somos mulheres

Nós somos gente (...) gente computada igual a você

Vocês querem uma flor, nós temos

(...)

Vocês querem uma porrada, nós também temos

Só não temos duas coisas:

Não tem destino e não tem sexo

(...)

Agora você, como está a sua cabeça?

E você?

Agora venham com tudo fazer uma nova cabeça

Porque dentro de já, já, já,

vai pintar uma família,

Muito pirada e muito maravilhosa

(...)

Agora não se assustem e lembrem

que foi uma palavra mágica

DZZZIIII... (LOBERT, 1979, p.30-31).

Uma das ideias centrais da construção do espetáculo Dzi era a figura do andrógino, que era vista em uma espécie de “clímax na discussão ambígua de categorias sexuais radicalizando a proposta de transgressão” (LOBERT, 1979, p.62). Este andrógino tomava corpo como seres masculinos com luvas de boxe e de cetim e gestos tidos como masculinos e femininos. Porém, este projeto de questionamento das normas sexuais e brincadeira com certa ambiguidade dos 166

corpos também era levado a cabo através das diversas figuras que desfilavam pelo palco, indo de masculinos corpos quase nus a carnavalizações e paródias extremamente exageradas em sua personificação de figuras como freiras, cantoras, clowns, entre outras.

Se o espetáculo dos Dzi Croquettes poderia ser tido como transgressivo ou subversivo, assim também o era por certa despretensão. Brincavam propositalmente com o masculino e o feminino, porém tendo como foco central a construção de um espetáculo teatral e uma manifestação estética acima de tudo. Exemplo desta direcionada despretensão estética foi a relação entre os Dzi e a censura da ditadura militar brasileira. Alguns componentes dos Dzi ainda vivos afirmaram no documentário “Dzi Croquettes” (2009), de Tatiana Issa e Raphael Alvarez que, ao contrário de diversos outros grupos teatrais que procuravam colocar em xeque a ditadura, eles não tinham tal objetivo; se o espetáculo foi censurado e tido como subversivo foi pela criatividade, inovação e um estético discurso político. O foco era o show, mas este não estava desconectado do contexto sociopolítico que de certa forma o possibilitava.

Modo diverso de travestilidade é o efetivado por Alisson Gothz, performer paulistano que se transfigura nas mais diferentes formas, tornando principalmente seu rosto em uma literal tela branca na qual pintará e agregará o que melhor lhe aprouver. Gothz marca presença na noite paulistana com seus intervenções em meio ao público, desfilando exóticas figuras por entre os frequentadores de tais espaços. No final do ano de 2010, participou por um mês como artista residente da Galleria Titanik, na cidade finlandesa de Turku. Nesta galeria, realizou uma performance contínua, na qual “se montava (sempre com um visual diferente), e registrava tudo em autorretratos. Como um work in progress, cada foto era pendurada na parede e os visitantes podiam acompanhar não só sua evolução, como também sua produção – inclusive conversando com o artista” (FFW, 2011). Ao final deste período, os autorretratos produzidos ali por Alisson Gothz passaram a fazer parte do acervo da Galeria Titanik.

Além de suas performances e presença circulante em boates e outros espaços, este também se utiliza de recursos midiáticos para alterar e criar suas fotos, ampliando ainda mais suas potencialidades imagéticas e imaginativas. Todo seu trabalho é divulgado em seu site oficial, Planet Gothz, no qual também discorre brevemente sobre sua arte e processo criativo:

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Minhas influências são extremamente amplas, viajando através dos mundos do surrealismo, dadaísmo, pop arte e pop surrealismo. Todo o conceito de alma e corpo ensinado pelo Budismo e Hinduísmo também desempenham um grande papel no meu trabalho, de maneira que eu me vejo não como meu corpo físico, mas como minha alma que usa o corpo como um veículo para minhas experiências de vida. A confusão do gênero e sexualidade também são uma grande parte da estética de meus retratos, nos quais eu tento sempre ser um personagem sem gênero – que as pessoas possam descobrir por elas mesmas quem ou o que eu sou. Sim, eu gosto de confundir as pessoas.

Tudo é feito por mim. Desde a escolha do tema para o processo de maquiagem, desde a escolha de quais sapatos usar até o último retoque digital, tudo é um árduo (mas divertido) trabalho de amor. Os personagens que vivem no interior do Planet Gothz são lunáticos, engraçados, às vezes assustadoras criaturas vivas. Todo mundo está convidado a visitar este planeta – desde que tenham (e isso é obrigatório) um bom senso de humor71 (PLANET GOTHZ, 2011).

Gothz tem como influência direta o já falecido australiano radicado em Londres Leigh Bowery. Bowery foi um inovador artista que transmutava seu corpo em formas extravagantes, ampliando e desfigurando membros, como sua cabeça que adquiria formatos que retiravam sua naturalidade em composição com o corpo humano. Em personificações mais tradicionais, Bowery mantinha uma enorme boca vermelha e/ou uma máscara com olhos vidrados que sempre causava estranheza e por vezes chegava a assustar.

