UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

IVAN SICCA GONÇALVES

COMÉRCIO, POLÍTICA E TRABALHO NOS SERTÕES DE : SERTANEJOS E CENTRO-AFRICANOS NAS PÁGINAS DE ANTÓNIO DA SILVA PORTO (1841-1869)

CAMPINAS 2021

IVAN SICCA GONÇALVES

COMÉRCIO, POLÍTICA E TRABALHO NOS SERTÕES DE ANGOLA: SERTANEJOS E CENTRO-AFRICANOS NAS PÁGINAS DE ANTÓNIO DA SILVA PORTO (1841-1869)

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em História, na Área de História Social.

Orientadora: Lucilene Reginaldo

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO IVAN SICCA GONÇALVES, E ORIENTADO PELA PROFA. DRA. LUCILENE REGINALDO.

CAMPINAS 2021

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Gonçalves, Ivan Sicca, 1994- G586c GonComércio, política e trabalho nos sertões de Angola : sertanejos e centro- africanos nas páginas de António da Silva Porto, (1841-1869) / Ivan Sicca Gonçalves. – Campinas, SP : [s.n.], 2021.

GonOrientador: Lucilene Reginaldo. GonDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Gon1. Silva Porto, António Francisco Ferreira da, 1817- 1890. 2. Caravanas. 3. Trabalhadores - África Central - História. 4. Comércio - História - Séc. XIX. 5. África Central - História. 6. África Central - Comércio - Séc. XIX. I. Reginaldo, Lucilene, 1967-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Commerce, politics and labour in the Angola's hinterland : "sertanejos" and Central Africans in the pages of António da Silva Porto (1841-1869) Palavras-chave em inglês: Caravans Workers - Central Africa - History Commerce - History - 19th century Central Africa - History Central Africa - Commerce - 19th century Área de concentração: História Social Titulação: Mestre em História Banca examinadora: Lucilene Reginaldo [Orientador] Mariana Pinho Candido Elaine Ribeiro da Silva dos Santos Data de defesa: 23-02-2021 Programa de Pós-Graduação: História

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-8223-2715 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2962639579906298

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 23 de fevereiro de 2021 considerou o candidato Ivan Sicca Gonçalves aprovado.

Profa. Dra. Lucilene Reginaldo (orientadora) Profa. Dra. Mariana Pinho Candido Profa. Dra. Elaine Ribeiro da Silva dos Santos

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós- Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Para Natalina, Pedro e Anália

Agradecimentos

Ao encerrar as últimas linhas de um processo que durou cerca de três anos, muitos elementos e episódios são colocados em perspectiva. Apesar de ser um termo banalizado pela linguagem burocrática que domina o ambiente acadêmico, nesse trabalho que trata tanto sobre o ato de carregar objetos, gostaria aqui de revigorar o sentido de “apoio”. Apoio, mais do que pessoas e instituições que se envolveram de alguma forma em um processo, é o que permite que um trabalho (e uma experiência de trabalho) se torne menos duro, mais confortável e, em último caso, possível. Assim entendo o muito apoio que recebi ao longo destes anos – e não se trata apenas das colaborações, críticas e sugestões ao conteúdo desse trabalho em específico (que recebi muito), mas a um convívio que pude contar nas salas de aula, cantinas, bandejão, bares e, mais recentemente, videoconferências – permitiu que esse processo fosse menos duro, mais confortável e, em último caso, possível. Em especial, e não sem pesar, há o destaque de que a quase totalidade das pessoas que serão mencionadas na sequência eu não pude me encontrar pessoalmente há pelo menos um ano, o que não diminui em nada o quanto eu devo a todos por esse apoio para continuarmos, mesmo em tempos difíceis, carregando esses fardos. Inicio, como não poderia deixar de ser, agradecendo à minha orientadora, Lucilene Reginaldo, com quem tive o verdadeiro privilégio da supervisão e convivência nos últimos sete anos. Desde a primeira iniciação científica, nos idos de 2014, pesquisamos juntos, e Lucilene demonstrou interesse, curiosidade e seriedade nos nossos diálogos, apontando caminhos e provocando questões, sendo responsável pelo muito que aprendi e consegui descobrir nesses tempos. Para além de agradecer pelo seu intenso apoio por toda essa trajetória, só posso registrar aqui a minha profunda admiração por Lucilene como professora, pesquisadora e pessoa. Agradeço às professoras Elaine Ribeiro e Mariana Candido pelos instigantes comentários, críticas e diálogos realizados durante a banca de defesa dessa dissertação. Além da oportunidade de ouvir um retorno de duas pesquisadores amplamente citadas ao longo desse trabalho, foi muito bom refletir sobre continuidades e potencialidades de análise do material coletado nessa pesquisa. Agradeço também especialmente aos professores Roquinaldo Ferreira e Cristina Wissenbach pelos comentários, críticas e sugestões realizadas no exame de qualificação que, não só ajudaram a aprimorar o trabalho feito até então, mas influenciaram diretamente no modo como foi desenvolvida a sequência desta pesquisa.

À Raquel, agradeço principalmente pela convivência e pela amizade durante todo esse período – seja em tarefas extenuantes como a correção de meia centena de projetos de pesquisa, seja em cafés (e chás) – e que tornaram os momentos mais leves e divertidos. Aos professores da área de História Social, agradeço pela intensa convivência nas linhas de pesquisa e nos “salões de festas” após o expediente. A convivência que já nutria com Fernando, Claudio, Ricardo, Silvia e Omar desde a época da graduação foi fundamental para definir o historiador e, se posso dizer, o pesquisador que sou hoje. Em especial, ao Claudio e ao Omar agradeço pelas disciplinas que pude fazer na pós graduação, cujos ricos debates estão bastante presentes nas reflexões desse trabalho. Em especial, também agradeço à Flávia por todo o apoio fundamental que me deu por todos esses anos. No mestrado tive o privilégio de conviver, aprender e me divertir muito com os companheiros de salas e mesas. Seria impossível pensar esses últimos anos sem a companhia do Talison, Franco, Jefferson e Caio. Tive o privilégio também conhecer dois ilustres estrangeiros, Miller e Felipe, diretamente do Alabama e de Cascavel, que foram amizades que o mestrado me deu e sei que poderei contar por muito tempo. Agradeço pela amizade intensa que pude manter desde a graduação com Gabi, Leticia, Ruy, Menini, Pratavieira, Camila, Arnaldo, Thaíse, Melato e Larissa, assim como meus queridos amigos das ciências sociais, Leandro, Agnus e Paula, que o cotidiano do IFCH me brindou com a sua convivência nos últimos anos. Contei com a colaboração direta também de muita gente de fora da UNICAMP, cuja listagem indubitavelmente seria insuficiente. Em especial gostaria de agradecer o apoio da professora Constança Ceita, grande especialista em Silva Porto, a quem tive o privilégio de conhecer pessoalmente em 2019. Constança não só demonstrou seu sincero interesse pelos caminhos dessa pesquisa, mas me auxiliou de forma basilar para lidar com tal acervo documental, compartilhando muito da sua experiência e questionamentos que traz para esse objeto. A ela, que já me repreendeu por agradecer demais, deixo aqui o meu reconhecimento do quanto a sua ajuda moldou o meu próprio caminho pelos diários do sertanejo. Deixo aqui também meu agradecimento ao Malacco, que tive o privilégio de conhecer em 2018, e, que, desde então, foi a pessoa com quem mais aprendi e discuti sobre comércio africano. Como ele próprio já disse, estamos destinados a cair nas mesmas mesas por ainda muito tempo, com estimas de que o diálogo e a amizade continuem. Essa pesquisa não só foi desenvolvida em uma universidade pública de excelência, mas também com financiamento de instituições públicas, sem o qual nada disso teria sido possível. Esse projeto contou com financiamento do Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Processo nº 133367/2018-5. Em período posterior, também contou com bolsa concedida no âmbito do convênio FAPESP/CAPES, Processo nº 2018/13073-0, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Também contei com financiamento da FAPESP para uma Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior (Processo nº 2018/25336-5), que me permitiu ficar quatro meses como investigador visitante no Centro de História da Universidade de Lisboa, experiência sem a qual esse trabalho não teria sido possível. Em Lisboa tive o verdadeiro privilégio da supervisão de Eugénia Rodrigues, que me acolheu e acompanhou de perto, com dedicação e curiosidade, o andamento da pesquisa nos arquivos. Assim, não só pude coletar uma documentação considerável no espaço de apenas quatro meses, mas pude usufruir de ricos diálogos com Eugénia e com os professores e participantes dos seminários mensais de História da África do CH-ULisboa. Agradeço especialmente à Linda e à Maria José, que abriram as portas das suas casas e me instalaram, permitindo assim uma estadia mais confortável e agradável em Lisboa. Por fim, destaco o quão importante foi o apoio cotidiano das funcionárias e funcionários da Sociedade de Geografia de Lisboa, Biblioteca Pública Municipal do Porto e Arquivo Histórico Ultramarino, que não só foram sempre simpáticos e atenciosos, mas com frequência demonstraram interesse e deram sugestões para o desenvolvimento da pesquisa. Não seria possível ter realizado essa pesquisa, baseada em um acervo documental não digitalizado e que tive acesso por período curto de tempo, sem a organização das bases de dados que utilizei para compilar o verdadeiro mar de informações dos diários de Silva Porto. Foi fundamental, nesse sentido, o privilégio da experiência, em minha primeira iniciação científica, de trabalhar em uma base de dados sobre fontes cheias de informações qualitativas, no caso, legislação, e essa experiência foi o embasamento de meu trabalho atual com os cadernos de Silva Porto. Assim, sou extremamente grato à Silvia Lara, a quem nutro profunda admiração, que era a coordenadora dos trabalhos na base de dados de legislação e com quem aprendi tanto sobre esse tipo de instrumento. Agradeço especialmente à Taina, que me ensinou a utilizar o programa Epi InfoTM, a partir do qual organizei as minhas bases atuais. Também foi fundamental a ajuda do Talison e Wini, que me ensinaram a utilizar ferramentas do Excel para poder compilar as informações coletadas nas bases. Muitos colegas foram extremamente generosos comigo nesse período. Foram muitos que me disponibilizaram documentação, textos de difícil circulação, sugestões bibliográficas, comunicações de congressos, artigos em processo de publicação, acervos

de bibliotecas, tendo trazido assim contribuições fundamentais para essa pesquisa propriamente dita. Tentarei ao longo do trabalho dar os devidos destaques sobre esse tipo de contribuição, com a antecipada certeza de que poderei cometer descuidos condenáveis. Agradeço de forma geral a todos que contribuíram nesse sentido e espero que esse trabalho também seja útil para as suas próprias pesquisas. Por fim, agradeço o apoio incondicional da minha família. Sou extremamente grato à minha tia Mariângela, que me cedeu o apartamento da rua Lions Clube na fase final desse processo, local onde boa parte das páginas que se seguem foram escritas. Muitos familiares acompanharam de longe todo esse processo, mas o carinho deles foi sempre fundamental, como o da minha tia Eliana. Durante todos esses três anos, eu e meu irmão Vladmir moramos em países diferentes, e nos encontramos pessoalmente somente em duas ocasiões; a distância nos colocou novos desafios, mas também novas formas de valorizarmos nossa eterna amizade. Para além do convívio pela vida toda, cabe aqui também o agradecimento específico ao Vlad pelo caprichoso trabalho que fez na adaptação de alguns dos mapas em que, palavras dele, “nem dava para saber onde era o mar e onde era a terra”. Meus pais, Natalina e Pedro, assim como minha avó, Anália, sempre foram minha tábua de salvação por toda a vida, material e emocional, e aos três dedico esse trabalho, ao fim de um dos anos mais difíceis de nossas vidas. Que a dura experiência do confinamento deixe a nós quatro pelo menos um fruto a ser por nós comemorado, juntos.

[...] os seus desejos [do soba Cutumbuca] limitavam a ter continuamente viajantes na sua terra, estranhando o mal intencionado que havia feito circular rumores [de que ia sequestrar a caravana] – cujo sentido, tinha em mira afugentá-los [afugentar o povo da caravana], o que nunca lhe tinha passado pela ideia; visto que os sobas não podiam prescindir dos viajantes – pelos recursos que lhes ministravam, como também era certo que: não lhes era difícil [para os viajantes] – desviar-se de terras que os incomodavam; resultando para os seus chefes – o isolamento, e a falta de recursos para o geral do país, pela troca recíproca de gêneros; e então que não partindo d'ele coisa alguma em tal sentido, ignorava o fim do propalar de semelhantes notícias, podendo assegurar o cumprimento do que acabava de expender. António Francisco Ferreira da Silva Porto (29/03/1854)

A esfera mercantil no sistema global do capitalismo moderno parece, à primeira vista, ser uma enorme máquina impessoal, governada por movimentos de preço em larga escala, complexos interesses institucionais, e de um caráter totalmente desmistificado, burocrático e auto-regulador. A impressão é que nada poderia estar mais afastado dos valores, mecanismos e éticas dos fluxos de mercadorias em sociedades de pequena escala. Porém, essa impressão é falsa. Arjun Appadurai

RESUMO

Esta pesquisa procurou estudar as dinâmicas do comércio sertanejo no interior de Angola em meados do século XIX. Reunidos no Planalto Central angolano, região fora da jurisdição colonial portuguesa da época, os comerciantes sertanejos foram importantes agentes do comércio no interior do continente, sendo protagonistas da expansão da exportação de gêneros como a cera e o marfim, após a proibição legal do tráfico atlântico de escravos nas colônias portuguesas, em 1836. A partir dos relatos diários do comerciante António Francisco Ferreira da Silva Porto, escritos entre as décadas de 1840 e 1860, que descrevem e comentam o cotidiano das caravanas comerciais na África Central, investiguei as relações sociais que permeavam a realização dessa modalidade comercial. Tais relações consistiam em, desde a contratação e negociação constante com os centro-africanos que compunham a sociedade caravaneira e acompanhavam o sertanejo por meses de caminhada, até a diplomacia e participação ativa de autoridades africanas no comércio no interior do continente. Ao acompanhar o cotidiano registrado nas páginas de Silva Porto, torna-se possível uma compreensão mais ampla dos processos de formação, consolidação e transformação do chamado comércio lícito na região, considerando no centro da análise o impacto das decisões e conflitos desses agentes históricos em um contexto de profunda transformação política e social do interior da África Central.

ABSTRACT

This research aimed to study the dynamics of "sertanejo" trade in Angola's hinterland in mid XIXth century. Gathered in the Angolan Central Highlands, region outside the Portuguese colonial jurisdiction at the time, the "sertanejo" merchants were important agents of the trade in the continent's hinterland, having a fundamental role in the expansion of the export of colonial goods like wax and ivory, in the period after the legal prohibition of the transatlantic slave trade throughout the Portuguese colonies in 1836. From the daily reports written by António Francisco Ferreira da Silva Porto between the decades of 1840 and 1860, which contain comments on the everyday life in the trading caravans in Central Africa, I investigated the social relations that interwove this commercial practice. Such relations consisted in, from the ubiquitous enrollment and dealing with the Central Africans of the caravan societies' who followed the "sertanejo" for months of walking, to the diplomacy and active participation of African authorities on the commerce in the continent's hinterland. By following the everyday life registered in Silva Porto's writings, it becomes possible to have a broader understanding of the formation, consolidation and change processes of the legitimate commerce in the region by understanding the impact of decisions and conflicts of those historic agents in a context of deep political and social transformation in Central Africa's hinterlands.

SUMÁRIO Nota Preliminar: grafia das palavras de línguas africanas ...... 14 Introdução ...... 16 Capítulo 1 - O Bié, os sertanejos e o Mundo Atlântico ...... 43

1.1 O Bié e o Planalto Central de Angola ...... 44 1.2 “Eis ali o vosso filho” ...... 58 1.3 Um Caminho para ...... 80 1.4 “Sorvedouro sem fundo” ...... 92 Capítulo 2 - Nas Rotas dos Mambari: sobas e negociantes nos sertões ...... 116 2.1 Comércio de longa distância do Planalto e o tráfico atlântico ...... 116 2.2 As demandas vindas de Benguela ...... 121 2.3 Presentes e Tributos de Passagem nos Sertões ...... 129 2.4 Política e Comércio no Barotse, o Eldorado do Marfim ...... 146 2.5 Os Pontos Intermediários do Comércio Sertanejo ...... 157 2.6 “Barco parado não ganha frete” ...... 163 2.7 Endividamento e a “Crise” dos anos 1860 ...... 171 Capítulo 3 - A vida em caravana: trabalho e dependência nas sociedades em movimento ...... 179 3.1 Os Carregadores em Angola ...... 180 3.2 O Povo da Caravana...... 198 3.3 Os “incorrigíveis” ...... 221 3.4 “Nós não temos culpa do transtorno da viagem” ...... 227 3.5 Pioneiros Africanos ...... 234 Considerações Finais ...... 253 Bibliografia ...... 256 Anexos ...... 267 Anexo I – Localização e Composição dos Fundos Documentais de Silva Porto ...... 267 Anexo II – Memorial de Mucanos – dados compilados ...... 271 Anexo III – Cartas de Silva Porto ao seu armador...... 275 Anexo IV – Considerações de Silva Porto sobre o valor dos banzos e os contratos com os pombeiros ...... 279 Anexo V – Documentos Oficiais: travessia de Angola à Contra-Costa ...... 282

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NOTA PRELIMINAR: GRAFIA DAS PALAVRAS DE LÍNGUAS AFRICANAS

Esse trabalho lidou com as dificuldades provenientes da utilização de termos, nomes de pessoas e de regiões de diferentes origens linguísticas e que receberam distintas grafias nas fontes primárias e na bibliografia consultada em português, inglês, espanhol e francês. Tentou-se, nesse sentido, evitar o aportuguesamento dos termos, presente em muitas das fontes primárias e em parte da bibliografia, por dificultar o cruzamento de informações provenientes de outras fontes documentais e trabalhos recentes de historiadores. Assim, para nomes de regiões, marcos geográficos, Estados e povos africanos, procurou-se utilizar as grafias dos termos mais recorrentes na historiografia, que geralmente procura reproduzir a pronúncia local; para auxiliar em trabalhos diretamente com a fonte, no entanto, também informo como que estes termos aparecem nos cadernos de Silva Porto, entre parênteses. Por exemplo: “chokwe (quiboco, em Silva Porto)”. Foi impossível fazer tal conversão em vários casos, principalmente em nomes de mandatários africanos, por falta de possibilidade de cruzamento com outras fontes primárias ou com estudos históricos. Os gentílicos africanos sempre foram grafados no singular, com letra minúscula e sem utilizar os plurais de prefixos. Assim, por exemplo, refiro-me aos “guerreiros kololo”, não utilizando o termo “makololo”, como seria o seu plural em sikololo. Seguindo o princípio de manter grafias utilizadas pela historiografia como mais próximas das pronúncias nas línguas dos povos locais, para as cidades, feiras, distritos e presídios portugueses na África, utilizei suas grafias aportuguesadas mais recorrentes. Em casos de entidades políticas portuguesas e africanas homônimas, utilizei a grafia portuguesa para a instituição colonial, e a grafia mais próxima das línguas africanas para a entidade africana. Por exemplo, o presídio português é de “”, enquanto o sobado africano que ocupava a região, “Kakonda”, assim como o Estado africano é grafado como “Kasanje”, enquanto me refiro ao distrito colonial e sua feira como “Cassange”. Para referência de nomes dos sobas do Planalto Central de Angola e aos estados falantes de umbundu na região, utilizei em geral a grafia dos trabalhos de Gladwin Murray Childs e Constança Ceita, já que ambos fizeram genealogias dos mandatários da região1. Para referência dos nomes da região do Barotse, na qual Silva Porto utilizava grafias

1 CHILDS, Gladwyn Murray, The Chronology of the Ovimbundu Kingdoms, The Journal of African History, v. 11, n. 2, p. 241–248, 1970; CEITA, Constança do Nascimento da Rosa Ferreira, Silva Porto na África Central – Viye / Angola: História Social e Transcultural de um Sertanejo (1839-1890), Tese de Doutorado, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2014, especialmente p. 144, 150, 162.

15 bastante distintas das da historiografia atual sobre a região, a principal obra utilizada foi o trabalho de Jack Hogan2. A essas diretrizes gerais, foram feitas algumas exceções pela recorrência extrema dos termos aportuguesados na fonte e na bibliografia. Assim, as palavras “Bié” e “” foram utilizadas neste formato aportuguesado, assim como seus gentílicos, “bianos” (ou “bienos”) e “bailundos” (com letra minúscula). O mesmo cálculo justifica o meu uso dos termos “pombeiros”, “quimbares”, “macotas”, “quilombos” e “ganguelas” (este último, servindo tanto para o “povo”, quanto para a região). Por fim, cabe destacar que a grafia do português das citações literais dos cadernos de Silva Porto e outros documentos oitocentistas foi atualizada, o que também vale para as transcrições dos textos nos anexos.

2 HOGAN, Jack, The ends of slavery in , Western Zambia (c. 1800-1925), Phd Thesis, University of Kent, Canterbury, 2014. Agradeço à Iracema Dulley por me apresentar o trabalho de Jack Hogan.

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Introdução Uma ponta de marfim. Em 1852, uma caravana comandada por negociantes africanos que passava pelo leste da atual Angola encontrou uma ponta de marfim colocada sobre uma sepultura. Deixando intocado tal objeto, dois anos depois, os membros desta caravana encontraram a mesma ponta em perfeito estado. Sendo precisamente as presas de elefante o objeto que tal caravana buscava comprar no interior do continente, em crescente demanda no mercado internacional de meados do século, um dos líderes da comitiva, de nome Demba, decidiu por confiscá-la para ser vendida no litoral, apostando que os moradores locais não dariam falta ao dito objeto e mesmo se o fizessem, não poderiam fazer mal aos viajantes. Em 1856, no entanto, a comitiva foi reconhecida pelos locais, que atacaram os perpetradores do roubo da lápide, assassinando alguns dos carregadores e sequestrando parte de suas cargas3. São sujeitos como Demba e seus companheiros de caravana, livres ou escravizados, de origens e posições sociais variadas, acumulando a experiência e o conhecimento de longas viagens pelo interior do continente africano, que serão os personagens desse estudo. Mesmo não escrevendo as suas histórias de mão própria, os fragmentos das vidas de tais sujeitos aparecem na documentação, que testemunha o quanto eles lidaram com as oportunidades e desafios abertos pela demanda crescente de mercadorias para o mercado atlântico, manejando, dentro do seu campo de escolhas e possibilidades, os próprios termos desse comércio, já que foram os membros dessas caravanas que viabilizaram a chegada de quantidades crescentes de produtos aos portos angolanos. No que diz respeito a esses produtos que chegavam nos portos lusitanos, há certo destaque em estudos africanistas recentes para a história de objetos produzidos a partir de presas de marfins arrancadas de elefantes africanos, a exemplo da presa que sobrepunha a lápide. Não sabemos se este objeto em específico, como muitas presas de elefante, teria sido de alguma forma lavrada por artesãos africanos, o que fez com que elas, muitas vezes, fossem ressignificadas como peças de arte em museus e coleções particulares em vários cantos do mundo4.

3 Sociedade de Geografia de Lisboa (doravante SGL). Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, António Francisco Ferreira. Memorial de Mucanos, p. 30-32. (08/05/1857). 4 Para um levantamento sobre o campo dos marfins africanos, ver: SANTOS, Vanicléia Silva, Introdução - Marfins no Brasil e no Atlântico, in: SANTOS, Vanicléia Silva (Org.), O Marfim no Mundo Moderno: comércio, circulação, fé e status social (Séculos XV-XIX), Curitiba: Prismas, 2017, p. 13–30. Para a produção brasileira sobre marfins africanos no mundo atlântico, com diálogos entre história, história da arte e museologia, ver, principalmente: SANTOS, Vanicléia Silva (Org.), O Marfim no Mundo Moderno: comércio, circulação, fé e status social (Séculos XV-XIX), Curitiba: Prismas, 2017; SANTOS, Vanicléia Silva; PAIVA, Eduardo França; GOMES, René Lommez (Orgs.), O comércio de marfim no mundo

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Para a região de Angola, importante exportadora de marfim desde pelo menos o século XVIII, há poucos registros de exportação de peças de marfim lavrado5. Em geral, o marfim que saía dos portos de Angola era em estado bruto e direcionado para o mercado europeu, vindo de diferentes regiões do interior do continente, incluindo o leste de Angola. No século XIX, houve um aumento considerável dos números de exportação de marfim na colônia portuguesa, ganhando centralidade na economia regional, principalmente após a proibição legal do tráfico transatlântico de escravos em 18366. No entanto, a comercialização desse produto foi sendo dificultada pela crescente ausência de elefantes nas regiões próximas ao litoral7. Por causa da intensificação da caça, junto com a crescente mortalidade dos paquidermes, as populações sobreviventes foram cada vez mais migrando para o interior do continente8, como comenta um comerciante português da época, António da Silva Porto:

atlântico: circulação e produção (séculos XV a XIX), Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural e Editora, 2018. Ver também: JANZEN, John M., A Carved Loango Tusk: Local Images and Global Connections, Lawrence: University of Kansas, 2009; LUÍS, João Baptista Gime, O Comércio do Marfim e o Poder nos Territórios do Kongo, Kakongo, Ngoyo e Loango: 1796-1825, Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2016; SOARES, Mariza de Carvalho, “Por conto e peso”: o comércio de marfim no Congo e Loango, séculos XV - XVII, Anais do Museu Paulista, v. 25, n. 1, p. 59–86, 2017. 5De forma geral, a África Central tem um espaço ainda secundário nos estudos sobre produção e circulação de marfins africanos, principalmente em comparação com a África Ocidental. Recente comunicação de Rogéria Cristina Alves procura reinterpretar os números oficiais de exportação de marfim durante o século XVIII, apontando para a sua sub-representação frente ao que de fato deveria ser o comércio do produto na região. ALVES, Rogéria Cristina, Entre contratos e monopólio: a circulação de marfim in natura a partir do porto de Luanda (1749-1789). Comunicação apresentada no Congresso Internacional Marfins Africanos no Mundo Atlântico, 1400-1900, Lisboa, 2019. Para questões sobre as dificuldades de fazer análise de séries sobre a exportação de marfim e outros gêneros em Angola para os finais do século XVIII, devido principalmente à falta de dados para vários anos, assim como a ausência de discriminação em muitos desses dados entre os produtos exportados nos portos de Luanda e Benguela, ver ainda: TELES, Edgar Alexandre Pinto, O Tráfego do Marfim de Benguela para Lisboa no Final do Século XVIII, Comunicação apresentada no Congresso Internacional Marfins Africanos no Mundo Atlântico, 1400-1900, Lisboa, 2019. Ambos os textos foram gentilmente cedidos pelos autores. Quanto aos objetos de marfim lavrado, em texto anterior, Alves apontou questões sobre as lacunas dos estudos sobre esses objetos, quando procedentes dos portos das regiões de Congo e Angola. ALVES, Rogéria Cristina, Marfins na rota atlântica: a circulação do marfim entre Luanda, Costa brasileira e Lisboa (1724-1826), in: SANTOS, Vanicléia Silva; PAIVA, Eduardo França; GOMES, René Lommez (Orgs.), O comércio de marfim no mundo atlântico: circulação e produção (séculos XV a XIX), Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural e Editora, 2018, p. 96–131. Ver ainda: SOARES, Mariza de Carvalho, O mpungi nas fontes portuguesas sobre o Congo, 1483-1512, in: SANTOS, Vanicléia Silva (Org.), O Marfim no Mundo Moderno: comércio, circulação, fé e status social (Séculos XV-XIX), Curitiba: Prismas, 2017, p. 33–50. 6 Como será detalhado na sequência, as transformações políticas, econômicas e sociais pelas quais Angola passa após essa decisão, no entanto, não resultam no imediato fim de um pungente contrabando de escravos. Para estudos sobre o comércio de marfim em Angola em outros recortes temporais, ver: SOARES, Por conto e peso; ALVES, Marfins na rota atlântica; CORRÊA, Carolina Perpétuo, O comércio de marfim no Presídio de , Angola: primeiras décadas do século XIX, in: SANTOS, Vanicléia Silva (Org.), O Marfim no Mundo Moderno: comércio, circulação, fé e status social (Séculos XV-XIX), Curitiba: Prismas, 2017, p. 123–164. 7 TELES, Edgar, Ivory Trade and Impact on Elephant Habitat and Population in Benguela 1790-1810, Environment and Ecology Research, v. 8, n. 2, p. 41–58, 2020. 8HENRIQUES, Isabel Castro, Percursos da modernidade em Angola: dinâmicas comerciais e transfo rmações sociais no século XIX, Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1997, p. 697.

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[Os elefantes] Quando acossados pelos indígenas - ou mesmo estranhos, cuja profissão consiste na guerra de extermínio que lhes movem em virtude do valor intrínseco dos seus dentes: com toda a probabilidade que no lugar não andariam por semelhante forma, mas sim como por aquelas paragens - onde são descobertos, e ato contínuo tratam de os perseguir, e por esse motivo sem pousada nem lugar certo - mudam de lugar para lugar, até que desaparecem totalmente das florestas de uma terra qualquer, como aconteceu no ocidente [costa ocidental, isto é, Angola] – a partir do litoral até as vertentes do rio Cuanza, onde chegamos de os conhecer em princípios da nossa chegada ao país [em 1840]. Tem lugar aqui o prolóquio de: Dá Deus as nozes a quem não tem dentes.9 Mesmo sem terem esculpidas imagens em sua superfície, esses marfins angolanos carregavam junto de si uma trama de relações sociais envolvidas na caça, trocas (em várias modalidades distintas) e transporte desse material, como evidencia o conflito pela dita presa de elefante encontrada e capturada por Demba no túmulo encontrado em seu caminho. Foram essas tramas que permitiram que, no século XIX, essas peças saíssem de regiões tão longínquas quanto o Barotse, no oeste da atual Zâmbia, e chegassem no litoral angolano. Para pensar no trajeto desses objetos, assim como nos atores sociais envolvidos nesses vários processos responsáveis pelo funcionamento dessa modalidade comercial, torna-se especialmente útil a proposta do antropólogo Arjun Appadurai. Para o autor, estudar a vida social das coisas, mesmo que entendamos que objetos só carreguem os significados atribuídos pelos humanos que os utilizam, é esforço frutífero pois os artigos em movimento elucidam o funcionamento do contexto humano e social do seu entorno10, ou nas palavras do próprio Appadurai: (...) temos de seguir as coisas em si mesmas, pois seus significados estão inscritos em suas formas, seus usos, suas trajetórias. Somente pela análise destas trajetórias podemos interpretar as transações e os cálculos humanos que dão vida às coisas.11 No caso de Angola de meados do século XIX, as transações e cálculos humanos que dão significado a essas toneladas de marfim escoadas para os portos coloniais portugueses do litoral estão envolvidas em uma trama bastante diversa de atores sociais que conectam diferentes regiões do interior por meio do comércio caravaneiro de longa

9SGL. Res. 2 – C – 6. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 1ºvolume, p. 372. (12/03/1854). 10APPADURAI, Introdução, p. 16–18. 11Ibid., p. 17.

19 distância. Tais transações em Angola estiveram historicamente ligadas à formação do que Achim von Oppen chamou de “zona atlântica”, que consistiu em uma área de irradiação da economia angolana, que conectava uma malha crescente de territórios no interior para alimentar as demandas econômicas do comércio oceânico, o que, durante a Idade Moderna, caracterizavam-se, principalmente, pelo suprimento do comércio de escravos para as Américas12. Portanto, é importante para esse estudo entender a história de Angola, e dos territórios do seu interior, dentro do campo da chamada história atlântica. Para além de modismos acadêmicos, estudos comparativos e conectados sobre as várias regiões que margeavam o Oceano Atlântico ajudam a quebrar vícios interpretativos de tradições ligadas às histórias imperiais e coloniais, que, no caso africano, geralmente apagam dinâmicas autônomas regionais ligadas às histórias dos próprios povos do continente13. No entanto, como a própria noção de zona atlântica sugere, não são somente os territórios litorâneos que interessam à história atlântica, mas também os contatos que ajudam a entender transformações, experiências e eventos ocorridos em decorrência dessa integração econômica pelo oceano, o que inclui, portanto, regiões às vezes localizadas há centenas de quilômetros do mar14. Essas interligações entre várias regiões, no entanto, não resultaram necessariamente em unificação política da região, sob controle da colônia portuguesa de Angola. Assim, a zona atlântica de Angola envolvia uma região muito mais ampla do que a colônia sob administração direta dos portugueses. Mesmo nas regiões limítrofes à colônia, onde a

12 OPPEN, Achim Von, Terms of Trade and Terms of Trust: The history and contexts of pre-colonial market production around the Upper Zambezi and Kasai, Münster: Lit Verlag, 1994, p. 49, 53–4. Jill Dias também apontou para o fato da economia do tráfico funcionar como uma força coesiva entre agentes comerciais e políticos dessa malha regional. DIAS, Jill, Novas identidades africanas em Angola no contexto do comércio atlântico, in: BASTOS, Cristiana; ALMEIDA, Miguel Vale de; FELDMAN-BIANCO, Bela (Orgs.), Trânsitos Coloniais: Diálogos Críticos Luso-Brasileiros, Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 317–318. Oppen afirma que sua noção de fronteira como área de irradiação é baseada no ensaio de Jean Luc-Vellut sobre o que o autor chamou de "fronteira luso-africana". VELLUT, Jean-Luc, Notes sur le Lunda et la frontière luso-africaine (1700-1900), Études d’Histoire africaine, v. III, p. 61–166, 1972. Joseph Miller define a zona atlântica de forma mais circunscrita, relacionando à sua noção quanto às dinâmicas das fronteiras de escravização, como será detalhado no capítulo 1. MILLER, Joseph C., Way of death: merchant capitalism and the Angolan slave trade, 1740-1830., Madison, Wis.: Univ. of Wisconsin Pr., 1988, p. 140–141, 143. 13 GAMES, Alison, Atlantic History: Definitions, Challenges, and Opportunities, The American Historical Review, v. 111, n. 3, p. 741–757, 2006, p. 743–745; ARMITAGE, David, Three Concepts of Atlantic History, in: ARMITAGE, David; BRADDICK, Michael J. (Orgs.), The British Atlantic World, 1500-1800, New York: Palgrave Macmillan, 2002, p. 11–27. Por causa do foco excessivo dos estudos de história atlântica para as dinâmicas do Atlântico Norte, consideramos a importância de contribuir para o campo a partir da história angolana para contribuir com a proposta de pensar as dinâmicas próprias e fundamentais do Atlântico Sul, proposta cunhada por Peter Beattie da necessidade de "recapricornizar" o Atlântico. BEATTIE, Peter, “ReCapricorning” the Atlantic, Luso-Brazilian Review, v. 45, n. 1, p. 1–5, 2008. 14 GAMES, Atlantic History, p. 747.

20 interferência e pressão político-militar dos portugueses era maior, houve uma grande diversidade de atitudes dos chefes africanos para tentar manter sua autonomia, muitas vezes a partir de processos ambíguos marcados por alianças estratégicas com os lusitanos ao mesmo tempo que os chefes locais reforçavam assim sua autonomia – mesmo que, a longo prazo, esse tipo de processo tenha levado a enfrentamentos diretos, ou à dependência crescente frente ao governo colonial15. Esse tipo de ambiguidade alimenta debates sobre periodização, sendo questionada por alguns autores o quanto a história angolana durante a Idade Moderna, que antecede o aprofundamento do colonialismo no século XX, poderia ser definida como colonial, ou se tratava-se de um período “pré-colonial”, reconhecendo a fragilidade do domínio direto português em determinados enclaves em contraposição às autoridades africanas autônomas que dominavam os seus entornos. A fragilidade do controle burocrático é característica dos impérios europeus modernos, o que não particulariza o continente africano, mas não diminui uma realidade de violência generalizada e tentativas bem sucedidas de controle de territórios e populações16. O que é importante considerar, no entanto, é que nem todos os territórios que eram reivindicados pelos portugueses, apesar da linguagem de controle da documentação, eram dominados de fato, muitas vezes sendo esferas das ditas autonomias baseadas em identidades ambíguas, ou mesmo vivendo em condições quase completamente autônomas17. Uma das regiões que gozavam dessa grande autonomia era o Planalto Central de Angola. Conectado ao oceano principalmente a partir do porto lusitano de Benguela, o comércio no planalto era protagonizado por um importante grupo de negociantes que intermediavam as relações entre a cidade colonial e as chefias do interior, montando caravanas de carregadores que traziam do interior as presas de marfim, além de vários

15 DIAS, Jill, O Kabuku Kambilu (c. 1850-1900) : uma identidade política ambígua, in: ARQUIVO HISTÓRICO NACIONAL DE ANGOLA (Org.), Actas do Seminário: Encontro de povos e culturas em Angola, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 13– 53. 16 Um bom balanço desse debate está em: ALFAGALI, Crislayne Gloss Marão, Ferreiros e Fundidores da Ilamba. Uma História Social da Fabricação de Ferro e da Real Fábrica de Nova Oeiras (Angola, segunda metade do séc. XVIII), Luanda: Fundação Dr. António Agostinho Neto, 2018, p. 45–47, 67–69. Sobre as particularidades dos impérios coloniais modernos, ver também: RODRIGUES, Eugénia; CANDIDO, Mariana, Apresentação: Cores, classificações e categorias sociais: os africanos nos impérios ibéricos, séculos XVI a XIX, Estudos Ibero-Americanos, v. 44, n. 3, p. 401–408, 2018. 17 THOMPSON, Estevam C., Fontes coloniais para uma história pré-colonial de Benguela, séculos XVII a XIX, Africana Studia, v. 25, n. Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, p. 33–69, 2015, p. 34–35. Texto gentilmente cedido pelo autor, a quem agradeço. MARGARIDO, Alfredo, Algumas Formas da Hegemonia Africana nas Relações com os Europeus, in: SANTOS, Maria Emília Madeira (Org.), Actas da 1.a RIHA - Relação Europa-África no 3.o Quartel do Século XIX, Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1989, p. 383–406; HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola, p. 83–104.

21 outros gêneros coloniais, para as casas comerciais da cidade: os sertanejos que residiam na corte do reino africano do Bié. Tais negociantes eram assim chamados por causa do interior do continente ser conhecido pelos portugueses como “sertões”, sendo eles agentes, de diferentes origens sociais e culturais, contratados pelos comerciantes do litoral para atuar no interior e transportar entre as duas regiões mercadorias importadas, gêneros coloniais e escravos18. Após um isolamento regional na década de 1830, a partir de novo acordo com a chefia local, a comunidade sertaneja residente no Bié recebeu uma segunda geração de negociantes em 1840. Tendo como seus principais líderes Guilherme José Gonçalves, natural de Lisboa, e o já citado António Francisco Ferreira da Silva Porto, natural do Porto e residente por dez anos no Brasil, essa comunidade era formada na sua maioria por sujeitos nascidos nos presídios do interior de Angola, além de alguns de famílias provenientes de Luanda e Benguela, do reino, do Brasil e até mesmo da Índia. Esse grupo residia nas proximidades da corte do reino do Bié, chamada de Ecovongo, dependendo dessa chefia africana para assegurar a sua segurança e apoio operacional, já que se localizavam a grande distância de qualquer base do governo colonial português19. Foram empregados de Silva Porto que passaram pela região do leste de Angola e confiscaram a ponta de marfim do túmulo em 1854. Nas três viagens descritas, essa caravana saía do Bié e partia para o leste, em busca das regiões produtoras de marfim, para assim poderem trazer ao Bié as presas de elefantes a serem vendidas em Benguela. Mesmo que a base de suas atividades devesse se concentrar em negociar diretamente com os produtores, peças de marfim como a que supostamente estava abandonada sobre o túmulo, assim como outras mercadorias encontradas nos caminhos, poderiam ser facilmente vendidas no litoral, aumentando as taxas de lucros dos negociantes. Para recrutar os membros dessas caravanas que carregavam vários outros produtos além de marfim, com destaque para a cera, que se tornaria o principal artigo de exportação

18 CANDIDO, Mariana Pinho, Fronteras de esclavización: Esclavitud, comercio e identidad en Benguela, 1780-1850, México: El Colegio de México, 2011, p. 44-45. 19SANTOS, Maria Emília Madeira, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), in: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da (Ed.), Viagens e Apontamentos de um Portuense em África. Diário de António Francisco Ferreira da Silva Porto, Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1986, v. 1, p. 38–42; DIAS, Jill Rosemary, Angola, in: ALEXANDRE, Valentim; DIAS, Jill Rosemary (Orgs.), O Império africano: 1825-1890, Lisboa: Estampa, 1998, p. 364–365; GONÇALVES, Ivan Sicca, Apontamentos Vindos dos Sertões: negociação, comércio e trabalho nas Caravanas de António Francisco Ferreira da Silva Porto (década de 1840), Campinas: Coleção Monografias IFCH/UNICAMP, 2019, p. 54–55. A composição desse grupo, assim como a sua relação com a corte do Bié serão temas mais aprofundados no Capítulo 1 dessa dissertação.

22 do porto de Benguela após a proibição do tráfico de escravos20, os sertanejos também tinham que aprender, por onde passavam, os códigos sociais das autoridades africanas autônomas21. Este aprendizado era fundamental não só para a formação das caravanas, que poderiam ser compostas por centenas ou até mesmo milhares de membros, mas também para a segurança física e financeira do empreendimento econômico envolvido nesse comércio, já que tais caravanas tinham que passar por territórios sob diferentes soberanias, negociando diretamente com os interesses e arbítrios de diversos chefes locais22. E, como já comentado no caso da peça roubada, poderiam sofrer represálias e até mesmo ataques físicos por não atentarem às regras sociais locais. Portanto, a história que acompanha a vida social dessas presas de marfim – e de pães de cera, peças de fazendas, garrafas de aguardente, armas de fogo, barris de pólvora, fios de missangas, enxadas de ferro –, não é uma história de “portugueses” em África, alguns tidos tradicionalmente inclusive como pioneiros da exploração lusa do interior do continente23, e nem mesmo só de comunidades intermediárias entre o domínio colonial e as autoridades autônomas, geralmente chamadas de luso-africanas24. A história do comércio de longa distância também é a história de vários conjuntos diversos de agentes

20SANTOS, Maria Emília Madeira, Perspectiva do Comércio Sertanejo do Bié na Segunda Metade do Século XIX, in: Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX), Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 11–12. 21 A expressão “autoridades africanas autônomas” é proveniente de: DIAS, O Kabuku Kambilu, p. 15–17, 22–23. 22SANTOS, Perspectiva do Comércio Sertanejo do Bié, p. 5; HENRIQUES, Isabel Castro, Integração do comércio no religioso, in: O Pássaro do Mel - Estudos de História Africana, Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 46–48. 23 Para exemplo dessa linha interpretativa que vê os sertanejos como pioneiros da exploração portuguesa, alimentando um discurso de legitimação da dominação colonial portuguesa sobre o continente africano, ver: MIRANDA, José de; BROCHADO, António, Silva Pôrto: “O Sertanejo”, in: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da (Ed.), Viagens e Apontamentos de um Portuense em África: Excerptos do “Diário” de António Francisco da Silva Pôrto, Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca - Agência Geral das Colónias, 1942, p. 5–10. O principal trabalho de problematização dessa narrativa, apontando não só os contextos distintos que envolvem esses "pioneiros" de meados do XIX, assim como o protagonismo de agentes africanos na história das caravanas de exploração do interior de Angola, é: HEINTZE, Beatrix, Pioneiros africanos: caravanas de carregadores na África Centro-Ocidental (entre 1850 e 1890), Lisboa: Editorial Caminho, 2004, p. 21–36. Para um trabalho recente que ainda reforça a experiência sertaneja como a de exploradores do continente, ver: ROSA, Frederico Delgado; VERDE, Filipe, Exploradores Portugueses e Reis Africanos: Viagens ao coração de África no século XIX, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013, p. 133–158. 24 Esse termo analítico tem grande tradição de uso entre a historiografia sobre o Império Português moderno em geral, e sobre Angola em particular. Tradicionalmente os sertanejos do Bié são classificados como um grupo luso-africano – porém, como explicarei na sequência, durante o texto utilizarei os termos de época presentes nas fontes primárias, a exemplo de "sertanejos". Para críticas aos usos da historiografia quanto às noções de luso-africanidade, ver: ITO, Alec Ichiro, Usos, Reusos e Abusos: atravessando “fronteiras” e “luso-africanidades” nas historiografias de Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau para os séculos XV, XVI e XVII, Revista Brasileira de Estudos Africanos, v. 4, n. 8, p. 115–134, 2019.

23 africanos, indiretamente ligados com as tramas do império português, e cuja história ainda pouco sabemos. Como já foi dito, uma das maiores necessidades para a realização do comércio de longa distância, tanto para a formação das caravanas, quanto para a passagem segura dessas comitivas pelos caminhos do interior do continente, era a negociação constante com as chefias africanas, os sobas25. Além disso, em último caso, eram as próprias chefias africanas, diretamente interessadas na passagem das caravanas em suas terras, como afirmou explicitamente na epígrafe desse texto o soba Cutumbuca, por ocasião da visita de oficiais de Silva Porto no trajeto entre o Lui (Barotse) e Moçambique. Eram esses chefes que decidiam os produtos que eram utilizados nas trocas pelos gêneros desejados pelos europeus, interessados principalmente nas fazendas europeias e asiáticas, armas de fogo, pólvora, aguardente – além de diversos outros produtos como missangas, contarias, corais e enxadas de ferro26. Essas chefias, definiam quais mercadorias seriam demandadas no interior, e, portanto, forçavam o estabelecimento de redes oceânicas que permitissem a chegada de muitos desses produtos importados à costa de Angola; além disso, também eram elas que definiam as regras de troca e circulação desses produtos, tanto locais como importados, ao desenvolverem os monopólios régios ou das elites dominantes sobre a

25 Originalmente o termo soba vem do kimbundu e era utilizado para os mandatários locais subordinados ao rei do Ndongo, antigo estado localizado na região do rio Kwanza. No entanto, é frequente que as fontes portuguesas em Angola se refiram a mandatários africanos em geral como sobas, mesmo em regiões não falantes do kimbundu. CARVALHO, Flávia Maria de, Entre Avassalamentos e Estratégias: sobas como agentes históricos das conquistas portuguesas em Angola (séculos XVII-XVIII), in: CARVALHO, Flávia Maria de; SILVA, Gian Carlo de Melo (Orgs.), África & Brasil: Histórias que cruzam o Atlântico (séculos XVI-XIX), Maceió: EDUFAL, 2017, p. 18–20. No caso de Silva Porto, esse termo é usado para qualquer mandatário africano com quem se depara, desde os chefes do Planalto Central, falantes de umbundu, que utilizavam o termo osoma, como os chefes do leste de Angola, os soberanos do Barotse e até mesmo os mandatários das regiões das atuais Zâmbia, Malawi e Moçambique, cujas terras foram visitadas pela caravana de Silva Porto que foi por terra até o Oceano Índico. 26 Márcia Cristina Pacito Fonseca de Almeida, que estudou as trocas de objetos realizadas durante a Expedição do major Henrique de Carvalho para a Lunda entre 1884 e 1888, demonstra como os portugueses reconheciam a importância de se saber as demandas dos chefes do interior, tanto ao apontarem uma série de objetos específicos destinados diretamente para alimentar a demanda das chefias africanas com quem Carvalho provavelmente se encontraria, como com a exigência de que o major registrasse as mercadorias mais demandadas pelas chefias com quem se encontrasse para informar as associações comerciais portuguesas que patrocinavam sua expedição de quais seriam os produtos que fariam mais sucesso para se exportar para a dita região. ALMEIDA, Márcia Cristina Pacito Fonseca, Comércio, bens de prestígio e insígnias de poder: As agências centro-ocidentais africanas nos relatos de viagem de Henrique de Carvalho em sua expedição à Lunda (1884-1888), Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 130–132, 142–143.

