Analise da ruptura da submissão feminina no cinema da década de cinquenta, incorporadas nas personagens de Monroe1

SANTOS, Tássio2 FERREIRA, Maria de Fátima3 Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Resumo: O papel midiático nas décadas de 50 e 60 não era meramente o de entreter uma burguesia conformista pertencente ao mundo social pós-guerra. A revolução eletrônica contemplou a mídia com um forte poder de formação cultural e subjetivo, como a influência que exercia nos padrões cotidianos das populações urbanas e a produção intensa de questionamentos sobre a feminilidade em função do doméstico. Portanto, o presente trabalho propõe resgatar a importância dos meios de comunicação preocupados em transmitir o comportamento dos jovens não-conformistas de diversas idades. Essa pesquisa é uma análise da ruptura da submissão feminina no cinema americano, a partir do novo foco que a mulher ganha nas representações cinematográficas. Será analisado a postura, comportamento e aparência das personagens representadas pela atriz , seu pioneirismo em comunicar a sensualidade feminina na mídia e sua inserção no mundo que antes era considerado dos homens. Foi possível perceber que o protagonismo de Marilyn Monroe, além de inspirar a sociedade em outros campos, reforçou a discussão sobre o “ser mulher” na época.

Palavra-chave: Mídia; cinema; feminismo; Marilyn Monroe

Introdução Dentre a vasta produção do cinema hollywoodiano na década de 1950, assistimos películas que transmitiram filmes protagonizados por consagradas estrelas. Entre elas estava Marilyn Monroe, uma atriz que começava a trilhar sua carreira na área cinematográfica. Seu expressivo lado feminino e sua valorização corporal a legitimaram como um símbolo sexual e de consumo da época. Mesmo depois de completar 51 anos de sua morte, a atriz continua sendo lembrada nas peças publicitárias, tomada como

1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Audiovisual e visual, integrante do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013

2 Tássio Santos é estudante do curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, do Centro de Humanidades, Artes e Letras – CAHL, em Cachoeira /BA, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. E-mail: [email protected]

3 Professora Adjunto II do Curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, do Centro de Humanidades, Artes e Letras – CAHL, em Cachoeira /BA, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. E-mail: [email protected] inspiração na criação de cosméticos e tendo seu ideal de beleza reproduzido por todo o mundo. Mas quem realmente foi essa mulher que é tão referenciada pela mídia? Qual sua posição enquanto mulher na época em que viveu? Que tipo de mulher suas personagens representava? Inicialmente é preciso compreender todas as transformações sociais que começava a eclodir no mundo ocidental após a segunda guerra mundial e contextualizar o modelo de sociedade vigente para então entendermos o papel pioneiro que Marilyn Monroe exerceu nos cinemas. Para tanto, ao longo deste trabalho, recorrerei a alguns sociólogos que se propuseram a estudar esse cenário de transformações sociais profundas. Dentre as já conhecidas consequências da segunda guerra mundial (1939-1945) – entre elas a hegemonia econômica dos EUA – e a estrutura política internacional que deu início a guerra fria, observa-se um período de “paz” e prosperidade no qual acionou o descontentamento de novos grupos e atores sociais que mostraram revolucionárias tendências e novas formas de ler o mundo. A narrativa sociológica que usamos para compreender hoje esse período começa com a transição da sociedade de produção para a sociedade do consumo, nos países desenvolvidos e identificados como capitalistas; a revolução eletrônica; e o novo papel que a mídia exercia na construção da cultura e da subjetividade. Ao contextualizar a época, é imprescindível não revelar a questão de gênero no comportamento da sociedade e o modelo disciplinar que as famílias brancas de classe média – no qual a posse de bens, como carro e eletrodomésticos, colocava-se como elemento primordial para o bem estar individualista – onde era nitidamente determinado a posição que a mulher iria ocupar, e até então, sem nenhum questionamento de novos arranjos familiares que abririam para o campo da liberdade na escolha. Esse modelo de família nuclear “era uma das instituições fundamentais que banalizavam a propriedade privada e um estilo de vida altamente consumista, no qual, cada família mantinha seus status e seu senso de privacidade através do uso e acumulação de um máximo de bens materiais” (ADELMAN, 2009, p.55) As indagações a essa ordem social que aprisionava a mulher à domesticidade foi o embrião para a “segunda onda feminista” 4.

