O Caso Dos Jovens Da Freguesia De Cachopo - Tavira
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
Cidades- Comunidades e Territórios Dez. 2007, n.0 15, pp. 101-115 A Construção de Identidades Urbanas como Factor de Repulsão dos Territórios Rurais1 O caso dos jovens da Freguesia de Cachopo - Tavira Vanessa Duarte de Sousa * Resumo: O texto analisa a relação existente entre a construção identitária e a mudança em curso nos espaços rurais. Justifica-se o abandono dos jovens de um espaço rural- Cachopo pelas socializações crescentes nos espaços urbanos. Conclui-se que o contacto continuado com os espaços urbanos conduz a uma multiplicidade de referências identitárias onde o modelo de desenvolvimento que é preconizado nestes espaços é aquele que mais seduz os jovens ao nível dos seus projectos de vida. Palavras-chave: Jovens; Identidades múltiplas; Espaços rurais; Espaços urbanos. Introdução sujeitos conducente a práticas de abandono ou de continuidade nesse território. Assim, tem-se em Quais são os factores de atracção e de repulsão consideração a inter-relação entre sistema e acto dos territórios rurais deprimidos? Através da <<VOZ>> res considerando a existência de estruturas daqueles que podem ou não preconizar o futuro orientadoras da acção colectiva que se assumem destes territórios -os jovens -procuraremos per como resultado das opções dos sujeitos face aos ceber quais as racionalidades conducentes a es recursos e capacidades passíveis de mobilização. tratégias de abandono e de fixação nestes territó Por outro lado, procuram-se captar dimensões do rios. Utiliza-se como contexto territorial de análise quotidiano (lazer, consumo, vida familiar e profis a freguesia de Cachopo, situada na parte serrana sional) que possam ser ou não explicativas dessas do concelho de Tavira. Considera-se que a racionalidades. Por fim, constitui igualmente ob racionalidade dos actores é fundamental para a ex jecto a captação das dimensões objectivas e sub plicação dos processos de reorganização territorial jectivas identitárias, ou seja, a análise das em curso. Não pretendendo fazer generalizações <<racionalidades>> e dos <<afectoS>> , das <<práticas>> e para esta tipologia de espaços ao nível nacional, dos <<projectos>>. certo é que as representações e práticas juvenis locais serão bem elucidativas sobre o seu futuro. Mudanças nos espaços rurais Se haverá conclusões muito contextualizadas ou tras serão bem passíveis de utilização para a com O rural de hoje não é, com certeza, o mesmo preensão dos percursos que aí estão a ser traçados. de há décadas atrás, assim como o urbano que co Algumas das dimensões analíticas utilizadas nhecemos tem vindo a sofrer mudanças rápidas com na operacionalização do conceito de modos de vida impactos em todas as esferas do social. É, portan (Guerra, 1993) são aqui recuperadas, pese embo to, inevitável associar a globalização2 aos proces ra exista um enfoque sobre a racionalidade dos sos de reorganização territorial em curso. 1 Texto adaptado da dissertação para a obtenção do grau de Mestre em Planeamento e Avaliação de Processos de Desenvolvimento (ISCTE) - 2006 - submetida ao tema "Desenvolvimento e Mudança nos Territórios Rurais Deprimidos: O caso dos jovens da freguesia de Cachopo (Tavira)" • Mestre em Planeamento e Avaliação de Processos de Desenvolvimento (ISCTE), Assistente Convidada na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais- Universidade do Algarve. 2 De uma forma sintética poderíamos dizer que a globalização se refere "à multiplicidade de ligações e interconexões que caracterizam o presente sistema mundial. Descreve o processo pelo qual os acontecimentos, decisões e actividades levadas a cabo numa parte do mundo acarretam consequências significativas para os indivíduos e comunidades em zonas distantes do globo. A globalização compreende dois fenómenos distintos: alcance (ou extensão) e intensidade (ou profundidade)" (Mcgrew et al., 1992 cit. in Grupo de Lisboa, 1994: 49). Cidades • Comunidades e Territórios, n.0 15,2007, pp. 101- 115 101 CIDADES Comunidades e Territórios A dualidade analítica, que foi predominando a complexidade inerente a essa interpenetração es- na diferenciação dos espaços, passa a fazer cada pacial torna-se necessário associar estes dois cam- vez menos sentido. Na sua génese, a dicotomia ru- pos analíticos e empreender uma abordagem ral-urbano traduzia dois modelos opostos em ter- centrada nos territórios como um todo (Barros, mos de organização social e espacial. À luz das 1990). Muito do que acontece hoje nos espaços teorias da modernização reproduzia a dicotomia tra- rurais é tradução das mudanças registadas nas ci- dicional-moderno. O rural estava associado ao tra- dades. Mas também tem sido à custa de um êxodo dicional e, paralelamente, ao subdesenvolvido, ao rural, muitas vezes massificado, que se vão verifi- obsoleto, sendo um estádio inicial de desenvolvi- cando maiores fragmentações nas cidades, de que mento das sociedades. Por outro lado, o urbano são exemplo o aumento dos fenómenos de exclu- surgia interligado ao moderno, reportando-se ao são