presente edição da revista Água Vai será mais uma vez inteiramente dedica­ ♦ da ao Congresso dos Estudantes Lusitanistas 'da Polónia. O congresso VIA­ CAMÕES INSTITUTO w GENS PELO MUNDO LUSÓFONO decorreu entre os dias 21 e 22 de março. DA COOPERAÇÃO CONGRESSO E DA LÍNGUA UMCS Literatura, artes plásticas, língua, história e música são as áreas abordadas DOS ESTUDANTES LUSITANISTAS DA POLÓNIA UNIWERSYTET MARII CURIE-SKŁODOWSKIEJ W LUBLINIE L JLneSta^dição. A Profa. Dra. Barbara Hlibowicka-Węglarz - diretora do cen­ MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS VIAGENS PELO MUNDO LUSÓFONO * * tro fez a abertura^sõlenedo congresso. A cerimónia de abertura contou também com 21-22 DE MARÇO DE 2013 breves intervenções doMagmfico Reitor da Universidade Marie Curie-Skłodowska LUBLIN - Prof. Dr. Stanisław Michałowskie do presidente da Faculdade de Letras - Prof. Dr. Robert Litwiński. A palestra de abertura intitulada: E Depois do Adeus - o LITERATURA fim do Império em Almeida Faria e Lobo Antunes foi proferida pela Profa. Dra. Anna Maria Bielak - Universidade de Poznań Anabela Dinis Branco de Oliveira da Universidade de Trás-os-Montes e O BATEAU IVRE DE ARTHUR RIMBAUD E A ODE MARÍTIMA DE FERNANDO PESSOA COMO . Alto Douro. Seguiram-se as comunicações "dos estudantes de Varsó- DOIS CAMINHOS PARA ATINGIR A SENSAÇÃO TOTAL - 2 /*t \VkaS via, Cracóvia, Wrocław, Poznań e Lublin onde são lecionados os cursos de língua portuguesa e de culturas lusófonas. O congresso Karolina Skalniak - Universidade de Wrocław contou também com a projeção de documentários portugue­ ERNESTO DE MELO E CASTRO E OS INÍCIOS DA POESIA EXPERIMENTAL PORTUGUESA - 6 ses apresentados no Rios - 1° Festival Internacional de Cine- / \ ma Documental e Transmedia LÍNGUA */<'’••• e ,a exposição de fotografias S ^<4/' Julia Grabińska - Universidade de Wrocław L/y -x \ Saudade da Profa. Dra. HUNSRUCKISCH - DIALETO ALEMÃO NO BRASIL - 9 'X i X/' Joanna Partyka da X TSkN x Academia Polaca « Anna Olchówka - Universidade de Wrocław das Ciências. TUDO MENOS FUTEBOL? IMAGEM DE ORGANIZAÇÃO DO EURO 2004 EM PORTUGAL NA IM­ PRENSA - CASO DO PORTO - 13

Aleksandra Pietraszek - Universidade de Wrocław O PORTUNHOL: FRUTO DO CONTACTO LINGUÍSTICO ENTRE PORTUGUÊS E ESPANHOL - 17 HISTÓRIA Patrycja Milczanowska - Universidade Jagellónica de Cracóvia OS POLACOS NOS CAMINHOS PORTUGUESES ENTRE O SÉCULO XV E XIX - 20

Anna Śniegula - Universidade de Wrocław IMPÉRIO PORTUGUÊS NO LIMIAR DOS SÉCULOS XVIII/XIX - 23

ARTE Agata Bojanowska - Universidade de Varsóvia RUI CHAFES - 28

Weronika Gwiazda - Universidade de Varsóvia A VIAGEM AOS CRUZAMENTOS ARTÍSTICOS DA CRIAÇÃO DE HELENA ALMEIDA - 31

MÚSICA Kamila Choroszewska - Universidade de Varsóvia AS MULHERES DO FADO - A CRIAÇÃO DA FIGURA FEMININA NAS LETRAS DE FADO - 36

Michał Hułyk - Universidade Maria Curie-Skłodowska de Lublin JOSÉ AFONSO E JACEK KACZMARSKI PORTADORES DE IDEIAS E MENSAGENS UNIVERSAIS - 40

Redação / Redakcja: Justyna Wiśniewska Editado pelo Centro de Língua Portuguesa/ Camões em Lublin Lino Matos Diretor artístico / Grafika Diretora do Centro: Jorge Branco Professora doutora Barbara Hlibowicka-Węglarz O BATEAU IVRE DE ARTHUR RIMBAUD E O BATEAU IVRE DE ARTHUR RIMBAUD E A ODE MARÍTIMA DE FERNANDO PESSOA COMO A ODE MARÍTIMA DE FERNANDO PESSOA DOIS CAMINHOS PARA ATINGIR A SENSAÇÃO TOTAL COMO DOIS CAMINHOS PARA ATINGIR A SENSAÇÃO TOTAL de todas as maneiras, amar tudo de todas as for­ ainda reforçada pelo uso excessivo dos pronomes Anna Maria Bielak mas. No poema A vida de Arthur Rimbaud estão pessoais e deíticos da primeira pessoa do singu­ Universidade de Poznań já presentes os elementos da paisagem marítima: lar. Na Ode Marítima o sujeito lírico é o único Vida que abre as velas; Um mar em mim (Pessoa, homem neste cais: Sozinho, no cais deserto(.). A vida de Arthur Rimbaud foi curta, mas in­ 2005) etc. O que pode sugerir a referência direta A vida marítima a acordar, os elementos do bulí­ tensa. Tinha apenas 16 anos quando encontrou ao Barco Bêbado (uma das obras mais conhecidas cio do porto multiplicam-se: aparecem os barcos, Paul Verlaine, um dos mais conhecidos poetas da de Rimbaud) ou pelo menos à metáfora da vida rebocadores, navios pequenos... No entanto, eles época, e começou a namorar com ele. Ambos fo­ como mar; metáfora que serve como fundo das parecem ter a sua própria vida, sem qualquer ele­ ram conhecidos pelas suas provocações e abuso sensações de ambos, Rimbaud e Pessoa. Por causa mento humano: as velas erguem-se, os rebocado­ do álcool. Encantado pelo caráter rebelde e pelo disso, a comparação de Ode Marítima com Bate- res avançam, o navio deixa o cais... A solidão é génio do jovem Rimbaud, Verlaine convidou-o au Ivre parece tão interessante: através dela pode­ relacionada com incapacidade de viver na socie­ a ir para Paris onde se envolveram sexualmente. mos capturar elementos comuns das duas filoso­ dade. A inadaptação de Rimbaud surgiu também Por causa deste jovem, abandonou a sua mulher e fias de vida excessivamente diferentes, mas que no poema dele: o seu filho. É nessa época que escreve os mais co­ se materializam nas visões muito semelhantes, na Quando eu atravessava os Rios impassíveis, nhecidos dos seus poemas: entre outros, o Barco mesma imagem poética. Para percebê-las melhor, Senti-me libertar dos meus rebocadores. Bêbado (Bateau Ivre)1. No entanto, embora o seu temos de imaginar a nossa vida como uma gran­ Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis talento fosse imenso, Arthur Rimbaud parou de de viagem solitária, através de um mar infinito e Os espetaram nus em postes multicores. (Rimbaud, 2010) escrever quando tinha somente 20 anos. Embarca desconhecido. Sem qualquer ajuda ou indicação. Toda a primeira parte do Bateu Ivre trata desta para África e começa uma vida ainda mais intensa Partir é igual a expor-se aos riscos, a mergulhar no que a sua poesia. Inicia outros relacionamentos. indefinido. E se fosse possível não partir? liberação finalmente atingida. O ato é brutal, es­ Torna-se soldado (desertou) e mais tarde trafican­ Assim podemos diferenciar duas atitudes: a de pontâneo, súbito. A liberação de repente provoca te de armas. A sua vida foi preenchida: se faltou excitação e embriaguez. um lutador que aceita tudo o que o mar lhe trou­ A viagem de Álvaro de Campos começa de xer e de um homem que simplesmente não conse- algo, apenas o aborrecimento da vida quotidiana, forma diferente. Está sozinho à beira dum cais normal. Da vida sentada, estática, regrada e re- ue a coragem para sair do porto. O primeiro é o vista2 usando as palavras de Álvaro de Campos. deserto, a olhar o mar. Observa-o e contempla-o, arco, o sujeito lírico de Bateau Ivre; o segundo é ninguém pode distraí-lo. Parece contente e calmo, Rimbaud, que admitia ser um «voyant», integrou Álvaro de Campos na sua Ode Marítima. Os dois aproveitando a solidão. As primeiras sensações a lista de Fernando Pessoa nas leituras obrigató­ poemas são baseados na confrontação de dois são muito subtis. Testemunha o nascer do dia, o rias da sua juventude. Ainda assim, Pessoa nunca elementos: o Homem (ou o barco como a metá­ princípio da vida e contenta-se em usufruir desse ousou as extravagâncias deste estilo perante toda fora dele: Mas eu, barco perdido (...)) e o mar que a Paris. Preferiu a contemplação a um assunto tur­ rovoca através da viagem as várias sensações. O privilégio. omem fraco, sozinho e mortal, confrontado com Observa, com indiferença, o bulício, o tumul­ bulento, o sossego do seu quarto a viagens exó­ to da vida marítima. A sua alma une-se com as ticas. Em comparação com o rebelde Rimbaud, a sua vida (o mar inacabado, infinito, eterno mas coisas mais afastadas, acumuladas num paquete Pessoa parece um introvertido dominado pelo também transparente). O mar é cheio de perigos: pequeno que está a entrar no porto. Com a doçura medo, desprovido de vontade própria. Alguém no poema de Rimbaud são, por exemplo, tempes­ dolorosa que sobe em mim como uma náusea. É tades e monstros marinhos como Leviatãs e Bee- qdue sente o seu eu de maneira tão dolorosa, que o primeiro estímulo para acordar dentro dele um ecide parti-lo em heterónimos. Este grande po­ motes. Mergulhar o máximo possível em sensa­ movimento do «volante» : um volante começa a eta português parece ter-se recusado a participar ções para atingir a plenitude da experiência é o girar, lentamente. A partir de agora o volante vai na... vida. Assim, o seu caso foi o oposto de Rim­ objetivo principal dos dois poetas. medir o nível da sua excitação interior; vai voltar O Bateau Ivre pode ser dividido em três partes: baud, que parou de escrever e começou a viajar. regularmente como refrão nas outras partes de as primeiras cinco estrofes constituem a rutura do Perante isto, como é que Rimbaud pode ter sido Ode até a parar definitivamente. o seu mestre? No poema A vida de Arthur Rim­ poeta com as amarras que o prendiam. Depois, O barco de Rimbaud já está em alto mar: Senti­ baud, disse a Rimbaud: Invejo a tua vida começa a descrição comprida das suas experiên­ Pessoa -me libertar dos meus rebocadores. Assim, quan­ Z> e tenho dela/ Que não foi minha, como que sau­ cias e aventuras marítimas. No fim, aparece o can­ ín do de Campos observa, o Barco de Rimbaud na­ ca saço, a nostalgia e as saudades da vida normal. dades (.) (Pessoa, 2005). É muito significativo o vega. Para Rimbaud a partida significa rutura com LJ_ oc facto de que A Ode Marítima foi escrita por Álva­ A Ode Marítima começa de forma mais tranquila: OC ro de Campos. Ele foi a parte mais sombria e co­ aquelas normas que não consegue seguir, partici­ melancolia misturada com desassossego aparece par na própria vida. Para Campos não partir sig­ Z> rajosa da personalidade de Pessoa, que, segundo no princípio do poema; a excitação aumenta pro­ U X nifica ficar excluído da vida própria, mas também as palavras de Teresa Rita Lopes, ousou, através gressivamente, com a visão de Campos a dilatar­ O D£ ficar fora da sociedade: a vida passa-se no porto. dele, os gestos, as viagens e os excessos que o seu -se. Depois do epílogo, a tensão diminui e o eu Desde os primeiros versos que se vê a incapacida­ temperamento abúlico não lhe permitiam viver lírico também experimenta a nostalgia e mesmo o O (Cavalcanti Filho, 2011 : 377). arrependimento das façanhas imaginadas. de de Campos para partir: observando um paque­ A primeira dificuldade da viagem é o facto de te tão afastado, desliga-se do lugar onde está: a Álvaro de Campos também é poeta. É enge­ minh' alma está com o que vejo menos. (.)/ Com nheiro de navios e, portanto, de certo modo um que os viajantes têm que contar com eles próprios, z> criador de vida marítima. O criador sempre ao sem nenhuma ajuda ou apoio. O viajante está o paquete que entra,/ Porque ele está com a Dis­ lado ou por cima da vida que corre. O seu lema sempre sozinho. Seja a viagem real ou no mun­ tância (.). Ele parece não perceber o alvo da viagem: O QQ é muito parecido com o de Rimbaud: sentir tudo do imaginado. A solidão de Barco de Rimbaud é 1 Todas as citações de Bateau Ivre segundo a tradução de Augusto de Campos. 2 Todas as citações de Campos que não tem referência no texto são provenientes da Ode Marítima. In: Obras de Fernando Pessoa /IV (Poesia). Lisboa, Promoclube. 3 O BATEAU IVRE DE ARTHUR RIMBAUD E A ODE MARÍTIMA DE FERNANDO PESSOA COMO O BATEAU IVRE DE ARTHUR RIMBAUD E A ODE MARÍTIMA DE FERNANDO PESSOA COMO DOIS CAMINHOS PARA ATINGIR A SENSAÇÃO TOTAL DOIS CAMINHOS PARA ATINGIR A SENSAÇÃO TOTAL mistério alegre e triste de quem chega e parte. gem!. Tenta desfazer as amarras de moralidade: Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros! Parte -se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu. Cada chegada e cada partida constituem para ele Fugir convosco à civilização!/ Perder convosco a Homens que dormem em beliches rudes! Senti demais para poder continuar a sentir. Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias! Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim. um mistério. Descobrir este mistério pode signi­ noção da moral! Homens que dormem co'a Morte por travesseiro! Decresce sensivelmente a velocidade de volante. ficar perder o sentido da sua existência anterior, Para Álvaro de Campos, o mar constitui um es­ Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar perturbem em mim o que eu fui... Rimbaud, ao paço ideal, o universo independente e completo. Também Rimbaud, depois de ter experiência, contrário, parece conhecer o mistério. Ele fala na O mundo dos homens do mar, marinheiros e dos Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! não consegue mais continuar a sua visão. A única perspetiva de uma pessoa muito experimentada, piratas. A vida marítima é do seu ponto de vista, Cada um tem as suas funções: através do tra­ consolação é o facto que a aventura se tornou ex­ que já descobriu todas as coisas. A impressão é afastada como uma ideia da vida perfeita: Toda a periência. reforçada com o uso dos verbos no pretérito e, es­ vida marítima! Tudo na vida marítima!/ Insinua­ balho da tripulação, de Campos constrói a sua pecialmente, dos verbos com o valor de saber, co­ -se no meu sangue toda essa sedução fina. própria sociedade. Num outro fragmento, ele Sim, chorar eu chorei! São mornas as Auroras! nhecer: Então eu mergulhei nas águas do Poema; O mar é para ele um lugar onde se encontram evoca Ulisses, o viajante eterno. Com a vontade Toda lua é cruel e todo sol, engano: Conheço os céus crivados de clarões, as trombas, e se misturam todas as possibilidades de todos os das sensações mais fortes e com a aceleração do O amargo amor opiou de ócios minhas horas. Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos; Che­ tempos: A extensão mais humana, mais salpica­ «volante», o marinheiro é substituído pelo pirata. Ah! que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano! guei a visitar as Flóridas perdidas; Eu vi os arqui­ da, do Atlântico!/ O Índico, o mais misterioso dos Assim, o seu poema transforma-se numa compri­ pélagos astrais! e as ilhas (...). oceanos todos! da ladainha, primeiro para o homem, depois para Ambos são ultrapassados pela sua sensibilida­ As impressões de Rimbaud são mais gerais do Em todo o lado temos muitas referências ao o marinheiro e até ao pirata, como a forma acaba­ de. Campos tornou dinâmicos os seus tédios e ân­ qdue as de Álvaro de Campos. Ele usa as metáforas passado da vida marítima em geral: ao tempo dos da (total) do ser humano, o mais cruel e ilimita­ sias, numa unidade explosiva. Depois de ter ho­ e forma muito elaborada. Embora seja provoca­ descobrimentos e à grandeza da nação portugue­ do. Passo a passo, Campos entra nas visões mais menageado a civilização, ele aceita o facto de que do pelo desejo de se libertar, a viagem dele não sa neste período. O mar constitui o campo de ri­ improváveis e cruéis. Evoca as imagens trágicas e a viagem constitui o obrigatório em cada homem. é marcada por aquele medo e desassossego que validade com Camões, que já elogiou esta época obscenas : O último barco que ele menciona é um “tramp- acompanham Campos. n'Os Lusíadas. O eu lírico sobrepõe-se ao eu do Sangue! sangue! sangue! sangue! -steamer” inglês/ Muito sujo, como se fosse um Explode todo o meu cérebro! navio francês/ Com um ar simpático de proletário A impossibilidade de se adaptar também está primeiro explorador, descobridor das terras no­ Parte-se-me o mundo em vermelho! ligada às suas práticas “inaceitáveis”, tal como o vas e aquele que subjugou os novos mundos. dos mares. A totalidade das sensações deixa um vácuo uso excessivo do álcool. Mesmo que na Ode Ma­ Com o desejo enorme de libertação, com ou Quando sabe que o seu espírito não o deixa rítima apareça só um elemento nomeado literal­ sem álcool, Campos provoca no seu interior um embaraçoso. Álvaro de Campos acaba por arre­ sentir como toda a gente (o seu delírio é muito pender-se da sua vida anterior, tentando evocar mente (the bottle of the rum), todo o poema podia desejo irresistível de deixar a sua vida presente e instável), espera acordar as sensações através do ser lido como um estudo sobre o delírio alcoólico: partir: outra vez as imagens que se tornaram fúteis e nas Ah seja como for, seja por onde for, partir! seu corpo : Crucificai-me nas navegações /E as mi­ quais não acredita mais. A canção da sua tia res­ qduando estamos a observar a progressão da con- nhas espáduas gozarão a minha cruz! De Campos ição do eu lírico - a excitação até à fúria, os seus Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar. soa: Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata, inveja a vida dos piratas até querer não apenas Era a «Bela Infanta»... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se gritos e lamentações efetuadas no cais - é difícil Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas, partir com eles, mas metamorfoseia-se num deles. dentro de mim não imaginar um homem bêbado correndo na Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais! E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava­ praia com uma garrafa na mão. Ir, ir, ir, ir de vez! Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes -me tanto! Também no Bateau Ivre aparecem alguns tra­ Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações! Como fui ingrato para ela — e afinal que fiz eu da vida? ços de embriaguez, começando pelo título, e nas A sua canção está entrelaçada com os gritos (...) construídas metáforas : de marinheiros, que parecem uivos de animal, Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge, Referências bibliográficas: E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do Cavalcanti Filho J. P. (2011). Fernando Pessoa - uma quase Mais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis do cais para o mar. O grito é cada vez mais longo mundo! das ondas a rolar atrás de suas vítimas, e, afinal, transforma-se em palavras, em canção autobiografia. Rio de Janeiro, Record. dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis! Pessoa F. (1986). Ode Marítima. - In: Obras de Fernando pirata. Quanto maior é o desejo de Campos de Ele imagina que já se transformou em pira­ Pessoa /IV (Poesia). Lisboa: Promoclube. partir, menos ele controla os seus sentimentos e ta. Quando percebe que não vai conseguir viver Pessoa F. (1986). Nota preliminar de Poesias de Álvaro Já no princípio do poema, Campos previu que assim aumenta a sua capacidade de andar no mar como eles, procura outras soluções. Pede o míni­ de Campos. - In: Obras de Fernando Pessoa/IV. Lisboa: Pro- os esforços da sua imaginação são fúteis: tudo isso alto e de começar a viver como toda a gente. No mo: ser um bicho num dos seus barcos. Ser uma moclube. é saudade de pedra, disse ele. Este verso define clímax, ele pede aos marinheiros para levá-lo com mulher que espera por eles num porto e assim Pessoa F. (2005). A vida de Arthur Rimbaud. - In: Poesia perfeitamente a sua «deficiência»: sensível como 1902-1917, Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, eles: partir para experimentar a vida no seu total. conhece o mistério da sua vida. Ser o meu corpo Ana Maria Freitas, Madalena Dine. poeta, não como um homem que vive entre os ou­ A permanente consciência da sua falta exige passivo a mulher-todas-as-mulheres/ Que foram http://cfp.cmlisboa.pt/pls/htmldb/ tros homens; frágil para subtilidades do verso e outros recursos. Para realizar a sua visão da vida violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas! fp=334:6:4084104801843610::::P6_POE_ID,P6_TEP_ insensível para o quotidiano. Poeta sensacionis- ideal, precisa de homem ideal, que seja capaz de Ser a vítima, a vítima-síntese, mas de carne e osso, ID,P6_ANCORA,P6_AUTOR,P6_POEMA,P6_ID,P6_ ta cujos poemas são um extravasar de emoção, dominar todos os perigos marítimos e capturar de todos os piratas do mundo. TIPO:3649,32221,95,Fernando%20Pessoa,A%20vida%20 usando as palavras de Reis (Pessoa, 1986 : 14) ele de%20Arthur%20Rimbaud,12,autor todas as sensações. Um homem que não tenha es­ Depois duma viagem comprida, Campos fica Rimbaud A. (2010). Barco Bêbado. - In: não consegue amar e sentir como a gente normal. crúpulos e assim seja capaz de acumular todos os esgotado. Os seus uivos e gritos transformam-se http://delicadamentemaleducado.blogspot.com/2010/04/o-bar- Tudo isso aumenta ainda a sua determinação de seres num mesmo corpo. Em busca do seu herói, desta vez em riso de maluco. O volante decresce co-bebado-arthur-riambaud.html partir e participar na verdadeira vida. Assim, sus­ com grande desejo de tornar-se como ele, Campos regularmente, ele não quer mais matar nem ver penso entre duas extremidades, passo a passo, ele expande a sua visão: primeiro ele elogia o mari­ sangue, arrepende-se das imagens evocadas. Os Anna Maria Bielak - Estudante da Universidade cai no seu delírio. Como Rimbaud, de Campos nheiro, homem comum, inconsciente herói da gritos do marinheiros são substituídos pela can­ de Adam Mickiewicz em Poznań, da filologia portuguesa tenta cortar as ligações com a sociedade, pelo me­ vida: ção da sua infância, cantada por uma velha tia. (2. ano) e da filologia francesa (1.ano mestrado). Tem inter­ nos no espírito: O mundo inteiro não existe para esse pela literatura francesa e portuguesa, especialmente do Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos! modernismo e contemporânea. Toma parte ativa na vida do mim! Ardo vermelho!/ Rujo na fúria da aborda­ Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros! Instituto Português em Poznań.

