UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CURSO DE PóS-GRADUACSO EM LETRAS

LITERATURA BRASILEIRA E TEORIA LITERÓRIA

O ESPACO DA MULHER URBANA NAS

HISTÓRIAS — CARTA D EE J DSé DEI

AL-ENC AR

RITA DAS GRAÇAS FELIX FORTES

FLORIANÓPOLIS, ABRIL 1992 RITA DAS GRACAS FELIX FORTES

O ESPAÇO DA MULHER URBANéV NAS

HISTÓRIAS — CARTA DE JOSÉ DE

ALENCAR

Dissertação apresentada ao Curso de

Pós-Graduação em Letras - Literatura

Brasileira e Teoria Literária da Uni­

versidade Federal de Santa Catarina

para obtenção do Título de "Mestre em

Letras", área de concentraçãoo em Li­

teratura Brasileira.

Orientador: Prof. Dr. Celestino Sachet

FLORIANÓPOLIS, ABRIL 1992 O ESPACO DA MULHER URBANA NAS HISTÓRIAS — CARTA DEI JOSÉ: DE ALENCAR

RITA DAS GRACAS FELIX FORTES

Esta dissertação -foi julgada para obtenção do título de

Mestre em Letras

área de concentração em Literatura Brasileira, e aprovada em sua ■forma -final pelo Curso de Pós-Graduação em Letras - Literatura Bra­ sileira e Teoria Literária da UFSC. S>cx_<=so-e»--^: Pro-f . Dr. Celestino Sachet Orientador

Pro-fa . Dra. Rita de Cássia Barbosa Coordenadora do Curso

Banca Examinadora

Pro-f. Dr . Celestino Sachet (UFSC) Presidente da Banca

Pro-fa. Dra. Valéria De Marco (USP) Membro da Banca

Pro-fa. Dra. Taxy^V ^e 9 i na Oliveira Ramos (UFSC) Membro da Banca

J ó ü J K ^ p Pro-fa. Dra. Zahiçé Lupinacci Muzart (UFSC) yl Suplente Para

Meu Pai, Minha Mãe e

Minhas Irmas AGRADECIMENTOS

A Cláudia, companheira nesta travessia e amiga para a vida in­ teira.

Ao Pro-f . Sérgio Bellei, pelo apoio.

A D. Ceei Barras, pelo carinho e pela confiança muitas vezes excess iva.

A Bea, pela confiança e amizade.

A Profa. Rita de Cássia Barbosa, pelo empenho.

Ao Prof. Celestino Sachet, pela orientação.

Aos professores do curso.

Ao CNPq.

A CAPES. RESUMO

Esta dissertação, "0 Espaço da Mulher Urbana nas Histórias -

Carta de José de Alencar" tem por objetivo realizar uma leitura dos romances Cinco Minutos, , Lucíola e Diva, de José de

Alencar, tendo como suporte teórico a sua apresentação em -forma de carta e A poética do espaço, segundo Gaston Bachelard.

Inicia 1 mente, procedeu-se a uma análise da estrutura dos refe­ ridos romances, escritos em -forma de carta; a seguir, passou-se à leitura dos respectivos textos, observando-se a relevância do re­ curso ficcional da carta como técnica de apresentação de uma histó­ ria vivida pelo narrador junto à mulher que ama.

A pesquisa percorre, depois, a questão do "espaço-aberto" da sociedade da época e a reclusão forçada no ambiente da família como fatores determinantes da construção de um perfil das personagens femininas Carlota, em Cinco Minutos; Carolina, em A Viuvinha; Lú­ cia, em Lucíola e Emília, em Diva.

A pesquisa concluiu que o perfil da mulher urbana de José de

Alencar apresenta uma "identidade" entre a "representação" no seu modo-de-ser e a "fixação" no seu modo-de-estar. ABSTRACT

The aim of this dissertation, "Q Espaço da Mulher Urbana nas

Histórias - Carta de José de Alencar" ("The Space of the Urban

Woman in the Epistolatory Fiction of José de Alencar") is to undertake a reading of the novels Cinco Minutos (), a

Viuvinha (The Little Widow), Luciola and Diva, by José de Alencar, with the author's own presentation in the form of a letter, along with Gaston Bachelard's A Poética do Espaço (The Poetics of Space) as theoretical supports.

First of all, an attempt was made to carry out a structural analysis of the above-mentioned epistolatory novels, followed by a reading of the respective texts, observing the relevance of the fictional resource of the letter as a technique for telling a story the narrator had lived with the woman he loved.

The study then takes up the question of the "open space" of the society at that time and the forced reclusion in the family environment as determining factors in forming the profile of the female characters Carlota, in Cinco Minutos; Carolina, in A

Viuvinha; Lúcia, in Luciola and Emilia in Diva.

The research concludes that the profile of the urban woman in

José de Alencar shows that fixation in the mode of acting (role- playing) determines the mode of being. SUMtíRIO

INTRODUCaO ...... Oi

CAPÍTULO /I - OS ROMANCES - CARTA DE JOSÉ DE ALENCAR ...... 04

Notas ...... 11

CAPÍTULO II - CARLOTA: 0 FIO DE ARIADNE ...... 13

Notas ...... 28

CAPÍTULO III - CAROLINA: O BRANCO E O PRETO ...... 29

Notas ...... 41

CAPÍTULO IV - LÚCIA: O LAMPIRO h BEIRA DO CHARCO ...... 42

Notas ......

CAPÍTULO V - EMÍLIA: A CONCHA HIBERNADA ...... 78

Notas ...... 97

CONCLUSÕES ...... 99

BIBLIOGRAFIA 101 INTRODUÇSü

0 presente trabalho tem por objetivo perseguir como, ficcio­

nalmente, estabelecem-se os espaços sociais da mulher nos romances

Cinco Minutos, A Viuvinha, Lucíola e Diva, de José de Alencar. 0

que determinou a escolha desses romances foi o fato de terem sido escritos em forma de cartas pessoais, portanto histórias particula­

res, e não romances, conforme afirma várias vezes o narrador de

Cinco Minutos. Outro fator que determinou o estudo desses romances

é que as histórias-carta, traçam quatro perfis diferentes de mulhe­

res e têm por cenário a cidade do na segunda metade

do séc u 1 o XIX.

A partir de uma reflexão sobre a questão espacial da mulher,

nos romances acima citados, buscou-se relacionar o livro A Poética

do Espaço, de Gaston Bachelard, e o espaço ficcional de movimenta­

ção das personagens dessesromances de Alencar. No livro, Bachelard atribui às imagens poéticas um dinamismo próprio que repercutiria

no íntimo dos leitores, em virtude de elas definirem, sempre, si­

tuações e desejos do ser humano. Isso permite sua atualização e seu sentido em qualquer momento histórico. Procurou-se ainda pesquisar

como José de Alencar recorre amplamente a essas imagens nos seus

romances e como a situação espacial determina o destino das perso­

nagens femininas, nos livros em análise.

No capítulo inicial, busca-se estudar a presença da carta como um recurso da narrativa que cria espaços -fechados nos quais os nai—

radores encerram suas personagens que, da perspectiva da estrutura­

ção dos romances, podem se tornar públicos ou não. Os romances Cin­

co Minutos e A Viuvinha são classificados, pelo narrador, de histó­

rias e há inclusive uma recomendação da personagem Carlota para a

destinatária da carta, para que esta não revele seu conteúdo ao

mundo invejoso. Esse recurso tem por objetivo induzir o leitor a

acreditar que ele partilha de uma história íntima dos personagens,

que não extrapola o universo familiar. Ao se inteirar do seu con­

teúdo, o leitor tem a ilusão de estar cometendo uma indiscrição,

por ler cartas que não lhes são destinadas.

^ Na abertura do romance Lucíola, fica patente que a destinatá­

ria transformou a carta em livro, tornando pública a história de

L ú c i a .

No romance Diva, a transformação da carta em livro é sugerida,

mas não confirmada.

Os romances-carta são os que melhor se adaptam á questão do

espaço aberto/fechado uma vez que, no caso de Alencar, a carta é um

espaço fechado da narrativa, mas que pode tornar-se aberto ao

transformar—se em livro.

Nos dois capítulos seguintes, buscou-se analisar, nos romances

Cinco Minutos e A Viuvinha, como os espaços da sociedade e da famí­

lia são fatores inerentes à condição social e ao estado civil das mu 1h e r e s .

No quarto capítulo, discute-se, no romance Lucíola, a questão

dos espaços de circulação permissíveis à prostituta e ainda a im­

possibilidade do seu retorno ao espaço da -família.

No último capítulo, através da análise do romance Diva, é es­

tudado o processo de passagem da adolescente do espaço da -família

ao espaço da sociedade e o -fechamento da mulher ao universo da ca­

sa, após o casamento.

Embora sejam inúmeros os estudos sobre os diversos aspectos da

obra de José de Alencar, não se conhece nenhum que se atenha, espe­

cificamente, aos espaços permissíveis e vedados às personagens -fe­

mininas, nos romances em -forma de carta do referido autor.

\ CAPf TULG I

OS ROMANCES — CARTA DE

aOSé DE ALENCAR

Os quatro primeiros romances urbanos de José Alencar* são es­ critos em -forma de carta endereçada a pessoas que partilham do cír­ culo de relações pessoais do emissor e/ou do narrador*. As persona­ gens, às quais os romances se referem, pertencem também às relações pessoais desse emissor e/ou narrador. 0 recurso da carta acaba por criar, em decorrência da estratégia, uma ilusão de intimidade e de cumplicidade entre narrador e/ou emissor e leitor. Este último pas­ sa a compartilhar da intimidade da vida das personagens ao ser-lhe permitido inteirar—se de suas histórias, no ato de ler a carta que não lhe é destinada imiscuindo-se na intimidade das relações emis­ sor e/ou narrador, destinatário e personagem.

*Serão trabalhados, neste estudo, os romances Cinco Minutos, A Viuvinha, Lucíola e Diva, para os quais utilizaremos as seguintes abreviaturas no corpo do trabalho: C.m., A.v., L., D., respectiva­ mente. Foram utilizadas as edições da editora títica de 1986, para Cineo Minuto» e A Viuvinha; de 1981 para Lucíola e de 1984, para Diva, das quais corresponde a página das citações. Na abertura do romance Cinco Minutos, por exemplo, o narrador afirma que está escrevendo "uma história e não um romance" (p.7).

Este recurso visa tornar a história mais verossímil e seduzir o leitor a partilhar de uma história que não lhe seria destinada. Es­ ta história é endereçada a uma prima que será a sua única conhece­ dora . Há, inclusive, num "post scriptum", uma recomendação da espo­ sa do narrador para que a prima nunca a revele "ao mundo invejoso"

(p.45). A carta é, pois, um recurso usado pelo romancista para es­ tabelecer uma certa proximidade entre narrador e leitor, criando, assim, uma atmosfera de maior realidade e verossimi1hança em torno da história.®

Há ainda outros recursos que contribuem na construção dessa atmosfera. Neste mesmo romance, o narrador é um homem que não se nomeia (logo não se identifica completamente) e que conta a histó­ ria de sua vida amorosa com Carlota. Ele dirige-se por carta a uma prima a qual conhecemos simplesmente por D. Cria-se assim uma aura de indeterminação em torno do remetente e do destinatário da carta.

Com relação ao destinatário, afirma Marisa Lajolo que talvez esteja aí "a importância daquela misteriosa D., que esconde do lei­ tor a identidade da prima", bem como, em minha visão, da indetermi­ nação do narrador, pois ela possibilita ao leitor um maior envolvi­ mento na história narrada. Marisa Lajolo continua, estendendo o mesmo raciocínio ao romance A Viuvinha:

"Por ser uma personagem incógnita, pode facil­ mente confundi»—se com qualquer leitora. Esta prima, que tem o privilégio de conhecer uma personagem de romance, identifica-se com facilidade com a leitora, a quem o livro empresta, por momentos, a vida aven­ turosa e romanesca de Carlota e Carolina".3 6

A possibilidade de maior envolvimento do leitor com o romance

é ainda acentuada pelo -fato de o público leitor de Alencar consti­

tuir-se predominantemente de m u l h e r e s . ^ o recurso da imprecisão na

delimitação de um receptor (do qual só se sabe que pertence ao cír­

culo -familiar do narrador e que é -feminino) -facilita, assim, a sua

i dent i-f i cação com o público leitor.^

Uma outra característica do romance que também contribui neste

processo de i dent i-f i cação entre o leitor e o romance é a aproxima­

ção deste último com a estrutura do conto de -fadas . Con-forme será

visto mais adiante, numa estrutura social burguesa que confere à

mulher um papel na sociedade, em -função de sua ligação legitimada

instituciona 1mente com o homem, é inevitável que um público leitor

burguês e -feminino se identifique, em larga escala, com aventuras mirabolantes que terminem, sempre, ao pé do altar ou no leito con­

jugal, como é o caso deste e dos demais romances, com exceção de

Lu c í o l a .

A Viuvinha caracteriza-se, basicamente, pela mesma organização

discursiva. Trata-se, também de um romance-carta, escrito pelo mes­

mo narrador que não se nomeia, endereçado à mesma prima D. Qs pro­

tagonistas são, desta vez, Jorge e Carolina, mas ao final da narra­

tiva, o narrador dá, à prima e aos leitores (ou leitoras), notícias

das personagens do romance anterior. Este restabelecimento do diá­

logo iniciado em Cinco Minutos é um dado novo, mas serve ao mesmo

objetivo da criação da ilusão de intimidade que constrói a verossi­

milhança. Cria-se a impressão de que há emA Viuvinha um reencontro

entre pessoas conhecidas, dentre elas o leitor (ou leitora) que

compartilham dessa relação de intimidade e que confere autenticida­ 7 de à narrativa.

Em Luciola e Diva, Alencar persiste no uso do recurso -ficcio­ nal das cartas. Agora elas são dirigidas a uma ainda obscura senho­ ra apresentada pelas iniciais 6.M. por um mesmo emissor, Paulo, também protagonista do romance Luciola Persiste a indeterminação, pelo menos no destinatário, destas outras histórias, do qual sabe­ mos unicamente que se trata de uma . Retorna, também, nestes romances, o recurso do reestabe1ecimento do diálogo interrompido com o término do romance anterior. Diva é escrito depois de Luciola e o emissor Paulo, no romance posterior, faz referências à situação em que se encontrou após a morte de Lúcia, protagonista de Luciola.

Além disto, neste mesmo romance, Paulo faz considerações cuja com­ preensão depende do conhecimento, pelo leitor (ou leitora) de his­ tória de Lúcia:

"Envio-lhe outro perfil de mulher, tirado ao vivo, como o primeiro. Deste, a senhora pode sem es­ crúpulo permitir a leitura à sua neta".

Persistem, então, nestes romances, os objetivos da criação de uma atmosfera de intimidade com o leitor que, como recurso ficcio­ nal, visa a que se incline o leitor a tomar a narrativa como teste­ munho rea 1 .

Ocorre, entretanto, uma diferença fundamental entre Luciola e os demais romances. Em Cinco minutos, A viuvinha e Diva, é permiti­

da a intromissão de terceiros na intimidade das personagens femini­

nas somente até um determinado momento: ela cessa quando as moças se casem ou quando se consuma o casamento. Suas vidas podem ser de

conhecimento público, vale dizer, podem ser narradas, até o momento em que uma união instituciona 1mente legitimada as encerra no espaço

•fechado da vida -familiar. 0 conf inamento no lar implica no direito

(e no dever) da preservação da intimidade. Daí o -fato de os roman­ ces encerrarem-se sempre com a consumação da união matrimonial das personagens femininas: sua história narrável termina aí, momento a partir do qual lhes é conferido o direito e o dever do "sepultamen-

to" de suas vidas públicas e do fechamento no recesso do lar.

Em Luciola, não ocorre este cessar da intromissão de terceiros em sua vida pessoal. A intromissão não cessa nem mesmo após a morte da protagonista, uma vez que sua "história" é publicada sob a forma de um romance por decisão de 6.M.. Este é o único dos quatro roman­

ces que se apresenta ficciona 1mente enquanto tal.^ A diferença está

no fato de Lúcia ser uma mulher pertencente a uma categoria social

diferente das demais. Ela não tem o direito à preservação de sua

intimidade, pois não pôde gozar nem mesmo de uma vida familiar. D espaço social que habita é obrigatoriamente um espaço aberto, pú­

blico, devassável , uma vez que sua condição de prostituta veda-lhe a possibilidade de usufruir de um lar que a resguarde da exposição

pública. Lúcia é um "bem comum". Assim não há motivos para que sua vida tenha que ser preservada dos olhares exteriores.

Os escrúpulos que demonstra Paulo com relação à divulgação da

história de Lúcia não refletem nenhum tipo de preocupação quanto ao

devassamento de intimidade da personagem. Referem-se, antes, ao seu

receio de que a revelação da vida mundana de Lúcia possa agredir os

padrões morais da época. Exemplo disso é sua preocupação com o fato

de que as páginas enviadas a G.M. possam cair em mãos de sua neta,

"gentil menina de 16 anos, flor cândida e suave, que mal desabrocha

à sombra materna" (L., p.li). Até mesmo o fato de contar a história de Lúcia no ambiente onde se encontrava esta menina pura seria, na opinião do narrador, uma profanação.

"Embora não pudesse ouvir—nos (a menina), a mi­ nha história seria uma pro-fanação na atmosfera que ela purificava com os perfumes da sua inocência; e - quem sabe? - talvez por ignota repercussão o melin­ dre de seu pudor se arrufasse unicamente com os pal­ pites de emoções que iam acordar em minha alma" (P.li).

Ao contrário, Paulo não parece preocupar-se, em nenhum momen­

to, com a exposição da vida pessoal de Lúcia, pois não se importa com o destino que G.M. possa dar às páginas que lhe envia:

"Escrevi as páginas que lhe envio, às quais a senhora dará um título e o destino que merecerem" (P.11).

Os quatro primeiros romances urbanos de José de Alencar são escritos em forma de carta, espaço fechado que preserva a intimida­

de das persogens. A Viuvinha e Cinco Minutos "permanecem" fechados em forma de carta e esta estruturação do romance faz parte do jogo do autor para seduzir o leitor. Lucíola extrapola o espaço fechado da carta e se torna público, como a vida de Lúcia, a protagonista

do romance. Em Diva a transformação da carta em romance fica como

possibilidade, mas G.M. não confirma se efetivamente o publicou.

José de Alencar insere suas personagens nos espaços reais da cidade do Rio de Janeiro. Esta fusão entre o real e o ficcional re­

forçada por romances em forma de cartas, que os narradores afirmam ser reais e não ficcionais, cria, no leitor, o efeito de verossimi-

nhança perseguido pelo romancista. Isto esclarece porque Alencar

inicia Cinco Minutos, seu primeiro romance, frisando que vai contar 10 uma história e não escrever um romance. Tal aviso não consta da abertura de A Viuvinha, carta endereçada à mesma prima. NOTAS

*Os emissores são, geralmente, também os narradores das histó­ rias de que tratam as cartas. A única exceção ocorre no romanceDi­ va, onde o emissor da carta não é o narrador da história. Paulo, o emissor, simplesmente endereça a uma obscura senhora 6.M. um manus­ crito que recebe de Augusto. Este manuscrito, da autoria de Augus­ to, é que constitui o texto do romance.

^Antonio Cândido aponta em "A Personagem de Ficção" (In CSNDI- DO, Antonio et alii. A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspec­ tiva, 1987) a -função da estruturação do romance na construção da veross imilhança.

"Traço irreal pode tornai—se verossímil con-for me a ordenação da matéria e os valores que a no»— teiam, sobretudo o sistema de convenções adotados pelo escritor, inversamente, os dados mais autênti­ cos podem parecer irreais e mesmo impossíveis, se a organização não os justificar. 0 leitor comum tem freqüentemente a ilusão (partilhada por muitos crí­ ticos) de que, num romance, a autenticidade externa do relato, a existência de modelos comprováveis ou de fatos transpostos, garante o sentimento de reali­ dade . Tem a ilusão de que a verdade da ficção é as­ segurada, de modo absoluta, pela verdade da existên­

cia" (p p .77-78).