24 circulação de alguns produtos, como as armas de fogo em Kasanje27, ou o marfim no Barotse28. Além dos sobas, outros agentes africanos que moldavam cotidianamente as dinâmicas do comércio de acordo com suas demandas e resistências eram os membros das caravanas. Eram milhares de homens e mulheres africanos que saíam todos os anos de suas residências e atravessavam centenas de quilômetros para o interior do continente, em viagens que podiam durar mais de 200 dias. Além do papel fundamental desses sujeitos na organização interna das caravanas, no ritmo da caminhada e transporte das cargas, eles também sabiam reivindicar os seus direitos, notadamente condições de trabalho e vida que considerassem minimamente aceitáveis, podendo, como fizeram várias vezes, interromper a marcha de caravanas – ou mesmo abandoná-las no caminho, se não fossem cumpridas as suas exigências29. O recrutamento desses trabalhadores, assim como seu disciplinamento e o controle cotidiano sobre o seu trabalho, dependia diretamente de intermediários africanos, os chamados pombeiros30, que administravam cada um o seu próprio grupo de carregadores,

27 HENRIQUES, Isabel Castro, Armas de Fogo em Angola no Século XIX: uma interpretação, in: SANTOS, Maria Emília Madeira (Org.), Actas da 1.a RIHA - Relação Europa-África no 3o Quartel do Século XIX, Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1989, p. 407–429. 28 HOGAN, Jack, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), Phd Thesis, University of Kent, Canterbury, 2014, p. 81–83. O controle sobre a circulação desses produtos que era exercido pelas chefias era o que valorizava tais objetos como bens de prestígio frente à sociedade como um todo. Assim, fortalecia a legitimidade do exercício de seu poder a capacidade que os chefes mais poderosos tinham de redistribuir tais mercadorias entre seus aliados e clientes. LANNA, Marcos, Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva, Revista de Sociologia e Política, n. 14, p. 173–194, 2000, p. 176–177. 29 COQUERY-VIDROVITCH, Catherine; LOVEJOY, Paul E (Orgs.), The Workers of African Trade, Beverly Hills: Sage Publications, 1985; SANTOS, Perspectiva do Comércio Sertanejo do Bié; HEINTZE, Pioneiros africanos; ROCKEL, Stephen J., Carriers of Culture: Labor on the Road in Nineteenth- Century East Africa, Portsmouth: Heinemann, 2006; SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos, Barganhando sobrevivências: os trabalhadores centro-africanos da expedição de Henrique de Carvalho à Lunda (1884-1888), Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010; SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos, Os trabalhadores Loandas da expedição portuguesa ao Muatiânvua (1884-1888), Varia Historia, v. 29, n. 51, p. 697–720, 2013; SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos, Sociabilidades em Trânsito: os carregadores do comércio de Longa Distância na Lunda (1880-1920), Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. 30 Segundo Willy Bal, o termo pombeiro tem uma longa história e aparece com diversos significados na documentação portuguesa. Mesmo que sua origem etimológica não seja clara, no século XVI era utilizado para denominar os brancos envolvidos no comércio na região do Kongo. Segundo Bal, a associação desse termo viria de "pumbo", referente por sua vez à importante feira comercial do lago Malebo (na época chamado de lago Mpumbu) e cujo significante foi expandido para as feiras comerciais em geral. Com o passar dos séculos, a dependência crescente dos comerciantes brancos de seus funcionários africanos que trabalhavam como intermediários nas feiras durante suas longas ausências, ajudou a deslocar o sentido da palavra para se referir a esses funcionários negros (livres ou escravos) de negociantes brancos, que é basicamente o sentido no período de Silva Porto. Bal aponta ainda como a associação direta dessa palavra com o comércio ambulante nos sertões fez com que a palavra se espalhasse para outras regiões de presença portuguesa, como foi o caso do Brasil colonial. BAL, Willy, Portugais Pombeiro “Commerçant Ambulant du ”, Annali Dell’Istituto Universitario Orientale - Sezione Romanza, v. VII, n. 2, p. 123–162,

25 dividindo entre si parte das cargas para empreendimentos próprios a serem realizados simultaneamente à viagem principal, comandada pelo sertanejo ou por seus imediatos. Assim, esse grupo foi ganhando com a expansão do comércio lícito no interior uma influência social crescente, sendo o comércio de longa distância uma oportunidade de buscarem ascensão econômica e política31. Como já dito anteriormente, no que diz respeito aos sertanejos, nesse trabalho procurarei utilizar os termos das fontes da época, no lugar de termos analíticos como comerciantes “portugueses”, “lusófonos” ou “luso-africanos”, que geralmente abarcam uma variedade muito grande de agentes sociais. Portanto, a comunidade de agentes residentes no Bié e contratados no litoral para formar caravanas de longa distância, sejam eles brancos, negros ou mulatos (com todos os matizes de leituras que esses termos sofrem no interior, como pretendo discutir no Capítulo 1), chamarei de sertanejos; os agentes contratados pelos sertanejos para recrutamento e gestão dos carregadores nas caravanas serão sempre chamados de pombeiros (dentre vários outros tipos de oficiais que fazem parte da sociedade caravaneira como os kesongos, macotas e kaleis, como detalharei no Capítulo 3); e os titulares das casas comerciais do litoral que contratam os sertanejos serão chamados de comerciantes, quando não tiver com outro sentido nas citações diretas das fontes. Mesmo entendendo os problemas de utilizar um termo tão amplo para esse grupo específico, essa distinção proposta por Mariana Candido ajuda a destacar a diferença da atuação desses sujeitos dos circuitos litorâneos com seus agentes contratados no interior32. Ao me referir de forma mais ampla e geral aos agentes envolvidos no comércio, utilizarei o termo negociante, inclusive porque, como demonstrarei ao longo do trabalho, praticamente qualquer agente envolvido no comércio de longa distância atuava diretamente como um negociante. Não só os pombeiros, mas os carregadores em geral, com suas diferentes origens, condições, especializações profissionais e atividades cotidianas envolvidas no transporte de cargas, também realizavam permutas ao longo do caminho com os gêneros que eram usados para o seu pagamento em espécie. Quando a caravana chegava no ponto final da viagem, os pombeiros e seus respectivos carregadores se dispersavam pela região

1965, p. 126–127, 139–147, 149–150; CANDIDO, Fronteras de esclavización, p. 44; HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 274–275. 31 HENRIQUES, Isabel Castro, Comércio e empresários em Angola na 2a. Metade do século XIX, in: Os pilares da diferença: relações Portugal-África séculos XV - XX, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2004, p. 393–413; HEYWOOD, Linda Marinda, Contested power in Angola: 1840s to the present, Rochester, NY: University of Rochester Press, 2009, p. 1–30. 32 CANDIDO, Fronteras de esclavización, p. 44–45.

26 produtora para realizarem viagens subsidiárias pelas áreas próximas com o objetivo de trocarem os bens importados que tinham recebido como pagamento por seu trabalho por gêneros como marfim e cera que, com intermédio dos sertanejos, também venderiam para os comerciantes do litoral33.

Mapa 1 – As Rotas do Comércio de Longa Distância em meados do século XIX34

Adaptado de: HENRIQUES, Isabel Castro. Percursos da Modernidade em Angola, p. 700. Adaptação realizada por Vladmir Sicca Gonçalves. A representação deveras esquemática dos pontos de passagem e das rotas foi mantida do mapa original, o que gera distorções ao se comparar, por exemplo, com os outros mapas do Planalto Central que serão apresentados ao longo desse trabalho.

Considerar o impacto desses diferentes sujeitos nas dinâmicas de funcionamento do comércio no interior do continente passa por ressaltar as particularidades regionais dessa rede de negociantes, pois as toneladas de marfim que chegavam na mesma época aos portos de Luanda ou do Loango provinham de regiões diferentes, sendo resultado da

33 Segundo Achim Von Oppen, só depois de 1874 que os comerciantes africanos do Planalto passaram a receber crédito direto das casas comerciais de Benguela, sendo evento determinante para o crescimento do comércio de borracha nessa época. OPPEN, Achim Von, Terms of Trade and Terms of Trust: The history and contexts of pre-colonial market production around the Upper Zambezi and Kasai, Münster: Lit Verlag, 1994, p. 81. Essa ambiguidade dos trabalhadores do comércio africano, de serem, ao mesmo tempo, trabalhadores e pequenos comerciantes, aplicava-se a vários contextos históricos e espaciais diferentes dentro do continente africano, como foi apontado no Capítulo introdutório de Catherine Coquery-Vidrovitch e Paul Lovejoy em coletânea clássica sobre o tema. COQUERY-VIDROVITCH, Catherine; LOVEJOY, Paul E, The Workers of Trade in Precolonial Africa, in: COQUERY-VIDROVITCH, Catherine; LOVEJOY, Paul E (Orgs.), The Workers of African Trade, Beverly Hills: Sage Publications, 1985, p. 9–24. 34 Ver, com destaque, a rota representada mais a sul do mapa, que conecta Benguela ao Bailundo, Bié, indo em direção ao Luvale. Como será comentado ao longo desse trabalho, no caso das rotas do comércio sertanejo, no entanto, importante rota que está ausente neste mapa é a que segue do Bié para leste, alcançando o rio Zambeze a sul do Luvale, no Barotse, na parte Oeste da atual Zâmbia, portanto, fora das fronteiras atuais de Angola – para além de outros destinos que eram levadas as caravanas dos sertanejos do Bié, como serão mais detalhados no Capítulo 2.

27 atuação de redes de diferentes atores sociais – o que é ocultado se não se considerar a biografia social desses objetos dentro do continente antes de serem exportados35. Mesmo diante de importantes estudos sobre o funcionamento do comércio de longa distância, e mesmo sobre as transformações sociais causadas pela expansão da produção e comércio de gêneros após o fim do tráfico atlântico de escravos para as Américas, torna-se necessário a realização de um estudo mais detido para esse fenômeno no contexto do Planalto Central angolano, compreendendo como tais processos globais de redefinição econômica se substanciam na realidade social cotidiana dos sujeitos europeus e africanos que estão fazendo esse comércio36. *** Tendo em vista o protagonismo desses atores descritos, a proposta dessa pesquisa é seguir as rotas do comércio rumo ao interior da África, analisando toda essa série de relações sociais que envolvem a produção e circulação das mercadorias antes de serem exportadas pelo Atlântico. Tais mercadorias, apesar de muitas delas estarem na pauta de exportação angolana nos séculos antecedentes, no século XIX tiveram papel fundamental na substituição dos escravos na balança comercial após a proibição do tráfico e, mesmo que continuasse intenso contrabando até a década de 1860, foram ganhando espaço de centralidade nas profundas transformações políticas, econômicas e sociais que marcaram as reconfigurações do colonialismo português na região37. Mesmo com as especificidades regionais, de forma geral o século XIX na África foi marcado profundas transformações sociais e políticas relacionadas, entre outros fatores, ao crescimento das interações com o comércio mundial em nova fase do capitalismo internacional. A maior oferta de produtos industrializados, em consumo cada vez menos controlado pelas elites políticas, servia como contrapartida para alimentar uma demanda crescente por produtos africanos provenientes do extrativismo, como a borracha, o marfim e a cera, e da agricultura, como algodão, plantas oleaginosas e cravos, cujas tentativas de

35 Ao se falar de biografia dos objetos, utilizamos o termo de acordo com a acepção de Igor Kopytoff em: KOPYTOFF, Igor, A Biografia Cultural das Coisas: a mercantilização como processo, in: APPADURAI, Arjun (Org.), A Vida Social das Coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural, Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 89–121. 36 Já na década de 1990, Jill Dias alertava a importância de estudos regionais que focalizassem nos impactos políticos e sociais da conversão das exportações para o comércio lícito, sendo necessário para aprofundar o entendimento mais geral desse processo complexo. DIAS, Jill, História da Colonização - África (séc. XVII- XX), Ler História, v. 21, p. 128–145, 1991, p. 128, 131–132. 37ALEXANDRE, Valentim, Origens do colonialismo português moderno (1822-1891), Lisboa: Sá da Costa Editora, 1979; SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 74,75; FERREIRA, Roquinaldo, Abolicionismo versus Colonialismo: rupturas e continuidades em Angola (século XIX), in: GUEDES, Roberto (Org.), África: brasileiros e portugueses - séculos XVI-XIX, Rio de Janeiro: Mauad X, 2013, p. 95–112.

28 controle da produção e circulação levaram não só a conflitos militares, mas a um inaudito crescimento da procura por mão de obra escrava dentro do continente, o que inclusive foi potencializado indiretamente pelo desvio da demanda oceânica para o interior após a proibição do tráfico. Como consequência das lutas entre chefes guerreiros pelo acesso às rotas internacionais e da proliferação de razias escravistas, espalharam-se pelo continente cenários de fragmentação e violência política, migrações em massa e turbulência social que antecederam a violenta ocupação colonial europeia do último quartel do século38. Para o Planalto Central de Angola, em particular, há uma fonte riquíssima de informação sobre o funcionamento cotidiano do comércio caravaneiro dentro desse cenário mais amplo das profundas transformações que eram testemunhadas no interior do continente. Essa fonte são os cadernos do sertanejo António da Silva Porto, portuense nascido de família humilde em 1817, Silva Porto teria emigrado para o Brasil aos 12 anos, residindo no Rio de Janeiro e Salvador, trabalhando em diversas profissões no comércio urbano retalhista. Em 1837 fez uma breve viagem para Angola, no entanto, voltou no mesmo ano para a Bahia – o que não se manteria por muito tempo por causa da eclosão da revolta da Sabinada, atravessando definitivamente o Atlântico para se instalar em Luanda no ano seguinte. Após continuar carreira como caixeiro no comércio urbano da capital de Angola, Silva Porto viu a oportunidade, em 1839, de dedicar-se ao comércio de longa distância, sendo contratado como funcionário em uma caravana comercial que seguia as margens do rio Kwanza até a região de sua nascente, no Planalto Central, no território do poderoso sobado do Bié39. Estabelecendo sua residência no interior desse reino em 1841, na sua propriedade rural batizada de Belmonte, principal residência e unidade econômica familiar até o final

38 COQUERY-VIDROVITCH, Catherine, Africa and the Africans in the Nineteenth Century: A Turbulent History, New York: M. E. Sharpe, 2009; GORDON, David M., The Abolition of the Slave Trade and the Transformation of the South-Central African Interior during the Nineteenth Century, The William and Mary Quarterly, v. 66, n. 4, p. 915–938, 2009; GORDON, David M., Wearing Cloth, Wielding Guns: Consumption, Trade, and Politics in the South Central African Interior during the Nineteenth Century, in: ROSS, Robert; HINFELAAR, Marja; PESA, Iva (Orgs.), The Objetcts of Life in Central Africa: The History of Consumption and Social Change, 1840-1980, Leiden - Boston: Brill, 2013, p. 17–40; WISSENBACH, Maria Cristina Cortez, Conectando o sertão e os oceanos: reflexões sobre redes comerciais, deslocamentos e centros de poder na África Central no século XIX (com especial referência a Katanga). In: REGINALDO, Lucilene & FERREIRA, Roquinaldo. África, Margens e Oceanos - Perspectivas de História Social. Campinas: Editora da Unicamp, 2021, p. 141-177. (no prelo). Texto gentilmente cedido pela autora, a quem agradeço. Para uma perspectiva comparada sobre os efeitos políticos e sociais do comércio de longa distância, ver: PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, Olivier, Long-Distance Trade and Economic Development in Europe and Black Africa (Mid-Fifteenth Century to Nineteenth Century): Some Pointers for Further Comparative Studies, African Economic History, v. 29, p. 163–196, 2011. 39 Biblioteca Pública Municipal do Porto (doravante BPMP). Ms. 1238. Silva Porto, António Francisco Ferreira. Viagens e Apontamentos de Um Portuense em África, 3º Volume-BIS, p. 48-49. (01/08/1863).

29 de sua vida. Silva Porto suicidou-se em 1890, após cerca de 50 anos de atuação no comércio sertanejo. Mesmo versado apenas nas primeiras letras, Silva Porto alimentou, a partir de 1846, de forma quase ininterrupta por cinco décadas, um diário no qual fazia apontamentos sobre sua vida no interior do continente, suas viagens e os povos com os quais convivia. Diferenciando-se radicalmente das narrativas de viagens dos grandes exploradores, que geralmente desconheciam o continente no período anterior ao início de suas viagens, e de outros sujeitos mais inseridos no cotidiano colonial angolano, que escreveram muito menos, Silva Porto deixou uma obra que, só a considerar o diário principal, possui mais de 4000 páginas manuscritas sobre regiões marginais, ou mesmo completamente autônomas, do império colonial. Imagem 1 – Estátua de Silva Porto no município do Kwito, Angola40

Retirado de: CEITA, Constança do Nascimento da Rosa Ferreira de. Silva Porto na África Central – Viye / Angola. Tese de Doutoramento em Estudos Portugueses, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2014, p. 274.

Ao longo de sua carreira, Silva Porto redigiu 13 volumes de um diário, por ele mesmo intitulado “Viagens e Apontamentos de um Portuense em África”, todos eles com

40 Vale o destaque que, no século XX, até a independência de Angola em 1975, a cidade do Kwito era chamada de “Silva Porto”.

30 dedicatória “aos meus compatriotas”, com claro interesse em fomentar os círculos intelectuais da metrópole com as informações que arrecadava na sua vida e carreira no interior. Os cinco primeiros volumes foram enviados, já com esse título, em 1869, para Lisboa, versão que ficaria sob a salvaguarda da futura Sociedade de Geografia de Lisboa, fundada em 187541. Em 1885, seria enviada uma versão reformulada desses primeiros cadernos, além de outros que foram sendo mandados nesse ínterim, totalizando 12 cadernos entregues para a Sociedade de Geografia Comercial do Porto e, após o fechamento dessa instituição, transferidos para a Biblioteca Pública Municipal do Porto42. Além de enviar seus diários para a metrópole, no recorte desta pesquisa, Silva Porto já tinha enviado dois relatos, por motivos diferentes, com informações concernentes ao interior do continente. O primeiro foi o relato da viagem que havia iniciado, e que foi concluída por seus pombeiros, da costa de Angola até a costa de Moçambique, acompanhando uma caravana zanzibarita, saindo de Benguela em 1853 e chegando na ilha de Moçambique no ano seguinte. No outro manuscrito, intitulado “Silva Porto e Livingstone”, o sertanejo comenta o livro de José de Lacerda, sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, “Exame das Viagens do Doutor Livingstone” de 1867, que dissertava sobre as acusações de envolvimento com o tráfico interno de escravos que o explorador britânico fez contra os portugueses residentes no interior da África, incluindo comentários sobre o encontro pessoal deste com o sertanejo ocorrido em 1853 no Barotse43.

41 Antes desse envio, sabemos que Silva Porto, no início da década de 1860, enviou para Lisboa uma versão de seu primeiro volume, relatando as três primeiras viagens, que não foi publicada por “falta de merecimento literário”, reenviando para a metrópole a versão completa de seu primeiro volume em 1862, agora incluindo relato de cinco viagens e intitulada “Cinco Viagens, ou Costumes e Usos Gentílicos”. Não sabemos para quem foram enviadas essas duas versões e, ao que me consta, seus manuscritos não sobreviveram aos dias atuais. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 248-250. (08/03/1862). Também não tenho a informação de quem recebeu essa remessa dos 5 volumes em 1869, antes de serem entregues à Sociedade de Geografia de Lisboa. 42 Os diários de Silva Porto foram publicados de forma fragmentária. Como resultado, até o presente momento boa parte desse material só está disponibilizado como manuscritos, presentes na Sociedade de Geografia de Lisboa e na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Ainda em vida, alguns excertos de seus últimos cadernos foram publicados no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Novas Jornadas de Silva Porto nos Sertões Africanos, Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa, 1885. Após a sua morte, seriam publicados três livros com partes de seus diários: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Silva Pôrto e a Travessia do Continente Africano, Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca - Agência Geral das Colónias, 1938; SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Viagens e Apontamentos de um Portuense em África: Excerptos do “Diário” de António Francisco da Silva Pôrto, Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca - Agência Geral das Colónias, 1942; SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário de António Francisco Ferreira da Silva Porto, Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1986. 43 Há várias informações interessantes no manuscrito “Silva Porto e Livingstone”, pois, para além dos comentários diretos à obra de Lacerda, o sertanejo realiza um balanço de suas atividades até 1867, revelando detalhes importantes sobre as viagens de seus empregados até o Barotse que antecederam à primeira viagem que o sertanejo fez pessoalmente à região em 1853. Infelizmente, por causa dos limites dessa pesquisa, essa

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Além de seus diários, Silva Porto alimentou cadernos de registros específicos, que também são fontes riquíssimas sobre o cotidiano das atividades comerciais no Planalto Central. Dentre estes cadernos, dois foram utilizados para essa pesquisa. Um deles é o “Memorial de Mucanos”, no qual Silva Porto registra todas as multas cobradas por causa de crimes (chamados de mucanos – termo que vale tanto para a multa, quanto para a contravenção44) que o sertanejo ou os seus dependentes haviam cometido contra as leis consuetudinárias locais durante toda a sua carreira, anotando o preço e as justificativas levantadas pelos acusadores45. A análise detida desse documento, principalmente no capítulo 1, pretende dar uma contribuição ao entendimento desses litígios judiciais, assim como entender a centralidade dos mucanos dentro dos processos de escravização no Planalto Central e a mediação de conflitos sociais entre os diferentes agentes que protagonizam o comércio analisado nas páginas desse estudo. O outro, seu “Livro de Cargas”, consistia em anotações provavelmente para uso próprio, nas quais são registradas a distribuição das cargas entre os carregadores que compunham a comitiva de cada uma das viagens realizadas no período entre 1879 e 1889, sendo composto por longa listagem com o nome dos carregadores e dos pombeiros que os contratavam e o conteúdo das cargas, entre outras informações46. Esses dois cadernos, assim como um conjunto documental diverso composto por rascunhos de seus escritos, correspondência oficial e pessoal, além de documentação pessoal da mais variada natureza, estão todos salvaguardados na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, para onde foi enviado o seu espólio pessoal após seu suicídio.

dissertação não se aprofundou sobre o interessante episódio do encontro entre Silva Porto e Livingstone no Barotse que, para além das disputas imperiais entre Portugal e Inglaterra, é um incrível testemunho das intrigas políticas internas da elite desse Estado africano e do funcionamento do comércio de longa distância na época, o que incluía o tráfico interno de escravos. 44 Segundo Roquinaldo Ferreira, mucano é um termo do kimbundu que significaria “litígio”, sendo termo cujo sentido se generalizaria para qualquer processo civil e criminal no interior. O autor aponta no mesmo texto que se utilizaria em Benguela, no lugar desse termo, os termos olimbo ou milonga, e várias derivações deste de acordo com a natureza do processo. FERREIRA, Roquinaldo, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the era of the slave trade, New York: Cambridge University Press, 2012, p. 99–100. No entanto, Silva Porto geralmente utiliza termos derivados do kimbundu, e não do umbundu, língua da região de Benguela, por causa de ter iniciado sua carreira em Luanda. Outro exemplo é o uso que faz da palavra libata, para fortaleza e residência, que em umbundu seria ombala. 45 SGL. Res. 1 – Pasta E – 4 – 2. Memorial de Mucanos, Bié 13 de Agosto de 1841, 69 p. 46 SGL. Res. Ms. 2 - B - 31. Livro de Cargas (1879 a 1889). Há ainda uma série de outros cadernos não publicados, sendo eles: SGL. Res. 2 – C – 7. “Notas para retocar a Minha Obra logo que as circunstâncias o permitam”, manuscrito incompleto de 1866; SGL. Res. 2 - B – 30 e Res. 2 – B – 31. “Copiador de cartas de Silva Porto”, sobre assuntos de caráter pessoal, composto por dois cadernos, referentes ao período de 1871 a 1890; e SGL. Res. Ms. 145 – E – 1. “Viagem ao Norte de um Portuense em África”, sobre expedição realizada entre 1879 e 1880. Para mais, ver o Anexo I dessa dissertação.

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Apesar de não terem sido integralmente publicados, os escritos de Silva Porto não são uma fonte intocada, sendo bastante citados em estudos tradicionais sobre a história de Angola no século XIX, a maioria deles consultados, citados ou analisados nesse trabalho47. Maria Emília Madeira Santos foi quem se deteve com mais rigor sobre a vida e a obra do sertanejo, com estudos sobre temas variados, mas focalizando principalmente na relação da experiência de Silva Porto, e de outros sertanejos de sua comunidade, com os exploradores do interior do continente. Madeira Santos seria também responsável por iniciar, na década de 1980, um projeto de digitalização dos manuscritos presentes na Biblioteca Pública Municipal do Porto, publicando o 1º volume dos diários, com notas explicativas e um longo ensaio de introdução sobre a trajetória do comércio sertanejo do Bié48. Mais recentemente, a historiadora Constança Ceita desenvolveu pesquisas sobre a trajetória pessoal de Silva Porto, analisando a experiência e vivência transcultural que o sertanejo constituiu ao longo dos quase cinquenta anos de residência no interior do continente ao procurar se integrar na sociedade do Bié. Dessa forma, a autora se deteve sobre o impacto do aprendizado das línguas africanas, da adoção da poligamia e da série de alianças matrimoniais realizadas pelo sertanejo e do convívio com a religião e alimentação locais, para a integração desse sujeito e de outros membros dessa comunidade nessa sociedade centro-africana49. Essa experiência transcultural de Silva Porto e dos outros sertanejos do Bié consistiu no que outros historiadores conceituaram como um processo de crioulização. Sem querer me aprofundar sobre as contradições teóricas e políticas que os debates sobre esse processo envolvem em contextos africanos, interessa aqui o que historiadores da

47 Entre eles: SANTOS, Maria Emília Madeira, Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola- Século XIX), Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998; HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola; DIAS, Angola; HEINTZE, Pioneiros africanos; HEYWOOD, Contested power in Angola; CANDIDO, Fronteras de esclavización. Sendo uma fonte menos explorada nos espaços acadêmicos de língua inglesa, segue praticamente desconhecida fora dos círculos dos estudiosos de Angola. Nesse sentido, sua contribuição para o entendimento do Barotse não foi suficientemente explorada pela bibliografia especializada, sendo uma das contribuições importantes do recente trabalho de Jack Hogan sobre escravidão nessa região. HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925). 48SILVA PORTO, Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário de António Francisco Ferreira da Silva Porto. O projeto não teve sequência, se resumindo à publicação do 1º volume. 49CEITA MIGUEL, Constança do Nascimento da Rosa Ferreira de, A Vida e a Obra do Portuense Silva Porto no Reino Ovimbundu - Bié (1839-1890), Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras - Universidade do Porto, Porto, 2001; CEITA, Constança do Nascimento da Rosa Ferreira, Silva Porto na África Central – Viye / Angola: História Social e Transcultural de um Sertanejo (1839-1890), Tese de Doutorado, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2014; CEITA, Constança do Nascimento da Rosa Ferreira, A Transculturação de Silva Porto na África Central – Viyè – Século XIX, Mulemba, v. 5, n. 10, p. 185–232, 2015.

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África e da diáspora já apontaram como uma experiência cosmopolita que os sujeitos envolvidos na crioulização desenvolveram ao vivenciarem as zonas de contato. Dominando códigos, linguagens e valores de várias esferas culturais, esses sujeitos teriam conseguido circular com mais facilidade entre as várias esferas das sociedades que atuavam, sendo vistos como intermediários privilegiados, tanto pelas autoridades coloniais, quanto pelas chefias africanas, para o lido com questões políticas e econômicas que envolviam tais encontros50. Por este motivo, também é importante para esse trabalho caracterizar a experiência dos sertanejos do Bié como o que Philip Curtin chamou de “diásporas comerciais”. Consistindo no deslocamento de comerciantes de uma cultura para centros de poder de outra, as diásporas comerciais caracterizaram diversas experiências históricas de comércio transcultural. Segundo Curtin, as diferenças identitárias sempre causaram suspeição entre os locais e os estrangeiros, envolvendo maiores ou menores níveis de violência a depender das conjunturas específicas, sendo fundamental a criação de arranjos institucionais para tentar garantir a confiança entre ambos os lados das negociações. Por essa razão, uma das variáveis mais importantes para o estudo dessas diásporas era a relação entre a comunidade comercial e os seus hospedeiros, sejam as autoridades políticas, seja a sociedade como um todo. A própria atividade comercial, que não envolvia diretamente processos produtivos, e mesmo assim gerava grandes oportunidades de enriquecimento, também gerava suspeição em muitos casos, tornando essencial que negociantes com a experiência transcultural dos sertanejos aprendessem a lidar e, de certa forma, manipular os ânimos das autoridades políticas e sociedades como um todo que os cercavam51. É importante destacar, no entanto, que o encontro dos povos do Planalto Central com a sociedade colonial

50 A referência clássica dessa produção é o ensaio de Ira Berlin: BERLIN, Ira, From Creole to African: Atlantic Creoles and the Origins of African-American Society in Mainland North America, The William and Mary Quarterly, v. 53, n. 2, p. 251–288, 1996. Para um levantamento desses debates para contextos africanos, em geral, e para Angola, em particular, ver: FERREIRA, Roquinaldo, “Ilhas Crioulas”: o significado plural da mestiçagem cultural na África Atlântica, Revista de História, n. 155, p. 17–41, 2006. Roquinaldo Ferreira caracteriza, como proposta de seu livro, a própria história de Angola nos séculos XVIII e XIX de acordo com a experiência transnacional dos agentes da colonização angolana dentro do eixo comercial do Atlântico Sul, propondo, portanto, uma história do império vista de baixo. FERREIRA, Cross- cultural Exchange in the Atlantic World, p. 8–10. Para mais sobre os agentes comerciais do eixo do Atlântico Sul e suas experiências transnacionais, ver: THOMPSON, Estevam C., O Atlântico Sul para além da miragem de um espaço homogêneo (séculos XV-XIX), Temporalidades, v. 4, n. 2, p. 80–102, 2012; CANDIDO, Mariana, Os Agentes Não-Europeus na Comunidade Mercantil de Benguela, c. 1760-1820, Saeculum - Revista de História, v. 29, n. João Pessoa, p. 97–124, 2013; FERREIRA, Roquinaldo, Biografia como história social: o clã Ferreira Gomes e os mundos da escravização no Atlântico Sul, Varia Historia, v. 29, n. 51, p. 679–695, 2013. 51 CURTIN, Philip D., Cross-cultural trade in world history, Cambridge: Cambridge University Press, 1984, p. 1–14.

34 portuguesa não era a única interação transcultural testemunhada pelos sertanejos, já que o próprio comércio africano dos povos da zona atlântica se expandia a leste, assim como expandiam os esforços por contatos mais diretos dos Estados da savana central com o comércio global, além das rotas ligadas às exportações pelo Oceano Índico, sendo os sertanejos angolanos protagonistas de uma dentre várias diásporas comerciais simultâneas52. Seguindo estas considerações, mais do que restringir este trabalho à trajetória pessoal de Silva Porto, meu interesse é estudar o conjunto de sujeitos históricos que foram conectados nas redes mercantis do interior. Portanto, como procurei argumentar anteriormente, o comércio de longa distância formava-se a partir de várias relações sociais protagonizadas por diversos sujeitos, europeus e africanos, e não só pelos chefes das caravanas. Com a riqueza de informações que são dadas nesses relatos diários por décadas, de forma quase ininterrupta, os cadernos de Silva Porto, que registram milhares de considerações cotidianas sobre eventos e reflexões pessoais do próprio sertanejo sobre sua vida, sua carreira e a situação e futuro de Angola, e do continente africano como um todo, podem ser fontes riquíssimas para compreender melhor esses sujeitos que estão diariamente no entorno do sertanejo. O comércio de longa distância na África Central é um tema que já foi bastante explorado pela historiografia, principalmente por causa da conexão dessa modalidade comercial com o fornecimento por séculos de pessoas escravizadas para o tráfico atlântico de escravos – a principal região de origem de escravizados levados às Américas53. Porém, como já apontou Mariza de Carvalho Soares, o foco da historiografia no comércio de escravos ofuscou o comércio de outras mercadorias que funcionavam por outros circuitos regionais, ou mesmo em outras etapas conectadas ao comércio de escravos, colocando em

52 Sobre os esforços de conexão pelos Estados do Centro do continente, ver: OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust; THORNTON, John K., A History of West Central Africa to 1850, Cambridge: Cambridge University Press, 2020, p. 312–350. Sobre a expansão do comércio com destino ao Índico, ver ainda: GORDON, Wearing Cloth, Wielding Guns; ROCKEL, Carriers of Culture. 53VANSINA, J., Long-Distance Trade-Routes in Central Africa, The Journal of African History, v. 3, n. 3, p. 375–390, 1962; VANSINA, Jan, Kingdoms of the Savanna, Madison & Milwaukee: University of Wisconsin Press, 1966; BIRMINGHAM, David, Trade and conflict in Angola: the Mbundu and their neighbours under the influence of the Portuguese, 1483-1790, Oxford: Clarendon P., 1966; MILLER, Joseph C, Way of death: merchant capitalism and the Angolan slave trade, 1740-1830., Madison, Wis.: Univ. of Wisconsin Pr., 1988; THORNTON, John Kelly, A África e os africanos na formação do mundo Atlântico 1400-1800, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004; CANDIDO, Mariana, An African slaving port and the Atlantic world: Benguela and its Hinterland, New York: Cambridge University Press, 2013, além de muitos outros.

35 segundo plano regiões, atores e rotas que permanecem pouco conhecidos pela historiografia especializada54. Focalizando nas dinâmicas internas do comércio em Angola no século XIX, antes e depois da proibição legal do tráfico de escravos para as Américas, o clássico trabalho de Isabel Castro Henriques, “Percursos da Modernidade em Angola”, procura não só apontar o funcionamento das redes comerciais de produtos variados pelo interior do continente, mas também mostrar as profundas transformações sociais pelas quais passaram as sociedades conectadas às redes do comércio de gêneros coloniais. Assim, a autora defende que vários grupos protagonistas dessas atividades comerciais atuaram como agentes de transformação (ou agentes de modernidade), espalhando novos valores e culturas, e intensificando as transformações sociais regionais durante a segunda metade do século. No entanto, o grande foco do trabalho é nas conexões entre a região da Lunda com o corredor do rio Kwanza, tocando de forma tangencial nas dinâmicas sociais, políticas e econômicas próprias do Planalto Central, mesmo que este estivesse conectado nessas redes mais ao norte55. Quem se dedicou mais diretamente às transformações sociais pelas quais passaram os povos residentes no Planalto Central de Angola a partir de meados do século XIX foi Linda Heywood, desde seu doutorado defendido na década de 1980, escrevendo vários textos que apontam para as profundas transformações políticas e sociais causadas pela integração dessa região ao comércio lícito, principalmente por causa do crescente protagonismo de sujeitos não pertencentes às linhagens reinantes dos sobados – notadamente agentes africanos intermediários das caravanas, como os pombeiros. Para Heywood, esse processo foi especialmente intensificado pelo crescimento da economia da borracha, a partir da década de 1870, e levou a particularidades no desenvolvimento

54SOARES, Por conto e peso, p. 61, 78. Em texto recente, a mesma autora procurou problematizar interpretações consolidadas sobre o funcionamento do comércio interno na Costa da Mina a partir da trajetória de um conjunto de mantas entregues em dádiva pelo rei do Daomé ao rei D. João VI e que, por essa razão, integravam o acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro. SOARES, Mariza de Carvalho, O comércio dos Wangara e as mantas mandês no Daomé (1810), AbeÁfrica: Revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos, v. 1, n. 1, 2018. Para uma discussão sobre circuitos comerciais negligenciados pela historiografia sobre Angola, ver o texto de Isabel Castro Henriques sobre o comércio de sal no interior do continente: HENRIQUES, Isabel Castro, Sal, comércio e poder em Angola, in: O Pássaro do Mel - Estudos de História Africana, Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 83–100. Em esforço comparativo, escrevi texto com Felipe Malacco para pensar as complexidades das redes comerciais do interior africano que envolvem essa multiplicidade de mercadorias que vão além de gente escravizada: MALACCO, Felipe Silveira de Oliveira; GONÇALVES, Ivan Sicca, Entre Senegâmbia e Angola: comércio atlântico, protagonismo africano e dinâmicas regionais (séculos XVII e XIX), Afro-Ásia, v. 62, p. 41–92, 2020. 55HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola. Sobre a noção de agentes de tranformação, ver também: MARGARIDO, Alfredo, Les Porteurs: forme de domination et agents de changement en Angola (XVIIe-XIXe siècles), Revue française d’histoire d’outre-mer, v. 65, n. 240, p. 377–400, 1978.

36 regional do Planalto que ajudam a entender a sua inserção histórica na ordem colonial, a partir da virada do século XIX para o XX, e pós-colonial, após a independência de Angola em 197556. Por outro lado, diferentemente de Heywood, Joseph Miller entende que esses conflitos entre elites administrativas e o poder central estão presentes em contextos anteriores, defendendo que a instabilidade política crescente causada pela expansão do comércio de longa distância está mais ligada ao fortalecimento das velhas elites do que propriamente a ascensão desses novos grupos sociais, como chefes de aldeias (sekulus) e pombeiros57. Como veremos nesse trabalho, para o período em estudo, o fortalecimento de sobas de territórios menores no caminho e aristocratas da corte (macotas) interferiu mais no cotidiano das caravanas e do exercício do poder no Planalto do que as novas elites em ascensão. Mas o processo apontado por Heywood, tanto da formação de novas elites políticas a partir do comércio, quanto do enriquecimento dos intermediários das caravanas, já resulta em transformações sociais a serem apontadas ao longo desse trabalho, e que se intensificaram a partir do boom do comércio da borracha no último quartel do século XIX. Com o foco nesses intermediários que transitavam entre diversos universos culturais, o trabalho de Beatrix Heintze “Pioneiros africanos: caravanas de carregadores na África Centro-Ocidental (entre 1850 e 1890)”, é uma referência fundamental para compreender o lugar desses sujeitos nas dinâmicas cotidianas das caravanas comerciais e científicas. Revisitando vários dos relatos dos “desbravadores” do continente africano, Heintze mostra o quanto estes empreendimentos de exploração e mapeamento do interior do continente dependeram diretamente de rotas e sujeitos envolvidos no comércio de longa distância, que atravessavam esses terrenos muito antes da chegada dos “heróis” brancos europeus. Ampliando consideravelmente a gama de sujeitos envolvidos no

56HEYWOOD, Linda M., Production, Trade and Power: the political economy of central Angola, 1850- 1930, Tese de Doutorado, Columbia University, New York, 1984; HEYWOOD, Linda Marinda, Porters, Trade and Power: The Politics of Labor in the Central Highlands of Angola, 1850-1914, in: COQUERY- VIDROVITCH, Catherine; LOVEJOY, Paul E (Orgs.), The Workers of African Trade, Beverly Hills: Sage Publications, 1985, p. 243–268; HEYWOOD, Linda M., Slavery, and Forced Labor in the Changing Political Economy of Central Angola, 1850-1949, in: MIERS, Suzanne; ROBERTS, Richard (Orgs.), The End of Slavery in Africa, Madison: University of Wisconsin Press, 1988, p. 415–436; HEYWOOD, Contested power in Angola. 57 MILLER, Joseph C., The paradoxes of impoverishment in the Atlantic zone, in: BIRMINGHAM, David; MARTIN, Phyllis M. (Orgs.), History of Central Africa - Volume One, London; New York: Longman, 1983, p. 125–127; MILLER, Joseph C., Angola central e sul por volta de 1840, Estudos Afro-Asiáticos, v. 32, n. Rio de Janeiro, p. 7–54, [1980] 1997, p. 30. Por outro lado, o impacto do crescimento do comércio no século XIX sobre o fortalecimento ou enfraquecimento dos Estados do interior do continente em si também é fruto de debate, e suas conclusões dificilmente permitem uma explicação geral que valha para todos os contextos territoriais da África Central. Sobre esse debate, ver: GORDON, Wearing Cloth, Wielding Guns, p. 17-40.

37 desenvolvimento e no cotidiano dessas viagens, a autora ainda consegue mapear alguns esboços biográficos de agentes africanos e suas famílias que transitavam entre as zonas de influência europeia e africana e que, eles sim, seriam os verdadeiros pioneiros da exploração territorial do interior de Angola58. Com clara inspiração no trabalho de Heintze, Elaine Ribeiro, em vários de seus estudos, deu importante contribuição para a história social do trabalho dos carregadores dessas caravanas, apontando sua importância na história das caravanas científicas, assim como demonstrando seus espaços de negociação e reivindicação diante de condições de vida e trabalho que geralmente eram bastante violentas. Avançando, portanto, no foco somente dado aos grupos intermediários da sociedade caravaneira que foram conseguindo crescente influência na segunda metade do século XIX, em detrimento das chefias africanas que estariam cada vez mais enfraquecidas, mas também mostrando a agência direta da maioria dos trabalhadores africanos das comitivas que, em último caso, também tencionavam o funcionamento interno das caravanas59. Nesse sentido, as experiências de Silva Porto e seus companheiros de viagem foram muito mais análogas às dos intermediários que circulavam pelo interior do continente por causa do comércio de longa distância do que a dos exploradores que chefiaram as missões científicas da segunda metade do século. Por um lado, o sertanejo fazia parte dessa malha de agentes de origem e influência atlântica que se espalhavam pelo interior e se identificavam de acordo com as conveniências do que Jill Dias cunhou de novas identidades africanas, aproveitando as vantagens de se associarem à empresa colonial, ao mesmo tempo em que se aliavam a chefias autônomas em busca de vantagens comerciais – um fenômeno que não se resume ao século XIX60. Por outro, faziam parte dessa malha comercial africana mais ampla, em grande expansão nos oitocentos por toda a África Central, interferindo direta e indiretamente na política dos Estados africanos em um contexto de crescente violência e deslocamentos populacionais em massa ao conectarem novas regiões às demandas econômicas da zona atlântica. Assim, para além de sujeitos

58HEINTZE, Pioneiros africanos. Para a importância desses intermediários para construção do conhecimento em contextos transculturais, ver também: RAJ, Kapil, Go-Betweens, Travelers, and Cultural Translators, in: LIGHTMAN, Bernard (Org.), A Companion to the History of Science, Chichester: Wiley Blackwell, 2016, p. 39–57. 59SANTOS, Barganhando sobrevivências; SANTOS, Sociabilidades em Trânsito. Como será aprofundado no Capítulo 3, o tema dos trabalhadores do comércio africano foi bastante explorado também para outros contextos regionais, como por exemplo os ensaios da coletânea: COQUERY-VIDROVITCH, Catherine; LOVEJOY, Paul E (Orgs.), The Workers of African Trade, Beverly Hills: Sage Publications, 1985. Ver também, em especial: ROCKEL, Stephen J., Carriers of Culture: Labor on the Road in Nineteenth-Century East Africa, Portsmouth: Heinemann, 2006. 60 DIAS, Novas identidades africanas em Angola no contexto do comércio atlântico.

38 ligados ao processo mais amplo de conexão do interior da atual Angola ao Mundo Atlântico, tais sujeitos também foram agentes de transformação ao serem protagonistas da expansão comercial centro-africana do século XIX61. Assim, tendo em vista estas contribuições para os estudos sobre comércio de longa distância na África Central, proponho que, com essa fonte escrita por um sujeito inserido em uma zona de contato cultural, mesmo que seja orientada para um público europeu e especificamente para o fomento de projetos coloniais, é possível realizar uma leitura por um prisma africano, privilegiando o conhecimento sobre os negociantes de diferentes carizes e sobre as sociedades centro-africanas em que eles se inseriam. O objetivo deste trabalho, portanto, foi o de colher informações sobre os agentes africanos que aparecem na proposta de Elaine Ribeiro de analisar os interstícios do discurso colonial, ou seja, de perceber o quanto viajantes europeus, que escreveram seus relatos com objetivos e públicos ligados aos projetos coloniais, tiveram que reconhecer a agência dos sujeitos africanos do seu entorno, seus interesses e lógicas, para assim cumprirem seus objetivos, sejam comerciais, sejam políticos. Dessa forma, os relatos de viagem são mais interessantes e ricos do que os próprios esforços explicativos dos “usos e costumes” dos povos por onde passavam, já que aparecem vozes africanas e eventos não premeditados que, apesar de não serem o interesse inicial dos escritores europeus, são preciosidades para os historiadores sociais62. Ao observar as escolhas e estratégias desses diferentes agentes nos conflitos cotidianos narrados por Silva Porto, podemos fazer uma história social do comércio que mostre como os termos de negociação eram constantemente tencionados por projetos individuais e coletivos63. Seguindo a proposta de Oppen de pensar o comércio a partir de esforços de contínuas confirmações e renegociações dos termos das trocas entre as partes envolvidas, em um contexto de crescentes disputas por poder e recursos; assim, pensamos

61 HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola; HENRIQUES, Comércio e empresários em Angola na 2a. Metade do século XIX. 62 SANTOS, Barganhando sobrevivências, p. 37–42, 46, 125. Heintze já apontava nesse sentido em seu livro ao defender o quanto as narrativas de viagem tendem a ser mais ricas do que os esforços etnográficos. HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 35. Para um levantamento de outros tipos de abordagem sobre relatos de viagem, focalizando na construção de representações europeias, ver: MALACCO, Felipe Silveira de Oliveira, O Gâmbia no Mundo Atlântico: fulas, jalofos e mandingas no comércio global moderno (1580-1630), 2a edição. Curitiba: Brazil Publishing, 2019, p. 38–40. 63 Sem reivindicar filiações teóricas, nossas reflexões sobre cotidiano foram influenciadas por: LÜDTKE, Alf (Org.), The History of Everyday Life: reconstructing historical experiences and ways of life, Princeton: Princeton University Press, 1995; LÜDTKE, Alf, Sobre los conceptos de vida cotidiana, articulación de las necesidades y “conciencia proletaria”, Historia Social, v. 10, p. 41–61, 1991; ELEY, Geoff, Foreword, in: LÜDTKE, Alf (Org.), The History of Everyday Life: reconstructing historical experiences and ways of life, Princeton: Princeton University Press, 1995, p. vii–xiii.

39 o comércio como sendo moldado no seu próprio cotidiano, o que serve não só evitar a essencialização das atitudes dos agentes portugueses e africanos, mas também para evitar a noção de que estamos explicando o funcionamento do comércio sertanejo64. Mais do que uma visão prescritiva de quais regras precisavam ser respeitadas para ter o sucesso das operações comerciais no interior, o que tentamos reproduzir nas páginas dessa dissertação foi um aprendizado mútuo nas relações de política, comércio e trabalho que eram envolvidas nas redes sertanejas, ao mesmo tempo que as profundas e ágeis transformações da época forçavam esses agentes a atualizarem os termos de suas vivências, sendo os esforços explicativos de Silva Porto muitas vezes contraditos pela realidade mutante da vida nos sertões. Optar por essa análise baseada no cotidiano não significa ignorar a importância das regras sociais e das prescrições que regiam a vida em caravana. Afinal, embora as caravanas mantivessem muitos de seus elementos organizacionais ao longo do século XIX, é importante ressaltar que as ações de desrespeito dessas regras internas das comitivas resultaram muitas vezes em conflitos em geral e, com frequência, em mucanos65. Por este motivo, recuperaremos no capítulo 3 a noção de “costume”, na acepção de E. P. Thompson, como um discurso de reivindicação de direitos e não como uma continuidade a-histórica avessa à modernidade66. Para tal, procurando realizar esse estudo em perspectiva que considere gama mais múltipla de sujeitos, o recorte temporal dessa pesquisa começa em 1840, com a formação de uma nova comunidade sertaneja na corte do Bié que se reconectou ao porto de Benguela no início da década. A data final do recorte temporal da investigação será 1869, ano em que, como já foi comentado, Silva Porto enviou a primeira versão de seus cadernos para seus correspondentes em Lisboa, momento em que o sertanejo também se muda para Benguela, onde residiria na década seguinte, tendo, portanto, realizado um balanço inicial de seus 30 anos de carreira nos sertões, testemunhando intensas transformações políticas e sociais ocorridas no interior do continente. No Capítulo 1, discuto a questão da inserção dos sertanejos dentro do reino do Bié, fazendo uma análise do contexto do Planalto Central e cercanias de Benguela durante a 1ª metade do século XIX, com destaque ao processo de fortalecimento dos grandes Estados

64 OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust, p. 22–23. 65 Para um trabalho que destaque a importância das prescrições sociais para o entendimento da organização interna das caravanas, ver principalmente: SANTOS, Sociabilidades em Trânsito. 66 THOMPSON, E. P., “Introdução: costume e cultura”. In: Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 13-24.

40 e da manutenção de uma comunidade sertaneja residente no Bié. O objetivo geral do capítulo é discutir a posição, importância e conflitos dessa comunidade de sertanejos com o soba e aristocratas da corte, os macotas. Para tanto, focalizei a análise em dois fenômenos fundamentais: a estabilização da uma rota comercial entre o Bié e a cidade de Benguela, processo que esteve ligado tanto a intrigas dos sertanejos com os administradores coloniais do hinterland de Benguela, quanto ao acordo firmado entre Silva Porto e o soba Mbonge (D. João Bongue, em Silva Porto) do Bailundo para passagem segura pelas terras desse poderoso chefe africano; e a cobrança de mucanos dos sertanejos, atento aos conflitos entre os agentes do comércio caravaneiro e sujeitos africanos de dentro e fora do Bié, e as estratégias da comunidade sertaneja ao lidar com esse sistema jurídico consuetudinário. Para tal, será privilegiada a análise de episódios narrados tanto nos diários de Silva Porto, quanto em seu memorial de mucanos. No Capítulo 2, procurei refletir sobre a integração do comércio de longa distância capitaneado pelos sertanejos, entre as décadas de 1840 e 1860, com as demandas de diferentes entidades, desde as casas comerciais de Benguela, até as várias chefias africanas em cujos territórios as caravanas passavam, com especial destaque para as demandas políticas e econômicas dos soberanos do Barotse, ponto final da maioria das viagens sertanejas desse período. De forma geral, nesse capítulo discutirei a circulação de mercadorias e seus diferentes usos no interior como tributos, dádivas ou moedas de troca. Ao final dele, analisarei eventos ocorridos na conjuntura de crise do comércio sertanejo, nos finais da década de 1860, para colocar na balança os impactos dos diferentes fatores levantados ao longo do capítulo nas dinâmicas cotidianas desse comércio e refletir sobre as transformações sociais que levaram ao seu declínio. Ao longo do capítulo, serão analisados diversos episódios do cotidiano das permutas no interior do continente, registrados nos vários volumes do diário de Silva Porto. No Capítulo 3, o foco é o cotidiano de trabalho dos carregadores da caravana. São analisados os mecanismos de recrutamento, a organização interna do trabalho nas caravanas, as condições de vida dos carregadores, os mecanismos de pagamento, entre vários outros fatores da vida cotidiana desses trabalhadores. Partindo do conhecimento sobre o funcionamento interno dessas caravanas, procurarei demonstrar como esses sujeitos em movimento, além dos seus intermediários de comando, desenvolveram suas próprias estratégias comerciais e mapearemos momentos de reivindicações mais diretas,

41 ou mais sutis, dentro dessa dinâmica cotidiana de negociação e conflito67. Nesse contexto de expansão das rotas e volumes das caravanas na África Central ao longo do século XIX, os carregadores consolidaram-se como uma das principais categorias profissionais da macrorregião, o que significa, portanto, que o esforço desse capítulo de compreender as condições de recrutamento e o cotidiano de trabalho e manutenção das caravanas pretende ser uma contribuição para a história do trabalho na África Oitocentista. Além disso, encerrei o capítulo analisando a viagem dos pombeiros de Silva Porto do Barotse até Moçambique, que levanta questões não só sobre o cotidiano das caravanas, mas também sobre as disputas históricas e historiográficas levantadas pelo tema da exploração territorial do continente. Além dos diários, será fundamental para esse capítulo a análise dos dados reunidos no Livro de Cargas de Silva Porto, assim como a documentação oficial envolvida na encomenda e recepção do relatório da dita viagem à contra costa. Dessa forma, assim como indicado no título desse trabalho, o objetivo final da pesquisa é mostrar como os entroncamentos entre as relações que geralmente são tidas como comerciais, de mercado, com as de outra natureza, as articulações políticas e as relações de trabalho, moldaram intensamente as formas e os termos do comércio que foram se consolidando nesse contexto social. Portanto, meu intento foi mostrar como, nas páginas de Silva Porto, há rastros de como, no cotidiano do comércio, da política e do trabalho nas sociedades dos sertões de Angola, os sertanejos e os centro-africanos foram, ao mesmo tempo, testemunhas e agentes das profundas transformações sociais, políticas e econômicas da África Central ao longo do século XIX.

67 Subscrevo a tradição, apontada por vários historiadores, da história social brasileira de destacar, para além do medo e ameaça das insurgências, a importância dos meios sutis e subversivos que os subalternos desafiavam o poder de seus senhores no cotidiano. NEGRO, Antonio Luigi, E. P. Thompson no Brasil: da recepção aos usos, Crítica Marxista, v. 39, p. 151–161, 2014. A expressão "negociação e conflito" é alusão clara a uma coletânea clássica dessa tradição: REIS, João José; SILVA, Eduardo, Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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Mapa 2 – As Rotas das Viagens de Silva Porto

Adaptado de: SANTOS, Maria Emília Madeira. Nos Caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX). Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 202. Adaptação realizada por Vladmir Sicca Gonçalves.