4 5 ERNESTO DE MELO E CASTRO E OS INÍCIOS DA POESIA EXPERIMENTAL PORTUGUESA ERNESTO DE MELO E CASTRO E OS INÍCIOS DA POESIA EXPERIMENTAL PORTUGUESA

Karolina Skalniak (Benoit-Dusausoy, Fontaine, 2009: 740-741). Em ventada. A poesia tenta converter-se numa arte Universidade de Wrocław relação aos escritores anglófonos, a poesia da épo­ espacial ao exemplo da escultura e da pintura. A ca do modernismo está dominada por T. S. Eliot e linguagem começa a perceber-se como matéria: Como os limites da poesia experimental são Ezra Pound. Quanto à Espanha, os inícios da poe­ muito característico é o uso dos elementos não imprecisos, não é possível dizer exatamente a sia experimental estão relacionados com a atitude idiomáticos, a fragmentação de palavras, etc. data do seu princípio. A história da lírica visual de Julio Campal, Juan Eduardo Cirlot e Fernando A poesia experimental tem vários ramos (Mi- remonta ao nascimento da escrita. Já na Grécia Millán. tre, 1974: 675): Antiga conhecia-se technopaigneia, ou seja, compo­ São principalmente Fernando Pessoa, José de 1. a poesia concreta compreende a língua como sições em forma de asas, ovos, etc. (Bohn, 2006: 6). Almada-Negreiros e Mário de Sá-Carneiro que matéria e estabelece com ela estruturas diferentes; A poesia experimental moderna sendo um gé­ dão uma nova dimensão à língua poética em Por­ 2. a poesia visual: tenta apagar limites entre nero marginal e rechaçado pelos críticos, apesar tugal. O mais inovador é, claramente, o uso de he- um poema e um quadro redescobrindo a caligra­ de não se poder medir através da estética tradicio­ terónimos por Fernando Pessoa, por exemplo: Ri­ fia e o aspeto gráfico de palavras e letras que são nal, tem a sua própria tradição que é independen­ cardo Reis, Álvaro de Campos e Vicente Guedes. núcleo da energia visual; te da literatura geral. Podemos procurar os seus A poesia experimental portuguesa como tal 3. a poesia fonética é composta por fonemas inícios na França do século XIX. São os anos 1850­ surge na década de 60 com um grupo de poetas ou simplesmente por sons articulados por órgãos 1880 que constituem um período muito significa­ e artistas que tentam romper com os conceitos vocais humanos; tivo marcado por grandes nomes como Mallar- tradicionais de texto e de objeto artístico (Torres, 4. a poesia objetiva está baseada numa organi­ mé, Rimbaud, Baudelaire. Todas as atividades do 2008). Naquela época começa o período de flores­ zação gráfica, escultural e musical com a coope­ espírito da modernité como As Flores do Mal que cimento deste movimento em Portugal que se de­ ração constante de pintores, escultores e músicos; veem a luz em 1857, Um lance de dados jamais aboli­ senvolve até hoje em dia. Entre outros autores da 5. a poesia fónica refere-se frequentemente a O pêndulo, Ernesto de Melo e Castro rá o acaso, junto às publicações de Rilke, Ungaretti, nova corrente pode-se enumerar: Ana Hatherly, si mesma. Um poema fónico cria-se diretamente Trakl, Pessoa, Eliot, Seferis, Mandelshtám o Alei- António Aragão, António Barros, Ernesto de Melo na fita magnetofónica tratando frases como centro xandre, mostram a importância desta tendência, e Castro, Fernando Aguiar, Salette Tavares e Sil­ e objeto da energia auditiva. Poemas fónicos são Retratos Metamíticos é outra experiência do po­ motor de quase todas as criações literárias do sé­ vestre Pestana. muitas vezes encadeamento de onomatopéias; eta português, uma estranha união de ilustração culo XX (Benoit-Dusausoy, Fontaine, 2009: 635). O aparecimento da poesia experimental em 6. poesias cibernéticas, permutativas, verbofó- e compostas sobre elas expressões matemáticas Os conceitos do simbolismo, da sonorização Portugal é de certo modo precedido com a pu­ nicas, etc.: são frutos da contemporaneidade que nas quais se podem distinguir nomes de alguns e da visualização da poesia desenvolvidos por blicação de uma antologia de Poesia Concreta do desfrutam do progresso tecnológico; artistas portugueses: Santa-Rita Pintor, iniciador Mallarmé são uma base e um ponto de referência Grupo Noigandres em 1962 pela embaixada do Com certeza, os critérios desta categorização do futurismo na pintura portuguesa; Mário de Sá­ para muitos autores posteriores, de modo que se Brasil em Lisboa, no mesmo ano em que se publi­ não são exatos. As poesias experimentais são po­ -Carneiro e Fernando Pessoa, poetas modernistas pode denominar ao poeta francês pai da poesia cam Ideogramas de Ernesto M. de Melo e Castro, o esias de estruturas e montagens que introduzem e Luís Vaz de Camões, o maior poeta do Classicis­ experimental. primeiro livro português de poesia experimental. ao leitor em estados antes desconhecidos cons­ mo português. A intensa necessidade da reforma da língua Em Portugal não se forma nenhum grupo estrutu­ truindo expressões originais. O que fazem é ma­ aparece na Itália ao princípio do século XX (Tka­ rado de poetas experimentais, é por isso que não nifestar o significante e deixar passar ao fundo o czyk, 2003: 52-61). São os futuristas como Filippo se produz nenhum manifesto, o que é próprio significado. Simultaneamente desejam livrar o lei­ I .áT\ Tomaso Marinetti que querem que a arte abarque para correntes deste tipo. Os concretistas portu­ tor da bagagem cultural ligada com a linguagem. todos os âmbitos da atitude de homem: política, gueses organizam exposições e happenings, publi­ São poesias ainda não formadas, mas as que se família, ciência e economia. cam revistas. Em 1964 aparece o primeiro número estão a formar. Outra corrente que surge naquela época e que da revista Poesia Experimental, editada por Antó­ Neste momento, serão apresentados alguns ganha popularidade em Paris, Berlim e Nova nio Aragão e Herberto Helder. No ano seguinte exemplos da obra de Ernesto Manuel de Melo e York é o dadaísmo, que como o futurismo acentua tem lugar o primeiro happening, a exposição titu­ Castro, poeta, ensaísta e professor universitário, o aspeto fonético e visual da língua. Os dadaístas lada VISOPOEMAS. Ainda no ano 1965 publica-se natural da Covilhã, nascido em 1932 que é de fac­ euxtn.sác arneiro í outro = jogam com a língua, o seu programa é, precisa­ Proposição 2.01 - Poesia Experimental, um excelente to o pai da poesia experimental portuguesa. s.ritapintor = f (futurismo) z o esfinge gorda mente, a falta de programa, a casualidade. ensaio teórico de Ernesto M. de Melo e Castro jun­ O pêndulo é uma composição visual clássica que Um dos mais importantes propagadores da to a uma antologia de poemas internacionais que se refere aos caligramas tradicionais de Apollinai- nova poesia é Apollinaire fascinado pelas ideias o segue. Depois lançam-se também as revistas re. A disposição de letras reflete o movimento do futuristas (Tkaczyk, 2003: 66). A essência da obra Operação 1 e Operação 2 e Hidra 2, entre outros. Em objeto designado e provoca em leitores a impres­ do francês são os seus caligramas, por outras pa­ 1971 publica-se o primeiro romance experimental são do dinamismo. O motivo do tempo marcado lavras poemas estruturados como uma imagem português, Um buraco na boca de António Aragão. pelo pêndulo faz referência ao tópico tempus fugit que se relacionam com o conteúdo do texto. Os Dois anos depois edita-se Antologia da poesia con­ da época do Barroco. caligramas de Apollinaire, ao contrário dos co­ creta em Portugal, o que permite encerrar um certo nhecidos e praticados já antes, estão cheios da etapa. A presença da poesia experimental na lite­ sensualidade, da necessidade de descrever a re­ ratura portuguesa está afirmada. alidade com as suas cores, os seus sentimentos, “Um quadro é um poema calado e um poema a verdade _ u»;;. - almaaa sabores e sons. um quadro sonoro”, diz um preceito chinês. Gra­ /pÕSSÕã = pessoas As palavras em liberdade marcam também a ças às experiências de Mallarmé, Apollinaire e os obra de Pierre Reverdy e Max Jacob, entre outros seus seguidores, a ideia do poema-quadro é rein­ Retratos metamíticos Ernesto de Melo e Castro A A ERNESTO DE MELO E CASTRO E OS INÍCIOS HUNSRUCKISCH - DIALETO ALEMÃO NO BRASIL DA POESIA EXPERIMENTAL PORTUGUESA

tar as raízes do hunsruckisch do Brasil. Hunsruck Concluindo, o melhor comentário desta obra Julia Grabińska é uma região do oeste da Alemanha, no Estado serão os versos dum metapoema de Ernesto de Uniwersytet Wrocławski da Renânia-Palatinado, localizada perto dos rios Melo e Castro (de Melo e Castro, 2010: 15): Reno e Mosela e próxima da atual fronteira com Como podemos ler no livro de Barba­ o Luxemburgo. Enquanto região, Hunsruck tem ra Hlibowicka-Węglarz “Język portugalski w as fronteiras claras, ao contrário da língua huns- todos os poemas são visuais porque são para ser lidos świecie wczoraj i dziś” segundo os dados da ruckisch. O hunsruckisch fala-se fora das frontei­ com os olhos que veem UNESCO (World Culture Report 2000) de 2000, ras de Hunsruck, mas também o idioma interno é por fora as letras e os espaços no limiar dos séculos XX e XXI existiam cerca de diferenciado. Como quase todos os dialetos ale­ mas não há nada de novo 6700 línguas. O português é falado por cerca de mães, o hunsruckisch desintegrou-se em diferen­ em tudo o que está escrito 200 milhões pessoas de quatro continentes. Gra­ tes áreas. Cada aldeia tem a sua própria pronún­ é só o alfabeto repetido por ordens diferentes ças a isso, o português ocupa o sexto lugar entre cia. Hoje em dia, infelizmente, cada vez menos letras palavras formas os 6700 idiomas mais falados - depois do chinês, pessoas falam e compreendem hunsruckisch, es­ tão ocas como as nozes do inglês, do hindi, do espanhol e do bengali. É o pecialmente os jovens. Por sorte existem algumas recortadas em curvas e lóbulos terceiro entre os idiomas europeus. Para cerca de pessoas que tentam salvar este dialeto. do cérebro vegetal : nozes 183 milhões pessoas o português é a língua ma­ O riograndenser hunsruckisch desenvolveu­ os olhos é que veem nas letras e nas suas combinações terna. -se graças à imigração alemã no Brasil, há mais de fantásticas referências Devido à existência de outros idiomas indíge­ 200 anos. Os imigrantes da região de Hunsruck vozes sobretudo da ausência nas, ao contacto com outras culturas ou à imigra­ estabeleceram-se no sul do Brasil, especialmen­ que é a imagem cheia ção, encontramos um grande número de dialetos te no estado Rio Grande do Sul. Esta imigração que a escrita inflama no Brasil. O português é a única língua nacional começou no ano 1824. Nessa altura chegaram as até ao fogo dos sentidos e que os escritos reclamam oficial no Brasil, mas o Brasil é um país multilin- primeiras famílias alemãs ao Brasil. Os imigran­ para se chamarem o que são gue. No Brasil existem cerca de 200 outras línguas tes alemães que se seguiram a essa primeira vaga ilusões fechadas para chamadas línguas minoritárias (por exemplo, colonizaram outros estados vizinhos, Santa Ca­ os olhos abertos verem idiomas autóctones). Podemos também distinguir tarina, Paraná e Rio de Janeiro e também outros idiomas que apareceram no Brasil graças ao pro­ estados do Brasil, por exemplo São Paulo, Espírito cesso de imigração no Brasil (línguas alóctones). Santo e leste de Minas Gerais. Os imigrantes ale­ Referências bibliográficas: São exemplos destes idiomas o japonês, o italiano, mães colonizaram maioritariamente áreas pouco Benoit-Dusausoy, A., Fontaine, G., coord. (2009). Litera­ o alemão, o polaco, que encontramos sobretudo urbanas e pouco desenvolvidas, cabendo-lhes a tura Europy: historia literatury europejskiej. Gdańsk, Słowo/ no sul do Brasil. eles a tarefa de urbanizar estes locais. A maioria obraz terytoria. O IPOL (Instituto de Investigação e Desenvol­ dos imigrantes da Europa central eram pessoas Bohn, W. (2006). Kryzys znaku. - In: Literatura na Świecie, vimento em Política Linguística, uma instituição da região de Hunsruck e das regiões vizinhas. Warszawa, Biblioteka Narodowa, p.6. de Melo e Castro, E. (2010). Neo-Poemas-Pagãos, São Paulo, Selo Demônio Negro. no Brasil que se ocupa da identificação, registo e Também emigraram pessoas de outras regiões e Mitre, E. (1974). Los ideogramas de José Juan Tablada. - manutenção das línguas minoritárias de diferen­ países europeus de culturas eslavas, por exemplo In: Revista Iberoamericana, Pittsburgh, XL, núm. 89. tes territórios e áreas nacionais) diferencia entre da Pomerânia, hoje território da Polónia. Tkaczyk, K. (2003). Kilka uwag o naturze poezji wizualnej w outros os seguintes idiomas no Brasil: o huns- Com o passar do tempo os imigrantes alemães początkach XX wieku. - In: K. Najdek, K. Tkaczyk (eds.), Teoria ruckisch, a língua japonesa, a Língua Brasileira e os seus descendentes adotaram o hunsruckis- literatury żywa: między słowem a obrazem, Warszawa: Wydaw­ nictwo Uniwersytetu Warszawskiego. de Sinais, a língua caingangue, a língua guarani, ch, mas também o alemão-padrão e o pomerânio. Torres, R. (2008). A Poesia experimental portuguesa. - In: o nheengatu, o polaco, o pomerano, o portunhol O dialeto pomerânio que pertence à língua plat- Poesia Experimental Portuguesa - Cadernos e Catálogos. e o italiano. tduutsch impõe-se lado a lado ao hunsruckisch no Pessoalmente, aquele que despertou o meu in­ sul do Brasil, mas não é tão comum e popular. O teresse foi o dialeto alemão hunsruckisch (pode­ dialeto pomerânio e outras formas relatas do llat- mos também dizer hunsrik ou, quanto à versão tduutsch podem ouvir-se na cidade de Pomerode, brasileira, riograndenser hunsruckisch) falado na em Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, Es­ região do Hunsruck no sudoeste da Alemanha e pírito Santo ou São Paulo. Além disso, o pomerâ- Karolina Skalniak - Universidade de Wrocław. nos estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, nio é uma língua cooficial no município de Pancas Amante da cultura lusófona e de Lisboa onde teve sorte Paraná e Espírito Santo no Brasil e abrange tam­ e no município de Santa Maria de Jetibá. Também de estudar graças ao programa ERASMUS (Universidade bém parte da Argentina e do Paraguai (podemos podemos distinguir outro dialeto alemão: katari- Nova de Lisboa). Os seus interesses académicos estão rela­ cionados com a literatura da Península Ibérica. então falar sobre uma ilha linguística). É a língua nensisch. A designação katharinensisch refere-se dos imigrantes da Alemanha e dos seus descen­ ao estado Santa Catarina, onde apareceu pela pri­ dentes que moram no sul do Brasil. A versão bra­ meira vez. Não tem nenhum status oficial. Cerca sileira é uma variante de Hunsruckisch - dialeto/ de 200 mil pessoas falam katarinensisch, mas hoje língua alemão falado na região de Hunsruck na em dia a maioria aprende a língua alemã. Alemanha. Sobre o hunsruckisch (em forma brasileira) Vale a pena mencionar um pouco sobre o exerceram influência outras línguas e dialetos de hunsruckisch da Alemanha para poder apresen­ outros imigrantes alemães antes mencionados,

8 9 HUNSRUCKISCH - DIALETO ALEMÃO NO BRASIL HUNSRUCKISCH - DIALETO ALEMÃO NO BRASIL

como por exemplo o pomersch (o pomerânio) uma geração mais jovem. O hunsruckisch ficou asso­ mas outros poderiam dizer “matschbauer”. Esta da língua. No seu trabalho Wiesemanm faz uma e bairisch (a língua bávara) ou hochdeutsch (o ale- ciado às zonas rurais, à origem, à família, à solidarie­ palavra não existe no alemão-padrão. Com estas análise dos fonemas do hochdeutsch e os fonemas mão-padrão/o alto alemão). Além disso, o huns- dade entre os grupos e às gerações mais velhas. (Vilela, perguntas os pesquisadores conseguiram deter­ do português do Brasil. Ela explica também a sua ruckisch foi influenciado pelos dialetos austría­ 2004) minar e ordenar o estado atual do Hunsruckisch. análise fonológica do hunsruckisch do Brasil e diz cos, a língua italiana e outros dialetos de outros Uma das características essenciais dos dialetos como deveria escrever-se ortograficamente. Cer­ imigrantes e a língua portuguesa. Este dialeto foi Isso mostra que embora distingamos o huns- alemães usados no sul do Brasil é a criação de pa­ tamente, toma também em consideração o con­ influenciado também pelas novas fauna e flora. O ruckisch, não existe um dialeto alemão-brasileiro lavras alemãs a fim de nomear elementos da flora texto geográfico na América Latina e cultural em hunsruckisch surgiu numa região de fronteira en­ unificado. O hunsruckisch também tem muitas e da fauna brasileira. Esta criação nota-se tanto contato com o português. Como diz Wiesemann: tre a Alemanha e a França e por isso também foi diferenças internas e depende de falantes, regiões pela assimilação de termos portugueses, como influenciado pela língua francesa. etc. pelo processo de composição que é muito co­ Na proposta do alfabeto e das regras de ortografia O riograndenser hunsruckisch era o dialeto O nome riograndenser hunsruckisch foi intro­ mum no alemão. É uma justaposição de palavras seguimos o princípio de usar um símbolo diferente para alemão mais falado, popular e divulgado do sul duzido no ano de 1996 por Cléo Vilson Altenho- para gerar novas palavras, por exemplo matsch cada fonema - mesmo que usemos dois dígrafos. Este do Brasil. Infelizmente, hoje em dia (especialmen­ fen e refere-se ao estado do Rio Grande do Sul (barro) e bauer (construtor) que formam matsch- símbolo é usado cada vez que o fonema é pronunciado. te nas últimas três ou quatro gerações) fala-se onde se fala este dialeto. Altenhofen distinguiu bauer. Os pesquisadores também investigaram (Wiesemann, 2008: 29) cada vez menos este dialeto. Isto deveu-se, essen­ o riograndenser hunsruckisch por causa das di­ se o uso do hunsruckisch se mantém através das cialmente, à repressão da língua alemã duran­ ferenças entre o dialeto falado na Alemanha e o gerações. Para 2007 estava prevista a elaboração Não se segue o costume do hochdeutsch de es­ te a Segunda Guerra Mundial. A razão de recuo dialeto falado no sul do Brasil. O hunsruckisch de um dicionário que deveria comparar o huns- crever com maiúscula os substantivos, mas sim os do uso do alemão era também o de é uma língua cooficial do município de António ruckisch brasileiro ao hunsruckisch falado no oes­ nomes próprios. Também não se adota o costume Getúlio Vargas. Getúlio Vargas proibiu o uso de Carlos em Santa Catarina e no município de Treze te da Alemanha, o português e o alemão-padrão. alemão de juntar palavras - cada palavra escreve­ línguas minoritárias em público e em casa. O uso Tílias em Santa Catarina. Além disso, este dialeto A conclusão deste projeto devia ter acontecido no -se separada, evitando palavras compridas e difí­ de alemão em público nesse tempo era proibido está em fase de oficialização em Santa Maria do final de 2010, mas não encontrei nenhuma infor­ ceis de ler. Wiesemann distingue também outra sob pena de multa. Quando o Brasil entrou na Herval no Rio Grande do Sul. Em Santa Maria do mação sobre a publicação deste dicionário. regras: Segunda Guerra Mundial, os alemães brasileiros Herval existe uma entidade que tenta preservar o Também foi criado o Atlas Linguístico-Etno­ - Escreve-se cada palavra segundo a sua pro­ passaram a ser considerados a quinta coluna nazi, hunsruckisch - Equipe Hunsrik. Também foi de­ gráfico da Região Sul do Brasil (Alers). É uma co- núncia. foram discriminados e internados. Nas escolas clarado património linguístico do Rio Grande do -edição da Universidade Federal do Rio Grande - Cada som escreve-se da sua maneira, não há eram chamados “alemães batata”. Como conse­ Sul. Como diz o artigo primeiro: do Sul, Universidade Federal de Santa Catarina e variação de grafia representando o mesmo som. quência disso, a geração jovem aprendeu o portu- Universidade Federal do Paraná. O Alers catalo­ - Toma-se em consideração a tonicidade. Ex. Te uês como a sua primeira língua. Hoje em dia, o Fica declarada integrante do patrimônio histórico ga as diversas variações do alemão e o português ‘o' e ti ‘a' - os artigos definidos masculino e femi­ unsruckisch fala-se quase só no meio privado e e cultural do Estado a “Língua Hunsrik”, de uso co­ presentes no sul do Brasil e tenta anotar a variante nino singular - diferenciam-se das formas corre­ pessoal, em eventos comunitários, espaços rurais, mum entre os descendentes de imigrantes germânicos linguística dominante em cada aldeia cartografa­ spondentes demonstrativos tee e tii. comunidades e entre as pessoas mais velhas, não chegados há quase dois séculos da Alemanha ao Estado da (regista cerca de 300 mil dados orais, colhidos - Certas palavras pronunciam-se de várias ma­ se utiliza fora de casa. Não temos estatísticas pre­ do Rio Grande do Sul. (Estado do Rio Grande do Sul, em 275 pontos dos três estados). neiras segundo a região e até segundo a família. cisas sobre o número de pessoas que consideram 2012) Quanto à ortografia e escrita do hunsruckisch, Quanto ao vocabulário, os falantes do hun- o hunsruckisch a sua língua materna. Não sabe­ existem muitas ideias sobre como deveria escre­ sruckisch e de outros dialetos alemães adaptam mos também quantas pessoas falam nesse dialeto O hunsruckisch ganhou também um atlas lin­ ver-se neste dialeto. Altenhofen diz que para a es­ frequentemente as expressões e vocábulos do por­ fluentemente ou se comunicam com algum grau guístico que registou o estado atual desse dialeto. crita do hunsruckisch deveria usar-se a escrita do tuguês. O melhor exemplo pode ser a expressão de fluência, mas sabemos que existem pessoas que O atlas mostra variações na pronúncia, a assimila­ alemão. Altenhofen é um participante do Grupo alles gut?. É uma tradução literal do brasileiro utilizam o hunsruckisch fluentemente, mesmo ção de termos de português e a geração de novas de Estudos da Escrita do Hunsruckisch (ESCRI- tudo bem? No alemão para perguntar tudo bem? como língua materna. As estimativas sobre o nú­ palavras. Foi um projeto realizado por uma equi­ THU). Este grupo foi criado para desenvolver um como vai? diz-se wie gehfs? Alles gute significa mero dos falantes são diferentes: algumas referem pa de mais de 10 pessoas do Instituto de Filologia sistema de normas para a transliteração dos dados tudo de bom e pode-se dizer Alles Gute zum Ge- 200 mil, algumas falam em milhões. É importante Românica da Universidade de Kiel (Christian-Al- do hunsruckisch. Este projeto integra-se no proje­ burtstag que é o mesmo que Parabéns no portu­ dizer que a maioria dos falantes do hunsruckisch brechts-Universitat, Alemanha) e do Instituto de to ALMA-H. No entanto, não existe um modelo guês. A já mencionada investigadora Tornquist no Brasil fala fluentemente português (para al­ Letras / Área de Língua Alemã da Universidade ortográfico comum aprovado por todos os falan­ considera que as descrições da fauna e da flora guns dos falantes do hunsruckisch o contato com Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, UFR- tes do riograndenser hunsruckisch. As pessoas e a designação dos meios de transporte são exem­ a escola era equivalente a aprender português). GS). Esse programa foi guiado pelos professores qdue conhecem o alemão tratam de usar os acordos plos clássicos de formas híbridas usadas pelos de­ Mas, como disse a pesquisadora Ingrid Marga- Harald Thun (Kiel) e pelo já mencionado Cléo o mesmo para escrever. O resultado é uma falta scendentes alemães. Exemplos: rossa (roça/Feld), reta Tornquist, autora da tese Isto aprendi com Altenhofen e tem o nome de Atlas Linguístico- de estandardização da escrita. Outros baseiam­ fakong (facão/grosses Messer), aviong (avião/ minha mãe. Linguagem e conceitos éticos entre -Contatual das Minorias Alemãs na Bacia do Pra­ -se no trabalho da linguista alemã Ursula Wiese- Flugzeug), kamiong (camião/Lastwagen). Entre teuto-brasileiros no Rio Grande do Sul, em várias ta: hunsruckisch (ALMA-H). mann. A escrita que usam é baseada na ortografia outras adaptações podemos marcar as palavras regiões do Rio Grande do Sul o alemão continua Os investigadores realizaram um questionário portuguesa. Este sistema é mais fácil na assimila­ portuguesas, cujo diminutivo é criado como no sendo o primeiro idioma na comunicação dentro de 300 perguntas entres os falantes do hunsruckis- ção. Mas é recusado pelas pessoas que prefeririam alemão: canecachen = caneca (port.) + chen (dim. da família e entre amigos. Também o Cléo Alte- ch para descobrir usos e pronúncias de palavras uma ortografia baseada no alemão. Wiesemann alemão). Podemos também distinguir as agluti­ nhofen explica: do dialeto. Uma das perguntas, por exemplo, pre­ diz que não é necessário saber ler hochdeutsch nações híbridas como schuhloja (schuh + loja; loja tendia saber o nome do pássaro que constrói um (alto alemão) para ler ou escrever hunsruckis- de sapatos, sapataria) ou milhebrot (milho + brot; O português passou a ser símbolo da cidade, das ca- ninho de barro em forma de forno. Thun explicou ch. Propõe para o hunsruckisch sul-americano a pão de milho). Interessante é também que no hun- madas mais altas da população, do saber, da escola e de que alguns poderiam responder “joão-de-barro”, escrita de maneira regular, segundo os fonemas sruckisch encontramos aglutinações híbridas em

