Xavier Marques: Beletrismo E Narrativa Crítica
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Xavier Marques: beletrismo e narrativa crítica José de Paula Ramos Jr. menino Francisco Xavier Ferreira Marques nasce em Itaparica, Bahia, em 3 de dezembro de 1861. Seu pai possuía uma embarcação – meio de sus- tento da família – para transporte de passageiros e cargas entre a ilha e Salvador. Os primeiros estudos do garoto foram feitos em sua terra natal. Depois, transferiu-se para Salvador, onde, muito jovem, tornou-se jorna- lista, colaborando na redação do Jornal de No- tícias, do Diário da Bahia e da revista Nova Cruzada, que circulou entre os anos de 1901 e 1910. Dedicado também à literatura, produziu poemas, contos, novelas e romances. No início do século XX, um dos mais im- portantes críticos literários brasileiros de então, José Veríssimo, o saudou nos seguintes termos: “O senhor Xavier Marques é, no romance, talvez o escritor mais distinto entre os escritores provin- cianos, e mesmo um dos mais distintos entre os escritores do gênero no Brasil” (Veríssimo, 1903, p. 263 apud Salles, 1977, p. 15). O JOSÉ DE PAULA RAMOS JR. é poeta, crítico literário, editor, professor da ECA-USP e autor de, entre outros, Leituras de Macunaíma (1928-1936): Primeira Onda (Edusp/Fapesp). Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 115-125 • julho/agosto/setembro 2016 115 textos / Homenagem Com a reputação literária firmada, Xavier sofia da Bahia, e outras significativas homena- Marques se candidata, em 1905, a uma cadeira gens prestadas a ele em 1941, quando completara na Academia Brasileira de Letras, mas recebe seu octogésimo aniversário. um único voto: o de Machado de Assis. Em 1911, Xavier Marques falece no dia 30 de outubro porém, essa instituição atribui a O Sargento Pe- do ano seguinte e é enterrado na capital de sua dro, do escritor baiano, o prêmio de melhor ro- tão amada Bahia. mance brasileiro publicado no ano anterior. Em 1919, finalmente, a Academia o elege segundo *** ocupante da cadeira 28, como sucessor de Inglês de Sousa. O acadêmico Goulart de Andrade o Nos idos de 1913, o jovem crítico Jackson de saúda na cerimônia de posse, realizada em 17 de Figueiredo (1916, p. 101) vaticinava: “Xavier Mar- setembro de 1920. ques merecerá o amor de todo o povo brasileiro, Interessado no desenvolvimento da vida cul- na proporção em que for crescendo a nossa cons- tural em seu estado, participa da fundação da ciência nacional”. Não foi o que houve, embora Academia de Letras da Bahia, em 1917, como seja possível admitir que a “consciência nacional” primeiro ocupante da cadeira 33, cujo patrono cresceu significativamente desde então. fora biografado por ele em Vida de Castro Alves Da mais alta reputação de ficcionista das le- (1911), obra de referência na bibliografia sobre o tras nacionais ao quase esquecimento, sobretudo ilustre poeta baiano. após a sua morte, a trajetória de Xavier Marques A boa reputação de jornalista e escritor, cer- ilustra de modo notável o dinamismo do cânone tamente, contribui para sua eleição, em 1915, literário, que, embora seja dotado de certa esta- a deputado estadual. De 1921 a 1924, exerce bilidade, está sempre sujeito a alterações em sua, mandato de deputado federal no Rio de Janeiro, digamos metaforicamente, topografia. A elevação dedicando-se, sobretudo, à educação. ou o rebaixamento da posição um dia ocupada Ao fim do mandato, Xavier Marques volta pelos escritores e suas obras depende, sobretudo, a morar na Bahia. Desde então, afasta-se cada do prestígio ou desprestígio das poéticas cultu- vez mais da vida política, mas não da interven- rais sob as quais as obras foram produzidas, em ção pública. Por intermédio da colaboração em confronto com as poéticas culturais posteriores. jornais, como A Tarde, ou em periódicos, como A produção literária do escritor obteve suces- a revista Ilustração Brasileira, publica artigos so enquanto correspondeu ao gosto hegemônico que criticam asperamente a República, pela per- do leitorado, no período que se circunscreve en- manência de vícios da monarquia e por práticas tre os últimos 20 anos do século XIX e as duas que considerava traição aos legítimos valores ou três primeiras décadas do XX. Depois disso, republicanos, entendidos na perspectiva de um impõe-se o projeto estético e ideológico moder- liberalismo democrático e civilizatório, inspi- nista, e dá-se a queda de Xavier Marques, cuja rado em modelos europeus, mas imbuído de um ficção passa a ser entendida como “acadêmica” forte sentimento de nacionalidade. e “passadista”. Da alta posição em que fora con- Na velhice, evita a agitação da vida literária siderado no cânone nacional, desce ao modesto de Salvador e prefere isolar-se em casa. Sua lite- posto de escritor de segunda linha, sendo, mais ratura também já não encontra a mesma recepti- recentemente, considerado até mesmo “racista”, a vidade que o tornara artista celebrado. Chega a despeito do relativo anacronismo implícito nessa ter obra recusada