Nos quatro romances em análise um dos recursos que confere ve­ rossimilhança e autenticidade à narrativa é a sua forma de carta que, ao permitir ao leitor uma penetração na privacidade, das perso­ nagens, oferece-lhe também a sensação de partilhar da "totalidade secreta da vida", para usar uma expressão de Lukács. (In: A Teoria do Romance Lisboa: Editora Presença, s/d). p.liS

3LAJ0L0, Ma risa. "0 Alencar dos primeiros tempos" (apresenta­ ção à edição citada dos romances.Cinco Minuto« e A Viuvinha, p .£) .

«Daí o fato de Marisa Lajolo utilizar-se, a priori, da palavra "leitora".

5a inda segundo Marisa Lajolo, o público feminino da segunda metade do século XIC disputava os capítulos de Cinco Minutos e A Viuvinha, publicados via folhetim, que eram lacrimejantemente escu­ tados pelas mulheres enquanto costuravam ou bordavam. In: Op.cit., ^Os romances Cinco Minutos, A Viuvinha e Luciola são apresen­ tados enquanto "histórias". Em Diva há uma recomendação de Paulo a 6.M. para que ela dê ao manuscrito que lhe envia a "graciosa moldu­ ra" do livro (p.8), mas o único que efetivamente se anuncia enquan­ to tal é Luciola Neste, G.M. comunica que reuniu as cartas que Paulo lhe enviou e com elas fez o livro:

"Reuni as suas cartas e fiz um livro. Eis o destino que 1hes dou ..." (p .9 > CAPí TULO I I

CARL.OTA : O F" I O DEI AR I ADfMEI

Cinco Minutos, o primeiro romance de José de Alencar, -foi pu­ blicado no -final de 1856, em -forma de -folhetim, no Diário do Rio de

Janeiro, como um brinde de final de ano aos leitores.

"Em fins de 1856, achei-me redator chefe do Diário do Rio de Janeiro Ao findar o ano houve idéia de oferecer aos assinantes da folha um brinde de festa. Saiu um romance, meu primeiro livro, se tal nome cabe a um folheto de 60 páginas. Escrevi Cinco Minuto» em meia dúzia de folhetins que iam saindo na folha dia por dia, e que foram depois ti­ rados em avulso sem nome do autor",i

0 jogo de revelar escondendo ou esconder revelando é uma cons­

tante no romance Cinco Minutos Através deste jogo que envolve as

personagens do início ao final do romance, o narrador procura sedu­

zir o leitor para que ele participe do enigma e da sua posterior revelação.

0 enigma é criado, já na abertura do romance endereçado a uma

prima, que permanecerá incógnita como única conhecedora da histó­

ria 14

Desde o primeiro parágrafo, o narrador cria uma atmosfera de

privacidade ao endereçar o romance em forma de carta a uma prima misteriosa, da qual conhecemos apenas a inicial D. Este recurso

cria no leitor a ilusão de que ele está entrando na intimidade do narrador ao ler uma carta dirigida a outra pessoa. Alencar reforça esta idéia de intimidade quando o narrador diz que vai contar uma história pessoal, exclusivamente a sua prima, e não escrever um ro­ mance que publica. Este recurso procura subtrair do romance a cate­

goria de ficção e dar a ele um tom mais verossímil. 0 narrador afirma várias vezes que:

"É uma história curiosa a que vou lhe contar, minha prima. Mas é uma história e não um romance". (C.m ., p .7)

Outro elemento que visa dar estatuto de verdade à história é que ele se refere a aspectos característicos da vida do Rio de Ja­ neiro da época, partilhado com o público leitor do seu meio social.

Ao nível do enredo, o jogo de revelar escondendo inicia-se já

no primeiro encontro entre o narrador e Carlota, naquele momento, ainda desconhecidos um para o outro. 0 encontro ocorre à noite, no

fundo e no canto de um ônibus. Apesar de o ônibus ser um espaço pú­

blico, a noite, o fundo e o canto estabelecem um clima de intimida­

de e de privacidade que excluem o mundo exterior. Mas, se por um

lado a noite escura, o fundo e o canto do ônibus criam esta intimi­

dade, por outro lado, a desconhecida evita desvelar-se aos olhos de seu companheiro de viagem: ao mesmo tempo em que eles dividem e

desfrutam da intimidade que a noite, o fundo e o canto do ônibus

proporcionam, a desconhecida permanece escondida por um véu e por um chapéu que a protegem de uma exposição incoveniente a uma moça

de f amí lia.

Segundo Gaston Bachelard,

"todo canto... todo espaço reduzido onde gostamos de encolhe»—nos, de recolhe»—nos em nós mesmos é para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um quarto, o germe de uma casa" .2

0 narrador e a desconhecida desfrutam deste germe de um quarto

de que fala Bachelard: ela permanece velada pelo véu e pelo chapéu.

□ ambiente serve, simu1taneamente, para aproximá-los na mesma soli­

dão e para que ela, Carlota, instigue a imaginação do narrador sem

efetivamente revelar-se,

"Além de a noite estar escura, um maldito véu que caía de um chapeuzinho de palha não me deixava a menor esperança".

0 véu é um adereço importante ao vestuário da personagem. Ele

funciona como barreira, evita que ela se revele, mas não impede a

insinuação. Para Jean Chevalier, o véu

"ocultando apenas pela metade, convida ao co­ nhecimento. (...) 0 símbolo também se define pelo esoterismo: aquilo que se revela, velando-se, aquilo que vela revelando-se"

Esta simbologia do véu adequa-se à constituição da personagem. Ca»

lota oculta-se para instigar o narrador a conhecê-la, ao mesmo tem­

po em que ela se revela o suficiente para seduzi-lo. Há um clima de

ocultamento revelado, ou de semi-revelação, que seduz o narrador e

cria a tônica do romance. 16

Mas o jogo não termina aí. Há momentos em que o narrador se cansa da esquivança de Carlota. Nesses momentos, ela se torna ousa­ da, e recupera o clima de sedução. No primeiro encontro, quando o narrador passa dos limites estabelecidos pelo jogo de sedução de

Carlota, ela se fecha. Porém, quando o narrador se desinteressa do

"jogo" e quebra a intimidade e o clima de sedução do momento, Car

lota o traz de volta à intimidade velada do ônibus tocando seu bra­

ço e restabelecendo o clima de sedução inicial.

"Já o meu pensamento tinha-se lançado a galope pelo mundo da fantasia, quando de repente fui obri­ gado a voltar por uma circunstincia bem simples. Senti no meu braço o contato suave de um outro bra­ ço" . (C.m ,, p .8)

□u seja, ao mesmo tempo em que a desconhecida o mantém cons­

ciente da sua presença, ela se nega a estabelecer um contato mais estreito, mas também não permite que o narrador vá embora rompendo

a intimidade daquele momento.

"Vou descer, não a incomodarei mais. Ditas es­ tas palavras rapidamente, de modo que só ela ouvis­ se, inclinei-me para mandar parar. Mas senti outra vez a sua mãozinha, que aperta­ va docemente a minha, como para impedir—me de sair" .

A noite, o fundo, o canto, o véu e a esquivança, alternada com

a ousadia, conferem à desconhecida uma auréola misteriosa e fasci­

nante que leva o narrador a imaginar que ela tanto pode ser feia

como maravilhosa. Alencar atém-se a cada detalhe para criar uma at­

mosfera enigmática e atraente neste primeiro encontro. 0 perfume é

um destes detalhes. A desconhecida exala sândalo que, como afirma o 17 narrador, remete ao desconhecido, ao oriente de mulheres misterio­ sas e sensuais escondidas por seus véus, como a desconhecida ao seu lado.

Depois, a desconhecida some como uma sombra, mas não sem an­ tes sussurrar a -frase "non ti scordar di me"! (não te esqueças de mim) da ópera, II Trovatore, de Verdi . Esta -Frase estabelecerá um

-fio condutor nas relações entre a desconhecida e o narrador . Este passa a procurar, em todas as mulheres vestidas de preto, usando chapéu e véu, a misteriosa desconhecida, é atrás de uma "sombra impalpável" (C.m., p.10) que o narrador passa a correr. Ele busca um vulto que, de repente, possa revelar—se como sendo a mulher que ele procura. 0 segundo encontro dá-se em um baile, onde o narrador

é visto pela misteriosa mulher mas não consegue identificá-la e mais uma vez ela sussurra-lhe a frase: "Non ti scordar di me". (C. m . , p . 11) .

Ainda desta vez, ele consegue apenas vislumbrar seu vulto; vestido de preto, entrando no interior de um carro:

"corri, e apenas tive tempo de perceber as folhas de um vestido preto, envolto num largo burnous de seda branca,que desapareceu ligeiramente na esca­ da". (C.m., P.1E)

0 salão de baile, um espaço ainda familiar, porque no inte­

rior da casa embora mais amplo que o ônibus, é ainda um espaço fe­ chado que permite à misteriosa desconhecida esquivar—se e desapa­

recer no momento propicio.

0 terceiro encontro dá-se no teatro, espaço público ao qual

todos os pagantes têm acesso, só que, mesmo aí, onde, além dos ar­

tistas, as mulheres bonitas vão se exibir, a desconhecida, como no

ônibus, permanece no fundo, em um camarote, e invisível aos olhos 18 da platéia, é a misteriosa pessoa com quem conversa a velha sentada

à -frente do camarote .

"A velha estava s>ó, na frente do camarote, e de vez em quando voltava-se para trocar uma palavra com alguém sentado no fundo". (C.m., p.13)

Ainda desta vez, a misteriosa mulher de preto não se volta quando o narrador lhe dirige a palavra. Ao contrário, torna-se mais esquiva, abaixando o véu e aconchegando-se a uma capa. Neste momen­ to, há no romance uma fusão entre o drama de Marguerite Gautier, narrado na ópera Traviata que está sendo apresentada no teatro, e o drama da esquiva personagem do livro. Como Charton (cantora lírica que apresenta a peça), a desconhecida começa a chorar ao ouvir o desabafo do seu apaixonado. Este comportamento só é esclarecido posteriormente. Também, desta vez, ela recusa mostrar—se, esconde- do-se sob o véu.

0 quarto encontro ocorre em uma noite escura, como o primeiro, envolto em forte nevoeiro, onde tudo se perde nas trevas e na ne­ blina, tornando a atmosfera irreal e fantasmagórica. A única luz é a das janelas que lembram um pequeno farol e vêm do interior da ca­ sa onde se encontra a mulher desejada. Esta luz é a única referên­ cia do narrador num mundo desmaterializado pela noite escura e pelo nevoe i ro .

"A limpada à janela é o olho da casa. A lâmpa­ da, no reino da imaginação, jamais se acende do lado de fora. é luz enclausurada que só pode filtrar do lado de fora".^ í 9

A luz da janela, é mais que o olho da casa: é o farol que o condu­ zirá ao objetivo arduamente perseguido.

Esta imagem da luz, como registro da existência de um interior ainda velado ao narrador, remete à dialética interior/exterior, de que trata, Bachelard

"0 exterior e o interior formam uma dialética de esquartejamento, (...). Ela tem a nitidez crucial do sim e do não, que tudo decide".5

0 exterior, registrado por Alencar, é a vastidão do mundo que, mergulhado no escuro da noite e na imaterialização da cerração, é anulado momentaneamente. Do interior vem a luz que norteia, a segu­ rança e o conforto que abrigam o homem da vastidão do mundo e, principa1 mente, é no interior que está a mulher amada, a sombra im­ palpável que, neste momento, quando tudo é fantasmagórico e imate­ rial, pode tornar—se concreta. Enquanto tudo à sua volta se desma­ terializa, a mulher amada, que até então era uma sombra, vai se ma­ terializando. Momentaneamente, quando Carlota abre a porta e o nai— rador entra em sua casa, deixa de existir o exterior: o universo passa a resumir-se no interior. Neste sentido, a casa pode signifi­ car o interior do indivíduo, onde momentaneamente ele pode criar uma realidade interior mais rica e mais completa que a do mundo ex­ terior. Segundo Georg Lukács, para o romance do século XIX há uma

"realidade puramente interior mais ou menos acabada e rica em conteúdos que entra em concorrência com a do exterior, e que possui em si própria uma vida ri­ ca e movimentada, e se considera, na sua espontânea confiança em si mesma, como única e verdadeira rea­ lidade. . . Dentro desta perspectiva de Lukács, a negação do mundo exterior, meta-forizada por Alencar na cerração e na escuridão, tornam mais concreta uma realidade puramente interior

A voz de Carlota é o outro -fio condutor na escuridão. Esta, como a luz, vem de dentro da casa e da mulher buscada pelo narra­ dor. Como no primeiro encontro, é a voz que o leva à desconhecida e, ainda desta vez, é através da música de Verdi que eles estabele­ cem, de maneira indireta, seu primeiro diálogo.

Continua ainda o jogo de Carlota: insinuar se sem se mostrar.

Mesmo quando ela abre a porta, ele sente apenas sua sombra na sala.

Neste momento, em que finalmente a personagem deve revelar-se há uma profusão de imagens veladas e não de desvelamento. Ela aparece como um vulto de mulher, quase um fantasma. Quando, finalmente, ela mostra o rosto, o narrador consegue apenas vislumbrar uns olhos ne­ gros, um anel de cabelos negros que, como o negro da noite, do véu, e das roupas até então usadas como um esconderijo enigmático, mais confundem e enredam do que esclarecem e revelam. Mas ela fecha os olhos do narrador com um beijo e desaparece entrando na parte mais

íntima da casa, espaço ao qual ele não tem acesso. A esquivança da mulher continua a ter um poder de fascínio sobre o narrador.

Vimos que, mesmo tendo penetrado o universo doméstico de Car­

lota, o narrador continua enredado, üs olhos negros, como o negro da noite, bem como o véu, os cabelos e as roupas, envolvem Carlota num mistério que a torna mais uma sombra, um fantasma, do que uma pessoa. Dentro da simbologia de Jean Chevalier,

"O preto como evocação da morte está presente nos trajes de luto. . . (...) Enquanto imagem da mor— te, da terra, da sepultura, ü preto está também li­ gado à promessa de uma vida renovada, assim como a noite contém a promessa de aurora, e o inverno de primavera...

é esta promessa de transformação que se instaura do romance, a par­ tir do encontro em Petrópolis.

Como Ariadne®, Carlota vai desenrolando um -fio que serve de trilha para o narrador segui-la, mas serve também para enredá-lo em uma teia. 0 início desta teia é o encontro no ônibus, quando ao partir ela sussura a frase "Non ti scordar di me!", à qual ela re­ torna no segundo encontro, antes de mais uma vez, desaparecer como uma sombra. A continuidade do fio é um lenço, impregando de sândalo e molhado de lágrimas, que ela entrega ao narrador na ópera, bem como o primeiro e, principalmente, o segundo bilhete que leva o narrador até ela em Petrópolis. Tanto os bilhetes como o lenço tra­ zem apenas a letra "C". Finalmente, ele recebe uma caixinha com as iniciais C.L. na tampa, o que aumenta as informações sobre a miste­ riosa mulher. Mas, todo o processo de revelação faz-se de maneira lenta, como o entreabrir de um véu ou de um quarto, que dará acesso a outro. A caixa está fechada e a chave, está, por sua vez, lacrada em uma sobrecarta:

"corri ao meu quarto e achei sobre a mesa uma caixi­ nha de pau-cetim; na tampa havia duas letras de tar­ taruga incrustradas: C.L. A chave estava fechada em uma sobrecarta com endereço a mim";

ü narrador abala-se com as possíveis revelações contidas no cofre, embora estas tivessem sido arduamente perseguidas.

"Parecia-me que naquele cofre perfumado estava encerrada a minha vida, o meu amor, toda a minha fe­ licidade". (C.m., p . 23) Dentro da cafre está uma carta e, nesta, estão narrados os fa­ tos determinantes da vida de Carlota, não só para ela que os conta ao narrador como para ele que toma conhecimento destes fatos. Na carta, Carlota conta seu passado e seu presente e alude a um futu­ ro indeterminada que vai depender do narrador. Assim, ela o convida a integrar sua história daí em diante.

Ao endereçar um cofre ao narrador, contendo, ao invés de um bem de valor material, a história mais íntima de sua vida, Carlota presenteia-o com o que há de mais íntimo e precioso para ela. As revelações contidas na carta dão continuidade ao fio tecido com tanto cuidado: Carlota conta a história de seu amor pelo narrador, nesse momento um desconhecido, iniciado quando ela o vi em um bai­

le, o que justifica suas atitudes simultaneamente ousadas e esqui­ vas. A doença, de que é portadora segundo ela, inviabiliza esse amor e obriga-a a partir no dia seguinte, para a Europa, em busca

da cura. Entretanto, ela propõe que ele a acompanhe na viagem caso seu amor seja verdadeiro.

Esta carta não é uma revelação pública. Apenas o narrador, e posteriormente, a prima a quem ele se dirige, tomam conhecimento do seu conteúdo reforçando no leitor, a idéia de parti 1hamento dos se­

gredos da personagem.

Aberto o cofre, os segredos, até então guardados com tanto ze­

lo, são parcialmente revelados. Os véus que os ocultavam, se não se

rasgam, pelo menos se entreabrem.

Mesmo depois das revelações, Carlota continua a tecedura da sua teia, tendo ainda o cuidado de manter o fio condutor atrás de si, mas agora não mais de forma velada, pois já tem certeza do su­ cesso de seu plano de sedução e de seu poder sobre o narrador. A

garantia da confiança de Carlota em seu poder de enredar o narrador

em sua teia confirma-se quando, antes de partir para a Europa, ela

fica sabendo das peripécias que ele fez para chegar ao Rio de Ja­

neiro a tempo de viajar com ela

"sei tudo quanto fizeste por minha causa e adivinho o resto". (C.m., p.41)

Ainda no rastro dela, ele encontra em cada escala de viagem o se­

guinte bilhete:

"sei que tu me segues. Até logo". (C.m., p.41)

Ao descrever o encontro na Europa, o narrrador o faz de manei­

ra a cercar Carlota de uma atmosfera etérea, imaterial, como se ela

ainda estivesse envolta numa bruma particular e inascessível a ele:

"Um quer que seja de celeste e vaporoso a cer­ cava, como se a alma exalando-se envolvesse o seu corpo". (C.m., p .42)

As barreiras de véus, cantos escuros, sombras, noites e até mesmo

as da "exalação da alma" só caem quando ele beija Carlota pela pri­

meira vez: ele recebe a alma de Carlota moribunda e a restitui

transmigrada de vida, como o faz o princípe em A bela adormecida ou

em Branca de Neve: "Apertei-a ao peito e colei os meus lábios aos seus. Era o primeiro beijo de nosso amor, beijo cas­ to e puro, que a morte ia santificar (...) Oh! Quero viver! Exclamou ela". (C.m., p.43) Após o beijo e o restabelecimento de Carita, eles viajam pela

Europa. Desta viagem eles vão ajuntando elementos para a constru­

ção de seu ninho (como o fazem os pássaros com folhas e gravetos) :

"Trouxemos das nossas peregrinações um raio de sol do Oriente, um reflexo de lua de Nápoles, uma nesga do céu da Grécia, algumas flores, alguns perfumes, e com isto enchemos o nosso pequeno universo". (C.ffl., p . 43) "Depois, como as andorinhas que voltam com a primavera para fabricar o seu ninho no campanário da capelinha em que nasceram, apenas ela recobrou a saúde e as suas belas cores, viemos procurar em oos- sa terra, um cantinho para esconder esse mundo que havíamos criado". (C.m., pp.43/44)

Retornados ao Brasil, eles se estabelecem, não em um lugar co­ mum, mas "na quebrada da montanha", em

"um lindo retiro, um verdadeiro berço de relva sus­ penso entre o céu e a terra por uma ponta de roche­ do". (C.m., P.44)

Como o ninhos de um pássaro, este "lindo retiro" encontra-se

"suspenso entre o céu e a terra".

0 ninho, nas palavras de Bachelard, faz parte dos sonhos pri­ mordiais porque representa o desejo de aconchego e segurança busca­ do pelo homem.

"No mundo dos objetos inertes, o ninho recebe uma valorização extraordinária. Queremos que ele seja perfeito, que traga a marca de instinto animal bas­ tante seguro"

á este ninho perfeito e seguro que o narrador e Carlota tentam

construir. Deste sonho primordial de segurança representado pelo

ninho, Alencar se vale para criar, no romance, uma idéia de lugar per-feito, rústico e seguro. Assim como os passarinhos, o narrador e

Carlota trazem da viagem lembranças perfeitas que serão o material sobre o qual se assentará esta construção aquela que constituirá também o universo da -fêmea, no qual elas procriarão.