4O que foi chamado de segunda onda do movimento feminista começou a dar seus primeiros passos no final da década de 60 nas primeiras conscientizações das mulheres e principalmente suas observações “Porém nos meios de comunicação, que cada vez mais influenciavam os padrões cotidianas das populações urbanas, os anos posteriores à conquista do sufrágio feminino se caracterizaram pela intensa produção discursiva de uma feminilidade definida em função do doméstico – o que por sua vez era como já que viu aqui, um dos grandes suportes do status quo e de um conformismo social vinculado à reprodução de papéis sociais rígidos e bastante policiados (...) No entanto, estes mesmos meios de comunicação (...) vinham, por outro lado, criando e espalhando novas imagens, por mais contraditórias e ambivalentes que fossem, sobre a sexualidade feminina e a inserção das mulheres no mundo que antes era reservado aos homens.” (ADELMAN, 2009, p.35).

A mulher era rendida aos trabalhos domésticos, abdicadas de sua sensualidade e tinham seus destinos como mães provedoras da educação dos filhos sendo traçados desde longa data5 – essa imagem é muito bem transmitida nos meios de comunicação de massa, sobretudo no cinema em filmes produzidos na época, como Juventude Transviada (1955). Mas, ao passo que as mulheres engatinhavam para desprender de seu personagem nessa sociedade pós-guerra, os meios de comunicação também desempenharam importante influência no padrão cotidiano das populações urbanas. O cinema foi o primeiro grande comunicador de massas do século XX e retratou também em suas produções imagens de uma nova maneira de “ser mulher”, além de ajudar a criar um espaço de aspiração feminina que extrapolasse o papel de esposa e vocação materna (ADELMAN, 2009). “A mulher é vista nos filmes da década de 50 da mesma maneira que nas décadas anteriores, ou seja, uma mulher que políticas estruturais dentro do movimento dos direitos civis dos negros, o que facilitou no estabelecimento de comparações entre suas posições em uma segunda classe.

5As mulheres nessa época eram vistas como opressoras porque tinham um papel importante na manutenção dessa ordem social estável financeira. Eram elas responsável para transmitir a educação normativa da época. Porém, os jovens se votam contra essas mulheres e por isso mesmo excluíram as mulheres dos primeiros movimentos sociais, já que eles não acreditavam em uma preparação para a vida externa.

renuncia aos seus próprios desejos em favor do desejo masculino. E os filmes a caracterizam como um objeto de desejo domesticável. Sempre precisando de um homem que a deixe “segura” contra suas próprias fraquezas femininas e que, além do mais, seja vulnerável economicamente. Ela ainda é representada nos filmes como um ser que não pode ser dono de seu prazer e de sua vida, é totalmente dependente do homem para satisfazer-se, sendo inserida nos filmes como fetiche, algo belo e inacessível, causando assim um imenso prazer visual ao homem, que se coloca como um voyeur diante de tais imagens.” (CARDOSO & FREITA JUNIOR, 2009, p.11)