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Capítulo 1 - O Bié, os sertanejos e o Mundo Atlântico Em 1840, nos domínios do soba de Cangilla, às margens do rio Luio, afluente do Lungwebungu, estava estacionada uma caravana comercial proveniente do presídio português de Pungo Andongo. O soberano da terra, também chamado Cangilla ou Cabau, havia falecido nessa época. Segundo relatos dos carregadores membros da dita caravana, à noite, após decisão do conselho formado pelas autoridades regionais, o chefe da caravana, um “pombeiro quimbundo”, foi surpreendido ainda na cama pelos soldados do falecido soba e escolhido para ser sacrificado junto a outras vítimas locais para acompanhar o defunto mandatário. Diante dos protestos desesperados do negociante, supostamente os seus algozes teriam dito: “Pois que, negociante! Você não quer fazer negócios na outra vida com o nosso soba? Venha, nada de choros, que há de ser feliz; e depois volverá à sua terra!!!”68. Degolado na sequência, os funcionários desse negociante teriam fugido para o domínio vizinho, do soba Muatamjamba, distante apenas alguns dias de viagem69. Nessa mesma época, estava no domínio de Muatamjamba o jovem António da Silva Porto, recentemente iniciado em sua carreira sertaneja, que recebeu com assombro, e evidente identificação com o falecido negociante, já que, afinal, todos os chefes de caravana dependiam com maior ou menor intensidade da proteção dos sobas do caminho, estando à mercê das decisões políticas de autoridades africanas durante suas viagens. Além da dependência das caravanas dessa conflituosa relação com os chefes locais, esse episódio levanta também a reflexão sobre qual o lugar e importância que os negociantes brancos tinham entre as sociedades do interior do continente, ou seja, da necessidade de refletir sobre as razões que levaram o conselho de Cangilla a desejar que o negociante “fizesse negócios na outra vida com o nosso soba”, para o inequívoco azar do dito pombeiro. Desde os primeiros contatos com os povos centro africanos, negociantes de origem ou família europeia atuaram e residiram no interior da África Centro Ocidental, abrigando- se em territórios de soberanos que não necessariamente obedeciam ou ao menos eram

68 BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 26. (29/05/1858). Agradecemos a Mariana Candido por nos ter disponibilizado a sua versão deste caderno. Em outra versão da mesma narrativa Silva Porto registra na fala dos soldados “quimbar, venha acompanhar o soba (...) Quimbar, vai acompanhar o soba, não chore”. BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 32-33. (04/07/1866). Como será detalhado no 2º capítulo, o uso do termo quimbar para se referir a um negociante proveniente de um presídio português é uma informação relevante, já que era associado no interior tanto com “branco”, quanto com “comerciante”. 69 Há três versões desse relato em Silva Porto, levemente diferentes entre si: BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 24-26; Ms. 1238. Idem, 3º Volume-BIS, p. 84; Ms. 1239. Idem, 4º Volume, p. 32-33. (29/05/1858; 09/12/1863; 04/07/1866). No apontamento de 1858, ao contrário da fuga dos carregadores registrada no apontamento de 1866, que inclusive teriam abandonado suas poucas cargas para a pilhagem dos locais, Silva Porto afirma que após o degolamento do pombeiro, os moradores locais não causaram o menor dano à gente da caravana após realizarem o sacrifício exigido.

44 aliados do governo colonial português. Mesmo que essa presença nem sempre tenha sido pacífica e bem aceita pelos hospedeiros, em geral as riquezas provenientes do comércio de longa distância no qual esses forasteiros atuavam parecem ter sido bastante demandadas ao longo dos séculos pelos povos do interior. Nesse cenário, as alianças, desconfianças e conflitos dos sertanejos com as autoridades políticas do Planalto Central, desde a intensificação da pressão política portuguesa na região durante a segunda metade do século XVIII até a época de Silva Porto e seus colegas, são os temas desse capítulo.

1.1 O Bié e o Planalto Central de Angola Contrariando representações edênicas dos relatos europeus, a história dos povos da África Centro Ocidental é marcada pela escassez de recursos naturais. É fundamental para a compreensão histórica do desenvolvimento da região analisar a constante competição por recursos insuficientes, caracterizando as regiões que formam a atual Angola pela sua baixa densidade demográfica causada pelo fato da maioria dos territórios da região não terem capacidade produtiva para aceitar a vinda e instalação de novos contingentes populacionais. A busca incessante dos europeus desde o século XV por uma fonte paradisíaca de riquezas que não correspondia com a realidade concreta da região só serviu para o espalhamento de ruína e pilhagem, tornando os territórios cada vez menos capazes de oferecer os recursos que tanto desejavam70. Tal escassez ficava escancarada em momentos de crise, como em secas, guerras, enchentes e epidemias, sendo o regime de chuvas da região marcado pela irregularidade pelo menos desde o século XVI, restringindo o crescimento populacional mesmo em territórios mais bem favorecidos. Tais crises levaram ao colapso de sociedades inteiras, ao mesmo tempo que induziram a concentração populacional nas poucas áreas com regime de chuvas mais constante, formando oásis agrícolas envoltos por territórios desocupados71.

70 MILLER, Joseph C., The paradoxes of impoverishment in the Atlantic zone, in: BIRMINGHAM, David; MARTIN, Phyllis M. (Orgs.), History of Central Africa - Volume One, London; New York: Longman, 1983, p. 119–121; DIAS, Jill, Famine and disease in the history of Angola c. 1830-1930, The Journal of African History, v. 22, n. 3, 1981, p. 352. John Thornton em seu livro recente diverge das leituras que destacam uma caracterização dos povos da África Centro-Ocidental pela chave da miséria ou pobreza, demonstrando que, em comparação com outras sociedades pré-industriais como as da Europa Ocidental, os dados sociais e econômicos são bastante similares, em contraste com o fato de atualmente a África Centro- Ocidental ser uma das regiões mais pobres do mundo. THORNTON, John K., A History of West Central Africa to 1850, Cambridge: Cambridge University Press, 2020, p. 8–10. 71 MILLER, The paradoxes of impoverishment, p. 121–122; DIAS, Famine and disease, p. 350–351. Catherine Coquery-Vitdrovitch aponta que o período entre 1500 e 1630 parece ter sido mais úmido na história do continente africano, em contraste com um longo período de seca de 1630 a 1890. Dentro desse segundo recorte, a autora destaca que, durante o século XIX, houve períodos de umidade que foram suficientes para assegurar a recuperação populacional entre as conjunturas de crises, no entanto, no final do século as condições adversas se recrudesceram, intensificando os movimentos e concentrações

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Com tais limitações ecológicas, a distinção entre as zonas secas e úmidas era fundamental. No século XV, enquanto redes de comércio regional conectavam o litoral norte da África Centro-Ocidental a sistemas políticos centralizados nos planaltos mais úmidos e populosos do interior, a porção sul dessa costa, mais árida, foi ocupada por povoações menores concentradas na foz dos rios, que permaneceram mais autônomas frente aos povos do Planalto Central. Nos vales desses rios que nasciam no planalto, desenvolveram-se estabelecimentos agrícolas baseados na produção de sorgo e painço, plantações extremamente vulneráveis a secas severas. Ao mesmo tempo, na porção sul do planalto, nas franjas do deserto de Kalahari, desenvolveram-se sociedades agropastoris que revezavam o pastoreio com a produção agrícola em sistemas de transumância de acordo com as estações do ano. A convivência e migração dessas populações mais a sul, agrícolas e pastoris, que viviam sem a referência do Atlântico, marcou o padrão de relações dos povos da região com a sua territorialidade e se caracterizou por expansões territoriais sazonais que, na época das secas, tendiam a reconcentração demográfica nas margens dos rios72. Nesse cenário de migrações em massa e disputa pelas terras, a proteção oferecida por chefes guerreiros e pelas zonas altas dos planaltos foram valorizadas. No entanto, como será discutido na sequência, as estruturas das sociedades agrícolas valorizavam mais outras formas de autoridade política. A maior fonte de legitimidade, na realidade, vinha dos líderes que reivindicavam o controle das chuvas, elemento mais importante para trazer a estabilidade desses povos dentro dessas condições produtivas73.

populacionais, simultaneamente ao período das operações militares da conquista europeia do interior. COQUERY-VIDROVITCH, Catherine, Africa and the Africans in the Nineteenth Century: A Turbulent History, New York: M. E. Sharpe, 2009, p. 3–4. Mariana Candido critica essa produção historiográfica por tender a diminuir o impacto destruidor das razias escravistas nas sociedades africanas a longo prazo, considerando estas como outro elemento fundamental para se entender as migrações em massa e o despovoamento desses territórios inteiros, o que teria sido relativizado pelo foco de tais historiadores em secas, epidemias e crises de fome. CANDIDO, Mariana, An African slaving port and the Atlantic world: Benguela and its Hinterland, New York: Cambridge University Press, 2013, p. 17-18. 72 MILLER, The paradoxes of impoverishment, p. 121–123; HENRIQUES, Isabel Castro, As “fronteiras dos espíritos” na África Central, in: O Pássaro do Mel - Estudos de História Africana, Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 166. Thornton destaca a importância desse padrão de mobilidade espacial das populações da região para compreender a capacidade dos povos da África Centro-Ocidental de participar (e sobreviver) por séculos ao tráfico de escravos. THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 7–8. 73 MILLER, The paradoxes of impoverishment, p. 126–127. No século XIX a crença no poder de controle das chuvas ainda era generalizada. Roquinaldo Ferreira relata que o soba de Sokoval em 1826 culpou o capitão-mor do presídio português de por causa da seca que persistia na região, acusando o oficial português de feitiçaria e interrompendo o fornecimento de alimentos do presídio, gerando conflito que só foi resolvido quando recomeçou o período de chuvas. FERREIRA, Roquinaldo, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the era of the slave trade, New York: Cambridge University Press, 2012, p. 73–75. A caravana de Silva Porto encontra-se pelo menos em duas ocasiões com fazedores de chuva a quem, para a revolta do sertanejo, seus carregadores respeitavam e temiam. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 86; Ms. 1239. Idem, 4º Volume, p. 235-237. (16/12/1863; 24/11/1867; 25/11/1867).

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No entanto, o impacto das temporadas de secas, geralmente sucedidas por períodos de enchente, causados pela alta anormal da pluviosidade e a obstrução dos canais por areia e vegetação, ia além da indução de migrações. As economias locais das sociedades centro africanas eram afetadas pelas perdas de colheitas, impulsionando demandas do comércio regional para circulação de alimentos. No século XIX, regiões agrícolas como o e foram fundamentais para o desenvolvimento do comércio regional e de longa distância, não só por vender alimentos para as regiões onde as secas eram severas, mas também por atender a demanda de produtores de mercadorias intermediárias no comércio de longa distância, como era o caso do sal da Kisama, comprado com os alimentos dos distritos agrícolas portugueses e trocado por marfim e escravos em Kasanje74. Orientado para o mercado interno, o comércio regional de alimentos foi importante elemento para a conservação política, econômica e social das estruturas centro- africanas ao diminuir os impactos desagregadores das crises ambientais do interior de Angola durante o século XIX. No entanto, tais circuitos não receberam a mesma ênfase historiográfica que a produção agrícola orientada para a exportação atlântica no contexto do comércio lícito75. O Planalto Central de Angola se diferencia fisicamente de forma radical frente as regiões no seu entorno, o que induziu historicamente processos militares e comerciais como os descritos até agora. Distanciado do oceano por uma faixa litorânea de cerca de 160 quilômetros, seca e baixa, cheia de escarpas, o Planalto Central se caracteriza por ser uma região relativamente plana e uniforme com uma faixa de elevação entre 1000 e 1200 metros de altitude. Linda Heywood caracteriza a região ainda por possuir um segundo platô no centro do planalto, com vários picos mais altos e cortado pelos vales dos mananciais de importantes rios: o Kwanza, o Kunene e tributários dos maiores sistemas fluviais do leste de Angola - o Kwango-Kasai, o oeste do e o Kubango-Kwando76. A temperatura bastante mais amena do que a do litoral e a já apontada alta pluviosidade das margens desses rios permitiram o desenvolvimento de sociedades agrícolas na região, que foi registrada desde meados do século XVIII como o lugar mais povoado de Angola. Como

74 DIAS, Famine and disease, p. 353–355. 75 Sobre projetos coloniais e a produção agrícola para exportação após a abolição do tráfico, ver: FERREIRA, Roquinaldo, Abolicionismo versus Colonialismo: rupturas e continuidades em Angola (século XIX), in: GUEDES, Roberto (Org.), África: brasileiros e portugueses - séculos XVI-XIX, Rio de Janeiro: Mauad X, 2013, p. 95–112. 76 HEYWOOD, Linda M., Production, Trade and Power: the political economy of central Angola, 1850- 1930, Tese de Doutorado, Columbia University, New York, 1984, p. 3; MILLER, Joseph C., Angola central e sul por volta de 1840, Estudos Afro-Asiáticos, v. 32, n. Rio de Janeiro, p. 7–54, [1980] 1997, p. 8.

47 já dito, em tempos de fartura as populações do planalto se espalhavam pela região, no entanto, nas secas, povos das regiões vizinhas disputavam o acesso aos vales, sendo especialmente estratégica a defesa oferecida pelos líderes que controlavam os grandes picos do segundo platô77. A leste do planalto as condições geográficas eram bastante distintas, tendo uma vegetação mais pobre com solo arenoso, marcado por pântanos em áreas baixas. Com menor densidade populacional do que o planalto, como será apontado ao longo do trabalho, essa região, chamada genericamente de nganguelas por aqueles vindos do oeste, caracterizou-se como provedora de produtos não cultiváveis como peixe salgado, cera e mel, além de marfim proveniente da caça de elefantes. Sua grande descentralização política também geralmente é interpretada como uma das causas para que os povos da região fossem vítimas de razias por parte daqueles que vinham do planalto78. Mesmo assim, o planalto também era suscetível a desastres naturais, especialmente secas e nuvens de gafanhotos. O húngaro Lazló Magyar chegou a falar de imprudência dos locais nessas ocasiões por consumirem parte da colheita de milho reservada para o plantio, mesmo que fosse uma necessidade diante das pragas79. No entanto, o plantio de culturas de mandioca, batata doce e abóbora mitigava os efeitos da falta de alimentos na região e, em termos comparativos, os povos do planalto nunca sofreram por longas secas como as regiões ao seu sul e leste, mantendo-se, como já dito, como destino de fluxos migratórios originários dessas regiões80.

77 HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 3–6; MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 8. Seriam nesses conflitos, principalmente entre populações agrícolas e pastoris, que para Joseph Miller teriam surgido as primeiras divisões e autoidentificações dos povos da região, distinguindo-se por exemplo os povos ndombe do litoral, concentrados no vale do rio Koporolo, e os nkhumbi (humbe, em Silva Porto), pastores da planície dos rios Kunene e Kulevai. MILLER, The paradoxes of impoverishment, p. 124. 78 HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 7–8. Não existe, no entanto, uma interrelação direta entre povos organizados em estruturas políticas descentralizadas e uma pretensa condição de vítimas prioritárias das razias escravistas - afinal, há vários exemplos históricos nos quais grupos mais descentralizados, no lugar de vítimas prioritárias das razias, eram os seus principais agentes. MILLER, Joseph C., Way of death: merchant capitalism and the Angolan slave trade, 1740-1830., Madison, Wis.: Univ. of Wisconsin Pr., 1988, p. 148–149, 157, 168. O termo ngangela era uma expressão pejorativa em umbundu que afirmava que os ditos povos não eram pessoas, já que eram aqueles que foram vítimas de razias de escravização por parte dos povos do planalto. Como será discutido na sequência, esse termo não era usado pelos próprios habitantes do leste de Angola e não há nenhuma evidência de um sentimento de unidade entre os diversos povos que habitavam a leste do Planalto Central. SANTOS, Maria Emília Madeira, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), in: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da (Ed.), Viagens e Apontamentos de um Portuense em África. Diário de António Francisco Ferreira da Silva Porto, Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1986, v. 1, p. 353–354. Mesmo sendo genérico e pejorativo, utilizarei ao longo desse trabalho o termo ganguelas por causa da alta recorrência nos cadernos de Silva Porto, mas sempre considerando a artificialidade dessa generalização. 79 Magyar, 1859 apud HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 56. 80 HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 56. Silva Porto registra em 1840 e 1846 a ocorrência de nuvens de gafanhotos que comprometeram a abundância agrícola no Bié, gerando "pavorosa carestia" entre

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As conexões crescentes dos povos da África Centro Ocidental com o atlântico a partir do século XV trouxeram uma situação paradoxal nesse cenário de concorrência. Por um lado, pessoas de todos os estamentos sociais ganharam novas oportunidades de enriquecimento e mobilidade social graças ao comércio de longa distância, com acesso a bens de prestígio importados e armas de fogo contra os seus rivais, disponibilizando, também no planalto, uma série de vantagens competitivas àqueles que se associaram com os europeus da costa, especialmente com o estado colonial português81. Por outro lado, essa ligação não só significou a esses estados africanos uma dependência crescente frente às autoridades militares e aos comerciantes dos pequenos núcleos coloniais portugueses, mas também resultou a longo prazo na solidificação de padrões de violência para o fornecimento de cativos para o litoral, causando com isso profundas transformações nas estruturas sociais centro africanas, para além da interferência política direta portuguesa contra os chefes africanos. Mesmo que boa parte do território da atual Angola tenha sido conquistado por Portugal apenas nas últimas décadas do século XIX, a administração colonial portuguesa foi responsável pelo destronamento, substituição, punição e cooptação de diversos sobas da região de Benguela desde o século XVII, levando à destruição de vários estados do interior do continente mesmo antes da conjuntura oitocentista82.

esses povos. Entretanto, mesmo demonstrando certo sarcasmo e o seu racismo recorrente, o sertanejo comenta que os insetos eram recebidos com "alegria" pelos bianos, pois eram capturados aos milhares e cozidos para a alimentação. Se considerarmos a citação anterior e contemporânea de Laszló Magyar sobre o consumo de milho para evitar a perda para as pragas, podemos conjecturar que os bianos tinham plena consciência dos riscos vindos com os insetos. SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Costumes e usos gentílicos, in: Viagens e Apontamentos de um Portuense em África: Excerptos do “Diário” de António Francisco da Silva Pôrto, Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca - Agência Geral das Colónias, 1942, p. 191–192. Essa descrição etnográfica que Silva Porto fez dos usos e costumes dos povos do Bié são os únicos escritos de Silva Porto que serão citados nessa dissertação a partir da sua versão publicada. Como já foi exposto na Introdução, as versões publicadas dos escritos de Silva Porto são uma parte ínfima de seus cadernos e não registram as mudanças que a escrita de seus apontamentos sofreram em suas várias versões. Além disso, especialmente essa versão publicada pela Agência Geral das Colónias possui diversos erros de transcrição. Ao privilegiar o trabalho com os diários, não registrei para os “Costumes e usos gentílicos” as possíveis mudanças entre os manuscritos da SGL, BPMP e versão publicada, apelando, portanto, a essa última para referências nesse trabalho. Para aqueles que tiverem acesso somente aos escritos publicados, disponibilizarei um quadro informativo no Anexo I sobre o conteúdo das versões publicadas de Silva Porto, dentro de um inventário da totalidade de sua obra. 81 MILLER, The paradoxes of impoverishment, p. 119; SOREMEKUN, Fola, Trade and Dependency in Central Angola: The Ovimbundu in the Nineteenth Century, in: PALMER, Robin; PARSONS, Neil (Orgs.), The Roots of Rural Poverty in Central and Southern Africa, London: Heinemann, 1977, p. 83. 82 DIAS, Jill Rosemary, Angola, in: ALEXANDRE, Valentim; DIAS, Jill Rosemary (Orgs.), O Império africano: 1825-1890, Lisboa: Estampa, 1998, p. 334–335; MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 8; CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 238–239, 276–277, 280–281. Essa relação de dependência dos sobas frente ao poder colonial português por vezes também resultou na dependência da administração portuguesa para a sua proteção militar contra seus rivais. Ibid., p. 282. Para um balanço do impacto mais geral no continente dos movimentos populacionais no interior por causa do tráfico, ver: COQUERY-VIDROVITCH, Africa and the Africans in the Nineteenth Century, p. 12–13.

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Uma das características mais importantes das transformações sociais causadas pelo envolvimento contínuo de regiões da África Central com o tráfico atlântico foi a transferência do poder aos chefes guerreiros (em inglês, warlords). Joseph Miller fez a mais influente interpretação deste processo político-econômico. Percebendo um padrão que se repetiu no envolvimento de autoridades africanas com o comércio atlântico, Miller afirmou que, crescentemente interessadas nos produtos importados trocados pelos modestos contingentes de cativos disponíveis para a venda, as elites desses estados procuraram aumentar seu fornecimento de escravos, tornando-se agressivas e transformando as guerras e razias em endêmicas. Antigos líderes de centros populacionais que baseavam sua autoridade em elementos como o controle das chuvas rapidamente foram sendo vítimas das agressões desses mandatários militarizados, cujas ações despovoavam regiões e forçavam deslocamentos populacionais em massa, em busca de espaços de segurança disponíveis cada vez mais somente sobre a guarda de outros chefes guerreiros. Tal processo poderia ser intensificado e acelerado por desastres naturais como secas e enchentes. Esse processo que Miller considera uma revolução na organização político- econômica da região levaria depois dessa fase de violência cataclísmica a uma estabilização regional das regiões sob novo controle, comprando cativos para repovoar as regiões conquistadas a partir de novas zonas de guerra, funcionando a escravização, portanto, em uma lógica de fronteira, se deslocando cada vez mais a leste essas chamadas fronteiras de escravização, deixando para trás na zona atlântica sociedades escravistas mais profundamente envolvidas com o comércio atlântico. No entanto, esses chefes não tinham as virtudes associadas a idade, riqueza ou linhagem, baseando seu poder cada vez mais no poder coercitivo frente a lideranças locais, dependendo crescentemente das suas alianças com os comerciantes da costa para manterem a sua legitimidade política83. Segundo Constança Ceita, há pelo menos cinco versões sobre as origens do reino do Bié, expostas por tradições orais reproduzidas ou não em documentos portugueses. Todas elas associam a vinda de um caçador estrangeiro, de nome Viye, que chegou à região e se uniu a uma mulher local. A maioria das versões, incluindo a de Silva Porto, afirma

83 MILLER, Way of death, p. 140–141; MILLER, The paradoxes of impoverishment, p. 145; MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 16–17; GORDON, David M., Wearing Cloth, Wielding Guns: Consumption, Trade, and Politics in the South Central African Interior during the Nineteenth Century, in: ROSS, Robert; HINFELAAR, Marja; PESA, Iva (Orgs.), The Objetcts of Life in Central Africa: The History of Consumption and Social Change, 1840-1980, Leiden - Boston: Brill, 2013, p. 36. Baseei a tradução de warlord em "chefe guerreiro" a partir do próprio Miller em: MILLER, Angola central e sul por volta de 1840. Como será comentado na sequência, tal modelo de funcionamento das fronteiras de escravização foi bastante criticado pela historiografia mais recente.

50 que Viye seria natural da terra do Humbe, povos pastoris da região a sul do planalto84. É interessante, no entanto, o registro da tradição captada por Lazsló Magyar, cujo informante direto (ou indireto) possivelmente foi o soba Kayangula do Bié, pai de sua esposa Ozoro (ou Omoro). Nessa versão, Viye seria de origem imbangala, fazendo parte de uma associação de guerreiros que teriam partido da terra de Mulopwe em direção ao Oeste. Miller subscreve a hipótese dos chefes guerreiros do Planalto Central serem de origem imbangala e dominarem os métodos da "mágica de guerra" espalhada por causa do avanço das fronteiras de escravização. Recebendo como clientes e escravos grandes contingentes de refugiados, é bastante verossímil estimar que tais chefes não tinham a mesma origem de seus súditos85. No entanto, apesar de Ceita estimar que a intimidade de Magyar com Ozoro dá maior fidedignidade ao seu relato, John Thornton alerta sobre o uso de tradições orais para o estudo da história política dos estados africanos. O problema central desse tipo de fonte para Thornton é que as tradições orais são contadas e transmitidas por motivos práticos, em geral para reivindicação de direitos e poderes, o que está diretamente suscetível a manipulação política. Como apontado também por Beatrix Heintze, a sugestão de origens comuns entre povos, passando por tropos repetitivos como a alusão de irmãos ou parentes que haviam se separado no passado, era uma estratégia diplomática de associação política espalhada pelo comércio de longa distância, o que explicaria por exemplo a reprodução no século XIX de uma narrativa de origem lunda aos povos imbangala exatamente no período em que os contatos comerciais entre os dois povos estavam no seu auge. Para o caso do Bié, Thornton estima que a associação relatada por Magyar da origem do Estado do Planalto com a migração imbangala seja produto do crescente contato comercial dessa região com Kasanje e com a própria Lunda em meados do século XIX86.

84 CEITA, Constança do Nascimento da Rosa Ferreira, Silva Porto na África Central – Viye / Angola: História Social e Transcultural de um Sertanejo (1839-1890), Tese de Doutorado, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2014, p. 130–143. Silva Porto estima que Viye tenha vivido no “século sétimo”, o que não sabemos se por uso de expressão ou erro de transcrição o sertanejo de fato afirma que essa origem mítica do reino ocorrera no século VII. A maioria das estimativas atuais dos historiadores propõe uma origem do Bié no século XVII ou XVIII, apesar de só aparecer na documentação portuguesa em meados do XVIII, contexto em que, como será explicado na sequência, aumentou o interesse lusitano pelo planalto. SILVA PORTO, Costumes e usos gentílicos, p. 165–167. A narrativa do casamento de chefes estrangeiros com mulheres locais é recorrente em diversas tradições centro-africanas, como pode-se ver em: GORDON, David M., Invisible Agents: Spirits in a Central African History, Athens: Ohio University Press, 2012, p. 32–33. 85 Magyar apud CEITA, Silva Porto na África Central – Viye / Angola, p. 137–138; MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 17. 86 CEITA, Silva Porto na África Central – Viye / Angola, p. 138; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. xviii, 328–329, 339; HEINTZE, Beatrix, Comércio Distante, Notícias e Boatos: Estratégias de Comunicação Centro-Africanas (c. 1850-1890), in: A África Centro-Ocidental no Século XIX (c. 1850-1890): Intercâmbio com o Mundo Exterior, Apropriação, Exploração e Documentação,

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Com todos os problemas do uso dessas tradições orais, principalmente pela repetição das narrativas de migração, o que nos mais interessa na análise da formação histórica desse estado são as forças internas que disputam o seu poder. Mais a leste do que os outros estados do planalto, o Bié pode ter surgido da cisão de um estado anterior, conectado à região do Kwanza, cuja nascente se localizava no território biano, podendo assim inclusive não ser o umbundu sua língua original, sendo incorporado com as migrações e contatos crescente com os outros povos do planalto. Nesse arranjo histórico, os relatos europeus sobre a história biana pregressa à presença sertaneja na região a partir do último quartel do século XVIII registram sucessivos conflitos entre o soberano do Bié e seus sobas vassalos. Para dirimir estas tensões, possivelmente no reinado de Njilahulu (Gilla-Hull em Silva Porto)87 foi criado um grupo de servos dependentes, os chamados macotas, que eram escravos do Estado herdados pelos seus ancestrais, que como tais não poderiam ser vendidos e em geral sua escravização era por dívidas, não sendo, portanto, cativos de guerra ou comprados88. Os macotas serviam como ministros e líderes de guerra que se concentravam na capital e provavelmente assumiram o espaço de conselho pré- existente de nobres responsável pela escolha e investidura do soba, sendo importante mecanismo de centralização do poder na capital frente aos sobas subordinados, ganhando crescente poder e relevância na política interna, inclusive, como será explorado na sequência, às custas da legitimidade dos sobas89. Mais do que uma particularidade histórica do Bié, as tensões entre poder central e poderes locais são uma característica política estrutural dos Estados centro africanos. Com

Luanda: Kilombelombe, 2013, p. 218–220. Nesse sentido, vale a pena ler a autocrítica que Miller realiza aos seus trabalhos baseados nas tradições orais: MILLER, Joseph C., Tradição Oral e História: Uma Agenda para Angola, in: Actas do II Seminário Internacional sobre a História de Angola - Construindo o Passado Angolano: As Fontes e a sua Interpretação, Luanda: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 371–412. 87 Como já anunciado na nota preliminar, para me referir aos sobas do Planalto Central utilizarei sempre que possível as referências dos trabalhos de Constança Ceita e Gladwyn Murray Childs, por aproximar mais da grafia em umbundu do que nos relatos de Silva Porto. CEITA, Silva Porto na África Central – Viye / Angola, p. 144, 150; CHILDS, Gladwyn Murray, The Chronology of the Ovimbundu Kingdoms, The Journal of African History, v. 11, n. 2, p. 241–248, 1970. 88 O debate acadêmico sobre as diferentes relações de dependência em sociedades africanas interpretadas como "escravidão" é longo e cheio de nuances, sendo importante o destaque da coletânea seminal organizada por Suzanne Miers e Igor Kopytoff: MIERS, Suzanne & KOPYTOFF, Igor. Slavery in Africa: Historical and Anthropological Perspectives. Madison: Univ. of Wisconsin Press, 1977. Para um bom balanço da importância dessa publicação, suas críticas e desdobramentos, ver: HOGAN, Jack, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), Phd Thesis, Univ. of Kent, Canterbury, 2014, p. 23-37. 89 CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 302–303; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 302–303. Silva Porto define macota como "conselheiros; são todos os pretos de avançada idade que ocupam o primeiro lugar junto do Soba, bem como são os que resolvem todas as questões do povo da terra". SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 5. (19/05/1846).

52 a gênese histórica dessas entidades políticas ligadas às sociedades agrícolas das margens de rios, a organização social da região basearia na criação de grupos de parentesco estendidos cujas lideranças eram formadas por homens mais velhos que concentravam as riquezas. A expansão desses grupos com os novos contingentes de dependentes, no lugar de desmanchar esses arranjos locais, criou segmentações internas nessas sociedades, distinguindo aqueles que pertenciam às linhagens originárias, cada vez mais artificializadas, frente aos outsiders que eram dominados. A ideologia de linhagem assim baseou a estratificação social, não só hierarquizando relações de parentesco, mas também transformando idade e gênero em divisões sociais fundamentais. Quando incorporados esses poderes locais pelos Estados formados pelos chefes guerreiros, a legitimidade do poder baseado nas linhagens fez com que poderes centrais e locais estivessem em constante conflito, no arranjo que Miller classificou como estados segmentares. Assim, soberanos como o do Bié constantemente dependeram de alianças com as elites locais, tentando ao mesmo tempo erodir a sua autonomia, confiando para tal cada vez mais em autoridades como os macotas para permitir a sua soberania baseada na cobrança de impostos e arregimentação das tropas espalhadas ao longo do país90. As cisões internas dos estados segmentares e a demanda crescente por mão de obra escravizada para as Américas foram dois fenômenos que se alimentaram reciprocamente. Para além dos processos de expulsão de terras por causa de crise de secas, chefes guerreiros como os do Bié conseguiam grandes contingentes de gente escravizada empreendendo guerras anuais contra seus vizinhos ou rivais internos, que consistiam em razias em busca de gado, cativos e outros espólios, realizadas geralmente durante os meses de seca para inclusive conseguir suprimentos para os novos contingentes de dependentes que ganhavam com as ondas migratórias91. Apesar da importância fundamental dos conflitos entre autoridades africanas, historiadoras como Mariana Candido e Rosa Cruz e Silva destacaram que oficiais portugueses das cercanias de Benguela tiveram papel fundamental em fomentar conflitos entre os chefes africanos da região, inclusive interferindo diretamente em rivalidades internas dos Estados ou mesmo de dentro das linhagens reais,

90 MILLER, The paradoxes of impoverishment, p. 125–127; DIAS, Angola, p. 328–329; HEYWOOD, Linda M.; THORNTON, John K., African Fiscal Systems as Sources for Demographic History: The Case of Central Angola, 1799-1920, The Journal of African History, v. 29, n. 2, p. 213–228, 1988, p. 217. Sobre a recorrência dos conflitos dos sobas do Bié com seus familiares, macotas e/ou sobas vassalos, ver: SILVA PORTO, Costumes e usos gentílicos, p. 166–171. 91 DIAS, Famine and disease, p. 357.

53 tendo, portanto, participação direta nas estratégias violentas de escravização no interior do continente, para além das próprias expedições militares realizadas por tropas coloniais92. Incentivados ou não por oficiais portugueses, os estados do planalto faziam razias em busca de escravos de forma endêmica nos séculos XVIII e XIX. Com a maior fragilidade política nas regiões a sul e leste do Planalto Central, as ganguelas, os chefes guerreiros organizavam razias contra essas regiões em busca de escravos e de mercadorias lá produzidas. Segundo Silva Porto, o próprio ritual de investidura do soba do Bié incluía uma operação de guerra empreendida nas terras a leste dos rios Kwanza e Kukema, a quipunda, que incluiria a captura e sacrifício de uma vítima humana93. No entanto os conflitos entre os estados do planalto também foram constantes, havendo frequentes reconfigurações territoriais de lealdades de chefias locais a novos soberanos94.

92 CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 17; CRUZ E SILVA, Rosa, A saga de Kakonda e Kilengues: Relações entre Benguela e seu interior, 1791-1796, in: LIBERATO, Carlos et al (Orgs.), Laços Atlânticos: África e Africanos Durante a Era do Comércio Transatlântico de Escravos, Luanda: Museu Nacional da Escravatura, 2016, p. 86. 93 MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 19–20, 33; SILVA PORTO, Costumes e usos gentílicos, p. 174. Na mesma passagem, Silva Porto inclusive chega a afirmar que a última fase da investidura do novo soba incluía a quipunda da inacullo, em que a mulher principal do novo soba, a Inacullo, dirigia-se a uma povoação das vizinhanças e simulava uma razia, sendo que o chefe local deveria entregar à guerreira alguns animais para serem distribuídos às companheiras da comandante. 94 HEYWOOD; THORNTON, African Fiscal Systems as Sources for Demographic History, p. 225.

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Mapa 3 - Estados do Planalto Central de Angola

Retirado de: Childs, Gladwin Murray. Umbundu Kinship and Character. London: Routledge, 2018 [1949], p. 167. Existe uma série de historiadores que utilizam o termo ovimbundu, etnônimo utilizado durante o colonialismo português do século XX, para designar os povos residentes no Planalto Central nesse período95. Como será explicado na sequência, há controvérsias sobre se de fato esse termo foi utilizado ou não pelos locais, ou mesmo pelos portugueses, em períodos anteriores à conquista da região e posterior instalação do Estatuto do Indigenato em 1926. No entanto, a primeira problemática a ser considerada é se existia ou não alguma forma de identidade comum aos diferentes povos que residiam na região. Miller defende que, nesses processos de concentração populacional em torno dos vales dos rios desde o século XV, foram formadas a maioria das identidades étnicas da atual Angola, sendo o termo ovimbundu derivado da expressão mbundu, utilizada pelos povos do reino

95 Entre muitos outros, ver, por exemplo: HEYWOOD, Production, Trade and Power; HEYWOOD; THORNTON, African Fiscal Systems as Sources for Demographic History; HEYWOOD, Linda Marinda, Contested power in Angola: 1840s to the present, Rochester, NY: University of Rochester Press, 2009; SEBESTYÉN, Éva, A sociedade ovimbundu nos relatórios de viagens do húngaro László Magyar: sul de Angola, meados do século XIX, História: Debates e Tendências, v. 15, n. 1, p. 83–100, 2015; MILLER, Angola central e sul por volta de 1840; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850.

55 do Kongo para se referirem aos habitantes ao sul. Outros trabalhos mais recentes também defendem uma origem comum dos povos do planalto, que resultaria em proximidade cultural e linguística entre eles, além da crença de uma ascendência comum e pertença ao mesmo grupo, apesar dos conflitos internos entre essas autoridades, alimentados pelos portugueses96. Alguns autores, no entanto, associam a criação da ideia do senso de unidade entre os ovimbundu do planalto à atuação na região das missões cristãs do século XX, além de trabalhos acadêmicos de antropólogos e historiadores, considerando anacrônico o uso do termo ovimbundu para períodos anteriores97. Iracema Dulley associa essa criação missionária de uma identidade comum aos povos do planalto por causa do processo de conversão católica que foi considerado um sucesso. Mais otimistas do que seus correlatos protestantes, os padres das missões da Congregação do Espírito Santo registraram amenidade e receptividade dos locais à atuação missionária, principalmente em contraste com os povos ao sul que eram chamados na época de kwanhama. Por um lado, os alimentos e mercadorias oferecidos em troca do trabalho contratado em tais missões eram importantes atrativos em contexto de grande vulnerabilidade, causada pelas secas e crises de fome recorrentes, pelo fim da economia da borracha e pela apropriação de terras agrícolas pelos colonos brancos, além do risco de captura para o trabalho forçado colonial. Mas antes disso, a associação dos povos do planalto com o comércio de longa distância espalhou até o período colonial uma fama de assimilados, por vezes chamados de ovimbali98, sendo supostamente mais abertos à adoção dos costumes considerados civilizados – ou seja, da cultura europeia. Mesmo que os números de assimilados da região na prática tenham sido muito baixos, como em geral o eram em zonas rurais, a recepção supostamente mais positiva às missões cristãs no Planalto Central para Dulley seria uma

96 MILLER, The paradoxes of impoverishment, p. 123–124; Vansina, 2004 apud CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 16–17, 241. Apesar de utilizar o termo ovimbundu, Constança Ceita prefere utiliza a noção de identidade umbundu para se referir a o que unia esses povos no século XIX. CEITA, Silva Porto na África Central – Viye / Angola, p. 121–125. Sobre essa proximidade cultural, vale a pena relembrar a hipótese de Mariana Candido de que o Bié não tem origem comum aos outros estados do planalto, adotando a língua umbundu por causa de aproximação histórica e comercial com os vizinhos. Baseando-se no relato de João Nepomuceno Correia de 1797, Candido estima que o reino do Bié era provavelmente originário do Norte, mesmo que não possa afirmar que a língua anterior desse povo seja o kimbundu. CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 304. 97 CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 308–310. 98 Como será detalhado no 2º capítulo, ovimbali é o plural de quimbar, termo que por vezes pôde ser traduzido no interior como branco. No entanto, os negociantes vindos do planalto, europeus e africanos, eram chamados em geral no interior como quimbares ou mambari, mesmo que esse termo fosse, durante o século XIX, utilizado entre os povos do planalto para designar os escravos dos brancos.

56 estratégia de distinção social dos povos locais, os ditos ovimbundu, diante das violências perpetradas pelo colonialismo português em Angola99. No século XIX, no entanto, as identidades não eram tão fixas e consolidadas quanto seria mais tarde, na era do Indigenato. Mesmo que haja larga documentação colonial portuguesa como mapas, censos e listas que registravam como os súditos de Portugal se identificavam, ou eram vistos pelos compiladores desses dados, o termo ovimbundu está ausente dessa documentação. No lugar dele, outras identidades, novas ou antigas, aparecem na documentação, de acordo com as conveniências dos sujeitos históricos100. Nessa documentação, na realidade, os povos do planalto escolheram se identificar tendo como referências suas autoridades políticas: o Bié, Bailundo, Kitata, Kilengues, Kingolo, e não como ovimbundu. Essa escolha pode ser entendida em função dos chefes guerreiros oferecerem proteção e direitos aos seus súditos, não só no sentido militar, mas também na intermediação com os ancestrais e figuras espirituais da terra101. Uma possível resposta à alegação da ausência do termo ovimbundu na documentação portuguesa nos séculos anteriores ao século XX pode ser a recorrência do termo quimbundo. Sendo derivado do singular de ovimbundu, ocimbundu, traduzido do umbundu como "negro". Pelo menos desde a descrição de Cadornega, do final do século XVII, há a referência dos povos do Planalto Central como quimbundos em relatos

99 DULLEY, Iracema, Deus é Feiticeiro: Prática e disputa nas missões católicas em Angola colonial, São Paulo: Annablume, 2010, p. 43–52. Para um debate mais amplo sobre o uso dos termos referentes a etnicidades nos Estudos Africanos para o século XX e períodos anteriores, considerando tanto as invenções e reinvenções da intelligentsia imperial, assim como referência sociais pré-existentes no seio das sociedades africanas, ver: AMSELLE, Jean-Loup; M’BOKOLO, Elikia (Orgs.), No Centro da Etnia: Etnias, tribalismo e Estado na África, Petrópolis: Vozes, 2017. 100 CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 240, 243; CANDIDO, Mariana P., Slave Trade and New Identities in Benguela, 1700-1860, Portuguese Studies Review, v. 19, n. 1–2, p. 59– 75, 2011, p. 61, 63, 70. Sobre a criação e ressignificação de identidades em outras regiões de Angola, ver: DIAS, Jill, O Kabuku Kambilu (c. 1850-1900) : uma identidade política ambígua, in: ARQUIVO HISTÓRICO NACIONAL DE ANGOLA (Org.), Actas do Seminário: Encontro de povos e culturas em Angola, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 13– 53; DIAS, Jill, Novas identidades africanas em Angola no contexto do comércio atlântico, in: BASTOS, Cristiana; ALMEIDA, Miguel Vale de; FELDMAN-BIANCO, Bela (Orgs.), Trânsitos Coloniais: Diálogos Críticos Luso-Brasileiros, Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 315–343. 101 CANDIDO, Slave Trade and New Identities in Benguela, p. 72–73; CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 292–293. Candido mostra que mesmo nos registros realizados após a diáspora para as Américas, reunidos no trabalho de Mary Karasch, os escravos provenientes de Benguela utilizavam esses nomes dos estados como identidade, ao contrário de se chamarem de ovimbundu. Esse padrão também se repete no levantamento recente de Daniel Domingues da Silva, que mapeou a partir, tanto de fontes produzidas na diáspora - os levantamentos de africanos livres de Brasil e Cuba -, quanto em Angola - com o registro obrigatório de escravos exigido pelo Decreto de 14 de dezembro de 1854. SILVA, Daniel B. Domingues da, The Atlantic Slave Trade from West Central Africa 1780-1867, New York: Cambridge University Press, 2017, p. 108.

57 portugueses, diferenciando-os dos povos da costa102. Em Silva Porto, há em vários momentos a referência genérica aos povos do planalto como quimbundos, diferenciando- os principalmente dos ganguelas do interior. No entanto, o sertanejo via de regra também refere-se aos povos do interior de acordo com as suas lideranças políticas, mas descrevendo-os também em termos mais gerais, tais como “raça ganguela, tribo bunda” (mbunda). Esses apontamentos poderiam indicar, portanto, o reconhecimento de uma identidade mais ampla (a "raça") de acordo com a visão dos seus companheiros africanos de viagem, diferenciando-se dos povos do leste aos quais associavam como vítimas de suas razias, e unindo a elas a questão do referencial político, que provavelmente era como os povos de fato se identificariam (a "tribo")103. Não há em Silva Porto nenhuma referência a algum africano que se reivindique como um quimbundo, e muito menos algum que se identifique com o termo pejorativo de ganguela, havendo referência como "raça" aos mondombes (ndombe), mohumbes (humbe ou nkhumbi) e quimbangalas (imbangalas). Não encontrei, no entanto, qualquer referência genérica do sertanejo aos povos da região do Kwanza, os ambundus (mbundu); no entanto, vale lembrar que, no episódio que abre este capítulo, Silva Porto se refere ao negociante de Pungo Andongo como "pombeiro quimbundo" – se de fato tal pombeiro for natural do presídio português do corredor do Kwanza, pode-se sugerir que não houvesse nesse contexto distinção tão clara entre os povos a norte e sul do Kwanza, pelo menos em comparação à que existia entre os povos do planalto com os do seu leste.

102 Vale destacar, no entanto, que essa tradução de ocimbundu como sinônimo de "negro" foi feita em contexto de crescente racialização das relações entre portugueses e africanos, podendo ter um significado, como será dito na sequência, mais posicional frente a outros povos - também africanos, inclusive. NASCIMENTO, José Pereira do, Grammatica do Umbundu ou Língua de Benguella, Lisboa: Imprensa Nacional, 1894, p. 14; Cadornega apud CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 279. 103 Silva Porto nomeia como pertencentes à "raça ganguela" uma multiplicidade enorme de povos e entidades políticas, sendo eles separados nas "tribos" nhemba (nyemba), bambueira (mbwela), nhengo (nyengo), bunda (mbunda), gongello (vangongelo ou gongueiros), luena (lwena), luchiaje (luchaze), chegando inclusive em uma ocasião a usar esse termo para a "tribo" lui (Barotse). BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 92. (18/01/1848). A historiografia sobre Angola explorou muito pouco até agora sobre a história da região leste de Angola, onde habitaram essas "tribos ganguelas". Inclusive, há uma tendência de exacerbar o caráter descentralizado das autoridades políticas da região, sendo repetida de forma recorrente a afirmação de Magyar de que em 25 anos a maioria dos vilarejos das ganguelas desapareceram ou foram transplantados para outros lugares. HEYWOOD; THORNTON, African Fiscal Systems as Sources for Demographic History, p. 215–216. Por sorte, nessa pesquisa pude analisar uma fonte que registra viagens feitas nas ganguelas por um recorte maior do que o proposto pelo explorador húngaro, e percebemos por todo esse período a manutenção de várias lideranças políticas na região das ganguelas que se repetem nos relatos das repetidas viagens rumo ao interior, como é o caso do Cutti (Cuchibi), Muatamjamba, Cangilla e Lutembo. De fato, não podemos afirmar com certeza que o controle destas autoridades correspondeu por todo esse período aos mesmos territórios, mas as estratégias e predeterminações de rotas pelo comércio caravaneiro sugerem um cenário muito menos anárquico do que até então se propôs.

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Por causa dos conflitos constantes entre os estados do Planalto, diretamente ou indiretamente induzidos pelos europeus, mais do que uma identidade comum entre os súditos dos principais chefes da região, pelo contrário, foi precisamente por causa da fragmentação política entre os estados que dominavam o altiplano e seus conflitos endêmicos que foi possível o fornecimento de um fluxo constante e crescente de escravos para os mercados atlânticos por mais de 200 anos. Assim, a sugestão posterior de origens comuns entre os estados pode dizer muito mais sobre estratégias diplomáticas da própria expansão do comércio de longa distância, ou sobre as reações desses povos frente à situação colonial do século XX, do que sobre os processos históricos ocorridos de fato nos séculos anteriores104.

1.2 “Eis ali o vosso filho” Os portugueses, que instalaram sua base de operações em Benguela no século XVII, sempre tiveram um controle administrativo mais frágil nessa porção sul de seu território. Mesmo que no século XVIII Benguela tenha se tornado um dos principais portos escravistas do Atlântico, a atuação crescente de outros comerciantes europeus na região, tidos como contrabandistas pelos portugueses, além da atuação de negociantes brancos no interior que não respeitavam os regulamentos fiscais do comércio escravista, preocupavam a administração colonial portuguesa. Durante a Era Pombalina, o governador Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (1764-1772) decidiu interferir de forma mais direta no comércio da região, para tentar dirimir as evasões fiscais do comércio local. Para tal, Sousa Coutinho entendia ser necessário enfrentar os grandes Estados africanos do planalto, fortificando a presença militar portuguesa na região e instalando feiras oficiais nas quais os negociantes itinerantes seriam obrigados a deslocar seus negócios105. A base de atuação portuguesa no hinterland de Benguela até então era o pequeno presídio de Caconda, localizado na Hanya, que tinha uma posição frágil diante dos chefes guerreiros do planalto. Na década de 1640, no entanto, com a ocupação holandesa da costa, a atuação portuguesa em Caconda se expandiu, intensificando a importância desses negociantes na escravização da região, incluindo na intermediação com os novos reinos escravistas como o , formando redes de interiorização que se mantiveram e se expandiram após a restauração portuguesa do litoral. Um século depois, com uma intensa

104 CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 18–19, 309–310. 105 CANDIDO, Slave Trade and New Identities in Benguela, p. 59, 64–66; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 297–298.

59 seca no início dos anos 1750, a atuação desses sertanejos seria posta em risco com a migração para o sul dos chefes Cabundas e seus consecutivos assaltos aos estabelecimentos portugueses. Assim, iniciou o processo de maior interferência militar lusitana na região, com a organização de uma campanha armada a partir de Caconda, em 1755/1756, contra os Cabundas, e na década seguinte, uma campanha contra o soba de Katala, transferindo em 1769 o presídio de Caconda para seus domínios, cerca de 40 quilômetros mais ao interior do que o antigo presídio. Com a posição estratégica e a fertilidade do solo, o governador Sousa Coutinho desejava transformar o presídio em centro de operações de um domínio nominal bastante extenso, com 139 quilômetros de largura e 100 quilômetros de comprimento. Para além de base de operações militares, Caconda se tornou, a partir do último quartel do século XVIII, um importante entreposto comercial das rotas escravistas vindas do planalto, oferecendo segurança de passagem para os luso-africanos que atuavam no interior do território das grandes chefias106. Como o próprio Sousa Coutinho já tinha previsto, não demoraria muito para que os novos projetos portugueses para o controle do planalto entrassem em rota de colisão com os grandes chefes autônomos. Simultaneamente à expansão de Caconda, o reino do Bailundo, localizado a norte do Huambo, também expandiu seus domínios a oeste, preocupando Sousa Coutinho pelo fato deste Estado ameaçar não só o controle português sobre o altiplano, mas também a região do Kwanza. Enviando contingentes significativos de escravos para Luanda, os fluxos comerciais do Bailundo também iam para oeste, seguindo para a e Benguela, por um lado, e por outro, seguindo a noroeste até o rio Kuvo em Benguela Velha, onde negreiros franceses e ingleses compravam escravos desde 1750, o que permitiu à elite do Bailundo uma menor dependência frente aos negociantes portugueses. Sob mandato do sucessor de Sousa Coutinho, António de Lencastre, aumentaram as hostilidades abertas com esse reino e, entre 1773 e 1775, ocorreu a chamada Guerra do Bailundo, uma das maiores mobilizações militares portuguesas até então, atuando em duas frentes contra o Bailundo e sobados aliados, como Ngalangi, com a vitória portuguesa após a captura do soba Cingi do Bailundo pelos portugueses. Após a vitória, os portugueses tentaram impor como sucessor de Cingi o seu irmão Kapangano,

106 MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 22–23, 26; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 297; CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 257–258; CANDIDO, Mariana, Trade, Slavery, and Migration in the Interior of Benguela: The Case of Caconda, 1830- 1870, in: HEINTZE, Beatrix; VON OPPEN, Achim (Orgs.), Angola on the Move: Transport Routes, Communications and History - Angola em Movimento: Vias de Transporte, Comunicação e História, Frankfurt: Lembeck, 2008, p. 67–69.