10 11. HUNSRUCKISCH - DIALETO ALEMÃO NO BRASIL TUDO MENOS FUTEBOL? IMAGEM DE ORGANIZAÇÃO DO EURO 2004 EM PORTUGAL NA IMPRENSA - CASO DO PORTO interferências sintáticas detetadas na inversão da %C3%ADtica_Ling%C3%BC%C3%Adstica Acesso: Anna Olchówka todos os meios de comunicação começaram a in­ ordem das palavras na expressão ou na prática 30.04.2013 Universidade de Wrocław formar sobre todos os pormenores do processo da Rambo, Pio. Língua Alemã Hunsrickisch - Deutsche Huns- “incorreta” de preposições, por exemplo traumen rucker. organização do torneio, progressos e demoras na mit (sonhar com, ao invés de traumen von - son­ -http://hunsrickisch.blogspot.com/ Acesso: 30.04.2013 Não existe em Portugal nenhum outro tema realização das obras. Através das relações jorna­ har de - do alemão moderno); bleiben mit Dir (lit­ Riograndenser Hunsruckisch. - In: Wikipédia: a enciclo­ das discussões, talvez o assunto atual da crise eco­ lísticas também se começaram a criar as imagens eralmente ficar com você, no lugar do bleiben bei pédia livre. nómica, que ocupe uma posição tão importante e populares de cada uma das cidades anfitriãs, que Dir). Também vale a pena falar um pouco sobre a -http://de.wikipedia.org/wiki/Riograndenser_ significativa como o futebol. Em Portugal há uma mostravam diferentes particularidades, não sem­ Hunsr%C3%BCckisch Acesso: 30.04.2013 adoção do português no uso dos verbos que têm Riograndenser Hunsruckisch. - In: Wikipédia: a enciclo­ verdadeira paixão pelo chamado “Desporto-Rei”. pre positivas, o que influenciou muito a imagem na fala dos descendentes alemães as terminações pédia livre. Essa relação emotiva foi percebida já nos princí­ completa do evento ainda antes deste. Este é o como no alemão: lembrieren, namorieren, sich -http://pt.wikipedia.org/wiki/Riograndenser_ pios do século XX pelos políticos não somente em exemplo das publicações e notícias do jornal o realisieren, ofendieren, respondieren. Existe tam­ Hunsr%C3%BCckisch Acesso 30.04.2013 Portugal. O famoso emblema da época salazarista “Público” no ano 2002: entre janeiro e dezembro o bém uma expressão propagada e muito popular Schossler, Alexandre (2007). Dialeto hunsruckisch do sul do foi o de três efes: “Fado, Fátima, Futebol”: eram tema das preparações do Porto para o Euro 2004 Brasil ganhará atlas linguístico. do hunsruckisch: Mariechen, mach die janela zu, -http://www.dw.de/dialeto-hunsr%C3%BCckisch-do- três elementos que alimentavam os sentidos e o aparece em 146 edições do diário, e quase a meta­ es schuvt/chuvt (Mariechen, fecha a janela, está a -sul-do-brasil-ganhar%C3%A1-atlas-ling%C3%B espírito de modo adequado e de acordo com a de dos textos - no caderno local do jornal, “Públi­ chover). C%C3%ADstico/a-2903147 Acesso: 30.04.2013 ideologia do regime (Coelho, Pinheiro, 2002: 249). co Local”. Quanto a mais curiosidades, existem algumas Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Projeto AL- Hoje em dia, a paixão pelo futebol é uma carate­ Todos os textos que se referem aos objetivos obras literárias no Hunsruckisch. A mais conhe­ MA-H. rística de todos os portugueses que se identificam do Porto mais importantes para serem realizados -http://www.ufrgs.br/projalma/index.html Acesso: cida é o poema do alemão Peter Joseph Rottmann 30.04.2013 com a seleção nacional, com as equipas das dife­ antes do torneio, aludem às categorias como a or­ “Der Abschied” ou “O adeus”. Foi publicado em Vilela, Soraia (2004). O alemão lusitano do Sul do Brasil. rentes cidades, com os clubes pequenos não pro­ ganização eficiente do torneio e da sua segurança, 1840 na Alemanha. Espelha a amizade, o amor -http://www.dw.de/o-alem%C3%A3o-lusitano-do-sul- fissionais. O futebol é uma questão de identida­ a construção ou modernização da infraestrutura conflituoso e também a primeira forte onda mi­ -do-brasil/a-1174391-1 Acesso: 30.04.2013 de, muito bem visível no caso do Porto, desportiva (estádios) e de transporte (vias e estra­ gratória. A história deste poema é a seguinte: Wandscheer, Roselaine (2004). “Ich kann schon brosilió- Invicta, cuja história e imagem permanecem uni­ das, ferrovias, aeroportos, transporte público) e o nisch”, uma infância entre dois mundos. Hannes (Johannes; João), o imigrante alemão, -http://www.dw.de/ich-kann-schon- das ao Futebol Clube do Porto (Coelho, Pinheiro, desenvolvimento das diferentes áreas da cidade. despede-se da sua namorada Liesekett (Elisa- -brosili%C3%B3nisch-uma-inf%C3%A2ncia-entre-dois- 2002: 684-687). A imagem desportiva da cidade é Os benefícios esperados pelo Porto e descritos no betha Katharina). Ela ficará na sua terra de ori­ -mundos/a-1182543 Acesso: 30.04.2013 muito bem exposta - o futebol é um dos elementos diário podem ser divididos em três grupos - es­ gem, ao passo que ele mudar-se-á para o Brasil Wiesemann, Ursula (2008). Contribuição ao desenvolvimen­ irrefutáveis da sua tradição. Não surpreende, por­ tádio, economia e cidade - entre os quais o valor (Brasilje) promissor, tropical e exótico. Segundo to de uma ortografia da língua Hunsrik falada na tanto, que um assunto tão relevante ocupe uma económico parece ser o mais significativo; as notí­ América do Sul. Liesekett, Hannes terá que defrontar-se com víbo­ -http://www-01.sil.org/americas/BRASIL/publcns/ling/ posição importantíssima nos diferentes meios de cias e opiniões concentram-se na boa imagem, pa­ ras e símios. Ela tem de permanecer sozinha em comunicação, entre outros, na imprensa. pel decisivo da cidade ao nível nacional e no seu Hunsruck. Mas Hannes tranquiliza-a dizendo-lhe Hunsrik.pdf Acesso: 30.04.2013 O mercado de imprensa em Portugal na pri­ desenvolvimento em termos gerais. Mas a maior que eles se reencontrarão e serão felizes. meira década do século XXI apresenta-se como parte das notícias publicadas descreve minucio­ muito complexo. Existe uma segmentação sig­ samente todas as dificuldades que o Porto tem nificativa das publicações, de acordo com sexo, de confrontar. Os problemas referem-se sempre Referências bibliográficas: Julia Grabińska - Universidade de Wrocław, estu­ idade ou interesse dos leitores. Somente entre os aos custos e despesas da cidade anfitriã ou a re­ Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil. dante do segundo ano dos estudos de licenciatura da Fa­ alização obras no Estas culdade de Filologia Espanhola. Há quase dois anos estuda jornais podem-se destacar os nacionais, regionais, das prazo planeado. duas -http://www.alers.ufsc.br/ Acesso: 30.04.2013 diários, semanários, generalistas, de desporto, etc. questões aludem principalmente à construção da Estado do Rio Grande do Sul. Lei N.° 14.061, de 23 de julho língua portuguesa na Universidade. Participou no Congres­ de 2012. so dos Estudantes Lusitanistas da Polónia “Viagens pelo Esse mesmo mercado é muito dinâmico: os títulos infraestrutura desportiva (outra vez os estádios) -http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099. Mundo Lusófono” no ano 2013 em Lublin. aparecem e desaparecem. Outra vez, no setor de e de transporte (estradas, comunicação pública). ASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNormas= jornais essas mudanças revelam ser muito mais O aspeto interessante são as informações que co­ 58094&hTexto= &Hid_IDNorma=58094 Acesso: 30.04.2013 equilibradas. Nos últimos anos denota-se a entra­ mentam os sucessos dos outros anfitriões do tor­ Hlibowicka-Węglarz, Barbara (2003). Język portugalski w da do modelo dos jornais com brindes (gratuitos neio e comparam-nos em relação aos problemas świecie wczoraj i dziś, Uniwersytet Marii Curie-Skłodowskiej. Hoffmann, Geraldo (2004). “Brasil alemão” comemora 180 ou pagos), das edições eletrónicas (o desenvolvi­ correntes do Porto; será possível que deste modo anos. mento das páginas web dos jornais como fontes se indique a competição existente entre as cida­ -http://www.dw.de/brasil-alem%C3%A3o-comemo- de informação), e a evolução da remodelação grá­ des? ra180-anos/a-1274817 Acesso: 30.04.2013 fica, principalmente das primeiras páginas e do Em cada uma dessas três categorias principais Hunsruckisch. - In: Wikipédia: a enciclopédia livre. formato dos jornais. Entre esses, distinguem-se o das notícias o tema de maior dimensão é a realiza­ -http://de.wikipedia.org/wiki/Hunsr%C3%BCckisch Acesso: 30.04.2013 chamado formato de luxo broadsheet e o mais po­ ção - exitosa e dentro do prazo - do Plano de Por­ Hunsruckisch. - In: Wikipédia: a enciclopédia livre. pular formato tablóide (Moutinho, 2008: 63-69). menor das Antas (PPA). O plano de remodelação -http://es.wikipedia.org/wiki/Hunsr%C3%BCckisch Os média acompanham hoje todos os aconte­ da zona abarcava criação do novo componente ha­ Acesso: 30.04.2013 cimentos mais importantes na vida política, eco­ bitacional, da área comercial e de serviços, reedifi- Hunsruckisch. - In: Wikipédia: a enciclopédia livre. nómica, cultural, social e, evidentemente, des­ cação da via de cintura interna e relocalização dos -http://pt.wikipedia.org/wiki/Hunsr%C3%BCckisch Acesso: 30.04.2013 portiva do país. Por isso, não podiam faltar nas equipamentos desportivos do FC Porto, de acor­ Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política preparações de Portugal para a organização do do com o conceito da UEFA, e tornou-se um dos Linguística. - In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Campeonato Europeu de Futebol em 2004. Desde temas da campanha eleitoral. A ideia do presiden­ -http://pt.wikipedia.org/wiki/Instituto_de_ o dia 12 de outubro de 1999, quando o país foi te da Câmara do Porto, Rui Rio, de redução duma Investiga%C3%A7%C3%A3o_e_Desenvolvimento_em_Pol nomeado pela UEFA como o anfitrião do evento, das principais fontes de financiamento do estádio 1 - Todos os artigos e notícias mencionados neste texto provêm do diário “Público” do ano 2002, chamado posteriormente o “P”.

12 13 TUDO MENOS FUTEBOL? IMAGEM DE ORGANIZAÇÃO DO EURO 2004 TUDO MENOS FUTEBOL? IMAGEM DE ORGANIZAÇÃO DO EURO 2004 EM PORTUGAL NA IMPRENSA - CASO DO PORTO EM PORTUGAL NA IMPRENSA - CASO DO PORTO

- o espaço comercial - provocou grandes tenções UEFA (UEFA alerta Portugal, 15.03.2002) e os títu­ “Ferro dramatiza Euro 2004 e PSD faz contas cativa a sua perspetiva lexical. Ainda ao nível dos na vida pública. O clube do FC Porto mostrou-se los que tratam o tema diretamente, com afeição aos votos”, “FC Porto acusa Rui Rio de mentir”, cabeçalhos é bem visível que o vocabulário usado na discussão como um adversário concreto, cons­ e emoção através das frases determinadas emo­ 03.03.02 transmita uma forte mensagem de ansiedade e ciente, sólido. O símbolo futebolístico da cidade cionalmente (UEFA pisca olho...). O vocabulário “Acordo nas Antas pacifica PSD”, 05.03.02 seriedade da situação que toma forma alarman­ entrou na polémica com Rio, deixando ao lado a coloquial, mais informal aparece principalmente “Guerra de nervos nas negociações do Plano te, mas também evolui. Os textos têm uma orien­ preocupação pelo jogo e pelos êxitos desportivos. nas notícias descritivas, que apresentam os acon­ das Antas”, 28.03.02 tação inegavelmente política. A atenção do leitor A competição desportiva perdeu-se entre os te­ tecimentos com todos os pormenores; pode-se até está dirigida aos conflitos existentes e à competi­ mas mais mediáticos, como a política; o núcleo da pensar que sejam publicações com ambição de e nos textos inteiros: ção entre os representantes das duas partes, o que organização do torneio adquiriu a dimensão de ser pequenas reportagens literárias, mas a temá­ chama a atenção muito mais do que uma descri­ negócio. Já depois das eleições, um dos comenta­ tica abordada contrasta com esta ideia. Os textos Ainda não há fumo branco. Habilitando-se a ser ção simples dos acontecimentos, de acordo com dores do “P”, José Pacheco Pereira, resumiu todo publicistas mostram maior flexibilidade e coesão ainda mais demorada do que um concílio papal, as formas dos géneros informativos. o ambiente em torno do PPA: O problema do “fute­ léxica: os seus autores operam o léxico rico, dinâ­ a polémica em torno do Plano de Pormenor das An- A dominação do poder entra, por meio das no­ bol” que atravessou a campanha no Porto foi tudo me­ mico, adaptado à situação analisada: tas (PPA) continua sem desenlace. Chegou a pensar-se tícias sobre o Porto e do discurso do “P”, na re­ nos uma questão de futebol: foi uma questão de poder que ontem, ao fim de mais uma maratona de nego­ alidade social portuguesa. As emoções extremas político, nua e crua. A questão era a de se saber quem A partir do momento em que as coisas chegaram a ciações que terminou próximo da hora de jantar, seria expressadas, desde o pessimismo profundo até ao mandava na cidade - se o poder político eleito, se um este ponto de rebuçado, era difícil criar condições de anunciada a solução. À saída de uma reunião na Câ­ otimismo, com todos os detalhes, criam a impres­ conjunto de poderes fácticos (“A campanha eleitoral serenidade para discutir as outras duas questões (por mara do Porto, o empresário Américo Amorim deixa­ são da proximidade aos leitores e provocam tam­ no Porto (1)”, 21.03.02). sinal as essenciais) que se colocam perante o Plano de va no ar a hipótese de haver novidades por parte de bém as suas respostas no mesmo espírito. O jornal Por parte dos os recursos linguísticos, estilís­ Pormenor das Antas: as vertentes urbanística e finan­ Rui Rio. O presidente da autarquia desiludiu, todavia, participa nessa influência, mas também a observa ticos e gráficos, o “P” aproveita os básicos para ceira. Porque o essencial é discutirmos se vale a pena quem o esperou. Afirmou que continuam as negocia­ e, às vezes, comenta. Assim, realiza o modelo do o estilo informativo, adaptados ao estilo próprio. aproveitar a rara oportunidade propiciada pelo Euro ções e rematou dizendo: “Tenho mais paciência do que pluralismo polarizado da teoria dos sistemas dos A composição das frases não coincide completa­ 2004 para reconverter a degradada zona oriental da ci­ pensava ter”. media de Daniel C. Hallin e Paolo Mancini. mente com o tipo do texto, ou seja, não sempre dade e se há dinheiro garantido para isso (Nuno Car­ “Guerra de nervos nas negociações do Plano Na teoria dos sistemas dos media o modelo nos informativos aparecem as orações simples e doso diz que sim, Rui Rio vai dizer que não, mas das Antas”, 28.03.02 chamado mediterrâneo é um sistema no qual a uniformes. Na maioria das publicações prevalece a verdade é que a alternância democrática, de que Os textos aparecem, na maioria das edições, política tem muita importância para os meios de o estilo direto; as citações autenticam as informa­ o novo presidente da câmara beneficiou, reserva como temas destacados na primeira página do comunicação; estes são um utensílio de represen­ ções, dão impressão de fiabilidade da mensagem. sempre algumas surpresas menos agradáveis). número ou da seção, em contraste com o pequeno tação das diferentes opções políticas. Os media Por isso aparecem também as enumerações e no­ “Um estádio e um hipermercado”, 18.02.02, espaço ocupado pelas outras noticias. O nível de funcionam de acordo com as normas impostas mes completos. “P” relação com os assuntos políticos influencia muito pelos grupos políticos e legitimam a presença do­ O léxico nos textos informativos não abusa das esse posicionamento (período da campanha elei­ minante da política na vida pública (Hallin, Man- figuras metafóricas ou dos tropos, sempre apare­ As dificuldades do Porto são tratadas como um toral). É um outro sinal do relacionamento direto cini, 2007: 131-135), apresentam os esquemas do cem os nomes próprios ou termos especializados; tema muito grave e sério, no entanto nos textos do poder com o desporto, da sua presença signifi­ jogo político - acordos, negociações, conflitos. En­ nos publicistas podem aparecer as interjeições. empregam-se as expressões não neutrais, emocio­ cativa nos meios de comunicação e, em resultado, tram com esse tema na vida social (Hallin, Man- As expressões utilizadas nos cabeçalhos de todos nais. Menciona-se a ligação dos problemas com a da sua potência para influir a imagem da realida­ cini, 2007: 143-144). Os autores indicam também os tipos dos textos manifestam uma imagem do situação política, a posição da UEFA e apresenta de (mudança da intensidade das emoções relacio­ esse modelo como o com o maior número das ca­ poder determinado, forte, que intervém com toda com todos os detalhes cada decisão; com a notícia nadas com a matéria). raterísticas universais para a realidade de hoje. a consciência no assunto das preparações para o sobre a suspensão das obras nas Antas (“Obras A gráfica, no caso dos textos engrandecidos A narração do “P” demonstra muito bem todas Europeu: nas Antas param hoje”, 02.03.02) aparece ime­ pelas ilustrações ou destacados na primeira pá­ as caraterísticas mencionadas anteriormente, e as diatamente o cenário provável do torneio sem o gina ou numa secção especial, pode ter o papel mudanças de atualidade dão passo à discussão “Rui Rio faz ultimato ao Governo”, 19.02.02 Porto: a confirmar-se a paragem definitiva as obras no tão importante como as palavras escritas; a rela­ ampla sobre as perspetivas do jornalismo, deixan­ “Sampaio obrigado a pôr ordem no Euro Estádio das Antas, a primeira e grande implicação será ção entre o aspeto verbal e visual está enfatizada, do muitas questões sem resposta óbvia. O even­ 2004”, 04.03.02 a concentração de praticamente todos os jogos impor­ principalmente, pela organização espacial do jor­ to de grande dimensão desportiva como o Euro “PSD e PS medem forças nas ruas do Porto”, tantes em Lisboa (“Abertura, meias-finais e final se­ nal. O problema do PPA ocupa na maioria dos ca­ perde, já ao nível das preparações, o seu elemento 09.03.02 rão em Lisboa”, 02.03.02). sos a primeira página das edições (especialmente constitucional: transforma-se num acontecimen­ “UEFA pisca olho a Portugal e ao Euro”, O desenvolvimento da situação provoca o uso em março de 2002, durante a campanha eleitoral), to do interesse político dos numerosos sujeitos, e 16.03.02 das frases curtas que dinamizam todas as relações com umas ilustrações, uns desenhos ou simples não futebolístico. A instrumentalização dos media “Rio acusa anterior executivo camarário de ir­ sobre o PPA. O léxico “bélico”, que com frequên­ cabeçalhos. Em 2002, o diário publica tudo ainda manifesta-se assim na instrumentalização dos as- responsabilidade no caso das Antas”, 27.03.02 cia carateriza as descrições desportivas, enfatiza em preto e branco, por isso não é possível distin­ suntos tratados. Em consequência, a imagem do “Uma eurocidade com o custo de três estádios a essência do conflito, adiciona a perspetiva emo­ guir nenhum elemento com cores. Essa função de torneio e os organismos ligados às preparações de futebol”, 20.04.02 cional. São os elementos que aparecem nos cabe­ diferenciar é assumida pelo tamanho da fonte, o tornam-se completamente estranhos ao leitor do “Governo não dá mais dinheiro para os está­ çalhos: seu formato nos cabeçalhos, localização das infor­ jornal, mesmo adepto ou não. dios do Euro 2004”, “Governo recusa mais dinhei­ mações nas páginas principais das secções ou co­ ro para o Euro 2004”, 21.08.02 “PSD corre perigo de vida no Porto”, 14.02.02 locação das fotografias adequadas. “Rui Rio faz ultimato ao Governo”, 19.02.02 Como se pode observar, os textos são, na parte Sobre a importância desse assunto convencem “Nuno Cardoso lança mais lenha para a fo­ linguística, as notícias que cumprem as regras do os numerosos artigos sobre as preocupações da gueira”, 21.02.02 estilo informativo mas ampliam de forma signifi­