por editores. Para publicar seu consideração. Já é tempo de avaliar e compreen- último romance, As Voltas da Estrada (1930), der essa disparidade de opiniões. precisa custear 50% da edição. Todavia, a des- peito do declínio não de sua arte, propriamente, *** mas de seu prestígio literário, mantém intacto o prestígio pessoal, ao menos entre seus conterrâ- Não é possível associar a obra de Xavier neos, como demonstram o diploma de Professor Marques a uma única corrente literária. Nela, Honoris Causa, recebido da Faculdade de Filo- encontram-se influências do romantismo, realis- 116 Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 115-125 • julho/agosto/setembro 2016 mo, naturalismo, parnasianismo, simbolismo e im- Querem falar os lábios, mas não falam; pressionismo (Salles, 1977), como é comum em Querem gritar as dores, mas se calam, casos de escritores contemporâneos do autor, que a De austera voz ao mando soberano. historiografia e a crítica enfeixam no chamado pré- -modernismo, noção um tanto acomodatícia que Padeça o amor, sublime de ternuras; agrega desde epígonos do realismo até precursores Que esse amor-próprio, origem de torturas, do modernismo. De fato, os autores do chamado Bárbaro sendo, infelizmente é humano.”. pré-modernismo participam de uma poética um tanto confusa e, sobretudo, muito difusa, devido ao A poesia de Xavier Marques não tem o valor seu caráter eclético ou sincrético. A combinação de sua produção em prosa ficcional, mas o exer- de estilos, de técnicas e de métodos para a criação cício daquela tornou-o muito sensível ao ritmo, artística, que afeta a forma, é correlata à mistura à sonoridade e ao poder pictórico, cromático e de doutrinas ideológicas verificada na invenção simbólico das palavras, elementos decisivos para de efeitos de sentido, que projeta o conteúdo. As a configuração de seu estilo peculiar, apreciá- diferenças entre os vários artistas decorrem das vel nos gêneros literários aos quais se dedicou escolhas individuais no processamento da mistura, exclusivamente de 1896 em diante: o conto, a da hierarquia e da proporção dos ingredientes co- novela e o romance. Antes dessa opção, porém, lhidos e elaborados no horizonte da poética cultu- Marques já havia publicado um livro de con- ral do período que a tradição nomeia belle époque, tos, Simples Histórias (1886), e o romance de tal como esta se configurou no Brasil. costumes Uma Família Baiana (1888), obras Xavier Marques estreou em 1884 como poeta, consideradas por ele como “ensaios” (Salles, com o livro Temas e Variações, em que as res- 1977, p. 62), no sentido de exercícios literários sonâncias românticas já são domadas pela con- de aprendizagem. Por isso, Marques costumava tenção parnasiana. Insulares (1896), seu segundo omiti-las (bem como o livro de estreia) em sua e último livro de poesia, recolhe uma produção bibliografia autoral. criada ao longo de dez anos. Permanece o ro- mantismo, especialmente o da vertente cívica de *** Castro Alves, com a apologia do progresso civi- lizatório; mas há, sobretudo, o lirismo reflexivo, A prosa de ficção de Xavier Marques, con- acerca dos temas da vida e da morte, ou descritivo siderada válida por ele, nutre-se, sobretudo, de de sentimentos e emoções, ao gosto parnasiano, material proporcionado por sua região, a Bahia. propenso a conclusões sentenciosas, como pode Por isso, a crítica o considera um escritor regio- ser observado no soneto: nalista. Isso pode ser admitido, desde que a noção de regionalismo não se limite ao registro pitores- “AMOR-PRÓPRIO1 co da cor local sertaneja. Nas melhores narrati- vas legadas pelo autor baiano, a particularidade Arfa-lhe o seio, o coração lhe bate, local – humana, histórica, geográfica, social e re- Ferve-lhe o peito num desejo ardente... ligiosa – é artisticamente transfigurada de modo Ela, contudo, finge estar contente, a representar o universal humano. Num simples Velando a custo o íntimo combate. pescador, podem pulsar grandes buscas do sen- tido da vida. Em A Cidade Encantada (1919), o Que se estortegue em ânsias, que se mate conto que dá nome ao livro antecipa aspectos do De aceradas paixões interiormente... regionalismo universalista de Guimarães Rosa: Forçoso é rir, com a lágrima latente, “O que há é que a gente não tem coragem pra Lutar com a tentação, que n’alma embate. ver tudo de perto” (p. 85); “Há muito mistério, deveras, neste mundo. Mas o que lhe digo é que há segredo e segredo” (p. 86) – ou até mesmo do 1 O poema, com a ortografia atualizada, foi colhido em estilo rosiano, como demonstra o excerto, trans- Laudelino Freire (1913, p. 158). crito com a ortografia atualizada: Revista USP • São Paulo • n. 110 • p. 115-125 • julho/agosto/setembro 2016 117 textos / Homenagem “Apenas abriu os olhos, já o patrão montado par- de independência travada na Bahia, mais exata- tia em rumo do nascente. Que ia fazer? Disse, ao mente em Itaparica, mesclados a acontecimentos regressar, que havia esmado as léguas de terreno e personagens puramente imaginários.