60 no entanto, no ano seguinte o novo soberano foi destronado por uma conspiração na corte, que levou Ekwikwi I ao trono do país107. O interesse dos portugueses pelo planalto não se resumia somente ao controle do fluxo de escravos do altiplano para o litoral. Com a expansão da Lunda durante o século XVIII, o interesse português de acesso direto àquele que foi o maior estado africano da era moderna, não só pelos escravos, mas também pelas rotas de minérios, foi cerceado pelo controle rígido exercido pelos estados de Matamba e Kasanje sobre a travessia do rio Kwango, mantendo ambos o impedimento de passagem direta de caravanas vindas de Angola por suas terras pelo menos até meados do século seguinte. Principalmente no caso de Kasanje, que permitiu a constituição de uma feira oficial em seu território, o chefe africano foi capaz não somente de impedir o avanço português para a margem leste do Kwango, como também o avanço das caravanas da Lunda para a margem oeste, crescendo seu poder como intermediário obrigatório deste comércio108. No mesmo período, no entanto, os estados do Planalto Central estabeleceram uma rota mais a sul com a Lunda e a região do Alto Zambeze como um todo, conectando-se inicialmente com os chokwe, e depois com os luvale e lunda. Inicialmente Ngalangi, seguido por Bié e Bailundo, estabeleceram rotas diretas até o vale do Zambeze, tornando-se não só o centro demográfico, mas também o coração econômico da região, sendo visto esse eixo por Sousa Coutinho como uma oportunidade de se desviar do controle de Kasanje sobre o comércio interno109. Os esforços de alcançarem a Lunda foram empreendidos pelos portugueses tanto

107 MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 298–300; HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 107–108; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 298–300. A atuação estrangeira, principalmente francesa, na porção central e sul do litoral da atual Angola durante o século XVIII foi extensa e mobilizou vários povos rivais dos portugueses. Com importante fluxo de marfim desde finais do século XVII, e de escravos a partir da década de 1760, os chefes dos planaltos da Huíla e comandaram rotas que levavam mercadorias até o rio Kubal. Ligado a essas rotas autônomas esteve o fortalecimento do Humbe, importante fornecedor de marfim para Benguela, e de gado para o Planalto Central - como será destacado no capítulo 2 -, ao mesmo tempo que mantinha contato direto com navios franceses e ingleses ancorados no Cabo Negro e na foz do Kubal, evitando a participação direta de negociantes europeus dentro de seus territórios. DIAS, Angola, p. 346–3347; MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 34. 108 FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 20–24, 48–50; VELLUT, Jean-Luc, Notes sur le Lunda et la frontière luso-africaine (1700-1900), Études d’Histoire africaine, v. III, p. 61–166, 1972, p. 88–89; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 325–331. Nessa mesma passagem, Thornton destaca que a criação da feira de Kasanje em 1789 foi inclusive um esforço do soberano africano para obrigar a concentração do fluxo de caravanas portuguesas em suas terras e deixar na marginalidade as possíveis passagens por Matamba ou por sobados menores e rivais. 109 OPPEN, Achim Von, Terms of Trade and Terms of Trust: The history and contexts of pre-colonial market production around the Upper Zambezi and Kasai, Münster: Lit Verlag, 1994, p. 53–55; HEYWOOD; THORNTON, African Fiscal Systems as Sources for Demographic History, p. 225; HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 13–14; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 298, 232. Erroneamente Fola Soremekun sugere que no contexto posterior à proibição do tráfico atlântico de escravos os ovimbundu tomaram o espaço e relevância da rota de Luanda a Kasanje, ignorando,

61 a partir de Angola, quando da colônia de Moçambique, o que se somaram a planos de conexão terrestre entre as duas costas, tendo várias iniciativas do final do século XVIII até meados do XIX110. Objetivamente, o principal resultado da vitória portuguesa na guerra do Bailundo foi o crescimento da interferência da administração colonial sobre a política interna dos diferentes estados da região. No caso do Bailundo, mesmo que Kapangano tenha sido deposto, o novo soba, Ekwikwi I, foi importante aliado dos portugueses e, a partir de 1785, foi capaz de iniciar um novo processo de expansão territorial, tanto em direção ao Kwanza, quanto ao sul, tomando terras do Bié. Thornton acredita que Ekwikwi corresponda ao soba Manuel Messo Ababo que aparece nas fontes portuguesas, sendo fiel vassalo da administração e realizando inclusive campanhas militares em nome de Portugal. Para além do próprio Bailundo, o aumento do respeito e da capacidade de intimidação de Portugal sobre a região levou a vários chefes do planalto assinarem, ou serem forçados a aceitar, tratados de vassalagem, impondo oficiais portugueses – os capitães-mores e regentes – para supostamente governarem ao lado das chefias e protegerem os negociantes portugueses dos sertões111.

portanto, a existência anterior da conexão do planalto com o Alto Zambeze. SOREMEKUN, Trade and Dependency in Central Angola, p. 84. Como será detalhado no 2º capítulo, as reações no Alto Zambeze à chegada dos negociantes do Planalto Central foram variadas, desde a sua expulsão do Barotse até a década de 1840, até o grande interesse pela vinda dessas caravanas no Luvale. MACOLA, Giacomo, Reassessing the Significance of Firearms in Central Africa: the case of north-western Zambia to the 1920’s, Journal of African History, v. 51, p. 301–321, 2010, p. 304–307. 110 Para mais sobre os planos portugueses de alcance da Lunda e suas relações com os planos de conexão de costa a costa e de controle do Planalto Central de Angola, ver: VELLUT, Notes sur le Lunda, p. 94–110; CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 260. Ao contrário desses autores, John Thornton e Achim von Oppen destacaram os esforços dos próprios lunda em alcançarem contato direto com os portugueses, que coincidiram com o apogeu do poder deste Estado na segunda metade do século XVIII. THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 308, 312–313; OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust, p. 46–47, 56–58. Discutirei com mais detalhes os planos portugueses de conexão de costa a costa no 3º capítulo, por causa da encomenda e realização dessa viagem pelos pombeiros de Silva Porto. 111 THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 300–302; CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 262. Nas tradições orais sugere-se que Ekwikwi I tinha sido capturado pelos portugueses e levado para Luanda, onde teria aprendido a lidar com os brancos, inclusive havendo uma delas que afirma que ele era mulato, o que Thornton interpreta que significaria que ele falava bem a língua portuguesa. THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 301.

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Mapa 4 - A África Centro-Ocidental por volta de 1850, com o Planalto Central de Angola destacado por círculo contínuo

Retirado de: Vansina, Jan, Kingdoms of the Savanna. Madison: Univ. of Wisconsin Pr., 1966, p. 182-183. Instituição fundamental para compreender a colonização portuguesa sobre Angola, os tratados de vassalagem, apesar de herdarem elementos discursivos das relações feudais europeias, foram importante mecanismos de dominação sobre os territórios coloniais, forçando que autoridades locais, após derrotas militares, aceitassem termos de domínio que incluíam pagamento de impostos (geralmente pagos em escravos) e fornecimento de braços, seja para trabalhos públicos, seja para caravanas, seja para exércitos (nas chamadas

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“guerras pretas”). Os sobas avassalados e seus súditos, apesar de conseguirem alguns direitos como súditos da coroa portuguesa, dependiam dos administradores coloniais para se manter no poder, podendo ser destronados pelos portugueses em "missões punitivas" e substituídos por líderes mais fiéis à coroa112. No caso do Bié, que se tinha mantido neutro em tais conflitos, a interferência portuguesa após a guerra do Bailundo foi menos intensa. O soba do Bié Njilahulu, que tomou o poder por volta de 1770, sentindo-se ameaçado por seu irmão Kangombe, o acusou de conspiração e feitiçaria e vendeu-o para os portugueses como um escravo. Por sua vez, vendo a oportunidade de interferir em Estado estratégico do planalto, os portugueses batizaram Kangombe com o nome do governador de Angola, António de Lencastre, e em 1774, durante a guerra do Bailundo, cederam um exército para ajudar a destronar Njilahulu em favor do novo soba António de Lencastre. Com esse novo aliado no planalto, que assinou um tratado de vassalagem à coroa, Portugal passou a entender o Bié formalmente como seu distrito, formalizando a sua aliança com o soba do Bié ao nomear o primeiro capitão-mor para a região113.

112 HEINTZE, Beatrix, O contrato de vassalagem afro-português em Angola no século XVII, in: Angola nos Séculos XVI e XVII: Estudos sobre fontes, métodos e história, Luanda: Kilombelombe, 2007, p. 389– 392, 395–428; FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 38–43. Sobre estratégias e vantagens buscadas por chefias africanas a partir desses tratados, ver: SANTOS, Catarina Madeira, Escrever o Poder: os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre as elites africanas ndembu, Revista de História, v. 155, n. 2, p. 81–95, 2006; ALFAGALI, Crislayne Gloss Marão, Ferreiros e Fundidores da Ilamba. Uma História Social da Fabricação de Ferro e da Real Fábrica de Nova Oeiras (Angola, segunda metade do séc. XVIII), Luanda: Fundação Dr. António Agostinho Neto, 2018, p. 175–247; THOMPSON, Estevam C., Fontes coloniais para uma história pré-colonial de Benguela, séculos XVII a XIX, Africana Studia, v. 25, Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2015, p. 45–52. 113 THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 302–303. Como será evidente ao longo das próximas páginas, há uma série de inconsistências e lacunas na historiografia sobre a história do Bié no período anterior à chegada de Silva Porto em 1840. Segundo Maria Emília Madeira Santos, baseando-se em Alfredo de Albuquerque Felner, desde o governo Sousa Coutinho em 1869 foram criadas as capitanias-mores do Bié e do Bailundo, fundando em seus territórios as povoações de Amarante e Nova Golegã, respectivamente. Portanto, segundo Santos, em algum momento cerca de 1770 foi nomeado o primeiro capitão-mor do Bié, que teria sido Joaquim José Rodrigues. SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 34–35. Sendo Kangombe, ao que nos consta, o primeiro soba avassalado do Bié, não é claro como que pôde haver uma nomeação anterior de um capitão-mor para a região, e também não conhecemos nenhuma outra indicação de haver ocorrido algo semelhante no Bailundo antes da guerra de 1774-1775. Nesse trecho referenciado de Thornton, o historiador afirma, assim como Mariana Candido, baseados ambos no relato de João Nepomuceno Correia, que foi durante a guerra do Bailundo que os portugueses derrubaram Njilahulu; Linda Heywood, no entanto, afirma que foi em 1778 que tal acontecimento teria ocorrido. Heywood inclusive aponta que o primeiro capitão-mor do Bié foi nomeado somente em 1791, sendo ele António Francisco da Conceição e Matos, personagem bastante recorrente nos cadernos de Silva Porto - não fazendo, portanto, referência ao capitão Joaquim José Rodrigues. No entanto, o próprio Silva Porto, ao reproduzir a carta patente de nomeação de Conceição e Matos em 1791, comprova que este substituía Joaquim José Rodrigues após a sua morte, afirmando que Conceição e Matos já tinha atuado como capitão mor e cabo na região, possivelmente de forma interina. Provavelmente por um deslize, Candido afirma que foi Francisco José Coimbra o capitão-mor empossado após a assinatura da vassalagem por Kangombe, o que não é possível, já que Coimbra ocuparia o mesmo cargo somente 70 anos depois, como a própria historiadora comenta na sequência de seu estudo. CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 303, 305; HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 103–104; SILVA PORTO, António Francisco Ferreira

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Com o novo status diplomático do Bié, negociantes portugueses se mudaram para a região, aproveitando sua posição estratégica na conexão com Luanda e Benguela, além do acesso mais direto às ganguelas e, posteriormente, ao comércio até a região do Zambeze. Como já apontado anteriormente, um dos objetivos da interferência portuguesa era a instalação de feiras oficiais, anexas aos presídios ou em territórios das chefias africanas, para tentar assim controlar a circulação de sertanejos, sendo instalada uma feira no Bié sob proteção do capitão-mor. Com esse arranjo, cada vez mais sertanejos foram enviando seus agentes, os quimbares, para atuarem no Bié e, com o tempo, os próprios sertanejos se mudaram para o reino centro africano, evitando a concorrência e fiscalização mais intensas no presídio de Caconda, o que resultou em haver mais de duzentos sertanejos habitantes da feira do Bié em Amarante, povoação onde estava instalado o capitão-mor. Silva Porto chamou esse conjunto de negociantes que se mudaram para o Bié no último quartel do século XVIII de “primeira plêiade de sertanejos do Bié”, envolvidos principalmente com o comércio escravista, ao passo que ele e seus colegas que atuaram na região em meados do século seguinte teriam sido a segunda plêiade114. Para além de uma percepção específica dos governadores pombalinos, de fato é difícil qualificar os sertanejos e seus agentes como simples irradiadores do poder, dos valores e da cultura colonial no interior. De certa forma, mais do que representantes do poder colonial, em grande parte a administração central de Angola realizou esforços para controlar a ação desses negociantes que causavam problemas para a política e comércio das zonas coloniais. Pressionados pelos moradores de Luanda, em crescente concorrência com mercadores estrangeiros recém chegados na cidade, o governo colonial derrubou em 1758 a proibição que existia desde o século XVII sobre a ida de brancos e mulatos para o interior o que, apesar de já ser regulamento repetidamente desrespeitado, intensificou a atividade sertaneja, que tentaria ser controlada agora com a proibição de circulação fora das feiras oficiais. Como o próprio governo colonial reconhecia, no entanto, os sertanejos conseguiam muitas vezes burlar o controle das feiras, se deslocando pessoalmente em territórios proibidos, ou mesmo fazendo com que seus funcionários, pombeiros e quimbares, o fizessem sem grandes constrangimentos. Além de atuarem em ataques a caravanas e outros atos de banditismo, os sertanejos muitas vezes desviavam os recursos

da, Silva Porto e Livingstone: Manuscripto de Silva Porto encontrado no seu espolio, Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1891, p. 12, 55–56. 114 MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 33, 28–29; VILAS BÔAS, Felipe Pires, Portugueses, moradores e Sobas em Golungo Alto, Angola: negociação e conflito em narrativas de militares, (c.1840- c.1860), Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018, p. 93; SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 36–37.

65 neles investidos pelos comerciantes do litoral, tanto ao contrabandearem para negreiros ingleses e franceses, quanto por desviarem mercadorias já consignadas a outros comerciantes115. Uma das práticas desse desvio de recursos investidos em sertanejos era o reviro, especialmente utilizado pelos sertanejos do Bié, com rotas estabelecidas tanto para Benguela, quanto para Luanda, em que os sertanejos, após contraírem grandes dívidas com os comerciantes de Luanda, trocavam suas operações para Benguela e, posteriormente, faziam o contrário116. Outra prática sertaneja recorrente e combatida pela administração colonial foi a cambolação, na qual outros comerciantes das cidades e povoações portuguesas esperavam no caminho a passagem das caravanas e compravam ali mesmo os gêneros dos sertanejos, supostamente induzindo ou violentando o negociante dos sertões para tal117. A preocupação da administração colonial com os sertanejos ia além da falta de comprometimento destes com o capital comercial neles investido. A expansão do comércio itinerante nos sertões não só aumentou a demanda africana por produtos importados, mas alimentou essa demanda principalmente baseada em pagamento fiado, endividando as chefias africanas e seus súditos, sendo obrigados a compensar os sertanejos e pombeiros vendendo cada vez mais escravos. Mesmo com as determinações legais para evitar a escravização de africanos vassalos nascidos livres, com exceção daqueles que o eram por motivos de condenação judicial, no século XVIII, com a demanda crescente de mão de obra nas Américas e o bloqueio do avanço português por Matamba e Kasanje, a importância proporcional dos escravizados em território dos sobas avassalados aumentou consideravelmente, sendo o endividamento estratégia importante para burlar as barreiras legais que protegiam os vassalos livres. Preocupados com o impacto deste tipo de artimanha para gerar conflitos em terras próximas das bases de atuação portuguesa, o

115 FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 29–31, 33, 59, 61; MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 28–29. Para uma interpretação dos sertanejos como irradiadores de valores, política e economia colonial, ver: VELLUT, Notes sur le Lunda, p. 140–145. Tensões entre luso-africanos e a administração central marcaram o empreendimento colonial português em Angola desde seu início, como se pode ver em: MILLER, The paradoxes of impoverishment, p. 131–135; HEINTZE, O contrato de vassalagem afro-português em Angola, p. 393–395. 116 SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 59–60. 117 SEIXAS, Margarida, Escravos e Libertos no Boletim Oficial de Angola (1845-1875) - I Parte, E-REI: Revista de Estudos Interculturais do CEI, v. 2, p. 1–28, 2014, p. 9–10. Para um histórico do combate administrativo ao reviro e cambolação, ver: PIMENTEL, Jayme Pereira de Sampaio Forjaz de Serpa, Um Anno no Congo: Apreciações sobre o districto do Congo, Lisboa: Typographia da Companhia Nacional Editora, 1899, p. 88–89. Para mais sobre a repressão da cambolação em Luanda, ver: LOPES, Tracy, Free, Enslaved, and “Liberated” Women Imprisoned in Luanda, 1857 to 1884, Historiae, v. 10, n. 2, p. 67–84, 2019. Ver também sobre esse combate na década de 1850: AHU, SEMU, Conselho Ultramarino, Processos das Consultas, caixa 27, doc. 912, 1855, "Processo sobre os actos de abuso de comércio, conhecidos na província de Angola por 'cambolação e reviro'".

66 governo colonial tentava não só controlar a circulação dos sertanejos e pombeiros, mas também criar mecanismos de apelação dos homens livres ilegalmente escravizados e de punição de seus escravizadores118. Preocupação semelhante se tinha com o envolvimento de oficiais coloniais como os capitães-mores com o comércio sertanejo. Abusando de suas posições políticas e de seu acesso a forças militares, esses oficiais criavam intrigas entre chefes africanos ou mesmo organizavam ataques militares, sob alegação de reprimirem deslealdade ou rebeldia, com interesses diretos nos contingentes de escravizados gerados por esses embates, que favoreceria os próprios administradores e seus parceiros comerciais. Preocupada com o impacto que esse tipo de ação gerava na segurança e fluxo comercial a médio e longo prazo, a administração central recorrentemente procurou controlar e punir tais oficiais119. A precarização da liberdade dos africanos livres do planalto não se intensificou no final do século XVIII e durante o século XIX somente por causa do endividamento dos sobas e chefes de linhagens, tendo que ser mensurada a importância das guerras nesse processo. Miller defende que a manutenção de pontos militarmente estratégicos e a falta de grandes concentrações populacionais no seu entorno deixou a fronteira de escravização nas margens do Planalto Central de forma estacionário durante o século XVIII. Para esse historiador, foi somente com a expansão do capital europeu estrangeiro que resultou na expansão e colisão do Bailundo com os portugueses que a fronteira se expandiria a leste, o que explicaria a explosão de violência no Luvale no começo do século XIX. Esse avanço ágil da fronteira pelas ganguelas teria um efeito, que segundo Miller se repete ao longo dessa dinâmica estrutural, de pacificação das relações sociais com estabelecimento de sociedades escravistas em que a maioria dos cativos eram, ou provenientes da fronteira

118 FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 63–67. Candido considera esse tipo de relação entre endividamento e o comércio de escravos um elemento importante para o balanço do impacto da ação colonial portuguesa sobre as sociedades centro africanas. CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 176–177. Segundo Silva Porto, o soba do Bié, Mbandwa, ao reestabelecer o comércio da região com os portugueses na década de 1830, contraiu dívidas em fazendas com a casa comercial de Dona Ana Joaquina dos Santos, de Luanda. Por causa dessas dívidas, o seu sucessor, Kakembemba, foi obrigado a reinstaurar a cobranças de mucanos na região contra os locais, "não se atrevendo a romper com os sertanejos". Sobre o funcionamento desses mecanismos legais, ver a parte final deste capítulo. Candido destaca, no entanto, que era comum que os sobas alegassem o endividamento para poderem vender escravos do Estado, o que seria proibido em caso contrário. SILVA PORTO, Costumes e usos gentílicos, p. 168–169; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 337; CANDIDO, Mariana Pinho, Fronteras de esclavización: Esclavitud, comercio e identidad en Benguela, 1780-1850, México: El Colegio de México, 2011, p. 167. 119 CRUZ E SILVA, A saga de Kakonda e Kilengues, p. 77–78, 87–91; CANDIDO, Fronteras de esclavización, p. 191–192; CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 178–179, 182– 184.

67 avançada, ou resultantes de comércio e endividamento120. No entanto, como bem mostra Candido, não houve no século XIX uma pacificação política no Planalto Central de Angola, pelo contrário: não só a maioria dos africanos era escravizada em regiões próximas do litoral (e não no interior profundo), por sequestros, endividamento, processos judiciais, mas também as razias comandadas por chefes africanos ou mesmo por autoridades coloniais continuaram sendo endêmicas. As razias se orientavam não só contra chefes mais fracos, mas também contra os grandes sobados, atacados por alianças temporárias, que não poupavam nem mesmo os presídios portugueses. Esse espalhamento das pilhagens inclusive continuou após o fim do envolvimento da região com o tráfico para as Américas, alimentando não só as demandas do tráfico interno de escravos, mas também, como destaca Jill Dias, foram uma das fontes principais de "libertos" e "serviçais" para as roças de São Tomé e Príncipe entre as décadas de 1850 e 1880, especialmente as razias perpetradas pelo Huambo e Bailundo121. Este cenário de violências não necessariamente resultou no enfraquecimento militar dos chefes guerreiros. O envolvimento com o tráfico fez com que estados como o Huambo, Bailundo, Bié, Ngalangi e Kitata expandissem seus domínios, formassem grandes contingentes militares e concentrassem grandes quantidades de armas de fogo. Mesmo que os novos estados não fossem invencíveis, como bem mostrou o resultado da guerra do Bailundo, os administradores portugueses rapidamente perceberam que suas expectativas em controlar os chefes do planalto com os capitães-mores e regentes que enviaram para as cortes desses líderes não se concretizariam122. Há pelo menos dois exemplos evidentes dessa correlação de forças e da artificialidade dos tratados de vassalagem: um deles são os ataques feitos por Ngalangi contra vassalos e estabelecimentos portugueses em 1786, 1796 e 1797, além de organizar entre 1811 e 1813 uma coalizão que quase levou à destruição do presídio de Caconda; outro caso ilustrativo ocorreu na década de 1820, em que o soba do Huambo enviou emissários para Caconda para requisitar o registro de sua vassalagem, o que era provavelmente um subterfúgio para entrarem na fortaleza e sequestrar pessoas e produtos. Vale sempre destacar que, formalmente, Ngalangi e Huambo eram ambos

120 MILLER, Way of death, p. 145–146, 140; MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 38. 121 CANDIDO, Fronteras de esclavización, p. 157–158, 164–167, 169–171; DIAS, Angola, p. 424–426. Segundo Heywood, as guerras só diminuíram de frequência no Planalto Central após a década de 1870, com o boom da borracha, no qual boa parte da população masculina foi envolvida nas caravanas borracheiras. Essa escassez de súditos homens no planalto era tão intensa que, segundo a autora, em 1889 o soba do Bailundo, Ekwikwi II, foi obrigado a fechar as rotas comerciais com rumo a leste, para só assim conseguir reunir uma expedição de guerra. HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 68–69. 122 CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 294–308; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 332.

68 vassalos da coroa portuguesa123. O resultado desses processos foi que o governo colonial na região se manteve muito frágil, dependendo da boa vontade e diplomacia com os chefes locais, reduzindo assim a área de jurisdição do presídio de Caconda ao longo do século XIX124. Sem poder contar com a proteção do capitão-mor, cuja relação com os negociantes nem sempre foi pacífica, os sertanejos tinham que lidar com os vários impasses que caracterizavam o estabelecimento de diásporas comerciais125. Os sertanejos tinham a necessidade de criar mecanismos de confiança com os centros de poder, já que lidavam com a desconfiança dos seus hospedeiros por base em sua condição como estrangeiros e por causa também das grandes oportunidades de enriquecimento, que também envolviam grandes riscos126. Discutirei na sequência composição dessa comunidade sertaneja no Bié e sua relação com a elite local; assim, tendo em vista as contradições inerentes dessa relação diaspórica, explorarei não só o inquestionável interesse dessas elites pelas mercadorias que passam a circular mais diretamente na região graças à presença desses mercadores, mas também os conflitos e desconfianças recíprocas entre locais e estrangeiros. Uma pista que temos sobre a composição dessa comunidade sertaneja é a listagem de moradores escrita pelo negociante Joaquim Rodrigues Graça, que passou pelo Bié em 1846, a caminho de sua missão diplomática com rumo à capital da Lunda. Esse oficial, solicitando ao capitão-mor da época, o major Francisco José Coimbra, para reunir todos os moradores da região, reuniu informações de 100 homens, todos envolvidos em atividades mercantis. Na lista de Rodrigues Graça, que foi publicada junto a seu relato de viagem, há informações sobre naturalidade, emprego, local de residência no Bié e cor dos entrevistados. Mesmo sabendo que a maioria dos moradores não atendeu ao chamado do oficial e que na década de 1840 o perfil dos sertanejos havia se modificado bastante, como diremos na sequência, já tendo proeminência da atuação da chamada "segunda plêiade de

123 THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 339–340; CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 297. 124 CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 264–265; DIAS, Angola, p. 366–367. 125 CURTIN, Philip D., Cross-cultural trade in world history, Cambridge: Cambridge University Press, 1984, p. 1–14; SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 43–44. Roquinaldo Ferreira analisa um ofício enviado pelo soba do Bié para as autoridades de Benguela pedindo a substituição do capitão-mor que atuava na região, já que, ao contrário do seu antecessor, este oficial não era bem respeitado. Se de fato esse ofício tiver sido ditado pelo soba do Bié no ano de 1847, a informação é bastante reveladora, já que possivelmente o pedido foi feito após a Guerra do Canduco, na qual, como veremos, a insatisfação dos próprios súditos do soba com os sertanejos e o seu capitão, Francisco José Coimbra, era bastante intensa. FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 106–107. 126 CURTIN, Cross-cultural trade in world history, p. 1–3, 5–6.

69 sertanejos do Bié", há elementos importantes dessa listagem para pensar a comunidade sertaneja da região. O primeiro dado é que dos 100 homens, somente seis deles foram considerados por Rodrigues Graça como brancos, todos eles nascidos fora do continente africano (cinco em Portugal e um na ilha da Madeira). Cerca de metade deles, 52, nasceram no próprio Bié, alguns deles pertencentes aos clãs comerciais já estabelecidos pela primeira plêiade, como os filhos do capitão Conceição e Matos. A maioria dos outros homens registrados são provenientes de presídios e distritos do interior, como Golungo Alto, Ambaca, Pungo Andongo e Caconda, além de 7 deles terem nascido em Luanda, o que sugere ser resultado das conexões comerciais do século XVIII em ambos os trajetos (via Caconda e pelo Kwanza) até o litoral. Em comparação com os 6 brancos europeus, Rodrigues Graça registra 54 pretos e 36 pardos127. Essa extrema minoria branca pode, no entanto, oferecer um entendimento equivocado sobre a identificação e autoidentificação dessa comunidade. Como tem destacado a historiografia recente sobre classificações de cor no Império Português, fatores locais de distinção social tendiam a influenciar mais a percepção e registro de cores como indicadores de status do que em si referências nos fenótipos. Assim, riqueza, origem e posição social na hierarquia local influenciavam diretamente em associações de homens e mulheres europeus, africanos e mestiços com uma noção de brancura que oferecia posicionamento distinto e privilegiado nessas sociedades. Enquanto nesse mesmo período as disputas crescentes entre estrangeiros e locais nas cidades coloniais como Luanda estavam redefinindo o conceito de branco, possivelmente informado nesses embates, Rodrigues Graça classificou somente os europeus como brancos. No entanto, nos sertões, diversos sujeitos reivindicavam e eram entendidos como brancos por adotarem alguns

127 GRAÇA, Joaquim Rodrigues, Expedição ao Muatayanvua: Diário de Joaquim Rodrigues Graça. Manuscripto Original da Sociedade de Geographia de Lisboa, Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa, v. 8 e 9, 1890, p. 395-396, 399–400. Para uma análise dos dados dessa listagem, ver: VELLUT, Notes sur le Lunda, p. 124–127. Também escrevi breves comentários sobre essa fonte em: GONÇALVES, Ivan Sicca, Às Margens do Império, por dentro dos sobados: Estratégias comerciais de sertanejos e centro- africanos no Planalto Central Angolano (décadas de 1840 a 1860), Faces de Clio, v. 6, p. 191–222, 2020, p. 198–200. Na listagem de Rodrigues Graça ainda há 4 sujeitos que o negociante diz serem “cabodos”, todos nascidos no Bié. Vellut levanta a hipótese que pode ser uma corruptela do termo “caboclo”, utilizado no Brasil. Não tive acesso ao manuscrito original de Rodrigues Graça e desconheço outra possibilidade de interpretar o que esse termo poderia significar. Vale apontar, nesse sentido, que Isabel Castro Henriques afirma que Rodrigues Graça era brasileiro: HENRIQUES, Isabel Castro, Presenças Angolanas nos Documentos Escritos Portugueses, in: Actas do II Seminário Internacional sobre a História de Angola - Construindo o Passado Angolano: As Fontes e a sua Interpretação, Luanda: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 48–53. Por fim, vale a pena comparar esses dados com os provenientes de mapa redigido em 1844 sobre a província de Benguela e reproduzidos em: HEINTZE, Beatrix, Pioneiros africanos: caravanas de carregadores na África Centro-Ocidental (entre 1850 e 1890), Lisboa: Editorial Caminho, 2004, p. 60–61.

70 costumes, a língua, ou simplesmente vestuário e outras formas de distinção ao procurarem se associar precisamente às rotas do comércio atlântico ou à administração colonial. Por isso, não considero exagero afirmar que, possivelmente, no Bié, todos os negociantes entrevistados por Rodrigues Graça eram entendidos como brancos, independentemente da cor de suas peles128 Para além das ambiguidades sobre suas identidades, há muitas lacunas sobre a história da comunidade sertaneja no Bié, principalmente para o período anterior à chegada de Silva Porto no planalto em 1840129. Um dos principais acontecimentos desse período foi a guerra entre o Bailundo e o Bié, da qual temos várias informações. Em 1823, o soba Cingi II do Bailundo se aliou ao irmão do soba do Bié130, Njimbe, e a um general do mesmo soba, Cinge Liyabane, em uma invasão contra o sobado rival, acompanhados por 16 sobas regionais para destronarem o soberano. Apesar das forças do Bailundo terem tomado a capital do Bié, Ekovongo, a expedição invasora espalhou-se pelo campo para capturar escravos e gado, sofrendo uma emboscada das forças bianas, o que levou a morte e decapitação do soba do Bailundo. Segundo Mbonge, soba do Bailundo em 1852, em duas ocasiões depois do ocorrido, emissários do Bailundo foram atrás do resgate do crâneo do soba falecido na guerra, e nas duas ocasiões os bianos entregaram crâneos de outras

128 GUEDES, Roberto, Branco Africano: notas de pesquisa sobre escravidão, tráfico de cativos e qualidades de cor no reino de Angola (Ambaca e Novo Redondo, finais do século XVIII), in: GUEDES, Roberto (Org.), Dinâmica Imperial no Antigo Regime Português: escravidão, governos, fronteiras, poderes, legados - Séculos XVII-XIX, Rio de Janeiro: Mauad X, 2011, p. 20, 24–25, 28–29; CURTO, José C., Whitening the “white” population: an analysis of the 1850 censuses of Luanda, in: PANTOJA, Selma; THOMPSON, Estevam C. (Orgs.), Em torno de Angola: narrativas, identidades e as conexões atlânticas, São Paulo: Intermeios, 2014, p. 229–231; DIAS, Novas identidades africanas em Angola no contexto do comércio atlântico, p. 333–337; FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 60–61. Sobre a identificação dos "brancos" no Bié, Silva Porto afirma que "em geral por estas paragens dão o nome de brancos, a todas aquelas pessoas que vestem calças, sem exceção de cor e menos de condição; é bastante para isso possuir alguma fazenda." SGL. Espólio de Silva Porto, cx. 1. Silva Porto, Borrões da 2ª Viagem, p. 2. (07/03/1847). Mesmo que sejam vários os possíveis marcadores de distinção dos brancos do interior do continente, um dos mais recorrentes é o uso de sapatos. Sobre o significado e prática do uso de sapatos, ver ainda: DIAS, Jill Rosemary, Mudanças nos padrões de poder do “Hinterland” de Luanda: o impacto da colonização sobre os Mbundu (c.1845-1920), Penélope. Fazer e desfazer a história, v. 14, p. 43–91, 1994, p. 51, 76; HENRIQUES, As “fronteiras dos espíritos” na África Central, p. 160. Felipe Vilas Bôas destaca também que os africanos calçados utilizavam dessa distinção nas áreas coloniais de Ambaca para se recusarem a atender as obrigações de recrutamento forçado para trabalhos como carregadores ou soldados, o que incluiria seus deveres como africanos avassalados. VILAS BÔAS, Portugueses, moradores e Sobas em Golungo Alto, Angola, p. 95, 102. 129 Thornton faz várias considerações sobre as incoerências das datas que Silva Porto informa sobre a história do Bié no período anterior à sua chegada, tentando superá-las ao cruzar a descrição do sertanejo do seu "Costumes e Usos Gentílicos" com a documentação administrativa colonial. No entanto, as lacunas sobre o período são várias. THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 336–337; SILVA PORTO, Costumes e usos gentílicos, p. 165–171. 130 Pelo silêncio das fontes coloniais Thornton não consegue definir se o soba do Bié na época é Mbandwa ou o seu sucessor, Kakembemba. THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 337. Silva Porto, por outro lado, sugere que o soba no poder era Vasovava, antecessor de Mbandwa. BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 233-238. (05/05/1852).

71 pessoas, uma burla que alimentava ressentimento por parte dos derrotados131. Para os sertanejos, o efeito principal desse conflito foi a interrupção do contato direto do Bié com Benguela nas décadas de 1820 e 1830, orientando suas operações para a conexão com Luanda pela via do rio Kwanza, sendo que até a data do acordo de Silva Porto em 1852 os sertanejos do Bié evitavam passar diretamente pelos domínios do soba do Bailundo132. A guerra com o Bailundo não foi o único acontecimento que pode ter forçado mudanças radicais da atividade sertaneja no Bié. Há muitas dúvidas sobre qual foi o impacto imediato da proibição do tráfico atlântico no planalto. Por um lado, os negociantes e colonos portugueses que habitavam no Bié durante a era do tráfico gozaram de considerável enriquecimento, sendo senhores de vilas próprias e de grandes escravarias e importantes aliados dos grupos dominantes locais. O que é apontado por parte da historiografia, como detalharemos na sequência, é que, nessa posição privilegiada, os sertanejos conseguiram manter seu envolvimento no comércio de longa distância pela sua capacidade de aderir rapidamente ao comércio de cera e marfim após a proibição do tráfico atlântico, protagonizando, na realidade, um aumento da atividade comercial de longa distância nessa região, e não o contrário133. No entanto, a curto prazo, a recepção da notícia da proibição do tráfico pode não ter sido tão amena. Segundo Rodrigues Graça, quando foi proibido o tráfico escravista em Angola, os comerciantes das praças de Benguela e Luanda teriam mandado que seus aviados (os sertanejos) terminassem suas negociações e abandonassem a feira do Bié, resultando inclusive na retirada do capitão-mor da região e deixando os filhos dos grandes clãs comerciais sem o direito aos bens de seus pais, marginalizados e no desamparo, sob risco inclusive de serem vendidos como escravos. No diálogo que Rodrigues Graça faz com o soba do Bié, Lyambula, a quem Rodrigues Graça se refere como D. António de Lencastre134, o soberano africano afirma que os males que os sertanejos sofriam no Bié

131 Segundo Thornton, na década de 1840, durante o reinado de Kayangula, que entrou em conflito com seus parentes e sobas subordinados, o Bailundo teria atacado novamente terras do Bié, sendo que terras como Caquenge, Donde, Cambeese e Capango mudaram nesse momento sua lealdade do Bié para o Bailundo. Ceita estima que o governo de Kayangula foi entre 1847 e 1850, podendo a proximidade temporal ajudar a explicar o temor intenso dos carregadores da caravana de Silva Porto em passarem pelas terras do Bailundo em 1852. Ibid., p. 338; CEITA, Silva Porto na África Central – Viye / Angola, p. 144. 132 SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 59. 133 HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 105–106. 134 Lyambula foi o último de uma sucessão de cinco sobas do Bié (Kawewe, Vasovava, Mbandwa, Kakembemba e Lyambula), todos filhos de Kangombe I, batizado D. António de Lencastre após a ajuda portuguesa para tomar o poder. Thornton compreensivelmente confunde algumas informações dadas por Silva Porto sobre o reinado desses cinco irmãos, sendo uma dificuldade extra o fato que Vasovava, Lyambula e o próprio filho e sucessor de Lyambula, Kayangula, adotaram os três o mesmo nome cristão do antepassado,

72 foram consequência da falta de fazendas causada pelo fim do tráfico de escravos, o que não só fragilizou a posição dos negociantes como retirou do soba o que supostamente era um dos instrumentos de disciplinarização do seu povo: a ameaça de envio para o Atlântico. Heywood cita esse trecho de Rodrigues Graça e afirma que a feira do Bié foi fechada em 1843, informação que foi reproduzida por vários historiadores que citam o dito trabalho. Por um lado, a informação chama a atenção pelo absoluto silêncio de Silva Porto sobre um fechamento da feira do Bié durante o período em que já atuava na região, e por outro, a ideia que Rodrigues Graça arroga a si mesmo como responsável pela estabilização das relações dos portugueses com o soba do Bié parece não só um exagero, mas também inverossímil diante do funcionamento e hierarquia interna dessa comunidade sertaneja que o próprio Rodrigues Graça reconhece ao visitar a região135. Ao que me consta, não há referência no relato de Rodrigues Graça à data de 1843. Se Heywood encontrou-a em outro documento, não há referência a ele136. A proibição do tráfico no Brasil em 1831 também preocupou os administradores portugueses de Caconda, que temiam o abandono do presídio pelo fim da atividade luso-africana na região, o que não ocorreu, tanto por causa da continuidade do contrabando de escravos para o Brasil, quanto pelo crescimento do comércio lícito137. Ao pensarmos que esse tipo de preocupação já fazia parte da geopolítica no planalto na década de 1830, poderíamos ter como hipótese que o episódio referido trata dos conflitos envolvendo os reinados de Vasovava e Mbandwa, nos quais, durante a década de 1830, os sertanejos supostamente teriam abandonado a região. Nesse caso, considero mais verossímil, que haveria dois equívocos na informação reproduzida por Heywood: por um lado, a data do suposto fechamento da feira, sendo bastante improvável que tenha ocorrido algo dessa magnitude em 1843; por outro, Silva Porto não associa o conflito de Vasovava com a questão da proibição da escravidão (e nem cita esta proibição), sendo o ato de debandada uma iniciativa dos sertanejos do Bié e não de seus investidores – que, inclusive, durante a década de 1830,

António de Lencastre. SILVA PORTO, Costumes e usos gentílicos, p. 168–169; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 336–338. 135 GRAÇA, Expedição ao Muatayanvua, p. 394–397. 136 HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 111; GRAÇA, Expedição ao Muatayanvua, p. 394–397. A autora também se refere a essa acontecimento em: HEYWOOD, Linda Marinda, Porters, Trade and Power: The Politics of Labor in the Central Highlands of Angola, 1850-1914, in: COQUERY-VIDROVITCH, Catherine; LOVEJOY, Paul E (Orgs.), The Workers of African Trade, Beverly Hills: Sage Publications, 1985, p. 246. 137 CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 265.

73 seriam provavelmente e somente de Luanda por causa do bloqueio do caminho para Benguela após a guerra entre o Bailundo e o Bié138. Tendo ou não ocorrido esse fechamento da feira do Bié, ainda se mantém a dúvida sobre qual foi a reação do Bié e de outras autoridades do Planalto Central com a proibição legal do tráfico nas colônias portuguesas em 1836. Por um lado, a chegada das notícias de um possível final do tráfico em 1830, por causa do acordo entre Brasil e Inglaterra, gerou tensões entre administradores, negociantes e chefias africanas, espalhando-se um temor de que os chefes africanos provocariam massacres dos negociantes em represália ao final do tráfico. Por outro lado, o sentido de urgência de aproveitar o que poderia ser os últimos respiros do infame comércio levou uma série de pequenos estados a se unirem e organizarem razias para sequestrar caravanas e atacar rivais tanto no litoral, quanto no interior, tentando acumular o máximo de cativos na menor quantidade de tempo. Os portugueses também aumentaram o grau de violência no temor da possível revolta de chefias, organizando expedições que saíram das fortalezas do Dombe Grande e de Quilengues em 1850, que atacaram principalmente as cercanias da recém criada Moçâmedes. Apesar desse aumento nas razias, não ocorreu o cataclisma esperado de massacre de sertanejos e pombeiros no interior de Benguela139. Miller considera que essa passagem para o período de reconfiguração das exportações atlânticas na região pôde ser relativamente estável por causa do já existente envolvimento dos sertanejos do planalto com o comércio de marfim e cera que, com a abolição dos monopólios estatais sobre a exportação desses produtos, puderam cobrir em pouco tempo as demandas internas por produtos importados, trocados agora por estes dois gêneros. Além disso, José Curto aponta que, como continuou o comércio ilegal de escravos da baía das Vacas até o Brasil durante as duas décadas seguintes, o suprimento de aguardente de cana proveniente desse país, o produto mais desejado pelos sobas do interior, manteve-se estável, o que certamente também serviu para evitar o acirramento dos ânimos nas feiras dos sertões140.

138 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 166. (23/08/1861). 139 CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 290–291; MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 39. 140 MILLER, The paradoxes of impoverishment, p. 155. Curto cita ainda um ofício de 1829 do governador de Benguela para o governador geral da província, afirmando que era melhor ser evitado o espalhamento da notícia no interior sobre o acordo entre o Brasil e a Inglaterra que entraria em vigor no ano seguinte. CURTO, José C., Alcohol under the Context of the Atlantic Slave Trade: The Case of Benguela and its Hinterland (Angola), Cahier d’Études Africaines, v. 51, n. 201, p. 51–85, 2011, p. 69–70. É verdade que o argumento de Miller pressupõe que houve uma pacificação do Planalto Central após a passagem da fronteira de escravização para as ganguelas, o que já discutimos que não ocorreu. Mesmo assim, acredito que a continuidade do fornecimento de bens de prestígio importados, seja por causa do tráfico ilegal, seja por causa do comércio lícito, está no cerne do entendimento desse processo, como defenderei na sequência. MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 38–39.

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A importância das mercadorias importadas pelo atlântico, sejam elas europeias, americanas ou asiáticas, é um assunto clássico da história pré-colonial da África e será retomado no próximo capítulo. O que nos interessa neste momento é pensar em como produtos como tecidos manufaturados, bebidas alcoólicas, pólvora e armas de fogo, entre muitos outros, foram utilizados para o exercício do poder das chefias africanas durante a era Moderna. Miller afirma ser fundamental considerar que na economia política do interior da África Centro-Ocidental, a principal fonte e indicador de capital eram as pessoas – em regiões de grandes fragilidades ambientais, baixa complexidade tecnológica e muitas vezes, como Thornton defende, sem ligação legal à terra que impeça a migração de famílias ou aldeias inteiras –, o controle do sistema produtivo e a geração de excedentes estavam umbilicalmente ligados ao controle da mão de obra, seja ela formada por parentes, clientes ou escravos. Assim, estratégias para acumular dependentes eram a forma de acumular riqueza, sendo essa formulação teórica referida por historiadores e antropólogos como wealth in people141. Para manter em seu entorno tais dependentes, mercadorias importadas eram fundamentais nas estratégias de redistribuição de riquezas entre os clientes, sendo o presenteamento uma forma de confirmar a superioridade do soberano sobre os seus receptores ao induzir a obrigação de compensação futura, com trabalho, por exemplo. É claro que os dependentes poderiam transformar essas obrigações recíprocas em exigências, mas dependiam dos seus soberanos para terem acesso aos produtos de circulação restrita, como era o caso dos produtos importados. Duas das principais estratégias de redistribuição dos sobas eram as caçadas e as guerras, arregimentando grandes contingentes de clientes com a promessa de divisão dos espólios, dentro dos direitos desiguais de cada estamento, evidentemente142. Como será detalhado nos dois próximos capítulos, a expansão do comércio de longa distância em Angola no século XVIII não resultou somente em endividamento e

141 MILLER, Way of death, p. 40–47; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 11; HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 11. No caso do Planalto Central, Miller afirma que historicamente a formação dos vínculos políticos de dependência era associada com a criação de gado, controlados pelas elites e cuidados em seu cotidiano pelos pastores, em relações de clientela. Esses arranjos ajudariam a compreender a formação das redes de dependência e das estruturas políticas que montaram a autoridade nesses estados, sendo que no século XIX o gado continuava sendo um símbolo fundamental de poder e riqueza. MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 13; MILLER, Way of death, p. 46; HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 26–28. Sobre a noção de wealth in people, ver ainda: GUYER, Jane I., Wealth in People and Self-Realization in Equatorial Africa, Man, v. 28, n. 2, p. 243–265, 1993. 142 MILLER, Way of death, p. 49–51; HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 18–21, 61, 67–68. Ferreira destaca que uma das razões das crises de secas gerarem historicamente grandes contingentes de escravos para o atlântico era porque tais crises diminuíam a capacidade de redistribuição dos sobas e de chefes de linhagem, o que obrigava esses líderes endividados a penhorarem ou venderem seus familiares e dependentes "voluntariamente". FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 66.

75 dependência dos chefes e dos habitantes em geral, mas a atividade comercial permitiu que sujeitos que não eram originários das linhagens reinantes conseguissem concentrar riquezas e produtos importados que até então eram monopolizados pelas aristocracias, que distribuíam esses bens somente entre seus clientes e aliados. Seja pela compra de cargos políticos que os permitiam cobrar impostos de passagens das caravanas, seja pela formação das próprias caravanas, cada vez mais pessoas comuns puderam acessar bens de prestígio, o que erodia o poder dos vínculos de dependência que as elites políticas tinham sobre os seus clientes143. Se inicialmente esse crescimento comercial que se intensifica no século XIX trouxe novos recursos às chefias, Miller e Thornton apontam que, posteriormente, as elites locais e aristocratas vão tirando legitimidade dos chefes, ganhando cada vez mais legitimidade de escolherem e derrubarem os grandes sobas do planalto144. No caso do Bié, Thornton ainda aponta que a elite estava dividida entre os elombe ya soma, a linhagem real, e os elombe ya sekulu, os chefes locais subordinados – o que é importante já que, como destaca Heywood, muitos sekulus, principalmente após o boom da borracha a partir da década de 1870, foram originalmente negociantes que ascenderam às posições de poder por causa do enriquecimento do comércio de longa distância, não pertencendo, portanto, às elites tradicionais do planalto145. Para Isabel Castro Henriques, esse processo de retirada do monopólio de circulação das mercadorias importadas das mãos das chefias seria característico da racionalização crescente da economia do interior de Angola durante o século XIX, trazendo novas concepções de riqueza, baseadas não mais em pessoas, e sim em mercadorias e, posteriormente, com a expansão do trabalho assalariado, em dinheiro146. Em vários momentos, Silva Porto narra estratégias do soba do Bié e das elites do país de reterem consigo os produtos importados que os sertanejos traziam para a região,

143 DIAS, Mudanças nos padrões de poder do “Hinterland” de Luanda, p. 43–45; GORDON, Wearing Cloth, Wielding Guns, p. 18–21. 144 MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 30; THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 338–339. 145 THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 339; HEYWOOD, Contested power in Angola, p. 16–20. Há uma distinção da posição de Miller, que aponta para o fortalecimento da aristocracia em detrimento do poder centralizado, frente à posição de Heywood, para quem o enfraquecimento das chefias se deu, pelo contrário, graças ao fortalecimento de quem era originalmente externo às linhagens dominantes. Mesmo que não sejam mutuamente excludentes, tais posicionamentos tocam em questões análogas ao debate sobre o impacto da conversão econômica para o comércio lícito na África Ocidental, polarizando as posições que entendem ter ocorrido uma "crise da monarquia" e aqueles que percebem uma "crise da aristocracia". Para mais sobre esse debate, ver: LAW, Robin, Introduction, in: LAW, Robin (Org.), From slave trade to “legitimate” commerce: the commercial transition in nineteenth-century West Africa : papers from a conference of the Centre of Commonwealth Studies, University of Stirling, Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2007, p. 19–21. 146 HENRIQUES, Isabel Castro, Comércio e empresários em Angola na 2a. Metade do século XIX, in: Os pilares da diferença: relações Portugal-África séculos XV - XX, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2004, p. 397–398, 408–411.