0 narrador utiliza-se também da metáfora do "berço de relva", em citação transcrita. 0 berço é o primeiro espaço ocupado pelo ho­ mem fora do útero, é um espaço ainda reduzido que protege a criança da vastidão do mundo. 0 "berço de relva" como o ninho remete à

idéia de um espaço aconchegante e seguro, para o qual os amantes podem se retirar e resguardar o seu amor dos perigos do mundo.

0 ninho e o canto do ônibus remetem ao sonho primordial da ca­ bana mítica onde tudo é simples, primitivo e, por isto mesmo, per­ feito e seguro. A cabana, como o ninho,

"é tão simples que não pertence mais às lembranças (...). Pertence às lendas, é um centro de lendas".*®

é neste mundo, que só tem uma tênue referência na realidade (a ponta do rochedo que sustenta o retiro), que Carlota e o narrador passam a viver. Assim é descrita a casa:

"Uma linda casa, toda alva e louçã, um pequeno rio saltitando entre as pedras, algumas braças de terra, sol, ar puro, árvores, sombras, ... eis toda a nossa riqueza". (C.m., p.44)

0 romance termina negando o mundo civilizado e fazendo uma apologia do mundo primitivo ligado aos sonhos mais singelos e ao amor. A civilização e o meio urbano são classificados como uma per— da de tempo. "... mas ainda hoje estaria perdendo o meu tempo a passear pela rua do Ouvidor e a ouvir -falar de polí­ tica e teatro". (C.m,. p . 44)

0 canto, o cofre, o ninho, a cabana, portanto, são todas ima­ gens, que remetem a um passado longínquo e

"com a explosão de uma imagem, o passado lon­ gínquo ressoa de ecos".^

Cinco Minutos é o primeiro romance de Alencar e inicia um per­ fil da sociedade do Rio de Janeiro ao qual ele retorna em todos os seus romances urbanos. Já se encontra aqui presente a delimitação dos espaços sociais da mulher pela dicotomia entre o aberto e o fechado, entre a rua que ela freqüenta durante um período bem deli­ mitado, e a casa, onde ela se reclui após o casamento.

Cinco Minutos, segundo o narrador, é uma carta que tem por ob­ jetivo responder à prima D. "porque esse moço elegante, como teve a bondade de chamai—me, fez-se provinciano e retirou-se da sociedade, depois de ter passado um ano na Europa" (A.v., p.44). Nessa carta, há um desvelamento interpessoal das personagens que deveria perma­ necer velado à sociedade. Alencar, através do narrador, procura criar no leitor, ou leitora, a ilusão de que ele está lendo uma carta pessoal, endereçada a outra pessoa, e não um romance.

Nessa carta, o leitor encontra outras cartas, bilhetes, lenços perfumados e a revelação de segredos que não lhes são destinados, é como se o leitor ou leitora estivesse violando a intimidade e a correspondência de outrem ao se inteirarem de segredos, até etão, muito bem guardados. Parece que Alencar atinge seu objetivo de en­ redar o leitor. Para Marisa Lajolo "Esse leitor lê o romance não como quem li um livro escrito para ser um romance, mas como quem surpreende uma conversa que não lhe é dirigida"*® NOTAS

i-SODRé, Nelson Wernek . A História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. p .220.

^BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p.145.

^CHEVALIER, Jean et alii. Dicionário de Símbolos. Rio de Ja­ neiro: José Olympio, 1990. p .951.

^BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p.51.

Sldem, ibidem, p.215.

^LUKriCS, Georg. A Teoria do Romance. Lisboa: Presença, P. 117.

^CHEVALIER, Jean et alii. Dicionário de Símbolos. Rio de Ja­ neiro: José Glympio, 1990. p .743.

ÖAriadne: Personagem da mitologia grega que -fornece a Teseu um ■fio, que possibilita ao herói escapar do labirinto, no qual estava perdido, depois de matar o Minotauro.

^Idem, ibidem, p .104.

ÍOj dem, ibidem, p .48.

^^Idern, ibidem, p.2.

ISlajolQ, Marisa. "0 Alencar dos primeiros tempos" (apresen­ tação à edição citada dos romancesCinco : minutos e A viuvinha, P • 5 C P » R í T UI_O I I I

CARÜLINA : O BRANCO EL O RRETO

No romance Cinco Minutos, a história passa-se inicialmente em espaços semi-púb1icos até que, após o casamento entre o narrador e

Carlota, desloca-se para o espaço -fechado da casa, onde termina o romance. Em A Viuvinha, sempre que Carolina protagoniza as cenas, estas acontecem em espaços -Fechados, como a casa e o quarto, ou em espaços semi-abertos, como o canto do jardim e a igreja. Neles, Ca­ rolina e Jorge desfrutam de uma intimidade que exclui o mundo exte­ rior, como, de resto, também ocorre em Cinco Minutos.

A história de Jorge é oposta à de Carolina e é pública. Somen­ te ao conhecê-la, quando já está desiludido com o mundo exterior, é que Jorge decide retirar-se da sociedade. Carolina freqüenta, du­ rante um curto período de tempo, os salões da Corte somente por acreditar que Jorge está morto. Assim que eles se reencontram, ela imediatamente desliga-se desta sociedade.

Alencar, desde o primeiro parágrafo do romance, procura criar um clima de intimidade, que envolve a casa e todo o ambiente ao re­ dor, numa atmosfera particular e relativamente desvinculada do mun­ 30

do exterior: a casa situa-se longe da cidade e é descrita no passa­ do, o que a protege, e às personagens, das mudanças provocadas pelo

correr do tempo e pela chegada do desenvolvimento urbano. Assim,

cria-se uma atmosfera de recolhimento e aconchego que se sustentam

por estarem deslocadas da realidade do momento presente da narra­

ção .

"Se passasse há dez anos pela praia da Glória, minha prima, antes que as novas ruas que abriram ti­ vessem dado um ar de cidade às lindas encostas do morro de Santa Tereza, veria de longe sorrir-lhe en­ tre o arvoredo, na quebrada da montanha, uma casinha de quatro janelas com um pequeno jardim na frente". (A.v., P.47)

Carolina aparece, inicialmente no romance, como um vulto numa janela da casa. Quando ela encontra Jorge, eles vão para

"um canto do jardim, onde a sombra era mais es­ pessa " . (A , v . , P 47)

Ou seja, da intimidade do quarto, Carolina, em companhia de Jorge,

vai para o jardim, espaça fora da casa, mas que continua resguarda­

do por ser o canto mais sombrio, portanto mais indevassáve1. Caro­

lina está protegida do mundo pela encosta, pelo jardim, pelo canto

e pela sombra espessa. Ela está em um universo fechado e o namorado

é seu único elo com o meio social.

Carolina representa, para Jorge, a negação de um meio social,

do qual ele já se saciou e, por isso, quer desligai—se.

"Durante três anos, o moço entregou-se a esse delírio do gozo que se apodera das almas ainda jo­ vens; saciou-se de todos os prazeres, satisfez todas as vaidades. (...) Tudo que até então lhe parecera cor-de-rosa tornou-se insípido e monótono..." (A.v . , PP.48-49) 31

Jorge é um moço gasto pelos prazeres da vida mundana, que quer encontrar um canto onde possa desligar-se do meio social. Para Ca- rolina, ao contrário, o recolhimento é inerente à sua condição de moça simples e casadoura. A casa, o espaço -fechado, é seu lugar na­ tural, até que, graças ao casamento, ela venha a assumir um papel social de mulher. 0 marido deve representar sua realização pessoal, levando-a a prescindir do mundo exterior.

A caracterização das duas personagens estabelece o padrão du­ plo de moralidade que ainda vigora na segunda metade do século XIX.

Jorge, gasto pelos prazeres do mundo, descobre afinal, uma menina para casar-se, quando a vida social o enfarou. Carolina, preservada para o casamento, encontra em Jorge a viabilização das suas aspira­

ções -femininas de ser esposa e mãe. Assim está organizada a socie­ dade burguesa do Rio de Janeiro (e do Brasil) na época de José de

A l encar.

"0 padrão duplo de moralidade, característico do sistema patriarcal, dá também ao homem todas as oportunidades de iniciativa de ação social, de con­ tatos diversos, limitando as oportunidades da mulher ao serviço e às artes domésticas, ao contato com os filhos".1

è neste padrão duplo de moralidade que se inserem Jorge e Ca­

rolina. Até o casamento, ela, radicali zando Carlota, freqüenta ape­ nas a igreja, onde Jorge a conhece.

Por sentir—se desencantado da vida mundana, Jorge vê em Caro­

lina uma jóia rara e valorosa por sua singeleza. As mulheres da so­ ciedade estampam um brilho falso. Todas as imagens usadas para des­ crever Carolina sugerem pureza, autenticidade e simplicidade. Caro­ lina é menos vulnerável às trans-formaçrões da sociedade, o que a torna diferente das mulheres com as quais Jorge havia convivido.

Carolina preserva o comportamento e a maneira de viver das mulheres de um passado menos permeável às influências estrangeiras, quando as mulheres só freqüentavam a igreja. Estas transformações são pro­ vocadas pelo crescimento de uma sociedade urbana que se espelha na européia. 0 narrador, falando a respeito da simplicidade da casa de

Caro1i na d i z:

"Aí nessa sala passavam as três pessoas de que lhe falei um destes serões de família, íntimos e tranqüilos, como já não os há talvez nessa bela ci­ dade do Rio de Janeiro, invadida pelos usos e costu­ mes estrangeiros ". (A.v., pp.47-48)

Jorge, ao conhecer Carolina, encontra uma mulher que não foi contaminada pelas transformações sociais. Assim como a casinha onde vive, Carolina preserva um comportamento do passado que nega as transformações advindas do crescimento urbano. Jorge, ao encontrá- la, pode negar o seu presente e fugir da civilização. Quando ele a vê pela primeira vez na igreja, ela emana singeleza e suavidade:

"Nesse momento viu ajoelhada ao pé da grade que se­ para a capela, uma menina de quinze anos, quando mui to: o perf i1 suave e de1i cado, (...) Começou contemplar aquela menina como se fosse uma santa". (A.v., p.49)

José de Alencar vai construindo a personagens de tal maneira que, para Jorge, tudo que não vem de Carolina, ou não remete a ela, parece passageiro. Somente Carolina e a vida retirada com ela têm si gni f i ca d o . "0 moço, -fatigado dos prazeres ruidosos, fazia agora de sua felicidade um mistério". (A.v., p . 50)

Essa felicidade só é possível, no contexto romântico da metade do século XIX, quando dividida com uma donzela, que antes de conhe­ cer o homem ao qual vai dedicar sua vida, ainda não foi "crestada" pela sociedade e, por isto, tenha permanecido pura e digna do amor.

"Nenhum dos seus conhecidos sabia de seus pro­ jetos; ocultava o seu tesouro, com medo que lho rou­ bassem; escondia a flor dü sentimento que tinha den­ tro d'alma, receando que bafejo do mundo onde vivera a viesse crestar" (A.v., p .50>

Carolina tem que permanecer escondida do mundo pela distância da casa em relação à cidade, pelo jardim que mantém a casa indevas- sável, pela casa e ainda pelo quarto. Quando se expõe, ela o faz somente para Jorge que, como noivo, conquistou esse direito. Mesmo assim, esse "desvelar" ocorre no canto do jardim, à sombra e ao anoi tecer.

Até o casamento, Carolina permanece velada aos olhares indis­ cretos da sociedade e , de certa forma, ao próprio noivo. No dia do casamento, ela permanece uma figura etérea envolta em rendas e véus como a santa do primeiro encontro na igreja da Blória.

"Envolta nas suas roupas alvas, no seu véu transparente preso à coroa de flores de laranjeira, os seus olhos negros cintilavam com um fulgor bri­ lhante entre aquela nuvem diáfana de rendas e se­ das ". < A.v . , p . 60)

0 jogo de esconder revelando continua. Jorge não entra abrup­ tamente no quarto virginal da esposa. Primeiramente, ele vislumbra o quarto e a seguir ele entreabre a porta. Só então afasta a corti­ na e entra. A cama e a noiva se encontram envoltas em véus e suge­ rem sem mostrar.

"... A mobília era tão simples e tão elegante como o aposento: dois consolos de mármore, uma conversadei- ra, algumas cadeiras e o leito nupcial, que se en­ volvia nas longas e alvas cortinas, como uma virgem no seu véu de castidade". (A.v., pp.61-62)

Desde os primeiros parágrafos do romance, há um jogo de sen­ sualidade velada, que deveria culminar no momento do encontro nup­ cial, já que agora Carolina é uma mulher casada e ao marido ela de­ ve se mostrar. A integridade moral do jovem, fundamental para o de­ senlace do romance, faz com que Alencar protele mais uma vez o ple­ no desvelamento de Carolina a Jorge, agora seu marido.

A primeira impressão que Jorge sente ao ver Carolina é a de que ela é uma santa. Quando, das preparativos para o casamento, Ca­ rolina está toda diáfana, envolta nas rendas do vestido de noiva,

"os seus olhos negros cintilavam com um fulgor brilhante". (A.v.,

P .60) que contrasta com a virginal grinalda de flores de laranjei­ ra . Depois, já casada e ainda virgem, seu corpo "desenhava as vo- luptosas ondulações dessas formas encatadoras". (A.v . , p.62) sob a transparência da cambraia. A sensualidade de Carolina é descrita num crescente até o leito de núpcias. Com o desaparecimento de Jor­ ge, ela permanece virgem. Mas viúva!

Carolina acorda, no dia seguinte ao casamento, na condição in­ versa á da Bela Adormecida, Branca de Neve e outras personagens dos contos de fadas, que após a letargia da puberdade, despertam para a vida adulta e a realização sexual. Este ressurgir é provocado por um príncipe que, com um beijo, desperta as personagens e, às vezes, todo o seu mundo. Carolina, que passara da condição de noiva à de viúva, viverá uma situação diferente à das demais personagens -femi­ ninas dos romances urbanos de Alencar.

Todas as outras personagens -femininas de Alencar saem de cena ao se casarem ou ao se consumar o casamento. Carolina passa da con­ dição de santa à de esposa e se deslocaria da casinha da Glória â casa de Jorge, não -fosse sua condição de viúva virgem, fundamental ao enredo do romance. Enquanto solteira, Carolina aparece sempre velada aos olhos da sociedade. Sua condição de viúva jovem a colo­ cará sempre em evidência, numa situação oposta à da moça solteira, ou da mulher casada. Ela reaparece como viúva coquete, no espaço aberto da sociedade do Rio de Janeiro.

Alencar descreve, cuidadosamente, o processo através do qual

Carolina se transforma, da virgem reclusa, na viuva coquete que fascina os homens da sociedade do Rio de Janeiro. Logo após a viu­ vez, a sociedade aparece à Carolina em flashes ininteligíveis, aos quais ela ainda resiste. Como se preserva para o casamento, ela até então não se interessa pelo mundo fora da casa. Ao vei—se viúva,

Carolina passa a integrar uma sociedade até então desconhecida.

"0 mundo ao longe corria às vezes o pano a uma das suas brilhantes cenas e mostrava à menina refu­ giada no seu retiro e na sua saudade a auréola que cinge a fronte das mulheres belas; auréola que aos outros parece brilho de luz, mas que realmente é pa­ ra aquelas que a trazem, chama de fogo". (A.v., p . 86)

Com o tempo, a sociedade vence, parcialmente, a resistência de

Carolina, mas o vestido de cor preta, que ela insiste em usar, man­ tém sua ligação com o passado e sua fidelidade ao marido morto. A sociedade consegue vencer, em parte, sua resistência, mas não con­ segue apagar um passado de donzela apaixonada. Ela -freqüenta os bailes, ouve todas as propostas dos seus admiradores, mas não se envolve com nenhum e, ao voltar para casa, retoma seu papel de mu­ lher casta e apaixonada. Carolina mantém-se imune aos admiradores, advindos de uma convivência com o seu grupo, mas acaba se apaixo­ nando e sucumbe a um amor misterioso e secreto.

É ainda no seu quarto de viúva-donzela, através da janela que a esconde do mundo enquanto o revela, que Carolina deixa-se enamo­ rar, por um admirador secreto que lhe deixa -flores e cartas na ja­ nela sem nunca se mostrar. Mais uma vez, não é ela quem vai em bus­ ca do amor; ele é que vem ao encontro de sua intimidade. Então, ela se liberta do papel social de viúva coquete e reassume sua condição de jovem, velada aos olhos do mundo. Ela inicia um amor semelhante ao namoro com Jorge, velada aos olhos do mundo e sempre protegida pela janela que, simultaneamente, dá acesso ao exterior, protege sua intimidade e a aproxima do misteriosa enamorado.

"A treva era espessa. Carolina mal distinguia; mas pôde ver o vulto parar de-fronte de sua janela, ■ficar imóvel tempo esquecido, e por -fim deixar a carta e sumir—se". (A.v., p . 89)

Alencar atém-se a cada detalhe na construção da personagem.

Carolina, enquanto viúva, continua de luto. Mas quando decide ir ao encontro do misterioso enamorado, sua toalete é uma mistura de branco e preto, -fundindo, simbolicamente duas -fases de sua vida, o que poderia significar o encaminhamento para uma nova -fase.

"Pela primeira vez, depois de cinco anos, Caro­ lina trajava de branco; mas as fitas dos laços, as pulseiras, o colar, eram pretos ainda. Até no seu vestuário se revelava o luto que se passava em sua alma: o branco era a aspiração, o sonho do -futuro; o preto era a saudade do passado". (A.v., pp.90-91)

0 traje branco e preto representa, para Carolina, um novo es­ tágio da sua vida, ou seja, ela é candidata a uma nova realidade, mas está marcada pela tragédia do seu primeiro casamento.

"Assim como o negro, sua contracor, o branco pode situar-se nas duas extremidades da gama cromá­ tica. (...) Assim, coloca-se às vezes no início e outras vezes, no término da vida diurna...

Quando Carolina vai ao encontro do enamorado, ela volta a bus­ car o escuro, o discreto, o velado aos olhos do mundo. Esta atitude reata o presente ao passado e ela volta à condição da graciosa me­ nina da abertura do romance, retornando à sua condição inicial de jovem à espera de um marido.

Finalmente, depois que o enamorado secreto se revela - era

Jorge - Carolina retira-se, de vez, da sociedade. Este terceiro mo­ mento reata os dois pontos da história tras-formando o período que

Carolina freqüentou a sociedade apenas numa pausa. Assim que voltam a encontrar-se, eles abandonam a cidade.

"Jorge e sua mulher são hoje nossos vizinhos; têm uma fazenda perfeitamente montada. Para evitar a curiosidade importuna e indiscreta, haviam imediata­ mente abandonado a corte". (A.v,, p.93)

Bachelard afirma que o modo de "habitar" pode aparecer simbo­ licamente de várias formas e cita Victor Hugo para exemplificar uma destas formas. Quasimodo, personagem fundamental no romance Notre

Dame de Paris, aparece como um símbolo e uma continuidade da rugosa igreja. Em certa medida, José de Alencar também emprega a casa como elemento determinante na caracterização de suas personagens.

Nos romances Diva, Lucíola e Senhora, as casas onde as perso­ nagens vivem fornecem-nos características fundamentais da persona­

lidade de sua proprietária, através do mobiliário e da decoração.

Alencar inicia o romance A Viuvinha descrevendo a casa e, an­ tes que a personagem Carolina apareça no romance, já sabemos, atra­ vés da descrição da casa, que a personagem é singela e vive distan­ te da sociedade. Também o quarto de Carolina é alvo de uma descri­

ção cuidadosa que indica, mais que qualquer outro elemento, a pei— sonalidade de sua proprietária.

"A mobilia era tão simples e tão elegante como o aposento: dois consolos de mármore, uma conversa- deira, algumas cadeiras e o leito nupcial, que se envolvia nas longas e alvas cortinas, como uma vir— gem no seu véu de castidade." (A. v., pp.61-é>2)

Este quarto é, para Carolina, como que uma carapaça. E é aí que vão ocorrer quase todos os fatos determinantes na história da personagem. Quando Jorge desaparece, e ela se acredita viúva, Caro-

lina é descrita como "a rola, que se carpia viúva no seu ninho so-

1i tário" . (A .v . , p .85)

é deste ninho personalizado que ela sai para o espaço aberto da sociedade, enquanto viúva coquete. Com a volta de Jorge, há no­ vamente a possibilidade de um ninho aconchegante, de um ninho como um lugar simples perfeito e seguro.