6.2. Eu nasci assim e vou morrer assim

Textículos de Mary, Drag Kings, Dzi Croquettes e Alisson Gothz são apenas alguns exemplos de travestilidades outras, diferentes dos tradicionais masculinos tornados femininos, na maioria das vezes espetaculares e afeitas aos brilhos e refletores. Uma pesquisa sobre a diversidade da travestilidade e sua estetização artística poderia ser levada a cabo, não sem um árduo esforço para se conseguir tal tarefa. Restringi-me a citar estas quatro expressões artísticas

71 Tradução livre, no original: “My influences are extremely wide, travelling through the worlds of surrealism, dada, pop art and pop surrealism. The whole concept of the soul and body taught by Buddhism and Hinduism also plays a great part in my work, in the way that I see myself not as my physical body, but as my soul who uses the body as a vehicle to my life experiences. The confusion of the genders and sexuality are also a big part of the aesthetic of my portraits, in which I try always to be a genderless character - so people can figure out by themselves who or what am I. Yes, I do like to confuse people.

Everything is done by myself. From the choice of subject to the make-up process, from the choice of what shoes to wear until the final digital retouching, everything is a hard (but fun) labour of love. The characters who live inside the Planet Gothz are whimsical, funny, sometimes scary living creatures. Everybody is invited to visit this planet - as long (and that’s mandatory) they have a good sense of humour” (PLANET GOTHZ, 2011). 168

diversas do modelo drag queen apenas para ilustrar a potencialidade da travestilidade enquanto manifestação artístico-cultural.

Além desta diversidade de modos artísticos de travestilidades, há ainda categorias sociais outras, como as crossdressers – homens que se travestem no gênero oposto, mas não necessariamente assumem este feminino como identitário. Seria uma experimentação da travestilidade feminina por diversos tipos de motivações, sendo o simples prazer de se montar talvez a mais importante destas. Crossdresser, aquele que se monta, e crossdressing, o ato de se montar, foram motivos da tese de doutoramento de Anna Paula Vencato (2009), que em trabalho anterior se dedicou à figura das drag queens de Florianópolis. As/os crossdressers se encontram nesta travestilidade, mas não de forma tão pública quanto as drag queens e outras artistas, e possuem organizações como o Brazilian Crossdresser Club (BCC) e suas setoriais regionais. Não trabalhei com esta categoria nesta dissertação pelo meu objetivo ser as figuras de travestilidades artísticas, forma que as crossdressers geralmente não assumem, apesar de alguém que se identifica como crossdresser poder também desenvolver um trabalho de drag queen ou outro artístico qualquer.

Ao fim desta trajetória tenho a sensação de que “há muito mais entre o céu e a terra do que julga esta vã dissertação”, parodiando Shakespeare e uma de suas mais famosas frases dramáticas. Sempre me deparo com o nome de uma artista que para mim é nova ou um local que desconhecia a existência. Este trabalho teve como recorte alguns exemplos de movimentações drag que acompanhei, talvez uma dissertação sobre-drag-queens-em-mim, usando o jeito Rolnik de escrever. E as drag queens e diversas outras artistas da travestilidade estão se movimentando pela cidade do Rio de Janeiro e além dela, trazendo brilho e sua presença espetacular aos mais diferentes espaços de sociabilidade homossexual ou LGBT. Uma drag é uma presença e imprime determinada marca àquele local e acontecimento, dos quais é parte constitutiva e fundamental, ainda que não haja esta nomeação ou percepção tão clara.

Talvez esta heterogeneidade das personagens e localidades drag seja heterotópica: “esses posicionamentos, alguns dentre eles que têm a curiosa propriedade de estar em relação com todos os outros posicionamentos, mas de um tal modo que eles suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto de relações que se encontram por eles designadas, refletidas ou pensadas” (FOUCAULT, 2001, p.414). 169

Detendo-se sobre uma espacialição territorial, Foucault irá identificar as heterotopias justamente como “outros espaços”, talvez fronteiras potentes em transformação e trânsito. Enumerando os princípios que regem as heterotopias, afirmará que estas seriam encontradas em praticamente todos os grupos humanos, não como uma constante universal, mas como “heterotopias de crise”, lugares “privilegiados, ou sagrados, ou proibidos” (FOUCAULT, 2001, p.416) voltados para sujeitos em algum tipo de crise ou ritual ou as “heterotopias de desvio”, as quais abrigam aquelas pessoas que desviam da média da sociedade. Apesar de terem seu funcionamento preciso e localizado, elas podem vir a ter outro tipo de funcionamento e significação em outro momento, como por exemplo, os cemitérios que segundo Foucault passaram de um caráter comum, coletivo e localização no centro das cidades até o século XVIII para em seguida ganhar seus arredores a partir do século XIX, onde cada um possuía sua cova neste espaço agora sombrio e individualizado. Uma heterotopia também pode “justapor em um só lugar real vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis” (FOUCAULT, 2001, p.418), como os jardins, dotados das mais diversas significações e “dos quais derivou seus significados europeus a palavra cultura”72 (CLIFFORD, 1999, p.13, grifos no original). O mesmo espaço guarda diversos sentidos e modos de ser apropriado e/ou utilizado.

