Nascimento E Morte Do Poder Popular Em Angola (1974- 1977)
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
Nascimento e morte do Poder Popular em Angola (1974- 1977) Maria Cristina Portella Ribeiro A partir de 25 de Abril de 1974, quando um golpe militar contra a ditadura chefiada por Marcelo Caetano desencadeia em Portugal a Revolução dos Cravos,1 abre-se em Angola uma nova situação política. A até então colônia portuguesa começará a viver um levante popular semelhante em muitos aspectos ao verificado na metrópole. Ambos terão como base a questão colonial e a democracia e irão dar origem a modelos de auto- organização da população. Assim como os portugueses, os trabalhadores de Angola, brancos e negros, começam a fazer greves e manifestações para exigir direitos. Nos musseques,2 os seus habitantes, quase todos negros, irão expulsar os informantes da PIDE-DGS,3 travestidos de comerciantes, organizar comitês para se defenderem das agressões da extrema-direita branca e garantir o abastecimento de gêneros de primeira necessidade. Na universidade e nas escolas secundárias, os estudantes irão criar os seus órgãos de representação e tentar vincular a sua luta à do conjunto da população. Nos quartéis, soldados brancos irão recusar-se a continuar a participar na guerra contra os movimentos de libertação, enquanto soldados negros vão exigir serem eles a policiar os musseques para defender os seus irmãos africanos. A independência de Angola começa a ser defendida timidamente por setores da população. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS/UFRJ) e bolsista do CNPq. 1 Nome pelo qual ficou conhecida a revolução que derrubou a ditadura do Estado Novo em Portugal, instaurou a democracia e chegou a questionar as bases do sistema capitalista no país. 2 Favelas com barracas construídas de areia onde viviam 400 mil africanos, em sua maioria trabalhadores não especializados com salários de miséria e empregadas domésticas. CEDETIM, p.122. 3 A Polícia Internacional de Defesa do Estado – Direção-Geral de Segurança (PIDE-DGS) foi a polícia política do Estado Novo em Portugal e nas suas colônias. 1 Greves ou tentativas de realizá-las por parte dos trabalhadores africanos,4 para reivindicar aumentos salariais e direitos, são registradas a partir de maio de 1974 na Cimianto (fabrico e comercialização de fibrocimento), na Indústria de Fósforos de Angola (IFA), na refinaria Petrangol (integrante do grupo belga Petrofina), na têxtil Textang, na Siderurgia Nacional e no porto de Luanda. No mês seguinte começa a revolta dos musseques, desencadeada pelo assassinato do enfermeiro negro João Pedro Benge por um branco. No seu funeral participam muitas centenas de negros e algumas dezenas de brancos, acompanhados por um forte dispositivo policial. É a partir dessa morte que as coisas vão mudar na sociedade angolana e nos musseques de Luanda em particular. Lojas são pilhadas e incendiadas por pequenos grupos formados ao acaso por homens, mulheres e crianças, prontos a dispersarem-se quando ameaçados pela presença policial, para logo se reagruparem, numa espécie de “guerrilha urbana”. Era a primeira grande explosão de raiva dos africanos dos musseques contra o racismo e a exploração a que estiveram submetidos durante tantos anos (Sarapu, 1980: 29-32). Mas era só o começo. A revolta dos musseques ganhará ainda maior dimensão a partir de julho, desencadeada pela violenta reação de motoristas de táxi, brancos como eram quase todos, frente ao assassinato de um colega. Alegando vingança, eles promovem uma verdadeira razia nos bairros negros, sem poupar mulheres ou crianças, com a neutralidade cúmplice da polícia. A partir daí os acontecimentos atropelam-se: generalizam-se os confrontos entre colonos e africanos; multiplicam-se os comitês de autodefesa e as comissões de bairro; a moderada Liga Nacional Africana convoca uma greve geral para 15 de julho; e, o mais importante, os soldados negros, em solidariedade com os seus compatriotas, recusam-se a participar da repressão e desfilam pelas ruas de Luanda, seguidos por uma multidão. No dia 18 de julho, o saldo de vítimas dos conflitos totalizava 35 mortos e 123 feridos.5 4 A primeira vaga de lutas em Angola no pós-25 de Abril teve na vanguarda setores privilegiados dos trabalhadores, majoritariamente brancos, como os bancários. 5 “Comunicado do Gabinete de Imprensa”, Diário de Notícias, 19/8/1974, p. 8 (Apud MARQUES, 2013: 40). 