"0 ninho, como toda imagem de repouso, de tran­ qüilidade, associa-se imediatamente á imagem da casa simples. Da imagem do ninho à imagem da casa, ou, vice-versa, as passagens só se podem fazer sob o símbolo da simplicidade".3 39

Jorge e Carolina, assim como Carlota e o marido, em Cinco Mi­ nutos, vão em busca de um ninho mais seguro, nas montanhas de Minas onde o mundo exterior não possa perturbar sua -felicidade.

A história de Carolina entrelaça o espaço com a condição so­ cial. Enquanto menina simples à espera de um marido, seu mundo li­ mita-se à casa e à igreja. Enquanto viúva, Carolina tem acesso à sociedade, mas mantém um comportamento moral condizente com os va­ lores da sua época. E é -fundamental para que ela e Jorge retomem história no momento em que -foi i nterrompi da . Ao reencontrar Jorge,

Carolina retira-se de vez da sociedade porque ela, agora, poderá assumir de vez o papel de esposa e mãe que lhe é tradicionalmente dest i na d o .

A história de Jorge e Carolina é narrada, em -forma de carta, a mesma D. prima do narrador de Cinco minutos. Ele toma conhecimento dessa história porque partilha da intimidade de Jorge e Carolina o que reforça a idéia de privacidade e -fechamento ao universo -fami­ liar. Esse subterfúgio cria, no leitor, a ilusão de estar invadindo a intimidade do casal.

Além da carta, o tempo é outro recurso que resguarda a intimi­ dade das personagens. A história aconteceu há dez anos e, por isso, está protegida pelo passado.

Carolina, enquanto moça solteira, tinha como área de circula­

ção a casa e a igreja. Somente, após a presumível viuvez, é que ela passa a freqéntar a sociedade. Carlota, ao contrário, antes de ca­ sar tem maior mobilidade no seu meio social. Mas, ambas, após o ca­ samento, recolhem-se definitivamente ao espaço fechado da casa ir manando-se na reclusão destinada à mulher casada. Suas histórias, 40 mesmo preservadas na intimidade das cartas, se atêm ao período an­ terior ao casamento. Ao casarem-se e recolherem-se ao espaço -fecha­ do da casa suas histórias terminam. 41

NOTAS

iFREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. p .254.

2CHEVALIER, Jean et al. Dicionário de Símbolos. Rio de Ja­ neiro: José Olympio, 1990. p.141.

^BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p.ISO. C A P x T U L O

LUC x OLA O 1_AMP IRO ^ BE IRA DO

CHARCO

Lucíola é escrito em -forma de carta endereçada a uma senhora chamada G.M. e, como Cinco Minutos, tem por objetivo responder a uma indagação da destinatária.

"A senhora estranhou, na última vez que estive­ mos juntos, a minha excessiva indulgência pelas criaturas infelizes, que escandalizam a sociedade com a ostentação do seu luxo e extravagâncias. Quis responder-1 he imediatamente, tanto é o apreço em que tenho o tato sutil e esquisito çia mu­ lher superior para julgar de uma questão de senti­ mento " (L . , P í í ) •

G.M. transforma a carta em um livro, tornando pública a história e

diferenciando-a de Cinco Minutos e A Viuvinha, que seriam histó-

rias-carta e não romances.

No romance Lucíola, José de Alencar trata do conflito psicoló­

gico da mulher que vive a dialética de "mostrar—se" diante da so­

ciedade ou "preservai—se" no interior de seu íntimo. Lúcia "vive" dilacerada entre um "papel social" de mulher mundana e os sentimen­ tos interiores de negação os quais, enquanto prostituta, ela se en­ trega para sobreviver. Esta dualidade entre um mundo interior e a realidade -foi uma caracter í sti ca de muitos romances de Alencar. Q romance do século XIX, segundo Georg Lukács cria uma relação de inadequação "entre a alma e a realidade. Este di1aceramento entre o eu e o mundo é resultante

"de a alma ser mais ampla do que todos os destinos que a vida lhe pode oferecer".*

Se a alma é mais ampla do que a vida, inevitavelmente haverá um confronto entre o ser social, controlado pelas normas de convi­ vência, e o eu interior ou alma que, não se satisfaz em viver so­ mente segunda as normas, suplantando os sentimentos interiores. Lú­ cia é uma personagem que se enquadra neste di1aceramento caracte­ rístico do romance do século XIX. A sociedade é

"Um mundo em que a convenção reina como grande senhora, é a própria encarnação do conceito de se­ gunda natureza, um conjunta de regras e de leis alheias a qualquer significação no seio das quais não se poderia encontrar nenhuma relação com a alma. Mas, por isso mesmo, não há nenhuma objetivação da vida social que não perca toda a sua importância pa­ ra a a 1 ma " . 2

A inadequação do "interior" com o meio social em que se movi­ menta e a paixão por Paulo, desencadeiam em Lúcia um processo de transformação para a mudança de espaço, um processo, lento mas gra­ dativo, da passagem da personagem de um espaço eminentemente aberto e público, condizente com sua condição de prostituta, para um espa­

ço cada vez mais fechado e particular. Este processo dá-se na medi­ 44 da em que ela mergulha em si mesma tentando fazer emergir um outro lado da sua personalidade que teria, apesar de toda sua vivência, continuado casto e pudico. A personagem é apresentada em duas ■face­ tas bem delimitadas: Lúcia, a prostituta, e Maria da Glória, a cas­ ta. Apesar de, em boa parte do romance, ela aparecer como Lúcia e de o próprio narrador assim denominá-la, o que ela tenta -fazer é recuperar Maria da Glória, a donzela ingênua. Ao agir dessa forma, ela transgride as normas sociais, querendo inserir—se num espaço que lhe é definitivamente vedado.

Para Gaston Bachelard, as imagens que remetem à idéia de espa­

ço são um tema recorrente na literatura porque integram as sensa­

ções primordiais do ser humano. Elas são, às vezes, símbolos de se­ gurança, de solidão, de di1aceramento, mas todas, remetem à condi­

ção do homem no seu rei acionamento com o mundo e a sua busca idíli­ ca de espaços nos quais ele se sinta seguro e feliz. A dialética interior/exterior, um desses temas recorrentes na Literatura Brasi­ leira já tratado em Cinco Minutos e A Viuvinha, retorna a ele em

Lu c í o l a .

"0 exterior e o interior formam uma dialética de esquartejamento, e a geometria evidente dessa dialética nos cega tão logo a introduzimos em âmbito metafórico. Ela tem a nitidez crucial da dialética do sim e do não, que tudo decide. Fazemos dela, sem o perceber, uma base de imagens que comandam todos os pensamentos do positivo e do negativo (...) 0 fi­ lósofo com o interior e o exterior, pensa o ser e o não s e r ".3

José de Alencar constrói a personagem Lúcia a partir do esquarteja- mento, de um ser e de um não ser. Lúcia debate-se entre a cortesã que nao pode ser mulher "ho­ nesta" e a mulher pura que não aceita ser mais cortesã, é o mundo exterior, impondo-se sobre um mundo interior que se recusa a con­ tinuar submetido às normas sociais. Por outro lado, não há uma ma­ neira eficaz de negá-las. é através do amor que Lúcia tentará a passagem: privilegiar a alma em detrimento do mundo das convenções.

Para Dante Moreira Leite, as personagens de Alencar não são a priori individualmente bem definidas e a

"unificação ou revelação do ser interior de cada personagem depende do outro e, sobretudo, do outro que a m a ".^

Esse "outro" de que fala o crítico, no romance Lucíola, é Pau­

lo. Paralelamente, Lúcia se transforma, de uma mulher que freqüenta e afronta a sociedade, em uma mulher que se fecha no espaço da casa e cada vez mais, nega o lado-de-fora e tudo que não venha de Paulo.

Paulo é apresentada a Lúcia em uma festa na igreja da Glória^ quando Sá, conhecido comum, apresenta-o a Lúcia. Ela está em lugar público, desacompanhada e isto já é o suficiente para que aqueles que dominam as normas de comportamento da Corte, saibam que ela não

é uma "moça de família" . Paulo, provinciano recém-chegado á cidade, confunde-a com uma senhora honesta. Sua confusão justifica-se por ele não decodificar os valores daquela sociedade. Paulo acabara de chegar do Recife e sua impressão a respeito de Lúcia é resultante da falta de conhecimento em relação às normas sociais do Rio de Ja­ neiro, capital e centro cultural do Brasi1 da época.

"Quem é esta senhora? perguntei a Sá. A respos­ ta foi o sorriso inexprimível, mistura de sarcasmo, de bonomia e fatuidade, que desperta nos elegantes da corte a ignorância de um amigo, profano na difí­ cil ciência das banalidades sociais. - Não é uma senhora, Paulo! é uma mulher boni­ ta . Queres conhecê-la?... Compreendi e corei de mi­ nha simplicidade provinciana, que confundira a más­ cara hipócrita do vício com o modesto recato da ino- cência. Só então notei que aquela moça estava só, e que a ausência de um pai, de um marido, ou de um ir— mao, devia-me ter feito suspeitar a verdade. " (L . , P.13)

Um homem integrado naquela sociedade saberia que uma mulher elegante e sozinha, em um espaço público, só se justifica quando ela é um objeto de consumo, acessível a todo o grupo masculino. 0 trânsito da mulher nesse espaço público, fora de casa, ou se dá pe­ la mão do homem ou torna clara sua posição de marginal ao segmento

"familiar". Q fato de ser marginal, enquanto prostituta, permite a

Lúcia usufruir dessa condição social e viver a liberdade do não en- quadrar-se às normas de comportamento impostas às mulheres "hones­ tas", integradas na família patriarcal, è convencionalmente espera­ do que ela aja com essa margem de liberdade, só que isto veda a ela qualquer possibilidade de uma entrada no segmento familiar da so­ ciedade .

ü encontro na festa da Glória dá-se em um espaço público no qual a sociedade interfere como mediadora das impressões que Lúcia provoca em Paulo.

ü primeiro encontro, do qual Paulo só se recorda posteriormen­ te, ocorre em uma rua deserta onde ambos estão libertos dos condi­ cionamentos sociais. Naquele espaço limite entre o interior e o ex­ terior^*, Paulo tem uma impressão oposta àquela que Sá, enquanto voz social, lhe impinge. Nesse encontro, ele instintivamente perce­ be o interior de Lúcia, ainda imaculado socialmente. Se no encontro da festa da Glória, Paulo confunde Lúcia com uma senhora, no pri­ 47 meiro encontro, Paulo a vê como uma linda e pura menina. A menina

do primeiro encontro, completamente desvinculada de qualquer condi­

cionamento social, transforma-se em uma senhora na festa da Glória,

já que esta é a forma de tratamento condizente com uma mulher res­

peitável nos encontros sociais.

" - Que linda menina! exclamei para meu compa­ nheiro, que também admirava. Como deve ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso!" (L , p.15)

Nesses dois primeiros encontros, Lúcia provoca em Paulo im­

pressões que já indicam a dualidade criada pelo narrador na consti­

tuição da personagem. Esta dualidade é fundamental para o desenro­

lar do romance. Paulo vê Lúcia como liberta dos condicionamentos

sociais e reluta em admiti-la pelo senso-comum. Em Lúcia, a visão

daquilo que ela acredita ser o seu âmago, desencadeia um processo

de busca e reencontro do eu. Eles se reencontram e, mais uma vez,

Lúcia está desacompanhada e dessa vez é ela quem alude à sua condi­

ção de prostituta ao exclamar, diante de um perfume:

Flor de laranja!... é muito puro para mim". (L, P . 17)

(A flor de laranja significa pureza e por isto é usada em grinaldas

pelas noivas na hora do casamento).

Quando Paulo, pela primeira vez, visita Lúcia, no universo

particular de sua casa, ela aje como uma casta donzela, confundin-

do-o, mais uma vez, com esse comportamento em desacordo com a sua

condição social de prostituta. "0 que porém continuava a surpreender-me ao úl­ timo ponto, era o casto e ingênuo per-fume que respi­ rava de toda a sua pessoa. Uma ocasião, sentados no sofá, como estávamos, a gola de seu roupão azul abriu-se com um movimento involuntáriu, deixando ver o contorno nascente de um seio branco e puro, que meu olhar ávido devorou com ardente vo1uptuosidade. Acompanhando a direção desse olhar, ela enrubeceu como uma menina e fechou o roupão; mas doce e bran­ damente, sem nenhuma afetação pretenciosa". (L, P . 18)

0 comportamento social de Lúcia na festa da Glória, e, depois na loja, onde ela diz que perfume de flor de laranjeira é muito pu­ ro para ela, criam conflitos nela e em seu amigo que se tornam mais profundos quando ela recebe a visita de Paulo. A mulher discreta mas independente da festa da Glória, irreverente na casa Comercial

Desmarais^, e insistente e ousada no teatro, não combina com a pu­ dicícia e menos ainda com pureza.

Na segunda visita de Paulo, quando Lúcia, pressionada por ele, assume o comportamento esperado da prostituta, ela o faz de maneira tensa e aflita. A partir do momento em que ela introduz Paulo em seu quarto, a menina ingênua do primeiro encontro, a moça pudica, transforma-se na prostituta lasciva, como se, ao entrar no quarto, outra pessoa assumisse o seu lugar. Desfazem-se, momentaneamente, todas as ambigüidades. Tudo o que antes era velado se revela de ma­ neira abrupta e cruenta.

"Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega desfazia ou antes despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe as vestes, à mais leve resistência do- brava-se sobre si mesmo como uma cobra, e os dentes de pérola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda que lhe opunha abstáculos. Até que o penteador de veludo voou pelos ares, as tranças lu- xuriosas dos cabelos negros rolaram pelos ombros ar­ rufando ao contato a pele melindrosa, uma nuvem de rendas e cambraias abateu-se a seus pés, e eu vi aparecer aos meus olhos pasmos, nadando em ondas de 49 luz, no esplendor de sua completa nudez, a mais for— mosa bacante que esmagara outrora com pé lascivo as uvas de Corinto". (L, p.24,S5)

Lúcia, não apenas se desnuda e se entrega totalmente ao sexo, mas o faz de maneira desesperada e impetuosa, de uma forma tão efe­ tiva que desnorteia Paulo deixando-o "alucinado". é como se a prostituta assumisse o lugar até então ocupado pela menina casta.

"As mais dinâmicas evasões ocorrem a partir do ser comprimido".®

A tensão em que vive a personagem, seu di1aceramento entre o desejo e a negação, entre o amor e a prostituição, entre o lar e o bordel podem ser percebidos através do desespero e da volúpia com que Lúcia se entrega a Paulo. Para ela, amor e prostituição, lar e bordel são situações inconciliáveis, que, nesse momento, ela não sabe ainda como resolver.

Lúcia se revela a Paulo, enquanto prostituta, no espaço fecha­ do de seu quarto. Mas é em uma festa, na casa de Sá, que ela assume publicamente sua condição, não deixando margem para ambigüidades que até então desnorteavam Paulo. Lúcia, superexcitada pelo álcool e pela atmosfera libidinosa, não só assume sua condição, como ul­ trapassa limites, é com o que concordam, até mesmo, suas companhei­ ras de profissão. Lúcia, como que comprimida e dilacerada por con­ flitos interiores, revela a violência dos instintos reprimidos com uma agressividade incontrolável. Ela se exibe nua para todos os convidados imitando as pinturas eróticas do espaço onde se encon­ tra . 50

Esta exibição sensual pública é o comportamento normal da prostituta. A caracterização da cortesã vai sendo construída de forma crescente até a cena na casa de Sá. A partir desse ponto, vai iniciar—se um processo de retorno da personagem, caracterizado pela busca de um passado e de uma reabilitação impossível.

A partir da -festa, Lúcia e Paulo iniciam um re 1 ac i onamen to calmo que vai durar somente o tempo em que eles conseguem manter—se desvinculados do mundo exterior, no espaço -fechado da casa. 0 mundo exterior, com suas normas de conduta, trans-forma-se em uma prisão para Lúcia, porque ela, apaixonada por Paulo, passa a viver exclu­ sivamente por ele. Esse comportamento é um desvio da norma e, como tal, inaceitável. Lúcia tenta criar uma atmos-fera -familiar no inte­ rior de sua casa, mas esta tranqüi1idade é precária e desmorona no primeiro confronto com o mundo exterior. Tudo o que há de harmonia nesse universo (dedicação de Lúcia a Paulo, simplicidade da vida, desinteresse pela vida social) transforma-se ao ser analisado pela perspectiva da sociedade que não admite que uma prostituta passe a viver como uma pacato dona-de-casa, dando à sua relação com Paulo um tom familiar.

Lúcia, enquanto prostituta, não tem que se adequar às normas sociais de bom comportamento. Ao contrário, é seu papel delapidar fortunas e expor seus amantes a situações constrangedoras. Sua con­ dição torna-a imune aos ataques sociais. Ela se torna vulnerável ao se apaixonar por Paulo e ao querer reintegrar—se no sistema social.

A partir desse momento, ela poderá ser atingida pelas discrimina­

ções endereçadas a Paulo (que acabam por interferir no relaciona­ mento) e pelas perseguições de que passa a ser vítima por realizar a passagem impossível do bordel ao lar. Ela quer percorrer o cami- 5.1. nho inverso, numa rua de mão única, perturbando, desta -forma, a or— dem do sistema. A primeira constatação da impossibilidade deste re­ torno dá-se quando Sá alerta Paulo de que a sua reputação está em

j 090 .

"- Mas tens reputação a ganhar. és amante de Lúcia, há um mis; e eu te conheço, sei que estás te sacri-f icando . Entretanto, como Lúcia não aparece mais no teatro, não roda no carro mais rico, e já não esmaga as outras com o seu luxo; como a Rua do Ouvidor não lhe envia diariamente o vestido de me­ lhor gosto (...) sabes o que se pensa e o que se diz? Que estás sacrificando Lúcia... que estás vi­ vendo á sua custa!" (L, p.64)

Paulo se aflige com a opinião pública porque tem ambições pes­ soais e profissionais que se frustariam se ele, por causa de seu romance com Lúcia passasse de elemento integrante e integrado, a elemiento marginal na sociedade do Rio de Janeiro graças à pecha de explorador de mulheres. Lúcia, enquanto prostituta, é um produto de consumo do domínio público e toda a sociedade masculina quer dele usufruir. Os que não desfrutam do seu corpo admiram sua beleza, no espaço social freqüentado por todos. Ao se recolher à sua casa em companhia de Paulo, ela se transforma de bem público em bem priva­ do, de uso exclusivo, mas Paulo, enquanto rapaz pobre, não tem fun­ dos para bancar sozinho o jogo, ou seja, ele não é suficientemente rico para comprar, com exclusividade, os favores da cortesã mais disputada do Rio de Janeiro. Ao alterar as regras do jogo, eles provocam um escândalo que ameaça a reputação de Paulo.

Um momento lancimante para Lúcia é quando ela constata que es­ tá em uma situação sem saída, porque não pode dispor da própria vi­ da . Ah! Esquecia que uma mulher como eu não se pertence; é uma coisa pública, um carro da praça que não pode recusar quem chega. Estes objetos, este lu­ xo, que comprei muito caro também, porque me custa­ ram vergonha e humilhação, nada disto é meu. Se qui­ sesse dá-los, roubaria aos meus amantes presentes e futuros; aquele que os aceitasse seria meu cúmplice. Esqueci, que, para ter o direito de vender o meu corpo, perdi a liberdade de dá-lo a quem me aprou­ ver! 0 mundo é lógico! Aplaudia-me se eu reduzisse à miséria a família de algum libertino; era justo que pateasse se eu tivesse a loucura de arruinar-me, e por um homem pobre! Enquanto abrir a mão para rece­ ber o salário, contando os meus beijos pelo número das notas do banco, ou medindo o fogo das minhas ca­ rícias pelo peso do ouro; enquanto ostentar a impin- dência da cortesã e fizer timbre da minha infâmia, um homem honesto pode rolar—se nos meus braços sem que a mais leve nódoa manche a sua honra; mas se pe- dir-lhe que me aceite, se lhe suplicar a esmola de um pouco de afeição, oh! então o meu contato será como a lepra para a sua dignidade e a sua reputação. Todo o homem honesto deve repelir—me!". (L, p .68>

Lúcia envereda por um caminho para o qual não há retorno. Lú­ cia é uma pérola exposta que exibe sua beleza, como qualquer mulher bonita da Corte, mas a vende àqueles que podem e querem pagar. Esta venda é perfeitamente legítima^ segundo os códigos sociais da épo­ ca. Sua transgreção é tentar recolher-se, voltar para o seu inte­ rior, como uma pérola que, depois de exposta, exibida e comerciali­ zada, tentasse voltar para o interior da ostra de onde ela saiu.