14 1 TUDO MENOS FUTEBOL? IMAGEM DE ORGA­ O PORTUNHOL: FRUTO DO CONTACTO LINGUÍSTICO ENTRE PORTUGUÊS E ESPANHOL NIZAÇÃO DO EURO 2004 EM PORTUGAL NA IMPRENSA - CASO DO PORTO Aleksandra Pietraszek Brasil). Podem-se distinguir muitas razões da existên­ Universidade de Wrocław cia do portunhol neste lugar; segundo Lipski o fenó­ meno mantém-se porque muitos uruguaios desta região Referências bibliográficas: A explicação mais básica define o portunhol procuram no Brasil um emprego ou uma educação me­ Coelho, J. N., Pinheiro., F. (2002). A Paixão do povo. Histó­ como a maneira de falar ou escrever que mistura lhor (Lipski, 2006: 7-8). ria do futebol em Portugal, Porto, Edições Afrontamento. elementos vocabulares, fonéticos e sintáticos do Visto que a maioria dos falantes do portunhol são Hallin, D. C., Mancini, P. (2007). Systemy medialne. Trzy português e do espanhol1. Nesta definição vale a uruguaios, o dialeto baseia-se nos fonemas da língua modele mediów i polityki w ujęciu porównawczym, Kraków, espanhola, à exceção dos fonemas que não podem ser Wydawnictwo Uniwersytetu Jagiellońskiego. pena sublinhar a palavra “maneira” porque não Moutinho, S. (2008). Novas tendências no setor da im­ define este fenómeno precisamente e desde o pon­ representados com o alfabeto espanhol como as vogais prensa - In: Pinto, M. (dir.), Marinho, S. (dir.): Os media em to de vista linguístico pode ocasionar pequenas nasais e o “v” que representa o mesmo fonema que em Portugal nos primeiro cinco anos do século XXI, Porto: Campo inexatidões. Por isso, faz falta fazer uma referên­ português2. A maneira de representar o acento tónico das Letras. cia à linguística de contacto que distingue quatro em riverense consiste num acento agudo (') e acento Público, 2002 fenómenos que podem ocorrer quando duas ou circunflexo (A), aparece também o til (~). As regras de mais línguas entram em contacto: a interferência acentuação ortográfica são parecidas às de português e linguística (que ocorre quando duas línguas se espanhol, além dos infinitivos e monossílabas que na Anna Olchówka - Universidade de Wrocław desenvolvem uma por influência da outra num maioria dos casos levam acento. Estudante do primeiro ano do 3° Ciclo de Filologia no indivíduo bilingue), o empréstimo linguístico (a Relativo à conjugação verbal, existem quatro con­ Instituto de Filologia Românica incorporação de uma palavra existente noutra lín­ jugações e os verbos são classificados de acordo com Na sua pesquisa interessa-se, entre outros, pelo papel do gua, que não sofre nenhuma alteração e mantém a terminação do seu infinitivo (respetivamente: verbos desporto contemporâneo em Portugal e na Espanha; o tema terminados em “á”, “ê”, “í” ou “ô”)3. Pode-se distin­ da sua tese de doutoramento está relacionado com a ins­ o sentido básico), o code-switching (uma mistura trumentalização do desporto pela propaganda salazarista e de palavras ou frases inteiras de duas ou mais lín­ guir tanto os verbos regulares quanto os irregulares (ex. franquista. guas numa mesma conversação) e o nascimento “tê” (ter), “sê” (ser), “í” (ir), “tá” (estar)) que seguem de línguas (a criação de uma língua nova que ser­ as regras de conjugação características para os verbos ve de meio de comunicação entre os falantes de regulares. idiomas diferentes). Além disso, é muito interessante que os tempos com­ De acordo com Lipski (2006: 1-7), o rótulo postos se formam tanto utilizando o verbo tê /ter/, que é “portunhol” é regularmente usado para dois fe­ maneira caraterística para o português, quanto o verbo nómenos distintos, a saber: enquanto uma língua “havê” (haver), que ocorre em espanhol. Por exemplo, de fronteira, para designar a interlíngua nas fron­ no tempo Pretérito Perfeito do Indicativo pode-se dizer teiras bilingues entre Brasil e os países limítrofes tanto “Eu teno amado” quanto “Eu he amado”, ou “Tu (e, em menor escala, entre Portugal e Espanha) e ten partido” que equivale a “Nós hemos temido”. no ensino de línguas estrangeiras, para designar No entanto, é na morfologia e na sintaxe onde se fenómenos de interferência, em que o falante de destaca o caráter híbrido do fronteiriço. Neste campo, uma das línguas, em situação de aprendizagem segundo Lipski, vale a pena concentrar-se no uso do ar­ das outras, não consegue suprimir a interferência tigo definido e indefinido, a formação dos substantivos da sua língua materna. Além disso, podemos dis­ plurais e as formas verbais híbridas (todos os exemplos tinguir mais duas manifestações do portunhol. A mencionados vêm da fala quotidiana dos falantes do primeira é o uso espontâneo de uma híbrida es­ portunhol riverense coletados num dos estudos de Eli- panhol-portuguesa na Internet e a segunda: ma­ zaincín) (Lipski, 2006: 8-12). No portunhol é possível nifestação literária nesta língua (Lipski, 2006: 1-7). observar a combinação dos artigos portugueses com os Surpreendentemente, podem-se encontrar muitas espanhóis na mesma frase, ex.: “u [= o] material que mostras da produção literária em portunhol pro­ se utiliza en el taier”. Além disso, o artigo português cedentes tanto de área fronteiriça do Brasil quanto pode aparecer com a palavra espanhola ou vice-versa. da Península Ibérica. Depois, entre os falantes do fronteiriço podem-se ouvir Sem dúvida nenhuma vale a pena entrar em formas verbais como: “nós tinha” (em lugar de “nós ti- mais detalhes quanto às variedades geográficas nhamos” ou “nosotros teníamos”) (Lipski, 2006: 8-12). do portunhol melhor conhecidas: o portunhol da Como foi mencionado anteriormente, existe América do Sul, falado na fronteira entre o Brasil uma ampla produção literária no portunhol sul-ameri­ e os países de língua espanhola ao sul (Uruguai e cano. São em geral obras procedentes do Brasil e Uru­ Paraguai), chamado do portunhol riverense, e o guai e, ao contrário do portunhol falado e espontâneo, portunhol ibérico com a sua variedade mais co­ na produção literária evita-se usar termos falsos e as nhecida: o barranquenho. regras ortográficas são mais coerentes. Entre as obras O portunhol riverense (chamado também “o fron- mais conhecidas destaca-se a novela “Mar paraguayo” teriço”) surgiu na região de fronteira entre o Brasil e o do autor brasileiro Wilson Bueno que é uma novela em Uruguai, a fronteira que abrange duas cidades gemina­ forma de um monólogo poético escrita em portunhol das: Rivera (no Uruguai) e Santana do Livramento (no literário, com muitas palavras de origem guaraní (Lip- 1 - http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=portunhol 2 - http://pt.wikipedia.org/wiki/Portunhol_riverense 3 - http://pt.wikipedia.org/wiki/Portunhol_riverense 1A 1 O PORTUNHOL: FRUTO DO CONTACTO LINGUÍSTICO ENTRE PORTUGUÊS E ESPANHOL O PORTUNHOL: FRUTO DO CONTACTO LIN­ GUÍSTICO ENTRE PORTUGUÊS E ESPANHOL ski, 2006: 4-5). A obra trata do conceito de fronteira 198), os barranquenhos são bilingues: o espanhol lar outra língua ou ocorrido durante o processo de em geral: fronteira de linguagem, fronteira geográfica, usa-se no âmbito familiar e local, e do português aprendizagem da língua nova. O estudo do por- social, etc. depende toda a vida administrativa: bancos, ad­ tunhol pode fornecer muitos dados interessantes A obra de Bueno inspirou outro autor, Douglas ministração ou escolas. De acordo com o estudo sobre a situação a sóciolinguística dos grupos que Diegues, que decidiu publicar trinta sonetos no volume do barranquenho de Clancy Clements, o dialeto vivem nas regiões fronteiriças, os mecanismos de “Dá Gusto Andar Desnudo por Estas Selvas - Sonetos local é o fruto do contato do subdialeto alentejano code-switching e os mecanismos da aquisição de Salvajes” escrito em portunhol que ele mesmo nomeia da fala portuguesa e as variedades andaluza e es- uma segunda língua. o portunhol selvagem. O poeta ocupa-se também da tremenha de espanhol e o seu uso é característico tradução ou recriação de obras estrangeiras para portu- das gerações mais jovens (Clancy Clements, 2009: nhol. A sua poesia pertence à corrente vanguardista que 198-202). se caracteriza pela maneira inovadora de escrever, ao O vocabulário barranquenho é uma mistura do mesmo tempo nova e antiga que demonstra a novidade espanhol e português com várias palavras pró­ da poética primitiva (Lipski, 2006: 4-5). Na sua poesia prias para as zonas léxicais de Andaluzia e Estre­ podem-se ver claramente exemplos de code-switching madura (por exemplo: “barruntá” que significa como “la noite” ou “lo que bocês puedem falar”; das “pensar”, “mentá” - “mencionar” ou “piporro” Referências bibliográficas: formas híbridas dos verbos, ex.: “puedem” e da influ­ que é o tipo de recipiente para manter água)6. Clancy Clements J. (2009). The Linguistic Legacy of Spanish ência espanhola do fonema bilabial “b” usado em vez Quanto às características fonológicas e mor- and Portunhol. Colonial Expansion and Language Change. Cam­ bridge: Cambridge University Press, 190-210. de “v” nos princípios das palavras: “bersus”, “bocês”, fossintáticas o barranquenho mantém o sistema Lipski, John M. (2006). Too Close for Comfort? The Genesis etc. vocálico português (ou seja, não reduz as vogais of Portunol/Portunhol. - In: Selected Proceedings of the 8th His- Além disso, houve tentativas de manter dife­ nasais) e aparece a falta ou aspiração do “r” e “s” panic Linguistics Symposium, ed. Timothy L. Face and Carol rentes tipos de canções, hinos e orações em portunhol, ao final de palavra ou silaba (“alguma bezi” [al­ A. Klee. Somerville, MA: Cascadilla Proceedings Project, por exemplo da oração Pai Nosso (em portunhol “U gumas vezes], “ah pesóah” [as pessoas], etc.). Em 1-22. Padre Notru”): http://www.christusrex.org/www1/pater/JPN-fronteri- barranquenho nota-se também o betacismo espa­ zo.html (consultado: 12 de março de 2013) nhol: a falta de oposição entre “b” e “v” que exis­ http://galeon.com/lenguasdeextremadura/barranque- Padre notru, te em português, e a preferência do diminutivo nho/barranquenho.htm (consultado: 12 de março de 2013) Qu'ehtá nuh celuh, http://pt.wikipedia.org/wiki/Portunhol_riverense (con­ Santificado seya tu nomre. espanhol “-ito” que o português “-inho” (Lipski, 2006: 9-11). sultado: 10 de março de 2013) Vena tu reinu. Házase tu voluntad, http://www.priberam.pt/dlpo/default. así na terra como nuh celuh. Além disso, neste dialeto aparecem numerosas aspx?pal=portunhol (consultado: 10 de março de 2013) Danoh hoye notru pan de cada día, construções gramáticas típicas espanholas (Clancy y perdoánoh notrah ofensah, Clements, 2009: 205-209). Para marcar a progres­ así tambén cuando noh perdoamoh a eyoh que noh ofenden. são de ação usa-se a perífrase verbal estar + gerún­ Y no noh dexéh cair na tentazón, dio (construção própria para espanhol) em vez de pero líbranoh du mau. estar + a + infinitivo, ex.: “Me casei tarde, ehtaba Porque tuyo eh u reinu, y a podé, y a gloria, já trabalhando” ou “Nu se si sabi, ondi ehtãu fa­ du Padre y du Hiju y du Ehpíritu Santu. Amen4. zendo u cini teatru”. Outro fenómeno caracterís- tico para espanhol que aparece em barranqueno Aleksandra Pietraszek - Universidade de Wrocław, é a duplicação do objeto indireto, que se pode 3° ano: estudante de filologia espanhola na Universidade de Em segundo lugar, queria referir o fenóme­ Wrocław, bolseira do Programa Erasmus na Universidade no do contato linguístico português-espanhol na observar nas expressões “le conté a meu pai” ou “lhe pedi a uma colega minha”. Os pesquisado­ de Granada em Espanha. Interessa-se, sobretudo, pelas mú­ Península Ibérica que têm a história mais longa, tuas influências entre espanhol e português e pela cultura visto que ambas as nacionalidades vivem ao lado res observaram também o uso do verbo “gostar” contemporânea de ambos os países. desde há muito. Antes podia-se ouvir portunhol que em português se relaciona com sujeito e em em toda a região fronteiriça no sul da Península, espanhol com objeto indireto. Em barranquenho chamada “A Raia” (ou “La Raya” em espanhol), mistura-se ambas as propriedades como se pode mas hoje em dia o fenómeno de falar barranque- observar em frases “Eu gostaria também de falá nho limita-se somente à localidade de Barrancos, um bocadinho milhó.”, “Para eu fazé uma coisa situada no lado português, na região do Baixo- que a mim tanto me gohtaba.”ou” A primera beh -Alentejo. nãu le guhtó muitu.”. Os habitantes de Barrancos criaram uma cul­ A produção literária em barranquenho não tura própria para a região, inspirada tanto pela é tão ampla como em portunhol riverense, mas existe um conto tradicional titulado “A menina e a tradição andaluza (de onde vêm por exemplo a 7 ou canções de Natal) e portuguesa. Os moura mesmos barranquenhos ressaltam o seu caráter Para concluir, o contato linguístico entre independente repetindo o lema “Não somos por­ espanhol e português é um fenómeno caracterís- tugueses, nem espanhóis, mas barranquenhos”5. tico para lugares diferentes do mundo. É o fruto Segundo estudos (Clancy Clements, 2009: 197­ acidental e espontâneo de contato dos falantes de português e espanhol, de tentativas de “fingir” fa- 4 - http://www.christusrex.org/www1/pater/JPN-fronterizo.html 6 - http://galeon.com/lenguasdeextremadura/barranquenho/barranquenho.htm 5 - http://galeon.com/lenguasdeextremadura/barranquenho/barranquenho.htm 7 - http://galeon.com/lenguasdeextremadura/barranquenho/barranquenho.htm

18 19 OS POLACOS NOS CAMINHOS PORTUGUESES ENTRE O SÉCULO XV E XIX OS POLACOS NOS CAMINHOS PORTUGUESES ENTRE O SÉCULO XV E XIX

Patrycja Milczanowska século XIX, mesmo que germanizado. A sua famí­ mas informações sobre as intrigas tecidas na corte lença, Ponte de Lima (onde repara na ponte mais Universidade Jagellónica de Cracóvia lia provinha de Legnica e dedicava-se ao comér­ real e sobre a conspiração de um duque contra o bonita em toda a cristandade), Barcelos, o Porto, cio: por Szczecin importavam produtos do Ultra­ rei. Geralmente, não descreve nem monumentos, Coimbra, Lousã, Tomar, Santarém e Lisboa. Des­ Por causa da distância entre a Polónia e Portu­ mar como especiarias, jóias, incenso, óleo, prata nem igrejas, mas faz uma descrição etnográfica, creve Portugal como o reino muito diferente dos gal as relações luso-polacas até ao século XX não e pano. Nikolau, o quinto filho, deixou as ativi­ concentrando-se nos hábitos, caráter nacional e outros que já tinha passado porque é alegre, fru­ foram numerosas. Não tínhamos objetivos po­ dades comerciais e decidiu viajar à procura de história do reino de Portugal. tífero e populoso. Nota a diferença da pronúncia líticos comuns e a localização em dois extremos aventuras. Chegou à corte do imperador alemão No século XVI as viagens a Portugal eram mais entre português e espanhol, diferenças da cultura opostos da Europa dificultava as viagens. Mesmo Frederico III onde foi armado cavaleiro. A viagem numerosas porque naquele tempo os polacos ti­ portuguesa e espanhola e a antipatia entre os ha­ assim, já na Época dos Descobrimentos encontra­ que fez no ano de 1484 passando pela França, In­ nham o costume de viajar por toda a Europa, so­ bitantes de dois reinos vizinhos. Segundo a sua mos relatos sobre polacos que visitaram Portugal. glaterra, Espanha e Portugal supostamente teve bretudo por caminho da Silésia, Morávia, Áustria, opinião os portugueses são menos sérios do que Até ao século XX, em que o desenvolvimento da objetivos não apenas diplomáticos como também Stíria, Caríntia e Itália. Muitas vezes o objetivo das os espanhóis. Têm grandes habilidades e muito tecnologia mudou totalmente o caráter das via­ teve de fornecer ao imperador as informações so­ viagens era a peregrinação a Santiago de Com- jeito para a navegação e comércio. Nota também a gens, Portugal e as suas colónias foram visitados bre outros países (Radzikowski, 1996: 5-10). Da postela, mas o motivo era também a curiosidade grande presença dos judeus. por várias personagens oriundas da Polónia: via­ sua viagem deixou o diário escrito em alemão. e prazer; segundo a opinião pública, quem nem Descreve o Porto como a segunda cidade mais jantes, aventureiros, missionários, refugiados ou Entrou em Portugal pela Galiza no início do ou­ uma vez viajou ao estrangeiro, era considerado importante de Portugal, repara na famosa uni­ enviados diplomáticos. Muitos deixaram os tra­ tono e passou por Valença - Ponte de Lima - Bar­ tolo (Czubek, 1925: III). Viajavam sobretudo as versidade de Coimbra e no magnífico castelo de ços da sua estadia nas fontes históricas, mas al­ celos - Fontainhas - Modivas - ao Porto de onde pessoas educadas, interessadas pela cultura, mo­ Tomar, o mais rico e bonito em todo o reino. Em guns deles criaram também os relatos das viagens viajou de caravela para Lisboa. Dalí foi a Setúbal numentos e lugares de culto religioso. Lisboa destaca o porto famoso em toda a cristan­ nos quais podemos encontrar as informações inte­ onde se encontrou com o rei e depois viajou para No século XVI encontramos um diário de um dade que constitui o fim da Europa. Considera a ressantes sobre Portugal e portugueses de então. o reino de Algarve: desde o Cabo de São Vicente, autor desconhecido: o relato tem o título Anonima cidade populosa, rica, comercial e cheia de estran- Supostamente o primeiro “polaco” com o qual por Lagos, Vilanova de Portimão e Faro para Tavi- Diarjusz peregrynacji włoskiej, hiszpańskiej, portugal­ eiros; nas casas dos mercadores e nos mercados tiveram contacto os portugueses foi Gaspar da ra de onde partiu para o reino de Castela. Dá mui­ skiej (1595) (O diário anónimo da viagem pela Itália, á tantas especialidades como se se estivesse mes­ Gama. Segundo cronistas ele era um judeu cujos tas e detalhadas informações sobre a expansão Espanha e Portugal 1596). É o diário de uma pessoa mo na Índia. Lisboa tem também muitas igrejas e pais fugiram da cidade de Posna (ou Poznan) na portuguesa em Marrocos e Oriente, bem como so­ mundana e educada que exerceu a sua viagem de mosteiros muito custosos. Ao redor de cidade a Polónia depois de tumultos antijudaicos. As fon­ bre a corte do rei João III que considera uma pes­ maneira turística. Interessou-se por lendas e con­ terra é alegre e bonita, cheia dos jardins, pomares tes não são claras quanto ao lugar do nascimento soa de muita sabedoria. Foi o primeiro polaco que tos, bem como pelas menções dos autores antigos de laranja, de limão, de oliveiras e vinhas. Des­ de Gaspar: umas consideram que nasceu ainda na se queixou da má qualidade das estalagens por­ sobre os lugares visitados. Parece que em Portugal creve também o então vice-rei e o poder militar Polónia e depois emigrou com os pais, segundo tuguesas: estas queixas vão repetir-se em muitos a apenas Lisboa ganhou sua atenção: Olissippo, da cidade: a quantidade das naves e fortalezas. É outras nasceu já em Alexandria. Damião de Góis relatos. Descreve cuidadosamente o caráter e nota Ulissia, Felicitas Julia, Lacebona - como enumera muito grato pela hospitalidade de um português na Crónica do Felicíssimo Rei Dom Manuel apre­ as diferenças dos costumes portugueses. Segun­ todos os nomes da cidade. O porto de Lisboa con­ que cuidou dele durante uma doença mas quando senta o encontro dele com Vasco da Gama: visitou do a sua opinião alguns portugueses têm a razão sidera tão grande e magnífico, que é o primeiro partiu de Lisboa e entrou nas terras de Alentejo, as naves dos portugueses como o enviado do so­ subtil e não encontrou ninguém para compará-los em toda a cristandade: aqui vêm e daqui partem estas pareciam-lhe “plugawe, teskliwe, piaszczys­ berano de Goa, mas o seu discurso era tão confuso nesta matéria, porém geralmente são compara­ os mercadores da Itália, Grécia, Asíria, Inglaterra te”. A região era vazia, com as estalagens muito que Vasco da Gama ficou desconfiado. Torturado, dos com os habitantes de Galiza que são brutos e de todo o norte, da Índia, África, do Mar Verme­ más chamadas ventas, nas quais não se podia nem o enviado confessou que era espião. Os portugue­ e parvos. São também inconscientes de todos os lho e do Brasil. O povo de Lisboa é muito rico mas comprar a comida, nem havia a roupa de cama e ses levaram-no como piloto porque falava bem bons costumes e virtudes, embora se considerem a cidade é escura, apertada e suja: diz mesmo que os patrões preferiam discutir sobre as monarquias italiano e árabe e conhecia a região pela qual na­ os mais sábios de todos e como os ingleses pen­ é “plugawe”. Tem muitas igrejas mas não interes­ e guerras em vez de servir os hóspedes. vegavam. Depois do regresso para Portugal Vas­ sam que não há o mundo no outro lugar, apenas santes, além da capela de Santo António. O autor Karol Stanislaw Radziwill, sobrinho do rei Jan co da Gama adaptou-o e batizou-o: a partir deste na sua terra. São fiéis ao seu rei, não tão loucos e nota o poder do vice-rei espanhol e a riqueza dos Sobieski, faz no seu diário da viagem europeia um momento ele chamou-se Gaspar da Gama. Entrou cruéis como os ingleses. Mas segundo Nikolaus produtos que chegam em naves embora muitas curto relato relacionado com Lisboa. Viajou com o ao serviço do rei Manuel I que o respeitava mui­ são feios porque têm pele morena e cabelo pre­ delas sejam atacadas pelos piratas ingleses e ho­ seu irmão mais velho: a sua viagem ocorreu em to e lhe atribuiu o título do cavaleiro da sua casa. to, embora as mulheres tenham os olhos escuros landeses. Infelizmente, neste ponto o diário termi­ 1686 e teve sobretudo o caráter cognitivo e turísti­ Podemos encontrá-lo em quase todas as crónicas bonitos. Descreve a roupa dos portugueses: nota na e não dispomos da segunda parte. co, mas realizaram também missões diplomáticas relacionadas com os descobrimentos: tomou parte que os homens se vestem com capas pretas como A partir do século XVII uma viagem pela Eu­ na Inglaterra e em Portugal (Kucharski, 2011: 26). nas três primeiras viagens para o Oriente sob o co­ os agostinianos. As mulheres têm os decotes pro­ ropa tornou-se o ponto obrigatório na educação Depois de ter passado por toda a Europa ocidental mando de Vasco da Gama e Pedro Cabral; depois fundos de tal modo que se vê quase todo o peito dos jovens aristocratas que durante a sua passa­ e meridional, entraram em Portugal e passaram foi conselheiro dos vice-reis da Índia. Viajou por e os vestidos com os quais o traseiro parece tão gem por várias terras tinham a possibilidade de por Elvas, Estremoz, Vila Viçosa e Montemor-o- todo o Oriente, exercendo vários cargos diplo­ grande que “em todo o mundo não vi os traseiros estudar em famosas universidades e conhecer -Novo para chegar a Lisboa onde passaram duas máticos. As informações sobre ele acabam depois maiores” (Popplau, 1996: 70). As mulheres são ar­ as maravilhas do estrangeiro: instituições, mo­ semanas em janeiro de 1686. Karol Stanislaw ano­ do ano de 1510, provavelmente por causa da sua dentes no amor mas sem bondade, gananciosas e numentos e coleções. Viagem deste tipo era cha­ ta cuidadosamente o seu itinerário mas não des­ morte na conquista de Calecut. (Badowski, 1998: tontas. Em troca, os homens são preguiçosos, bru­ mada peregrinatio academica (Kucharski, 2011: 26). creve com abundância as cidades portuguesas. 14). tos e sem piedade. Com este objetivo encontrou-se em Portugal o Sobre Lisboa consegue dizer somente que é a ca­ No século XV a Portugal chegou também Ni- Nota a presença dos mouros nos subúrbios de jovem Jakub Sobieski, pai do rei João III. Passou pital e tem um porto grande. Enumera as igrejas kolaus von Popplau, ou seja, Mikolaj z Popielowa. Lisboa e junto com as façanhas dos portugueses por quase toda a Europa e visitou Portugal en­ mais conhecidas como Santa Engrácia, São Vicen­ Este cavaleiro oriundo de Wroclaw na Silésia, era em Marrocos e no Oriente descreve os costumes trando de Galiza, depois de ter visitado Santiago te de Fora onde jaz a nova dinastia e mosteiro dos considerado polaco pela historiografia polaca do dos habitantes da África. Dá-nos também algu- de Compostela. O seu caminho passou por Va- Jerónimos onde os portugueses sepultaram os