76 seja no pagamento periódico de tributos que eram pedidos pelos emissários da libata grande, a residência do soba do Bié, seja nas chamadas comedorias, que serão analisadas no 2º capítulo. Em episódio bastante elucidativo ocorrido em 22 de maio de 1861, durante o processo de investidura de quem se tornaria o soba Cilemo (Quillemo, em Silva Porto) do Bié, o capitão-mor da região, Francisco José Coimbra, junto com os principais sertanejos, foram convocados para uma audiência com o futuro soberano. Nesta sessão, um macota da terra declamou: "Senhor Capitão Mor, e mais senhores. Eis ali o vosso filho [o futuro soba do Bié], tratai-o bem para que viva longos anos; tendo muito cuidado com a aguardente que mandais para a libata grande, porque, como sabeis, Senhores; é a origem da morte dos nossos sobas; em consequência dos feitiços que lhe costumam meter aqueles que aspiram o supremo lugar do estado. Ora, o soba não o pode já mais ser, sem a vossa coadjuvação, para esse fim, e para a sua total ascensão ao poder, preciso lhe é o vosso apoio; nós, pela nossa parte nada temos, porque como sabeis, somos também do número dos vossos filhos; e então, finalmente, passo a fazer contribuintes para as despesas do soba no estado (...). Assim pois, senhores, espero que atendereis ao que acabou de vos expor, ficando por esta forma encerrada a atual sessão, até ulterior ordem do vosso filho; do vosso amigo e soba de nós todos, para a sua definitiva posse; para a qual sem dúvida também sereis convidados."147 Mesmo levando em conta os evidentes interesses de angariação de recursos que caracteriza esse pedido, não é pura retórica a ênfase que o arauto dá para importância dos sertanejos para o exercício do poder do soba do Bié. De fato, como sugerido pelo macota, a aguardente de cana era o principal produto exigido pelo soba do Bié para o pagamento de tributos periódicos já que, como destaca José Curto, as bebidas alcoólicas no planalto não serviam só para saciar a sede, sendo utilizadas em rituais e festas, alianças matrimoniais, rituais de libação para acalmar ancestrais, festivais anuais, além do uso recreativo. Enquanto originalmente a produção de bebidas alcoólicas locais dependia dos ciclos periódicos da produção agrícola, o comércio atlântico permitiu o fornecimento de grandes quantidades de bebidas alcoólicas o ano inteiro, generalizando no século XIX o

147 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 126-127. (22/05/1861). Em outro episódio no final do mesmo ano, o soba Cilemo enviou uma carta a Silva Porto que, entre outros assuntos, declara seu interesse pela vinda de mais sertanejos para a terra, pedindo para que os negociantes não abandonassem o Estado pois ele, já tendo assumido o poder do país, corrigiria os "abusos" do seu povo. Para Silva Porto eram "palavras que o vento leva", mas essa ocasião também demonstra o constante interesse das autoridades africanas pelo estabelecimento de sertanejos em suas terras. Idem, Ibid., p. 201. (18/11/1861).

77 uso e dependência na região, tanto pelas chefias, quanto pelas populações comuns148. Para além de angariação de mercadorias para consumo próprio das chefias e redistribuição aos seus dependentes, o soba do Bié por vezes pedia aos sertanejos mercadorias importadas para o exercício do seu poder no sentido mais coercitivo, como na ocasião que Cilemo pediu pólvora a Silva Porto para poder realizar uma expedição contra um sobeta rebelde149. Como seria de se esperar, no entanto, esse tipo de cobrança teria um impacto considerável nos empreendimentos individuais dos sertanejos, criando tensões crescentes dos brancos com as elites. Um exemplo deste processo é evidenciado pela trajetória da carreira de Narcizo José Pacheco Lages. Nascido em Portugal, Lages atuaria no comércio marítimo no Porto, Rio de Janeiro e em Luanda, antes de partir para atuar como sertanejo no Bié. Em outubro de 1862, em uma conjuntura menos favorável para os empreendimentos sertanejos na região, como detalharei no capítulo seguinte, Lages abandonou a carreira dos sertões por causa do endividamento crescente que teve em virtude do pagamento de impostos e mucanos, mudando-se para Benguela. Na cidade, o negociante atuou como arrematante no porto da Catumbela até o seu falecimento no ano seguinte150. O abandono de negociantes de suas posições como sertanejos no Bié não se resumiu a decisões individuais como a de Lages. Durante o reinado de Vasovava, na década de 1830, sertanejos debandaram em massa da feira do Bié, resultando em um isolamento regional dos mercados atlânticos, que, segundo Silva Porto, obrigou os cidadãos locais se vestirem com peles e entrecascas de árvores por falta de fazendas151. Inspirados nessa experiência pregressa de boicote, em 1861 os sertanejos do Bié planejaram novamente abandonar o soba coletivamente, sendo Guilherme José Gonçalves o primeiro a abandonar a feira, que logo seria seguido por Silva Porto e outros. Não sabemos o quão articulado foi o plano e nem quantos sertanejos planejavam partir para depois renegociarem com o soba suas condições de estadia no país, porém no mesmo ano Gonçalves retornou de Benguela e acabou por abortar o plano, o que Silva Porto lamentou em seus cadernos: "foi um passo bastante imprudente [de Guilherme José Gonçalves] que jamais lhe perdoarei, porque ausente eu daqui e os mais, como se tinha

148 CURTO, Alcohol under the Context of the Atlantic Slave Trade, p. 53–55, 71–72. 149 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 66-67. (22/03/1861). 150 BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 396-397; Ms. 1238. Idem, 3º Volume-BIS, p. 24, 56. (28/12/1862; 11/04/1863; 31/08/1863). 151 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 166. (23/08/1861). Sobre a minha hipótese de esse ser o verdadeiro evento que ocorreu no “fechamento” da feira do Bié, ver a seção 1.2 do 1º Capítulo dessa dissertação.

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em vistas, mais tarde poderíamos regressar, impondo então condições ao gentio, por que está provado que ele [o soba do Bié] não pode prescindir dos europeus; assim pois, o passo está dado, e o remédio agora é o das caldas."152 Apesar da revolta com as obrigações que tinham com as elites locais, os sertanejos também gozaram de uma posição relativamente privilegiada no interior. Tais negociantes viviam por vezes como chefes de aldeia, fortificando suas povoações por onde passavam seus empregados pessoais, os quimbares, como vendedores ambulantes, mantendo grandes lavouras e, principalmente, concentrando em torno de si contingentes consideráveis de escravos e dependentes, podendo esses estabelecimentos chegar a centenas de moradores. Em 1862, Silva Porto, por ocasião da reforma do fosso de sua morada, a libata de Belmonte, foi informado de que circulavam rumores na terra de que estava fazendo uma fortaleza no local, o que poderia desagradar o soba. Enviando emissários para libata grande para acalmar o soberano, dois dias depois o soba mandou avisar ao sertanejo que não tinha com que se preocupar, pois bem sabia que o objetivo de Silva Porto era proteger seus animais de possíveis ladrões. Mesmo revoltado com os rumores, o sertanejo admite que em qualquer outra terra a construção teria sido interrompida pela possibilidade de se tornar uma fortaleza, sendo aceitável no Bié por causa da constante persistência dos europeus na região153.

152 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 291.(30/06/1862). Ver também: Idem, Ibid., p. 210-211. (13/12/1861). Pode-se estimar que esse tipo de estratégia foi pensado após o fracasso do abaixo assinado que os sertanejos do Bié enviaram ao Conselho Ultramarino em 1850 para pedir uma expedição militar contra o soba do Bié, inspirados na época pela campanha de Francisco Salles Ferreira contra Kasanje. A esse abaixo assinado nunca tiveram resposta, não parecendo a ocupação do Planalto Central estar nas prioridades de Portugal em meados do século XIX. Inclusive, em ofício secreto enviado pelo Conselho Ultramarino ao próprio Salles Ferreira, o militar recomenda a ocupação militar do , mas não sugere interferência direta contra os sobas do Bailundo e Bié – mesmo que sugira que Portugal deveria fomentar as rivalidades entre os dois Estados. AHU, SEMU, Conselho Ultramarino, Processos das Consultas, caixa 5, doc. 119, 1852, "Pedir informação acerca da Província de Angola [ao major Francisco Salles Ferreira]". O dito abaixo assinado está reproduzido em: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário de António Francisco Ferreira da Silva Porto, Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1986, p. 407–411. 153 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 218-219. (05/01/1862; 07/01/1862). MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 28.

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Imagem 2 – A Libata de Belmonte

Retirado de: Maria Emília Madeira, Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX). Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 208. A analogia de sertanejos com chefes locais, no entanto, não deve ser levada a todas as consequências, já que os brancos tinham uma posição bastante delimitada dentro da terra, o que também significava restrições específicas. Um exemplo disso está em episódio de 1845, no qual chegou em Belmonte uma amásia de um aristocrata da libata grande, denominado Puca, dizendo a Silva Porto que vinha tumbicar. No capítulo 3 dessa dissertação explicarei com mais detalhes no que consistia a tumbika, mas, em termos gerais, era uma estratégia de fuga de escravos da influência de seus senhores ao cometerem um delito contra terceiros, obrigando o proprietário do dito infrator a vendê-lo como indenização ao ofendido. Nessa ocasião, Silva Porto afirma para a dita escrava que não desejava em sua casa escravos dessa natureza, mas, como ela permaneceu em Belmonte até o momento da chegada de seu amásio, Silva Porto teve de pagar uma condenação pois "era Branco; e não devia receber tumbicamentos, costume somente privativo dos Senhores da terra"154.

154 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, António Francisco Ferreira da. Memorial de Mucanos, p. 4-5. (15/01/1845). Em outra ocasião, no entanto, acaba por aceitar a tumbica de uma mulher parente de agregado de Silva Porto que ia vende-la por causa de uma acusação de feitiçaria. Silva Porto alega que, se ele viesse

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1.3 Um Caminho para Benguela O impacto político da atuação sertaneja no Planalto Central de Angola não se resumia, no entanto, ao fornecimento de produtos importados. O comércio de longa distância demandava a passagem segura das caravanas pelos caminhos do interior, sob jurisdição de numerosos mandatários, o que demandou constantes esforços de construção de alianças político-diplomáticas pelos chefes das caravanas. Ao mesmo tempo que conflitos e rivalidades entre chefes africanos poderiam significar riscos de interceptação das caravanas sertanejas, os esforços dos sertanejos por pacificar os caminhos por onde atuavam também resultou potencialmente em pacificar as relações diplomáticas entre os chefes vizinhos. Mesmo que as guerras e razias ocupem parte central da história política e social dos povos do planalto, como já comentamos, não se pode negar que os negociantes luso-africanos, e os sertanejos em particular, tiveram protagonismo em processos de negociação que permitiram o trânsito relativamente regular e seguro de caravanas do Bié a Benguela, principalmente após o início dos anos 1850. O principal acontecimento nesse sentido foi protagonizado pelo próprio Silva Porto, quando em 1852 fez um acordo com o soba Mbonge (Bongue, em Silva Porto) do Bailundo para que a partir de então as caravanas do Bié passassem por suas terras155. Como já foi dito, a guerra entre o Bailundo e o Bié de 1823 forçou os sertanejos que atuavam no Bié a priorizarem a conexão litorânea por Luanda, já que temiam ataques e represálias por parte dos sobas do Bailundo. A partir de 1838, no entanto, os sertanejos procuraram reatar seus contatos com a praça de Benguela, fazendo com que Silva Porto colocasse a cidade em sua rota desde pelo menos 1841, buscando reestabelecer as relações dessa praça com o porto do então sul de Angola. Nessa época, os principais contatos comerciais de Benguela no interior vinham por rotas a sul e sudeste, a partir dos presídios

reivindicar a fugitiva, o sertanejo entregaria outro escravo seu para sanar a dívida. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 288-289. (21/06/1862). 155 O tema desse subcapítulo já foi abordado em: BARROCAS, Deolinda; SOUZA, Maria de Jesus, As populações do hinterland de Benguela e a passagem das caravanas comerciais (1846-1860), in: A Dimensão Atlântica da África - II Reunião Internacional de História da África, São Paulo/Rio de Janeiro: CEA/USP/SDG/Marinha, 1997, p. 95–107. Também realizei uma reflexão bastante inicial sobre o tema em: GONÇALVES, Ivan Sicca, Comércio e Política nos Sertões: sertanejos e sobas na formação das rotas comerciais de Benguela ao Lui (1842-1852), in: Anais do XXIV Encontro Estadual de História da ANPUH- SP: História & Democracia - precisamos falar sobre isso, Guarulhos: XXIV Encontro Estadual de História da ANPUH-SP, 2018.

81 de Caconda e Quilengues, conectados por sua vez ao Huambo e Ngalangi, sendo bastante bem vinda a reconexão com uma região tão produtiva quanto o Bié156. Não só sobas inimigos ameaçavam a atividade caravaneira. A violência escravista endêmica por séculos teve como uma de suas consequências a formação de pequenos grupos guerreiros nômades, que atacavam aldeias agrícolas e populações desguarnecidas. Sua formação seria ligada tanto à generalização da demanda por escravização de pessoas, quanto pelos desterros em massa causados por razias e secas. Tais grupos, tidos como bandoleiros, tinham atuação bastante frequente nos espaços por onde passavam as caravanas comerciais, especialmente no trajeto rumo ao litoral, por causa do maior envolvimento dessas regiões com o comércio de escravos, nas suas fases lícita e ilícita. Para tais guerreiros, o ataque a uma dessas comitivas podia assegurar fornecimento de produtos de alto valor, além da captura de carregadores para serem vendidos como escravos157. Por esse motivo, era estratégica a formação de caravanas grandes e com contingentes armados, que intimidassem salteadores e populações locais. No entanto, a principal medida para assegurar a segurança da comitiva era a passagem por terras controladas por sobas que, em troca da passagem segura por suas terras, recebiam impostos de passagem, como será detalhado no capítulo seguinte, sendo as zonas despovoadas de grande risco158. Por essa razão, os caminhos adotados do Bié para o litoral, seja pelo Huambo ou por Ngalangi, procuravam passar por estes grandes estados centralizados e pagar pelo direito de passagem, em territórios de dezenas de chefes diferentes159. Um exemplo dos ataques pelos quais as caravanas passavam ocorreu em março de 1845, com a caravana de António Luís de Sousa e Castro, da qual Silva Porto era funcionário. Na torna viagem de Benguela para o Bié, pelo caminho por Ngalangi, ao passarem por Cassenhe, o chefe de Cassoco convocou uma expedição para emboscar a

156 SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 60–61; DIAS, Angola, p. 398; SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Silva Porto e Livingstone: Manuscripto de Silva Porto encontrado no seu espolio, Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1891, p. 13. 157 MILLER, Way of death, p. 147–150, 157; CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 288. 158 SANTOS, Maria Emília Madeira, Perspectiva do Comércio Sertanejo do Bié na Segunda Metade do Século XIX, in: Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX), Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 18–19, 29–31; BARROCAS; SOUZA, As populações do hinterland de Benguela, p. 101. Sobre os mecanismos de formação dessas caravanas de grandes dimensões, ver o capítulo 3. 159 Ver, por exemplo, a contagem que fiz do número de pagamentos de imposto de passagem (quibanda) realizados nas duas primeiras viagens registradas de Silva Porto do Bié para Benguela em: GONÇALVES, Ivan Sicca, Apontamentos Vindos dos Sertões: negociação, comércio e trabalho nas Caravanas de António Francisco Ferreira da Silva Porto (década de 1840), Campinas: Coleção Monografias IFCH/UNICAMP, 2019, p. 75.

82 caravana na floresta: segundo Silva Porto, às dez da manhã, após atravessarem um rio e organizarem as cargas no acampamento, veio da floresta a comitiva atacante e se instalou um combate com armas de fogo por seis horas até a vitória da caravana sertaneja, deixando cinco feridos entre a gente da caravana que, segundo Silva Porto, foi por culpa de tiros de retaguarda entre os correligionários160. Seja por essa experiência, ou por outros inconvenientes, Silva Porto e a maioria dos sertanejos preferiam passar as caravanas pelo caminho do Huambo mesmo que, nesse caso, não passassem diretamente pelo presídio português de Caconda. Portanto, no ano seguinte, em maio de 1846, Silva Porto partiu para Benguela pelo Huambo, sendo esta a primeira viagem registrada em seus diários161. Na torna viagem, no entanto, quando passaram pela terra do Huambo, a caravana foi cercada pelo exército local e, quando o chefe da caravana, Guilherme José Gonçalves, foi questionar a razão da operação militar, o líder local respondeu que os ditos sertanejos eram cúmplices do antigo capitão do Huambo, que conspirou contra o poder do soba, distribuindo pólvora, armas, fazenda e aguardente aos inimigos do atual soberano. Portanto, cobravam a caravana pelo crime, ameaçando sequestro da comitiva em caso contrário162. Mesmo que os líderes da caravana tenham considerado partir para a luta armada, o Huambo não era um pequeno sobado ou uma comitiva de bandoleiros, tendo ainda o obstáculo posterior da caravana atravessar o rio Keve, cuja passagem se dava por ponte controlada pelo senhor da terra. Assim, decidiram pagar uma quantia considerável, dividindo proporcionalmente entre os brancos da comitiva, sendo que Silva Porto pagou 125$000 réis163.

160 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 52-53. (21/03/1847); SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 5-6. (12/03/1845). 161 BARROCAS; SOUZA, As populações do hinterland de Benguela, p. 96–97; SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 63–64. Em termos simplificados, o caminho pelo Huambo passava por este Estado, depois por Ciyaka (Quiaca, em Silva Porto), Nganda (Ganda, em Silva Porto), chegando em Benguela. Enquanto isso, o caminho por Ngalangi era mais longo, saindo do Bié para o Sambu (Sambo, em Silva Porto), seguia para Ngalangi e depois Cingolo (Quingolo), passando no caminho pelo presídio de Caconda. Ver a comparação da duração das duas primeiras viagens de Silva Porto, a primeira pelo Huambo, a segunda por Ngalangi, em: GONÇALVES, Apontamentos Vindos dos Sertões, p. 75. 162 Silva Porto afirma que o soba do Huambo na época chamava-se Callandula. Tanto Childs, quanto Ceita, não registram este nome em suas listagens, com ambos afirmando que o mandatário do país na década de 1840 era Casungo. CHILDS, The Chronology of the Ovimbundu Kingdoms, p. 244; CEITA, Silva Porto na África Central – Viye / Angola, p. 162. 163 Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 8-9. (17/06/1846). Não sabemos o valor total da cobrança, já que não há informações de quantos brancos viajavam juntos na comitiva e nem qual era a "regra de proporção" que o chefe da comitiva decidiu dividir entre eles. Como será explicado na última parte desse capítulo, os gastos de Silva Porto registrados no Memorial de Mucanos variavam muito entre si, tendo alguns consideravelmente mais altos do que a maioria dos pequenos litígios. Por essa razão, enquanto o gasto no Huambo é próximo da média de gastos por cobrança no memorial, de aproximadamente 139$017 réis, quando comparamos à mediana desses mesmos gastos, de 38$400 réis, percebemos como se destaca essa cobrança que tanto revoltou a Silva Porto.

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Mapa 5 - Trajetos das duas primeiras viagens registradas de Silva Porto

Retirado de: Santos, Maria Emília Madeira, Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX). Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 201. Provavelmente esse episódio, que Silva Porto classificou como “roubo escandaloso”, influenciou a decisão que tomou no ano seguinte, 1847, de liderar sua caravana pelo caminho de Ngalangi. Porém havia outro motivo importante para sua escolha. Em julho de 1846, logo após a passagem pelo Huambo, a comitiva em que estava Silva Porto encontrou-se com João Lourenço Borges, conhecido no interior como Canduco, oficial em comissão do comandante Joaquim Ferreira de Andrade, capitão-mor de Caconda164. Na ocasião, o Canduco estava convocando os sobas vassalos de Portugal, o Huambo, Bailundo, Civanda (Quibanda, em Silva Porto) e Ciyaca, para a guerra preta a ser usada em uma missão punitiva contra o Dombe Grande. Isso significava que os principais pontos do trajeto ficariam desertos, sem a proteção oferecida pelos sobas locais contra grupos de bandoleiros. Como se tratava de uma "guerra do rei", Silva Porto estimou que seria mais segura a passagem pelo caminho de Ngalangi, já que teria por salvaguarda a proteção do presídio de Caconda; o sertanejo afirma ainda que, se fosse uma guerra entre os reinos africanos, seria melhor adiar a viagem para esperar ocasião melhor165.

164 Erroneamente Silva Porto afirmou que o dito comandante do presídio se chamava Joaquim Teixeira de Andrade. SGL. Espólio de Silva Porto, cx. 1. Silva Porto, Borrões da 2ª Viagem, p. 1-6. (07/03/1847). 165 Idem, Ibid., p. 1-2. Ver a descrição que o soba de Caquingue dá a Silva Porto sobre a movimentação das expedições dos principais sobados do planalto em: BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 46-48. (13/03/1847).

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Os ndombe eram povos agropastoris habitantes do litoral onde os portugueses fundaram Benguela no século XVII; estando sob liderança de diversos chefes, os ndombe sofreram já nos primeiros contatos os impactos da presença colonial em suas terras, com muitos chefes derrotados e avassalados no próprio século XVII, enquanto outros se mantiveram autônomos até a meados do século XIX. De qualquer forma, a reconfiguração política e social do litoral sul de Angola fez com que o sentido das identidades ndombe mudasse com o tempo, assim, com o passar dos séculos, enquanto os habitantes de Benguela e cercanias passaram a não se entender mais como ndombe, essa identidade ficou associada à região a sul da cidade, o Dombe Grande, que entrou em contato mais direto com os portugueses a partir da década de 1760, por causa das suas minas de enxofre, necessárias para a produção de pólvora e pela sua posição estratégica para o controle das rotas comerciais mais a sul. Mesmo antes da abertura das minas, o seu soberano, Muene Quizamba, já era avassalado pela coroa, o que assegurava o reconhecimento da liberdade de seus súditos nascidos livres166. Essa vassalagem por muito tempo se resumiu a uma coexistência pacífica ou, nas palavras de Maria Alexandra Aparício, a uma política de boa vizinhança. No entanto, como já dito, com a Era Pombalina o interesse pela suposta riqueza da região de enxofre, além do potencial agrícola das terras, fez com que acirrassem conflitos entre os portugueses e os povos locais, que haviam se acomodado com a autonomia dos períodos anteriores. As constantes revoltas contra os trabalhos nas minas levaram à suspensão definitiva da exploração de enxofre em 1831; mesmo assim, frequentemente havia na região ameaças militares aos moradores portugueses e suas caravanas comerciais. Ainda que o governo colonial tenha formado e enviado milícias para controlar os ânimos dos ndombe, foi somente com a dita expedição de 1847 e a subsequente construção de um forte português na região, o reduto Cardoso, que os portugueses acabaram por tomar o controle militar da região167.

166 CANDIDO, Slave Trade and New Identities in Benguela, p. 59–60, 62, 66–67, 70–71. 167 APARÍCIO, Maria Alexandra, Política de boa vizinhança: os chefes locais e os europeus em meados do século XIX: o caso do Dombe Grande, in: A Dimensão Atlântica da África - II Reunião Internacional de História da África, São Paulo/Rio de Janeiro: CEA/USP/SDG/Marinha, 1997, p. 110–111. Candido associa também a violência militar dos chefes do Dombe Grande na década de 1840 ao crescimento e últimos respiros do tráfico ilegal de escravos, fazendo várias razias em regiões próximas de Benguela e vendendo para os contrabandistas. CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 290. Aparício diz que o forte foi nomeado "em memória a um oficial português", mas não diz se foi em função de Francisco António Gonçalves Cardoso, comandante que auxiliou Ferreira de Andrade no comando das tropas de Caconda. AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 10 A, 16 de dezembro, 1846. Em fevereiro de 1847, o governador geral de Angola já tinha informado o Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar de ter se encerrado a expedição punitiva do Dombe Grande com sucesso. AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 12, 6 de Fevereiro, 1847. Mesmo que a construção do reduto Cardoso tenha mudado a correlação de forças na região e imposto um controle mais enérgico das autoridades portuguesas, Aparício destaca que as revoltas logo voltaram a ocorrer, agora por causa das cobranças de

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No entanto, a liderança do comandante de Caconda nessa expedição gera questionamentos para os historiadores. Maria Emília Madeira Santos destaca que a preferência dos sertanejos por passarem pelo Huambo desagradava bastante o comandante do presídio, ainda mais diante da preocupação que vinha, desde a década de 1830, de desabastecimento econômico do forte com o fim do tráfico. A escolha dos sertanejos, para além da economia de tempo em um caminho menor, evidentemente levava em conta que a passagem pelo sobado a norte do presídio era vantajosa para fugir dos tributos cobrados pelas autoridades portuguesas. Assim, Santos levanta a hipótese de que Ferreira de Andrade intencionalmente chamou a guerra preta para forçar a passagem das caravanas do Bié pelo seu presídio168. É claro que a teoria de Santos não dá a devida relevância ao conflito de fato existente na região do Dombe Grande e a evidência de que, provavelmente sem essa guerra preta vinda dos grandes sobados do planalto, os portugueses pouco poderiam fazer para resolver a situação, já que nesse contexto de razias crescentes, as tropas portuguesas dos sertões de Benguela sofreram derrotas humilhantes, com o governador do distrito sendo emboscado e capturado por grupos africanos não em uma, mas em duas ocasiões169. Mas a hipótese sobre as intenções do capitão de Caconda não pode ser descartada, ainda mais se considerarmos o que aconteceu no sertão durante a realização da missão punitiva no Dombe Grande. Como já foi dito, Silva Porto se encontra com o Canduco em julho de 1846, avisando aos seus colegas sobre o esvaziamento das rotas assim que chegou no Bié. Em agosto saiu do Bié com destino a Benguela a comitiva de José Vaz Pereira dos Santos, descrito por Silva Porto como filho do país170, e em setembro partiu do mesmo local a caravana de Guilherme José Gonçalves. Em outubro chegou a notícia no Bié, dada pelos primeiros 15 sobreviventes, que a comitiva de Pereira dos Santos, composta originalmente por mais de 800 pessoas, havia sido sequestrada. Como muitos eram os prejudicados pela notícia e as tensões entre os locais e os brancos se acirraram, o soba do Bié convocou o capitão-mor, que por sua vez chamou todos os brancos do país para uma

impostos, já que a região havia se tornado um distrito português. APARÍCIO, Política de boa vizinhança, p. 111–112. 168 SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 65–66. 169 APARÍCIO, Política de boa vizinhança; DIAS, Angola, p. 410. 170 Silva Porto diz que os filhos do país eram aqueles que "não eram fidalgos e nem possuíam quaisquer títulos". SILVA PORTO, Costumes e usos gentílicos, p. 167. Jill Dias, no entanto, afirma que os filhos do país eram os herdeiros dos clãs familiares luso-africanos do interior, formados a partir de sertanejos e capitães-mores ao se aliarem e casarem com mulheres locais. Como já discutido na introdução desse trabalho, esses clãs foram fundamentais para a atividade comercial, dominando um cosmopolitismo cultural que os permitia circular por esferas coloniais ao mesmo tempo que mantinham raízes e interlocuções no interior das sociedades africanas. DIAS, Angola, p. 352–353.

86 audiência com o soberano. Mesmo chegando mais sobreviventes nos dias que se seguiram, os retornados não chegaram a 600, com Silva Porto estimando que um quarto da caravana foi "devorado pelos bandidos". Segundo o relato dos sobreviventes, ao chegar em Caconda, a comitiva de Pereira dos Santos teria enviado imposto de passagem para o comandante do presídio, sendo informados por um irmão de Canduco que o presente não era suficiente, tendo que dobrar o pagamento, como o sertanejo o fez e assim partiu para a cidade. Na torna viagem, decidiram desviar-se do presídio para passar na Quicuma, escolha feita possivelmente por causa do episódio do tributo suplementar. No entanto, na Hanya de Cima, poucos dias após saírem de Benguela, a caravana foi interceptada pelo mesmo irmão de Canduco, que disse serem ordens do comandante que a comitiva seguisse para o presídio, o que os sertanejos não puderam evitar por causa da expedição oficial armada que os interceptara. No amanhecer do dia seguinte a caravana foi atacada e saqueada pelos oficiais do presídio, e, mesmo que os brancos da comitiva tenham ido no arraial de guerra saber dos motivos dessa traição, foram ignorados e expulsos das barracas. Silva Porto faz uma descrição bastante vívida das reações emotivas da plateia da audiência na libata grande, com murmúrios de muitos presentes para que se assassinassem todos os brancos e saqueassem as suas moradas, aos quais o soba Lyambula teria respondido: "eu só desejo os meus filhos (...) bem como as minhas fazendas, a guerra é de brancos, os que existem na terra ficarão em reféns, até que o meu povo e fazendas me cheguem à mão"171. A situação frágil dos sertanejos no Bié, causada por esse deliberado ataque liderado diretamente por um oficial do governo colonial português só se tornou mais segura com a chegada de Guilherme José Gonçalves, em 7 de março de 1847172. Um dia antes da chegada da comitiva de Gonçalves, Silva Porto estava partindo para Benguela para levar documentos para notificar o governo de Benguela sobre o ocorrido, encontrando-se os dois sertanejos no caminho. Gonçalves conseguiu amenizar as tensões, pois já sabia do ocorrido e trazia fazendas em comissão do governo colonial – com contribuição de comerciantes da praça de Benguela –, satisfazendo parte da cobrança feita pelo soba e pelo povo. Gonçalves, que já desconfiava das intenções do comandante do presídio na viagem de ida, avisou as autoridades de Benguela sobre a ação do dito comandante e da consequência provável de expulsão e assassinato dos sertanejos do Planalto, o que era, como já comentei,

171 SGL. Espólio de Silva Porto, cx. 1. Silva Porto, Borrões da 2ª Viagem, p. 5. (07/03/1847). BARROCAS; SOUZA, As populações do hinterland de Benguela, p. 99. A descrição completa do episódio está em: SGL. Espólio de Silva Porto, cx. 1. Silva Porto, Borrões da 2ª Viagem, p. 1-6. (07/03/1847). 172 Possivelmente por causa do incômodo com a participação ativa de um oficial português nesse evento, Silva Porto apagou todos os comentários sobre a Guerra do Canduco na sua versão da BPMP.

87 um temor recorrente em Benguela pelo menos desde o início da década anterior, com a proibição do tráfico. Com o temor das medidas disruptivas causadas pelas ações do dito oficial, a administração de Benguela não só entregou as fazendas comissionadas para presentearem o soba do Bié, mas também demitiu o comandante Ferreira de Andrade. Quando Silva Porto passou em abril de 1847 pelo presídio, portanto, já encontrou a fortaleza sob comando de um capitão interino, Aurélio José Antunes173. A gota d'água dos sertanejos do Bié parece ter caído em outubro de 1851. No regresso de uma comitiva de Silva Porto da cidade para o Bié, ao passarem pelo Huambo, o exército da terra cercou a caravana, ameaçando sequestro. Ao perguntar ao chefe da guerra qual era o motivo da ameaça, este disse a Silva Porto que no Bié morava um senhor chamado António Francisco das Chagas, conhecido como Quimo, natural de Ngalangi e filho de europeus, que contraíra uma dívida de três fardos de fazenda com um morador de Ngalangi, cujo representante estava presente, e passados cinco anos sem indenizá-la, o dito emissário veio cobrar. A cobrança de litígios judiciais, os chamados mucanos, causados por outros negociantes, mesmo que não trabalhassem diretamente com o sertanejo, era comum no interior de Angola, como discutiremos na próxima parte do capítulo. Além disso, a Silva Porto revolta o fato de que, quando as dívidas se tornam judicializadas, o seu valor aumentava pelo menos ao dobro do valor originalmente contraído, acabando por pagar ao emissário a multa exigida e, com a contribuição ao soba, acabou por despender 600$000 réis. Chegando ao Bié, Silva Porto decidiu cobrar de Chagas o valor despendido, convocando-o a comparecer na libata grande para cumprir com seus deveres, o que não fez, fazendo com que Silva Porto entregasse a responsabilidade da cobrança da dívida para um magnata da libata grande, Raimundo, parente do soba do Bié, Mukinda, por ocasião da partida do sertanejo para Benguela. Raimundo acabou por retirar de Chagas oito escravas,

173 SGL. Espólio de Silva Porto, cx. 1. Silva Porto, Borrões da 2ª Viagem, p. 5-6fich. (07/03/1847). SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 69–70; BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 62-64. (04/04/1847-07/04/1847). Em seu relatório mensal, o governador geral de Angola reafirma em março de 1847 o que já tinha afirmado no relatório anterior sobre o fim e sucesso da missão punitiva ao Dombe. No entanto, nessa ocasião faz um breve comentário de que já estavam estabilizados os caminhos do sertão de Benguela, com os feirantes podendo passar sem receios de incômodos até a cidade, prometendo oportunamente dar ao ministro os detalhes circunstanciados sobre a Guerra do Dombe. Esse comentário sugere evidentemente que, apesar de não falar abertamente sobre o assunto, o governador em Luanda já estava a par do conflito ocorrido. AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 12, 4 de março, 1847. Sabemos ainda, por referência de texto de José Curto, que em 1847 o soba do Bié escreveu ao governador de Benguela pedindo restituição de um de seus súditos, escravizado ilegalmente, inclusive apontando quem seria o seu atual proprietário na cidade. O governador negaria a acusação, inclusive porque o dito proprietário "era seu amigo", mas mandava uma ancoreta de aguardente como presente na expectativa que o soba tratasse bem os súditos brancos na região. A referência implícita ao ocorrido no ano anterior, que possivelmente pode estar relacionado à escravização ilegal em pauta, é bastante evidente. CURTO, Alcohol under the Context of the Atlantic Slave Trade, p. 66–67.

88 o que o deixou revoltado, prometendo vingança e partindo para as ganguelas, para a terra de Muatamjamba. A situação piorou quando Chagas cumpriu sua promessa e sequestrou uma caravana de bianos que voltavam de viagem do Luvale com a ajuda de um soba local, do sítio Círa, que não só gerou prisioneiros, mas que também resultou no sequestro de marfim e cera e na morte de muitos carregadores. Mesmo apelando para que o soba Mukinda reconhecesse a responsabilidade do soba Círa pelo sequestro, foi a Silva Porto que coube o pagamento do resgate dos sequestrados e de suas mercadorias, além das compensações pelas mortes174. Em clara posição de dependência frente ao chefe da terra, Silva Porto acabou por gastar, por causa de Chagas, um montante de 4:100$000 réis, o mucano mais caro de sua carreira, sendo lembrado como uma tragédia comparável à Guerra do Canduco175. Deve-se destacar que o principal gasto de Silva Porto nesta contenda se deu por causa dos sequestros nas ganguelas, e não diretamente em razão da contenda inicial no Huambo. No entanto, a segunda ameaça de sequestro ao passar por este Estado e o mucano não desprezível que havia pago ao representante do morador de Ngalangi provavelmente foram o limite dos sertanejos do Bié para continuarem aceitando o caminho pelo Huambo. Além disso, após a experiência da guerra do Canduco, o caminho por Ngalangi não deveria ser especialmente atrativo, considerando a sua maior duração, assim como os gastos com os impostos e compreensível baixa confiança em Caconda. A opção feita pelos sertanejos, portanto, foi a de reestabelecer as relações com o soba do Bailundo, a quem evitaram desde o final da guerra de 1823. Tendo recuperado seu antigo poderio e detendo poder sobre um caminho mais direto e seguro até Benguela, esse grande soba do Planalto foi escolhido como interlocutor exatamente na expedição de Silva Porto saída do Bié em abril de 1852176. Vale destacar que, apesar do cálculo sertanejo dos ganhos possíveis caso se reatassem as

174 Mesmo que tenha sido protegido pelo soba de Muatamjamba, Chagas passaria seus últimos dias como pária nessa terra, como narrado em: SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 16- 22. (22/11/1852). Silva Porto afirma ainda que Chagas acabou por morrer decapitado em 1854, acusado de feitiçaria. O soba de Muatamjamba, por sua vez, seria destronado pelo seu povo por ser considerado responsável pelo incidente, junto a dois sobas subalternos seus. Sobre esses eventos e a relação que os sobas de Muatamjamba tiveram a partir de então com as caravanas do Bié, ver: BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 258-260. (25/11/1852). Esse litígio também está registrado em: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Silva Pôrto e a Travessia do Continente Africano, Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca - Agência Geral das Colónias, 1938, p. 39–45. 175 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 16-22. (22/11/1852); BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 255-260. (25/11/1852). Vale a comparação com a média e mediana dos gastos registrados no memorial de mucanos que são informadas na nota 163. No capítulo 3 discutiremos com mais detalhes as responsabilizações dos chefes de caravanas com os seus membros e as estratégias de dividir tais vínculos sociais de responsabilidades entre várias pessoas, diminuindo os riscos diante de catástrofes como a ocorrida em Muatamjamba. 176 BARROCAS; SOUZA, As populações do hinterland de Benguela, p. 101.

89 relações comerciais com o dito mandatário, os carregadores de Silva Porto temiam serem atacados pelo exército do soba do Bailundo, com receios de represálias por causa da derrota na guerra de 1823 e pelas recusas posteriores do soba do Bié de entregar o crâneo verdadeiro de Cingi II177. Silva Porto faz uma longa descrição de seu encontro com o mandatário do Bailundo em 5 de maio de 1852. Chamando-o por Dom João Bongue, juntando, portanto, um nome cristão com uma corruptela do nome africano desse soberano, Mbonge, Silva Porto manteve com este soba uma importante aliança por mais de dez anos. Como já dito, desde a década de 1830, o Bailundo passou por processo de expansão territorial, realizando numerosas razias e destronando vários sobas vizinhos. Em ocasião anterior, Silva Porto chegou a comparar as intervenções do "leão poderoso, senhor dos quimbundos" com a dominação da Inglaterra na Europa, interferindo na política interna dos seus vizinhos e reivindicando-se como estado mais poderoso da região178. Dessa forma, na audiência com Silva Porto, Mbonge acompanhou o sertanejo até o cume da montanha Catiaballa, onde se localizava a libata grande, e apontava as direções das libatas grandes dos diversos Estados vizinhos, se gabando de ter destituído os sobas de cada um deles, afirmando que agora só restavam os de Huambo e Ciyaka. No entanto, quanto aos portugueses, o posicionamento do soberano era mais ameno, afirmando a Silva Porto que queria ser seu guia e muito lhe interessava a passagem dos sertanejos do Bié por suas terras. Os episódios da guerra do Bailundo de 1773 a 1775, além da derrota para o Bié em 1823, são pontos importantes para entender a diplomacia do Bailundo, que mesmo sendo possivelmente a maior força militar na região daquela época, passava a optar por evitar conflitos abertos com essas duas autoridades, ainda mais porque seria exatamente com essa pacificação que o soba conseguiria a passagem e circulação de sertanejos por suas terras, e dos produtos

177 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 240. (07/05/1852). Como destaca Beatrix Heintze, o temor dos carregadores era uma base fértil para estratégias de chefias do interior que quisessem impedir a passagem de caravanas por suas terras, mesmo que os chefes europeus das comitivas não acreditassem nos boatos e ameaças que eram espalhados, sendo bastante difícil convencer o avanço de caravanas contra a vontade da maioria dos seus membros. HEINTZE, Comércio Distante, Notícias e Boatos, p. 207–210. 178 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 9-10. (24/05/1846); HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 109. O soba do Bié também interferia na sucessão dos sobados próximos, como ocorreu nas tentativas em 1862 de reentronizar o antigo soba do Ndulu (Anduro, em Silva Porto), estado vizinho a norte do Bié, destronado em 1856. O soba Cilemo do Bié optou por apoiar o antigo mandatário do Ndulu após a chegada deste no Bié em 1861, que oferecia, em troca do auxílio militar, ajuda para reestabelecer as rotas da região com Luanda, podendo assim aumentar o número de brancos no país. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 231-232. (29/01/1862-30/01/1862). Para a localização do Ndulu, ver Mapa 3.

90 importados que carregavam consigo179. Após fecharem o acordo sob juramento, no dia seguinte, o caminho do Bié, passando pelo Bailundo, até Benguela seria a conexão mais importante entre o Planalto Central e o litoral até o século XX180. Como discutiremos nos próximos dois capítulos, mesmo após Mbonge ser destronado em 1862, a pacificação entre os dois estados do planalto se manteve, sendo importante também para a expansão do envolvimento do Bailundo com o comércio de longa distância, seja por causa do acesso mais direto através do Bié às regiões produtoras de cera nas ganguelas, seja por fornecerem pombeiros a serem contratados pelos sertanejos do Bié para suas expedições para o interior e para o litoral181.

179 Sobre a relação do Bailundo com as autoridades coloniais portuguesas, vale ainda destacar que este sobado estava entre os sobas avassalados que participaram da guerra preta contra o Dombe Grande. 180 Fola Soremekun, baseado em Childs, procura polemizar sobre a inovação da rota do planalto que "alegadamente" Silva Porto teria sido pioneiro, afirmando que boa parte deste trajeto já fazia parte das rotas do tráfico de escravos pelos ovimbundu. Como tentei demonstrar, o ponto principal desse acordo não é o ineditismo do trajeto, e sim a possibilidade de fazê-lo após a guerra do Bié e Bailundo e, após estabelecida, as grandes vantagens que apresentou para se tornar a rota favorita das caravanas desde então. SOREMEKUN, Trade and Dependency in Central Angola, p. 89, 95. 181 Sobre a deposição do soba Mbonge, ver: BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 261-262 (11/01/1862). No capítulo 3 apontarei diversos episódios de conflitos entre carregadores bianos e bailundos dentro das caravanas sertanejas, o que não só demonstra a importância das lealdades políticas na formação das identidades africanas, mas também evidenciam como no cotidiano pouco havia de sentimento de igualdade entre os sujeitos que muitos historiadores entendem como parte de um mesmo povo ovimbundu.

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Mapa 6 – As Províncias dos Estados do Planalto Central de Angola

Retirado de: HEYWOOD, Linda M.; THORNTON, John K., African Fiscal Systems as Sources for Demographic History: The Case of Central Angola, 1799-1920, JAH, v. 29, n. 2, p. 221. A preferência sertaneja pelo caminho do Bailundo pode ser explicada por vários fatores. O mais evidente, e já apontado, é a economia de tempo por ser uma passagem mais direta até o litoral. Enquanto Silva Porto gastou nas suas duas primeiras viagens registradas, 27 e 44 dias, respectivamente, as viagens entre o Bié e Benguela pelo Bailundo duravam em média 25 dias182. Poderia durar até menos, se considerarmos caravanas suas que fizeram ida e volta do Bié para Benguela geralmente em 42 a 44 dias em 1861, conforme mostrará no próximo capítulo a Tabela 5. Além disso, atuar sob salvaguarda de

182 BARROCAS; SOUZA, As populações do hinterland de Benguela, p. 97.

92 um chefe poderoso trazia diversas vantagens para o comércio itinerante. Alguns dias após selar o acordo com Mbonge, diante da necessidade de a comitiva atravessar o rio Keve, os membros da caravana iniciaram a construção de uma ponte, que exigiu difícil trabalho por 11 horas de construção, necessitando inclusive a feitura de um guindaste improvisado por causa da violência do rio. Silva Porto destaca nesse processo que espectadores locais assistiam a tarefa, pesarosos porque geralmente cobravam o serviço de frete em passagem de canoas pelo espaço, perdendo esse ganho enquanto existisse a nova ponte no local. Segundo o sertanejo, a caravana só pôde construir tal passagem porque tinham ordens do soba Mbonge, que, em caso contrário, certamente os senhores daquele local não permitiriam tal construção183. Outra consequência da preferência pela passagem do Bailundo foi a diminuição da importância de Caconda na região, passando a ser cada vez menos frequentada por negociantes do Planalto Central, mesmo que mantivesse sua relevância como entreposto da costa com as áreas mais a sul do planalto184.

1.4 “Sorvedouro sem fundo” Mesmo com a constante valorização nos discursos oficiais dos sobas sobre a importância da presença sertaneja em suas terras, essa convivência era permeada de constantes conflitos. As oportunidades que os brancos traziam para o soba e aristocratas já foram descritas ao longo desse capítulo, desde o fornecimento de bens de prestígio, fundamentais para o exercício do poder no interior, até a intermediação diplomática com outras chefias e com oficiais coloniais. No entanto, sempre houve claro conflito de interesses entre os negociantes e os aristocratas locais, afinal, os produtos importados que os sertanejos traziam para o interior não o eram transportados para servirem de presentes aos poderosos do planalto – e sim para serem permutados mais para o interior, nas regiões produtoras dos tão demandados carregamentos de marfim e cera. Durante as décadas analisadas por esse estudo, de 1840 até o final da década de 1860, os relatos de Silva Porto indicam que houve intensa atividade sertaneja no Bié. A

183 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 241-242. (12/05/1852). 184 CANDIDO, Trade, Slavery, and Migration in the Interior of Benguela, p. 70. Heywood afirma que até o final dos anos 1860 as conexões diretas entre o Bié eram raras, prevalecendo as conexões com Luanda pelos presídios a norte do Bié, com a situação mudando somente na década de 1870, mesmo que reconheça a importância do acordo de 1852. Essa predominância dos contatos com Luanda não parecem ser um fato nem para Silva Porto e outros sertanejos da praça do Bié, e nem para o comércio africano do planalto que chega em Benguela, principalmente trazendo cera. Pode-se aventar também que, diante da maior atenção que a autora dá em seu trabalho ao comércio da borracha a partir dos anos 1870, comparativamente, de fato esse comércio de meados do século é consideravelmente menor - no entanto, como já apontamos, a circulação de produtos como a cera e o marfim no Planalto é comparável e possivelmente maior do que a do auge do tráfico atlântico de escravos. HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 113–115, 118.

93 reconfiguração da demanda, mesmo que não tenha ocorrido em um ambiente pacífico, não impediu a continuidade do constante fluxo de mercadorias importadas na região – além disso, durante as décadas de 1850 e 1860, deu-se a ascensão e o apogeu do comércio de marfim vindo do Barotse, como será detalhado no próximo capítulo. No entanto, nesse cenário aparentemente próspero, muitas foram as reclamações dos sertanejos sobre a sua permanência na região, dando destaque aos “constrangimentos” que sofriam ao serem obrigados a pagarem multas por litígios judiciais, os chamados mucanos. Segundo Silva Porto, os mucanos sempre foram objeto de conflito entre o soba do Bié e os brancos, levando em muitas ocasiões aos negociantes considerarem abandonar a região185. Tais disputas, não se resumiam, no entanto, à relação dos sertanejos somente com o soba do Bié. Como já discutido anteriormente, ao longo do século XIX, as elites aristocráticas no planalto, exemplo dos macotas, foram ganhando crescente poder sobre os chefes guerreiros, minando inclusive as prerrogativas dos sobas na relação com os brancos da terra. Em novembro de 1852, preparando-se para partir para o Barotse, Silva Porto pediu a permissão do soba Mukinda para a partida de sua viagem, como era de praxe, sendo autorizado pelo soberano do Bié a seguir o seu trajeto. No entanto, dois dias depois, quando estavam iniciando a viagem, veio um emissário do soba avisando que havia soldados bianos armados na outra margem do rio Kukema para impedir o avanço da caravana. Imediatamente Silva Porto mandou emissários para a libata grande questionando o procedimento, afinal tinha pago os tributos e, como já dito, já tinha até se despedido pessoalmente do soba sem nenhuma objeção. À noite retornaram os emissários avisando que a ordem não havia sido emanada do soberano, e sim dos macotas, por isso Mukinda sugeriu que seria conveniente que o sertanejo fosse para a libata grande para evitar quaisquer incidentes com os aristocratas. A exigência dos macotas era referente a um episódio já analisado aqui, o sequestro da caravana vinda do Luvale por ordem de António

185 SILVA PORTO, Costumes e usos gentílicos, p. 169–171. Vale destacar que em dezembro de 1862 o próprio Silva Porto considerou abandonar o Bié definitivamente, partindo para Benguela sem planos de retornar. Seu relato é até um tanto melodramático, reproduzindo um poema da Ilustração Luso-Brasileira, que admite alterar algumas palavras, dedicando-o à terra do Bié e seus amigos. Em setembro do ano seguinte, no entanto, reconsidera a sua decisão e retorna para o Bié, onde ficou de forma contínua até 1869, se ausentando somente durante as suas viagens comerciais. BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 378-380. (17/12/1862). Mesmo que esteja distante da acepção clássica de um “homem de letras”, Silva Porto registra em várias passagens de seu diário o seu consumo de impressos, periódicos e literatura. Para além de alguns relatos de viagem, como o de António Cândido Pedroso Gamito ao Cazembe, sobre o qual comentaremos no último capítulo, com frequência o sertanejo se refere e comenta o conteúdo das suas leituras de impressos trazidos de Benguela com as caravanas ao Bié. Dentre eles, para além da Ilustração Luso-Brasileira, Silva Porto frequentemente cita suas leituras do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro e do Jornal do Comércio. Outra presença recorrente nos seus apontamentos são os provérbios e máximas do escritor português José Joaquim Rodrigues Bastos, o Conselheiro Bastos.

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Francisco das Chagas, exigindo os macotas a Silva Porto que fizesse o pagamento dos resgates dos prisioneiros, para assim ser permitido o avanço de sua caravana para fora do país. O que nos interessa especificamente aqui é o fato dos macotas terem dado a ordem de parar uma caravana que já tinha a permissão do soba de avançar, e o soba, a quem Silva Porto compara a Pôncio Pilatos, aceitar o procedimento para evitar "qualquer incidente desagradável"186. O rancor crescente com essas elites e seus instrumentos de apropriação dos recursos, tanto dos sertanejos, quanto da população biana em geral, leva a Silva Porto se referir à corte do Bié como "sorvedouro sem fundo"187. É necessário destacar, porém, que não só em procedimentos judiciais que se acirravam as disputas entre os brancos e as elites bianas. Mesmo que em geral os sertanejos optassem por evitar o conflito armado, caso não fosse estritamente necessário, em 20 de julho de 1861, Silva Porto soube que no sítio Camucumba, vizinho a meia hora de marcha de Belmonte, havia sido sequestrada gente sua. Imediatamente o sertanejo distribuiu pólvora e armas de fogo entre os seus para irem soltar os prisioneiros, já que essa era quarta vez que os habitantes desse sítio tinham sequestrado dependentes do sertanejo. As duas partes se encontraram e cruzaram fogo por cerca de duas horas e, por crescerem os contingentes inimigos, os soldados de Silva Porto recuaram com vários feridos. Como seria de esperar, Silva Porto enviou emissário para a libata grande para informar do ocorrido, seja qual fosse o resultado futuro da contenda188. Para pensarmos qual é o lugar dos litígios judiciais na dinâmica dos conflitos nessas sociedades africanas, sempre temos que ter em mente que os envolvidos em geral estavam também dispostos para a resolução de disputas de forma armada, e por vezes, acabavam por se utilizar desse recurso189. Mesmo assim, os mucanos tinham lugar central no descontentamento dos sertanejos, e especificamente de Silva Porto, no convívio cotidiano no Bié. Em vários momentos de seus diários Silva Porto registrou sua revolta com os gastos consideráveis que tinha por causa desse sistema judicial, a ponto de reunir em um caderno separado, o seu Memorial de Mucanos, o registro de todos os mucanos que pagou durante sua carreira

186 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 252-260. (21/11/1852; 23/11/1852-25/11/1852). 187 HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 78. Vale relembrar que a própria aristocracia passava por conflitos internos entre os oficiais mais ligados ao poder central e à linhagem real, e os chefes locais, cada vez mais originários dos segmentos não aristocráticos da sociedade biana. THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 339. 188 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 152-153. (20/07/1861). 189 A administração colonial sabia da possibilidade e recorrência de resolução armada dos conflitos no interior do continente, tendo preocupação constante de que africanos poderiam roubar e matar os sertanejos em represália de ações violentas feitas nos domínios coloniais, como sequestros e escravização de carregadores. FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 57.