Esta tentativa rompe com as regras e transforma-se em escândalo.

Não há, para Lúcia, a possibilidade de percorrer oo caminha inversa o da volta da pérola contaminada a para o interior da ostra.

Ao contrário de Lúcia, Carolina, do romance A Viuvinha e Car— lota de Cinco Minutos, que também se exibem para a sociedade cario­ ca, podem se recolher quando lhes convim. A diferença entre elas e

Lúcia é que elas são admiradas mas não desfrutadas, elas deixam en­ trever seu brilho sem se contaminarem, o que permite que elas se

recolham em si mesmas, ou se entreguem ao recesso do lar quando já

encontraram um marido e não precisam mais exibir-se na sociedade.

Carlota ao casar-se, retira-se de vez da sociedade e o mesmo acon­

tece com Carolina após o retorno de seu marido. A partir do casa­

mento elas passam a ser objeto de admiração exclusiva dos seus ma­

ridos aos quais foi convencionalmente atribuído este direito e suas

vidas deixam de ser do domínio público. Maria Valéria Juno Pena

afirma que Alencar descreve as personagens femininas dos seus ro­

mances urbanos até se casarem, quando deixam de ser objeto da nai—

ração.

"José de Alencar, nos textos que aqui contemplo e em apoio minhas conclusões. , A Viuvinha, Cinco Minutos, Lucíola e Senhora, trata de homens e mulheres no exato momento de sua aproxima­ ção, e é esse o contato que lhe interessa: o tatear inicial de uma relação cujos protagonistas definin­ do-a a si próprios sexualmente. Uma vez estabiliza­ da, a relação deixa de atraí-lo".*-®

Em A Viuvinha, Senhora, Encarnação a história termina com a

consumação do casamento e em Cinco Minutos, Diva, A Pata da Gazela e Sonhos d'Ouro o romance termina com o casamento, como se, ao se

casarem, as personagens vetassem ao narrador o direito de se imis­

cuir em suas vidas conjugais, e ao leitor o prazer de admirá-las

como quando eram solteiras. Esta reclusão da mulher ao espaço da

casa é uma característica do patriarcalismo. Na segunda metade do século XIX, nos centros urbanos como o Rio de Janeiro, o poder pa­

triarcal já estava enfraquecido, mas ainda muito presente. Lembre­ mo-nos de como, só o fato de Lúcia sair sozinha à rua, já é fato

determinante da sua condição porque toda mulher honesta saía à rua acompanhada. Gilberto Freire afirma que:

"O patriarcalismo, vindo dos engenhos para os sobrados, não se entregou logo à rua, por muito tem­ po foram quase inimigos, os sobrados e a rua. E a maior luta foi travada em torno da mulher por quem a rua ansiava, mas a quem o pater—famílias do sobrado procurou conservar o mais possível trancada na cama­ rinha e entre as mulecas, como nos engenhos; sem que ela saísse nem para fazer compras. Só nas quatro festas do ano - então, dentro dos palanquins, mais tarde de carro fechado".H

h prostituta é vedado o direito de reclusão imposto às mulhe­ res "honestas".

D sonho de Lúcia é recolher—se à sua casinha e tentar manter— se incógnita para, desta forma, tentar "viver" como qualquer mulher honesta, mas os direitos ou deveres de quaisquer das personagens femininas dos romances citados se transformam em escândalo, e ano­ malia social quando vivenciados por Lúcia porque ela fere os tabus ainda fortemente enraizados na sociedade da época.

"Mais depressa nos libertamos, os brasileiros, dos preconceitos de raça do que dos de sexo. Quebra­ ram-se ainda no primeiro século da colonização, os tabus mais duros contra os índios, e no século XVII, a voz del-Rei já se levantava a favor dos pardos. Os tabus de sexo foram mais persistentes. "A inferiori­ dade" da mulher substitui a "inferioridade da raça", fazendo da nossa cultura menos uma cultura como a norte-americana, com a metade de seus valores esma­ gados ou reprimidos pelo fato da diversidade de cor e raça do que como as orientais, uma cultura com muitos dos seus elementos mais ricos abafados e proibidos de se expressarem, pelo tabu do sexo. Sexo fraco. Belo sexo. Sexo mantido em situação toda ar— tificial para regá-lo conveniência do homem, domina­ dor exclusivo dessa sociedade meio morta".^2

A sociedade tolera a prostituta, cuja profissão fere tabus fortemente enraizados, desde que ela não tente reintegrar—se a es­ trutura sacrossanta da -família.

Lúcia percebe que, do ponto de vista da sociedade, ela não tem direito a uma vida particular: a ela é vedado o direito de uma existência interior, ê um momento de profundo di1aceramento da per­ sonagem, porque há nela um grande desejo, uma forte necessidade de se recolher em si mesma, de se refazer para viver seu amor por Pau­ lo. As convenções sociais, ao contrário, exigem que ela volte à vi­ da mundana sob pena de Paulo ser classificado de explorador de mu­ lheres. Ela, enquanto indivíduo, precisa mergulhar cada vez mais no seu interior, ao passo que, enquanto ser social, ela tem que retor­ nar à sua condição exterior de prostituta.

Lúcia tenta voltar a freqüentar a sociedade, ter amantes por ser esta a única maneira que ela tem de preservar seu relacionamen­ to com Paulo. Ela escolhe para futuro amante o Couto, que, por tê- la iniciado na prostituição, inspira-lhe o mais profundo asco e horror. Ao escolhê-lo, fica claro o quanto isto lhe custa. Para marcar a volta à sua condição inexorável de cortesã, Lúcia vai a um baile muito concorrido, tornando bem notório, para a sociedade, o seu retorno. 0 Autor vale-se do traje como índice do desespero da personagem e como metáfora do seu di1aceramento entre querer reen­ contrar uma pureza perdida e ter que aceitar um papel naquela so- c i ed a d e .

Seu vestido é escarlate, símbolo das batalhas, da dialética entre o "céu e o inferno".13

Cor da ação e da paixão, mas também da libertação e da opres­ são. Além da cor do vestido, seu decote reforça a idéia de sensua­ lidade, bem como o cabelo e a descrição como um todo. Durante a noite do baile Lúcia sofre, de forma lancinante, por ter que voltar 56 a se prostituir e, mais ainda, por fazer Paulo sofrer. Mas, no dia seguinte, ela reaparecerá modificada pelos sofrimentos. Seu vestuá­ rio torna clara esta transformação.

"Lúcia fitou-me por muito tempo, e chegou-se ao espelho para dar os últimos toques ao seu traje, que se compunha de um vestido escarlate com largos fo­ lhos de renda preta, bastante decotada para deixar ver as belas espáduas, de um filó alvo e transparen­ te que flutuava-lhe pelo seio cingida o colo, e de uma profusão de brilhantes magníficos capaz de ten­ tar Eva, se ela tivesse resistido ao fruto proibido. Uma grinalda de espigas de trigo, cingia-lhe a fron­ te e caía sobre os ombros com a basta madeixa de ca­ belos, misturando os louros cachos aos negros anéis que brincavam". (L, p.71)

é em um baile que Lúcia aparecerá pela última vez em público.

Este baile é o ponto culminante da sua vida mundana, é um momento de passagem para outro estágio da sua vida e seu dilaceramento che­ ga ao máximo. Ao se despir no dia seguinte, Lúcia estará interior­ mente se despindo do seu papel de prostituta.

Na cultura ocidental, o branco é a cor usada pelas mulheres nos rituais de passagem para uma nova condição social; são brancos os vestidos usados na primeira comunhão, quando a menina dá conti­ nuidade à herança religiosa, são brancas as roupas das debutantes quando a moça é introduzida no meio social. Mas é o branco do vestido de noiva que melhor sintetiza a simbologia desta cor nos rituais de passagem em nossa cultura. A noiva muda de estado civil e adquire socialmente novo status.

No baile, Lúcia está usando um vestido vermelho, símbolo de emoções violentas e duais do dilaceramento entre sentimentos anta­ gônicos. Ao retornar, ela despe-o, toma banho (lavando-se das mar cas de sua vida mundana) e reaparece toda vestida de branco, como 57 metáfora de iniciação em sua nova vida. Dentro da simbologia, o

branco

"é a cor do candidato, isto é, daquele que vai mudar de condição".

E Alencar frisa este momento de passagem, através da fala de Paulo:

“nada manchava essa nítida e cândida imagem".

Lúcia, que até então oscila entre o espaço fechado da casa e o espaço aberto da sociedade, ao qual ela retorna, passa, definitiva­ mente ao universo interior. Seu traje é o índice através do qual o

Autor indica essa mudança de condição.

"0 branco, cor iniciadora, passa a ser, em sua acepção diurna, a cor da revelação, da graça, da transfiguração que deslumbra e desperta o entendi­ mento ao mesmo tempo em que o ultrapassa".^

A pérola é outro elemento simbólico que confirma o sentido deste ritual. A pérola

"simboliza a sublimação dos instintos, a espiritua­ lizarão da matéria, a transfiguração dos elemen­ tos" .

0 traje de Lúcia simboliza a passagem do espaço mundano ao do­ méstico, e as pérolas, negação do corpo e seus desejos. Lúcia, que até então oscilava entre o espaço interior e o exterior, a partir deste momento passa definitivamente ao universo fechado da casa: não haverá mais incursões ao universo social. "Lúcia demorou-se algum tempo. Quando apareceu, saía do banho -fresca e viçosa (...). Fora o acaso ou uma doce inspiração que arranjara o traje puro e simples que ela trazia? Tudo era branco e resplande­ cente como a sua fronte serena: por vestes cassas e rendas; por jóias somente pérolas. Nem uma fita, nem um aro dourado, manchava essa nítida e cândida ima­ gem ". < L, p . 81 )

Lúcia, enquanto prostituta, mulher pública, suplantara a pro­ vinciana pudica e esta tenta reassumir sua antiga condição. Em ca­ sa, ela passa a levar uma vida simples e a esquivar-se de qualquer contato sexual com Paulo. Quanto mais se esquiva mais terna e afe­ tuosa ela se torna. Já nao há, da parte dela, qualquer jogo de se­ dução. Ao contrário ela apenas se submete:

"sem queixas nem recriminações, apenas com uma doce saudade dos tempos que fugiam rápidos, ambos cedía­ mos a uma lei natural, e víamos afrouxarem os laços que nos uniam. Lúcia, sempre meiga e terna, para mim, não podia já esconder a frieza com que recebia o gozo que outrora era a primeira a provocar. Quando as minhas instâncias redobravam, ela, que a princí­ pio se expandia entre o rubor, sorria constrangida como uma escrava submissa ao aceno do senhor".

Paulo é o elemento que, involuntariamente, desencadeia em Lú­ cia as transformações que a levam a, primeiramente, negar a prosti­ tuição. Como continuidade, a negar o sexo, por ser ele o estigma da prostituta. Ela só admite contatos físicos, como aperto de mão, beijo no rosto, permissíveis a qualquer moça casta. Negar os praze- res do corpo é, para ela, o caminho para que aflore seu "eu" inte­ rior, incorruptível, mas sublimado até então. Seu processo de mu­ danças inicia-se com períodos alternados de reclusão e exposição, evolui para uma reclusão radical ao seu mundo particular, como foi— 59

ma de tentar negar a sociedade. A partir de então, passa também a negar a sexo e o corpo que o praticou, porque ele está marcado pe­ los "vícios" que a sociedade atribui a uma prostituta. 0 que era inicialmente reclusão, evolui para negação do exterior e cultivo do i nter i or .

Lúcia tenta resgatar seu passado e incluir Paulo de maneira definitiva na história da sua vida. Essa busca do tempo passado tem por objetivo seu reencontro com a "menina de família" que foi sufo­ cada pela mulher mundana. Este resgate inicia-se pela linguagem, a partir do momento em que ela conta a Paulo fatos de sua infância e ao narrá-los Lúcia vai resgatando este tempo e, simu1taneamente, passa a interessa»—se pelo passado de Paulo. □ que ela quer em re­ lação a ele e a si mesma não é mais a proximidade física entre o homem e a mulher: é uma busca de comunhão entre o "eu" de sua pes­ soa , sem obrigações sociais, ou até mesmo a despeito da sociedade.

Na sua tentativa desesperada de negar o mundo exterior, ela vai em busca de um eu interior, que seja primordial e que tenha permaneci­ do imune às pressões e deformações sociais. Enquanto prostituta, ela não se preocupa com a história pessoal de Paulo, mas à "moça" apaixonada, interessa tudo que se refere a ele. Lúcia até então só se interessa pelo "homem exterior" que, como tal, deveria apenas cumprir suas obrigações de amante. A partir do momento em que eles passam a ter um convívio familiar, Lúcia procura se inteirar da história pessoal de Paulo, bem como dos seus sonhos e esperanças

Lúcia, graças ao seu amor, pode partilhar dos sentimentos mais ín­ timos de Paulo sem profaná-los.

"Pela primeira vez também, desde o momento em que a conhecera, Lúcia se mostrara curiosa a respei­ to do meu passado, de minha família, e de minhas am­ bições de futuro. Até então só conhecia de mim o meu nome e a minha pessoa; nem mostrava desejar mais. Os meus sentimentos, a minha vida íntima era um mundo em que se julgava profana, e no qual não ousava ou não queria mesmo penetrar. Já tinha por vezes refle­ tido nessa abstenção, a qual aparentemente denotava que Lúcia só estimava em mim o homem exterior; o mo­ ço que encontrara num dia de desenfado, e que lhe agradara pela figura, pelos modos, ou antes por ca­ pricho seu. Pouco lhe importando saber donde vinha e para onde ia esse companheiro de viagem, unira-se a ele para amenizar, durante o tempo que seguissem o mesmo rumo, os incidentes do caminho e a solidão do pouso. Naquele dia, pois, satisfazendo o seu desejo, falei-lhe pela primeira vez do meu verdadeiro eu, das minhas esperanças, das minhas afeições, dos meus sonhos".(L, p.88)

Num primeiro momento, Lúcia hostiliza o mundo exterior ao se retirar acintosamente e recluir-se em casa. A seguir, ela tenta se reintegrar a um tempo anterior que, por não ser do domínio público, teria preservado intacta a sua infância e sua ado1escência. Então, estabelece-se entre Paulo e Lúcia um convívio platônico ao qual ela se dedica integralmente. Ela já rompeu com o mundo exterior e Pau­ lo, seu único elo com sua vida anterior, passa a ter com ela um re­ lacionamento de irmão. A partir desta fase, vão se concretizando suas transformações interiores há muito iniciadas e a moça casta vai suplantando a prostituta.

Lúcia vai alterando seu vestuário, abolindo os requintes e re­ vestindo suas ações de grande simplicidade como uma mulher comum, pequeno-burguesa da época. Ela passa a dedicar—se aos trabalhos ma­ nuais, a tocar piano, a cantar modinha e a estudar francês, como qualquer outra personagem casta à espera de um marido dos romances do próprio Alencar.

"Muitas vezes achava Lúcia cosendo e cantando à meia voz alguma monótona modinha brasileira, que só a graça de uma bonita boca, e a melodia de uma voz ■fresca, pode tornar agradável . Outras vezes passava horas inteiras esboçando um desenho, tirando uma mú­ sica ao piano, escrevendo uma 1 i çao de -francês, lín­ gua que aliás traduzia sofrivelmente; ou enfim bor— dando ao bastidor algum presente que me destinava".

(L, p .103)

Alencar atém-se a esses detalhes criando uma atmosfera seme­ lhante em pureza ao romance A Viuvinha. Lúcia age de maneira tão doméstica, ingênua e casta quanto Carolina, e nem de longe tem, agora, a ousadia de Carlota do romance Cinco Minutos. Assim como os hábitos e o vestuário, Lúcia simplifica também o mobiliário de seu quarto e o funcionamento da casa, tentando romper com tudo que re­ meta a mulher mundana, ao mesmo tempo que tenta recuperar seu pas­ sado A próxima etapa desta metamorfose vai ser retornar ao seu mundo da infância, agora em companhia de Paulo, como que inserindo- o em um universo que ela sonha ter preservado das máculas da sua vida pública. A casa de sua infância também era simples e modesta.

Ao buscar efetuar um retorno imaginário ao início da sua vida, a segurança e estabilidade sonhadas têm de vir exatamente do estabe­ lecimento de uma atmosfera de simplicidade. Lúcia busca reencon­ trar, no passado, sentimentos primordiais de bem-estar e segurança.

Esta busca de um modo de vida simples é um sentimento ancestral do homem segundo Bachelard. Ela faz com que, em qualquer lugar que es­ teja, sonhe com a cabana rústica e miticamente segura do nosso ima­ ginário primordial. Neste plano mítico, onde a cabana existe, tudo

é seguro. 0 que Lúcia busca é um refúgio que a proteja das intempé­ ries do seu universo social. Um lugar que esteja quente quando hou­ ver frio, que seja refúgio seguro na tempestade. Lá o mundo exte­ rior não chega e no interior só existe uma sensação "primitiva" de 6 'ã bem estar e segurança resultantes da rusticidade.

"A cabana revela-se como a raiz axial da função de habitar. Ela é a planta humana mais simples, aquela que não precisa de ramificações para subsistir. á tão simples que não pertence mais às lembranças, tantas vezes excessivamente carregadas de imagens. Pertence às lendas, é um centra de Lendas. Diante de uma luz distante, perdida na noite, quem não sonhou com a choupana; quem, mais empenha ainda nas lendas, não sonhou, cabana do eremita"

Neste espaço mítico estariam abolidas as convenções sociais, como Lúcia deseja. São estas mesmas imagens do imaginário primor­ dial do homem que Alencar utiliza-se ao inserir Jorge e C<|'_"1ina do romance A Viuvinha e o narrador e Carlota de Cinco Minutos em um retiro que paira entre o céu e o chão na quebrada de uma serra onde o mundo convencional não pode chegar.

É este desejo ancestral de proteção e segurança que Alencar instaura no romance quando fecha Lúcia em casa, faz com que ela re­ torne ao seu meio de oriem e, finalmente, com que ela se mude para uma casa de subúrbio onde ela sonha, ainda, reencontrar-se e cons­ truir, nesse pequeno mundo, um referencial para a sua vida. Aí ela sonha poder fazer a passagem de ser marginal a ser integrado^-8 Es­ ta mudança só se dá a nível de sonho, já que implicaria na elimina­

ção do mundo social e na sobrevivência de um eu interior desvincu­ lado da realidade.

A inviabilidade desta passagem que Lúcia persegue está presen­ te na fala da própria personagem antes mesmo de ela reassumir inte­ gralmente sua identidade anterior à da prostituta. Falando a Paulo a respeito de si mesma, ela usa uma metáfora para exemplificar co­ mo, por trás da mulher "honesta" sempre estará a prostituta segundo 63 a perspectiva social Lúcia diz:

"Uma loucura... Não sei como me veio semelhante idéia! Vendo esta água tão clara toldar-se de repen­ te, pareceu-me que via minha alma; e acreditei que ela sofria, como eu quando os sentidos perturbam a doce serenidade de minha vida. Depois de uma pausa cont i nu o u : Naquele dia... Não soube explicar-lhe... É isto! Veja A lama deste tanque é meu corpo: enquanto a deixam no -fundo e em repouso, a água está pura e límpida! Acredite ou não, Lúcia acabava de me reve­ lar naquela imagem simples um -fenômeno psicológico que eu nunca teria suspeitado". (L, p.105)

Na fala da própria personagem está estabelecida a dicotomia corpo/alma. A afirmação "A lama deste tanque é meu corpo". (L, p.105) é um indício de que a personagem caminha para um dilacera- mento insolúvel já que a única forma de a alma se livrar do corpo é através da morte. Por mais que Lúcia fuja da sociedade, por mais que ela vá em busca de esquecimento, por mais simples que seja sua vida não há como apagar seu passado. Ela conseguirá apenas uma r tranqüi1idade superficial e frágil que a qualquer momento poderá ser rompida. Sua condição de criatura estigmatizada é inalterável; a qualquer momento a sociedade poderá atirar a pedra que fará seu passado emergir, tirando-lhe tão sonhada tranqüi1idade.

