Uma Punhalada Na História Lara Pawson 163 Citação, Os Autores Levantam Suspeitas O Casal Mateus Diria Provavelmente Que Quanto À Veracidade Da Mesma
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rece n s ão DALILA CABRITA MATEUS Uma punhalada e ÁLVARO MATEUS Purga em Angola – na história nito Alves, Sita Valles, Zé Van Lara Pawson Dunem, o 27 de Maio de 1977 Lisboa, Edições ASA, 2007, 208 páginas quilo que não foi publicado acerca do 27 de Maio A ao longo das três últimas décadas consegue ser tão intrigante quanto aquilo que o foi. A ausência de infor- mação pública sobre um dos mais significativos aconte- cimentos da história de Angola dos últimos cinquenta anos é frustrante, e exemplar da natureza autoritária do regime do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Tão-só por esse motivo, estas cerca de 200 pági- nas, da autoria de Dalila e Álvaro Mateus, constituem um contributo valiosíssimo. O aspecto mais forte do texto resulta da circunstância, nova e necessária, de os autores se recusarem a aceitar uma vírgula sequer da versão oficial que o MPLA propala acerca dos aconteci- mentos, não obstante a ampla aceitação O primeiro capítulo apresenta-nos os qua- de que tal versão ainda goza, nomeada- tro homens que não se limitam a ser os mente entre estrangeiros – intelectuais, protagonistas desta obra; são verdadeira- jornalistas e observadores da realidade mente os heróis não celebrados do MPLA angolana. Ao invés, insistem em aprofun- e de Angola. Eduardo Artur Santana Valen- dar a outra faceta da história, a perspectiva tim, dito «Juca Valentim», José Jacinto da do «outro MPLA» como gostam de se lhe Silva Vieira Dias Van Dunem, João Jacob referir. É pena que essa ambição, ao desa- Caetano, dito «Monstro Imortal», e Ber- fiar corajosamente tanta sabedoria esta- nardo Alves Baptista, mais conhecido por belecida, acabe por se revelar a principal «Nito Alves», «não eram burocratas, fraqueza da obra. vivendo no aconchego das suas residên- cias, em Brazzaville, Lusaca ou Dar-es- O OUTRO MPLA Salam. Eram combatentes pela libertação Logo de início, não há margem para dúvi- do seu povo, guerrilheiros, clandestinos e das quanto às simpatias dos autores. presos, que tinham arrostado mil peri- RELAÇÕES INTERNACIONAIS junho : 2008 18 [ pp. 161-165 ] 161 gos». Basta conhecer minimamente a his- homens absorveram durante os muitos tória do MPLA durante a guerra de anos que dedicaram ao combate, integrados libertação para se detectar o golpe desfe- na guerrilha da 1.ª região. rido a Agostinho Neto, Lúcio Lara, Henri- E é aí, na 1.ª região, uma das seis zonas que Teles Carreira «Iko», entre outros, ou em que o MPLA dividiu o país para fins seja, a geração dos mais velhos que «lutou» militares, que se encontra a chave para se pela liberdade na relativa segurança do perceber o 27 de Maio. A região abrange exílio. Em contraste, os quatro «Heróis de o canto noroeste de Angola (excluindo Angola», título do primeiro capítulo, eram Cabinda), isto é, as províncias do Zaire, jovens que arriscaram as próprias vidas e Luanda, Uíge e Cuanza Norte. Durante permaneceram no país, envolvendo-se em grande parte da guerra de libertação, as batalhas militares reais ou operando a poucas guerrilhas que operaram sob a lide- partir de influentes células clandestinas rança de Nito Alves e do «Monstro Imor- em Luanda. A pesquisa original dos auto- tal» foram mais ou menos abandonadas à res, baseada nos arquivos da Polícia Inter- sua sorte pelo movimento. O único apoio nacional e de Defesa do Estado (PIDE), e logístico que lhes chegava dependia das em aturadas entrevistas a familiares e ami- vontades de Zé Van Dunem e das suas gos próximos, proporciona alguns deta- redes clandestinas em Luanda. Contudo, lhes esclarecedores. apesar do seu isolamento, esses extraor- Por exemplo, Juca Valentim concebeu um dinários guerrilheiros conseguiram o dicionário criptográfico destinado ao envio de «feito histórico» de se furtar aos ataques mensagens codificadas durante as lutas de quer da FNLA, quer das forças coloniais libertação. Segundo a PIDE, era um «acti- portuguesas durante cerca de treze anos. vista subversivo de grande envergadura». O casal Mateus alega que não é apenas a Zé Van Dunem, um homem apaixonada- independência de Angola que deverá ser mente dedicado ao MPLA, «vivia com grande creditada a esses homens, mas também, intensidade (mas) tinha sempre tempo e isso é um ponto que sublinham de forma para tudo», cantando o «hino» partidário enfática, a ascensão do MPLA ao poder. enquanto o transferiam de uma prisão colo- Cabe então perguntar por que foram mor- nial para outra, e desempenhando um papel tos, não pelos seus inimigos, mas sim pela charneira nas redes clandestinas de Luanda. sua própria família política? A resposta, O «Monstro Imortal», esse, nada temia, segundo este livro, reside na personalidade realizando mesmo a façanha de atravessar de Agostinho Neto, que «conduzia o Movi- o território da Frente Nacional para a Liber- mento a seu