20 21 OS POLACOS NOS CAMINHOS PORTUGUESES ENTRE O SÉCULO XV E XIX OS POLACOS NOS CAMINHOS IMPÉRIO PORTUGUÊS NO LIMIAR PORTUGUESES ENTRE O SÉCULO XV E XIX DOS SÉCULOS XVIII/XIX reis e onde há uns mausoléus bonitos suportados porém como diz Tripplin: não podem viver sem Anna Śniegula por dois elefantes. Repara na Sé que provem ain­ religião mas viver segundo as leis da religião é já Universidade de Wrocław da dos tempos dos Mouros e dois palácios ricos outra coisa. Descreve o som da língua portuguesa Patrycja Milczanowska - Universidade Jagellóni- do rei. Parece que os duques de Radziwill tiveram que considera estridente e melodioso, bem como ca, II SUM. Licenciada em Filologia Portuguesa, continua Esta secção concentra-se em três partes. A pri­ uma missão muito subtil porque trouxeram con­ as diferenças entre português e a língua espanho­ os estudos de mestrado em História e Filologia Portuguesa. meira tratará da ideia do império, ou seja, a termi­ Dedica-se sobretudo à história das relações luso-polacas, sigo umas prendas para a infanta Isabela de Bra­ la. Repara também no desdém e ódio entre os por­ especialmente na Idade Moderna. No ano académico de nologia vinculada com império, o que é bastante gança. Supostamente queriam perguntar sobre as tugueses e espanhóis. No fim da sua viagem cons­ 2012/2013 foi bolseira do programa Erasmus na Universi­ importante para percebermos as relações políticas possibilidades de casar a infanta com o filho de tata que Portugal é pouco conhecido e raramente dade de Lisboa. Em 2012 participou no projeto de tradução entre o Brasil e Portugal e o funcionamento de am­ Jan III Sobieski. Porém, não conseguiram a audi­ visitado por viajantes sobretudo porque fica perto dos fragmentos dos livros de Luís Cardoso publicados no bos no império. A segunda secção desenvolverá a ência perante o rei português e tiveram de voltar da sua irmã mais famosa. número especial da revista universitária ROMAN “Timór questão do território ultramarino português que Lorosa'e". Faz parte do projeto de tradução da poesia de à Polónia sem resultados. Dos relatos polacos aparece um país da nature­ Florbela Espanca. Participou no II Seminário dedicado aos abrangia não só o Brasil mas também outros ter­ No século XIX depois das insurreições de no­ za deslumbrante, bonito e alegre, famoso por cau­ casamentos régios organizado em 2013 pelo Centro da His­ ritórios. Vamos atravessar a estrutura territorial vembro e janeiro muitos polacos tiveram de orga­ sa dos Descobrimentos e do seu comércio ultra­ tória da Faculdade de Letras da UL. de império em geral para a colónia Brasil e focar nizar a vida fora da Polónia. Um deles era Teodor marino, mas por outro lado sujo e negligenciado. a importância dela no império na terceira secção. Tripplin que terminados os estudos de medicina Os viajantes descrevem o caráter e aspeto dos por­ Nesta parte - como a mais essencial de todas as decidiu partir para a Espanha para praticar a sua tugueses de várias maneiras, mas estão de acordo três - discutiremos particularmente o peso do Bra­ profissão durante as guerras carlistas. Foi o come­ qduanto a uma questão importante: a má qualida- sil para Portugal desde o ponto de vista histórico, ço das suas viagens. Chegou também a Portugal e das estalagens que não muda desde o século económico e social. e deixou uma descrição na sua novela Wspomnie­ XV até XIX. Foram apresentados aqui apenas al­ Primeiro, vou desenvolver sobretudo as su­ nia z podróży po Danii, Norwegii, Anglii, Portuga­ guns exemplos dos relatos dos viajantes polacos e gestões do historiador inglês, Michael W. Doy- lii, Hiszpanii i państwie marokańskiem (Memórias é claro que embora os contactos luso-polacos não cw le sobre concepção do império. Tendo em da viagem pela Dinamarca, Noruega, Inglaterra, tenham sido numerosos naqueles séculos, ainda consideração que o texto está escrito em in­ Portugal, Espanha e Marrocos). Não se pode con­ há muitas coisas interessantes para investigar e glês vou às vezes colocar entre parêntesis os siderar esta obra um diário porque no seu caráter descobrir. termos ingleses para que fiquem evidentes. é mais um romance: o relato da viagem é enrique­ Doyle começa com a afirmação de que cada im­ cido pelas aventuras e casos inesperados. Mes­ pério é um tipo de relações de controlo político mo assim, Tripplin descreve Portugal na época US^EIBL imposto pelas sociedades políticas (political so- depois da guerra civil do século XIX de maneira Referências bibliográficas: To,— cieties) sobre a soberania eficaz para controlar as abundante e interessantíssima. Fez a viagem en­ ■•iF.fS.Tx-rtiiS: outras sociedades políticas (political societies). Os r ■ łwawRt*’7 í ’. tre 1837 e 38. Chegou a Lisboa de navio vindo de Fontes impérios significam mais do que territórios ofi­ Londres, depois viajou por Sintra, Mafra, Coim­ Góis, D. (1989). Kronika wielce szczęśliwego króla Dom Ma­ cialmente anexados, mas são menos do que a de­ nuela (1495-1521). Tłum. J. Klave. Warszawa, PIW. bra, Serra da Estrela, Viseu, Porto, Évora, Estre- Popplau, M. (1996). Opisanie podróży Mikołaja von Pop- r-klUl nlrianH Atli11 sigualdade internacional. Disto também provém moz e Elvas. Lisboa parece-lhe enorme, bonita e plau, rycerza rodem z Wrocławia. Kraków, Trans-Krak. a tese que o imperialismo é um processo de im­ singular como Roma, mas destruída - ainda no Radziwiłł, K. S. (2011). Diariusz perygrynacji europejskiej posição e manutenção do império. Alguns obser­ século XIX em toda a parte se pode ver as ruínas (1684-1687). Toruń, Wydawnictwo Naukowe Uniwersytetu vadores dizem que o império é um produto das depois do terramoto. Sobre o Porto diz que ape­ Mikołaja Kopernika. forças económicas, os outros dão ênfase às forças s.a. (1925). Anonima Diarjusz peregrynacji włoskiej, nas Cracóvia e Valência têm mais igrejas. A natu­ hiszpańskiej, portugalskiej (1595). Kraków, PAU. militares. reza é deslumbrante, embora ainda mais uma vez Sobieski, J. (2005). Peregrynacja po Europie (1607-1613) O que descreve a característica da metrópole se queixe da qualidade das estalagens portugue­ Droga do Baden (1638). Wrocław, Zakład Narodowy im. (imperial metropole) diz respeito à sua estrutura. sas. Considera que os portugueses são alegres, Ossolińskich. As metrópoles têm normalmente o governo cen­ mas feios, especialmente as mulheres que quase Tripplin, T. (1851). Wspomnienia z podróży po Danii, Norwe­ tralizado, economia diferenciada e lealdade polí­ gii, Anglii, Portugalii, Hiszpanii i Państwie Marokańskiem. War­ não saem de casa. Nota as condições sociais, eco­ szawa, Drukarnia Gazety Codziennej. tica compartilhada. Estas condições permitem e nómicos e políticas: depois do tempo das guerras encorajam os estados interessados pelo domínio e do caos Portugal finalmente atingiu paz e sos­ Estudos a governar as outras sociedades políticas que são sego e pode desenvolver-se, mas Tripplin repara Badowski, R. (1998). Pod portugalską banderą: kartki z dzie­ susceptíveis à colaboração e dominação. Pode­ no imenso descuido e negligência em cultivar a jów stosunków polsko-portugalskich. Warszawa, Best Eastern mos chamá-los periferias (para sermos mais exac- Plaza Hotels. terra tão rica e abundante. Somente se podem ver Czubek, J. (1925). Wstęp. - In: s.a.: Anonima Diarjusz pe­ tos: imperializable peripheries). Normalmente os restos da antiga fama das façanhas portugue­ regrynacji włoskiej, hiszpańskiej, portugalskiej (1595). Kraków, onde existem desigualdades de poder e onde os sas, porque hoje em dia Portugal está na pobreza PAU. meios de transporte permitem a exploração tan­ e miséria. Mas os próprios portugueses são cheios Kucharski, A. (2011). Wstęp. - In: Radziwiłł, K.S.: Dia­ to dos jazigos e bens materiais como a exportação de patriotismo e orgulho: os que Tripplin encon­ riusz perygrynacji europejskiej (1684-1687). Toruń: Wydaw­ dos instrumentos de poder, a gente que tem jeito, nictwo Naukowe Uniwersytetu Mikołaja Kopernika. tra dizem, que em Portugal tudo é mais vivo e Radzikowski, P. (1996). Przedmowa. - In: Popplau, aproveita a sua influência. Na verdade no império apaixonante. São muito vaidosos: consideram-se M.: Opisanie podróży Mikołaja von Popplau, rycerza rodem z nas periferias produz-se grande competição. Cada filhos primogénitos de Deus e mesmo em trapos Wrocławia. Kraków: Trans-Krak. estado das periferias tem inveja do poder dos de­ alegam que a Divina Providência se esforçou em mais, por isso cada um quer aumentar os seus lu­ equipar a sua terra e nação. São muito religiosos, Fotografia: Jorge Branco cros. Decepcionar significa cair em desgraça. Nes-

2A IMPÉRIO PORTUGUÊS NO LIMIAR DOS SÉCULOS XVIII/XIX IMPÉRIO PORTUGUÊS NO LIMIAR DOS SÉCULOS XVIII/XIX

te momento é quando Doyle pela primeira vez um decreto que realmente foi o acto de descoloni- gleses-fabricantes com a mentalidade agressiva. A nenhuma dúvida, o padrão do mercado colonial menciona o termo colónia ultramarina. Explica zação económica. Esse documento afirmava que Metrópole tinha cada vez mais de tomar decisões já por definição. Os produtos do Brasil como açú­ que as periferias (colonial peripheries) são os es­ os portos brasileiros foram abertos aos navios es­ difíceis para satisfazer as reivindicações inglesas e car, couros, mantimentos vendiam-se a Lisboa o tados que lutam por ampliar a sua independência trangeiros com as mesmas condições que os bar­ manter a economia colonial estável. Além disso, a que abrangia 88% das exportações em total. Vê-se e segurança mas nesta luta perdem o seu poder de cos portugueses. Não era preciso ter permissão oligarquia industrial portuguesa muito bem que outros destinos eram quase insig­ resistência. para a importação de bens porque já eram aceites opunha-se à abertura do mercado ao algodão nificantes. Se considerarmos a extensão das im­ O controlo formal da soberania eficaz (effective mercadorias de todas as procedências. Isso signi­ da Inglaterra porque estava interessada nos pró­ portações e exportações no início do século XIX, sovereignty) da sociedade subordinada envolve o fica a abertura do Brasil a todos os mercados não prios lucros e não nas regras do regime pombali­ vamos notar que o papel de Portugal foi enorme. processo complexo da influência. É o sistema onde só a este da Metrópole. A partir daquele momen­ no. A Metrópole participou em 53% destas operações. se controlam as decisões políticas. O ambiente da to as capitanias mudaram muito desenvolvendo­ O que escapa muitas vezes é que a economia O resultado destas operações fora o déficit que se metrópole penetra as periferias social, económi­ -se rapidamente. O decreto implicou alterações fluminense estava muito ligada aos outros terri­ acumulava. A ruína da economia fluminense sig­ ca e culturalmente graças aos “atores” das forças improváveis: a criação de fábricas, a importação tórios do Império Lusitano. Assim sabemos que nificaria também o arruinamento da Metrópole. dele. São os missionários, mercadores, soldados de maquinismos ingleses, a fundação da Junta do no porto do Rio de Janeiro entre 1803 e 1805 nas Mesmo na fase extrema aquela situação implica­ e burocratas que dão rumo à história das perife­ Comércio, a Casa da Moeda, o Banco do Brasil importações marítimas cariocas encontram-se os ria a implosão do sistema colonial. rias. Estes “atores” criam alianças domésticas, ca­ (quando ainda em Portugal não se tinha fundado valores de cada parte do império. Os manuscritos Vale lembrar que para Minas Gerais se dirigiam tegorias sociais, facções e partidos nas periferias. nenhum banco), a criação de editoras, o estabele­ dessa época da Biblioteca Nacional do Rio de Ja­ os escravos africanos provenientes do comércio Ou são os burocratas coloniais, ou o governo da cimento da Academia Militar (daquela provêm al­ neiro indicam que as importações marítimas pro­ com África. Os bens vendidos do porto do Rio metrópole que tomam decisões políticas. Temos guns dirigentes da futura independência do país). vinham na sua maioria do Reino (38%). No entan­ de Janeiro trocavam-se por escravos da Angola e de saber que o controlo imperial envolve também, No Brasil o fim da idade do ouro alcançou um to, outras zonas ofereciam o restante, quer dizer, Benguela. Nas estimativas demográficas de 1819, especialmente no contexto do imperialismo for­ momento muito difícil para a economia do siste­ as zonas da Europa, fora o Reino (22%), da Ásia Minas Gerais é o lugar com a maioria dos escra­ mal, todas as decisões externas, quer dizer: trata­ ma luso-brasileiro com a década de 1760. As con­ (5%), da África (15%), do Brasil (20%). De Portu­ vos concentrados nas capitanias do Brasil. Houve dos, alianças, decisões da paz e guerra, comércio sequências da falta do ouro não só tiveram impac­ gal adquiriam-se os panos, os vidros, as bulas, a um período entre 1825 e 1830 quando para Minas externo, relações monetárias. Isto refere-se ainda to sobre a economia colonial mas também sobre a aguardente, as drogas, as espingardas, os objectos Gerais despacharam mais de 40% dos escravos aos outros campos da vida por ex. taxas, educa­ política de Portugal no Brasil. A produção do ouro de estanho, os paios, a pólvora, os presuntos, o desembarcados no Rio de Janeiro. Também o trá­ ção, transporte (Doyle, 1986: 19-43). aluvial tinha começado a baixar bruscamente o vinho, o bacalhau e o vinagre. Da Europa através fico de escravos era o motor maior da participação A capitania é o termo que denomina as regi­ que tinha de ter repercussões graves numa econo­ dos portos metropolitanos compravam-se prin­ da Índia no mercado atlântico (Fragoso, Florenti- ões administrativas do império. No século XVIII mia dependente do ouro brasileiro. As dificulda­ cipalmente tecidos ingleses, manufacturados de no, 2001: 169). a Metrópole (se falarmos sobre Portugal e a sua des baseadas na exaustão do ouro tiveram influ­ metais, papel, manteiga, velas, breu e alcatrão. O outro aspecto que surge desta política eco­ dominação, vou pôr a palavra metrópole com ência sobre por ex. a cunhagem de moedas: “As Os valores da África serviam na sua maioria para nómica são as comunidades poderosas de merca­ maiúscula para a distinguirmos do termo geral emissões monetárias portuguesas caíram mais de adquirir escravos. Da Ásia vinham têxteis (cassas, dores, empresários monopolistas que dominaram de metrópole) criou as capitanias novas devido às 50% nos anos da década de 1770 (Maxwell, 2001: chitas, sedas, lenços, gangas, linho) e especiarias os tipos diferentes de negócios. Eles tornaram-se alterações políticas e económicas (Kula, 1987: 48). 390).” Desse produto dependia também a relação (noz-moscada, canela, pimenta, chá, cravo), lou­ uma elite mercantil. Em Minas Gerais emergia a As outras capitanias criadas nesse tempo foram: económica entre Portugal e Inglaterra. O colap­ ças e marfim. Verifica-se perfeitamente que ha­ nova elite dos brancos mineiros. A gente que tinha capitania de Goiás (1744), do Mato Grosso (1748), so de sector do ouro produziu enfraquecimento via uma certa especialização dos valores. Portu­ consciência da sua própria identidade. Durante já da Santa Catarina (1739) e do Rio Grande de São desse vínculo o que tinha resultados catastróficos gal especializou-se sobretudo nos tecidos, a Ásia muitos anos os mineiros mandavam os seus filhos Pedro (desde 1807 chamada Rio Grande do Sul). nos anos 1760-1770 quando o valor das exporta­ nos panos de luxo, a África nos pretos, o Brasil para a Universidade de Coimbra. Alguns deles À frente das capitanias estava o governador que ções dos bens ingleses caiu para a metade. Mas, destacava-se pelos alimentos. É interessante repa­ regressaram para o Brasil como Cláudio Manuel, depois se chamaria vice-rei (Kula, 1987: 48). O re­ como frisa Kenneth Maxwell, a crise do ouro teve rarmos que os panos remetidos para o Brasil por advogado e também secretário do governo de Mi­ gime colonial formou no Brasil o Governo Geral também aspectos positivos porque gerou mudan­ Portugal eram os tecidos provenientes da Ásia. nas que tinha uma mansão onde se reuniam os que durou até à chegada da Corte ao Brasil em ças no ambiente em Portugal. A necessidade de Pode surpreender, por conseguinte, que aqueles intelectuais da capitania de Minas Gerais. Mas 1808. salvar o sistema foi evidente onde: “a substituição rodutos apenas recebessem as estampas em Lis- foram muitos mais que participaram na vida inte­ Como observamos, a Portugal pertenciam as de importações era uma solução pragmática na­ oa e depois passassem para o Rio de Janeiro pois lectual e que deram o novo rumo ao desenvolvi­ regiões que mais ou menos correspondem em tural (Maxwell, 2001: 390).” Pois a outra matéria- não provinham exatamente da Metrópole. De mento da capitania: Tomás António Gonzaga (po­ algum grau aos territórios do presente Brasil, de -d rima nas regiões do Grão Pará, do Maranhão, acordo com o que escreve João Fragoso e Manolo eta e ouvidor), Carlos Correia (padre), Alvarenga Moçambique, de Angola, da Guiné -Bissau, da Ín­ e Pernambuco substituiu o ouro: o algodão. A Florentino: Peixoto (ex-ouvidor de São João del Rei) e Luís dia e Timor Leste. substituição de importações antecipou e acom­ Vieira da Silva (cónego da catedral de Mariana). Historicamente a importância do Bra­ panhou a política de Pombal. No entanto, des­ Trata-se de uma ideia que transforma o Sistema Atlântico Por­ Esse último era padre que possuía imensos livros sil cresceu quando a Corte fugiu para o Brasil de 1792 (quando D. João se tornou Regente) até tuguês em precondição para o funcionamento da economia colo­ na sua biblioteca e: “sustentava que as potências nial brasileira, já que não seria da Metrópole que o Rio de Janeiro (D. Maria pedia que andassem devagarinho para 1808 o Reino obteve benefícios grandiosos mes­ importaria o grosso não apenas de sua mão-de-obra, mas também europeias não tinham direitos de domínio sobre que ninguém pensasse que fugiam). Antes o Bra­ mo através de exportações de linho e de algodão. dos alimentos e dos insumos que consumia (Fragoso, Florentino, a América (Maxwell, 2001: 398)”. Não só na Vila sil nunca tinha tido tanta importância. A chegada A solução com a crescente produção de algodão 2001: 157). Rica emergia a elite intelectual mas também em à Baía da Corte de D. João no dia 22 de Janeiro era uma resposta muito boa para um aumento São João del Rei o grupo de gente semelhante, de de 1808 é um momento chave para a formação do dessa matéria-prima na Inglaterra. Desse modo, Para percebermos melhor o funcionamento da advogados e escritores reunia-se para conversar e país. O Rio de Janeiro tornou-se a capital da Me­ a economia luso-brasileira ficou o tempo todo na economia brasileira, vamos abordar também a debater sobre assuntos mundiais. trópole naquele momento (Fragoso, Florentino, órbita dos interesses da Inglaterra. Infelizmente, variação dos valores das exportações marítimas Por causa da emergência da elite e as fortes 2001: 155). Em 28 de Janeiro de 1808 o rei assinou colocou-se na órbita do novo grupo social dos in- do Rio de Janeiro em 1803-1804. O Reino é, sem mudanças económicas pouco a pouco o conceito

24 25 IMPÉRIO PORTUGUÊS NO LIMIAR DOS SÉCULOS XVIII/XIX de dependência colonial estava a cair. A elite inte­ lectual de Minas Gerais, tinha percebido a neces­ sidade das alterações. Sentia-se bastante auto-su­ ficiente. As mudanças no sector económico, a falta de ouro, também a emergência das comunidades de mercadores poderosos, tudo aquilo deu um passo ao novo método de pensar na Metrópole que sofria a crise enorme. Mesmo a política pom­ balina não ajudou a melhorar a situação. Além disso, de repente a Corte encontrou-se no Brasil o que aumentou o prestígio da colónia. Como ve­ mos, as circunstâncias tinham favorecido muito os acontecimentos que levaram depois à indepen­ dência do Brasil.

Referências bibliográficas: Doyle, W. M. (1986). Imperialism and Empire. - In: Fre- drickson George, Skocpol Theda, Cornell Studies in Com- parative History. Ithaca, London: Cornell University Press, Fragoso J., Florentino M. (2001). Negociantes, Marcado Atlântico e Mercado Regional. Estrutura e Dinâmica da Pra­ ça Mercantil do Rio de Janeiro entre 1790 e 1812. - In: Fur­ tado, J. Ferreira, Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império português. Humanitas: Belo Horizonte, 155-175. Kula M. (1987). Historia Brazylii. Wrocław: Zakład Naro­ dowy im. Ossolińskich. Maxwell K. (2001). As Causas e o Contexto da Conju­ ração Mineira. - In: Furtado, J. Ferreira, Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império português. Belo Horizonte: Humanitas, 389-408.

Anna Śniegula - Estudante de Filologia Românica (2° ciclo de Mestrado) na Universidade de Wrocław. Fala português, espanhol, inglês e italiano. Estudou um semes­ tre na Universidade Nova de Lisboa, participou no curso de espanhol em Salamanca, ensinou inglês em Ancona na Itá­ lia. Publicou os seus poemas em: Zielone Pióro, Złote Pióro Sopotu, Inne Ziemie. Actualmente trabalha numa empresa multinacional para técnicos portugueses. Quando pode viaja. A próxima viagem que a espera é aos Estados Unidos.