95 nos sertões, organizando-os de acordo com a data de pagamento final, e informando os motivos de cada contenda, o valor despendido e, com frequência, a lista de mercadorias utilizadas para o pagamento dessas multas. Por esses motivos, o Memorial de Mucanos de Silva Porto é uma fonte excepcional para compreender os conflitos cotidianos entre os moradores do Planalto Central de Angola e nele nos deteremos na sequência190. Alguns historiadores já utilizaram essa fonte em suas pesquisas. Quem analisou mais detidamente esse documento foi Maria Emília Madeira Santos, calculando os gastos totais desses procedimentos e estimando que cerca de 5% de todas as mercadorias transportadas de Benguela para o Bié durante a carreira de Silva Porto teriam servido somente para pagar mucanos191. Além disso, Santos sistematizou esses dados em uma tabela com a referência de data e gasto individual de cada mucano registrado no memorial na versão publicada do 1º volume que a autora organizou na década de 1980192. Mesmo que seja uma iniciativa importante, as informações mais ricas desse documento, que são as descrições dos motivos que levaram aos litígios, ficaram de fora da versão publicada. Além disso, apesar de ser um dado impressionante por si só, o somatório de gastos pagos em cerca de 30 anos como se tivessem sido deduzidos todos juntos ao mesmo tempo revela pouco sobre o impacto real desses gastos em cada conjuntura, já que, como explorarei no próximo capítulo, a quantidade de riqueza em circulação variou muito nesse período. Para o recorte dessa pesquisa, a distribuição dos gastos por quinquênio foi a seguinte:

190 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos. 191 SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 91. A sistematização dos gastos de Silva Porto com os mucanos é uma exceção à regra dentro dos dados contáveis presentes na documentação pessoal do sertanejo. Não há registros sistemáticos ou padronizados de quanto era gasto com as quibandas (impostos de passagem) no caminho, nem com as dádivas aos sobas e magnatas de dentro e fora do Bié, e mesmo os valores das faturas das permutas realizadas no interior nem sempre são registrados nos diários. Santos utilizou como referência a informação de que Silva Porto contraiu no litoral 400 contos de réis fracos entre 1842 e 1870, calculando a partir daí a porcentagem de gastos com os mucanos registrados no mesmo recorte, sem fazer essa contagem para o período posterior. Não subscrevo, no entanto, a hipótese pouco verossímil da mesma autora de que o sertanejo desconhecesse o montante dos seus gastos totais e não tenha refletido sobre o impacto dos mucanos diante de lucros potenciais, como bem demonstra o Anexo IV dessa dissertação, no qual o sertanejo prevê porção de mercadorias para gastos com impostos e "comedorias" dentro de cada fardo. Outro cálculo baseado nos valores totais dos gastos no memorial foi feito por José Curto, focalizando, no entanto, especificamente o uso de bebidas alcoólica nesses pagamentos. CURTO, Alcohol under the Context of the Atlantic Slave Trade, p. 71. 192 SILVA PORTO, Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário de António Francisco Ferreira da Silva Porto, p. 391–397.

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Tabela 1 – Gastos do Memorial de Mucanos, por período Período do Quantidade de Valor Percentual Valor (réis fracos)193 Pagamento: Cobranças do Gasto (%) 1841-1845 2:592$200 10 12,68479 1846-1850 2:245$700 15 10,98921 1851-1855 5:379$200 7 26,32282 1856-1860 5:436$550 46 26,60346 1861-1865 2:946$850 51 14,42025 1866-1870* 1:835$000 18 8,979472 Totais 20:435$500 147 100

Maria Emília Madeira Santos de fato faz algumas considerações conjunturais sobre esses pagamentos. Comenta, por exemplo, sobre o recrudescimento a partir de 1859 da cobrança de mucanos, quase dobrando a média anual de gastos até então de 635$961 para uma média anual de 1:286$850 até 1862. Com as suas ausências prolongadas nos seis anos seguintes, no entanto, a média anual de gastos atingiria um quinto do quadriênio de 1859 a 1862, chegando a somente 250$158. Evidentemente, ao optar por recortes de análise não uniformes, os resultados de Santos parecem se distanciar da tabela 1, mas eles convergem em outros padrões194. Percebemos que a década entre 1856 e 1865 concentram a maioria das cobranças, 97, que correspondem a quase 66% do total, mesmo que os valores variem tanto, a ponto dos gastos somados no mesmo período sejam um pouco mais de 41% – tal frequência maior pode estar ligada de fato aos períodos de permanência do sertanejo no Bié, aumentando as oportunidades dos contendentes o visitarem para cobrar disputas antigas. Além disso, eventos individuais impactam radicalmente nas proporções, ainda mais se considerarmos o quinquênio de 1851 a 1855 que, apesar de ter somente 7 cobranças, equivale a mais de 26% dos gastos – o motivo principal, nesse caso, é a contenda causada por António Francisco das Chagas, que resultou sozinha no dispêndio de 4:100$000, que corresponde a mais de 76% dos gastos do quinquênio.

193 Segundo Silva Porto, havia duas moedas em circulação em Angola, os réis fortes, que era a moeda que também circulava na metrópole, e os réis fracos, que valiam menos da metade dos outros, e era o de uso contínuo na colônia, com exceção das repartições públicas, que pagavam seus funcionários com réis fortes. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 47, 11. (28/07/1863; 03/02/1863). * Em meu estudo não incluí todos os mucanos pagos no ano de 1870, o que gerará distorções contáveis se comparar com a tabela de Santos. O objetivo inicial da pesquisa, de fato, não inclui o ano de 1870 no recorte explorado, porém inseri os primeiros três mucanos pagos naquele ano (dentre os 13 pagos ao longo do ano), pois os conflitos que levaram a estas cobranças ocorreram dentro do recorte temporal de minha pesquisa. 194 SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 158–159. Mesmo com os recortes de análise diferentes, é possível comparar os dados de ambos os trabalhos por causa da relação dos mucanos que inseri no Anexo II, informando a data de cobrança, o acusado, a motivação do litígio e o valor dispendido, baseando, portanto, a construção das tabelas e gráficos apresentados até o final desse capítulo.

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Mas antes de seguirmos nas análises dos dados do memorial de Silva Porto, é necessário entender melhor o que eram os mucanos. Segundo Catarina Madeira Santos, mukanu era o termo utilizado de forma genérica para se referir às formas de resolução verbal de diferentes categorias de crimes e delitos, referindo-se geralmente com um termo que especificasse o litígio em questão, como "mucano de morte", "mucano de feitiçaria", "mucano de injúria", entre outros. A sentença de um mucano geralmente consistia no pagamento de uma multa como forma de reparar o crime cometido, sendo assim o objetivo teórico do sistema não era a punição ou repressão, e sim reestabelecimento do equilíbrio entre as partes. Assim, tanto o litígio, quanto a compensação dele em formato de multa, eram conhecidos como mucanos. Mesmo que não estivesse necessariamente ligado a questões de escravização, muitas vezes os réus condenados por esse sistema tinham que pagar as multas cedendo escravos ou dependentes, sendo o termo com o passar dos séculos cada vez mais relacionado com os processos de verificação da legitimidade da escravização no interior195. Referências ao sistema de mucanos aparecem crescentemente nas fontes portuguesas a partir do século XVII por causa da necessidade da administração colonial de se apropriar e incorporar esse sistema jurídico ao aparato administrativo português. Com a expansão do tráfico, aumentaram as reclamações dos sobas aliados sobre a venda ilegal de gente que era reconhecida como livre, tornando-se uma necessidade geopolítica para o domínio da região o reconhecimento de estatutos legais internos às sociedades africanas, para assim evitar contestações agressivas dos chefes vassalos com guerras e assaltos às caravanas. Deste modo, os portugueses integraram o sistema jurídico africano em um arcabouço jurídico misto, no qual os centros de decisões locais dos sobas serviriam como tribunais de 1ª instância, e um tribunal presidido pelo governador geral em Luanda seria a última instância centralizada. Nesses tribunais locais os capitães-mores também foram incorporados, tendo importância crescente para o reconhecimento das decisões das

195 MADEIRA-SANTOS, Catarina, Esclavage africain et traite atlantique confrontés : transactions langagières et juridiques (à propos du tribunal de mucanos dans l’Angola des XVIIe et XVIIIe siècles, Brésil(s), v. 1, p. 127–148, 2012, p. 6–7; FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 99–100. Em Silva Porto há a seguinte definição para mucanos: "Mucanos ou milongas é o termo por aqui aplicado em português aos crimes de qualquer grau. No idioma umbundo servem-se dos termos ulonga e muéquite [muquiti]: aquele para designar os crimes de menor gravidade, e este os de maior, como sejam: assassinato premeditado ou acidental, feitiçaria e coabitação com mulheres do soba." BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 9. (17/05/1846). Segundo um governador de Angola do final do século XVIII, na região de Benguela, em língua umbundu, utilizava-se o termo olimbo, sendo o olimbo muquiti para crimes de morte violenta, olimbo bihuanga para feitiçaria, olimbo biofuca para dívidas, olimbo buimuni para roubo e olimbo biombaro para injúrias. FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 100.

98 jurisdições locais pelo tribunal central. O resultado deste sistema era uma cultura jurídica bastante híbrida e profundamente dependente das chefias africanas, que sempre poderiam oferecer um contraponto à frágil presença política portuguesa no ultramar196. Com o crescimento do tráfico também cresceu o número de litígios de mucanos, que nos meios coloniais já era entendido como sinônimo de julgamentos de liberdade. Com a existência desse mecanismo jurídico misto, aumentou-se o uso desses tribunais durante o século XVIII como espaço de luta, principalmente dos africanos nascidos livres em sobados avassalados próximos das bases coloniais, que se apropriaram desse mecanismo como instrumento de reivindicação de liberdade frente à expansão brutal da escravização nas terras avassaladas. Esse processo foi alimentado principalmente por causa da criação de saberes populares sobre o funcionamento dos procedimentos jurídicos nos territórios mais envolvidos com a ação colonial. Inclusive, no início do século XIX, a expansão do uso desses tribunais caracterizou-se não só pela sua apropriação para reivindicação da liberdade, mas também para punição dos escravizadores197. No entanto, os mecanismos legais não eram só utilizados para defender a liberdade daqueles que tinham sido indevidamente escravizados. Uma das consequências da diminuição do avanço territorial português a leste, como já foi dito, foi o de aumentar a pressão pelo "fornecimento" de gente escravizada nos territórios vassalos de Portugal. Assim, o campo jurídico ganhou uma especial centralidade para se tornar um meio legítimo de angariar cativos para as Américas, mantendo junto das razias e sequestros um fluxo contínuo e crescente de mão de obra para os negreiros. É difícil mensurar o quanto houve de fato mudanças nas leis costumeiras dos sobados, as kesilas, no entanto repetem-se relatos de africanos tentando resolver seus litígios diversos entregando escravos para os sobas, e de sobas entregando esses cativos para sertanejos e pombeiros, o que muitas vezes

196 MADEIRA-SANTOS, Esclavage africain et traite atlantique confrontés, p. 7–10; FERREIRA, Cross- cultural Exchange in the Atlantic World, p. 101–104, 11–13. 197 FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 110–113, 115–118; MADEIRA- SANTOS, Esclavage africain et traite atlantique confrontés, p. 10–13. Mesmo que possa parecer um fenômeno secundário frente à simultânea expansão brutal do tráfico atlântico, há conjunturas como a do mandato do governador Manoel de Almeida e Vasconcelos de Soveral (1790-1797) que o mecanismo parece ter sido bastante importante e recorrente, mesmo que Roquinaldo Ferreira, que analisa o período, reconheça que os sucessores de Vasconcelos parecem não ter dado continuidade à sua política mais incisiva de combate à escravização ilegal. FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 80–87. Entender o campo jurídico como espaço de luta a partir das interpretações e aplicações da lei não tira a crueldade e injustiça do sistema, como bem demonstrou E. P. Thompson em seu estudo sobre a lei Negra e sua aplicação na Inglaterra setecentista. THOMPSON, E. P., Senhores & Caçadores: A Origem da Lei Negra, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 331–361.

99 era proibido; no entanto, no caso de acusações mais sérias como traição, conspiração ou feitiçaria, o soberano ganhava jurisdição para vender tais escravos198. Assim, processos judiciais fraudulentos poderiam servir de disfarce para escravização deliberada, o que dissolvia as fronteiras legais que poderiam oferecer proteção aos homens e mulheres nascidos livres, em um processo mais amplo de mudança das moralidades no seio das sociedades da zona atlântica, tornando cada vez mais legítimo escravizar pessoas por crimes cujas sentenças até então não resultavam em tamanha penalidade. Esse era o caso de crimes como endividamento ou adultério, considerados atentados contra a propriedade em que, caso os condenados não conseguissem pagar as multas, eram escravizados. Além disso, nesses dois casos há claras indicações de chefes e membros corruptos dos tribunais se apropriarem desse mecanismo para escravizar gente fragilizada para angariar cativos para o tráfico199. Há sugestões inclusive de haver acordos entre chefes de linhagem e suas esposas para armarem contra parceiros jovens e incriminá- los200. No entanto, para os crimes mais sérios, como conspiração e feitiçaria, as penas eram tão grandes que dificilmente o condenado teria recursos suficientes para cobrir a despesa, sendo forçado a ser escravizado, assim como os seus familiares. As acusações de feitiçaria eram especialmente "estratégicas" nesse sentido, já que qualquer que fosse o seu resultado, a condenação do acusado ou a repreensão do falso-acusador, ambas resultavam na escravização dos envolvidos e de seus familiares201. Além disso, parte da historiografia tem apontado como esses crimes mais graves como feitiçaria e traição originalmente eram punidos com pena de morte, e não escravização, trazendo uma mudança de sensibilidade jurídica bastante conveniente com as novas demandas econômicas do Atlântico202. O

198 FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 14–15; CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 228–229. Magyar afirma que eram quatro os crimes passíveis de pena de escravização no planalto: lesa majestade (katanda kundi na soma), calúnia (milonga ya balula), "contato secreto com os maus espíritos dos mortos" (ondele án kilulu) e feitiçaria (hanka). Magyar, 1857 apud SEBESTYÉN, Éva, Escravização, escravidão e fugas na vida e obra do viajante-explorador húngaro László Magyar (Angola, meados do século XIX), in: DEMETRIO, Denise Vieira; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos; GUEDES, Roberto (Orgs.), Doze Capítulos sobre Escravizar Gente e Governar Escravos: Brasil e Angola - séculos XVII-XIX, Rio de Janeiro: Mauad X, 2017, p. 303. 199 CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 230–231; FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 69; VANSINA, Jan, Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760- 1845, The Journal of African History, v. 46, n. 1, p. 1–27, 2005, p. 11; CANDIDO, Fronteras de esclavización, p. 160–161. 200 MILLER, Way of death, p. 164; HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 81. 201 HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 80–82; VANSINA, Ambaca Society, p. 12. A pena de escravização por falsa acusação valia pelo menos para as sociedades ambundas que Jan Vansina analisa em Ambaca, no entanto, como veremos na sequência, não aparecem registros dessa penalidade nos casos que conhecemos do Planalto Central. 202 FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 70; CANDIDO, Fronteras de esclavización, p. 175.

100 próprio soba Mbonge, em sua audiência com Silva Porto, mostra um despenhadeiro que era utilizado para sacrificar condenados por conspiração, coabitação (adultério) e feitiçaria; no entanto, o soberano do Bailundo afirma não utilizar mais essa sentença, pois indispunha os ânimos do povo, alegando que os crimes de menor gravidade "passam desapercebidos", e nos de maior seriedade eram enviados os criminosos para a Cumbilla, para "servir de pasto aos antropófagos"203. Parece pouco provável, nesse cenário descrito pela historiografia, que os crimes de menor gravidade passassem "desapercebidos"; muito provavelmente eles resultavam na escravização dos condenados, que não mais eram sacrificados204. Como apontado, portanto, não só os sujeitos condenados pelos mucanos poderiam adquirir a condição servil, mas esse destino muitas vezes se reservava aos seus dependentes. Uma das principais estratégias que homens comuns condenados utilizavam para poder pagar os seus mucanos era de vender seus escravos, caso o tivessem, e de penhorar membros de sua linhagem de forma temporária. A prática da penhora de dependentes não era exclusiva dos processos judiciais, sendo forma recorrente de chefes de linhagem pagarem dívidas, sem precisar escravizar seus parentes, que tinham posição distinta enquanto penhores (hafuka, em Umbundu) frente aos escravos. Com a intensificação do tráfico, no entanto, essas fronteiras tenderiam a ser embaçadas, sendo uma das práticas mais recorrentes de escravização ilegal no século XVIII a venda de gente temporariamente penhorada como se fosse escrava205. Em momentos de vulnerabilidade extrema, como era o caso de secas prolongadas, Jill Dias afirma que muitos africanos do norte do Kwanza se vendiam para outros africanos como forma de se salvarem da fome,

203 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 233-238. (05/05/1852). Esse tipo de boato sobre povos vizinhos antropófagos era recorrente na África Centro-Ocidental. Ver a análise de Heintze sobre a questão dos boatos de antropofagia na África Central, indo além das imagens ocidentais e mostrando a sua alta recorrência entre africanos, além da intensificação desse tipo de ameaças no contexto de expansão do comércio de longa distância. HEINTZE, Beatrix, Contra as Teorias Simplificadoras: o “Canibalismo” na Antropologia e História de Angola, in: A África Centro-Ocidental no Século XIX (c. 1850-1890): Intercâmbio com o Mundo Exterior, Apropriação, Exploração e Documentação, Luanda: Kilombelombe, 2013, p. 235–238, 242–245. 204 Um tipo de pena, no entanto, não anula o outro. Em 1865, Silva Porto comenta sobre um pombeiro seu, proveniente do Bailundo, que estava preso por acusação de feitiçaria e, se não conseguisse pagar o mucano inteiro – no valor de 4 escravos, tendo o acusado já dispendido de dois –, seria decapitado por ordem dos irmãos que o acusavam. Para evitar o cumprimento da pena, o sertanejo acabou por pagar os outros dois escravos que liberavam o seu funcionário da prisão e da morte. BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 478. (19/08/1865). 205 VANSINA, Ambaca Society, p. 12; HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 99; FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 79. As autoridades coloniais portuguesas reconheciam a interrelação entre o penhor e a escravização ilegal, por isso procuraram proibir em 1770 que homens livres de terras avassaladas pudessem penhorar seus filhos. Tanto por causa da cumplicidade dos capitães-mores, quanto pela fraqueza estrutural da administração colonial, na prática a aplicação dessa norma foi artificial e difícil de ser imposta, o que era reconhecido pelos próprios administradores coloniais. Ibid., p. 77–79.

101 evitando fazer trabalhos forçados, como de carregadores, por exemplo. Uma minoria, no desespero, não tinha essa opção e buscava salvação nos trabalhos como carregadores ou em trabalhos obrigatórios como o de construção de estradas. Além disso, nas secas da década de 1850 há vários relatos de homens e mulheres vendendo a si e seus parentes em troca de alimentos - mesmo que alguns destes, com a melhora das condições climáticas, acabavam por fugir de volta para suas terras alguns meses depois206. Portanto, mesmo que os negociantes brancos pudessem reclamar bastante do sistema e do impacto considerável que tais multas tinham no seu empreendimento cotidiano, o sistema foi muito mais impactante e violento para os nativos, que tinham menor capacidade de pagar suas dívidas, sendo arrastados eles e seus parentes para a condição servil207. Agora que foram apresentadas algumas características da aplicação desse sistema jurídico, voltemos para o memorial de Silva Porto. Para o nosso recorte, há um total de 147 cobranças, sendo a primeira feita em 1842 e as três últimas pagas em 1870, mas cujos litígios foram causados por eventos ocorridos nos anos anteriores. O primeiro destaque que deve ser feito é de que nem todas as cobranças registradas no memorial são provenientes de mucanos, sendo 20 delas não relacionadas ao pagamento dessas multas. Um desses casos ocorreu em 1849, quando a caravana do caixeiro de Silva Porto, Manoel, passou pela terra do soba Quissembo, nas ganguelas. Nessa ocasião, o soba exigiu a entrega de um escravo de Manoel, o que o caixeiro se recusou a fazer caso não fosse pago um resgate pelo dito cativo, do contrário não o entregaria. Quando a caravana partiu em marcha, a caravana foi atacada pelo soba, sofrendo alguns roubos e sendo levado o escravo em

206 DIAS, Famine and disease, p. 357, 360. Miller destaca que venda de parentes era estratégia recorrente de angariar recursos não só pelos sujeitos vulneráveis, mas também pelos príncipes mercantes. MILLER, Way of death, p. 158. Candido critica a noção de auto-escravização, defendendo que não há referências claras na documentação portuguesa de que de fato tenha ocorrido esse fenômeno. Uma hipótese da autora é que por vezes a tumbica tenha sido confundida com uma "auto-venda". Essa associação, como detalharemos no 3º capítulo, se dá pelo fato do escravo, ao tumbicar, forçar a troca de senhor, se oferecendo ao novo soberano. Assim, como destaca Candido, a tumbica não se trata de uma conversão voluntária de uma pessoa livre como escrava, e sim, de certa forma, uma estratégia de fuga. CANDIDO, Fronteras de esclavización, p. 177. Um caso interessante para pensar esse debate ocorreu em Luanda no começo do século XIX, no qual, diante de uma crise de fome, muitos africanos teriam sido obrigados a se vender e vender seus filhos em troca de comida. No entanto, mais tarde, estas mesmas pessoas reivindicaram seus estatutos enquanto nascidas livres, o que foi reconhecido e restituído pelo Tribunal de Mucanos da capital. MADEIRA-SANTOS, Esclavage africain et traite atlantique confrontés, p. 9. 207 HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 83. Jan Vansina concorda que a severidade das penas era consequência da demanda crescente do tráfico, já que, como vimos, aumentaram consideravelmente as justificativas para escravizar pessoas da mesma comunidade. No entanto, destaca que a lei costumeira nesse caso trazia um valor extremo para a sacralidade da propriedade, sendo para o autor uma defesa mais incisiva do que a dos dispositivos de defesa da propriedade da Inglaterra setecentista ou do que o Código Napoleônico. VANSINA, Ambaca Society, p. 12. Heywood destaca, a partir de relatos missionários da década de 1920, que esse sistema legal era lembrado com bastante ressentimento entre os habitantes do Planalto Central de Angola. HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 84.

102 questão208. Mesmo não se tratando de um litígio judicial, Silva Porto registrou em seu memorial as perdas financeiras que teve por causa dos gêneros roubados nesse ataque. Minha hipótese é que o caráter de imprevisibilidade dos gastos, que marca todos os mucanos e os outros casos registrados no memorial é o que caracteriza a listagem, diferenciando-se, portanto, de outros gastos consideráveis, mas já previstos por quem conhecia as regras de funcionamento do comércio caravaneiro, como eram o recrutamento de carregadores ou o pagamento de tributos de passagem209. Outro fator importante de ser destacado para caracterizar essa listagem é que nem todos os litígios registrados foram causados por ações pessoais do próprio Silva Porto; inclusive, como veremos na sequência, a maioria dos casos não o foram. O princípio de responsabilidade coletiva que fazia parte desse ordenamento jurídico justifica não só o que já comentamos de escravização de familiares no caso de crimes mais sérios, como de conspiração ou feitiçaria, mas também mostra a importância fundamental para os africanos, nesse período de vulnerabilidade extrema, buscarem nos poderosos, sejam eles brancos ou chefes guerreiros, a proteção e segurança, em troca de servir como clientela. Assim, como exploraremos no 3º capítulo, a contrapartida da fundamental reunião de dependentes para permitir a concentração de riquezas no interior do continente era de aceitar os vínculos sociais de responsabilidade que tais relações de dependência subentendiam210. Há que se destacar, no entanto, que no memorial não há o registro do uso de Silva Porto e de outros sertanejos desse sistema jurídico para acusar outros moradores do Bié ou de outras regiões, já que a listagem é somente das cobranças feitas a Silva Porto. Além disso, desrespeitando determinação do próprio soba do Bié, Silva Porto quase não leva os litígios para o tribunal da libata grande, preferindo na maioria das vezes pagar o valor exigido diretamente ao acusador, com os devidos registros sacramentais. O argumento do sertanejo é de que os gastos envolvidos com dádivas ao soba e cortesãos por ocasião do envio dos litígios para a libata grande geralmente ultrapassavam os valores exigidos pelos

208 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 13. (13/07/1849). Outro exemplo de registro no memorial que não envolve mucanos é o caso do ataque em Ngalangi em 1845 à comitiva de António Luiz de Souza e Castro, a qual já foi comentada acima. No memorial o sertanejo registra o episódio e dá o inventário dos gastos despendidos para gratificar os membros da caravana pela vitória em batalha. SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 5-6. (12/03/1845). 209 SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 159. 210 VANSINA, Ambaca Society, p. 11. Utilizo o conceito de "vínculos sociais de responsabilidade" inspirado no trabalho de: SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos, Sociabilidades em Trânsito: os carregadores do comércio de Longa Distância na Lunda (1880-1920), Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 154.

103 litigantes, inclusive porque não havia garantia do sucesso da empreitada ao levá-la ao tribunal211. Assim, em todo o período analisado, somente em sete ocasiões o sertanejo afirma ter utilizado o tribunal para se defender212. Outro ponto relevante para se pensar esses litígios são as supostas transgressões que justificam as denúncias. Apesar de haver repetições, os casos em geral são muito distintos uns dos outros, e os valores das multas variam bastante entre si. Inspirado nos apontamentos da bibliografia sobre as transformações no sistema jurídico e nas particularidades de cada caso descrito por Silva Porto, classifiquei as cobranças de acordo com 13 categorias de mucanos, além dos registros aos quais o sertanejo não informa a transgressão causadora, e das cobranças que não dizem respeito a mucanos, tendo as suas recorrências demonstradas no Gráfico 1213.

Gráfico 1 - Tipologias dos Mucanos, por quantidade de cobranças

Não Mucano 20 Não informado 13 Sequestro (pessoas) 5 Sequestro (objetos) 3 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio 26 Questões Funerárias 2 Morte / Assassinato 20 Injúria 7 Fuga 4 Ferimento 7 Feitiçaria 3 Dívida 18 Contaminação Venérea 1 Conspiração 1 Adultério 17

0 5 10 15 20 25 30

211 SGL. Res. 2 – C – 6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, volume 2º, p. 12, 168. (30/11/1860; 01/09/1861). 212 Por causa desse tipo de dispêndio e da recorrente arbitrariedade dos tribunais, Heywood argumenta que essas instituições eram controladas pelas elites africanas, sendo só os mais experientes dentre os homens comuns que conseguiam tirar proveitos desse sistema. HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 84- 85. 213 Há 12 cobranças nas quais são acumuladas duas acusações referentes ao mesmo transgressor. Para evitar distorções na contagem do número de acusações por tipologia e o posterior balanço do impacto financeiro de cada tipo de conflito, optei por definir uma “causa principal” para o conflito, seja por ela ser mais importante diante das outras acusações que são somente fatores agravantes, seja por ela causar as outras transgressões. Um exemplo disso é uma acusação de adultério realizado por um escravo e a sua posterior fuga, para não ser punido pela primeira acusação – nesse caso, por exemplo, considerei o adultério como razão principal da cobrança. SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 63. (12/07/1869). O registro completo dessas acusações “mistas” está na tabela do Anexo II.

104

Alguns pontos chamam atenção no gráfico 1. O primeiro deles é a ocorrência dos principais mucanos em que o combate e penalização aumentaram no contexto de maior demanda pela “produção” de escravos para o tráfico, como é o caso das dívidas, feitiçaria, conspiração e adultério. Como também já apontado, muitos desses litígios são considerados atentados ao direito de propriedade, somando-se, portanto, aos roubos e sequestros. Como será discutido na sequência, são recorrentes as reclamações por injúria, sendo prática difundida no planalto para penalizar aqueles que porventura pudessem ameaçar os moradores da região com acusações sem fundamento. No entanto, os valores dessas multas variam muito entre si; assim, a simples recorrência numérica de cobranças por tipologia de acusação oferece uma visão distorcida do real impacto de cada tipo de conflito nas finanças do sertanejo. Vamos então observar no Gráfico 2 a relação dos gastos totais, em réis fracos, para cada um dos tipos de mucanos apontados:

Gráfico 2 - Gasto Total das Cobranças, por tipologia do mucano

Não Mucano 4424850 Não informado 1448550 Sequestro (pessoas) 1118500 Sequestro (objetos) 68800 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio 941600 Questões Funerárias 520000 Morte / Assassinato 2861800 Injúria 256400 Fuga 118400 Ferimento 130200 Feitiçaria 2007700 Dívida 5320200 Contaminação Venérea 10000 Conspiração 125000 Adultério 1083500

0 1000000 2000000 3000000 4000000 5000000 6000000

Mesmo que os registros que não são mucanos distorçam um pouco a visualização, fica bastante perceptível que as acusações que mais impactaram nos empreendimentos de Silva Porto foram as penalizações por dívidas não pagas, as responsabilizações por morte e as apenas três acusações de feitiçaria. Apesar da alta recorrência de litígios por causa de adultério e roubo ou deterioração de objetos alheios, esses gastos não parecem ter tido impacto tão intenso quanto as acusações mais sérias, cujas despesas individuais eram consideravelmente maiores. É importante considerar também quem são os acusados nos ditos litígios. Como será apresentado na Tabela 2, a maioria dos mucanos que Silva Porto pagou no período

105 foram compensações por ações de seus dependentes. Assim, um dos vínculos sociais de responsabilidade que o sertanejo tinha era o de se responsabilizar pelas ações de seus escravos e dependentes (quase 70% deles). Condição análoga se dava dentro das linhagens matrilineares e entre sobas e seus súditos, sendo deveres importantes de serem cumpridos em regiões nas quais a riqueza era medida em pessoas. Mas potencialmente o efeito contrário também poderia ocorrer, com acusações aos patronos resultando na fragilização dos dependentes. Esse foi o caso na ocasião em que João Francisco da Conceição e Mattos, filho do antigo capitão-mor do Bié, acusou o seu irmão, terceiro filho do antigo capitão, de ser feiticeiro e responsável pela morte do primogênito da família214. O resultado de tal querela foi a venda de todos os filhos do terceiro irmão, além do sequestro de seus bens. Mesmo sendo inocentado no juramento, ritual que será descrito mais adiante, nessa ocasião seus filhos já haviam sido vendidos para fora e, segundo Silva Porto, os bens "haviam sido devorados pela abjeta canalha"215. Até mesmo as ações dos cachorros de Silva Porto resultaram em pagamentos de mucanos pelo sertanejo, seja por atacarem pessoas ou animais de vizinhos216.

214 Na lista de Rodrigues Graça há seis homens de sobrenome Conceição e Mattos (além de João, Tibúrcio Francisco, Francisco, Jerônimo, “Thomé F.” e Miguel), todos naturais do Bié. Por causa dos apontamentos de Silva Porto, sabemos que Tibúrcio Francisco é um dos irmãos de João, mas não sabemos qual dos outros é o terceiro filho do antigo capitão (ou se este é o próprio Tibúrcio), e também não sabemos qual é o parentesco destes com os outros membros da família listados. GRAÇA, Expedição ao Muatayanvua, p. 400. 215 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 24-25. (18/02/1855); Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 107-114. (21/04/1861). Deve-se destacar, no entanto, que a aplicação de termos de parentesco como "filhos" tinha seu sentido figurado para referir-se a súditos ou dependentes, sendo recorrente que os sobas se referissem aos súditos como seus filhos, independentemente de suas origens ou grupos de parentesco. Portanto, possivelmente os filhos do irmão mais novo do capitão Conceição e Matos (cujo nome Silva Porto não informa), poderiam ser seus dependentes, e não necessariamente seus descendentes sanguíneos. Metáforas de filhos e pais também eram recorrentes na linguagem diplomática entre autoridades políticas, a exemplo do fato do Muantiânvua da Lunda dizer que ele e o Muene Puto (rei de Portugal) eram filhos da mesma mãe. VANSINA, Ambaca Society, p. 6; HEINTZE, Beatrix, As Construções de Parentesco e sua Retórica na Política da África Centro-Ocidental do século XIX, in: A África Centro-Ocidental no Século XIX (c. 1850-1890): Intercâmbio com o Mundo Exterior, Apropriação, Exploração e Documentação, Luanda: Kilombelombe, 2013, p. 44–45. 216 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 10, 22, 44. (10/12/1846; 15/02/1853; 27/01/1861).

106

Tabela 2 – Acusados no Memorial de Mucanos

Responsáveis pelo Mucano Quantidade Percentual da Quantidade (em %) Silva Porto 11 8,661417 Dependentes 85 66,92913 Outrem 26 20,47244 Animais Domésticos 4 3,149606 Dependentes / Outrem (?)* 1 0,787402 Total 127 100

Portanto, apesar de parte da historiografia ter interpretado os mucanos como uma estratégia de retenção de mercadorias dos sertanejos, assim como os próprios agentes da época o afirmavam, a imputação de mucanos contra os negociantes brancos era resultado de uma transformação mais ampla nas práticas e moralidades jurídicas do interior da África Central. Se o exemplo de Silva Porto for representativo dos outros membros da comunidade sertaneja, o que é provável, a maioria das cobranças diziam respeito à recorrente judicialização dos conflitos sociais que, para quem não tivesse recursos necessários, servia para escravizar de forma regular e generalizada. Assim, nesse contexto, para aqueles mantivessem consigo grandes contingentes de dependentes, o que era fundamental para a produção agrícola e formação de caravanas, chegariam numerosas acusações que, mais do que só servir de artimanhas para reter mercadorias estrangeiras que os negociantes tinham consigo, tinham como principal alvo os homens e mulheres africanos que estavam sob salvaguarda dos homens de negócio217. A análise do funcionamento cotidiano dessas acusações mereceria uma reflexão mais detalhada do que a proposta nesse capítulo. Mas alguns apontamentos cabem ser realizados nessa sessão final. Como já discutido, os litígios envolvendo a proteção do que era tido como propriedade (roubos, sequestros e adultério) correspondem a mais de um

*Se refere a um mucano pago em 23 de maio de 1861, em que um sujeito chamado António Gonçalves Rapozo é responsabilizado pelo assassinato de Lourenço Gonçalves Barbosa. Silva Porto não especifica quem é António Gonçalves Rapozo e qual é a sua ligação com ele que justifique o pagamento pelo seu crime. No entanto, em outra passagem do memorial, o sertanejo diz de um "caixeiro Rapozo" que era seu funcionário. Como não tenho informações se essas duas pessoas são a mesma, fica a dúvida se o acusado do mucano é o ou não um dependente de Silva Porto. SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 45, 4. (23/05/1861; 17/12/1844). 217 Sobre a interpretação dos mucanos como estratégia de retenção de mercadorias dos sertanejos, ver o capítulo 2 dessa dissertação. O próprio Silva Porto reproduz essa interpretação em vários momentos, inclusive em 1865, quando afirma que aumenta a quantidade de “mucanos despropositados” porque os negócios vão mal e os africanos procuram mercadorias por outras formas. Levando em conta o que discutimos até agora, o argumento do sertanejo pode ser invertido, pensando o quanto a conjuntura comercial desfavorável coloca mais gente no endividamento e vulnerabilidade, aumentando a demanda para que o sertanejo tenha que assegurar seus dependentes. BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 436. (11/05/1865).

107 terço das cobranças (51 de um total de 147). Os casos de adultério cometidos pelos dependentes de Silva Porto, todos homens, são recorrentes e em geral resolvidos com o pagamento de pequenas multas, como ocorreu com o seu escravo Paramba, acusado de ter cometido adultério com uma concubina do soba do Biélle, resultando no pagamento de multa de 116 panos, o equivalente a 46$400 réis218. Para a irritação do sertanejo, havia casos de reincidência entre os acusados de adultério, como era o de seu escravo Thomé. Em 1861, Silva Porto já tinha pago cinco mucanos por causa da reincidência de Thomé na mesma contravenção; o dito escravo chegou até mesmo a ser preso no Humbe no ano seguinte, também por causa de dois outros mucanos de adultério, cabendo ao seu senhor, mais um vez, o pagamento do seu resgate219. Aparentemente, havia também alguns fatores agravantes desse tipo de punição, a exemplo de Vicente, dependente de Silva Porto, que além de ter cometido adultério, nessa mesma ação tinha engravidado a dita concubina, o que segundo Silva Porto dobrou o valor do crime, pagando 36$000220. Há poucas informações sobre como funcionava a definição dos valores de mucanos, mas parece influenciar bastante no valor o status do sujeito que foi prejudicado: assim, como Paramba cometeu adultério com uma concubina de soba, seu valor foi quase três vezes mais caro (46$400) do que seria o mucano de Vicente, caso não tivesse resultado em gravidez (18$000)221. Também há vários casos do cotidiano do trabalho caravaneiro que aparecem registrados no memorial como atentados às propriedades alheias. São recorrentes, por exemplo, a cobrança de pequenas multas por quebra de objetos durante as marchas ou em

218 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 32. (13/08/1857). 219 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 46, 49. (14/09/1861; 26/05/1862). Para além do contexto de crescente demanda de cativos para o tráfico atlântico, Vansina acredita que a alta recorrência de acusações de adultério e roubo estavam relacionadas à passagem das caravanas comerciais pelas rotas interioranas, formadas por carregadores que frequentemente podiam estar famintos e em busca de companhia feminina. VANSINA, Ambaca Society, p. 12. 220 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 52. (05/11/1862). 221 Também não é clara a definição dos objetos que poderiam ser utilizados para pagar o mucano e quanto esta poderia influenciar no valor final. Em um caso que o próprio Silva Porto considerou uma “classificação curiosa”, um sujeito que acusa um escravo de Silva Porto de cometer adultério com sua esposa exige 10 escravos, dois bois, um cobertor, uma arma e um barril de pólvora, considerando que cada objeto tinha seu significado simbólico das ações de sua companheira: "significando a pólvora, a cizânia por ela introduzida no lar doméstico; a arma, o fogo ateado por ocasião do delito; o cobertor, o pano com que se cobriu; os bois, a refeição tomada; e finalmente os serviçais, para apagadores da discórdia do casal". BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 354. (04/11/1862). Silva Porto reclamou dos critérios do acusador, inclusive porque tal sujeito previa uma multa bastante acima do comum para adultérios, o que levaria o sertanejo a forçar um novo acordo.

108 outros momentos de trabalho, o que revoltava a Silva Porto pelo fato das multas serem consideravelmente mais caras do que o valor dos ditos objetos222. Como já dito, também eram recorrentes os mucanos por injúria. Para além de um mecanismo que servia para punir perpetradores de falsas acusações, a compensação por injúrias muitas vezes se dava por questões cotidianas ou através de pequenas artimanhas. Esse foi o caso do escravo Tito, de propriedade de Silva Porto, que, ao perguntar a um negro que não era carregador pela sua carga, recebeu no dia seguinte uma reclamação desse homem, cobrando a Silva Porto para que pagasse a injúria de ter sido considerado um carregador. Outro caso ilustrativo ocorreu em viagem para o Barotse, na qual o dependente de Silva Porto, Catecába, que queria prejudicar a sua escrava, informou-se de um feiticeiro quimbundo que provavelmente viajava junto da caravana. Após pedir os serviços ao homem, que teria supostamente anuído, Catecába não o procurou mais e, em represália, o sujeito cobrou de Silva Porto pela injúria feita por Catecába por tê-lo considerado um feiticeiro223. No entanto, o mais recorrente era a alegação de injúria como defesa após acusações feitas, por exemplo, em casos de roubo. Nesse sentido, Silva Porto chega a afirmar em sua descrição dos “Costumes e Usos Gentílicos” de que era indispensável para o convívio no interior a circunspecção, porque quaisquer perguntas poderiam ser utilizadas como acusações de injúria224. No entanto, seria falso afirmar que Silva Porto e outros sertanejos aceitavam as regras desse ordenamento jurídico de forma passiva. Como será discutido no 3º capítulo, por exemplo, não só os chefes das caravanas proibiam que seus membros imputassem mucanos uns contra os outros durante as viagens, mas também procuravam dividir os vínculos sociais de responsabilidade ao dividirem partes das caravanas sob

222 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 15, 41, 44. (10/07/1851; 26/08/1860; 15/03/1861). Diante de uma reclamação de um morador do Bié contra um escravo de Silva Porto de que este havia quebrado uma panela de capata, bebida alcoólica local, Silva Porto afirma que os mucanos de panelas, cabaças ou vasilhas estavam banidos no Bié, interrogando sobre o que o sujeito de fato queria. O litigante pediu uma panela nova, o que Silva Porto entregou, encerrando a contenda. BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 348-349. (16/10/1862). 223 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 39-40. (22/07/1860; 23/07/1860). 224 SILVA PORTO, Costumes e usos gentílicos, p. 175. Para além de servir de mecanismo de defesa contra mucanos, podemos pensar que as alegações de injúria também diziam respeito ao orgulho profissional de certos sujeitos. Para a África Oriental, Stephen Rockel destaca como carregadores de caravanas tinham orgulho de sua capacidade de transportar fardos intactos. Assim, mesmo nas ocasiões que desistiam do trabalho e abandonavam o chefe da caravana, deixavam para trás suas cargas intactas, para não serem considerados ladrões. Nesse sentido, Rockel descreve no mesmo trecho episódio de 1879 no qual os carregadores de Joseph Thomson se revoltaram contra o explorador britânico pois, quando este perguntou onde um de seus carregadores tinha conseguido as missangas que presenteava uma mulher no caminho, sua interrogação foi entendida como uma acusação de roubo. ROCKEL, Stephen J., Carriers of Culture: Labor on the Road in Nineteenth-Century East Africa, Portsmouth: Heinemann, 2006, p. 82–85.

109 responsabilidade de cada pombeiro. Além disso, há episódios em que os sertanejos, conhecendo as regras africanas, vão agir de forma a não serem punidos em casos de contravenção. Um caso bastante peculiar desse tipo de tentativa foi protagonizado por Silva Porto em janeiro de 1861. No ano anterior, o sertanejo tinha pago um mucano de morte aos seus vizinhos do sítio Caxanjo, em quantia que incluía alguns escravos, sendo notícia que um desses escravos tinha fugido em uma noite chuvosa, falecendo na lavoura de outro vizinho, no sítio de Cabanga. Na mesma época, fugiu um escravo de Silva Porto e foi encontrado seu corpo na lavoura; com receio de que encontrassem o cadáver de seu dependente, o que daria espaço à acusação de mucano, Silva Porto mandou seus quimbares sepultarem à noite o cadáver encontrado. No entanto, passados alguns dias o escravo de Silva Porto, que até então o sertanejo julgou estar em baixo da terra, apareceu em sua morada, e descobriu-se que cadáver sepultado tinha sido do escravo fugido de Caxanjo. Estes por sua vez, como não tinham formas de reconhecer o cadáver, se recusaram a pagar a compensação pela morte, afirmando que tal pagamento era responsabilidade de quem havia sepultado o cadáver. Mesmo Silva Porto afirmando que os locais davam razão a ele nesse pleito, considerou não valer a pena levar o caso para a libata grande, já que a multa exigida tinha sido bastante pequena. Mesmo assim, como é recorrente em sua escrita, Silva Porto não deixou de registrar sua cólera com seus escravos por não terem ao menos feito o reconhecimento noturno de quem se tratava o cadáver enterrado225. Para entender a reação dos sertanejos a esse sistema, para além de tentativas mirabolantes de tentar burlá-lo, também é importante dar uma especial atenção aos poucos casos, sete no total, que fizeram o sertanejo optar por levar o litígio para o tribunal. Por vezes, ao contrário da maioria de acusações facilmente resolvidas com pagamentos de valores pequenos, a seriedade das acusações exigia que os sertanejos optassem por tentarem ser inocentados pela corte nativa. Mesmo com todos os incômodos que tais agentes históricos tinham com esse sistema e suas supostas arbitrariedades, por vezes se

225 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 42; Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 28-29. (ambos referentes a 04/01/1861). Uma questão importante para encerrar a contenda ou, como no caso descrito, tentar evitá-la, dizia respeito à aceitação do crime, chamada no Planalto Central de memba. Assim, ao pagar diretamente ao contendente, o sujeito reconhecia sua culpa e, encerrada a transação, poderia encerrar a contenda e evitar futuros questionamentos. BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 21-23. (11/06/1866). É interessante que este ato seja chamado de memba, pois memba (ou mpemba) é o nome da argila branca utilisada como oferenda aos espíritos, estando presentes em vários rituais e objetos que pretendiam reestabelecer o equilíbrio perturbado, como era o caso dos mucanos - sendo a memba (no sentido figurativo) o pagamento que equilibrava o desequilíbrio causado pelo litígio judicial. CEITA, Silva Porto na África Central – Viye / Angola, p. 105; HENRIQUES, Isabel Castro, Integração do comércio no religioso, in: O Pássaro do Mel - Estudos de História Africana, Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 47.

110 apropriaram desses mecanismos como espaços de disputa e defesa de seus interesses, principalmente quando o pagamento direto da multa era deveras dispendioso, ou quando consideravam as acusações ultrajantes226. Um desses casos levados para a libata grande foi o de Chagas, em que o envolvimento da elite biana, mesmo que tenha forçado a cobrança do mucano que aquele se recusava a pagar, só amplificou o problema quando o devedor partiu para as ganguelas e sequestrou a caravana vinda do Luvale. Outro caso que não envolvia quantidade considerável de riquezas, mas que deixou Silva Porto insultado a ponto de apelar para o tribunal, ocorreu em dezembro de 1846. Quando o sertanejo abria os fardos trazidos de Benguela, percebeu a falta de alguns tecidos em um dos fardos; por este motivo, convocou o carregador responsável por esta carga, Gamba e Ácubéra, para resolver a questão. O trabalhador revoltou-se com a sugestão de que havia roubado parte da carga e acusou Silva Porto de injúria; para ter a sua restituição de carga e se inocentar da acusação subsequente, o sertanejo levou o caso para a libata grande e infelizmente não encontrei nos cadernos qual foi a sua resolução. No memorial é registrado como gasto 24$000 réis, que pela ordem de valor podemos estimar que se refira ao custo dos tecidos desaparecidos227. No entanto, em outros casos levados para o tribunal as contendas foram mais sérias. Em julho de 1854, uma comitiva de Silva Porto foi enviada para o Lui e entre os membros dela estava um homem livre e morador de Belmonte, Toim. No meio da viagem, em meio a uma caçada, Toim foi morto por um búfalo feroz, sendo o seu corpo encontrado somente três dias depois de sua morte. Por ocasião desse acontecimento, seu cadáver foi levado para o acampamento da caravana e no dia seguinte os adivinhos chegaram à conclusão de que o búfalo era o espírito maligno de um parente de Toim, incitado pela ambição e inveja de outro parente, este vivo, que, por feitiçaria, tinha feito que o espírito adquirisse o formato do animal selvagem. O motivo da inveja do suposto feiticeiro teria sido o fato de Toim ter se dedicado e alcançado sucesso na carreira de negócios. Ao chegarem de volta ao Bié, foram retomadas as adivinhações para identificar o feiticeiro responsável pela tragédia, determinando um culpado entre os familiares do falecido228. No entanto, depois disso, uma

226 Minha principal referência para a caracterização das leis e das instituições jurídicas como espaço de disputas é: THOMPSON, Senhores & Caçadores, p. 338, 348–353. 227 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 10-11. (15/12/1846). 228 Mesmo admitindo não acreditar nas adivinhações, Silva Porto sabia que era necessário o procedimento para evitar futuros problemas com os familiares do falecido. Além disso, reconhece que não seria um boi, uma ancoreta de aguardente e um pequeno barril de pólvora que iriam transtornar os seus negócios - mantendo a percepção recorrente de que, mesmo que em geral não concordasse com os gastos que era obrigado a fazer por causa das regras sociais centro africanas, Silva Porto sabia diferenciar o que era

111 parente de Toim, com cerca de 75 anos, morreu e os adivinhos responsabilizaram o espírito de Toim pelo acontecimento, circunstância que servia de prova de que o verdadeiro feiticeiro ainda não tinha sido detido, o que colocava em risco todos os familiares. Um tempo depois chegaram macotas na libata de Belmonte e, quando Silva Porto perguntou do que se tratava a visita, responderam que tinha vindo entre eles o responsável por apontar o feiticeiro responsável pelas ditas mortes. Depois de insistir por duas horas diante dos subterfúgios dos macotas para que falassem quem era o acusado, finalmente Silva Porto descobriu que ele era considerado o feiticeiro responsável pelas tragédias. Revoltado e com necessidade de se defender de acusação tão séria, Silva Porto partiu para a libata grande acompanhado de seus amigos sertanejos para ser submetido ao ritual do juramento. O ritual envolvia uma série de provações e, no final do oitavo dia, Silva Porto foi inocentado das acusações229. Mesmo inocentado, o sertanejo dispendeu 795$200 réis com os gastos dos procedimentos ocorridos na libata grande, o que ajuda a entender a decisão recorrente em casos mais simples de não apelar no tribunal. O caso envolvendo a morte de Toim e seus familiares desvela várias características das dinâmicas das acusações de feitiçaria na região230. Como no caso de Toim, a principal característica da feitiçaria seria a intermediação do dito feiticeiro com os espíritos, incitando que estes seres extraterrenos interfiram contra seus inimigos. Segundo David Gordon, um elemento comum dos cultos de espíritos espalhados pela África Central é a relação destes com as emoções. Assim, os espíritos se manifestam de forma visceral, sentindo raiva, ciúmes, dor e alegria. Com essas características, espera-se que os detentores de poderes políticos sejam capazes de acalmar os espíritos, enquanto os feiticeiros seriam

estratégico simplesmente aceitar para permitir um bom funcionamento do comércio. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 107-114. (21/04/1861). 229 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 25-28. (15/03/1856); Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 107-114. (21/04/1861). Para uma descrição de como ocorria o juramento, ver: SILVA PORTO, Costumes e usos gentílicos, p. 200–207. Em outra contenda que envolveu juramento, Silva Porto admite enviar emissários para a libação, o que coloca como hipótese que em casos como o analisado não foi o sertanejo que passou pessoalmente pelas provações. BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 366-367. (03/11/1864). 230 Como bem destaca Peter Geschiere, o uso do conceito de feitiçaria, assim como de magia e bruxaria, é uma tradução precária, usando um termo ocidental com implicações pejorativas para uma diversidade enorme de fenômenos africanos, que geralmente têm sentidos mais amplos, podendo ser melhor traduzidos como "força oculta" ou "tipo especial de energia". No entanto, o próprio autor comenta que esse termo já foi tão apropriado pelo público africano que é impossível evitá-lo. GESCHIERE, Peter, Feitiçaria e Modernidade nos Camarões: alguns pensamentos sobre uma estranha cumplicidade, Afro-Ásia, v. 34, p. 9– 38, 2006, p. 9–10. Em muitas regiões do continente africano, os termos feitiçaria e bruxaria não foram traduzidos para fenômenos equivalentes, como é o caso dos azande, estudados na clássica monografia de E. E. Evans-Pritchard. EVANS-PRITCHARD, E. E., Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 27–28. No entanto, nos cadernos de Silva Porto feitiçaria é o único desses termos que aparece, por isso é o que utilizo.