As heterotopias também se relacionam com o tempo, seja este aprisionado como nos museus e bibliotecas, ou tornado extremamente fugaz como em festas ou apresentações de drag queens, principalmente porque mesmo havendo a repetição de um número já conhecido pelo público daquela drag, o show nunca será o mesmo e é o calor do momento ao vivo que dará a tônica do espetáculo. Outro princípio que rege as heterotopias é que elas são abertas e fechadas ao mesmo tempo, isoladas e tornadas acessíveis. Neste sentido, uma heterotopia pode ser uma fronteira, como uma drag queen que em sua particularidade e exagero se torna extremamente próxima e distante daqueles a quem é permitido, ou melhor, que se permitem entrar nas boates, no teatro em que está em cartaz, naquele colorido bloco de carnaval, no desfile de uma parada gay ou outros espaços. E finalmente, o último traço de uma heterotopia seria, nas palavras de Michel Foucault, “(...) o papel de criar um espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório ainda qualquer espaço real, todos os posicionamentos no interior dos quais a vida humana é compartimentalizada. (...) Ou, pelo contrário, criando um outro espaço, um outro espaço real, tão

72 Tradução livre, no original: “de los cuales derivó sus significados europeos la palabra ‘cultura’” (CLIFFORD, 1999, p.13). 170

perfeito, tão meticuloso, tão bem-arrumado quanto o nosso é desorganizado, mal-disposto e confuso” (FOUCAULT, 2001, p.420-421). A heterotopia realiza a utopia no espaço real sendo por isto extremamente transformativa, não se permitindo estacar-se ou imobilizar-se.

As drags balizam por aí, transformando os lugares comuns em outros espaços, aparecendo em seus locais habituais como também naqueles locais onde sua figura não seria exatamente esperada. Fazendo-se como uma heterotopias, espacializam-se não sendo apenas simples sujeitos ou personagens, mas verdadeiros acontecimentos73 que ocupam um determinado tempo e local, com uma função específica, mesmo que esta seja a simples despretensão de estar ali. Realizam utopias no real, promovendo coloridos simulacros potencialmente transformativos. E são estes espaços que nos interessam: seriam eles libertários? Não concebamos aqui libertário como uma qualidade intrínseca, mas apenas como um posicionamento que pode ou não o ser desta forma. É o assumido risco da criação, do encontro e da partilha e, sendo este ímpeto, não pode ser nada além de um movimento que se materializa e se perde para dar lugar ao próximo, assim como as heterotopias libertárias que mudam de função no momento mesmo de sua rígida institucionalização.

A drag também é o artista errante que vaga por lugares e não-lugares: ambígua, múltipla, sempre inacabada e aberta ao possível. É uma personagem, talvez das mais livres e complexas, e não uma nova reconfiguração de gênero, como as travestis e transexuais; é circense e, neste sentido, a fala da travesti Agrado, do filme “Tudo sobre minha mãe” (1999) de Pedro Almodóvar, se torna extremamente verdadeira: “As drags estão nos liquidando. Não suporto as drags, são umas nojentas. Confundiram travestismo com circo. Um horror”. Se confundiram travestismo com circo é porque sua arte e sua travestilidade está acima de qualquer proposta coesa de modos de vida que, quiçá, seriam melhores ou mais justos e, como afirma Guattari acerca do grupo francês Mirabelles, “elas não querem ser levadas a sério; elas lutam por algo mais importante do que a seriedade!” (GUATTARI, 1987, p.44). As Mirabelles, aliás, são não apenas

73 Edgardo Castro define em seu “Vocabulário de Foucault” (2009) quatro sentidos para o termo acontecimento na obra do filósofo francês: 1- Acontecimento como novidade ou diferença; 2- Acontecimento como prática e regularidade histórica; 3- Acontecimento como relação de forças, mediando a novidade e as regularidades históricas; e 4- Acontecimento como o neologismo acontecimentalizar, que seria “fazer surgir a singularidade ali onde se está tentando fazer referência a uma constante histórica, a um caráter antropológico ou a uma evidência que se impõe mais ou menos a todos” (CASTRO, 2009, p.26). Destacamos neste trabalho o terceiro e quarto sentidos, que nos parecem mais próximos de um devir e de uma vivacidade dos acontecimentos históricos. 171

contemporâneas como também bastante semelhantes ao anteriormente citado grupo brasileiro Dzi Croquettes (ROLNIK e GUATTARI, 1987, p.45).