social, o crescimento incontrolado de subúr- modelo que as sociedades ditas tradicionais deve- bios desqualificados, o aumento do desemprego riam seguir. Nas teorias da modernização identifi- pela incapacidade de resposta a uma mão-de-obra cam-se o progresso tecnológico e consequente cres- que vai crescendo de forma incessante, etc. cimento económico como duas dimensões centrais do desenvolvimento, tratando-se dessas socieda- “Hoje quando falamos do rural e das trans- des tradicionais serem apoiadas pelas sociedades formações que ele regista estamos, em grande me- modernas (Europa e EUA). O peso ideológico des- dida, a falar tanto de urbanização (das ocupações tas abordagens foi de tal modo significativo que profissionais, dos modos de vida e de consumo, associar o rural a tradicional ou periférico, e urba- das formas de locomoção, etc.) como de espaços no a moderno ou central faz ainda parte da lingua- de indústria; estamos, em grande medida, a falar gem comum 3. O êxodo rural que marcou e ainda quer de espaços de lazer, quer de processos de pro- vai marcando o palco das tendências demográficas dução de valores simbólicos.” (Reis, 2003:41) ao nível mundial terá, em parte, relação com um imaginário narcisista das cidades ou espaços ur- “Ressalve-se, desde já, que estamos cientes banos. de que o dito mundo rural português já não é rural As mudanças significativas que se foram ve- nem mundo. É de todos conhecida a multiplicação rificando nos espaços rurais estão fortemente as- real e simbólica das cidades médias, bem como a sociadas ao processo de globalização económica. sua dilatação e influência sobre os povoados pró- Por um lado, a introdução de novas tecnologias na ximos. Trata-se amiúde de espaços numa marcha produção agrícola faz diminuir a necessidade do rotunda para a urbanidade faz-de-conta. Não me- anterior efectivo de trabalhadores. Em paralelo, nos importante, verifica-se ainda a assimilação regista-se uma desvalorização social da actividade pelos rurais dos estilos de vida citadinos.” (Portela, agrícola e uma desvalorização económica dos pro- 2003:9) dutos agrícolas. O pequeno agricultor dificilmente se encontra capacitado para competir à escala glo- Temos, então, uma sociedade ocidental pre- bal. Cria-se a ideia generalizada de que é na cida- dominantemente urbana, não apenas ao nível das de que repousam as oportunidades de emprego. formas de ocupação dos espaços, mas também no É este êxodo rural à escala global que está na ori- que respeita aos modos de vida. Toda a sociedade gem do crescimento acelerado que se regista nas tem vindo a passar por um cidades. A crescente interpenetração territorial traduz “(…) processo de urbanização, que, com a um novo relacionamento entre rural e urbano, pro- chamada revolução industrial, começou por alte- vocando novos desafios à análise sociológica. À So- rar a fisionomia do mundo ocidental e continua ciologia Urbana coube o pioneirismo na aborda- hoje em dia a modificar as geografias, as mentali- gem espacial e a Sociologia Rural tendeu a centrar- dades e as práticas sociais em todo o mundo.(…) -se sobre as estruturas agrárias. No entanto, dada Com efeito, enquanto em 1950 cerca de um quarto —————————— 3 A opção pela denominação de “territórios rurais deprimidos” prende-se com a necessidade de se evitar um posicionamento no quadro dessas abordagens. É comum a denominação de territórios periféricos ou ainda marginais, que nos parecem transpor a existência de um modelo a partir do qual se deve equacionar desenvolvimento dos territórios. 102 A Construção de Identidades Urbanas como Factor de Repulsão dos Territórios Rurais da população do globo vivia em aglomerados urba- “O reconhecimento da relevância do domí- nos, em 1990 regista-se a existência de 270 nio territorial no estudo da exclusão social, é re- cidades com mais de 1 milhão de habitantes (…) cente, e tem a ver com o facto de existirem certas [estima-se que] no ano 2010, a população urbana situações em que a exclusão diz respeito não ape- possa ultrapassar os três quartos da população nas às pessoas e famílias, mas a todo um território. mundial.” (Fortuna, 1997:3). É este o caso dos bairros de lata e outros tipos de bairros degradados, e de certas freguesias ou con- Os processos de socialização dos indivíduos celhos rurais, em que as condições de vida das fa- são marcados por essas interconexões espaciais que mílias dificilmente podem melhorar se não se to- conduzem a uma apropriação múltipla de referên- marem medidas que promovam o progresso de todo cias identitárias. Por isso, as distinções que se vão o espaço nos domínios da habitação, dos equipa- fazendo são mais de carácter normativo 4 do que mentos sociais, das acessibilidades, e até de acti- analítico. “ O rural perdeu especificidade nas dimen- vidades económicas. É uma situação em que todo sões social e económica e os critérios que o delimi- o território está excluído da cidade (no caso de um tam do mundo urbano ou que nele diferenciam ti- bairro) ou do país (caso do concelho) a que perten- pos, resultam hoje mais das actividades da popula- ce.” (Costa, 2001:16).