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Fotografia: Jorge Branco RUI CHAFES RUI CHAFES

Agata Bojanowska saro Ofendido) e 1987, e uma no Espaço Poligrupo toda a sua escultura. A temática das obras é pró­ da beleza do objeto (objeto perfeito versus o tem­ Universidade de Varsóvia Renascença (1988). Naquela época o artista criava xima aos conceitos de Novalis: a vida e a morte, po). “O anel que paira neste extraordinário jardim instalações com o uso de diversos materiais como o medo, o mistério. Muitas das suas exposições (...) poderá ser um catalisador de silêncios (...), o Sendo escultor e tendo nascido em 1966 (o ano de Andrej Ru- troncos, canas, ripas de madeira e plástico ou fitas foram acompanhadas pela edição de livros com mundo ficará em silêncio e será possível compre­ bliov, de Andrej Tarkowsky e de Au Hasard Balthazar, de Robert de platex, utilizando também luzes e odores. As os textos que descrevem o que é a prática artística ender a linguagem dos pássaros. Esta enorme e le­ Bresson), vivo com a consciência de que é preciso continuar a transportar a chama. suas esculturas e construções ocupavam salas de para um artista. Chafes sublinha a importância da víssima aparição é uma imagem simultaneamen­ Rui Chafes, Talvez, 19981 exposição inteiras. Segundo Alexandre Melo, nos palavra na sua obra: “o meu trabalho é sempre en­ te dentro e fora do mundo, um espaço em que o materiais e “no uso da luz e da cor, reafirmava-se tre a palavra e o ferro” (Salema, 2011). tempo é a matéria mais visível. O tempo é o nosso Surpreendeu-me já duas vezes. Positivamente. a experiência de formas a que se adivinhava uma No início do século XXI Chafes tem produzido único amigo.” (www.azores.gov.pt, 2009) Uma vez, quando entrei num museu e de repente primitiva origem orgânica e em que uma dinâmi­ obras de grande escala, que entram em diálogo Em 1995, Rui Chafes (junto com José Pedro fiquei parada em frente de uma bola de metal, vi­ ca de crescimento e explosão transtornava a es­ com o espaço. O lugar escolhido para as esculturas Croft e Pedro Cabrita Reis) representou Portugal sivelmente pesada, a flutuar no ar. A segunda vez tabilidade de uma atmosfera ou casulo protetor” é um jardim romântico (Jardim do Castelo Ippen- na Bienal de Veneza com esculturas abstratas de aconteceu no Museu Coleção Berardo, quando (Melo, 2007: 208). Foi visível a tendência do artista burg), um bosque (Arnhem), um palácio (Palácio ferro que criavam a ilusão de voarem (“ e depois de vaguear entre as exposições, um pouco para a delimitação das formas. da Pena) ou uma igreja (Igreja de Bamberg), no Quente”), e em 2004 apresentou na Bienal de São desiludida, entrei numa pequena sala e mergulhei Em finais dos anos 80 ainda são presentes na entanto, um “território suspenso no tempo, numa Paulo um projeto intitulado “Comer o Coração” num ambiente mágico. Pelo menos essa foi a mi­ sua obra formas orgânicas, “como que cápsulas paisagem que apela para uma outra ordem e con­ junto com Vera Mantero, coreógrafa e bailarina nha primeira impressão. Mas, antes de começar de já mortos recém-nascidos ou próteses de des­ dição do objeto criado, entre o caos e o rigor da re­ portuguesa. a descrever a arte de Rui Chafes do meu próprio troçadas máquinas humanoides” (ibidem), mas velação, entre o interior e o exterior da existência, Rui Chafes ganhou vários prémios: Prix de ponto de vista, queria citar as suas palavras: no último ano da década deixa de usar todos os irracional, individual e transcendental” (Pedro sculpture, 40ème Salon de Montrouge, Paris materiais anteriores em favor do ferro pintado de Faro, Centro de Arte Moderna). (1995); Prémio de Artes Plásticas União Latina Como sabemos, os misteriosos caminhos da nossa vida negro, “convocando, assim, para o seu trabalho a Um exemplo pode ser a exposição de 14 escul­ (1996); Robert Jacobsen Preis der Stiftung Wur- condicionam e definem a natureza do nosso trabalho e as nossas experiência física da sua configuração, alquímica turas na em Matera, (Itália), um espaço bíblico. Lá th, Kunzelsau/Schwabisch Hall, Alemanha(2004); realizações. (...) Por essa razão, quem está interessado nalguma obra (...), dificilmente deixará de se interessar também, nem que e industrial”, como afirma Pedro Faro do Centro foram realizados filmes de Pasolini (O Evangelho venceu a edição do Prémio Nacional Cidade de seja por breves momentos, pela vida e pelas circunstâncias que de Arte Moderna. segundo S. Mateus) e Mel Gibson (A Paixão de Cris­ Gaia de Artes Plásticas “Teixeira Lopes” (2007). conduziram o seu autor ao ponto onde essa obra o levou. (Chafes, Assim Paulo Pereira descreve a obra de Rui to). Chafes fez muitas referências a Pasolini, “por­ Existem também livros sobre a sua obra: “Doce 2011) Chafes daquele tempo: que Pasolini é dos poucos artistas completos: cine­ flor da desordem” de Bernardo Pinto de Almeida asta, pintor, ensaísta, poeta, escritor, jornalista. E (Lisboa 2006) e “Rui Chafes” de Doris von Dra- Por isso vale a pena conhecer a biografia do ar­ Rui Chafes mantém explícitas formas corporais ou possibilida­ dos mais corajosos“, disse Chafes (Salema, 2011). then (2007) (Informações da Galeria Carbon 12 tista português, que nasceu em 1966. É formado des de envolvimento dessas formas por instrumentos de dor e de prazer. (...). Ainda nos anos 80 passou do trabalho das texturas O título da exposição, Entrai pela Porta Estreita, é Dubai). em Escultura (Escola Superior de Belas-Artes de calcinadas do ferro para a lisura das superfícies e sua pintura au­ a citação do Evangelho de Mateus. Além disso, o As suas obras constituem parte do acervo de Lisboa, 1984-89). Pouco tempo antes de ele come­ tomática em negro-baço, modo metafórico a negar a fisicidade da artista fez referências a obra de Giorgio de Chi- inúmeros museus em Portugal e fora do país (Es­ çar a sua carreira, apareceram em Portugal ten­ escultura. O desenho tem acompanhado, de modo não ilustrativo, rico, por ser uma cidade italiana. Especialmente panha, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, dências para a recuperação da escultura, ainda a sua obra; e dois projetos editoriais acentuam a centração do seu quis obter as sombras chiriquianas e o ambiente: o Dinamarca). As suas esculturas podem ser vistas mais fortes por esforço de João Cutileiro, que in­ território referencial no romantismo alemão. (Pereira, 1997: 631­ 632) mistério, a solidão, a melancolia, o enigma. Deste em espaços públicos (Lisboa, Coimbra, Sintra, fluenciou muitos artistas. Promoveu a rutura com modo “o espaço parece que estava há mil anos à Oxford, Paris, Açores). Realizou exibições indi­ a tradição, e sublinhou a importância do material Entre 1990 e 1992 Rui Chafes estudava na Kuns- espera das peças de Chafes.” (Paulo Cunha e Sil­ viduais em Portugal, Alemanha, Itália, Espanha, como fator importantíssimo para o entendimento takademie Dusseldorf, aprofundando a sabedoria va, em: Salema, 2011) Bélgica, Dinamarca e no Brasil; participou tam­ da obra. Rui Chafes entrou naquele mundo como O lugar da colocação da escultura e o tempo bém em outras exibições (também na Polónia). um dos mais jovens. Na sua obra acentuou uma de referências teóricas, literárias e artísticas, e par­ ticipava em lições que estruturaram os seus inte­ são muito importantes para o artista, que “reali­ O que é interessante é que existe uma biogra­ referência germânica, estabelecendo um roman­ za esculturas de chão, de teto, que se penduram fia fictícia de Rui Chafes, intitulada Entre o Céu e tismo radical (Pereira, 1997: 626-627). Mas há nele resses e a sua criação: o uso da luz e da cor, o peso e a leveza, o equilíbrio das formas, a relação com nas paredes como pinturas, que se mostram sobre a Terra (A história da minha vida), inventada para uma “paixão ibérica”, pois o trabalho em ferro a natureza e com o mundo humano. As obras de peanhas como objetos de decoração, que ocupam a intervenção no ciclo 100 lições, no centenário não tem nada a ver com os mármores e bronzes 90 destacam-se pela austeridade das formas e es­ cantos de salas como móveis, que se empoleiram, da Universidade de Lisboa (2011). Segundo ela, românticos (http://www.azores.gov.pt, 2009). culturas pensados como habitações “de um corpo até, em árvores, como pássaros.” (www.azores. Chafes nasceu em 1266, com uma grande paixão: O desenho também entrou naquela época em gov.pt, 2009) Por isso Giacomo Zaza, chamou as o desenho. Os seus talentos foram reconhecidos fase de florescimento. Surgiram galerias dedica­ ausente” (Melo, 2007: 28), nas quais a ordem se mistura com a violência “através de formas que peças de Rui Chafes antiesculturas. “A antiescul- e começou a trabalhar em oficinas de escultura, das somente a este ramo de arte. Entre os dese­ sugerem armas e agressões e com uma dimensão tura é um modo de dizer que a obra do Rui não “tentando aprender esse difícil mister de formar nhistas encontra-se Rui Chafes, porque o desenho de convulsão orgânica que (...) implicam um forte é feita para um pedestal. Tem uma presença obs­ o espaço, de o interrogar, de o inverter, de subs­ a lápis negro é também uma das formas da sua apelo físico e sensorial” (ibidem), apesar de pare­ cura e misteriosa. Cria um teatro abstrato” (Sale­ tituir um objeto pela sua sombra” (ibidem). Traba­ criação artística (Pereira, 1997: 628). cerem frios. ma, 2011). O mesmo artista sublinha isso a dizer: lhou nas esculturas para a Catedral de Naumburg, As suas primeiras esculturas eram figurativas, “Uma escultura é a nossa consciência do espaço” de Reims, de Bamberg, Basílica de St. Denis com feitas de pedra: uma visível referência a José Pedro Ao mesmo tempo o artista traduziu Fragmentos de Novalis; o livro foi impresso com os seus de­ (ibidem).A importância do tempo é visível nos tí­ mestres famosos, como Jacopo Della Quercia, Til- Croft (influenciado por João Cutileiro). Ainda du­ senhos (Ed. Assírio & Alvim, 1992). A filosofia de tulos das obras. Em 2009 foi inaugurada a sua es­ man Riemenschneider, Jean Juste, Germain Pilon, rante os estudos Rui Chafes realizou três exposi­ Novalis influenciou a obra de Rui Chafes, refere­ cultura Parar o Tempo no Jardim do Palácio de San- Gian Lorenzo Bernini. Nos anos da “revolução ro­ ções individuais, duas na Galeria Leo (atualmente -se-lhe em escritos e citações que acompanham tada (Açores), que forma um círculo grande. O mântica” tornou-se amigo de Novalis. Agora está Galeria Filomena Soares), em 1986 (exposição Pás- artista quis deste modo proporcionar a perceção trabalhando em coisas suas, aproveitando tudo o 1 - Fragmento do texto disponível na página de Centro de Arte Moderna - Fundação Calouste Gulbenkian 28 2A RUI CHAFES A VIAGEM AOS CRUZAMENTOS ARTÍSTICOS DA CRIAÇÃO DE HELENA ALMEIDA

que aprendeu com os outros. da obra de Rui Chafes: a relação da (anti-)escultu- Weronika Gwiazda seu trabalho. Helena foi inspirada pelo movimen­ Esta biografia é um passeio pela história da arte. ra com o espaço; a importância da forma (não são Universidade de Varsóvia to neo-concreto brasileiro inaugurado pelos caris­ Rui Chafes fez referências à sua vida: descreve o obras “de pedestal”), o tempo, a leveza do ferro máticos líderes Hélio Oiticica e Lygia Clark (Lack, processo de aprendizagem, as fases da criação, a negro, o minimalismo. Que além de esculpir de­ Helena Almeida é uma das mais importantes 2009). Em 1961 Helena expôs coletivamente pela geometrização das formas, a busca do seu estilo, a senha e junta as obras com palavras. Para finalizar artistas plásticas portuguesas, no cenário nacional primeira vez na II Exposição Gulbenkian (Gomes, aixão de desenhar, a tradução de Novalis e as in- queria descrever as minhas impressões da arte de e internacional, que se emancipou com uma obra 2006: 7). A sua primeira exposição individual teve uências da sua filosofia... É um texto dum artista Rui Chafes. As suas obras surpreendem-me. No portadora de uma eficaz confluência de discipli­ lugar em 1967 na Galeria Buchholz em Lisboa que procura o seu próprio sentido e quer desen­ caso da “Respiração” foi a leveza do metal. É uma nas e atitudes. Tem vindo a expor os seus traba­ (Lima, 2008). A exposição consistiu na pintura volver-se com o tempo; que não é alheio à história “esfera de ferro que se equilibra no chão, supor­ lhos por todo o mundo e encontra-se representa­ abstrata, geométrica, com a dominação das cores de arte, e à cultura em geral (literatura, filosofia, tada por fitas do mesmo material, que se encontra da em muitas coleções particulares e públicas em azul e laranja. As obras interrogavam a natureza artes plásticas, cinema), um artista que quer que a pronta para voar, se não estivesse prisioneira de Portugal e no estrangeiro (Gomes, 2006: 10). Em­ e função dos suportes e da moldura, pareciam a arte continue a existir nas suas obras. si própria, questionando de uma forma singular a bora seja frequentemente referenciada como fotó- “sair da tela”, constituindo imagens tridimensio­ Em 2007 Rui Chafes deu uma entrevista ao própria materialidade de escultura” (Synek, 2006: grafa, o seu portfólio artístico permanece ligado a nais (Gomes, 2006: 21). Nas suas pinturas poderia Jornal de Letras e falou “da religião, da arte e do 16). É uma escultura do vôo impossível, do sonho outras áreas das artes plásticas, tais como pintura sentir-se a influência das ideias da problematiza- amor. E onde duas igrejas se encontram no céu.” irrealizável. E a exposição no CCB Five Rings que e escultura, pelo que esta nominação não basta ção do espaço de Lúcio Fontana. Fontana fazen­ (Nunes, 2007). Segundo o artista, a arte é uma realizou com Orla Barry juntou a escultura com para a designar (Gomes, 2006: 8). O seu trabalho do sulcos nas telas criava uma nova dimensão. forma de beleza que tem capacidade de convo­ oemas, vídeo, e sons numa sala, criando um am- é extremamente original e, por isso, as referências Helena, porém, não precisava de sulcar as telas car a memória e as aflições das pessoas. O que é iente extraordinário: tinha impressões de intimi­ e influências não são óbvias (Vasconcelos, 2005). para criar tal dimensão - “não danificando o es­ o mais importante é uma ideia e não a realização dade, magia, da natureza versus cultura humana. Nasceu em 1934, em Lisboa, filha do escultor Le­ paço da tela, continuava a mostrar o espaço que material de uma obra, porque a eternidade está Uma experiência imperdível. opoldo de Almeida — autor do “Padrão dos Des­ se estendia para lá da cor, com as costas da tela” no coração do ser humano. Vemos aqui alusões cobrimentos” em Belém, Lisboa (Gomes, 2006: 7). (Gomes, 2006: 22). A criadora manifestou-se como ao pós-conceptualismo, como nas obras de outros Referências bibliográficas: Foi o seu pai quem, com o seu leque de obras e pintora “denunciando, de imediato, a sua preo­ artistas da época, que cruzaram algumas ideias de Chafes, R. (2011). Entre o céu e a terra (A história da mi­ olhar artístico, enraizou em Helena a verdadeira cupação conceptual com o estatuto do suporte: ós-conceptualismo com as novas práticas. “Este nha vida) - http://www.snpcultura.org. Intervenção no ciclo paixão pela arte (Gomes, 2006: 7). Porém, Helena as suas telas, geométricas e tendencialmente mo­ ibridismo é determinado pelas referências inter­ 100 lições no centenário da Universidade de Lisboa. decidiu-se pela rutura com o passado académico nocromáticas, insinuam a fuga ao limite da tela” Melo, A. (2007). Arte e Artistas em Portugal. Portugal, Ber­ nacionais dos mais jovens (adquiridas à revelia do trand Editora. do qual Leopoldo havia sido digno representante (Melo, 2007: 144). É esta fuga ao limite da tela, o ensino de Belas Artes e do panorama editorial na­ Nunes, M. L. (2007). Entrevista com Rui Chafes para o (Gomes, 2006: 7). O regime do Estado Novo fa­ desejo de ultrapassar fronteiras que sempre per­ cional) e, evidentemente, pelos artistas referidos Jornal de Letras - http://www.snpcultura.org. vorecia a antiga escola da pintura e, deste modo, turbarão a artista enquanto criar as suas obras. Os como de transição, vindos (...) do pós-conceptua- Pereira, P. (dir.) (1997). História da Arte Portuguesa, Vol. causou grande atraso na evolução intelectual em seus trabalhos revelaram já alguns traços da obra lismo” (Pereira, 1997: 618). A exposição Dez Con­ 3: do Barroco à Contemporaneidade, Portugal, série Temas & Portugal (Gomes, 2006: 7). No tempo da ditadu­ futura; nas pinturas tridimensionais, inverteu as Debates. temporâneos (Serralves, 1992), em que participou Salema, I. (2011). A escultura segundo Pasolini, segundo ra a condição dos artistas era muito difícil: não componentes físicas da pintura - “o que estava Chafes, pode ser considerada o símbolo da déca­ Jesus Cristo, segundo Rui Chafes, - http://ipsilon.publico.pt/ havia fontes de informação, revistas de arte in­ virado para a frente era o gradeamento e a estru­ da (ibidem). artes/texto.aspx?id=297827 ternacionais e muitos artistas portugueses eram tura de madeira”, adicionando-lhes “uma série Como Rui Chafes disse, as pessoas precisam Synek, M. (2006). Reflexões sobre o tema da paisagem na conhecidos só dentro do país (Gomes, 2006: 7). de elementos tridimensionais - estore, portada” sempre de algo não-material, de valores como a arte -www.apha.pt/boletim/.../pdf/ManuelaSynek.pdf Com a Revolução dos Cravos, em 1974 tudo co­ (Carlos, 2005: 6). A artista mobiliza os espectado­ (2009) Escultura de Rui Chafes inaugurada sábado no religião, a arte e o amor. Por isso o valor da arte Jardim do Palácio de Santana -http://www.azores.gov.pt meçou a mudar, os antigos paradigmas de beleza res para um constante exercício crítico, através do é não-material, pois não é para salvar nem me­ Catálogos foram detidos, e “a arte contemporânea elevou­ qdual “desmonta a estrutura lógica e a percepção lhorar o mundo, “nem pode ser sociológica, nem Catálogo da Exposição Temporária de Orla Barry e Rui -se como afronta ao figurativismo” (Gomes, 2006: a pintura” (Carlos, 2005: 6). As obras de Hele­ ecológica” (Nunes, 2007). Com esta ideia são rela­ Chafes Five Rings, 2011, Museu de Coleção Berardo 7). A transição dos pensamentos e a possibilida­ na nunca deixaram de desempenhar este papel cionadas duas esculturas que têm o mesmo nome, Páginas de Internet de de expressão artística livre proporcionaram as de incentivo para um exercício crítico, embora os Centro de Arte Moderna - Fundação Calouste Gul- Mais Forte que a Morte. Foram realizadas para benkian http://cam.gulbenkian.pt (texto: Pedro Faro) novas visões e novas correntes plásticas. Helena seus trabalhos cruzem os territórios de pintura, duas igrejas, uma católica (Bamberg, Alemanha), Embaixada de Portugal no Japão http://www.embaixa- acabou o curso de Pintura na Escola Superior de desenho (com o traço muitas das vezes assumin­ e outra protestante (Villach, Áustria). Para Chafes dadeportugal.jp Belas-Artes em Lisboa, em 1955. Nesta altura já do a tridimensionalidade), fotografia, performan­ é uma peça dividida em duas. “A ideia é criar uma FUndação de Serralves http://www.serralves.pt era casada com Artur Rosa - arquiteto e escultor ce e escultura (Vasconcelos, 1975: 643). A partir de espécie de arco no céu (...), unindo uma Igreja ca­ Galeria Carbon 12 Dubai http://carbon12dubai.com - e mãe de dois filhos, pelo que nos anos que se 1969 Helena começou a articular os seus trabalhos Galeria Graça Brandão http://www.galeriagracabran- tólica a uma protestante (...), duas peças que se dao.com/ seguiram dedicou-se às tarefas familiares (Go­ com o suporte fotográfico, que se tornou logo a encontram no céu” (ibidem). O título foi escolhido Instituto Camões http://cvc.instituto-camoes.pt/ mes, 2006: 8). Em 1959 obteve uma bolsa da Fun­ placa central do seu discurso. Nesta altura a ar­ pelo artista, porque as pessoas acreditam na exis­ Making Art Happen - Orla Barry & Rui Chafes http:// dação Calouste Gulbenkian e deslocou-se a Paris tista definiu um novo aspeto crucial da sua obra, tência de coisas mais fortes do que a morte: Deus, makingarthappen.com onde permaneceu um ano, não tendo realizado que foi, e que continua a ser, o desejo de autore- amor, ou arte. Chafes descreveu também as difi­ Página Oficial de Rui Chafes http://ruichafes.net/ nenhuma pintura mas aproveitando esse tempo presentação - “o desejo de que a pintura e o dese­ culdades em introduzir uma escultura contem­ para enriquecer o saber, face ao que a ditadura nho se tomem corpo, de que se anule a distância porânea numa igreja. “É um mistério para mim Agata Bojanowska - Universidade de Varsóvia portuguesa lhe havia ocultado até então. Helena entre corpo e obra” (Carlos, 2005: 13). (2012), WSP ZNP (2012) Agora trabalho em Varsóvia como saber o que vão sentir [as pessoas] quando forem professora no liceu e escola técnica, ensino inglés e espa­ sentia-se isolada em Portugal, que durante anos “O seu próprio corpo - desde a mão à boca, o rezar e se depararem com uns ferros negros que nhol. Interesses: arte portuguesa e brasileira, línguas estran­ prejudicara os artistas, pelo que viajava muito rosto ou o corpo inteiro - foi sucessivamente tra­ saem da parede” (ibidem) - confessou Chafes. geiras, viagens, livros. (Gomes, 2006: 8). Ganhando experiências e sabe­ balhado num registo que nunca cai, (...), na ence­ Concluindo queria sublinhar as características res e definindo as suas convicções desenvolvia o nação ou na teatralização de várias personagens,