A trajetória de Marilyn Monroe se desprende um pouco dessas características e leva essa essência para suas personagens. A valorização de sua aparência ganha força nos filmes e seu corpo passa a ser objeto de deleite masculino. “Os corpos curvelíneos são valorizados e falam tanto quanto os rostos e os lânguidos gestos, celebrizados pelo cinema noir” (Ullmann, 2004, p. 95). Como veremos a diante, as personagens da atriz sempre via em um homem rico um estado de segurança e conforto, mas durante todo seu percurso houve ações feministas que a destacaram e por muitas vezes fora criticada. Dessa forma, faz-se então imprescindível pesquisar em que posição estavam encaixadas as personagens da atriz, com o propósito de conceituar sociologicamente a submissão feminina ao gênero masculino, analisando a ruptura do engessamento da a qual estava submetida a vida das mulheres. Este trabalho tem como objetivo estudar as personagens da atriz a partir das teorias do cinema e de gênero, identificando as ações feministas de Marilyn Monroe e compreendendo a importância de seu pioneirismo em comunicar o lado sensual da mulher no cinema, a “mulher liberta” (BEBIANO & SILVA, p.6), analisando não só sua postura nos filmes, mas também outros indicadores, tais como comportamento e aparência, que influenciaram não só o campo social, mas também o artístico. Para a construção do presente trabalho foram analisados dois filmes: Os Homens Preferem As Loiras (1953) e O Pecado Mora ao Lado (1955), pois serviram de exemplo representativo da posição feminina retratada no cinema hollywoodiano. Entre aparições e protagonismo, a filmografia de Marilyn Monroe abrange mais de 50 trabalhos, portanto, em um momento posterior pode-se incorporar outros filmes. A escolha dos dois filmes foi dada porque além de envolver o comportamento da mulher, reflete traços de uma sociedade preconceituosa que posicionava o homem no pico da hierarquia social sob “um viés masculinista que permeia todo o pensamento social ocidental” (Adelman, 2009, p.85). Ainda sobre a importância dos filmes, eles são altamente expressivos em seus devidos gêneros – comédia, musical e romance - e os que mais carregam o sucesso da protagonista6. Eles alcançaram um sucesso maior do que as outras produções estreladas pela atriz, sendo premiada pela sua performance em Os Homens Preferem As Loiras (1953) pelo Globo de Ouro e eternizando cenas como a do vestido esvoaçante em O Pecado Mora ao Lado (1955). Apesar da segunda onda do movimento feminista culminar nos anos 60, a importância de trazer filmes da década anterior é relevante para compreender o início do que seria o rompimento da dominação masculina sob as mulheres. Segundo Turner (1993), nos anos 50 o desejo sexual masculino se intensifica e há um aumento no consumo de artigos sexuais. É nesta década, mais precisamente em 1953, que é lançada a Playboy que trazia Marilyn Monroe como a primeira pessoa a posar nua para a revista. Essa e outras ações a elegeram como um símbolo sexual desejado por todos os homens da época. Seu estilo de viver e vestir ainda são referenciados atualmente nas peças publicitárias, coleções de cosméticos e tido como inspirações no campo da moda.

Musa inspiradora

Na maioria das produções da época, a mulher ainda era vista encaixada nas normas que regiam a sociedade, uma mulher que renunciava seus próprios desejos em favor do desejo do homem. Além disso, o prazer da mulher não passava das barreiras do domesticável; vários filmes encenavam a felicidade da mulher preocupada com a educação dos filhos, cuidando da casa, preparando o café da manhã para a família e claro, dando a última ajeitada na gravata do marido antes da jornada no trabalho. A personalidade das mulheres estava resumida a dois pontos: carência – sempre necessitando de um homem forte para reparar suas fragilidades – e vulnerabilidade financeira – dependência da figura do homem provedor. Era conveniente para os