2 Após essa primeira fase, em que o povo se organizou militarmente para defender-se dos ataques dos colonos, o movimento evoluiu para um novo patamar: “(...) nós percebemos que o nosso povo tinha necessidade, não somente de se organizar militarmente, mas também satisfazer algumas necessidades, e então nos orientamos para a questão social. Desta forma, nossas CPB [Comissões Populares de Bairro], em vez de se contentarem em ser unicamente bases militares, são transformadas em organizações sociais, para tentar resolver os problemas de cada bairro.”6 Nas empresas, as lutas intensificam-se entre setembro e novembro, de acordo com a avaliação de Michel Cahen (1989: 218-222). Uma das mais importantes teve como cenário o porto de Luanda, onde milhares de trabalhadores portuários e ferroviários organizaram uma vitoriosa greve de seis dias por aumentos salariais, redução da jornada de trabalho, assistência médica e expulsão dos delatores da PIDE. Essa luta dará origem à criação de um novo sindicato, desta vez independente do estado desde o seu nascimento. Houve ainda a duríssima greve de mais de dois meses dos pescadores por mais direitos, parcialmente vitoriosa. Reacende-se, ainda, a luta na Siderurgia Nacional, na IFA e na Textang. Toda essa imensa mobilização operária será espontânea e dirigida por comissões de trabalhadores independentes, eleitas em assembleias de base. Pela primeira vez, o conjunto da jovem classe operária angolana experimentava essas formas de luta e organização (SARAPU: 28). Uma revolução com elementos de “duplo poder” Estávamos no início de um processo revolucionário cujo epicentro foi Luanda, enquadrável na clássica definição “leninista” de quando os de baixo não querem e os de cima não podem (Lênin, 1920: s/p), provocado por uma “crise nacional geral” que afetou exploradores e explorados, detonada pela Revolução dos Cravos. Os “de baixo” eram a população negra organizada nos seus locais de trabalho e moradia, enquanto os “de cima”, durante todo o ano de 6 Poder Popular, nº 6, 3/10/1975 (Apud SARAPU, 1980: 59), tradução minha. 3 1974, foram os representantes da metrópole portuguesa, cujo projeto7 em relação às suas colônias africanas foi-se alterando de acordo com o evoluir da situação política. A revolução em Angola teve suas inúmeras especificidades, mas guardou um dos elementos centrais de todas elas, o aparecimento, mesmo que em fase embrionária, de organismos de duplo poder.8 Cumpriram esse papel as comissões de trabalhadores e as comissões populares de bairro, num movimento denominado por todos os intervenientes de Poder Popular. Valdir Carlos Sarapu analisa que, apesar de o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) ser a base deste fenômeno coletivo, não se pode reduzir a sua existência a simples interesses de ordem tática desse movimento de libertação. Pelo contrário, “esse movimento popular espontâneo contra a presença colonial necessitava de um modelo ideológico para explicar as suas ações e, em seguida, projetar uma alternativa de sociedade, para substituir aquela que acabava de ser destruída. Tendo em vista o caráter extremamente popular da insurreição, para que este modelo seja aceite é suficiente apresentar fórmulas fáceis de entender e reter, mas que possuem, ao mesmo tempo, uma forte carga emocional: «o poder popular é o poder do povo»”(SARAPU: 54). A chegada dos três movimentos de libertação – além do MPLA, a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) – a Luanda, em novembro de 1974, após estarem assinados os acordos de paz com o governo português, não travou o Poder Popular. Pelo contrário, este demonstrou a sua força durante a chamada Batalha de Luanda, confronto armado entre MPLA e FNLA ocorrido entre março e agosto de 1975. Enquanto formalmente estava em funções o Governo de Transição,9 estas organizações, lideradas por, respectivamente, Agostinho 7 Havia vários projetos, desde o defendido pelo general e presidente dos dois primeiros governos provisórios do pós-25 de Abril, Antônio de Spínola, de manter o domínio português com outras roupagens; até o que acabou por ser posto em prática, de uma transição para a independência. 8 Segundo Trotsky, “o regime de duplo poder só surge num conflito irredutível de classes, só é possível, consequentemente, numa época revolucionária e constitui um dos seus elementos essenciais” (TROTSKY, 1950: 251), tradução minha. 9 O Acordo de Alvor, assinado em 15 de janeiro de 1975 por MPLA, FNLA, UNITA e o governo português, determinou que até a independência, marcada para 11 de novembro daquele mesmo ano, um Governo de Transição composto por esses três movimentos e um alto-comissário a representar Portugal, governaria Angola. O único item cumprido do Acordo de Alvor foi a data da independência. 4 Neto e Holden Roberto, enfrentaram-se quase que diariamente, em escaramuças mortíferas que tiveram por cenário a periferia de Luanda, mais precisamente os musseques. Os seus habitantes não hesitaram em posicionar-se ao lado do MPLA. Mais do que isso, tiveram um papel de vanguarda durante os seis meses de conflito, sob a direção das comissões de autodefesa das Comissões Populares de Bairro (CPB). Segundo Sarapu, será o Poder Popular, na sua acepção mais ampla - que incluiria os militantes das várias tendências políticas no interior do MPLA; a população dos musseques sob a direção das comissões de autodefesa; os trabalhadores organizados nas comissões de trabalhadores; e a vanguarda estudantil integrada no MPLA - que irá assegurar a vitória das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA), o exército do MPLA, na Batalha de Luanda. Após a expulsão das forças da FNLA e UNITA da capital angolana, a guerra entre os movimentos de libertação prosseguiria no interior do país.