30 31 A VIAGEM AOS CRUZAMENTOS ARTÍSTICOS DA CRIAÇÃO DE HELENA ALMEIDA A VIAGEM AOS CRUZAMENTOS ARTÍSTICOS DA CRIAÇÃO DE HELENA ALMEIDA

antes acentuando a presença retirada de si mes­ nunca chega a ser conseguida” (Gomes, 2006: 35). sentação - corpo e tela e dois momentos distintos: “Viver o negro foi uma experiência de expansão mo, o que confere à obra uma marca autoral for­ Os motivos do corpo e da tela repetem-se. Na expo­ o passado (a fotografia) e o depois (os elementos num espaço incontrolável e vivo. Foi como se o tíssima e um sentido de reconhecimento quase sição na Galeria Módulo no Porto em 1978 Helena adicionados — pinceladas com a tinta azul) (Bar­ meu interior fugisse para as extremidades do meu imediato” (Vasconcelos, 1975: 643). mostrava fotografias de mãos a desenhar - intitu­ reiros, 2011). Estas duas últimas séries exploram corpo e sem mais refúgio, saísse, ramificando-se Helena usa fotografia e o seu próprio corpo, es­ ladas Desenho Habitado (1977), em que o traço, que as noções do eu, corpo e mente “ao investigar e ex­ e espalhando-se para um exterior indeterminado colhe o minimalismo, os meios básicos para mani­ se presumia feito pela caneta, era autonomizado: por as limitações e possibilidades tanto da pintura (...) era como se eu estivesse virada do avesso e festar-se, falar das emoções, provocar pensamen­ “Tentar abrir um espaço, sair custe o que custar, como da fotografia” (Gomes, 2006: 30). “Habitar o eles alastrassem como um borrão de tinta na água tos sobre a quebra dos limites, tentar ultrapassar é um sentimento muito forte nos meus trabalhos. desenho e/ou habitar a pintura é uma ideia, é uma (...)” (Vasconcelos, 1975: 643). as fronteiras. A oficina do trabalho de Helena con­ Passou a ser uma questão de condenação e de so­ ação e é uma obra; habitar como atuação delibera­ As fotografias ligadas à pintura, à palavra e ao siste em preparar desenhos preparatórios, mon­ brevivência (...). De toda a maneira já consegui sair da de um sujeito que cria algo. Habitar é a prova desenho constituem uma das mais caraterísticas tar um cenário e depois tirar fotografias (Gomes, pela ponta dos meus dedos” (Vasconcelos, 1975: da existência da autora, pois ninguém habita do marcas da sua produção nos anos 70. e 80. (Vas­ 2006: 28). Foi com frequência o seu marido - Ar­ 643). Esta série consiste em 12 fotografias e parece mesmo modo um desenho, uma pintura. Helena concelos, 1975: 643). tur Rosa, quem tirou fotografias. Em alguns ca­ um teatro de mãos e uma sequência cinematográ­ Almeida está lá. Habitar é estar lá, ser lá — Da- Desde os anos 90 a criação de Helena direcio­ sos, por exemplo na série Pintura Habitada (1975), fica. O motivo das mãos repete-se muitas vezes, sein” (Lambert, 2011: 10). É caraterístico nas obras na-se mais para a relação entre o corpo e o espa­ a artista pinta com tinta acrílica na superfície das entre outros na série Estudo para um enriquecimento dos anos 70, que o próprio corpo entra no espaço ço do atelier onde trabalha (Gomes, 2006: 38). A fotos. Usa só duas cores da tinta acrílica — “o azul interior (1977-78), onde uma mão segurando um da obra, habita-o, numa autorrepresentação, mas série Sem Título (1994-95) consiste em 20 fotogra­ relacionado com o espaço, o vermelho com o peso pincel desenha um ponto e depois o agarra e diri­ sem pretensões de retrato. “O corpo da performer fias gigantescas (220 cm x 110 cm cada) a preto e e o luxo” (Vasconcelos). Um dos temas centrais ge para a boca sendo que um ponto que fora de­ (a autora, embora não se trate nunca de um au­ branco com manchas vermelhas da tinta acrílica. na sua obra é questionar diretamente a possibi­ senhado acaba de ser comido. Helena pintou pon­ torretrato) é parte integrante e é também ele uma Apresenta a artista que se aproxima ao especta­ lidade da pintura de cavalete (Vasconcelos, 1975: tos com a tinta acrílica da cor azul nas superfícies imagem descarnada, máquina sem vida” (Vidal, dor, mostra a mão aberta e depois se afasta. A 607). Nas cenografias construídas por ela “as das fotografias; transportou a cor para o espaço 2009). obra consiste em dois trípticos com as fotografias molduras, telas, grades e cores se desmancham e tridimensional. Continua o seu jogo caraterístico Outra série que surgiu nos anos 70 é Sente-me, quase iguais, mas não as mesmas — no primeiro a recompõem, (...) o representável entra e sai volu- com o espectador, mostra o absurdo de comer um Ouve-me, Vê-me. Foi um conjunto de fotografias mão aberta da fotografia central tem uma mancha metricamente do espaço da pintura quebrando as ponto de tinta, provocando uma reflexão sobre completadas por uma peça de vídeo e uma peça vermelha, e no segundo, a mão está vazia. Pode­ fronteiras disciplinares” (Vasconcelos, 1975: 607). ultrapassar as fronteiras e experimentando e rom­ de som, criando um campo sensorial mais vasto mos detectar várias oposições: perto/longe, aber- No final dos anos 70. a fotografia em Portugal pendo ao mesmo tempo com esquemas tradicio­ (um representado e o outro não representado) to/fechado, vazio/cheio. A mancha vermelha pode ganhou algum espaço e visibilidade, que se de­ nais. O simbolismo da multiplicação das formas (Barreiros, 2011). Helena estabeleceu um paralelo simbolizar sangue (como estigmas dos santos), monstrava pela quantidade de exposições, publi­ do corpo humano escolhidas (p. ex. mãos, pernas) entre o espaço e o tempo cinematográfico, sendo ou seja, a profunda dor. Estes trípticos fotográfi­ cações em diversas revistas e o interesse geral au­ lembra a criação de Alina Szapocznikow. Esta li­ o seu campo de ação o intervalo entre os dois atos cos parecem-se com a Capela de Mark Rothko de mentado (Vasconcelos, 1975: 643). Nesta década gação é relevante também quando pensamos na (2011). Ao criar um campo sensorial mais vasto 1971, que fica em Houston, no Texas. O edifício, Helena criou várias séries com habitado no título. falta de autorretrato em ambas as criadoras — obrigou a uma maior envolvência do espectador projetado inteiramente por Rothko, constitui uma Nas séries da década de 70 as fotografias de He­ Helena figura nas fotografias mas não nos diz (2011). Os trabalhos remetem para atitudes implí­ capela e um local de exposição com 14 pinturas lena permaneceram a preto e branco, mais tarde nada sobre si, representa um corpo humano, no citas ao título do conjunto, embora correspondam negras com tons de outras cores, que formam um ela começou a usar exclusivamente a cor azul — Autorretrato multiplicado (1965) de Alina temos o ao contrário do enunciado: nos trabalhos Vê-me os tríptico e constituem um altar. Em ambos os ca­ famoso azul particular de Yves Klein (Lack, 2009). molde da boca dela multiplicado, mas a escultura olhos estão fechados, no Ouve-me a boca está su­ sos, da série de Helena e da Capela de Rothko, Deste modo a artista fala sobre esta cor precisa a as não revela nada sobre a autora. turada com fios; limitamo-nos pois a sentir (2011). temos de lidar com a dor da existência em formas suas conotações: “É uma mistura de azul-cobalto Outra série desta década intitulada Pintura Ha­ Nos finais dos anos 70. Helena inicia a sua inter­ abstratas, o minimalismo e a específica forma das com azul ultramarino. É o azul mais energético bitada (1975) apresenta Helena pintando a tela in­ nacionalização com exposições individuais em obras — um tríptico que se torna no altar. O con­ que eu consegui fazer e que simultaneamente as­ visível, como que se existisse um vidro entre nós Berna, Basileia, Paris e Bruxelas. texto filosófico também pode ser o mesmo: a fi­ socio com o espaço. Não podia ser vermelho, ver­ — espectadores e a artista. A obra constitui a cria­ Na década de 80. Helena deixou o azul de Klein losofia de Nietzsche — o niilismo e o objetivo da de ou amarelo. Tinha de ser uma cor que tivesse a ção mais conhecida da artista e uma espécie de e explorou o negro. A cooperação do negro com arte de aliviar o vazio espiritual fundamental do ver com estas duas ideias: energia e espaço” (Car­ manifesto do seu percurso artístico (Vasconcelos). as fotografias monocromáticas implicou a neces­ homem moderno. los, 1998: 52). Na Tela Habitada (1976) Helena veste Tem a grande riqueza gestual, com um mínimo de sidade de expor os trabalhos nas telas de grandes Na obra intitulada Dentro de Mim (1998), a ar­ um longo vestido branco e segura a tela vazia com recursos “num atalho pessoal que se situa entre o dimensões. O negro dos anos 80 é a cor do luto, tista inclina-se na posição de aranha em direção o queixo. É caraterístico Helena não segurar a tela expressionismo e o minimalismo” (Gomes, 2006: “um negro incontrolável que invade e engole o da linha no chão, feita de crinas de cavalo. A fo­ com as suas mãos, mas com o queixo; deste modo 30). Segue o fio dos respetivos gestos, fragmentos desenho dos corpos que se diluem como num tografia é gigantesca (185 cm x 122 cm) e a preto a tela parece o próprio vestido. Esta obra constitui de movimento que materializam a pintura, pin­ frasco de tinta” (Gomes, 2006: 36). As gigantescas e branco. Podemos decifrar o símbolo da linha um exemplo da fuga dos limites da tela e da rela­ tam a pintura, num contínuo cinematográfico em composições dos anos 80 provam a absoluta iden­ — barreira, oposição esquerda/direita e a neces­ ção: o corpo como tela e a tela como corpo. A série que a sequencialidade narrativa é baseada no prin­ tificação da artista com seu trabalho “ao ponto de sidade de ultrapassar as fronteiras. O corpo da sob o mesmo título — Tela Habitada (1976) consiste cípio da contiguidade. Nesta dupla ação, entre o chegar a desaparecer dentro dele” (Gomes, 2006: artista parece, na perspectiva do espectador, uma em 16 fotografias. Podemos ver a tela sem linho e pintar frente ao cavalete vazio e a progressão des­ 38). Em 1982 Helena representou Portugal na Bie­ aranha. Criando dois anos mais tarde (2000) outro a artista que está a entrar para exterior, passa para sa ação frente ao espectador, converte-se o espaço nal Internacional de Veneza com a série Entrada ciclo sob o mesmo título que a obra anterior — o outro lado perfurando uma camada do papel físico entre o artista e o espectador no próprio su­ Negra (1982). As fotografias grandes tratadas com Dentro de Mim, Helena fixa pequenos espelhos a muito fino, quase invisível. A artista representa e porte da obra. A artista quer dizer “eu sou a tela”, tinta negra procuraram negar os limites do corpo, diferentes partes do seu corpo. “O corpo abre-se utiliza o seu próprio corpo numa série de imagens ou seja, que a tela é a própria artista (Barreiros, como na obra Negro Exterior (1981). Helena afir­ para refletir o espaço, a luz e tudo o que o rodeia. que simulam a tentativa de romper uma tela, que 2011). Existe um jogo entre duas formas de repre- mou que: O próprio movimento do corpo refaz e reconstrói

3 33 A VIAGEM AOS CRUZAMENTOS ARTÍSTICOS DA CRIAÇÃO DE HELENA ALMEIDA Michał Kamila

Choroszewska Hułyk JOSÉ AS

o espaço que o envolve” (Gomes, 2006: 40). A po­ dor da existência, a dor do próprio ato de criar. A AFONSO -

MULHERES

sição do corpo no atelier gera um efeito de relação artista reflete no ato de pintar, nos materiais, nos UMCS com o espaço físico envolvente e altera a nossa gestos e nos espaços físicos que compõem a pin­ percepção desse mesmo espaço. tura (Gomes, 2006: 34). Helena “capta a memória

-

de

A série Sem Título (2003) consiste em nove foto­ das suas ações no atelier, em fotografias a preto E

Universidade JACEK

Lublin grafias a preto e branco, nas quais figura a silhue­ e branco, criando uma espécie de teatro estético, ta encolhida com a cabeça inclinada ao chão. Esta existencial, que exibe as relações de dependência DO

FADO

série pode ser comparada à criação da escultora entre o corpo e a representação artística” (Gomes, polaca — Magdalena Abakanowicz, p. ex. com a 2006: 34-35). Helena “abre zonas entre espaços, KACZMARSKI obra intitulada As Costas (1976) de Abakanowicz representa corpos em transição que passam de

-

de

que apresenta 26 figuras esculpidas, sem cabeças, uma realidade para a outra (...)” (Gomes, 2006: A

praticamente na mesma posição — todas corcun­ 25). O trabalho da artista, criado no contexto do CRIAÇÃO das, viradas de costas para o público. Os elemen­ movimento feminista dos anos 70, “reflete ideias Varsóvia

tos caraterísticos e comuns para estas duas obras até então atuais, acerca da representação do ser, e PORTADORES são o minimalismo, a restrição do uso dos meios injeta-as no domínio cultural da pintura” (Gomes,

artísticos e das cores e a multiplicação do motivo 2006: 30). DA do corpo quase sempre na mesma posição.

Assim sendo, Helena Almeida é uma figura Referências bibliográficas: FIGURA central da arte portuguesa contemporânea, mas Barreiros, A. (2011). Helena Almeida. http://www.authors-

tream.com/Presentation/munaq-943574-helana-almeida/. em Portugal grande parte da sua obra permane­ DE Carlos, I. (1998). Helena Almeida. Milano, Electa.

FEMININA ce ignorada e a artista ainda não tem o reconheci­

Carlos, I. (2005). Helena Almeida: Dias quase tranquilos. IDEIAS mento que merece. Segundo Paula Pereira — au­ Lisboa, Editorial Caminho. tora do livro 2000 years of art in Portugal Helena Gomes, F. & Rodrigues, C. & Mendonça, R. (2006). Helena Almeida — era uma vez uma mulher sem sombra que encontrou Almeida “foreshadowed and then reaffirmed the E

uma. Lisboa, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de MENSAGENS

importance of conceptualism” (Pereira, 1999: 335). Lisboa. http://www.arte.com.pt/text/filipag/helenaalmeida. NAS A artista combina na sua criação desenho, cola­ pdf.

gem, pintura, fotografia, escultura e performance Lack, J. (2009). Artist of the week 59: Helena Almeida. http:// para explorar as questões do corpo, da autorrepre- www.guardian.co.uk/artanddesign/2009/oct/07/helena-al- LETRAS sentação e da sua relação com o espaço. A combi­ meida-portugal-artist. nação de tantas técnicas sintetiza a representação, Lambert, M. de Fátima (2011). Habitar em Desenhos e pin­

turas - Helena Almeida. http://ipp.academia.edu/MariadeFa- UNIVERSAIS com tendência para a objetualização dos elemen­ timaLambert/Talks/63574/_Habitar_em_Desenhos_e_pin- DE tos da linguagem plástica. Na obra da artista “a turas_-_Helena_Almeida_ppt_. FADO integração das linguagens para a construção da Lima, M. Almeida (2008). Helena Almeida, Lisboa / Por­ imagem, a libertação do gesto e a transposição tugal - arte performativa contemporânea. http://dasartes- do limite, convergem para a abertura de um novo plasticas.blogspot.com/2008/01/helena-almeida-lisboa-por- tugal-arte.html. campo de possibilidades visuais” (Santos, 2009: Melo, A. (2007). Arte e Artistas em Portugal. Lisoba, Insti­ 96). É a adoção da fotografia como meio privile­ tuto Camões Portugal. giado que inscreve Helena Almeida no âmbito da Pereira, P. (1999). 2000 years of Art in Portugal. Lisboa, Te­ vanguarda internacional, ao mesmo tempo que mas e Debates. inscreve a fotografia num plano de protagonismo Santos, A. S. Miranda dos (2009). Helena Almeida: O Tempo e A Represtenação. Um estudo sobre as multiplas lingua­ no contexto das artes plásticas (Melo, 2007: 144). gens de sua obra (1960-1980). Lisboa, Faculdade de Letras Nos seus trabalhos repete-se frequentemente o da Universidade de Lisboa. http://repositorio.ul.pt/bitstre- motivo da oposição, p. ex.: aqui/ali, aberto/fecha- am/10451/1973/1/ulfl072332_tm.pdf. do, dentro/fora. As suas fotografias são, muitas Vasconcelos, H. (2005). Entrevista a Helena Almei­ das vezes, organizadas em grupos, criando se­ da. http://www.storm-magazine.com/novodb/arqmais. php?id=411&sec=&secn. quências de ação, anulando assim a diferença en­ Vasconcelos, F. de (1975). A Arte em Portugal. Lisboa, Ver­ tre pintura e fotografia e entre interior e exterior. bo Juvenil. O seu trabalho tem como base fotografias da pró­ Vidal, C. (2009). Helena Almeida, a obra fotográfica e os pria autora, mas sem pretensão de autorretrato. A seus desenhos: um círculo fechado e perfeito. http://5dias. fuga do limite da tela e o desejo de ultrapassar as net/2009/04/10/helena-almeida-a-obra-fotografica-e-os- fronteiras constituem os mais marcantes objetivos -seus-desenhos-um-circulo-fechado-e-perfeito/. em toda criação da artista. Através das suas obras, Helena mobiliza sempre os espectadores para um Weronika Gwiazda - Mestre em Cultura e Literatu­ ra Luso-Brasileira - Universidade de Varsóvia. Interesses: constante exercício crítico. O minimalismo pre­ arte contemporânea, teatro, literatura africana, temporali­ sente nos seus trabalhos tem vários usos — ma­ dade, identidade narrativa. nifestar liberdade e expressar: emoções fortes, a

Fotografia: Jorge Branco 34 AS MULHERES DO FADO - A CRIAÇÃO DA FIGURA FEMININA NAS LETRAS DE FADO AS MULHERES DO FADO - A CRIAÇÃO DA FIGURA FEMININA NAS LETRAS DE FADO

Kamila Choroszewska do nascimento da burguesia que, sem escrúpulos, nalidade não recebiam quase nenhum respeito e 4. Mulher nova Universidade de Varsóvia explorava a classe trabalhadora. Outro fator que também não mereciam atenção ou proteção de As três imagens já apresentadas da figura fe­ piorou a situação dos pobres foi a fuga (e poste­ ninguém. Por isso, a morte delas não espantava minina - mulher como prostituta frívola, rufia se­ Há dois anos que o fado recebeu o título muito rior regresso) da corte para o Brasil. Sem a presen­ ninguém... o seu destino foi muito triste e trágico dutora; mulher perdida, maldita; e Maria Severa prestigioso de património imaterial da humani­ ça do rei de um dia para o outro, Lisboa deixou de e o fado ilustrava-o nas suas letras: - continuavam a dominar a imagem da mulher dade da UNESCO. O fenómeno do fado, sendo a ser a luminosa capital do grande império e perdeu nas letras do fado, mais ou menos até aos anos música que faz parte da identidade portuguesa, é a sua importância. Nos anos 30, começa-se a usar Não sabes, oh prostituta, trinta do século XX. Manuela Cook (2003) aponta bastante bem elaborado, especialmente quanto às o nome casas do fado para identificar espeluncas, O fim que foste buscar, que a terceira década do século XX é marcada em características musicais do género e às suas ori­ bordéis e lugares de proveniência suspeita em Teu corpo feito em bocados Portugal por dois grandes acontecimentos que in­ gens. Há várias hipóteses acerca do aparecimento geral, onde se concentravam pequenos ladrões, Na vala irá acabar! fluenciaram a imagem da mulher no fado. Primei­ do fado. Fala-se sobre quatro teses principais: tese malandros, prostitutas, viciados, etc. Naquele ro, a constitucionalização do Estado Novo gover­ árabe, segundo a qual o fado nasceu das melodias tempo, usava-se o termo fado como sinónimo da nado por Salazar. Segundo, o milagre de Fátima, mouriscas importadas para Portugal no século palavra latina fatum e não para identificar o géne­ 3. Maria Severa Desde o começo, o fado é fortemente marcado que aconteceu na primeira década do século XX, VIII; tese marítima, formulada por Pinto de Car­ ro musical. Fatum ou seja - fado - correspondia mas que foi popularizado, especialmente a nível pela presença da Severa - uma lenda do fado, ma­ ao destino mau e trágico que experimentavam os internacional, nos anos trinta. A influência que o valho, que argumenta que o fado foi criado à base terialização do mito fundador. É importante su­ das canções dos marinheiros cerca do século XV; milagre da Fátima tinha sobre as letras do fado visitantes de casas de fado. Naquele ambiente, blinhar que o nascimento do fado está proxima­ uma figura feminina que dominava era a prosti­ resume-se na valorização imensa de duas figuras: tese afro-brasileira, que coloca o nascimento do mente ligado à FIGURA FEMININA encarnada fado no Brasil e nas suas danças como o lundum e Maria e Lúcia. tuta, cantadora, rufia, um espírito livre. Nos seus na personagem da Severa. A base deste fenóme­ a fofa; e tese provençal, que aponta as semelhan­ começos, o fado encarnava as características típi­ no cultural é então essencialmente feminizada por Nas letras do fado, aparece o motivo de Nos­ ças entre o fado e as cantigas medievais de amor e cas da mulher que vivia naquele meio. Cantava-se sa Senhora, que provoca a focalização nos valores imagem multidimensional. A figura simbólica da de amigo. Mesmo com várias análises da origem então muito sobre prostitutas e outras mulheres Severa consiste em três visões principais. tradicionalmente ligados a esta personagem (pie­ de proveniência social baixa. Por isso, a figura fe­ do fado, a questão da interpretação das letras, Na primeira fase do desenvolvimento do géne­ dade, religiosidade profunda, etc.) especialmente de um ponto de vista feminista, minina manifesta-se pela perspetiva do seu corpo, ro, a Severa é a única mulher que era associada O papel especial pertence a Lúcia, uma meni­ parece um espaço ainda insuficientemente explo­ da carnalidade e da sua sexualidade. na que em Fátima comunicava diretamente com com a maternidade e recebia o respeito tradicio­ Maria (foi a única das três crianças a sobreviver rado. Esta comunicação tem como o seu objetivo nalmente atribuído à figura materna. A Severa, mostrar a criação da figura feminina, baseando-se Anda cá, mulher perdida, a infância). A condição, a proveniência e o cará­ nas letras do fado durante o seu desenvolvimen­ Eu te quero abraçar, apesar de historicamente ser uma prostituta, não ter de Lúcia influenciaram muito a imagem da Na flor da tua vida é reduzida somente à sua dimensão carnal e sexu­ to - do nascimento do género até aos anos seten­ A honra te fui roubar. al. Pelo contrário, ela é considerada a mãe/madri- mulher que aparece nas letras do fado escritas ta do século XX. Na conclusão, vão-se desenhar nha do fado. Recebe a honra de levar ao mundo naquele tempo. Fala-se aqui da menina pobre, de proveniência muito baixa simples, que encarna brevemente as potenciais vias de interpretação da Naquele contexto, a mulher não tem dimensão este fenómeno. e figura feminina no fado novo em contexto do pen­ de maternidade, não é considerada a mãe, a filha valores como pureza, devoção, fidelidade, crença samento feminista francês. ou a esposa. Em vez disso, observa-se a criação O fado veio ao mundo verdadeira e modéstia. Apesar da existência de tantas teorias, nenhu­ duma amante, mulher frívola que seduz homens. N'um dia de primavera A ideologia do Estado Novo traz consigo uma ma delas é considerada certa e ainda permanecem Ao mesmo tempo, a força sedutora da mulher não Teve por berço a guitarra construção da NOVA MULHER - figura femini­ dúvidas quanto às origens do fado. O que parece a torna num demónio encarnado. A mulher seduz E por madrinha a Severa na lançada pela propaganda do Estado Novo. O completamente certo, e que serve para mim como os seus admiradores, brinca com eles e ganha um estado salazarista queria criar um certo tipo de A sua nobilitação avança ainda mais quando o ponto de partida para as minhas reflexões, é que poder misterioso sobre eles, mas não é um demó­ mulher. Dentro dessa visão, as mulheres deviam Severa recebe o título de RAINHA do fado: o fado apareceu em Lisboa no começo do século nio que intencionalmente leva as suas vítimas à ser boas donas de casa, cristãs, discretas, traba­ XIX. Para avançar nesta análise deve-se, portanto, perdição. Não é legítimo falar neste contexto da lhadoras: boas filhas, esposas e mães. Esta visão deixar todas as divagações sobre a proveniência Morreu, já faz hoje um ano, é bastante igual à imagem de Lúcia: ao nível dos construção da mulher-demónio. Claro, essa mu­ Das fadistas a rainha, do fado e concentrar-se nos factos indubitáveis, lher não é um anjo, mas também não é pura des­ Com ela o fado perdeu, valores do caráter fala-se de modéstia, fidelidade, que neste caso são as condições socio-históricas truição. O gosto que o fado tinha pureza, devoção, etc. Além disso, a nova mulher em Lisboa no começo do século XIX. tinha um caráter muito prático - seria uma mo­ Oh mulher que me deixaste, É indispensável mencionar também que a Se­ desta dona de casa, guardadora das tradições, 1. Mulher frívola, prostituta De que eu bem certo estou, vera materializa o mito fundador do fado, não mãe que se sacrifica completamente pela sua fa­ A primeira fase do fado, de acordo com Pin­ Nem ao menos te lembraste sendo apenas a sua mãe. Recebe também atribu­ mília... Tudo isso em ramos da classe baixa, entre to de Carvalho (1982), data dos anos 30 do século Do que entre nós se passou! tos divinos, começa a ser uma deusa (mas deusa pessoas pobres. Ao mesmo tempo, a nova mulher XIX. Nesta primeira fase, o fado nasceu em Alfa- pagã, mais do que santa cristã). Pode até influen­ estava absolutamente separada da sua dimensão ma e na Mouraria, onde se popularizou entre a ca­ ciar a ordem divina no céu: carnal e sexual - é a principal diferença entre a mada social mais baixa. Naquele tempo, Portugal 2. Mulher perdida construção da figura feminina nos primeiros fa­ estava a industrializar-se, e por isso nas grandes Paralelamente à imagem da mulher como pros­ Lá neste reino celeste; dos e o fado no período do Estado Novo. cidades, especialmente em Lisboa, surge a classe tituta frívola que brinca com os homens, aparece com tua banza na mão, A grande valorização dos atributos da mãe, até trabalhadora, classe dos pobres que era acompa­ uma visão mais realista que trata do verdadeiro farás dos anjos fadistas, na comparação à esfera divina (ligada ao motivo nhada pela grande classe dos marginais. A situa­ destino dessas mulheres. A maioria delas não porás tudo em confusão. da Nossa Senhora), aparece no fado Amor de mãe: ção das pessoas pobres naquele tempo era muito vivia a sua vida até à idade da reforma em paz difícil, não só por causa da revolução industrial e e felicidade. Mulheres que pertenciam à margi-