Lúcia, depois de passar pelo processo de se fechar em casa, de mudar sua maneira de viver, retira-se para uma casinha do subúrbio, onde sonha que a sociedade não possa alcançá-la^)

A partir deste momento do romance, a personagem se desdobrará em Lúcia e Maria da Glória, o que registra que, no íntimo da pros­ tituta Lúcia, subsistirá sempre a casta e conservadora Maria da

Glória. Esta última, motivada pelo amor, emergirá e reassumirá a direção de sua vida interrompida, quando se deu a prostituição do 6 A seu corpo. Desta perspectiva, Lúcia seria uma impostora que suplan­ tara Maria da Glória*-^.

Lúcia assume outra identidade e incorpora Maria da Glória no seu interior, no dia do seu aniversário, no dia da festa de Nossa

Senhora da Glória. Nesse dia, ela leva para a Santa um trabalho executado por ela mesma, como faria Carolina de A Viuvinha e Carlo- ta de Cinco Minutos. Outro registro de que Maria da Glória não se prostitui é que, neste dia, ela não assume nenhum dos seus papéis sociais Quando Sá a convida para uma festa, ela recusa o convite di zendo:

"0 senhor sabe que não é preciso rogar-me quan­ do se trata de me divertir. Amanhã, qualquer dia, estou pronta. Esta noite, não!". (L, p. 14)

A sobriedade e a discrição do seu traje é outro índice de que, nesse dia, é Maria da Glória, e não Lúcia, que Paulo e Sá encon­ tram. Lúcia, exceto na festa, assume sempre a condição de prostitu­ ta no espaço exterior e de Maria da Glória no espaço interior quan­ do em companhia de Paulo. No encontro entre eles, na Rua das Man­ gueiras, Paulo "flagra" o interior de Lúcia. Pelo menos é isto que ela acredita ter acontecido. Na referida festa Lúcia está suplanta­ da por Maria da Glória e, ainda dessa vez, por não saber da condi­

ção social de Lúcia, Paulo vi a outra. Ele diz que Lúcia

"ressumbrava na sua muda contemplação doce melanco­ lia e não sei que laivos de tão ingênua castidade. .." (L, p .13)

Lúcia, a partir do olhar do outro, no caso Paulo, vai tentar suplantar o mundo exterior e, com ele seu papel social de prostitu- 65 ta, porque, para ela, Paulo vislumbra seu interior Maria da Glória, e isto -faz com que ela procure trans-formar a " i nter i or i dade em uni­ verso plenamente autônomo",20 reassumindo, em caráter definitivo, a

Maria da Glória que encontra no espaço interior sua área de mani­ festação .

A partir do contato com Paulo, Maria da Glória tentará reassu­ mir de -forma definitiva o espaço que até então era ocupado por Lú­ cia. Recuperar a donzela seria retornar do bordel ao lar. Este re­ torno é impossível porque não ocorre uma eliminação da prostituta e sim uma inversão de polaridade. Lúcia, que se manifesta quando Ma­ ria da Glória se oculta, transforma-se no ser oculto e Maria da

Glória, no ser manifesto. Mas, a qualquer momento, a prostituta po­ derá se manifestar rompendo este frágil equilíbrio.

"0 ser que se esconde, o ser que "entra em sua concha" prepara "uma saída". Isto é verdadeiro em toda a escala de metáforas, (...) as mais dinâmi­ cas evasões ocorrem a partir do ser comprimido.. . "2*

Partindo da afirmação de Bachelard, podemos dizer que a pros­ tituta comprimira, durante muito tempo, a donzela que agora se ma­ nifesta. Só que a manifestação desta implicará na compressão daque­ la, o que inevitavelmente provocará uma nova manifestação. Chegará um momento no qual prostituta (Lúcia) e donzela (Maria da Glória) chegarão a uma situação inconciliável: a de manifestarem-se ao mes­ mo tempo, rompendo a barreira que separa interiar/ex terior.

A ruptura deste frágil equilíbrio do qual "vive" Maria da Gló­ ria ocorre, primeiro, através dos julgamentos sociais quando a frá­ gil segurança do seu abrigo interior é rompida. A dialética entre o interior e o exterior não tem como se resolver porque o que Lú­ cia/Maria da Glória deseja eliminar é uma parte s i gn i-f i ca t i va de sua existência e esta nova condição está completamente vulnerável ao mundo exterior. A vida na nova casinha por ela idealizada, é a de uma família comum. Representa a tentativa de habitar a cabana mítica: a de ter um canto ao abrigo de todos os perigos do mundo.

Só que esta casa não tem como abrigá-la da sociedade: a presença de qualquer pessoa que a conheceu fará emergir a lama assentada no fundo do poço. é o que acontece quando ela é reconhecida pelo Cou­ to, o mesmo que a coagira a prostituir-se. Ele horroriza-se quando uma moça "honesta" pega, das mãos de Lúcia, um trabalho de crochê.

É como se Lúcia contaminasse tudo à sua volta.

"0 grupo parou a alguma distância; eu reconheci o Couto no momento em que se adiantava com um movi­ mento de espanto. Corri para fazer Lúcia retirar—se antes de vi-lo; mas estava distante, e quando che­ guei, já a mais velha das moças se tinha aproximado, e arrancado a pulseira das mãos de sua irmã, atirou- a por cima da grade: Não toques em coisa que pertença a esta mu­ lher! é uma perdida!" (L, p.118)

Esta ruptura de equilíbrio dá-se de fora para dentro: a socie­ dade faz ressurgir a prostituta. A segunda ruptura dá-se de dentro para fora, quando toda a sensualidade de Lúcia, a prostituta apai­ xonada, reprimida pela casta Maria da Glória, irrompe momentanea­ mente com toda a sua violência.

"De repente Lúcia atirou-se a mim. Com uma ar rebatada veemência esmagou na minha boca os lábios túrgidos, como se os prurisse fome de beijos que a devorava. Mas desprendeu-se logo dos meus braços, e fugiu veloz, ardendo em rubor, sorvendo num soluço o seu último beijo. Fugiu, e ao passar fechou a porta que comunicava com o interior." (L, p.120) 67

A ruptura definitiva do limite que separa interior/exterior ocorre quando Lúcia constata que está grávida. Esta gravidez anula qualquer possibilidade de separação entre esses dois espaços. Quan­ do a mulher, em busca de castidade, tem em seu ventre um filho, re­ gistro inegável da sua condição de prostituta, não há mais separa­

ção: interior e exterior estão em um mesmo plano.

Em Lucíola há uma dialética entre o universo interior (o eu, a alma), e o exterior (a sociedade). Essa condição dilacerada leva

Lúcia a tentar reassumir sua identidade anterior, buscando-se transformar em Maria da Glória, ao privilegiar o universo interior a despeito do meio social. Gradativãmente, a personagem vai passan­ do da condição de estar para a condição de ser. *Lúcia vai se modi­ ficando na medida em que se modificam os espaços nos quais ela se insere. Se ela está nos espaços fechados, sobre os quais tem algum controle ela não age mais como prostituta, ao contrário, ela se comporta como uma donzela pudica. Embora socialmente ela continue prostituta, para si mesma no universo da casa ela volta a ser Maria da Glória.

"A elevação da inteirioridade em universo plenamente autônomo não é um simples fato psíquico, mas um juí­ zo de valor decisivo incidindo sobre a realidade: essa autarquia da subjetividade é a mais desesperada de suas defesas finais, a renúncia a qualquer luta para se realizar fora dela no mundo, luta antecipa­ damente considerada como sem saída e degradante" .

Esta autonomia da interioridade, de que fala Lukács, em Lucio- la, é muito frágil e poderá vir de fora para dentro sempre que a sociedade se fizer presente marcando bem a condição da prostituta. Ruirá sempre que a sensualidade de Lúcia aflorar porque, para Maria da Glória, este é um atributo da prostituição que ela quer suplan- tar. Mas o conflito verdadeiramente intransponíve 1^3 advém do fato de Maria da Glória estar grávida. Até então, havia uma barreira se­ parando a prostituta, símbolo da corrupção exterior, da moça casta, l— símbolo da inteireza interior. 0 conflito da personagem baseia-se neste di1aceramento. Mas quando Lúcia/Maria da Glória constata que está grávida ela destrói a delimitação que havia, até então, entre interior e exterior. Com esta ruptura, ficam no mesmo plano e no mesmo universo, dois seres inconciliáveis. Há uma fusão de seres

D oculto se transforma em manifesto e Maria da Gló- ria está prenhe das vivências da prostituta Lúcia. Esta, por sua vez, está comprimida em Maria da Glória.

/ Um filho é a interiorização na "donzela" das marcas da corte­ sã. A aparência transforma-se em essência através deste filho criando uma situação insustentável. Não há como a casta Maria da

Glória ter um filho da prostituta Lúcia, porque quem se quer virgem torna»—se-ia a mãe. A única possibilidade de filho para Maria da

Glória seria no casamento, o que também é impossível porque para a sociedade ela é um pária para quem não há possibilidade de reinte­ gração. Este filho rompe a barreira que separa Lúcia de Maria da

Glória, e não há como conciliar a virgem e a prostituta, dois seres de natureza inconciliáveis. A partir da gravidez, Lúcia se encontra em uma situação na qual "o espaço é apenas um horrível exterior-in- terior " .

Quando o espirito perdeu qualquer espaço ao qual ele possa abrigar—se e o corpo está repleto de tudo aquilo que o espírito quer negar, só resta uma saída para a personagem que é a eliminação do corpo para libertar o espírito. Esta liberação é a morte. E Lú­

cia diz isto a Paulo. Ela não pode continuar viva e levar adiante a

gravidez pois o -filho leva-la-ia à morte.

Para ela, ter o -filho significa reviver a carne, a prostituta.

Como não há mais separação entre a casta e a prostituta não há mais

possibilidade de apenas uma delas sobreviver. 0 última diálogo en­

tre Paulo e Lúcia confirma esta impossibilidade na consciência que

Lúcia tem de si mesma, apesar de seu amor por Paulo e de todo o es­

forço que efetua para fazer ressurgir Maria da Glória.

"- Tu me purificaste ungindo-me com os teus lá­ bios. Tu me santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o consórcio de nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no céu! E contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto viva. Ela será < meu último suspiro". (L, P.1S7)

Paulo é o homem a quem ela ama e é ele quem lhe confere um status existencial "verdadeiro", não maculado pelo estigma social.

Mas este status existencial conferido ao outro não viabiliza sua

existência quando fica patente que sua vida mundana se imiscuirá no

seu íntimo rompendo a barreira interior/exterior. Quando isso ocor

re só lhe resta uma saída.

Lúcia tenta transformar-se de um ser manifesto em oculto, ou seja, ela tenta negar sua condição de mulher pública, pérola expos­

ta e usufruída, e manifestar sua pureza espiritual que teria conti­

nuado intacta. Mas, ao engravidar, Lúcia tem em seu interior, a ma­

terialização do exterior e assim elimina-se a delimitação que sepa­

ra estes espaços. Paulo só toma conhecimento da gravidade da questão quando ela já sabe que está grávida e que não sobreviverá. Ela diz que só a suspeita da gravidez é suficiente para horrorizá-la.

"Verias também no meu rosto quanto horror me causava a só idéia de que eu talvez trouxesse já nas entranhas o verme que me devia roer as vísceras. Que importa que esse verme fosse gerado do teu e do meu sangue? Ele me arrancaria uma porção desse espírito que é teu, e criara uma vida nova nesta carne que já morreu, e não pode ressuscitar para sentimento al­ gum !" (L ., p .1S S )

Não há como a pérola, depois de exposta e marcada, voltar para o interior da ostra: seria o fim das duas. Lúcia tenta atualizar um passado incompatível com ela mesma e esta volta é escandalosa do ponto de vista social e extremamente conflitante do ponto de vista

individual da personagem. Ela se sente pressionada pelo mundo exte­ rior e em conflito com o seu eu interior, pois ela é influenciada pelos valores sociais do seu tempo. Estes valores transparecem quando ela se refere ao romance A Dama das Camélias Alencar utili- za-se desse romance, muito difundido na época, para mostrar que Lú­ cia, mesmo sendo um elemento marginal, comunga com os valores mo­ rais e sociais do seu tempo. Ao julgar Marguerite Gautier, Lúcia está julgando a si mesma. Seu diálogo com Paulo sobre o livro é mais um dado que ajuda a desvendar os conflitos da personagem. Fa­

lando a respeito da prostituta francesa ela diz:

"Dando-lhe o mesmo corpo que tantos outros ti­ veram. Que diferença haveria então entre o amor e o vício? Essa moça não sentia, quando se lançava nos braços de seu amante, que eram os sobejos da corrup­ ção que lhe oferecia? Não temia que seus lábios na­ quele momento latejassem ainda com os beijos vendi­ d os?” (L, P.B3) Assim como o corpo de Marguerite, o seu também está marcado pelo vício e, ao julgar e condenar a cortesã -francesa, ela está julgando e condenando a si mesma.

Dentro da dialética do oculto e do manifesto, o ser que se oculta prepara sempre uma saída.

"O ser que se esconde, o ser que "entra em sua concha" prepara "uma saída". Isto é verdadeiro em toda a escala das metáforas, desde a ressurreição de um ser sepultado até a súbita manifestação do homem há muito tempo taciturno. Permanecendo ainda no cen­ tro da imagem que estudávamos, parece que, ao con­ servar-se na imobilidade de sua concha, o ser prepa­ ra explosões temporais do ser, turbilhão do ser. As mais dinâmicas evasões ocorrem a partir do ser com­ primido, e não na preguiça frouxa do ser preguiçoso que só deseja espreguiçar-se em outro lugar. Se vi­ vermos a paradoxal do molusco vigoroso as gravuras que comentamos apresentam imagens muito claras dele - chegaremos à mais decisiva das agressividades agresividade protelada à agressividade que espera üs lobos fechados em conchas são mais cruéis que lobos errantes".®®

Desta perspectiva, sempre haverá na Lúcia manifesta a Maria da

Glória latente ou vice-versa. A personagem vive esta situação dila- cerante até o limite, quando então ocorre a ruptura definitiva. A personagem envereda por um caminho para o qual, na época em que o romance foi escrito, a única saída possível é a morte. Lúcia, da perspectiva individual, não pode sobreviver já que ela não tem como resolver a dualidade eu-individua1 versus eu-social.

0 impacto que alguns textos de Alencar provocaram ilustram o quanto uma personagem como Lúcia escandalizou a sociedade da época.

A peça de teatro Asas de um Anjo trata, como em Lucíola, da prosti- tuição e da busca de regeneração de uma prostituta, Carolina. A pe- ça provocou um forte impacto ao ser encenada: foi censurada e o teatro, fechado pela polícia. Valéria de Marco, estudiosa da obra de Alencar diz que o escândalo foi provocado não só pelo tema, pela possibilidade de um incesto, como também pela possibilidade

"da integração da prostituta no seio da família. A polícia impediu que a peça continuasse em cartaz e o assunto ocupou os jorna is".£6

Carolina tenta, como Lúcia, fazer a passagem do bordel ao lar.

Isto fica como possibilidade na peça, mas a sociedade do Rio de Ja­ neiro veta a encenação, impedindo que o exemplo escandaloso de uma prostituta (voltar a ser dona-de-casa) seja mostrado ao público.

Nessa sociedade não há efetivamente um espaço no qual a personagem

Lúcia possa sobreviver.

Gilberto Freire cita um artigo de D. Anna Ribeiro Goes Bitten­ court colaboradora do Almanach-de Lembranças Luso Brasileiras no qual ela alerta para o perigo que certos "perfis de mulher" repre­ sentam para as jovens inexperientes.

"0 mau teatro. Os maus romances. As más leituras. Os romances de José de Alencar por exemplo, com "certas cenas um pouco desnudadas" e certos "perfis de mu­ lheres altivas e caprichosas... que podem seduzir a uma jovem inexperiente, levando-a a querer imitar esses tipos inconvenientes na vida real"

A prostituta em busca de reintegração social é julgada e con­ denada a nível da ficção e do social. No plano social, a comunidade aciona a polícia do Rio de Janeiro para que Carolina não sirva de mau exemplo às famílias. D. Anna alerta para o mau exemplo que es­ tes seres representam. No plano ficcional, Lúcia é julgada por toda a sociedade; pelo Sá, pelo Couto e até mesmo por suas colegas de profissão. Nina e Laura, suas companheiras na -festa de Sá, dizem quando Lúcia se despe em público.

"Ainda não desci a este ponto. - Com efeito é preciso ter perdido a vergonha, murmurou Laura com desprezo".

Paulo também compactua com a opinião social. Para ele só o contar a história de Lúcia já é o suficiente para macular o ambien­ te onde está uma donzela, mesmo que esta não ouça nada. E ainda re­ comenda à destinatária do livro para que ela evite que sua inocente neta manche seus cabelos ao usar o livro como papelote para encres­ pá-lo. Na carta à G.M. ele diz:

"Quis responder—lhe imediatamente, tanto é o apreço que tenho o tato sutil e esquisito da mulher superior para julgar de uma questão de sentimento. Não o fiz, porque vi sentada no sofá, do outro lado do salão, sua neta, gentil menina de 16 anos, flor cândida e suave, que mal desabrocha à sombra matei— na. Embora não pudesse ouvir-nos, a minha história seria uma profanação na atmosfera que ela purificava com os perfumes da sua inocência". (L, p 11)

G.M., a quem a carta é dirigida, afirma que o brilho de Lúcia está ligado à sua condição de pirilampo das trevas e dos pântanos, e, embora ela aluda à pureza da alma da personagem, o que determina o título do livro é a sua condição de inseto da noite, que brilha nos charcos e nas trevas, das quais não poderá sair sob pena de desestabi1izar a ordem social estabelecida.

"Lucíola é o lampiro noturno que brilha de uma luz tão viva no seio da treva e à beira dos charcos. Não será a imagem verdadeira da mulher que no abismo da perdição conserva a pureza d ' alma...?". (L, p.9) 74

Alencar é um escritor para o seu tempo. 0 escritor de As asas de um Anjo ousara demais ao mostrar à sociedade que a prostituta

Carolina poderia se reintegrar ao sistema -familiar. Talvez, por is­ so, em Lucíola, porque a personagem Lúcia ousa tentar -fazer o mesmo que a maldita Carolina, Alencar reestabelece a ordem social desti­ nada à prostituta, como a-firma Valéria de Marco.

"Lúcia consome o corpo prostituído e destrói a -fonte de pertubação da narrativa e da ordem social . Compondo esse per-fil para a cortesã do Império, Alencar expia seu pecado de ter escrito As asas de um Anjo".^8

Lúcia é condenada pela sociedade, pelos leitores como D. Anna

Bittencourt e, no universo do romance, por todas as personagens,

desde suas companheiras de pro-fissão, passando pelo Couto que a

coagira a se prostituir, até chegar a Paulo e G.M. Todos a conde­

nam .

Lúcia está, a priori, socialmente condenada ao tentar a passa­

gem do bordel ao lar. Para estabelecer a ordem que ela perturba é

necessário puni-la, condenando-a à morte.

Lúcia ousa tentar uma volta ao espaço -fechado da casa, o que s i gni-f i car i a mudar sua condição social de mulher da rua em mulher

do lar. A existência desta distinção determina que esta passagem é

i mposs í ve 1

A incursão da moça ao espaço aberto da sociedade se dá sob a

proteção da -família, e assim que ela encontra um marido, retorna

definitivamente à casa. é o que acontece com Carlota em Cinco Minu­

tos e C a r o l i n a em A Viuvinha, à Lúcia o único espaço -fechado que 75 resta é o túmulo.