Os diversos tipos de travestilidade ressaltam a artificialidade de nossos modos de subjetivação; nada é natural ou pré-determinado, tudo se constrói em redes de poder e jogos de força. Nas drags esta falsificação e estetização da vida se mostram de forma exagerada, ampliando em uma intervenção artística aquilo que muitas vezes nos passa despercebido no cotidiano. Expandidas e estetizadas, nossas construções são deslocadas e rearticuladas de modo que possamos vê-las de outro modo, com outra cor, outro tom. E isto não é necessariamente feito de forma intencional ou será recebido pelo público desta forma. As drags jogam com a ambiguidade e assumem o risco da criação de múltiplos sentidos de si e de sua arte.

Talvez esta seja a importância das drag queens e de diversos outros tipos de travestilidade artística: apontar para as possibilidades constitutivas de si e para nossas teatralidades cotidianas. Como diz Jack Babuscio, “de fato, a própria vida é personagem e teatro, aparência e personificação”74 (BABUSCIO, 1993, p.24): não há nada que não seja construído e mantido permanentemente, mesmo a mais natural das premissas biológicas, por exemplo. Não estou aqui negando instintos, funcionamento biológico dos corpos, entre outros. Apenas temos que pensar que tais premissas foram criadas em determinado momento histórico e fazem parte de um mundo discursivo que as sustentam da forma como estas se apresentam. O que não é criação? O que um dia não foi convencionado com um nome, características, normas de funcionamento, etc? E tudo poderia ser de outro modo, outra lógica, outra nomeação. Vivemos mesmo em uma real ficção.

As drags parecem romper a linha entre ficção e realidade, pois não sabemos ao certo o que é da personagem e o que é do sujeito que a encarna. Pensemos, por exemplo, no misto de lugares que elas ocupam: boates, teatros e espaços artísticos, a Parada do Orgulho LGBT, carnaval de rua, de salão e desfiles de escolas de samba, portas de boates, eventos diversos e animação de festas... São lugares que talvez tenham em comum a participação de LGBTs, mas o lugar de uma artista da travestilidade nestes espaços é diverso: na boate ela está trabalhando, mas sair montada no carnaval também é trabalho? Ou é trabalho e diversão? Acredito que ela não está ali apenas para se auto-promover, para se mostrar ao mundo entre as cores e alegria do carnaval.

74 Tradução nossa, no original: Indeed, life itself is role and theater, appearance, and impersonation (BABUSCIO, 1993, p.24). 172

Mas sua presença na festa do Momo não é como a de um mero folião. Com todo risco de estabelecê-la como o protótipo das transformações artísticas do gênero, arrisco-me a afirmar que nada é o que pode parecer quando se trata de drag queens: os lugares ocupados, a forma de tal ocupação, a constituição de si, as relações estabelecidas... tudo é ambíguo e parece estar em aberto para significar outra coisa. Mas esta vivacidade não está dada a priori apenas por se tratar de uma drag queen; esta se faz na troca entre os participantes, naquele espaço de criação e relação entre a drag e quem quer que esteja ali, jogando e brincando junto com ela. Estaria a drag então exercitando e abrindo espaço para a corporalização de um devir? Mas um devir corporalizado ainda seria um devir?

Estar drag queen me parece um completo exercício de afirmação: afirmação de uma categoria artística muitas vezes não reconhecida por seus pares como arte; afirmação de outros modos de se constituir generificadamente, assumindo-se que se está brincando de gênero e, acima de tudo, afirmação de si, sua arte e valores em uma sociedade que diariamente nos dá violentos e trágicos exemplos homofóbicos, sexistas, racistas entre diversos outros tipos de discriminações absurdas e abusivas. Afirmar-se como um ser estranho e exagerado, mesmo que de modo restrito em determinada comunidade ou grupo que lhe aceita e incentiva, é um ato de bravura. Apesar de acreditar que drag queens são fundamentalmente sujeitos estéticos, não há como separar este âmbito de uma ética e uma política.

Estar drag queen, mesmo que na mais absoluta sutileza, é um convite que todas estas artistas nos fazem naqueles breves momentos em que nos enchem de prazer e nos divertem com seus brilhos e cores. Será que seremos capazes de subir neste salto alto?

173

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EU MATEI MINHA MÃE. Direção: Xavier Dolan, 2009.

PARIS IS BURNING. Direção: Jennie Livingston, 1990.

RAINHAS. Direção: Fernanda Tornaghi e Ricardo Bruno, 2008.

SUZY BRASIL – A DEUSA DA PENHA CIRCULAR. Direção: Renata Than, 2008.