6Na rede social Filmow, eles são os mais assistidos e comentados pelos usuários. Link para acesso: bit.ly/L4ROU2 homens deixarem a mulher nessa condição. Simone de Beauvoir argumenta sobre o livro Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, afirmando que os homens tinham nas mãos “todos os poderes concretos, eles trabalhavam também para manter as mulheres em estado de dependência” (Beauvoir, 1949, p. 189). Os homens acabaram criando mitos dessa cultura ocidental, o mito da Mulher está entre eles e traz o conceito do Eterno Feminino. Esse mito nada mais é do que um fruto das relações de poder e como diz Beauvoir “poucos mitos foram mais vantajosos do que esse para a casta dominante: justifica todos os privilégios e autoriza mesmo abusar deles” (p. 314). Dos dois elementos que compõe esse mito, o primeiro refere-se à noção da Mulher como enigma e sua glorificação no discurso poético romântico masculino. As mulheres são verdadeiras musas inspiradoras da cultura e fazem com que os homens as descrevam nas poesias, retratem nas pinturas e inspirem nas melodias. A primeira vista, esse elemento as enaltece, porém, é uma reparação disfarçada do papel já tratado aqui que a normatização as submete. Além do mais, o fato de estarem na posição de inspiração, as mulheres não são contempladas com o papel de produtoras de cultura. Esse elemento pode ser descrito como a cena de uma mulher posando para um pintor, exercendo um papel passivo no processo, enquanto o artista a toma como inspiração manifestando seu respeito ou deferência7. O segundo elemento dessa construção de Mulher pelos homens, é a sua sexualidade que se propaga pelo silenciamento cultural do desejo feminino. As mulheres não tinham direito de ter prazer sexual porque eram objetos de desejo do homem. Ao serem mitificadas, elas se tornam quase santas e as mulheres reais passam a não existir nessa teoria. Adelman salienta que embora Beauvior não acredite no poder do mito e a homogeneização que a realidade das mulheres exerce na sociedade, ela não deixa de apontar a atenção que as “mulheres reais” devem ter para não deixar o mito – e todas suas relações de poder embutidas – influenciem no seu comportamento.

Marilyn Monroe

“Se eu tivesse seguido todas as regras, nunca teria chegado a lugar nenhum”. Este é um dos muitos pensamentos críticos de Marilyn Monroe ao longo de sua carreira

7Com essa manifestação de distanciamento, os homens não queriam reconhecer as mulheres como seres iguais a eles, de carne e osso, humanos que sentem desejos carnais e que aspira liberdade. que gravitou em torno do sucesso prodigioso. Nascida em em Junho de 1926, Norma Jean Mortenson foi filha de Gladys Pearl Baker e pai desconhecido. Mais tarde foi batizada de Norma Jean Baker. A sua mãe teve que largar o emprego em uma editora de filmes para ser internada em uma instituição de doentes mentais. A partir daí, Norma viveu em um orfanato e foi acolhida por uma família onde passou cinco anos, a família Goddard, que a abrigou, mas teve que se mudar para o leste dos EUA e não teve condições financeiras que leva-la. Foi onde então, aos 16 anos, que Norma viu no casamento uma oportunidade de sair do orfanato e casou-se com Jimmy Dougherty, de 21 anos, com quem namorava há seis meses. Devido à entrada de seu marido na marinha, Norma começa a trabalhar em uma fábrica onde é descoberta por um fotógrafo e a convida para posar como modelo. Nesse momento americano, as mulheres ganham força no mercado de trabalho por não ter um marido presente para propor seu sustento. Sobre a inserção das mulheres no mercado de trabalho, “é aqui que veremos mulheres trabalhando longas jornadas diárias (...)” (MELLO, 2012, p. 64). A partir daí, Norma passa a estampar várias capas de revista como modelo profissional e começa a cursar teatro. Em 1946 ela assina um contrato com o estúdio Twentieth Century Fox, tinge o cabelo de loiro e assume o nome artístico de Marilyn Monroe. Marilyn Monroe nunca foi chamada de feminista, pois o termo ainda não estava em uso difundido em sua vida, além de que o movimento só aparece anos depois de sua morte. Entretanto, suas ações são consideradas de cunho feminista, uma vez que começava a se rebelar contra as convenções sociais, a exemplo das causas de seu primeiro divórcio com o marinheiro Jimmy Dougherty, e oito anos mais tarde com o jogador de basebol Joe DiMaggio, ambos não apoiavam seu trabalho e sua imagem sensual exposta na mídia. Se ela tivesse vivido mais alguns anos, até meados dos anos 1960, o movimento feminista poderia ter oferecido o conceito de sexismo como uma maneira de compreender a opressão e a ideia de fraternidade e apoio. Ao considerá-la um ícone importante na história, vale ressaltar sua carreira entre as duas ondas do movimento feminista, a primeira dada com a conquista do voto feminino nos EUA em 1919 e a segunda a partir dos movimentos sociais dos anos 60. Ela é referência no campo artístico por passar através das telas do cinema uma mulher assumindo uma suposta independência em todos os aspectos da vida social. Assistimos suas personagens ganhando as ruas, distante daquela mulher presa à domesticidade que vimos até agora. Entre seus prazeres não estavam em cuidar do lar e da família e sim uma satisfação – por vezes sexuais – próprias. Nos filmes analisados, Marilyn Monroe trazia uma imagem diferente da mulher de sua época. A década de 50 foi considerada um momento difícil para as mulheres8 por ser extremamente conservadora e regida por regras, mas os papéis da atriz nos filmes iam em direção contrária aos bons costumes do ser mãe, dona de casa e “mulher para casar”. Ela teria sido uma faísca para as mulheres com pleno domínio sobre os homens, o que seria mais tarde chamado de femme fatale. Suas personagens sempre estavam inseridas no mundo que pertencia ao masculino e traziam uma nova mulher sedutora, elegante e desinteressada na padronização da feminilidade. Segundo Lipovetsky (2000, p.170), elas representavam “o erotismo feminino sem o satanismo da carne e com uma vitalidade divertida”. Por transcender a normatividade imposta pela sociedade, a atriz teve que ultrapassar alguns obstáculos e diversas vezes questionou o sistema patriarcal hollywoodiano que a tratava como prostituta. Ela sempre viu sua sensualidade como uma forma de conquistar independência e poder sobre os homens, além de apresentar-se como uma mulher de negócios criando e administrando a própria produtora, com metade do seu quadro formado por mulheres. Entre os filmes lançados, “O Príncipe encantado” e “Nunca fui santa” permitiram mostrar sua versatilidade e rendeu boas críticas na mídia.