Alencar registra em Diva, próximo romance a ser analisado, processo de amadurecimento da menina, sua incursão ao espaço aberto da sociedade até seu retorno definitivo à casa. NOTAS

1|_UKéíCS, George. A Teoria do Romance. Lisboa: Presença, P . 117 .

2ldem, ibidem, p.118.

3BACHELARD, Gaston A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1981. p.E15.

^LEITE, Dante Moreira. Psicologia e Literatura. São Paulo. UNESPE, 1987. p . 159.

^A -festa da Glória: procissão em louvor de N.S. da Glória, realizada no dia quinze de agosto.

^A primeira vez que Paulo vê Lúcia ela está na rua dentro de um carro, ü carro é um espaço semi--fechado que resguarda parcial­ mente, Lúcia do espaço público da rua. Também o narrador de Cinco M in u t o s encontra Carlota pela primeira vez em um ônibus.

?Casa do Desmarais: uma das lojas elegantes do Rio de Janeiro da é p o c a .

^BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1981. P .183.

^A condição de prostituta legitima a venda do corpo, mas isto exclui a prostituta de qualquer passibi 1idade de reintegração -fami- 1 iar .

Í0PENA, Valéria Juno. "As Moças de José de Alencar". In:

Ciências Hoje, vol..9, n.49, p .51, dez. 1988.

H-FREIRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos Rio de Janeiro. Jo­ sé Olympio, 1951. p .163.

leiden,, ibidem, pp 309-310.

l^CHAVALIER, Jean et alii. Dicionários de Símbolos. Rio de Janeiro, 1990. p.945.

leidem, ibidem, p.141.

ibidem, p.144.

ibidem, ibidem, p.71S.

^BACHELARD, Gâston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1981. p p .48-49.

18Ao se retirar para uma casinha de subúrbio, Lúcia tenta ne­ gar o meio social que lhe veda qualquer possibilidade de reinclusão na estrutura familiar. Mas, ao mesmo tempo que o nega ela compactua e reforça esta estrutura vivendo exatamente segundo as normas desta so c i e d a d e .

l^Lúcia conta a Paulo, que com o intuito de proteger sua famí­ lia da vergonha de ter uma filha prostituta, ela assumira o nome e a identidade de uma sua colega de profissão que havia morrido. Des­ ta perspectiva. Lúcia é uma impostora e Maria da Glória a legitima. Só que Lúcia aderirá à pele de Maria da Glória e elas se tornam in­ dissociáveis .

20luK£ÍCS, George. A Teoria do Romance. Lisboa: Presença, P . 119 .

SißACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1981. p.123.

22lUKÓCS, George. A Teoria do Romance. Lisboa: Presença, P .119.

23Lúcia convive o tempo todo com dilaceramento interior/exte­ rior . Mas a ruptura dos dois espaços cria uma situação insustentá­ vel para a qual a única saída é a morte.

24bacHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1981. p.221.

2 5 1 dem, ibidem, p.123.

26DE MARCO, Valéria. 0 Império da Cortesã. São P a u l o : Mar— tins Fontes, 1986. p .73.

27FREIRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos Rio de Janeiro: Jo­ sé Olympioo, 1951. pp.317-318.

28de MARCO t V3 1 g t~ i â . 0 I rnpê iro i dd Goir tGsS . Sâo Pâulo : Mâr tins Fontes, 1986. p.186. C AF3 í TLJL_0 V

EMÍLIA: A CONCHA HIBERNADA

Diva é o quarto romance urbano de José de Alencar e vem a pú­ blico dois anos após a publicação de Lucíola. Em Lucíola, Alencar traça o perfil da prostituta marginali zada pelo sistema familiar patriarcal. Diva é o perfil da burguesinha que se ajusta ao seu me i o soc i a 1 .

Após o perfil da prostituta, Alencar lança o perfil da donzela e na abertura de Diva, Paulo, o narrador de Lucíola, se dirige à mesma G.M. que transformara Lucíola em um livro. Paulo contrapõe estes dois perfis de mulher.

"Envio-lhe outro perfil de mulher, tirado ao vivo como o primeiro. Deste, a senhora pode sem es­ crúpulo permitir a leitura à sua neta". (D, p.7)

Emília, personagem principal do romance Diva, se adequa ao ideal de mulher da época. Após um romance escandaloso como Lucíola,

Alencar publica Diva, um romance não censurável e, na abertura des­ te dialoga com o anterior. No pós-escrito de Diva, na edição de

1865, Alencar registra rapidamente a frieza com que Lucíola foi re­ cebido pela crítica.

"Quando saiu à estampa a Lucíola, no meio do silêncio profundo com que a acolheu a imprensa da corte, apareceram em uma publicação semanal algumas poucas linhas que davam a notícia do aparecimento do l ivro..." (D., p.69)

Continuando o pós-escrito, ele diz que este silêncio é resultante da ousadia do tema e afirma, com certa ironia, que Diva foi melhor recebido pela crítica, talvez

"por vir pudicamente vestida, e não fraldada à anti­ ga em simples túnica, foi acolhida em geral com cei— ta deferência e cortesia".

Alencar publica, após o perfil da prostituta, o redentor per— fil da donzela, estabelecendo um diálogo entre Lucíola e Diva.

Emília percorre um caminho pessoal e social oposto ao de Lúcia r- e paralelo ao de Carlota e Carolina.' Ela sai do espaço fechado da casa contando com a proteção do pai e da família, freqüenta a so­ ciedade e sua história termina quando ela encontra um marido^. Lúcia sai da casa paterna para se prostituir e, por isto, não poderá se reintegrar ao sistema familiar.

0^ história inicia-se quando Emília tem quatorze anos e é uma menina reclusa no universo da casa. Enquanto menina, em fase de transição, ela não tem, fora do universo familiar, um referencial que a situe no meio social. Nesta fase de transição, não há, para a menina, um status que a situe na sociedade. Ela tem que passar por este processo de transição até que, naturalmente, a mulher substi­ 80 tua a menina. A partir de então, ela terá um status e um espaço no seu meio socií

Alencar situa a história de Emília neste período de transição, registrando as etapas pelas quais passa a adolescente até se tornar uma moça apta para o casamento, destino quase obrigatório da mulher da época. 0 romance começa quando Emília está com quatorze anos e é um ser hibernado, esperando que o tempo a liberte do inverno da adolescência.

Emília é o ser que entrou em sua concha para preparar sua saí­ da. No início do romance, ela é a menina numa situação -fisiológica e social i nde-f i n i das . 'El,ar nao~ e . mais criança, portanto nao tem mais os privilégios da infância e, ainda, não é mulher, para já ter seu papel social definido que é casar—se e ter filhos. Emília é o ser que se oculta preparando-se para se tornar um ser manifesto de que fala Bachelard.

"0 ser que se esconde, o ser que entra em sua concha prepara uma saída".^

0 confinamento ao espaço fechado da casa é um elemento básico na constituição da personagem.

0 comportamento esquivo, o temperamento fechado e a maneira de vestir são elementos importantes na constituição da personagem e passam a idéia do ser fechado em sua concha, enc1ausurado, ensimes­ mado e que não se relaciona com o mundo exterior. Emília é descrita inicialmente como:

"uma boneca, desconjuntada (...) como ela trazia a cabeça constantemente baixa, a parte inferior do rosto ficava na sombra (...). Restava apenas uma nesga de fisionomia para os olhos, o nariz e a boca ( . . .) A respeito do trajo, que é segunda epiderme da mulher e pétalas dessa flor animada, o da menina correspondia a seu físico. Compunha-se ele de um vestido liso escorrido, que fechava o corpo como uma bainha desde a garganta até os punhos e tornozelos; de um lenço enrolado no pescoço; e de umas calças largas, que arrastavam, escondendo quase toda a botina".

0 traje de Emília, sua "segunda epiderme" parece mais uma carapaça

que a esconde, isolando-a do mundo exterior.

Por trás da esquivança, das roupas e do cabelo utilizados como escudos e, principalmente, do comportamento arredio, está o ser que entrou na sua concha e prepara uma saída, à explosão do ser de que

fala Bachelard.

0 comportamento de Emília, enquando adolescente, é condizente

com o das meninas durante o período imperial. Gilberto Freyre afir­

ma que a infância das meninas era muito curta e que antes mesmo da

puberdade elas eram obrigadas a se portarem com sobriedade e viviam

enclausuradas nos sobrados.

"Menina aos onze anos já iaiazinha era, desde idade ainda mais verde, obrigada a "bom comportamen­ to" tão rigoroso que lhes tirava, ainda mais que ao menino, toda a liberdade de brincar, de pular, sal­ tar, de subir nas mangueiras, de ver o fundo do sí­ tio, de correr no quintal e ao ar livre".2

Julinha, prima de Emília, tem uma educação mais liberal. Desde menina ela freqüenta as festas dadas por sua mãe, é mimada pelos

convidados, e, ao chegar à idade de casar ela ainda é imatura fútil e superf i ci a i .

Quando Alencar contrapõe a educação de Emília e Julinha ele

registra que, na puberdade, a menina deve se recolher ao seu meio familiar porque nesta fase a sociedade poderá torná-la imatura e superficial. Tanto a volubilidade de Julinha quanto o forte caráter

de Emília são influenciados pelo fato de que elas passam de meninas a moças em idade de casar.

ffrlèm do recolhimento à casa e do fechamento em si mesma, o pu­

dor é outro elemento constitutivo de Emília e reforça a idéia do ser que entrou em sua concha. Este pudor exagerado não é gratuito.

Alencar, em Diva, traça o perfil da donzela em oposição ao perfil

da prostituta em L u c i o l a . 0 que perde Lúcia, e anula todos os seus esforços de regeneração, é a maculação do corpo. O que garante à

Emília um lugar na sociedade é seu status social e familiar e seu

pudor físico que a mantém imaculada.

0 relacionamento entre Emília e Augusto baseia-se em um jogo

de agressões e uma certa crueldade. No capítulo XIX, Augusto agride

fisicamente Emília, o que não impede que Paulo, o narrador de Lu-

c í o l a , ache o livro recomendável à neta de G.M. que não deveria nem

tocar nos manuscritos de Luciola. Alencar delimita bem os perfis de

dois tipos de mulher nas quais a oposição básica se constitui na

castidade versus prostituição.

Parece que a crítica e o público da época comungam com Paulo.

Esta opinião confirma Gilberto Freyre:

"Mais depressa nos libertamos os brasileiros, dos preconceitos de raça do que dos de sexo"

r1 A caracterizaçao inicial de Emília apresenta o prototipo da menina na sociedade patriarcal, enclausurada no universo doméstico.

Mas ela tem, apesar da timidez e do pudor, uma forte dose de ousa­

dia e desejo de explorar e conhecer o mundo, além dos muros da sua casa, mas restritas ao quintal. Se, por um lado, seu comportamento para com estranhos é o esperado, por outro, há nela -forte dose de ousadia e determinação que indicam a mulher decidida, controladora e temperamental que sabe exercer seu poder e que só capitula, ante o amor .

0 processo de conquista e ampliação do universo da personagem dá-se de -forma gradativa, partindo da conquista do universo fami­ liar para o social.

"a casa é o nosso canto no mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo, é um verdadeiro cosmos " . *

_ ____

Emília domina inicialmente este universo que lhe é destinado. Ela domina tão bem este espaço que passa a impor-se sobre todos os seus membros, inclusive sobre o pai.

A próxima etapa desse processo de conquista ocorre quando Emi- lia, vencendo o medo do mundo exterior, amplia seus domínios aos arredores da casa. Essa conquista é o resultado de um duelo entre seu medo e o desejo de conquistar e ampliar seus domínios. A pri­ meira tentativa de passagem do espaço fechado, conhecido e seguro da casa para o espaço aberto e desconhecido, fora dos muros a apa­ vora, e volta ela correndo para a segurança da casa.

"Vinham dali rumores vagos e estranhos misté­ rios que a estremeciam. Logo presa de grande pavor, fugia a abrigar—se no colo materno. Um dia venceu a tentação. A menina avançou afouta, cuidando encontrar perto a professora. Não a viu; quis retroceder e não teve ânimo; tornou a 84 avançar; o menor ruído a assustava, a mais leve som­ bra lhe incutia terrores e vertigens. Até que sucum­ biu num ataque de nervos. Emília esteve dois dias de cama. A mãe decla­ rou-a doente por uma semana. Houve larga discussão a respeito do grave acontecimento; um mês durante não se -falou de outra coisa. Julinha foi estar algum tempo com a prima para distraí-la; e a medrosa meni­ na se viu cercada dos maiores desvelos". (D., p . 28)

0 mundo exterior, os ruídos que vêm da noite e de fora, do mundo desconhecido têm um poder assustador e fascinante sobre o ho­ mem e é um tema explorado pelos escritores.

D desejo de ir atrás deste vago e fascinante mundo exterior persiste em Emília, apesar da traumática experiência. Ela não de­ siste e vai, lentamente, vencendo os seus medos, conquistando o mundo ao seu redor e estendendo seus domínios ao espaço externo que circunda a casa. Este processo indica que, paralelo ao seu cresci­ mento físico, à maturação do corpo, dá-se o amadurecimento emocio­ nal que fará emergir uma corajosa mulhi

"A teima infantil, que devia ser orgulho na mu­ lher, estava-se gerando naquele coração de menina. Uma noite, ao deitar, Emília jurou que arrosta­ ria tudo para atravessar ela só a alameda da cháca­ ra. Seu dito, seu feito, e logo feito. Os primeiros albores do dia a acharam já pronta. A exceção de al­ guns escravos, todos dormiam na casa. Esgueirou-se furtivamente pelas escadas e ga­ nhou a cerca. Da cancela até o fim da alameda foi uma corrida só e de olhos fechados. Lá parou, tomou fôlego e correu a vista espavorida pelas densas e escuras ramadas. Disparou nova corrida, mas já se­ nhora de si. Assim percorreu duas ou três vezes a alameda. Quando o sol nasceu, entrava ela sem ter sido pressentida, e metia-se na cama, onde sua mãe com pouco a foi despertar. Nesse dia Emília esteve de uma alegria que não mostrara recebendo a mais enfeitada de suas bonecas. Saltava de contente; a ponta de seu pé calcava mais firme o chão como se o quisera repelir, tanto o pas­ so era firme e altivo. A luz filtrava mais viva na pupila negra; a mão tinha tais ímpetos nervosos que partia as penas escrevendo, e amarrotava a custura". 85

A menina que enfrenta seus medos, amplia o seu universo prepa­ ra a mulher para enfrentar a sociedade. Emília, como parte do seu processo de amadurecimento, conquista e amplia o mundo a sua volta e, à medida que amadurece, a desengonçada menina se torna uma linda mulher. Ela altera e sofistica seu universo doméstico, que passa a ser um espelho refletindo as transformações da jovem. A transforma­

ção da casa, inicialmente simples e sem encanto, em uma mansão, dá- se paralelamente à transformação da adolescente desengonçado em uma linda mulher. 0 "esguiço de gente" condiz com a velha habitação, mas não com a sofisticada mulher na qual Emília está-se transfor­ mando .

"Um dia, Emília, que já começara a freqüentar a sociedade, surpreendeu sua alma triste e desconsola­ da no meio daquela velha habitação; pareceu-lhe isso um degredo dos ricos salões onde algumas noites se expandia a sua beleza. Disse então uma palavra. De repente o feio edi­ fício surgiu das ruínas maior e suntuoso, entre jar— dins, mármores e repuxos; foi coberto de vasos, pin­ turas e tapeçarias; encheu-se de ricas mobilias; te­ ve grande trem, numerosa criadagem e serviço magní­ fico à européia". (D., p p .29-30)

I As transformações da casa são um índice da sofisticação da personagem. A casa e o quarto são recursos utilizados pelos poetas e escritores para analisar os sentimentos e conflitos interiores das personagens.

"Há sentido em dizer que se "lê uma casa", se "lê um quarto" já que quarto e casa são diagramas de psico­ logia que guiam os escritres e poetas na análise da intimidade" .^ Alencar vale-se deste recurso de transformar casas em diagra­ mas de análise da intimidade de que nos fala Bachelard^ Emília, en­ quanto menina, filha de comerciante burguês, adequa-se à casa velha e sem encantos, como a própria personagemj Já a moça requintada na qual ela vai se transformando não pode ter como referência uma casa assim. Este tipo de mulher condiz com uma casa requintada, à euro­ péia. /Horta e bosques são espaços do universo da menina. A moça combina melhor com os jardins com repuxos e cascatas, nos quais acontecerão grande parte das cenas do romance, inclusive seu desen-

1 ace .

A sofisticação da casa, em Diva, registra a adequação da pei— sonagem ao seu status de mulher burguesa, herdeira de grande fortu­ na, mas sem tradição. Emília prepara-se para enfrentar a sociedade.

A casa, como Emília já é suficientemente sofisticada e a jovem po­ de, então, confrontar o interior; a vida doméstica, os valores in­ teriores, e sua integridade pessoal com os valores sociais que de­ legam ao indivíduo um espaço na sociedade. Este processo é um dado tratado no romance.

A adolescência é o momento em que convencionalmente a menina

"perde a graça". Seu corpo está indefinido e desproporcional. /Èste

é um período de ocultamento, porque, de transição, de letargia. Es­ sa passagem é largamente registrada na cultura ocidental inclusive nos contos de fadas. \

Branca de Neve desperta da sua morte aparente depois do beijo de um príncipe. A insípida Cinderela sai do seu retiro no borralho transformada numa linda moça que encantará o príncipe do reino. A

Bela Adormecida desperta também com um beijo de um príncipe, depois de um sono de cem anos. Emília, como Branca de Neve, Cinderela e a Bela Adormecida, faz sua estréia triunfante na sociedade do Rio de

Janeiro. A boneca desengonçada e enclausurada na casa, sem encan­ tos, sai da sua letargia adolescente transformada numa linda e in­ teressante mulher. Além da beleza, ela tem um espírito rebelde e

independente, é como

"o ser que se esconde, o ser que entra em sua concha prepara uma saí da "

'Esta saída é a revelação plena do ser que se fechara em sua concha,

é em um baile que Emília é oficialmente apresentada à sociedade da

Corte. 0 baile simboliza a passagem da condição de adolescente à condição de mulher,é o momento da revelação da mulher que estivera fechada no interior da casa, como a concha revela a pérola, até en­

tão, escondida.

"Por esse tempo Emília fez a sua entrada no Cassino. - Já viu a rainha do baile? disseram-me logo que cheguei. - Ainda não. Quem é? - A Duarte- zinha. - Ah! Realmente, a soberania da formosua e elegância ela a tinha conquistado. Parecia que essa menina se guardara até aquele instante, para de improviso e no mais fidalga salão da corte fazer sua brilhante me­ tamorfose. Nessa noite ela quis ostentar-se deusa; e vestiu os fulgores da beleza, que desde então arras­ taram após si a admiração geral". (D., pp.£0-2i)

Aqui, como nos demais romances, Alencar descreve o traje de

Emília. Nesse estágio da vida, ela é uma moça em idade de casar-se e precisa encontrar o casamento. é através do casamento que ela passará a ter um papel definido que é o de esposa e mãe. "Seu trajo era um primor do gênero, pelo mimoso e delicado. Trazia o vestido de alvas escumilhas, com a saia toda rofada de largos folhos. Pequenos ramos de urze, com um só botão cor—de-rosa, apanha­ vam as fofos transparentes, que o menor sopro fazia arfar, ü -forro de seda do corpinho, ligeiramente de­ cotado, apenas debuxava entre a -fina gaza, os con­ tornos nascentes do gárceo colo; e dentre as nuvens de rendas das mangas só escapava a parte in-ferior do mais lindo braço". (D., p.21)

mi lia, como uma debutante, está vestida de branco, que é a cor daquele que vai mudar de condição. Dentro da simbologia, o branco é a

"cor iniciadora, passa a ser em sua acepção diurna, a cor da revelação, da graça, da trans-f iguração..j"^ .

Esta trans-f i guração veri-ficada no baile do cassino é o momento da revelação do ser. é o despertar da Bela Adormecida. Com ela des­ perta, também o Castelo e todo o mundo à sua volta, h medida que

Emília vai saindo da fase desengonçada, ela altera a casa, os jar dins e todo o seu universo. Seu mundo acorda, e como ela, reveste- se de encanto e vida. t J (Os ritos de passagem marcam o novo papel que o indivíduo está assumindo no seu grupo. Estes ritos iniciam-no em uma nova situação social Após a passagem de menina para moça, Emília assume um papel

transitório nessa sociedade. É o momento do jogo, da sedução e da conquista de um marido que lhe dê, através do casamento, uma condi­

ção social definida e digna^

Emília é uma personagem do seu tempo, sociedade brasileira do século XIX.