112 aqueles que perturbariam essa relação, liberando emoções espirituais perigosas para as suas famílias e comunidades locais231. Destaca-se ainda que, segundo os adivinhos, o espírito que se manifestou no búfalo que matou Toim foi incitado pela inveja do seu familiar feiticeiro pelo fato do carregador ter tido sucesso na carreira de negócios. Como já foi apontado nesse capítulo, o rápido enriquecimento de negociantes foi tido com suspeita por várias sociedades ao longo da história, o que na zona atlântica de Angola não deve ser nunca desassociado aos valores da presença branca e do tráfico de escravos, fenômenos cujas ambiguidades trouxeram profundas transformações na estabilidade social das comunidades africanas. Nesse sentido, vários autores já mostraram, para diferentes regiões do continente africano e diferentes recortes temporais, o quanto contextos de crescentes incertezas e vulnerabilidades foram explicados pela chave da feitiçaria e da atuação dos espíritos, já que uma das suas principais características emocionais é que eles são caprichosos. Dessa forma, tanto a feitiçaria, quanto a "modernidade", trazida por esses contextos de transformações sociais profundas, se caracterizam por serem fascinantes, ao abrirem novos horizontes de ascensão social, e por serem deploráveis, já que são poucos aqueles que conseguem acesso a essas novas e tentadoras oportunidades. Assim, o espalhamento de acusações de feitiçaria não seria só resultado de sobrevivências de culturas anteriores, ou da ganância para "produção" de escravos, mas também adaptações e racionalizações de novas conjunturas conturbadas232. Outra característica importante das dinâmicas de acusações de feitiçaria, o que é bastante claro no caso de Silva Porto, é o seu aspecto de segredo e boato, sendo interessante o receio dos macotas de falarem claramente ao sertanejo que acreditavam que era ele o responsável pela transgressão. Em sociedades oralizadas, as posições sociais das pessoas dependiam diretamente da opinião pública ou do uso da força, sendo por essas dinâmicas de espalhamento de notícias, que eram coerentes a crenças comuns sobre interferência de espíritos no mundo material, que o status de um indivíduo poderia ser contestado. O grande impacto que significava esse tipo de acusação, para além da pesada condenação jurídica

231 GORDON, Invisible Agents, p. 9–10. 232 Ibid., p. 13; GESCHIERE, Feitiçaria e Modernidade nos Camarões, p. 13, 18; AUSTEN, Ralph, The Moral Economy of Witchraft: an essay in comparative history, in: COMAROFF, John; COMAROFF, Jean (Orgs.), Modernity and its Malcontents, Chicago: University of Chicago Press, 1993. Para esse tipo de relação entre interferência espiritual, ascensão de elites comerciais e expansão do tráfico, ver ainda: JANZEN, John M., The Lemba Trading Association as seen in the Rymar Ivory, in: JANZEN, John M. (Org.), A Carved Loango Tusk: Local Images and Global Connections, Lawrence: University of Kansas, 2009, p. 45–50.

113 caso comprovado o crime, também o tornava instrumento recorrente de disputas interpessoais e de expansão da escravização233. A proliferação dessas acusações seria justificada também pela perda da capacidade espiritual de controle por parte das autoridades políticas, que não conseguiriam enfrentar os desafios, materiais e espirituais, trazidos pelas transformações econômicas e sociais do século XIX. O espalhamento de guerras, migrações populacionais massivas, crises ambientais e epidemiológicas, a expansão do comércio capitalista e do tráfico interno de escravos poderiam ser interpretados a partir de emoções espirituais cada vez mais agitadas que os chefes pareciam ter menos capacidade de acalmar e controlar – o espalhamento da atuação dos feiticeiros e outras formas de intermediação espiritual seria o outro lado dessa moeda234. Por fim, um dos maiores desafios para o entendimento dos litígios registrados no Memorial de Mucanos são os 26 casos em que o transgressor não é um dependente de Silva Porto. Os motivos pelos quais o sertanejo é cobrado por essas multas varia bastante e nem sempre é possível de se saber com as informações registradas no memorial e nos diários. Esses casos demandam uma análise cuidadosa para tentar entender as razões de serem pressupostas relações de dependência que aparentemente não existiam.

233 GESCHIERE, Feitiçaria e Modernidade nos Camarões, p. 12; FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 71–72, 75–76. Para ver a reação de administradores coloniais no Planalto Central durante o século XX diante dessas acusações, ver: DULLEY, Deus é Feiticeiro: Prática e disputa nas missões católicas em Angola colonial, p. 65. Por causa dessa instrumentalização das acusações de feitiçaria, Ferreira chega a falar "falsas acusações" de feitiçaria para servir para a escravização de gente nascida livre. Mesmo reconhecendo a importância e concordando com a proposta de David Gordon de enfrentar os efeitos da secularização da historiografia africanista para dar o devido destaque às crenças em eventos sobrenaturais, acredito que o reconhecimento implícito de que haja acusações verdadeiras de feitiçaria oferece desafios epistemológicos para o cientista social. A arbitrariedade de acusações em contextos em que, por vezes, era até aceito que nem mesmo os imputados feiticeiros tinham consciência de suas ações, envolve não só uma normalização de violências, como também uma pressuposição de que poderia haver práticas "tradicionais" de intermediação com os espíritos que nada tinham a ver com as novas acusações no contexto de expansão do tráfico. Geschiere faz um balanço importante das problemáticas e dilemas teóricos e éticos que envolvem o reconhecimento (e o não reconhecimento) da realidade da feitiçaria. GORDON, Invisible Agents, p. 1–8; GESCHIERE, Feitiçaria e Modernidade nos Camarões, p. 31–38. Sobre a crença no desconhecimento dos próprios feiticeiros das suas ações, ver: EVANS-PRITCHARD, Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, p. 66–70. 234 GORDON, Invisible Agents, p. 45–49. Para uma caracterização das vulnerabilidades e incertezas do contexto oitocentista da África Central e do continente africano como um todo, ver: COQUERY- VIDROVITCH, Africa and the Africans in the Nineteenth Century; GORDON, David M., The Abolition of the Slave Trade and the Transformation of the South-Central African Interior during the Nineteenth Century, The William and Mary Quarterly, v. 66, n. 4, p. 915–938, 2009; WISSENBACH, Maria Cristina Cortez, Conectando o sertão e os oceanos: reflexões sobre redes comerciais, deslocamentos e centros de poder na África Central no século XIX (com especial referência a Katanga). In: REGINALDO, Lucilene & FERREIRA, Roquinaldo. África, Margens e Oceanos - Perspectivas de História Social. Campinas: Editora da Unicamp, 2021, p. 141-177. (no prelo). Geschiere chegou a conclusões análogas sobre o lugar da feitiçaria na interpretação das incertezas da vida sob a economia de mercado no Camarões neo-liberal. GESCHIERE, Feitiçaria e Modernidade nos Camarões, p. 12–14, 29–30.

114

Um desses casos envolve a morte de Joaquim de São Tiago, sertanejo que faleceu em viagem de retorno da Lunda para o Bié em 1848. Nessa viagem, quinze dias depois do falecimento do dito chefe da caravana, morreu também uma amásia dele originária do Quiengo, nas ganguelas, cujo pai desde então passou a cobrar Silva Porto pelo pagamento da morte de sua filha. A ligação que Silva Porto tinha com São Tiago, segundo o sertanejo, foi de ter reunido os seus bens e enviando-os para Benguela, para servirem de pagamento ao credor do falecido. Provavelmente isso ocorreu em uma das ocasiões que Silva Porto ocupou de forma interina o cargo de capitão-mor do Bié, por ocasião de viagens do major Coimbra. Sendo entendido como um herdeiro do falecido, a suposta responsabilidade do morto pelo falecimento de sua amásia era passada para Silva Porto e, por acreditar ser inaceitável tal cobrança, o sertanejo se recusara a pagar ao dito homem das ganguelas, alongando a disputa até abril de 1861. Essa intriga tem vários detalhes que mereceriam análise mais detida, incluindo um mucano que Silva Porto paga por agressão física ao expulsar o dito homem a pauladas de Belmonte, e o fato do próprio pai ter sido acusado de feitiçaria na sua terra de origem, com ele sendo responsabilizado pela morte da filha. Após conseguir evadir de sua terra, esse sujeito, portanto, argumentava em defesa própria que tinha sido o espírito de São Tiago o responsável pela morte da dita amásia. A própria situação vulnerável do litigante pode ajudar a entender porque Silva Porto se sente à vontade de se recusar a aceitar a acusação e partir para procedimentos tão agressivos que, via de regra, tinha que evitar para não acumular novos mucanos. No final, no entanto, para além do mucano de agressão, acabam decidindo na libata grande pagar um valor pela vida da dita amásia, encerrando a disputa235. Saber lidar com os interesses dos sobas e das elites do Planalto Central foi condição necessária para os sertanejos atuarem com relativa segurança e lucratividade na região em meados do século XIX. Desde a integração do altiplano na zona atlântica, a presença e pressão portuguesa na região trouxe oportunidades, assim como constrangimentos para as autoridades locais. No entanto, mesmo que em certas conjunturas fossem vistos com desconfiança, e que essa convivência tenha sido caracterizada por uma série de conflitos cotidianos, em geral as chefias africanas valorizavam a presença desses negociantes em suas terras, principalmente por causa dos produtos que eles traziam do litoral, que eram fundamentais para o exercício do poder nas sociedades africanas.

235 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 43-45. (08/01/1861; 18/04/1861); Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 31-34, 39, 105-107. (08/01/1861; 25/01/1861; 13/04/1861; 19/04/1861).

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A circulação desses produtos, desde Benguela até o Bié, e do Bié até regiões mais a leste, de onde vinham os carregamentos de marfim e cera tão demandados após a proibição legal do tráfico, envolvia uma série de relações sociais na negociação com a grande malha de chefias, algumas com poder local, outras detentoras de grandes Estados. Entender as estratégias políticas dessas chefias, assim como os seus cálculos econômicos, que eram considerados pelos cálculos dos próprios sertanejos, para assim assegurarem a continuidade dos empreendimentos no interior, envolve a compreensão desses rearranjos políticos e sociais com o estabelecimento e transformações das rotas de longa distância do comércio caravaneiro. Esse entrelaçamento do cálculo econômico e diplomático dos sertanejos com o interesse crescente das chefias do interior pelos produtos importados que vinham nas caravanas é o tema do próximo capítulo.

116

Capítulo 2 – Nas Rotas dos Mambari: sobas e negociantes nos sertões Em 13 de junho de 1858, quando a caravana de Silva Porto atravessava a região às margens do rio Cuchibi, rica em mantimentos e estratégica para a passagem para as terras do Barotse (chamado na época de Lui ou Genje), um soba sexagenário de nome Muéne Caihombo entregou ao sertanejo um dente grande de elefante e vários alimentos. Após Silva Porto pagar o imposto de passagem, chamado de quibanda, e entregar uma retribuição pelo dente de marfim, e um terceiro presente por causa dos outros objetos recebidos, o soba “aplaudiu com ruidosas palmas, declarando que todo o marfim que pudesse obter o reservaria para nós [os sertanejos]”236. Se em 1858 esse dirigente africano sabia muito bem qual era a demanda comercial dos sertanejos, é resultado de um aprendizado formado por pelo menos uma década de contatos com negociantes do Planalto Central que passavam por essa região mais a leste, com objetivo de atingirem o Barotse, nas margens do rio Zambeze. O anúncio de Muéne Caihombo de que reservaria para os sertanejos todo o marfim que encontrasse demonstra também um interesse direto desse chefe em manter os sertanejos como seus interlocutores e que, como discutiremos ao longo do capítulo, as mercadorias importadas que essas caravanas traziam eram fundamentais para o próprio exercício do poder político local. A busca desses chefes africanos por produtos trazidos pelos sertanejos, conjugada às demandas dos próprios europeus, com um mercado de exportação em mutação por causa da proibição do tráfico de escravos, são fatores fundamentais para a compreensão das profundas transformações sociais pelas quais passava o interior da África Central em meados do século XIX, e estes são os temas do presente capítulo.

2.1 Comércio de longa distância do Planalto e o tráfico atlântico Como já explorado no capítulo anterior, a formação, desenvolvimento e fortalecimento dos grandes Estados umbundu do Planalto Central de Angola estão diretamente ligados à intensa exportação de escravizados para as Américas, tanto pelos portos da região de Benguela, quanto de Luanda237. O envolvimento desses mandatários desde pelo menos o século XVII com esse comércio levaria à realização de razias em busca de escravos nas regiões a leste do Planalto, assim como à conexão de negociantes africanos

236 Biblioteca Pública Municipal do Porto (doravante BPMP). Ms. 1236. SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da. Viagens e Apontamentos de Um Portuense em África, 2º Volume, p. 31. (13/06/1858). 237MILLER, Joseph C., Angola central e sul por volta de 1840, Estudos Afro-Asiáticos, v. 32, n. Rio de Janeiro, p. 7–54, 1997, p. 29–30, 33; CANDIDO, Mariana, An African slaving port and the Atlantic world: Benguela and its Hinterland, New York: Cambridge University Press, 2013, p. 275–292.

117 desses Estados com regiões no interior sem conexão direta com as redes comerciais conectadas ao comércio atlântico. Portanto, décadas antes que os primeiros negociantes de origem ou cultura europeia pudessem ter acesso direto a regiões como o Alto Zambeze ou o Kasai, tais regiões já tinham sido visitadas – e até mesmo integradas na zona atlântica – pelas rotas dos negociantes africanos do Planalto Central, chamados no interior do continente de mambari238. Esse termo, também utilizado por parte da bibliografia sobre comércio de longa distância, é derivado do termo quimbares, que segundo Silva Porto era o nome que se dava aos escravos dos brancos239. Em outro momento, o sertanejo comenta sobre o uso generalizado do termo no interior, ao informar que o povo residente na cabeceira do rio Caimbo queria tabaco e sal dos quimbares, comenta que: “Para esta gente os quimbares são os bianos e todos aqueles negociantes a percorrer estas paragens”240. Essa generalização do significado desse termo também é registrada por Oppen, que afirma que em fontes dos séculos XVI e XVII esse vocábulo era usado para designar os soldados africanos que serviam aos portugueses como tropas subsidiárias; no entanto, no início do XIX essa expressão passou a significar homens livres ou libertos que viviam próximos aos brancos, sendo de meados do século o registro em fontes, como o próprio Silva Porto, como sinônimo de negociantes africanos vindos do Planalto Central241. O impacto dos

238OPPEN, Achim Von, Terms of Trade and Terms of Trust: The history and contexts of pre-colonial market production around the Upper Zambezi and Kasai, Münster: Lit Verlag, 1994, p. 53–54; SANTOS, Maria Emília Madeira, Tecnologias em Presença: Manufacturas Europeias e Artefactos Africanos (c. 1850-1880), in: Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX), Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 233. 239 SGL. Res. 2 – C – 6. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 2º volume, p. 28-29. A definição é coerente com a de Maria Emília Madeira Santos, que diz os quimbares seriam serviçais permanentes do próprio sertanejo, sendo homens livres (dependentes) ou escravos. SANTOS, Maria Emília Madeira, Perspectiva do Comércio Sertanejo do Bié na Segunda Metade do Século XIX, in: Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX), Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 16. No Capítulo 1 será detalhado como era central no século XIX a instituição dos grupos de homens e mulheres livres e dependentes em Angola, nas zonas de dentro e fora da colônia portuguesa. 240 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 83. (07/12/1863). 241 Para um esforço mais sistemático de mapear a etimologia da palavra "quimbar", ver: BONTINCK, François, Les Quimbares: note sémantique, Africa: Rivista trimestrale di studi e documentazione dell’Istituto italiano per l’Africa e l’Oriente, v. 31, n. 1, p. 1976, p. 41–53. Cabe destacar ainda que, utilizando vestuário e adotando costumes europeus, muitos dos negociantes do Planalto eram também chamados no interior de kindele, termo geralmente traduzido para designar os brancos. OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust, p. 54. Em adendo, Joseph Miller afirma que o termo ovimbali (que seria o plural de quimbare - que o historiador traduz como "representante do comércio") era como se referiam à comunidade afro-portuguesa que residia em torno da fortaleza de Caconda nas décadas de 1830 e 1840, envolvidos diretamente com o comércio de marfim. MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 29, 43. François Bontinck considera como um "erro" o fato de David Livingstone chamar os comerciantes do planalto de mambari, reforçando o argumento inclusive com o verdadeiro equívoco do viajante de acreditar que eram um grupo étnico diferente dos bianos. No entanto, Bontinck não dá o devido destaque ao fato dos interlocutores de Livingstone no Barotse utilizarem o mesmo termo. BONTINCK, Les Quimbares, p. 50.

118 negociantes vindos do Planalto foi tão grande para os povos do interior, que, de acordo com Oppen, até os dias atuais o termo utilizado entre os luvale do Alto Zambeze para “homem rico” seria fumbelo, vindo da palavra pombeiro242. Como dito anteriormente, os mambari destacaram-se no fornecimento de escravos de diferentes origens para a costa atlântica. Por causa do crescimento vertiginoso do comércio de escravos no Planalto Central, uma série de sujeitos de diferentes origens dedicaram-se a atividade de sertanejos no Planalto a partir da segunda metade do século XVIII. Por causa desse intenso envolvimento dos negociantes do Planalto, e principalmente das próprias chefias, no comércio de escravos, houve constante temor por parte das autoridades portuguesas da reação violenta que os sobas poderiam ter frente ao fim do tráfico atlântico de escravos, que estava no horizonte da região de Benguela desde pelo menos o Tratado Anglo-Brasileiro de 1826243. No entanto, mesmo com a proibição legal do tráfico atlântico em 1836, não só o comércio ilegal de escravos para o Atlântico manteve-se intenso na região, pelo menos até o início da década de 1860244, mas também se intensificou o comércio interno de escravos, com a posse de escravos se generalizando

242OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust, p. 55–56. Não considero, no entanto, mambari como uma nova identidade africana, no sentido aferido no capítulo anterior, pois não parece ter sido um termo reivindicado pelos sujeitos das caravanas, e somente imputado pelos seus hospedeiros. Mas também não pareciam se incomodar com o termo: Bontinck afirma que o sentido relacionado ao escravo dos brancos se manteve no novo uso, pois os povos do interior subentendiam que todos os membros das caravanas eram escravos dos sertanejos - o que supostamente não constrangia os bianos livres, pois estes só se preocupavam com o seu próprio comércio. Discordo dessa afirmação, não só pela suposição de um certo cinismo guiado puramente pela ganância desses atores, como também por outros casos nos quais a linguagem de parentesco interna às caravanas, que poderia levar a esse equívoco, resultou em conflito com os hospedeiros: Beatrix Heintze comenta um evento interessante na viagem de Henrique de Carvalho em que um funcionário da Lunda quase foi espancado pelos carregadores da comitiva portuguesa por ter supostamente sugerido que estes eram escravos de Portugal - quando na realidade quis dizer que os ditos trabalhadores eram "povo" de Portugal. A sugestão de serem tratados como escravos foi tida como uma ofensa grave por estes homens livres, independentemente de seus objetivos econômicos na viagem - o que provavelmente não era diferente no caso dos carregadores livres das caravanas do Planalto Central. BONTINCK, Les Quimbares, p. 50; HEINTZE, Beatrix, As Construções de Parentesco e sua Retórica na Política da África Centro-Ocidental do século XIX, in: A África Centro-Ocidental no Século XIX (c. 1850-1890): Intercâmbio com o Mundo Exterior, Apropriação, Exploração e Documentação, Luanda: Kilombelombe, 2013, p. 51–53. 243CANDIDO, Mariana Pinho, Fronteras de esclavización: Esclavitud, comercio e identidad en Benguela, 1780-1850, México: El Colegio de México, 2011, p. 56. Esse temor das autoridades portuguesas, as reações dos sobas do Planalto e a suposta estabilidade regional que teria ocorrido apesar das previsões catastróficas são discutidos no Capítulo 1. 244 Para além da simples afirmação da continuidade do tráfico atlântico enquanto se manteve a demanda para Brasil e Cuba, Roquinaldo Ferreira demonstra o quanto a proibição, mesmo que não tenha significado o fim do comércio escravista, resultou num complexo processo de dispersão dos portos de embarque, um combate oficial de efetividade variável, disputas entre elites locais e autoridades coloniais, além de conflitos sociais mais amplos que inclusive contaram com a agência de sujeitos escravizados durante as suas quase quatro décadas de ilegalidade. FERREIRA, Roquinaldo, Dos sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito em Angola 1830-1860, Luanda: Kilombelombe, 2012; FERREIRA, Roquinaldo, Agência escrava e geopolítica na abolição do tráfico de escravos na África Central, in: XAVIER, Regina Celia Lima; OSÓRIO, Helen (Orgs.), Do tráfico ao pós-abolição: Trabalho compulsório e livre e a luta por direitos sociais no Brasil, São Leopoldo: Oikos, 2018, p. 26–42.

119 no Planalto, principalmente após a década de 1870, quando uma grande parcela da população conseguia concentrar recursos vindos do comércio lícito para poderem comprar seus próprios escravos. Alguns historiadores, baseados no relato de László Magyar, que residiu no Bié na década de 1850, chegam a afirmar que, por causa desse crescimento do comércio interno de escravizados, não só mais da metade da população do Planalto seria de cativos, como a população do Planalto teria inclusive aumentado por causa da introdução nas sociedades locais desses cativos vindos do leste e do sul245. Silva Porto, ao comentar os primeiros anos de sua atuação como sertanejo no Bié, descreve alguns elementos sobre a execução do comércio nessa fase final do tráfico. Ao entrar na carreira sertaneja em 1840, a demanda do litoral por escravos ainda era enorme, sendo produto de grande concorrência nas ganguelas, no Luvale, na Lunda e na região do rio Cubango. Assim, os sertanejos do Bié recebiam investimentos das casas comerciais de Benguela para levarem caravanas até essas regiões, que deveriam também comprar cera e marfim nos mesmos locais, produtos cujas demandas só aumentavam a após a proibição legal do tráfico. No entanto, em 1845, os comerciantes de Benguela passaram a pedir aos sertanejos que seus financiamentos fossem pagos a partir de então somente com marfim e cera, tornando um empreendimento deveras dispendioso montar caravanas que viajavam tão longe para capturarem escravos, que saíam na sua maioria das regiões próximas do litoral. Dessa forma, mesmo que escravos continuassem sendo comprados pelas caravanas sertanejas nas regiões mais para o interior, a partir dessa data não seriam mais o produto principal para os sertanejos venderem em Benguela – podendo a compra de escravos em regiões tão distantes ser, inclusive, como discutiremos no final desse capítulo, um mau negócio246.

245HEYWOOD, Linda M., Slavery, and Forced Labor in the Changing Political Economy of Central Angola, 1850-1949, in: MIERS, Suzanne; ROBERTS, Richard (Orgs.), The End of Slavery in Africa, Madison: University of Wisconsin Press, 1988, p. 417; SILVA, The Atlantic Slave Trade from West Central Africa, p. 98; HEYWOOD, Linda & THORNTON, John. African Fiscal Systems as Sources for Demographic History: The Case of Central Angola, 1799–1920. Journal of African History, v. 29, n. 2, p. 213-228, 1988. Mariana Candido critica Linda Heywood e John Thornton, pois, apesar dessas comunidades parecerem estáveis ao manterem os números totais de população constantes (ou mesmo aumentando), os autores ignoram os impactos de que parte considerável dessa população é formada por grupos de refugiados das razias e os conflitos entre migrantes e autóctones são bastante análogos aos efeitos disruptivos das fronteiras de escravização em outras regiões do interior. CANDIDO, An African slaving port and the Atlantic world, p. 296. 246 SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Silva Porto e Livingstone: Manuscripto de Silva Porto encontrado no seu espolio, Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1891, p. 13–14, 22–23. Com essa afirmação não pretendemos sugerir que há uma diminuição do tráfico continental de escravos em Angola na segunda metade do século XIX – o que, como já foi dito, seria equivocado. O que afirmamos é que os cativos não serão mais as principais mercadorias das caravanas sertanejas que vão para as regiões mais distantes, já que o retorno financeiro dos investimentos litorâneos dependia do direcionamento dos

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Assim, além dos escravos que vinham das caravanas dos mambari em direção a Lunda, Luba e Barotse, muitos dos cativos no Bié, como discutimos no capítulo anterior, eram originários do próprio Planalto, sendo muitas vezes escravizados no seio de suas sociedades de origem por causa de dívidas ou litígios judiciais, principalmente ligadas a acusações de feitiçaria. Mesmo assim, o tráfico de escravos das regiões mais para o interior com destino ao Planalto Central permaneceria intenso mesmo após a proibição legal da escravidão em 1869, principalmente entre negociantes africanos, sendo muitos cativos após esse período levados para Benguela e Catumbela, sob novos estatutos jurídicos, além daqueles que seriam embarcados para trabalharem nas roças de São Tomé e Príncipe247. Entre as evidências da maior presença de escravos provenientes do planalto, seja para a venda para o litoral, seja dentro dos próprios estados africanos, estão os dados referentes às origens dos escravos embarcados para o Atlântico em finais do XVIII até a década de 1860 coletados por Daniel Domingues da Silva. Se, por um lado, tais registros apontam que há cativos vindos de regiões mais distantes do litoral do que os registros das épocas anteriores mostravam, afinal, os mambari passaram a atingir regiões tão distantes como o Luvale e a Lunda entre as décadas de 1830 e 1850248. Por outro lado, tanto em Luanda, quanto para os portos a norte e sul da capital, incluindo Benguela, os números de Silva mostram um claro padrão de que a maioria das pessoas que estão sendo escravizadas nesse período final do tráfico foram escravizadas nas regiões próximas ao litoral, o que incluía a região de Benguela249.

produtos para o comércio lícito, como era o caso do marfim e da cera. Para mais sobre o funcionamento desse sistema de crédito das casas comerciais do litoral, ver a sessão seguinte deste capítulo. 247 HEYWOOD, Slavery, and Forced Labor in the Changing Political Economy of Central Angola, p. 418– 419. Nesse mesmo texto, Linda Heywood defende que se mantém uma compatibilidade da escravidão com as formas de trabalho forçado colonial do século XX, que permite a sobrevivência do sistema escravista e do tráfico interno no Planalto Central pelo menos até a época do Estado Novo português. Sobre as compatibilidades dos regimes de trabalho compulsório oitocentistas com o trabalho forçado do colonialismo do século XX, assim como as transformações do aparato legal que permitiram a perpetuação desses sistemas, ver também: MARTINEZ, Esmeralda Simões. O Trabalho Forçado na Legislação Colonial Portuguesa - o caso de Moçambique (1899-1926). Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, História da África, Lisboa, 2008; SOUZA, Maysa Espíndola, A Liberdade do Contrato: o trabalho africano na legislação do Império Português, 1850-1910, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017; NETO, Maria da Conceição, A República no seu Estado Colonial: combater a escravatura, estabelecer o “indigenato”. Ler História, nº 59, Lisboa, 2010, p. 205-225; NETO, Maria da Conceição, De Escravos a “Serviçais”, de “Serviçais” a “Contratados”: Omissões, perceções e equívocos na história do trabalho africano na Angola colonial. Cadernos de Estudos Africanos, v. 33, 2017 p. 107-129; GONÇALVES, Ivan Sicca, “Forçar Esses Rudes Negros de África a Trabalhar”: trabalho, raça e cidadania na legislação colonial portuguesa (1854-1928). Bilros, Fortaleza, v. 5, n. 9, 2017, p. 196-220. 248SILVA, The Atlantic Slave Trade from West Central Africa, p. 84–85; BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 38-39. (17/05/1868). Como destaca Jack Hogan, os mambari inclusive vão comprar escravos no Barotse, a partir da década de 1840. HOGAN, Jack, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), Phd Thesis, University of Kent, Canterbury, 2014, p. 80. 249SILVA, The Atlantic Slave Trade from West Central Africa, p. 84–87, 89–91.

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2.2 As demandas vindas de Benguela A proibição legal do tráfico atlântico de escravos, não só gerou uma busca do Estado colonial por novas formas de arrecadação aduaneira, como os próprios comerciantes das praças comerciais do litoral procuraram investir em novos produtos de exportação, tanto na produção em suas propriedades agrícolas, os arimos, como investindo em sertanejos que trouxessem gêneros coloniais produzidos nos territórios das autoridades africanas autônomas, como no caso do marfim e da cera. Portanto, ao contrário das convicções dos políticos liberais da metrópole, que esperavam que a proibição do tráfico não só serviria para romper os laços de dependência de Angola com o Brasil, como também forçaria o crescimento da produção agrícola de gêneros coloniais, os traficantes de escravos foram os agentes fundamentais dessa transição econômica. Sem deixarem de investir no contrabando de escravos, que continuava intenso250, os traficantes tornaram-se os principais credores das praças comerciais de Luanda, Benguela e até mesmo Lisboa, durante a segunda metade do século XIX251. Um exemplo paradigmático é o de Dona Ana Joaquina dos Santos Silva, uma das maiores comerciantes de Luanda, que ao mesmo tempo que empreendia embarques ilegais de escravos, administrava arimos de café nas margens do rio Bengo (a norte de Luanda) e Moçâmedes, tinha feitorias de urzela, produzia farinha e peixe seco para servir de mantimento para as caravanas de escravos, além de enviar agentes diplomáticos para os Estados africanos do interior com objetivo de estabelecer rotas de produtos como o marfim. Ainda há relatos que ela teria visitado fazendas açucareiras no Brasil para testemunhar o processo de cultivo e processamento do açúcar252.

250MARQUES, João Pedro, Uma revisão crítica das teorias sobre a abolição do tráfico de escravos português, Penélope: em debate, v. 14, p. 95–118, 1994. João Pedro Marques, nesse e em outros textos, destaca o profundo comprometimento da sociedade e administração de Angola com o tráfico de escravos, defendendo que não existiam na prática esforços locais de acabar com o tráfico e de realizar perseguição aos traficantes. Mesmo considerando os dados estarrecedores do tráfico ilegal em Angola, disponíveis na base de dados on- line Slave Voyages (https://www.slavevoyages.org/), deve ser matizada a imagem da inexistência de qualquer forma de combate ao tráfico na colônia, como se pode ver em: FERREIRA, Roquinaldo, Agência escrava e geopolítica na abolição do tráfico de escravos na África Central, p. 26–42; FERREIRA, Roquinaldo, Biografia como história social: o clã Ferreira Gomes e os mundos da escravização no Atlântico Sul, Varia Historia, v. 29, n. 51, p. 679–695, 2013. 251WISSENBACH, Maria Cristina Cortez, Entre caravanas de marfim, o comércio da urzela e o tráfico de escravos: George Tams, José Ribeiro dos Santos e os negócios da África centro-ocidental na década de 1840, Fundação Biblioteca Nacional – Programa Nacional de Apoio à Pesquisa, 2008, p. 23–25; DIAS, Jill Rosemary, Angola, in: ALEXANDRE, Valentim; DIAS, Jill Rosemary (Orgs.), O Império africano: 1825- 1890, Lisboa: Estampa, 1998, p. 385–387; SANTOS, Maria Emília Madeira, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), in: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da (Ed.), Viagens e Apontamentos de um Portuense em África. Diário de António Francisco Ferreira da Silva Porto, Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1986, v. 1, p. 74–75. 252DIAS, Angola, p. 386; WISSENBACH, Entre caravanas de marfim, o comércio da urzela e o tráfico de escravos, p. 23–25; FERREIRA, Roquinaldo, Abolicionismo versus Colonialismo: rupturas e continuidades

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Como dito anteriormente, as casas comerciais contratavam sertanejos através de mecanismo de crédito no qual o sertanejo, contraía um empréstimo com a casa comercial, a ser pago posteriormente com os ganhos do interior. Como não há monetarização no interior do continente, mesmo que sempre em seus escritos Silva Porto procure registrar seus ganhos e gastos na moeda de referência do comércio entre os sertanejos, os réis fracos, a contratação dos sertanejos pelas casas comerciais se dava em espécie, nos produtos demandados pelas chefias do interior, ou seja: as casas comerciais, chamada na relação de armador ou comitente, emprestavam ao sertanejo fazendas, além de aguardente, pólvora e armas de fogo, além de outros produtos em menor quantidade; o sertanejo, por sua vez, chamado de aviado ou comissionado, utilizava essa fatura para trocar nos sertões por, principalmente, marfim e cera, e trazia essa carga de volta para o litoral para pagar o crédito inicial, além de conseguir o seu lucro na operação. Como essas viagens que podiam durar quase um ano, entre a saída e o retorno ao litoral, as casas comerciais investiam cada uma em vários sertanejos, para poder receber os bens ao longo de todo o ano. Além disso, era comum que os sertanejos também contraíssem crédito de vários armadores, atuando com várias contas correntes simultâneas, como fica claro no caso de Gaudêncio José Dias Torres que será comentado na sequência253. No entanto, parece que, para Benguela, na época de Silva Porto, a prática de sertanejos contraírem várias contas correntes simultâneas não era comum, o que é indicado pelo próprio Silva Porto, ao comentar em abril 1863, quando residia em Benguela, que um comerciante desta praça propôs que ele seguisse para o interior com as fazendas de sua casa, e Silva Porto recusou, por classificar em seu diário tal oferta como “proposta intempestiva”, alegando que tinha negócios desde 1842 com

em Angola (século XIX), in: GUEDES, Roberto (Org.), África: brasileiros e portugueses - séculos XVI- XIX, Rio de Janeiro: Mauad X, 2013, p. 100. A compatibilidade de investimentos apontadas por esses estudos não quer dizer, no entanto, afirmar que a mesma ordem de lucratividade foi mantida com as novas atividades a partir do momento que os embarques escravistas diminuem de frequência. E também não quer dizer que os grandes investidores do tráfico sejam sempre as mesmas pessoas que dominariam os novos negócios. Carecem estudos sobre essas questões para o caso Angolano, mas convém destacar o balanço desse debate para a África Ocidental em: LAW, Robin, Introduction, in: LAW, Robin (Org.), From slave trade to “legitimate” commerce: the commercial transition in nineteenth-century West Africa : papers from a conference of the Centre of Commonwealth Studies, University of Stirling, Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2007, p. 3–6. Para algumas considerações sobre conflitos entre antigas e novas elites com a conversão da pauta exportadora, ver ainda: CURTO, José C., Whitening the “white” population: an analysis of the 1850 censuses of Luanda, in: PANTOJA, Selma; THOMPSON, Estevam C. (Orgs.), Em torno de Angola: narrativas, identidades e as conexões atlânticas, São Paulo: Intermeios, 2014, p. 225–248. 253FERREIRA, Roquinaldo, Dos sertões ao Atlântico, 2012, p. 269–270, 282–284; GONÇALVES, Ivan Sicca, Apontamentos Vindos dos Sertões: negociação, comércio e trabalho nas Caravanas de António Francisco Ferreira da Silva Porto (década de 1840), Campinas: Coleção Monografias IFCH/UNICAMP, 2019, p. 43–47.

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Manuel António Teixeira Barbosa e não iria retribuir os benefícios dessa aliança com “ingratidão”254. Com a grande quantidade de roubos, sequestros e até mesmo assassinatos de sertanejos no interior, os comerciantes do litoral procuravam recuperar seus créditos por via judicial, tentando utilizar os frágeis instrumentos administrativos existentes. Este é o caso que Roquinaldo Ferreira detalha quanto à morte do sertanejo Gaudêncio José Dias Torres. Tendo chegado nos anos 1840 em Angola sem recursos, Dias Torres foi contratado como caixeiro pela supracitada Dona Ana Joaquina dos Santos Silva, que o contratou para levar fazendas ao sertão, onde veio a falecer um ano e meio depois. Por decisão da Junta de Fazenda dos Órfãos e Ausentes, órgão responsável pelos espólios dos correspondentes que iam para o interior, e diretamente influenciado pelos comerciantes de Luanda, o espólio de Dias Torres foi desmembrado entre os comerciantes que tinham investido em suas caravanas, sendo registrados os pagamentos de oito comerciantes diferentes, de forma proporcional aos créditos nele investidos255. Para o Bié, no recorte dessa pesquisa, Silva Porto foi responsável por administrar o espólio de três sertanejos mortos no interior: Joaquim de São Tiago, Luiz Albino Rodrigues e Manoel Ferreira Alegre. Por particularidades específicas dos dois primeiros, discuto com detalhes os casos de cada um, respectivamente, nos Capítulos 1 e 3. Provavelmente, a responsabilidade de Silva Porto em fazer tal serviço esteja relacionada a ser um dos deveres do cargo de capitão-mor no sertão, tendo o sertanejo ocupado tal cargo de maneira interina repetidas vezes por ocasião de viagens do titular, o major Francisco José Coimbra256. No caso de Manoel Ferreira Alegre, Silva Porto comenta ter sido obrigado a desembolsar 800 mil réis por causa de uma sociedade comercial que Alegre tinha estabelecido com o Comendador João Maria de Souza e Almeida, além de quantia de 160 mil réis que o falecido iria pagar para a construção de monumento em homenagem a Camões em Lisboa, empreendimento coletivo patrocinado por um conjunto de sertanejos do Bié que incluía Silva Porto. É interessante a consideração que Silva Porto faz em uma das versões de seu diário, comparando a cobrança desses agentes do litoral à cobrança de

254 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 23. (03/04/1863). 255FERREIRA, Dos sertões ao Atlântico, p. 276–287. 256SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 43–44. Essa consideração não é válida para o caso de Luiz Albino Rodrigues já que, como será posteriormente detalhado, Silva Porto encontra a caravana do colega parada no caminho após a morte de seu chefe, na qual a distribuição dos bens para os membros da caravana de acordo com as regras sociais locais foi feita possivelmente por solidariedade a possíveis parceiros de negócios prejudicados pela paralização da caravana e não por dever administrativo.

124 mucanos realizada por chefias africanas, sendo preferível perder a importância exigida do que enfrentar qualquer pleito judicial257. Mesmo que os dados sejam incompletos, e com frequência não apareçam de forma discriminada frente às exportações de Luanda, Benguela era um importante porto de exportação de marfim, que sempre foi um dos principais produtos de exportação dessa praça, utilizando o mesmo mecanismo de crédito descrito acima. Porém, pouco se sabe sobre a proveniência dos marfins vindos para esse porto antes da década de 1840. Sabe-se, no entanto, que os elefantes eram mais recorrentes no Planalto antes desse período, e, como aponta Miller, nos séculos XVII e XVIII, era fundamental para as exportações o fornecimento de marfim proveniente da região sul de Angola, do Humbe e da Huíla, sendo proibida na última a entrada dos brancos258. O comércio de marfim em Angola após 1769 tornou-se um monopólio régio, desse modo todas as peças coletadas na conquista portuguesa deveriam ser vendidas para a Junta da Administração e Arrecadação da Real Fazenda do Reino de Angola. Na sequência, essas pontas seriam embarcadas nos portos de Luanda ou Benguela, partindo para uma comercialização que deveria ser direta para a Europa, sob a égide exclusiva da Mesa da Real Fazenda. Durante esse período, por causa da obrigação de vender para o órgão régio, os preços do marfim eram fixos e eram restringidas as possibilidades de fabricação de objetos de marfim lavrado para o mercado interno259. Em avaliação crítica sobre essa política, o ex-governador de Angola António Saldanha da Gama afirmou em suas memórias que o preço fixo do marfim desincentivava os africanos a levarem às cidades os

257 BPMP. Ms. 1236. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 2º volume, p. 264. (21/01/1862). As atitudes e estratégias dos sertanejos frente às cobranças e aos tribunais de mucanos são tema do Capítulo 1. 258MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 34. Por causa dessa falta de conhecimento específico sobre a origem dessas peças, tendo só a informação dos portos de exportação - que raramente eram os lugares onde se caçavam os elefantes, estudos recentes sobre a circulação atlântica do marfim preferem utilizar o termo "lugares de procedência" para os portos de exportação, diferenciando-se da ideia de proveniência, cf. ALVES, Rogéria Cristina, Entre contratos e monopólio: a circulação de marfim in natura a partir do porto de Luanda (1749-1789). Comunicação apresentada no Congresso Internacional Marfins Africanos no Mundo Atlântico, 1400-1900, Lisboa, 2019. Sobre a presença de elefantes no Planalto Central, ver a passagem de Silva Porto já citada na introdução: SGL. Res. 2 – C – 6. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 1º volume, p. 372. (12/03/1854). 259LUÍS, João Baptista Gime, O Comércio do Marfim e o Poder nos Territórios do Kongo, Kakongo, Ngoyo e Loango: 1796-1825, Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2016, p. 97–99; ALVES, Entre contratos e monopólio. O preço fixo do marfim era relacionado ao tipo de ponta que era vendida, sendo classificadas em três classes de valor, de acordo com seus pesos (considerando que cada libra das pontas mais pesadas era mais valiosa): o marfim miúdo, que pesava até 16 libras ou arráteis, o marfim meão que pesava entre 16 e 32 libras, e o marfim de lei, com 32 ou mais libras; nesse sistema, as pontas avariadas eram desvalorizadas. Mesmo após o final do monopólio régio, a referência a essas classes continua no comércio angolano. ALVES, Rogéria Cristina, Marfins na rota atlântica: a circulação do marfim entre Luanda, Costa brasileira e Lisboa (1724-1826), in: SANTOS, Vanicléia Silva; PAIVA, Eduardo França; GOMES, René Lommez (Orgs.), O comércio de marfim no mundo atlântico: circulação e produção (séculos XV a XIX), Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural e Editora, 2018, p. 110.

125 dentes mais pesados, preferindo vender para estrangeiros (portanto, em contrabando) ou deixavam as presas jogadas nas selvas260. Com os dados referentes a “exportações do comércio” dos mapas estatísticos do presídio de Cambambe, no corredor do rio Kwanza, para as primeiras décadas do século XIX, Carolina Perpétuo Corrêa relativiza a afirmação de Saldanha da Gama de que haveria desinteresse africano em transportar os dentes de maior vulto até a costa, já que nessa região, mesmo quando seu valor era mais baixo, o marfim de lei correspondia a mais de 60% do marfim exportado261. De qualquer forma, em 1834, como parte das medidas políticas de fomento para ascensão do comércio lícito, foi abolido o monopólio régio sobre o comércio do marfim e, como indicam os dados da Tabela 3, tal medida resultou em um crescimento considerável das exportações de marfim em Luanda e Benguela após essa data262. Com o novo mecanismo regulando o comércio desse material, uma das transformações regionais mais importantes foram as mudanças nas redes internas de circulação do marfim antes de chegar aos portos portugueses. Até a abolição, mesmo que boa parte da exportação de marfim se concentrasse nos portos a norte de Angola, como o Congo, Kakongo, Ngoyo e Loango, tal marfim era proveniente de diferentes regiões no interior e concentrado nos portos a norte. Mesmo que não tenhamos as referências precisas sobre os locais de proveniência dessas pontas exportadas até então, a caça contínua de elefantes na região de Benguela, como já dito, resultou na escassez das manadas. Por esta razão, os mambari, cada vez mais envolvidos nessa modalidade comercial, foram procurar mais a leste locais com condições favoráveis para a compra de marfim, o que encontrariam no Barotse, que ganharia a centralidade das rotas frente aos Estados mais a sul, como o Humbe e a Huíla263.

260 Saldanha da Gama, 1839 apud HENRIQUES, Isabel Castro, Percursos da modernidade em Angola: dinâmicas comerciais e transformações sociais no século XIX, Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1997, p. 340. 261CORRÊA, Carolina Perpétuo, O comércio de marfim no Presídio de Cambambe, Angola: primeiras décadas do século XIX, in: SANTOS, Vanicléia Silva (Org.), O Marfim no Mundo Moderno: comércio, circulação, fé e status social (Séculos XV-XIX), Curitiba: Prismas, 2017, p. 155–158. 262 Isabel Castro Henriques relativiza os impactos do fim do monopólio como sendo sinônimos de um crescimento imediato da exportação de marfim, devido ao intenso contrabando dessa mercadoria que já existia, tanto para portugueses, quanto para estrangeiros. HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola, p. 340. 263LUÍS, O Comércio do Marfim e o Poder nos Territórios do Kongo, Kakongo, Ngoyo e Loango, p. 97; TELES, Edgar, Ivory Trade and Impact on Elephant Habitat and Population in Benguela 1790-1810, Environment and Ecology Research, v. 8, n. 2, p. 41–58, 2020; SANTOS, Perspectiva do Comércio Sertanejo do Bié, p. 11–12.

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Tabela 3 – O Comércio de Marfim em Angola264 Portos Anos Quantidades Luanda e Benguela 1823-1825 média/ano 38 912 kg (monopólio da Fazenda Real) Luanda 1830-1832 2 288 kg Luanda e Benguela 1845 45 000 kg Luanda e Benguela 1857 76 455 kg Luanda e Benguela 1870-1872 média/ano 51 000 kg Dados retirados de: HENRIQUES, Percursos da Modernidade em Angola, p. 556. Esse contexto, de abertura da possibilidade de um contato mais direto de negociantes de marfim do interior com as rotas da zona atlântica, é simultâneo à perseguição ao tráfico de escravos no litoral, por parte, tanto da marinha britânica, quanto pelo governo colonial português. Com todas as ambiguidades desse processo, que inclusive resultou no aumento conjuntural da exportação de escravos em alguns portos, ao mesmo tempo que se intensificava a perseguição em outros, uma série de armadores, que não tinham a mesma capacidade de investimento de uma Dona Ana Joaquina, vão pedir aos sertanejos que, no lugar de escravos, pagassem suas faturas com marfim e cera. Como já dito anteriormente, no caso de Silva Porto, essa conversão ocorreu em 1845, quando seu armador, Manuel António Teixeira Barbosa, deu instruções ao veterano dos sertões, António Luís de Sousa e Castro, acompanhado de Silva Porto, para que pagassem a próxima fatura em cera ou marfim, com preferência ao último265. Considerar essa informação, pode levar a hipótese falsa de que o sertanejo, após 1845, não se envolveu mais com o tráfico de escravos. É claro que se poderia considerar a hipótese de que, no contexto de envio de seus cadernos em 1869, com objetivo de legitimação da ação colonial portuguesa, Silva Porto poderia ocultar seu envolvimento com o infame comércio – tal hipótese, no entanto, não parece factível, já que o sertanejo não parecia ter grandes escrúpulos em comentar, como será dito posteriormente nesse capítulo, a sua posse, compra e venda de escravos no interior do continente, afirmando na própria introdução dos cadernos enviados em 1869 que ele se tratava de um “anti- abolicionista por convicção”266, criticando o idealismo dos políticos liberais da metrópole em várias oportunidades ao longo de seus diários267.

264 Vale apontar que, nesses dados, não há quantidade de pontas e, portanto, também não há a referência discriminada em classes de cada ponta exportada – não revelando, por fim, dados ligados aos valores precisos arrecadados com essa exportação. 265SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 75–79; SILVA PORTO, Silva Porto e Livingstone, p. 22–23. 266 BPMP. Ms. 1235. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 1º volume, p. 5. 267 É verdade que não é recorrente encontrar na bibliografia a alcunha que Estevam Thompson dá a Silva Porto de “o mais famoso traficante de escravos luso-africano”, mas não é difícil achar em seus cadernos

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No início da década de 1840, as medidas de combate ao tráfico de escravos ganharam força, resultando que inclusive muitos funcionários administrativos cúmplices do contrabando fossem presos, incluindo o secretário do governador de Benguela. Mesmo assim, as estimativas do tráfico nessa região são de aumento, sendo que cerca de 30 mil cativos foram enviados de Benguela para as Américas entre 1841 e 1845, em comparação aos 2.684 enviados entre 1831 e 1835268. Após esse período, e por causa da abolição do tráfico no Brasil, cresce rapidamente a população escrava das cidades costeiras, alimentando a hipótese de que esses cativos originalmente tinham sido trazidos para serem enviados ao atlântico – no caso de Benguela, essa população salta de 2.438 escravos em 1844, para 5.566 em 1856269. Como já comentado anteriormente, estudos recentes mostram como boa parte desses cativos da fase final do tráfico atlântico foi escravizada em regiões próximas ao litoral, por vários mecanismos, legais e ilegais270. Tendo em vista esses estudos, e a maior fragilidade dos comerciantes menos poderosos do litoral frente à perseguição crescente aos traficantes de escravos, parece coerente a hipótese de que os investimentos em sertanejos que iam para longas viagens em direção ao Barotse teriam como objetivo principal a arrecadação de produtos cujo comércio era mais estável e seguro, como o marfim e a cera. Isso não significa afirmar que parte do pagamento da fatura dos sertanejos do Bié não poderia ser feito em escravos, ainda mais considerando a demanda própria da sociedade de Benguela e proximidades por escravos, mas não consistia no principal produto buscado por esses sujeitos no sertão a dentro.

referências sobre sua atuação na venda e compra de escravos no interior – inclusive, pois, como será comentado na sequência, os escravos são uma entre várias mercadorias demandadas em diversas regiões do interior para a permuta de gêneros. THOMPSON, Estevam C., Fontes coloniais para uma história pré- colonial de Benguela, séculos XVII a XIX, Africana Studia, v. 25, n. Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, p. 33–69, 2015, p. 64. Texto gentilmente cedido pelo autor. Caso diferente ocorre quanto ao húngaro László Magyar, cujo envolvimento no tráfico de escravos é razão de polêmica historiográfica. Ver: SEBESTYÉN, Éva, A sociedade ovimbundu nos relatórios de viagens do húngaro László Magyar: sul de Angola, meados do século XIX, História: Debates e Tendências, v. 15, n. 1, p. 83– 100, 2015. Quanto à polêmica no século XIX de que Silva Porto fosse traficante de escravos, que será detalhada mais adiante, vale citar a resposta de Roberto Ivens e Hermenegildo Capelo, dois oficiais eternizados nos anais coloniais como exploradores do interior da África, que disseram "(...) Silva Porto, com quem contraímos relações pessoais, é um dos homens mais probos que temos encontrado. (...) sabemos não ser um traficante e que a sua mercadoria principal nunca foi o homem!". Capelo & Ivens, 1886 apud ROSA, Frederico Delgado; VERDE, Filipe, Exploradores Portugueses e Reis Africanos: Viagens ao coração de África no século XIX, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013, p. 156–157. Destaque feito no livro citado. 268FERREIRA, Biografia como história social, p. 686, 689. A década de 1830 configura como uma baixa considerável dos embarques de escravos em Benguela em comparação também ao período anterior; como comparação, no período entre 1826 e 1830 foram embarcados nesse porto 25.097 cativos. Cf. FERREIRA, Biografia como história social, p. 686. 269SILVA, The Atlantic Slave Trade from West Central Africa, p. 76. 270 Sobre esses estudos, ver capítulo 1.