Análise fílmica Há nos dois filmes um ponto em comum: uma personagem preocupada em estar ao lado de um homem provedor capaz de suprir suas necessidades, por vezes sexuais, e que tenha a liberdade de escolher a partir de sua concepção de homem ideal. Os filmes retratam rigorosamente a ruptura do padrão normativo que regia o feminino na época, transmitindo a imagem de uma mulher interessada no desejo carnal, material e emocional, desconstruindo um ideal de mãe, esposa e família que era tido como referência até então. Ao mesclar características de mulheres de vida pública e doméstica, as personagem de Marilyn Monroe monta uma imagem de uma nova possibilidade do “ser mulher”, até então não veiculado no cinema.

8 E para os negros e homossexuais também. Os Homens Preferem as Loiras

Talvez em seu filme mais bem cotado pelos críticos de cinema, a comédia musical Os Homens Preferem as Loiras (1953), Howard Hawks aborda diretamente a presença sexual em suas personagens, algo que para década de 50 era silenciado pela sociedade. Lorelei, interpretada pela atriz Marilyn Monroe, e sua amiga Dorothy, representam um papel de mulher sexualmente atraente, ideal para todos os homens que aparecem ao redor nas cenas. Lorelei não tem medo de misturar desejos fúteis com sentimentais. Apesar de parecer uma mulher de desprovida de inteligência, algumas de suas atitudes mostram uma postura feminista pondo em questão o poder do erotismo em manipular situações. À pedido de seu noivo milionário, a dançarina Lorelei e sua amiga Dorothy embarcam em um cruzeiro rumo a Paris. Sua viagem é integralmente custeada por ele, mas com os contratempos veremos que as duas garotas terão que trabalhar para permanecer no país. Porém, o pai do noivo, o qual não aprova a relação do filho, contrata um detetive para segui-las e conseguir provas de infidelidade de sua futura nora. A série de confusões que dá início em alto mar mostra uma comédia preocupada em transmitir a repressão que as mulheres passavam por usufruir de seu corpo para conseguir presentes caros, atenção dos homens e uma vida confortável proporcionada por eles. As dançarinas abusam de sua sensualidade para fins próprios, sem receios da sociedade ainda conservadora, explícita no papel do futuro sogro de Lorelei, por exemplo. A personagem de Marilyn Monroe deixa de lado o segundo elemento do mito da mulher aqui já tratado, o silenciamento do desejo feminino, para seduzir um milionário em troca de presentes caros. Apesar de toda inocência transmitida por ela, vale ressaltar que o comportamento que ela admite ao longo do filme, nenhuma outra mulher da época tinha coragem de adotar. Nas circunstâncias que ela se encontrava - de casamento marcado -, ousar se relacionar com outro homem em troca de joias era motivos suficiente para sofrer represálias e injurias da sociedade. No trabalho publicado por Lucie Arbuthnot e Gail Seneca (1990), os autores se propuseram a analisar o filme porque "as mulheres não só resistem a objetivação do sexo masculino, mas que também apreciam profundamente suas conexões com o outro. A amizade entre duas mulheres fortes, Monroe e Russell, convida o espectador fêmea para se juntar a eles, por meio de identificação, na avaliação de outras mulheres e de nós mesmos." (pág. 113). Para analisar as personagens no filme, primeiro os autores forneceram algumas referências a outras representações de Hollywood de mulheres fortes, como Marlene Dietrich, Greta Garbo e Katherine Hepburn. Ao olhar fixamente filmes dessas estrelas do cinema, eles apontam que o público projeta seus desejos para os personagens. E talvez ai resida a participação de Marilyn