bel-prazer, favorecendo uns tação de Angola (FNLA), no auge do con- e humilhando outros». flito, para alcançar Brazzaville e angariar Para ilustrar a natureza maliciosa de Neto, mais armas e mantimentos para os guerri- o leitor é levado a percorrer o historial do lheiros do MPLA. Diz-se que terá induzido MPLA: das posições críticas de Viriato da Nito Alves a estudar os Fundamentos do Mar- Cruz em 1962 – de que Neto restringia o xismo-Leninismo, um texto que ambos os acesso dos negros às posições cimeiras do RELAÇÕES INTERNACIONAIS junho : 2008 18 162 MPLA – à crescente desilusão de Daniel jornalista experiente. Pior ainda, as suas Chipenda em relação a Neto e à cisão ocor- insuficiências poderão levar um leitor rida no seio do movimento. Os autores menos inclinado a simpatizar com o seu referem-se aos «dois mestiços», Lúcio Lara ponto de vista a duvidar da validade de e Iko Carreira, dando a entender que Neto algum material aqui utilizado. Por exem- lhes terá confiado cargos de chefia em vir- plo, quando Neto regressa a Luanda depois tude da sua cor. As ilações do texto são de do exílio, aclamado por milhares de que Neto, um africano negro que ambi- apoiantes, diz-se que terá confidenciado cionava liderar um país da África negra, ao médico Eduardo Macedo dos Santos, sabia que nenhum assessor de tez mais um amigo chegado: «Estamos perante uma clara teria qualquer hipótese de lhe fazer força estruturada e considerável. Temos sombra. Lenta mas intensamente, o retrato de a conhecer por dentro e de a desman- de Neto construído pela dupla Mateus vai telar.» Uma revelação extraordinária, que ganhando consistência e deixa vislumbrar segundo os autores deverá ser encarada um homem que ao recusar qualquer diver- como a prova óbvia da existência de planos gência de opinião, estaria sempre desti- predefinidos para depurar o movimento nado a tornar-se um ditador. dos elementos que o ameaçavam, pelo Para além da sua pesquisa original, os menos do ponto de vista de Neto. Esses autores dependem – por vezes mesmo elementos seriam os «heróis» da 1.ª região demasiado – dos dois tomos de Jean- e respectivos apoiantes, os quais não -Michel Mabeko Tali, Dissidências e Poder de seriam poucos. Na substância, a citação Estado: O MPLA perante Si Próprio (2002). pode ser verídica: existem dados sólidos Porém, contrapondo-se a Tali – cuja relu- segundo os quais o 27 de Maio poderá ter tância em responsabilizar Neto por qual- sido uma encenação, questão que voltarei quer página negativa da história de Angola a focar. No entanto, esta citação-chave, em é um dos aspectos menos conseguidos da torno da qual o livro gira, não tem um sua excelente obra –, os autores de Purga registo directo. Trata-se de alguém que em Angola nunca se coíbem de apontar o cita outrem, que por seu turno cita outra dedo a Neto. Mas, por outro lado, fazem pessoa – por sinal falecida. uma análise demasiado condescendente Uma cadeia anedótica do mesmo cariz de Alves. A sua postura demagógica, surge noutro capítulo. Segundo os autores, salientada por muitos dos angolanos que pouco tempo depois de Zé Van Dunem e tive oportunidade de entrevistar – tão- Alves terem voltado da sua viagem à União -pouco favoráveis a Neto –, está inteira- Soviética, em 1976, onde participaram no mente ausente desta obra. XXV Congresso do Partido Comunista, Lara terá sussurrado a Neto que Alves pre- SUSSURROS CHInEsEs parava um golpe de Estado. Até é possível Por vezes, o texto desvia-se da objectivi- que Lara o tenha feito, mas à falta de uma dade que o leitor esperaria destes autores, melhor sustentação para esta informação, uma académica com obra publicada e um que não a citação de uma citação de uma Uma punhalada na história Lara Pawson 163 citação, os autores levantam suspeitas O casal Mateus diria provavelmente que quanto à veracidade da mesma. sim. Aliás, à medida que se avança pelo Independentemente dessas insuficiências, livro adentro, vamo-nos deixando persua- quem queira ter uma imagem tão completa dir pelo seu argumento de que os nitistas quanto possível do 27 de Maio não pode terão sido tramados, e quiçá mortos, por deixar de ler Purga em Angola. Reveste-se uma facção da elite do MPLA. O seu livro de particular interesse a sugestão relativa desmonta alegações oficiais que atribuem à tentativa de pretenso golpe nitista, na a um grupo de nitistas a autoria de um realidade uma «intentona» organizada por crime que vitimou várias figuras de topo um rol de figuras de proa do MPLA, tais do MPLA, queimadas numa viatura no Sam- como Neto, Iko, Henrique Santos «Onam- bizanga. Recorrendo a dados da sua pró- bwé» e Lara, em articulação com a lide- pria pesquisa, adiantam a hipótese de esse rança cubana. Poderá também, segundo a acto horrendo ter sido organizado por argumentação exposta, ter sido inspirado, agentes da DISA para justificar a purga bru- senão mesmo instigado, pelos Estados tal que, sem sombra de dúvida, ocorreu no Unidos através da CIA: os autores referem rescaldo do 27 de Maio em Angola.