3A AS MULHERES DO FADO - A CRIAÇÃO DA FIGURA FEMININA NAS LETRAS DE FADO AS MULHERES DO FADO - A CRIAÇÃO DA FIGURA FEMININA NAS LETRAS DE FADO

Há vários amores na vida 6. Mulher com o sorriso de Medusa Seja como for, a visão da figura feminina den­ Lindos como o amor perfeito O renascimento do fado situa-se nos anos 90. do fado uma questão aberta ­ Belos como a Vénus querida tro novo é que me De tantos que a vida tem Naquela altura, começa-se a usar o termo fado rece exploração mais minuciosa, portanto não se Só um adoro e respeito novo para designar as novas tendências dentro deve tratar a proposta acima elaborada Icomo sen­ É o santo amor de mãe do género tradicional. Como o fado novo ainda do definitiva. se está a desenvolver, não acho possível formu­ Dentro deste paradigma, o próprio fado, o ta­ lar conclusões definitivas acerca dele. Todavia, Refências bibliográficas: lento para cantar, pode ser recebido diretamente vejo algumas vias de interpretação que se podem Carvalho de, P. (1982). História do Fado. Lisboa, Publica­ aplicar a este fenómeno. Nos anos setenta, Hélène ções dom Quixote. das mãos de Nossa Senhora. Em vez de ser uma Cixous, H. (1993). Śmiech Meduzy. - In: 4/5/6Teksty Dru­ atividade típica para prostitutas, o fado começa Cixous escreveu o manifesto que exigia o estabe­ gie: 147-166. a ser uma benção recebida diretamente de Nossa lecimento da escrita feminina. O texto e as ideias Cook, M.(2003). The woman in portuguese fado-singing. Senhora - é o que acontece Na capelinha da Guia. de Cixous já estão bastante datados, mas as carac- - In: 16 (1) International Journal of iberian Studies: 19-32. terísticas por ela destacadas ainda parecem ser Koncová, K. (2011).lAlcanção dolfado - umalmúsicale vá­ Na capelinha da Guia muito férteis. Cixous sublinhava o fator carnal, rias raízes http://is.muni.cz/th/342296/ff_b/bakalarska_pra- Rezei uma noite inteira ce_Koncova.pdf. a apologia do corpo - queria que as mulheres se Páginas que contêm as letras citadas do fado: http:// Pedindo à Virgem Maria manifestassem através dos seus corpos, postula­ Que me desse a alegria www.portaldofado.net/,http://letras.mus.br/ De um dia ser cantadeira va o redescobrimento do corpo feminino e da se­ xualidade vista da perspetiva feminina. A escrita A Santa em seu meigo olhar propriamente feminina devia ser então baseada Kamila Choroszewska -lUniversidadelde Varsóvia, Parecia querer-me dizer: na experiência carnal: estudante do 3.°ano do Curso de Licenciatura em Estudos Vai e começa a cantar Portugueses Interesses: Ifeminismole genderl studies; bol- seira do IC e Bank Millennium (verão 2013); voluntária na Honra o fado e o teu lar Censurando o corpo, censura-se também a respiração e a fala. Sê cantadeira e mulher secção de traduções da Jornada Mundial da Juventude Rio Escreve-te, o teu corpo tem de ser audível. 2013. As mulheres são os seus corpos. Mais corpo significa mais [...] Na capelinha rezando fui agradecer beijando escrita. As mãos à Virgem Maria Sou um extenso corpo que canta. (Cixous, [1975], trad. pró­ pria à base do texto polaco)

5. Prostifina Parece que o fado Promete, jura realiza, pelo Para sublinhar os valores encarnados na figura menos parcialmente, os postulados de Cixous. de Lúcia ou da Nova Mulher, mostra-se o anti- Na letra deste fado, que faz parte do último ál­ -ideal da mulher. O objetivo disso é estigmatizar bum de Mariza,' susa-se muito abundantemente o os valores não desejados e compará-los com a vi­ verbo SENTIR. É um verbo muito carnal, ligado são oficialmente lançada. com o sentido do tato, que exige o contato direto, O anti-ideal bem desenvolvido é Dona Inácia - sem distância (ao contrário de outros verbos dos Prostifina (nome que consiste na combinação das sentidos como olhar ou cheirar). Desta maneira, palavras prostituta e fina). Embora Dona Inácia indica-se a importância da experiência carnal. seja uma aristocrata, tenha riquezas, etc. não é fe­ Tendo em conta que a versão original deste fado liz porque a sua moralidade está arruinada. pertence a Mariza, a associação com a carnalidade automaticamente coloca-se no espaço feminino. É mulher de vinte e um maridos de Lisboa à Costa Brava Corpo,[...]cama e psiquiatra Estás a pensar em mim, promete, jura Talvez um dia se esconda Se sentes como eu o vento a soluçar [...] Abra o gás e adormeça As verdades mais certas mais impuras ou dê um tiro na vida Que as nossas bocas têm p'ra contar [...]Diz que sentes como eu, promete, jura Com o fim do Estado Novo, observa-se certa Se sentes este fogo que te queima Se sentes o meu corpo em tempestade marginalização do fado. Primeiro, por causa da Luta por mim amor, arrisca, teima rápida inundação do mercado musical português Abraça este desejo que me invade pela música anglo-americana. Além disso, o fado - lançado durante Estado Novo como música na­ Se sentes, meu amor, o que eu não disse cional - foi inevitavelmente associado com o regi­ Além de tudo o mais do que disseste É que não houve verso que eu sentisse me e, por isso, rejeitado. Aquilo que eu te dei e tu me deste

Fotografia: Jorge Branco 38 39 JOSÉ AFONSO E JACEK KACZMARSKI JOSÉ AFONSO E JACEK KACZMARSKI PORTADORES DE IDEIAS E MENSAGENS UNIVERSAIS PORTADORES DE IDEIAS E MENSAGENS UNIVERSAIS

Michał Hułyk outro subgénero musical e poético e representa­ Mandadores sem lei Universidade Maria Curie-Skłodowska rem por isso diferentes estéticas por vezes até in­ Enchem as tulhas Menino sem condição Bebem vinho novo de Lublin compatíveis, acho não só possível, mas também Dançam a ronda interessante do ponto de vista dum polaco e dum Irmão de todos os nus Tira os olhos do chão No pinhal do rei O presente artigo é falar sobre a chamada mú­ estudante da cultura e língua portuguesa esta ten­ Vem ver a luz sica de intervenção e mais concretamente sobre tativa de comparação das duas grandes «vozes da Menino do mal trajar O fenómeno da música de conteúdo crítico le­ alguns aspetos da criação artística do seu maior resistência» Um novo dia lá vem vou ao surgimento de todo um movimento dos representante- o cantor e «bardo» português José Devido à falta de competência metodológica Só quem souber cantar cantores de intervenção no Portugal salazarista. Afonso. Zeca Afonso é em Portugal um verdadei­ específica que me permita fazer uma análise por­ Vira também Negro bairro negro Eram frequentes as interpretações da poesia na­ ro símbolo e quase um mito, especialmente entre menorizada dos textos poéticos vou falar tanto Bairro negro cional contemporânea e clássica. O próprio Zeca as pessoas da geração da época salazarista. Vou das canções de Zeca e de Jacek, como dos acon­ Onde não há pão Afonso cantava a Luis Vaz de Camões e a Fernan­ comparar alguns aspetos da criação do autor da tecimentos mais relevantes das suas vidas que Não há sossego do Pessoa. Outro cantor famoso daquela época «Grândola Vila Morena» com as da obra do po­ foram marcadas pelas ditaduras, a fascista e a co­ Adriano Correia da Oliveira musicou o belíssimo laco Jacek Kaczmarski. Em particular, gostava de munista. Em Portugal costuma-se nomear como poema de Manuel Alegre «Trova do vento que encontrar resposta à seguinte pergunta: Em que «música de intervenção» uma categoria particular Segundo interpretam os críticos, a «negritude» passa». medida a criação poético-musical deles pode ser que engloba canções de música popular compos­ da canção não diz respeito à cor da pele, mas à O papel do artista sob o regime ditatorial era o considerada como portadora de ideias e mensa­ tas com o intuito de chamar a atenção do ouvinte condição social e económica dos meninos explo­ de denunciar, de falar sobre o que era perigoso do gens universais? Ou seja: Imaginamos como pola­ para um determinado problema da atualidade, rados, habitantes dos bairros de lata da cidade do ponto de vista do sistema, sobre os acontecimen­ cos e como portugueses uma sessão comum onde seja ele de origem social, política ou económica. Porto e por isso pode ser considerada como de­ tos históricos, sobre factos silenciados. Era o pa­ se executassem tanto canções de Zeca como as pe­ Este conceito não encontra nenhum equivalen­ nuncia da injustiça social própria do regime dita­ pel de «dessassossegador de almas» que colocava ças poéticas de Jacek? José Afonso foi não só can­ te direto ou rigoroso na realidade polaca. O que torial salazarista. perguntas difíceis e incómodas revoltando assim tor popular, mas, sobretudo, foi um simpatizante nós na Polónia costumamos denominar «poezja Além da crítica feroz da atualidade, que ocupa a consciência coletiva. Cabe evocar aqui a canção declarado das ideias comunistas, enquanto Jacek śpiewana» pode, mas não necessariamente conter lugar privilegiado na poesia de Zeca e de Jacek de Kaczmarski «Swiadkowie» (em port. «Teste­ Kaczmarski foi, sem dúvida nenhuma, anticomu- esta dimensão que lhe dá o traço de compromis­ Kaczmarski, estão presentes nela muitos motivos munhas») em que o poeta ousa evocar a memó­ nista por excelência na sua atitude e atividade ar­ so social à música de intervenção portuguesa. Na históricos que não só servem para refletir no pas­ ria dos militantes anticomunistas, dos chamados tística. Polónia comunista, vários artistas independentes sado nacional, mas também para fugir à censura e «soldados deserdados» (żołnierze wyklęci) apa­ A minha comunicação não pretende ser uma recorriam a várias formas de expressão para fu­ fazer referência à situação atual. A canção «Raport gados da história oficial pelas autoridades comu­ análise científica rigorosa. Pelo contrário, vou dar­ gir à censura, entre as quais a mais popular era, ambasadora» (port.«O relatório do embaixador») nistas. -me ao luxo de me permitir mais liberdade formal se calhar, o kabaret político, que em Portugal tem em que se fala das partições da Polónia no fim do Sem dúvida, tanto a obra de Zeca como a de Ja­ nesta curtíssima viajem pela Lusofonia e apresen­ como equivalente mais próximo o teatro de revis­ século dezoito pode constituir um bom exemplo cek neste aspeto aproximam-se mais do conceito tar a comunicação do ponto de vista de um aman­ ta e que permitia proporcionar uma crítica mor­ de referência histórica como arte de retratar a atu­ da chamada arte comprometida do que da noção te da história contemporânea e da poesia e canção daz da realidade social daquela época. A canção alidade, quer dizer a da Polónia da pós-guerra, puramente formal da «arte pela arte». O artista é, popular e não do ponto de vista dum perito ou era uma das tantas formas de expressão artística subjugada pela União Soviética. Este intuito de nesta visão, o «sentinela da liberdade», é um bi­ especialista que não sou e nem sequer me consi­ independente. Além disso, Jacek Kaczmarski, por escapar da censura é óbvio. Os poetas recorrem a cho pequeno mas perigoso e por isso odiado pe­ dero como tal. sua única e absolutamente incomparável prática metáforas, por vezes bem claras, como no texto da las autoridades. Se calhar, não foi por acaso que Parece justificado explicar porque Zeca Afonso poética parece situar-se fora de qualquer tentativa canção «Vampiros» de Zeca que se compõe duma Platão, no primeiro projeto dum estado ideal co­ merece a nossa atenção. Então, eu acho que sobre­ de classificação formal. Se calhar, seria mais jus­ série de metáforas e símbolos, fáceis de decifrar: nhecido na história, quisesse expulsar os poetas tudo pelo papel que a sua música desempenhou tificado atribuir-lhe o nome de «poeta maldito». por considerá-los amotinadores perigosos para a na luta contra o regime fascista em Portugal, mas Por conseguinte, este critério puramente formal No céu cinzento ordem social. também por uma certa atualidade da sua obra. A não pode constituir um bom referente na tenta­ Sob o astro mudo Batendo as asas Na criação artística do próprio Zeca podemos célebre canção de Zeca «Grândola Vila Morena» tiva de comparação da obra de Zeca Afonso e de Pela noite calada observar a evolução estilística que o bardo sofreu tornou-se um símbolo da luta antifascista e foi Jacek Kaczmarski. Em que aspeto é que então po­ Vêm em bandos a partir de 1960-1962. Foi naquela altura quando usada como sinal para as tropas insurgentes saí­ demos falar das semelhanças dos dois grandes Com pés de veludo as viagens a África e as manifestações estudantis rem dos quartéis e começarem o golpe de estado «bardos»- o português e o polaco? Sem dúvida Chupar o sangue em Coimbra fizeram com que o cantor se apro­ democrático que hoje em dia é conhecido como a nenhuma a semelhança principal é o papel que Fresco da manada ximasse da ideologia da esquerda antisalazarista. revolução dos cravos. desempenharam sob os regimes ditatoriais- o pa­ A toda a parte Antes, como disse ele próprio numa das entrevis­ Se me permitem, gostava também de convidar pel da arte crítica, a arte que denúncia a injustiça Chegam os vampiros tas, a sua militância «era praticamente improvisa­ outra personagem para este percurso breve pela e o absurdo dos sistemas políticos. Em que me­ Poisam nos prédios da, solitária e até quase boémia» canção e poesia. Estou a falar do já mencionado dida Zeca e Jacek foram artistas independentes? Poisam nas calçadas José Afonso nunca chegou a ser membro de ne­ célebre «bardo» polaco Jacek Kaczmarski, faleci­ Pois, parece que foram. O que se destaca na cria­ Trazem no ventre nhum partido político, mas, sem dúvida nenhu­ Despojos antigos do há alguns anos. Tanto Zeca Afonso em Portu­ ção deles é a omnipresença da política, por vezes Mas nada os prende ma, foi partidário do ideal comunista. Começou gal, como Jacek Kaczmarski na Polónia continu­ explícita, outras vezes velada por detrás de alu­ Às vidas acabadas a sua aventura musical como cantor do «fado de am vivos na consciência coletiva como «míticas sões e símbolos. As suas canções estão cheias de Coimbra» que era um género tradicional, muito vozes de resistência» e continuam a ser símbolos referências críticas perante a atualidade política São os mordomos ligado às seculares tradições académicas da glo­ da liberdade artística e política. e social. Basta evocar canções tais como «Menino Do universo todo riosa Universidade de Coimbra, mas praticamen- Senhores à força Apesar de ambos os cantores pertencerem a do Bairro Negro» : te sem conteúdo político ou social. Uns anos mais

40 41 JOSÉ AFONSO E JACEK KACZMARSKI JOSÉ AFONSO E JACEK KACZMARSKI PORTADORES DE IDEIAS E MENSAGENS UNIVERSAIS PORTADORES DE IDEIAS E MENSAGENS UNIVERSAIS tarde, ao tornar-se simpatizante da esquerda mar­ ta, levada a cabo anos depois pelo amigo e compa­ independência artística, nunca deixou de se cha­ xista, a sua música ganhou mais caráter social e fi­ nheiro de luta José Salvador, Zeca disse: mar nem de se sentir «o cantor popular», Jacek cou propositadamente subordinada à mensagem «É evidente que naquela altura eu não recusava Kaczmarskilparecelobcecadolpelaldefesaldalliber- crítica, desta vez exposta mais explicitamente. No qualquer convite que me fosse feito por qualquer dadel individuall dol artista. l Istol revela-sel muitas entanto, Zeca nunca se tornou um ideólogo faná­ coletividade. Nunca recusei convites e nunca per­ vezeslnoslseuslpoemas, ltaislcomol«Epitafiumldla tico e por isso a sua música nunca perdeu o gran­ guntei que organização política estava por trás. Wlodzimierza Wysockiego» ou «AutoportretlWi- de valor artístico e poético. Também trabalhei com católicos. Estive na igreja tkacego» com os quais o músico se afasta bastante O que, sem dúvida, está fortemente presente do Rato a cantar em cima de um altar. Trabalha­ da sualimagem popular de «bardo do movimen- na criação poética do José Afonso é uma certa di­ va com todos os indivíduos que me parecessem tolsindicallSolidarnosc» lquellhelfoilerroneamente mensão coletiva. Adotou um papel de cantor po­ orientar-se para o mesmo fim: o ataque direto ao atribuída. pular, do povo, duma coletividade, cujos proble­ fascismo». Para concluir, gostava de dizer algumas pala­ mas, sofrimentos e esperanças comuns aparecem Enquanto José Afonso é indubitavelmente o vras sobre o legado de Zeca Afonso o que tam­ nos textos das canções. Como por exemplo neste, símbolo da luta antifascista para os Portugueses, bém diz respeito a já mencionada universalidade se calhar o mais famoso: o «trovador da liberdade» polaca tornou-se sím­ da mensagem da sua obra. Comolfoi atrás referi­ bolo e mito contra a sua vontade. Pois é. A histó­ do, a sua canção «Grândola Vila Morena» serviu O povo é quem mais ordena ria gosta de ser irónica. A mais reconhecida das de senha para olinício da revolução dos cravos no Dentro de ti, ó cidade canções de Jacek, intitulada «Mury» (Muralhas Em cada esquina, um amigo ano 1974. Hoje em dia, o hino da liberdade não Em cada rosto, igualdade em português) converteu-se no hino da luta anti- caiu, de modo nenhum, no esquecimento. «Grân­ comunista na Polónia dos anos 80. Não obstante, dola Vila Morena» está constantemente presente Cabe sublinhar, que esta canção tornou-se não a canção não foi escrita por Jacek. Tanto a música, nas manifestações antigovernamentais da época só uma espécie de hino do movimento antifascista como o texto foram adaptações da célebre peça do de profunda crise económica,lnão só em Portugal, português, mas também é uma das mais ampla­ cantor catalão Lluis Llach «L'estaca», que por sua mas também na Espanha e em outros países da mente reconhecidas no mundo, fora da pátria do vez era cantada pelos catalães e pelos espanhóis União Europeia. Assim, esta música e esta poesia seu criador. A popularidade que «Grândola Vila da esquerda antifranquista. Vemos que tais adap­ não deixamlde ser atuais continuamla desassosse­ Morena» goza no estrangeiro deve-se à mensa­ tações, que têm lugar independentemente das cir­ gar as almas. gem da canção que é efetivamente universal. Não cunstâncias geopolíticas, podem só argumentar é por acaso que existem versões cantadas em nu­ a favor da tese exposta nesta comunicação. Será merosas línguas estrangeiras. Até na língua pola­ então que os regimes ditatoriais são, no fundo, Michał Hułyk- Universidade Maria Curie-Skłodowska de iguais, quer dizer igualmente desumanos nas Lublin, estudante de filologia ibérica, licenciado em história ca há uma versão executada pela cantora Edyta e em estudos de pós-graduação em educação física. Geppert. suas atrocidades cometidas contra os cidadãos? Zeca Afonso indentificou-se plenamente com Efetivamente é assim. a luta social contra o regime. Queria fazer parte Os artistas independentes destacam-se neste dela, e por isso sempre esteve presente entre os contexto pela sua coragem de denunciar qualquer estudantes e os operários, dando sessões nas fá­ barbaridade cometida pelo poder contra o ser hu­ bricas, nas reuniões estudantis e nas sedes sindi­ mano mas também costumam revelar, no seu in­ cais. Não obstante, como parece e como já disse, dividualismo, uma certa desconfiança, não só pe­ jamais se converteu num adorador cego da ideo­ rante as autoridades, mas também perante os que logia que ele próprio considerava profundamen­ se declaram partidários da causa libertária. Neste te humanista, nem sequer foi membro do partido contexto Jacek Kaczmarski é se calhar o melhor comunista. Apesar de apoiar o movimento do 25 exemplo do artista independente. Cabe acrescen­ de Abril, acabou por se dececionar com a realida­ tar, que a adaptação do texto catalão foi enriqueci­ de que tinha surgido em resultado da revolução da pelo trovador polaco com a última estrofe cheia dos cravos. Não aceitava que os lideres e funcio­ de amargura e receio de que qualquer movimento nários dos partidos se tornassem novos ditadores. massivo, por mais tolerante e democrático que se Ele identificava-se plenamente com a causa do declare, constitui uma ameaça para a liberdade, povo, da sociedade portuguesa, não com a dos especialmente para a dimensão individual dela. chefes do partido comunista que depois do gol­ Por isso, o trovador, que ao princípio desempe­ pe tentava impor a sua visão ao pais, muito dis­ nha o papel dum agitador de consciências, acaba tante dos ideais democráticos: «Receava que as por situar-se fora do movimento ao ver que este estruturas partidárias , que iriam inevitavelmen­ movimento começa a reproduzir a opressão con­ te surgir, fossem sufocar essa iniciativa popular, tra a qual lutava. O bardo da canção acaba como subordinando-a a diretivas discutíveis das cúpu­ inimigo dos revolucionários, que, alucinados na las»- disse José Afonso. sua ideologia, veem o mundo a preto e branco. Apesar disso, foi-lhe dado o nome de guerra de Enquanto José Afonso, apesar de várias dú­ «Amália do Partido Comunista». Numa entrevis­ vidas que lhe permitem evitar «derreter-se» por completo no movimento massivo e salvar assim a

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