Monroe no movimento feminista ao inspirar multidões não só no comportamento, mas também na postura, nos medos e anseios, na maneira de se vestir, de arrumar os cabelos e até se maquiar. O filme não se resume apenas a contar a história de duas dançarinas atraentes em uma viagem de navio transatlântico, durante o qual eles buscam maridos e captar a atenção de todos os homens a bordo. "Os temas são a resistência das mulheres à objetivação por homens, e das mulheres de conexão com o outro." (pág. 116). Os autores afirmam que a essência do filme é tão constantemente interrompida pelos problemas subjacentes do feminismo, que a história principal fica em segundo plano.

O pecado mora ao lado

Antes mesmo de falar do filme, é preciso traçar um breve currículo do diretor. Billy Wilder nasceu na Polônia e cresceu na subversão, estendendo seus 50 anos de carreira em mais de 60 filmes e 21 estatuetas do Oscar. Como bom judeu exilado de um mundo de horrores nazistas, seu propósito ao chegar aos Estados era quebrar paradigmas criticando a Guerra Fria. Billy Wilder dirigiu dois filmes protagonizados por Marilyn Monroe, um deles, o que segue a análise neste momento, chegou ao Brasil como o título de O Pecado Mora Ao Lado (1955) e ficou conhecido no mundo inteiro pela cena do vestido esvoaçante e o consagrou como umas das melhores comédias de todos os tempos. A comédia começa com um momento lúdico interessante. O narrador descreve uma comunidade indígena americana enaltecendo o trabalho masculino, atribuindo a responsabilidade por promover o mantimento de necessidades básicas, como caçar alimentos e proteger sua família dos outros animais. No verão mulheres e filhos dessa aldeia viajam para regiões menos quentes, um privilégio apenas para as mulheres casadas. Na cena da partida, todos eram atraídos por uma mulher muito sensual, supostamente solteira e independente, e seduzia-os com sua beleza. A história do filme vai se passar 500 anos mais tarde e retratando a mesma ordem social, ou seja, já implícita uma crítica ao papel da mulher e ao desejo sexual pertencente aos homens. Após mandar sua mulher para o interior durante o forte verão nova-iorquino, Richard Sherman conhece uma modelo loira sem nome, interpretada por Marilyn Monroe, que é sua nova vizinha do andar de cima. Apesar de acometido de uma recente paranoia sobre a possibilidade de se tornar infiel - está lendo no momento um livro chamado A coceira do sétimo ano (The 7 Year Itch), que fala das grandes probabilidades do homem se tornar infiel após sete anos de casamento, exatamente o tempo que ele tem de casado - Richard Sherman se apresenta como um produto de uma sociedade machista que aceita esse acordo entre o casal da traição masculina. Nesta época, Marilyn Monroe já começava a se enquadrar no conceito de pin-up, onde transpira toda sua sensualidade sedutora, assume uma posição de suposta independência em todos os campos vida social, contudo há ainda a legitimação do espaço masculino no centro da trama9. As pin-ups são segundo Lipovetsky (2000, p.170) “o erotismo feminino sem o satanismo da carne e com uma vitalidade divertida.” As personagens feitas sob medida por Marilyn têm como ponto fundamental o ar de ingenuidade que transmitia: “[...] Marilyn Monroe, que filmara The Seven Year Itch (em Portugal, O Pecado Mora ao Lado) em 1955 – integravam já temas e abordagens que correspondiam à materialização da nova figura da “mulher liberta”, dotada de uma vida amorosa activa e variada, experimentada sem aparente má consciência, pontuada por uma iniciativa que já não era um privilégio exclusivamente masculino.” (BEBIANO & SILVA 2004, p6)