"A liberdade de espírito, herdada do século XVIII não fere a moral familiar, esta permanece tal qual a definem no inicio do século XIX (...). 0 ho­ mem está para a mulher como a mulher para criança ou, o poder para o ministro, como o ministro para o súdito, escreve Bornald. Assim, o marido governa, a mulher administra, os filhos obedecem".® 89

Como afirma Simone de Beauvoir, é o marido quem governa, logo, uma mulher sem marido e sem -filhos não tem papel social, -fica à margem e com a vida desgovernada Dessa perspectiva, -fica claro porque Emília, depois de duelar com Augusto, acaba ajoelhada aos seus p é s .

"Quando dei acordo de mim, Emília estava a meus pés. Sem sentir eu lhe travara dos pulsos e a pros- tava de joelhos diante de mim, como se a quisera es­ magar. Apesar da minha raiva e da violência com que a molestava, essa orgulhosa menina não exalava um queixume; soltei-lhe os braços magados e ela caiu com a -fronte sobre areia. - Criança! ... E louca! . . . murmurei afastando- m e . Emília arrastou-se de joelhos pelo chão. Aper­ tou-me convulsa as mãos, erguendo para mim seu divi­ no semblante que o pranto orvalhava. - Perdão!... soluçou a voz maviosa. Perdão, Au­ gusto! Eu te a m o ! ... Seus lábios úmidos das lágrimas pousaram rápi­ dos na minha -face, onde sua mão tinha tocado. E ela ali estava diante de mim, e sorria submissa e aman­ te" . (D., p .65)

A submissão de Emília é a submissão pelo amor. Mas é também a capitulação social inerente à condição da mulher da época. São os mesmos condicionamentos que irmanam Emília e Aurélia. No início do romance Senhora, Aurélia afirma que comprou um marido, traste in­ dispensável a toda mulher honesta. Mesmo assim, o romance termina com ela ajoelhada, como Emília, aos pés de Seixas, chamando-o de amo e senhor. Por um lado, este depor as armas é uma característica que enquadra as personagens de Alencar no que Dante Moreira Leite chama de situação atípica de dependência, "do outro e, sobretudo, do outro que ama".^ Em geral, são as personagens -femininas que no -final colocam

pa esperando que o amado decida sua vida; Carolina é uma rola sem ninho, até que Jorge reapareça e dê um rumo â sua vida; Lúcia, que muda sua vida e morre em função de Paulo, não é compreendi da. Emí- lia e Aurélia terminam aos pés dos seus amados, sup1icando-1hes por r— um destino. Na sociedade do seculo XIX, a mulher e dependente do homem para ter dignidade social. 0 casamento e a maternidade fazem i\ ^ dela um ser socialmente integrado. Mesmo sendo um apendice do mari­ do, sua situação ainda é melhor que a da mulher não casada.

( Esta passagem de solteira para casada é uma constante nos ro­ mances j urbanos de Alencar. Todos eles, exceto L u c i o l a atêm-se a um período compreendido entre o namoro e o casamento, ou a sua consu­ mação, quando a história se encerra, (como se, ao casar—se, termi­ nasse a história da mulher. Isto reflete um certo condicionamento social descrito por Simone de Beauvoir.

"0 destino que a sociedade propõe tradicional­ mente à mulher é o casamento. Em sua maioria, ainda hoje, as mulheres são casadas ou foram, ou se prepa­ raram para sê-lo, ou sofrem por não ser. É em rela­ ção ao casamento que se define a celibatária sinta- se ela frustrada, revoltada ou mesmo indiferente an­ te essa instituição"

Este destino, de que fala Simone de Beauvoir, já no início do século XX, é ainda mais determinante na metade do século XIX e faz do marido a via mais legítima e socialmente aceitável para que a mulher cumpra seu destino, que é o de ser esposa e mãe ^

A mulher não casada é um pária, um ser que não cumpriu seu destino e que viverá sempre à sombra de um parente. Será um indiví­ duo inferior às mulheres casadas e às mocinhas que casam. Segundo

Gilberto Freyre, a situação social da mulher solteira é ainda mais

humilhante no patriarcalismo urbano decadente do século XIX do que

fora no auge do patriarcaiismo rural até o século XVIII.

"A mulher semi patriarcal do sobrado continuou abusada pelo pai e pelo marido. Menos, porém, que dentro das casas grandes de fazenda e de engenho. Nos sobrados, a maior vítima do patriarca 1ismo em declínio, (com o senhor urbano já não dispondo a gastar tanto como o senhor rural com as filhas sol­ teiras, que dantes eram enviadas para o recolhimento e os conventos com grandes dotes) foi talvez a sol­ teirona. Abusada não só pelos homens, como pelas mu­ lheres casadas. Era ela quem nos dias comuns, como nos de festas ficava em casa o tempo todo, meio go­ vernante, meio parente-pobre, tomando conta dos me­ ninos, botando sentido nas escravas, cozendo, cer­ zindo meia, enquanto as casadas e as moças casadou­ ras iam ao teatro ou à igreja. Nos dias de aniversá­ rio ou de batizado, quase não aparecia às visitas: ficava pela cozinha, pela copa, pelos quartos, aju­ dando a enfeitar os pratos, a preparar os doces, a dar banho nos meninos, a vesti-los para a festa. Era ela também quem mais tomava cuidado com os santos enchendo de jóias e tetéias o menino deus, Santo An- tonio, Nosso Senhor. Sua situação de dependência econômica absoluta fazia dela a criatura mais obe­ diente da casa. Obedecendo até às meninas e hesitan­ do em dar ordens mais severas às mucamas".^

Simone de Beauvoir e Gilberto Freyre ilustram como o homem na

sociedade do século XIX, mesmo em desvantagem econômica, tem um

status superior à mulher, á ele quem fará dela uma senhora e evita^

rá a dependência econômica e social. Para o escritor brasileiro,

há, em nossa sociedade do século XIX, três situações para a mulher:

a de mãe e esposa, que lhe confere uma posição definida; a da moça

casadoura, que deseja torna»—se uma senhora, e a da solteira, pária

social humilhada por todos. 0 medo dessa condição de ser de segunda

•categoria, provavelmente, é determinante para que as moças não se­ jam muito exigentes em relação à escolha de um marido. Nessa socie­ dade, qualquer marido é melhor que o celibato.

Enquanto os moços de alguma condição social vão para as uni­ versidades no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e, principalmente,

Coimbra ou Paris, as moças ficam em casa aprendendo ponto de cruz, receitas de doce e a manipular o bastidor. As mais modernas, a to­ car piano e cantar modinha.

"No que tange à instrução das mulheres, os hi­ gienistas achavam que a cultura das ciências era pa­ ra elas inútil e perigosa, exercendo mesmo influên­ cia perniciosa à sua saúde" . ^

Ingrid Stein confirma essa visão citando um -Fragmento da tese de José Tavares de Mello apresentada na Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro em 1841, quando ele afirma que o papel da mulher na sociedade:

"exige que elas não sejam ignorantes, porém não lhes é devido o mesmo grau de instrução dos homens, cujos destinos partilham e embelezam. 0 estudo moderado das artes de recreação é o único que lhes convém; porém somente como meio de adoçar as tristezas, sua­ vizar os aborrecimentos da solidão, lançar sobre o curso de sua vida doces e agradáveis distrações, de variar enfim os prazeres distraindo-as em seus tra­ balhos" . 13

Se um médico em 1841 ainda tem esta visão da inteligência das aspirações e do papel da mulher na sociedade, sua opinião, prova­ velmente, era partilhada por uma parte significativa da sociedade.

A condição de homens estudados, mesmo sem dinheiro, nivela os moços pobres às burguesinhas nos romances de Alencar. Em Diva, Au­

gusto, o médico sem fortuna, acaba subjugando a rica Emília e esta, ajoelhada a seus pés, entrega-lhe sua vida, sua alma, seu pensamen­ to e seu destino.

"Tu não és só o árbitro supremo de minha alma, és o motor de minha vida, meu pensamento e minha vontade. És tu que deves pensar e querer por mim. . . Eu?... Eu te pertenço; sou uma cousa tua. Podes con- servá-la ou destruí-la; podes -fazer dela tua mulher ou tua escrava!... é o teu direito e o meu destino. Só o que tu não podes em mim, é -fazer que eu não te ame ! . . . " (D . , P .6 6 )

Num primeiro plano, o que ocorre é a submissão pelo amor, mas, em Diva, Emília, após os jogos amorosos, quando encontra um marido, entrega incondicionalmente a ele sua vida e seu destino.

0 dinheiro*^ é um -fator muito importante nos romances de Alen­ car. Esta importância é explícita em Senhora e Sonhos d'Ouro, mas se -faz presente nos demais romances. Se contrapusermos o perfil da donzela e o da prostituta, veremos que as desvantagens sociais de

Lúcia em relação à Emília são esmagadoras. Emília é rica poderosa, enquanto Lúcia é pobre e marginalizada. Em Lúcia, os homens procu­ ram o prazer imediato e passageiro. Em relação à Emília, o prazer terá que advir do casamento, que dará ao marido direito de monopó­

lio. Lúcia representa o prazer marginal com o qual a sociedade é conivente; Emília, a institucionalização da família e o destino da mulher. Lúcia e Emília são oponentes do ponto de vista social e

o dinheiro é um fator importante de diferenciação entre elas, assim como o pudor que o narrador atribui a Emília ao

longo do romance. Esta última, apesar de certa perversidade, pode­ ria ser imitada por qualquer mocinha que lesse o romance. Lúcia provoca silêncio ou reações de oposição, porque a sociedade tolera a prostituta, como um mal necessário, desde que sua existência não 94 se torne pública nem ameace a instituição -familiar. Enquanto Emília está protegida pelo dote e pelo pudor, Lúcia está exposta à pobreza e à corrupção do corpo. Também Carolina, do romance A Viuvinha, mo­

ça pobre da periferia do Rio de Janeiro, estaria difamada se Jorge não se casasse com ela. Já Carlota, de Cinco Minutos, moça rica, não se preocupa com a opinião pública. Somente na carta que escreve ao narrador, ela justifica, na doença, sua ousadia e não demonstra qualquer interesse pelo que a sociedade possa pensar a seu respei­ to .

Emília tem consciência da sua beleza e do seu poder econômico, mas ela sabe também que os jogos amorosos têm por objetivo final o casamento. A Igreja Católica também atribui à mulher um papel se­ cundário na constituição da sociedade e da família.

Leão XIII afirma que:

"0 homem é o chefe da família e a cabeça da mu­ lher: esta todavia, por isso que é a carne da sua carne e osso dos seus ossos, deve submeter—se a seu marido, não a maneira de uma escrava, mas na quali­ dade de companheira, para que não falte nem a hones­ tidade, nem a dignidade na obediência que ela lhe prestar " . 15

Numa sociedade onde os valores morais, sociais e religiosos atribuem à mulher, como único papel social, o de esposa e mae, ela precisa de um marido que lhe dê direito a este papel. A passagem de

Emília pelos salões da sociedade do Rio de Janeiro situa-se no pe­ ríodo entre sua apresentação á sociedade e o casamento quando o ro­ mance termina.

Alencar situa a história de Emília no período compreendido en­ tre a transformação da menina em mulher apta para o casamento e sua busca de um marido. Ao encontrá-lo, encerra-se a história que obe­ dece a um ciclo que seria o do ser hibernado e que posteriormente se revela. Em companhia de outro ser que lhe atribui uma identida­ de, recolhe-se novamente. 0 romance en-foca o momento da passagem, no qual o ser oculto se revela, a ostra mostra seu fascínio, seduz seus pretendentes. Aquele que a possuir fechá-la-á novamente na ou­ tra concha, que habitará, a do lar. Só nestes domínios sua beleza agora se revelará.

üs romances urbanos de Alencar, exceto Luciola, terminam com o casamento ou sua consumação. Ao se constituírem num casal e reco­ lherem-se às suas vidas conjugais, as personagens saem de cena, co­ mo se, ao recolherem-se às suas casas, ou ao consumarem seus casa­ mentos, elas reatassem sua intimidade e a vedassem ao narrador. A

única exceção éLuciola*^, que termina com a morte da prostituta.

Em geral, a mulher do século XIX, com o casamento, reclui-se à casa, interessando-se, apenas, pelo universo doméstico.

Essa proposta de não narrar a vida conjugal não é uma constate na Literatura Brasileira da época, mas, apenas, dos romances urba­ nos de Alencar^. Após o casamento a história da mulher passa a ser a do seu marido e ela é deslocada para segundo plano, como um

apêndice. Se, por um lado, ao oferecer garantias sociais e econô­ micas, o marido viabiliza a função social da mulher enquanto esposa e mãe, por outro lado, ao casar-se, ela muda de casa, de família, de nome e torna-se um complemento do marido.

"A mulher, em se casando, recebe como feudo uma parcela do mundo, garantias legais que protegem-na contra os caprichos do homem, mas ela torna-se vas­ sala dele. Economicamente ele é o chefe da comunida­ de, é portanto ele que encara os olhos da sociedade. Ele toma-lhe o nome, associa-se a seu culto, inte- gra-se em sua classe, em seu meio, pertence a -famí­ lia dele, -fica sendo sua metade (...) mais ou menos brutalmente ela rompe com o passado é anexada ao universo do esposo, dando-lhe sua pessoa, deve-lhe virgindade e uma -fidelidade rigorosa".^®

Carolina, ao se acreditar viúva, -freqüenta a sociedade já que não tem um marido que lhe confira a condição de mulher casada. Com a volta de Jorge, ela também vai viver numa fazenda. Lúcia, por transgredir as regras morais e sociais, perde definitivamente o di­ reito a uma família e a um final feliz. Emília delega a Augusto po­ deres incondicionais sobre sua vida e seu destino.

P^A mulher só entra no mundo exterior para encontrar o marido que novamente a encerrará no universo da casa; cumprido este obje­ tivo, sua história narrável termina NOTAS

^BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo. Martins Fontes, 1988. p.123.

^FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos . Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. p .292.

3 Idem, ibidem, p .309.

^BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p 24.

^Idem, ibidem, p .55.

^Idem, ibidem, p.123.

^CHEVALIER, Jean et alii. Dicionário de Símbolos. Rio de Ja­ neiro: José Olympio, 1990. p .144.

8BEAUV0IR, S imone de. 0 Segundo Seno. Vol.I. São Paulo : Di­ fusão Européia do Livro, i960. pp.143-144.

^LEITE, Dante Moreira. Psicologia e Literatura. São Paulo: Hucitec, 1989. P .159.

10BEAUV0IR, Si mone de. 0 Segundo Sexo. Vol .II . São Paulo : Difusão Européia do Livro, 1960. .p.165.

ÜFREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos Rio de Janeiro: Jo­ sé Olympio, 1951. p .308.

l^STEIN, Ingrid. Figuras Femininas em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p .45.

Ibidem, ibidem, p . 45 .

^Alencar discute, no romance Diva, a questão do dinheiro e do aparecimento de um novo estrato social que é determinado, agora, pelo enriquecimento e não pela origem. Duarte, pai de Emília, é o protótipo do novo-rico que, apesar do dinheiro, continua simples e sem o refinamento do aristocrata:

"Esse homem, que representa na família um papel importante pela sua nulidade, é negociante; traba- 1hou toda a vida para enriquecer; depois de rico só vive para ser milionário. Essa febre nele não é ambição, mas destino. Quer a riqueza para seus filhos, parentes e amigos; para ele conserva a antiga mediocridade. Nunca até hoje o Sr. Duarte admitiu a menor alteração em seu sistema de vida, e nos hábitos do homem pobre e la­ borioso, que fora". (D., p.11) 98 Emília já é a segunda geração dessa burguesia nascente e sabe usu-fruir dos bene-fícios que o dinheiro lhe traz . Ela e Guida de S o ­ nhos d 'Ouro, são muito semelhantes nesse aspecto. Ambas já nascem ricas e vão aprimorando, sofisticando a sua maneira de viver. Ad­ quirem um traquejo ao qual a geração dos seus pais não teve acesso. 0 dinheiro dá a Emília maior trânsito e liberdade no universo so­ cial. Falando com Augusto a respeito do risco de alguém vê-la na casa de um homem solteiro, ela diz:

"Não tenha cuidado. Eu sou rica; não me comprometo". (D., P.46)

Além de não se comprometer exteriormente, porque é rica, Emília não se compromete interiormente, pois está protegida por seu pudor. Em relação ao dinheiro, é curioso notar como o casamento é uma forma lícita de enriquecimento, quando camuflada pelo amor, para o homem nos romances de Alencar, em Diva, Augusto é um pobre médico e Emília, a milionária. Em A Pata da Gazela, Leopoldo é um pobre e enfermiço moço que se casa com a rica e encantadora Amélia. EmS o ­ nhos d'Ouro o dinheiro é o tema principal do romance e o pobre e digno Ricardo casa-se com a milionária Guida. Em Senhora é a compra de Seixas por Aurélia que determina o fio condutor da história.

ISSTEIN, Ingrid. Figuras Femininas em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p . 39 .

Lúcia é vedado o direito à intimidade. A condição de pros­ tituta torna sua vida pública e passível de ser narrada. A condição de elemento espúrio é um fator determinante na constituição da per— sonagem.

17Cap itu, uma das personagens mais discutidas e analisadas da literatura brasileira, é descrita por Machado de Assis desde sua infância até seu exílio na Europa. Sua vida de mulher casada e sua intimidade doméstica são dados fundamentais na constituição da per­ sonagem e do romance.

1SBEAUV01R, S imone de. 0 Segundo Sexo. V o l .I I . São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965. p.169. José de Alencar, nos romances Cinco Minutos, A Viuvinha, Lu- cíola e Diva, f i ccional i za o espaço das personagens -femininas ao adotar, através da carta, uma linguagem coloquial e uma comunicação que não se limita ao intercâmbio epistolar entre o destinatário e o remetente.

Por enclausurar a história ao espaço -fechado da carta, José de

Alencar busca dar verossimi1hança ao texto e seduzir o leitor a partilhar dessa intimidade. Como parte dessa estratégia de verossi­ milhança, o autor introduz no corpo da carta referências a espaços e situações reais da cidade do Rio de Janeiro, visando induzir o

leitor a aceitar a verdade dos fatos e a comungar com as persona­ gens da mesma realidade.

Ao analisar o universo das personagens femininas, nos roman­ ces, verifica-se que os espaços de circulação permissíveis à mulher são delimitados. Os espaços dividem-se entre a casa e a rua. A casa

é o espaço "natural" da mulher, de onde ela só deve sair sob a pro­ teção familiar e ao qual deve retornar após o casamento. iOO

A rua é o espaço -freqüentado, provisoriamente, pela moça de

-família e o habitat obrigatório da prostituta. A casa e a rua esta­

belecem a distinção entre a senhora de -família e a mulher mundana.

As personagens -femininas de Alencar são prisioneiras da condição de serem mulheres.

Carlota, Carolina e Emília podem ser incluídas na mesma cate­

goria social de moças de família e encarnam o papel de mulheres in­

tegradas ao sistema familiar. As três freqüentam a sociedade até se

casarem. A partir de então, seus maridos tornam-se senhores dos

seus destinos e elas se retiram da sociedade.

Lúcia é o elemento perturbador da ordem estabelecida. Não por

ser uma prostituta; como tal, ela é tolerada pela sociedade. A per—

turbação advém da sua tentativa de fazer o retorno da rua para a

casa, da prostituição para a vida familiar, desestabi1izando a es­

trutura social e familiar delimitada. Para um elemento perturbador

da ordem, como Lúcia, a punição é sua exclusão definitiva do meio

soc i a 1 .

Josèv de Alencar delimita os espaços permissíveis à mulher de \ acordo com ste-^ situação social, mas tanto as moças de família quan-

\ to a prostituta em busca de reintegração são retiradas da socieda­

de: Carlota, Carolina e Emília através do casamento, e Lúcia, da

morte. Os romances terminam com todas elas enc1ausuradas em um es­

paço fechado: no leito conjugal ou no túmulo. BIBLIOSRAFIA

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