A personagem mantinha um relacionamento apenas amigável de sua parte, mas com uma atração incontrolável e hilariante de Richard pela loira, ele é perseguido por pesadelos e delírios de sedução e infidelidade, tanto dele quanto de sua mulher, que lhe aparece em sonhos o traindo com seu vizinho e amigo ou o matando a tiros por ciúmes da vizinha loira. Seu desejo por outras mulheres vem sendo demonstrado ao longo do filme, mas é com a loira que ele estabelece uma relação adúltera. Em dado momento, Richard é surpreendido por outro personagem que ao ver os dois juntos se desculpa por atrapalhar a situação. Ao ver as sedutoras pernas da loira ele o incentiva a seguir em

9 As poucas mulheres que aparecem no filme ocupam cargos baixos parente aos homens, a exemplo da secretária do empresário e da garçonete do comerciante. frente. O lugar social de provedor do lar que o homem era destinado a ocupar, dando a ele o direito de tomar decisões importantes, é o lugar que Richard ocupa; um emprego responsável pelo sustento da família branca de classe média lhe possibilita ter um relacionamento extraconjugal. Marilyn Monroe não deixou de expressar no papel seu desejo sexual reprimido pelas mulheres da época. A famosa e provocante cena do vestido esvoaçante soube como provocar o público sem ser apelativo, o que para época já era um avanço muito grande ter as pernas de uma atriz em uma cena sensual. A loira também se mostrou disposta a usufruir de um prazer que antes estava restrito aos homens. Talvez esse seja, entre os analisados, o filme que Marilyn Monroe mais expresse seu perfil inocente presente em todos seus outros papéis. Mas mesmo passando a imagem de uma mulher frágil e ao mesmo tempo segura, ela põe seus desejos em primeiro plano e apesar de ter o sonho de encontrar um amor, em nenhum momento a personagem expressa a vontade de construir família ou ingressar nas normas traçadas para as mulheres da época. Pelo contrário, preza muito pelo seu trabalho como modelo e foca em sua carreira profissional.

Referências

ADELMAN, Miriam. A Voz e a Escuta: encontros desencontros entre a teoria feminista e a Sociologia Contemporânea. São Paulo: Editora Blucher, 2009.

ARBUTHNOT, Lucie, SENECA, Gail. Pre-Text and Text in Gentlemen Prefer Blondes. Culture & New Media Seminars, 1990.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 4ª Edição. São Paulo: Ed. Difusão Europeia do Livro, 1970.

BEBIANO, Rui. O Poder da Imaginação. Juventude, Rebeldia e Resistência nos Anos 60. Coimbra: Angelus Novus, 2003.

CARDOSO, Tatiana Cristina, FREITAS JUNIOR, Edson Ferreira de. CINEMA HOLLYWOODIANO: A IMAGEM DA MULHER SOB O OLHAR DA LENTE MASCULINA. Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí. 2009.

LIPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

MELLO, R. C. D., Ana Claudia. As mulheres na Segunda Guerra Mundial: Uma breve análise sobre as combatentes soviéticas. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação & V Congresso Nacional de História da Mídia – São Paulo – 2007.

ULLMAN, Dora. O peso da felicidade. (ser magro é bom, mas não é tudo). Porto Alegre: RBS Publicações, 2004.