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Mesmo os dados de exportação da cera sendo maiores do que do marfim, por todo o período analisado nessa pesquisa, em vários momentos fica claro que o marfim é o produto mais importante do comércio sertanejo. Após o colapso do tráfico atlântico, particularmente para o Brasil e Cuba, na década de 1860 cresceu a centralidade do marfim para a economia de Benguela, como Silva Porto comenta em 1863, quando residia na cidade, sobre a chegada de uma caravana do Bié no dia 18 de abril: "se falo em interesse [para o comércio de Benguela] é em virtude de ser as caravanas de maior importância que descem ao litoral, por causa dos dentes de elefante que conduzem, e cera em quantidade."271 Na sequência, Silva Porto explica que as caravanas de outras procedências traziam pouco marfim, pois não iam para regiões mais distantes, de modo que suas permutações se resumiriam a da cera que, como detalharemos mais adiante, era produzida nas ganguelas e era produto de acesso mais direto das caravanas de africanos272. Para manter o comércio em funcionamento, várias caravanas de longa distância chegavam todos os meses no porto de Benguela, como revelam os dados da Tabela 4, referentes aos oito meses que Silva Porto residiu em Benguela, registrando a entrada de 15 caravanas de longa distância, em uma média próxima de duas caravanas por mês, sendo, desse total, sete provenientes do Bié.

271 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 26. (18/04/1863). 272 Idem, Ibidem.

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Tabela 4 - Movimentação de Caravanas em Benguela, Janeiro a Setembro de 1863 Data de Entrada Origem Data de Saída Observações 14/01 Bié 19/01 Comitiva liderada por Silva Porto. Como o sertanejo se instalou na cidade, a comitiva partiu liderada pelo macota grande do sertanejo. 15/02 Bié 16/02 Caravana do sertanejo Guilherme José Gonçalves 16/03 Bié 19/03 Caravana do sertanejo Guilherme José Gonçalves 11/04 ?* - - 12/04 Caquingue 15/04 - 13/04 Caquingue 15/04 - 14/04 Caquingue 15/04 - 18/04 Bié 21/04 - 23/04 Caconda - Especifica que a caravana é de indígenas de Caconda. 09/06 Caconda - - 10/06 Bié 15/06 - 27/06 Caconda - - 06/07 Bié 12/07 Fica sugerido por apontamento de 06/09/1863 de que essa caravana era de Bonifácio José Rasquete.** 05/09 Caconda - - 06/09 Bié 16/09 Caravana liderada por Bonifácio José Rasquete, na qual se integra Silva Porto, decidindo mudar-se da cidade. *Silva Porto refere-se somente como “caravana de indígenas”, sem indicar a proveniência da comitiva. **Se for essa a caravana referida pelo dito apontamento, ela teria levado de volta ao Bié Guilherme José Gonçalves, que tinha estado por um tempo na cidade. Dados retirados de: BPMP. Ms. 1238. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 3º volume – BIS .

2.3 Presentes e Tributos de Passagem nos Sertões A atividade comercial no interior apresentava uma série dificuldades para os sertanejos ao tentarem manter a lucratividade do empreendimento comercial. Entre elas, estavam as longas distâncias a serem percorridas, que não só significavam um gasto de tempo considerável, mas também grande insegurança na passagem por espaços de diversas configurações; a necessidade de pagar impostos de passagem ao atravessarem territórios sob jurisdição de sobas locais; a contratação e manutenção de carregadores para comporem a caravana durante todo o trajeto da viagem e, finalmente, as longas esperas no ponto final da viagem, na corte de grandes mandatários africanos, na dependência dessas chefias que reuniam o marfim capturado pelos seus vários povos tributários. Por esses motivos, era ideal que os sertanejos buscassem como interlocutores principais os sobas mais poderosos que tivessem muito marfim a sua disposição, procurando trocar o máximo possível de seus produtos manufaturados, adquiridos em sua fatura no litoral, pelas presas sob domínio

130 desse soba, o que asseguraria o retorno da caravana com o máximo de produtos demandados no litoral273. Por várias razões que serão melhor detalhadas na sequência, após a década de 1840, os sertanejos do Bié encontraram essas condições favoráveis no Barotse. Para o cálculo dos ganhos nas permutas com essa fatura inicial, era fundamental considerar os vários gastos que eram feitos no cotidiano de funcionamento das caravanas no interior. Mesmo achando que se tratavam de pretextos para justificar o baixo valor dos ganhos da expedição, um dos macotas grandes274 de Silva Porto, em 1863, descreve uma série de gastos que teve durante a viagem, perdendo muitos banzos275 durante o percurso que eram originalmente planejados para a compra de marfim no interior: “Senhor, em tal parte, um Banzo em dívida ao soba fulano; em tal parte um Banzo em dívida ao soba sicrano; outro Banzo para passagens de rios, por ser diminuta a fazenda que o senhor deu para este efeito; em tal parte um Banzo para resgatar o meu cunhado; e outro Banzo para comedorias276, por não encontrar marfim na terra onde fomos, sendo necessário caminhar para tal e tal terra, onde encontram[os] um soba muito mau, que nos sequestrou; e então, o bocadinho de marfim que trago, foi comprado na torna viagem!”277

273 SANTOS, Tecnologias em Presença, p. 234–235. Em janeiro de 1864, Silva Porto reclama do fato de ter retornado uma caravana subsidiária, vinda das proximidades do Lutembo, com os produtos para permuta sem terem sido trocados. Tal problema ocorreu porque o marfim e a cera da dita terra já haviam sido trocados anteriormente com pombeiros, por isso Silva Porto afirma que o problema dos habitantes das terras pequenas é que eles não comportam a permuta além de dois a três pombeiros. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 101. (24/01/1864). 274 Macotas grandes e macotas pequenos são os nomes dados aos homens de confiança do sertanejo que chefiam as caravanas nas quais o sertanejo não está presente, geralmente de forma simultânea às viagens que o sertanejo realizava com a própria caravana. No caso, como já foi dito anteriormente, de janeiro a setembro de 1863, Silva Porto residiu em Benguela, tendo sido o plano inicial de se mudar em definitivo para a cidade abortado no final desse período. Na ocasião relatada na sequência, seria exatamente o momento que chegou ao porto uma das caravanas vindas do interior com cargas de Silva Porto, que estava realizando o inventário dos ganhos e perdas de tal comitiva antes de vender o excedente para a casa comercial de Manuel António Teixeira Barbosa. 275 Os banzos são uma quantidade padronizada de fazendas empacotadas, em geral contendo também outros produtos, que estão ligadas ao pagamento da parte de cada pombeiro para, assim, pagar os próprios carregadores. SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 87–88, 101–102. Quanto ao valor de cada banzo, Silva Porto explica que "Banzo em português, Banjo em quimbundo [kimbundu], é o termo por estas partes empregado para designar a importância da fazenda e mais acessórios para a compra de uma ponta de marfim de lei ou um escravo.". BPMP. Ms. 1239. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 4º volume, p. 223. (08/11/1867). Segundo Kalle Kananoja, o termo homônimo conhecido no Brasil, referente à melancolia dos escravizados, deriva do verbo banzar, e não do substantivo banzo. O dito verbo seria ligado à noção de “chorar banza” por causa da nostalgia que sentiam pela sua banza, traduzida como casa ou aldeia. KANANOJA, Kalle, As Raízes Africanas de uma Doença Brasileira: o banzo em Angola nos séculos XVII e XVIII, Ponta de Lança, v. 12, n. 23, p. 69–94, 2018, p. 74–75. 276 Termo utilizado pelos sertanejos para referir a dádivas aos sobas. Para mais sobre o funcionamento desse fenômeno, ver seção 2.6 desse capítulo. 277 BPMP. Ms. 1238. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 3º volume – BIS, p. 58 (07/09/1863). Para mais sobre o cálculo do sertanejo para gastos da viagem, previstos na composição de cada banzo, ver o Anexo IV.

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Mesmo podendo haver possíveis exageros no relato do macota, o próprio Silva Porto reconhece que tais infortúnios eram recorrentes no interior, como de fato está registrado em seus diários. À parte do sequestro, das comedorias e do resgate ao cunhado do macota grande, as dívidas que o macota relata ter pagado aos sobas “fulano” e “cicrano”, além da passagem do rio, provavelmente estavam relacionadas à instituição do tributo de passagens, generalizada no interior, também chamado de quibanda, na qual os sobas cobravam um valor em troca do direito de passagem segura por sua terra. Os gêneros entregues ao soba seguiam ritualmente o formato de uma troca de presentes, sendo, portanto, retribuídos pelo soba, que entregava geralmente mantimentos (animais, bebidas alcóolicas locais, cereais e/ou farinhas). O valor da quibanda variava de região para região, de acordo com o poder do soba local, e raramente Silva Porto registra nos diários o valor que pagava em cada uma dessas ocasiões278. Além das quibandas, outro tributo importante cobrado pelos sobas no caminho era o o-sapo (ou mussapo). O o-sapo era entregue por emissários da caravana três ou quatro dias antes de chegarem às terras de soberanos mais importantes, sendo, segundo Silva Porto, um aviso ao soberano de que a caravana se aproximava. Assim como a quibanda, esse presente previa uma retribuição pela chefia e era considerado uma demonstração de amizade do chefe da caravana para com seu futuro hospedeiro, sendo tido como descortesia o caso de negociantes que se negassem a pagar o o-sapo e potencial causador de conflitos279. Mesmo que não registre a entrega do o-sapo para todas as chefias do caminho, como fazia com as quibandas, Silva Porto sempre envia esse presente ao soberano do Barotse. Em uma viagem do Bié a essa região, comenta que ao passar pelos domínios do

278 Existem, nesse sentido, algumas poucas exceções entre os apontamentos de Silva Porto escritos entre 1846 e 1869. Em 11 de novembro de 1866, comenta que o soba de Yikoma (Quicuma, em Silva Porto), região no caminho entre o Bié e Benguela, exigiu, assim como “outro qualquer senhor da terra”, uma quibanda equivalente ao valor de um escravo. BPMP. Ms. 1239. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 4º volume, p. 69-70. Ao tentarem passar pelo Lutembo em 28 de dezembro de 1847, os pombeiros de Silva Porto pagaram ao soba Cabita o equivalente em gêneros ao valor de 3 escravos ou 3 dentes grandes de elefante, que seriam recusados pelo soba, que exigiu um segundo presente de mesmo valor. Foi levado um presente suplementar no dia seguinte, cujo valor não sabemos, mas que foi o suficiente para o soba Cabita. BPMP. Ms. 1235. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 1º volume, p. 85-86; SGL. Espólio de Silva Porto, cx. 1. SILVA PORTO, Borrões da 3ª viagem, p. 8-9. Em breve apontamento de 9 de março de 1865, Silva Porto também comenta pagar para o soba e macotas do Bié quibanda no valor de 3 escravos, que seria devolvida, com a exigência da chefia de um pagamento no valor de quatro escravos. BPMP. Ms. 1237. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 3º volume, p. 409. Ver também: BARROCAS, Deolinda; SOUZA, Maria de Jesus, As populações do hinterland de Benguela e a passagem das caravanas comerciais (1846-1860), in: A Dimensão Atlântica da África - II Reunião Internacional de História da África, São Paulo/Rio de Janeiro: CEA/USP/SDG/Marinha, 1997, p. 98–99, 105. 279 BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 370-374. (13/12/1862); Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 8-10. (17/05/1846). SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos, Sociabilidades em Trânsito: os carregadores do comércio de Longa Distância na Lunda (1880- 1920), Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 115–121.

132 povo milango, paga o o-sapo ao soberano da terra para provar que sua caravana era pacífica, pois na viagem anterior pelo mesmo trajeto o dito chefe teria achado que a caravana vinha atacar os seus domínios280. Como aponta Márcia Cristina Pacito Fonseca de Almeida, ao avaliar as instruções dadas em 1884 pelo ministro da Marinha e Ultramar, Manuel Pinheiro Chagas, à expedição de Henrique de Carvalho, a administração colonial portuguesa reconhecia a necessidade de considerar a entrega desses presentes como ponto fundamental para lidar com as chefias africanas do interior, para fortalecer alianças ao cativar a “simpatia dos régulos dos sertões”, entregando os presentes em “espontânea demonstração de amizade” e não como tributo. As linhas que separam essas duas atitudes de trocas de presente não eram muito claras nas instruções, mas o major também era alertado dos abusos que os chefes africanos poderiam incorrer281. De qualquer forma, tanto na expedição de Carvalho, quanto nas caravanas comerciais, contabilizava-se de forma antecipada que parte dos gêneros da viagem seria gasta com presentes, sendo esse investimento incontornável. Quanto à questão da suposta espontaneidade do presente como demonstração de amizade, Isabel Castro Henriques procura distinguir os presentes de cortesia dos presentes obrigatórios, em que os segundos, a exemplo da quibanda, tinham seus valores mais ou menos fixados e eram obrigatórios, assim como seria obrigatória a sua retribuição por parte do soba282. De certa forma, o que Henriques considera como presente de cortesia, também era esperado pelas chefias, como o caso dos o-sapo, sendo sempre ambígua a linguagem de amizade e aliança política que envolve essas trocas, que tinham valores mercantis bastante intrínsecos. No entanto, como defende a autora, mesmo sendo na prática obrigatórios, pelos

280 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 159. (30/01/1853). O termo "o- sapo" vem do verbo em umbundu "okusapula" traduzido como "contar, participar, transmitir, anunciar, notificar", tendo o sentido mais amplo de "falar", "dizer" ou "contar". Podemos conjecturar que tal tributo era assim chamado por exatamente ser um anúncio de que a caravana estava vindo, e que vinha em paz. DULLEY, Iracema, Deus é Feiticeiro: Prática e disputa nas missões católicas em Angola colonial, São Paulo: Annablume, 2010, p. 119. Agradeço à Iracema Dulley por ter me atentado sobre o significado dessa palavra. 281ALMEIDA, Márcia Cristina Pacito Fonseca, Comércio, bens de prestígio e insígnias de poder: As agências centro-ocidentais africanas nos relatos de viagem de Henrique de Carvalho em sua expedição à Lunda (1884-1888), Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 165–167. 282 A obrigatoriedade das quibandas era tão grande que mesmo em episódio em que o soba do Biélle roubou um fardo de fazendas da caravana, que foi imediatamente restituído por comitiva armada do sertanejo Francisco Fernandes Relva, foi paga e aceita a quibanda – ainda que o soba local tenha se utilizado de vários subterfúgios para justificar sua tentativa mal sucedida de apropriação do alheio. BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 71. (14/10/1866). No entanto, em episódio anterior, no Solo – região entre Bié e Benguela –, Silva Porto se recusou a pagar a quibanda ao soba local, o que levou o chefe a proibir que negociantes vendessem mantimentos ao povo da caravana, enviando emissários para expulsar os vendedores. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 2-3. (29/10/1860).

133 seus termos serem mais vagos, esse tipo de troca permitia uma maior margem de manobra aos negociantes de passagem quanto à definição do valor, ao contrário das quibandas283. As retribuições dos presentes poderiam ser bastante generosas. Como já apontado há várias décadas por Marcel Mauss e seus discípulos, o ato de presentear não só é importante na criação de alianças, mas também é uma demonstração de poder – assim, chefes poderosos não só podem cobrar impostos mais caros, mas têm poder o suficiente para retribuir presentes com mercadorias de alto prestígio284. Por este motivo, geralmente o gado era usado na retribuição, já que era animal doméstico de circulação restrita entre as elites do centro e leste da atual Angola. Linda Heywood inclusive levanta a hipótese que em alguns casos a retribuição até valeria mais do que o tributo inicialmente pago, mesmo que outros reclamassem que pagavam muito mais do que recebiam, tendo, no entanto, por vezes condições melhores ou comparáveis às permutas comuns da compra e venda285. De qualquer forma, Silva Porto registrava esses presentes como gastos, afinal, os produtos que vinham nas retribuições (animais domésticos e alimentos em geral) não eram viáveis para trocar por marfim e cera, sendo aceitos para tal somente gêneros importados como tecidos, álcool e armas de fogo. Deve-se ter cuidado, no entanto, ao pensar tais modalidades de troca, com a essencialização da interpretação da ação das chefias africanas e dos rituais envolvendo a retribuição dos presentes como atitudes opostas ao comércio capitalista de mercadorias. Como defende o antropólogo Arjun Appadurai, houve uma longa tradição antropológica, tanto entre herdeiros de Mauss, quanto de Marx, que enfatizou as diferenças entre a troca de presentes, que funcionaria na lógica de dom e contra-dom, fortalecendo as ligações sociais; ao contrário da permuta ou troca de mercadorias, caracterizadas como calculistas e anti-sociais, derivando portanto de uma divisão simplista e romântica entre sociedades capitalistas e não-capitalistas e ignorando que as sociedades capitalistas também operam por padrões culturais, e as não-capitalistas também operam com lógicas calculistas e impessoais286. Nesse sentido, seria equivocado entender a troca de presentes dos sobas

283HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola, p. 457–458. 284 LANNA, Marcos, Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva, Revista de Sociologia e Política, n. 14, p. 173–194, 2000, p. 175–176; MAUSS, Marcel, Sociologia e antropologia, São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 183–314. Vale destacar que, ao passar por Cisanji (Quiçanje, em Silva Porto), o sertanejo recebeu um boi de retribuição pela quibanda e comenta que o soba temia que Silva Porto e outro sertanejo que o acompanhava fossem enfeitiçá-lo em caso de não vir uma retribuição a contento. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 63. (20/09/1863). 285 HEYWOOD, Linda M., Production, Trade and Power: the political economy of central Angola, 1850- 1930, Tese de Doutorado, Columbia University, New York, 1984, p. 70–71, 87–91. 286APPADURAI, Arjun, Introdução: Mercadorias e a Política de Valor, in: APPADURAI, Arjun (Org.), A Vida Social das Coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural, Niterói: Editora da Universidade

134 como desprovida de cálculos comerciais, fazendo uma distinção fundamental entre o que é presente e o que é tributo somente pela obrigatoriedade ou não da dádiva287. Integrados por séculos no comércio de longa distância, como será discutido na sequência, os produtos importados da Europa, Ásia e América que chegavam pelas caravanas estavam diretamente relacionados ao exercício do poder dessas chefias. Por esse motivo, mais do que “usos e costumes gentílicos” tradicionais que precisavam ser respeitados, como sugeriria as instruções supracitadas do ministro da marinha, os impostos de passagem e diversos “presentes” exigidos pelos sobas do caminho das caravanas eram, acima de tudo, estratégias dessas chefias para arrecadação de produtos importados288. É claro que, mesmo não havendo distinção absoluta entre permutas e trocas de presentes, isso não quer dizer que não existissem modalidades diferentes de troca, percebidas enquanto tais, tanto pelos chefes africanos, quanto pelas autoridades portuguesas. Em seu texto sobre o comércio do marfim no Loango nos séculos XV a XVII, Mariza de Carvalho Soares mostra como um regimento português, que procura criar regras para as trocas de objetos e a diplomacia entre portugueses e o reino do Kongo do início do século XVI, percebe e tenta normatizar diferentes modalidades de troca, como os presentes, a compensação e o comércio (sendo esse último, proibido na época). A autora mostra como essas diferentes modalidades eram simultâneas, no entanto, os seus

Federal Fluminense, 2008, p. 24–27. Mais do que tentar classificar os atos de presentear e as obrigações de retribuição como ligados ou não a noções capitalistas de lucro, Elaine Ribeiro em seu trabalho prefere focalizar no como essas ações geravam a criação de vínculos entre os sujeitos envolvidos na troca. SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos, Sociabilidades em Trânsito: os carregadores do comércio de Longa Distância na Lunda (1880-1920), Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 121– 122. 287 Vale a pena, nesse sentido, destacar que a distinção feita por Igor Kopytoff entre os tipos de troca não é baseada na natureza da sociedade enquanto capitalista ou não capitalista, e sim se a troca é uma transação descontínua, que se encerra após a primeira circulação de produtos, ou se ela abre portas para novas trocas, como é o caso das trocas de presentes e mesmo das quibandas no interior de Angola. Pouco importa para essa definição, portanto, se a retribuição era exigida por pura ganância das chefias ou por regras sociais pré- existentes, costumes, baseando as distinções na dimensão temporal da troca (entre se encerrar imediatamente ou obrigar novas transações). KOPYTOFF, Igor, A Biografia Cultural das Coisas: a mercantilização como processo, in: APPADURAI, Arjun (Org.), A Vida Social das Coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural, Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 94–96. Além disso, mesmo se a lógica for a do "costume", como discutiremos no 3º capítulo, entendemos por "costume" mais do que uma tradição que continua vigente, sendo o costume um instrumento e discurso de reivindicação. 288 Afirmar que esses cálculos eram estratégias de acumulação de bens importados não significa, em momento algum, negar a legitimidade do controle e posse das chefias africanas sobre tais territórios no caminho, ou seja, por eles serem os senhores desses territórios, a legitimidade de seu domínio era atestada pela cobrança dos impostos de passagem. O que procuro afirmar aqui é muito mais no sentido de refletir em como os valores e os produtos específicos que compunham o pagamento de tais tributos foram influenciados por esses contatos atlânticos multisseculares, assim como, analogamente, os portugueses foram moldando suas cobranças de mão de obra, sal, cativos e gado aos seus vassalos africanos, com objetivo de manter o controle colonial e o fluxo constante e crescente de cativos para o tráfico transatlântico até meados do século XIX.

135 significados, os atores envolvidos e os objetos da permuta eram diferentes para cada um desses casos289. Levando em conta essas considerações anteriores sobre o controle e obrigatoriedade do pagamento dos impostos de passagem, dos interesses calculistas e mercantis frente a direitos tidos como consuetudinários e do reconhecimento de diferentes modalidades de troca, tanto por parte dos sertanejos, quanto dos chefes africanos, vale pensar o caso do soba Cabita, soberano do Lutembo, território localizado no trajeto entre o Bié e o Lui. Desde a primeira viagem de funcionários de Silva Porto para o Barotse, em 1845, o soba do Lutembo foi o soberano que mais resistiu ao avanço das caravanas mambari em suas terras. Temendo possíveis ataques militares das comitivas, ou mesmo desejando monopolizar o acesso ao comércio de marfim vindo do Lui, Cabita sempre cobrou altos impostos para que os mambari conseguissem passar por suas terras, além de exigir que dois funcionários da comitiva ficassem nas suas terras comprando gêneros a altos valores290. Quando Francisco Monteiro da Fonseca e Joaquim Mariano foram fazer o mesmo trajeto em 1847, Silva Porto pediu para que evitassem a terra. Não conseguindo desviar do dito trajeto, quando os caixeiros chegaram ao Lutembo, no dia 28 de dezembro, ofereceram como quibanda ao soberano uma quantidade de gêneros equivalente ao valor de três escravos, ou três dentes grandes de elefante291. Além de pedirem o direito de passagem, a comitiva repetiu a oferta da viagem anterior de instalar dois pombeiros no território – para tal, esses mesmos pombeiros, por conta própria, também pagaram ao soba uma quantidade de gêneros no valor de um escravo. O soba, no entanto, recusou o presente, exigindo da chefia da caravana o pagamento de uma segunda quibanda, de igual valor: "(...) [O soba] respondendo então que: relativamente aos hóspedes que ficavam na sua terra nada tinha a dizer, visto ser essa a cláusula já estabelecida, enquanto que aos que passavam avante, seguiam para país de riqueza, e por esse motivo queria segundo presente para a passagem requerida."292

289SOARES, Mariza de Carvalho, “Por conto e peso”: o comércio de marfim no Congo e Loango, séculos XV - XVII, Anais do Museu Paulista, v. 25, n. 1, p. 59–86, 2017, p. 64–67. Em viagem para o Lui em novembro de 1860, Silva Porto comenta estar carregando para presentear o rei kololo da região, , um cavalo e vários objetos de valor que não são para permutas como fazendas ordinárias ou contaria, sendo visível também um cálculo diferenciado na atividade sertaneja para o que era destinado para permutas, e o que era levado para servir de presente para os grandes mandatários. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 12. (27/11/1860). 290 SILVA PORTO, Silva Porto e Livingstone, p. 8, 16–17. 291 Segundo Silva Porto, esse pagamento inicial constava de 20 peças, ou 160 côvados de fazenda sortida, um barril de pólvora, uma arma, um casaco de chita, missangas, sal e tabaco. 292 BPMP. Ms. 1235. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 1º volume, p. 86.

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Tendo consciência de sua posição privilegiada frente aos chefes de caravana, o soba Cabita pôde alterar os termos da negociação a seu favor determinando que, se não fossem cumpridos os seus termos, a comitiva teria que ficar a negociar na sua terra – só assim se daria por satisfeito apenas com o primeiro presente. No dia seguinte, os chefes da caravana entregariam um novo presente, que deixaria o soba satisfeito, aplaudindo e mandando ungir ambas as partes da negociação com a argila branca293, como era de costume nessas situações. Ainda, por pressão do soba e por necessidade de angariar mantimentos, a caravana ficaria estacionada na terra por um total de 8 dias, em que no terceiro dia o soba daria um presente de alimentos, que foi retribuído, e no sexto dia o povo da caravana realizou a caça de animais, e deram de presente ao soba um dos veados apanhados294. Atitudes como as do soba Cabita levaram alguns historiadores a sugerirem que as chefias africanas tentaram evitar o avanço dos europeus e das caravanas de longa distância para regiões mais para o interior do continente. Alfredo Margarido afirma que impostos de passagem, pedidos de dádivas e cobranças de mucanos contra as caravanas de longa distância eram estratégias das chefias de acumularem os produtos importados que essas caravanas transportavam. Margarido vai além no seu argumento dizendo que essa estratégia de retenção de produtos também pretendia frear o avanço do comércio europeu na região para manter a hegemonia política e econômica entre africanos no interior295. Parece-me contraditória a afirmação de recusa do avanço europeu quando os contatos diretos com o Atlântico se expandiam exatamente por assegurarem o influxo de mercadorias importadas que, como já discutimos até agora, eram fundamentais para o exercício de poder entre as chefias. Mesmo no caso dos soberanos que tenham tentado realmente impedir o contato direto das regiões do interior com a zona atlântica, o que foi o caso Kasanje, e poderia se pensar o mesmo para o Lutembo, essas estratégias de retenção do avanço não consistiam em uma recusa à presença europeia em suas terras, inclusive tais iniciativas parecem ser esforços mais claros de monopolizar a circulação de mercadorias

293 A unção com argila branca, que ora aparece nas fontes como pemba, ora como memba, é prática fundamental no comércio do interior de Angola. Para mais sobre a memba, ver nota 225 no capítulo 1. 294 BPMP. Ms. 1235. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 1º volume, p. 85-89; SGL. Espólio de Silva Porto, cx. 1. SILVA PORTO, Borrões da 3ª viagem, p. 8-10. (28/12/1847 a 04/01/1848). Vale destacar que Silva Porto só conseguiu fugir do controle que Cabita exercia sobre as rotas até o Barotse quando, em 1850, os kololo forçam com que as caravanas do Bié negociassem diretamente com eles em Naliele, deslocando a rota que vai para o Barotse para o sul, passando pelo Cuchibi no lugar do Lutembo, como será explicado na sequência. SILVA PORTO, Silva Porto e Livingstone, p. 17–18. 295 MARGARIDO, Alfredo, Algumas Formas da Hegemonia Africana nas Relações com os Europeus, in: SANTOS, Maria Emília Madeira (Org.), Actas da 1.a RIHA - Relação Europa-África no 3.o Quartel do Século XIX, Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1989, p. 396–398.

137 importadas no seus próprios territórios, como intermediários obrigatórios, do que em si uma recusa e desconfiança à vinda de Europeus296. Henriques oferece uma intepretação mais processual para esse fenômeno. Mais do que uma reação consciente de recusa do avanço da zona atlântica, tais atitudes das chefias do interior eram reações para tentarem manter o controle político em um momento de transformação das noções de riqueza entre as populações do interior do continente. Se até então, para a autora, a lógica de legitimidade política se dava pelo número de dependentes de um soberano (wealth in people), a expansão comercial no interior da África Central, a partir de meados do XIX, diminuiu a relevância dos soberanos tradicionais para o acesso a bens de prestígio, passando gradativamente a riqueza ser relacionada à posse dessas mercadorias e, posteriormente, ao dinheiro. Esse maior acesso a riquezas por gente fora das aristocracias fazia com que as chefias mais poderosas tentassem manter o controle sobre seus súditos por meio de tentativas mais taxativas de assegurar seus monopólios, o que por vezes tornaram-se também mais violentas297.

296 Sobre o caso de Kasanje, e seus esforços para barrar o contato direto entre Angola e a Lunda, ver o capítulo 1 dessa dissertação. 297 HENRIQUES, Isabel Castro, Comércio e empresários em Angola na 2a. Metade do século XIX, in: Os pilares da diferença: relações Portugal-África séculos XV - XX, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2004, p. 395–403.

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Mapa 7 - As Rotas Comerciais do Interior até o Barotse298

Adaptado de: OPPEN, Achim Von. Terns of Trade and Terms of Trust, p. 470. Adaptação realizada por Vladmir Sicca Gonçalves. A possibilidade de conseguir bens importados a partir da cobrança de passagem das caravanas, independentemente dos objetivos das chefias, leva uma série de autoridades a se deslocarem para os territórios das rotas dos mambari para cobrarem, além dos impostos de passagem, serviços como o de travessia por canoas ou pontes. Como narra Silva Porto em março de 1847, nas margens do rio Kunene mantinha-se um grupo dono da passagem de uma ponte que, mesmo com a chuva, mantinham-se de guarda frente a estrutura para poderem cobrar o frete da caravana299. Além disso, muitos sujeitos que não eram das linhagens reinantes procuraram durante essa época comprar títulos de nobreza, para se tornarem sekulus, ou chefes de aldeias, o que permitiria que essas pessoas pudessem julgar

298 Destaque para as rotas saindo do Bié (conectado com Benguela), que passam por Luchazi, Mbunda e Mbwela, para chegar ao Barotse (Bulozi) – regiões chamadas genericamente por Silva Porto de ganguelas. Destaque especial, nesse sentido, para as duas rotas para o Bulozi a partir do Bié, a mais ao norte até o Lukulu (que passa pelo Lutembo) e a mais ao sul, até Naliele (que passa pelo Cuchibi), são respectivamente as rotas dos funcionários de Silva Porto antes e depois de 1850. Além delas, como será comentado mais na sequência, vale destacar as conexões entre Naliele e o Mashukulumbue (Mushukulumbwe no mapa), rota que será importante para o contrabando de marfim aos mambari, e que se conecta às rotas vindas do oriente. E, por fim, o mapa também mostra como outras rotas que vêm do oriente vão tanto para o Barotse, quanto para Garenganze (Katanga). 299 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 54-56. (23/03/1847).

139 mucanos contra membros das caravanas que passassem por suas terras, virando estratégia para reter mercadorias e pessoas300. Dessa forma, para além da permuta principal a ser feita no final da viagem, era necessário ao negociante considerar todas essas formas de troca que haveriam de ser realizadas ao longo do caminho, sendo em último caso escolha das chefias africanas não só os termos dessas trocas, como também os produtos a serem usados para tais301. É claro que essas demandas foram desenvolvidas por séculos, diretamente ligadas aos produtos trazidos para o comércio de longa distância na era do tráfico de escravos, no entanto, mais do que uma imposição de “gosto” dos europeus para as chefias africanas, na África Central a demanda dos povos locais por produtos importados europeus e asiáticos foi desenvolvida em longa duração com base em demandas pré-existentes, como é o caso dos tecidos. Como aponta John Thornton, a produção de tecidos a partir de folhas e cascas de árvore, principalmente das fibras de ráfia, era considerável na conjuntura de chegada dos Europeus na região do Kongo, alimentando um pungente comércio regional de tecidos que serviam não só como vestuário de prestígio para as elites, mas também como moeda de troca. Thornton inclusive mostra como os níveis de venda de tecidos em Luanda no início do século XVII eram comparáveis com outras grandes regiões produtoras nessa mesma época, como a Europa e a Índia302. Os produtos europeus que chegariam posteriormente pelo Atlântico, no entanto, não substituíram as demandas africanas já existentes, e sim conviveram com elas ao ocuparem funções análogas303.

300 CANDIDO, Fronteras de esclavización, p. 72; MARGARIDO, Algumas Formas da Hegemonia Africana nas Relações com os Europeus, p. 396–397; HEYWOOD, Linda Marinda, Contested power in Angola: 1840s to the present, Rochester, NY: University of Rochester Press, 2009, p. 16; GONÇALVES, Apontamentos Vindos dos Sertões, p. 77. As relações entre o aumento do comércio caravaneiro na região e a ascensão de novas elites serão analisadas no Capítulo 3. 301 Como disse Isabel Castro Henriques: "Com efeito, quem os poderia ter obrigado [aos africanos] a produzir a borracha, ou a aumentar o volume de marfim produzido, ou a identificar e a colher a urzela? Os europeus não dispunham dos meios de coerção permitindo que tais operações fossem levadas a cabo. As decisões pertencem por isso às organizações sociais africanas." HENRIQUES, Comércio e empresários em Angola na 2a. Metade do século XIX, p. 396. 302 THORNTON, John K., A History of West Central Africa to 1850, Cambridge: Cambridge University Press, 2020, p. 12–14. 303ALMEIDA, Comércio, bens de prestígio e insígnias de poder, p. 130–132. Quanto à noção de que eram os chefes africanos que decidiam os termos do comércio do interior, assim como os produtos que deveriam ser transportados - e não uma imposição de um padrão de consumo europeu -, Appadurai defende que o "gosto" não se resumia a uma atitude bem definida dentro de um quadro cultural coerente e comum entre os sujeitos envolvidos na troca, mas sim a cálculos e escolhas ligados a uma sensibilidade conjuntural entre os compradores e vendedores - criando o que ele chamou de "regimes de valor", ou seja, o que os agentes, mesmo com suas diferenças em contextos interculturais, consideram justo naquela situação para a realização da troca. Portanto, mais do que puramente objetiva, ou totalmente subjetiva, a demanda e o valor eram escolhas acima de tudo políticas, dentro da sensibilidade ligada aos valores dos sujeitos envolvidos nas trocas. Isso significa dizer que aqueles que controlavam os termos das trocas, nesse caso, as chefias africanas, é que regulavam a demanda social - enquanto nas sociedades capitalistas esses critérios de "apropriabilidade"

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Diante dessa especialização do comércio, os sertanejos do Bié geralmente utilizavam dois produtos para os pagamentos da quibandas: fazendas e aguardente304. Também sendo a principal moeda de troca para as permutas no interior de Angola305, as fazendas eram tecidos de origem europeia ou asiática de diferentes qualidades e valores306, que ocupavam centralidade no comércio de longa distância desde a Era do Tráfico, sendo vários os relatos de Silva Porto do uso de chefias africanas de roupas finas compostas desses tecidos, utilizadas como bens de prestígio307. Esse é o caso do soba Quicuamanga, que o sertanejo visita em maio de 1846, a caminho de Benguela, vindo do Bié: "[O soba Quicuamanga] Trajava panos de chita fina, camisa branca fina, farda de áulico e chapéu armado, objectos estes com insígnias da realeza, isto é, azul e encarnado, bandas de panos da mesma chita, no pescoço uma grande enfiada de bonecos e outros preservativos e descalço"308 Não só as chefias tinham acesso às fazendas, seu uso tinha sido generalizado entre os povos africanos de forma mais ampla, o que incluía as trocas no comércio de longa distância, como vestuário e pecúlio. Ao passar pelo país de Muatamjamba em dezembro de 1847, Silva Porto comenta que boa parte dos habitantes do país possuíam fazendas por

do valor têm maior rotatividade por não estarem sob controle tão direto de chefias políticas. APPADURAI, Introdução, p. 28–31, 48–50. 304 Serem os principais produtos não significava, é claro que fossem os únicos. Nesse sentido, vale a pena ver a descrição do pagamento da quibanda ao soba Cabita, presente na nota 291 desse capítulo, e perceber a variedade de produtos utilizados. 305Appadurai discute sobre a caracterização desses produtos que, como as fazendas em Angola, são utilizados em diversas modalidade de trocas nas sociedades não-capitalistas, como semelhantes ou não a dinheiro. APPADURAI, Introdução, p. 41–42. 306 Uma pista dos valores das fazendas está no Memorial de Mucanos, já que, com frequência Silva Porto dá a relação dos produtos pagos em cada multa, assim como os seus valores individuais correspondentes em réis. Nesse sentido, Silva Porto registra o valor unitário de “panos em fazenda sortida” em 400 réis, e, por exemplo, de “peças de zuarte” em 8 mil réis. Não tenho certeza se esses valores, que se mantém geralmente bastante estáveis ao longo dos 30 anos do recorte desse trabalho, são referentes aos valores desses produtos no interior, ou ao valor de compra deles no litoral. 307 Para mais sobre a circulação atlântica das fazendas e das redes oceânicas diretamente ligadas à sua importância no tráfico de escravos em Angola no século XVIII, ver: FERREIRA, Roquinaldo, Dinâmica do comércio intracolonial: Geribitas, panos asiáticos e guerra no tráfico angolano de escravos (século XVIII), in: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.), O Antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa, séculos XVI-XVIII, Rio de Janeiro: Civilizaçao Brasileira, 2001, p. 351–366. 308 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 16. (20/05/1846). Em apontamento de 23 de agosto de 1861, já discutido no Capítulo 1, Silva Porto mostra associação direta entre a presença sertaneja no Bié e o acesso dos chefes e do povo do Bié em geral a fazendas, referindo ao período da expulsão dos sertanejos do Bié na década de 1830 como o “tempo das peles e entrecascas de árvores”, que os bienos tinham que vestir na ausência de tecidos trazidos pelos sertanejos. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 166. (23/01/1861).

141 causa das permutas por escravos, cera e marfim, mas que não as vestiam cotidianamente, guardando-as para resgates, pagamento de mucanos e futuras permutas309. Algo semelhante ocorria com a aguardente310. Mesmo que já fossem consumidas no interior de Benguela uma série de bebidas alcoólicas locais produzidas a partir de mel e cereais (exemplo do mingundo – feito de mel, ou do kimbombo, sinônimo da capata – feitos de sorgo, painço ou milho), além de importarem vinho de palma pelo comércio regional e de longa distância, a integração de Benguela com a economia atlântica levou à introdução de novas bebidas alcoólicas importadas na região. Ao contrário da produção local, que era dependente da sazonalidade agrícola e do trabalho feminino para o seu fabrico, a importação atlântica de álcool permitiu de forma inédita a disponibilidade de grandes quantidades de bebida o ano inteiro, alterando radicalmente os hábitos de beber na região, que até então eram relacionados a festivais, rituais de libação para acalmar os espíritos, casamentos ou mesmo para a recreação em torno das fogueiras311. Inicialmente, foi a população da cidade de Benguela que induziu a importação atlântica de bebidas alcoólicas para a região. A crescente comunidade brasileira na cidade, a partir de meados do século XVII, começou a demandar aguardente de cana produzida no Brasil, mais barata que as bebidas portuguesas, espalhando nas tabernas e nos seus banzos para o interior o hábito de apreciar essa bebida. Com o tempo, a aguardente tornou-se produto fundamental no pagamento dos tributos de passagem, assim como nos presentes aos sobas, popularizando – inicialmente entre as chefias –, o seu consumo no interior. Magyar chega a afirmar inclusive que as caravanas que vinham da cidade cheiravam a álcool, sendo do conhecimento dos sobas que poderiam exigir esse produto quando elas passavam por suas terras312. Quando se proibiu o tráfico de escravos com o Brasil, uma

309BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 80-81. (12/12/1847). Um outro aspecto importante para se entender a circulação de fazendas na África Central durante o século XIX é o crescimento da oferta de tecidos importados após a Revolução Industrial na Europa e Estados Unidos, tendo o continente papel importante como consumidor de tecidos no mercado mundial, mesmo que os estudos sobre história do comércio africano geralmente se detiveram mais sobre a produção e circulação das mercadorias produzidas no continente do que no aspecto do consumo africano. GORDON, David M., Wearing Cloth, Wielding Guns: Consumption, Trade, and Politics in the South Central African Interior during the Nineteenth Century, in: ROSS, Robert; HINFELAAR, Marja; PESA, Iva (Orgs.), The Objetcts of Life in Central Africa: The History of Consumption and Social Change, 1840-1980, Leiden - Boston: Brill, 2013, p. 19–22. 310 Como explica José Curto, em Benguela a aguardente de cana proveniente do Brasil, chamada em Luanda de geribita, é registrada nas fontes locais somente como "aguardente", já que a importação de aguardente do reino, produzida a partir de uvas, sempre foi minoritária na região. CURTO, José C., Alcohol under the Context of the Atlantic Slave Trade: The Case of Benguela and its Hinterland (Angola), Cahier d’Études Africaines, v. 51, n. 201, p. 51–85, 2011, p. 58. 311 Ibid., p. 53–55. 312 Ibid., p. 57–58, 62–64, 66, 70. Exemplo interessante dessa criação da demanda por aguardente entre as chefias do Planalto pode vir pela comparação: ao contrário dos sobas do Altiplano, o soberano do Barotse

142 das preocupações das autoridades do interior, como já comentado no capítulo anterior, era exatamente que o fim deste laço levaria à escassez de aguardente brasileira no planalto – o que supostamente poderia enfurecer os sobas. No entanto, com a continuidade do tráfico ilegal até pelo menos meados da década de 1840, o fornecimento se manteve e José Curto acredita que, após o fim desse comércio, o que manteve o acesso contínuo do Planalto Central a suprimentos de aguardente foi a produção agrícola de cana de açúcar que cresceu no interior de Angola, orientada para o mercado interno313. Essa busca por distinção dos chefes e suas elites governantes era percebida pelos sertanejos, que disso se aproveitavam para maximizar as suas vendas. Maria Emília Madeira Santos observa que na década de 1860, quando as esposas do soberano kololo do Lui, Sekeletu, além de outros familiares, compravam fazendas da caravana de Silva Porto, não só alimentavam um gosto da elite pelas manufaturas estrangeiras, como o seu uso cotidiano servia como marketing para os sertanejos, incentivando o consumo destes bens de prestígio entre os que tivessem riquezas acumuladas314. Em contexto distinto, mas que mostra também a percepção dos negociantes para a formação de demandas específicas, Márcia Cristina Pacito de Almeida nota como Henrique de Carvalho em sua expedição para a Lunda entre 1884 e 1888, buscou reproduzir os presentes entregues pelo brasileiro Joaquim Rodrigues Graça ao Muatiânvua em missão comercial quarenta anos antes, incluindo uma farda portuguesa e uma cadeira, que simulava um trono. Não só claramente procurou assim referir-se a uma aliança clara do soberano da Lunda com o rei de Portugal, o Muene Puto, mas também percebeu no caminho pelas povoações tributárias que os chefes locais também tentavam reproduzir a cadeira entregue ao Muatiânvua décadas antes315.

tinha sua preferência por vinho, exigindo a Silva Porto que fossem trocadas as ancoretas de aguardente que o sertanejo equivocadamente entregou a ele, para que recebesse vinho no lugar. Ironicamente, alguns anos antes o inverso ocorreu no Bié, quando o soba recebeu por engano vinho de Silva Porto e exigiu que o sertanejo o substituísse por aguardente. BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 504. (02/11/1865); SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 181. (24/09/1861). 313 Ibid., p. 70, 72–73. 314SANTOS, Tecnologias em Presença, p. 240. 315 Sobre o significado do termo Muene Puto, há uma citação bastante reveladora de László Magyar: "É opinião geral entre os povos de África Austral que todos os brancos pertencem a uma nação e a um país que eles chamam de Potu [Puto] e o seu rei poderoso é Mani Potu [Muene Puto]. Somente entre príncipes mais importantes consegui encontrar algum sinal de conhecimento geográfico, segundo o qual eles sabem que existe um rei português, que como um Mani Potu verdadeiro, é dono de tecidos; tem o outro país, o Inglês, que domina o mar com numerosos barcos que, como malditas criaturas, não deixam a transportar os escravos pelo mar, e como eles se queixaram várias vezes a mim que causam grandes danos a eles [os príncipes]. E, por fim, o Brasil aonde transportam os escravos que os príncipes vendem, mas cujo rei não quer casar-se com a princesa inglesa, assim os ingleses, por vingança, capturam os escravos pelo mar e levam-nos ao país deles, onde comem-nos". Magyar, 1857 apud SEBESTYÉN, Éva, Escravização, escravidão e fugas na vida e obra do viajante-explorador húngaro László Magyar (Angola, meados do século XIX), in: DEMETRIO, Denise Vieira; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos; GUEDES, Roberto (Orgs.), Doze Capítulos sobre

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Desse modo, é possível inferir que a expedição de Carvalho utilizou o trono e toda uma série de objetos, que posteriormente seriam dados ao chefe máximo da Lunda, para compor verdadeiros cenários para negociação e estabelecimento de tratados com os chefes do caminho, em contexto de disputa de fronteiras entre Portugal e outros impérios europeus316. A eficiência do comércio de longa distância em pautar demandas específicas por produtos é considerável. Como ressalta Achim von Oppen, quando negociantes não africanos entram em contato com o Luvale, região que até então tinha tido somente negócios indiretos com a zona atlântica, o comércio tinha demanda específica de cinco tipos de tecidos e dois tipos de missangas317. As missangas, e contaria em geral, eram produtos extremamente importantes nos pontos intermediários do comércio de longa distância, mesmo que fossem desvalorizados nos meios europeus. Para além de servirem como importantes moedas de troca, como será comentado no Capítulo 3, eram um dos principais objetos utilizados no pagamento dos trabalhadores, além de ser especialmente demandadas pelas chefias africanas que as utilizavam para a fabricação de insígnias de poder. Dessa forma, carregando um simbolismo relacionado ao fato de serem bens de prestígio, os sobas adicionavam missangas em suas insígnias de poder como sinais de sua opulência e soberania, tendo inclusive, como sugere o caso do Luvale, cargas de significados específicos para cada cor de missanga318.

Escravizar Gente e Governar Escravos: Brasil e Angola - séculos XVII-XIX, Rio de Janeiro: Mauad X, 2017, p. 306–307. 316ALMEIDA, Comércio, bens de prestígio e insígnias de poder, p. 171–177. Segundo Carvalho "[...] uma das cousas que [o Muatiânvua] pedia directamente a Muene Puto era se lhe mandava uma cadeira igual áquellas de que usava. Não queria o Muatiânvua que houvesse alguem na Lunda que se sentasse mais alto do elle." Carvalho, 1890 apud Almeida, op. cit., p. 174. 317 O dado é proveniente do relatório do brasileiro Alexandre da Silva Teixeira, que, junto ao também brasileiro José d’Assumpção Barros, viajaram até o Luvale, a partir de 1794, sendo provavelmente os primeiros comerciantes lusófonos na região mesmo que, como já comentamos no capítulo anterior, esse contato direto com a zona atlântica deve ter iniciado por iniciativa dos mambari de Ngalangi. OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust, p. 59. 318ALMEIDA, Comércio, bens de prestígio e insígnias de poder, p. 154–159, 191–192. Nesse mesmo trecho, Almeida comenta como no período entre a Renascença e a Revolução Industrial as missangas ocuparam papel secundário na estética de ornamentos europeus, no entanto continuaram sendo produzidas em larga escala em polos como Veneza, Boêmia e Amsterdã por causa de sua importância no comércio com povos não europeus. Em Silva Porto não aparece, dentro do recorte desse estudo, nenhum indicativo de distinção tão clara de significado e valor por cores na contaria, mesmo que geralmente o sertanejo informe as cores das missangas envolvidas nas permutas. No entanto, no que diz respeito a tecidos, em janeiro de 1864 o sertanejo comenta que a roncalha, um tecido grosso cor de leite, não tinha aceitação por parte alguma, com exceção do Mashukulumbwe (Miqueselumbue, em Silva Porto). BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 95. (09/01/1864). É interessante pensar que, dois anos antes, em janeiro de 1862, Silva Porto tinha comentado que no ano anterior (de 1861), as caravanas que seguiram para as ganguelas tinham inundados tais terras com a roncalha, reclamando que os vendedores de marfim tinham aumentado o preço das pontas por causa da grande concorrência a este gênero. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 228. (23/01/1862). Uma hipótese viável é que a saturação da vinda desse tecido em específico pode ter contribuído para sua desvalorização tão acelerada, que não era mais uma mercadoria efetiva para permutas cerca de três anos mais tarde.

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Diante dessas demandas que vão se solidificando com o contato por anos com as caravanas, cálculos similares ao de Carvalho sobre as cadeiras eram feitos cotidianamente pelos sertanejos. Em outubro de 1853, no meio do caminho entre o Lui e Moçambique, os pombeiros de Silva Porto, ao chegarem na terra do soba Cahingo, além de comprarem mantimentos para a caravana, operação corriqueira nas viagens, também compraram enxadas, tabaco e sal “para despesas do caminho”, comentando que esses gêneros da região tinham bastante extração entre os “selvagens” por causa de sua boa qualidade319. Ou seja, sabendo da demanda que haveria no interior para esses produtos (enxadas, sal e tabaco) e também sabendo que tais gêneros produzidos nessa região específica seriam apreciados pelos sobas na sequência da viagem, os chefes da caravana compraram produtos que não eram nem o de seu objetivo final (os exportáveis no litoral, como o marfim ou cera), nem tampouco eram arrecadados na fatura com os comerciantes litorâneos (como os tecidos, aguardentes ou armas de fogo), revelando toda uma gama de produtos intermediários que tinham seus usos específicos em trajetos específicos do comércio de longa distância320. Dessa forma, para além das contarias, das enxadas, sal e tabaco, animais de grande porte, em especial as vacas, objetos de ferro, corais, escravos, taculas321 e toda uma série de outros produtos ora chamados de “miudezas” pelo próprio Silva Porto, tinham papéis específicos dentro do funcionamento do comércio, muitos deles comprados nos sertões e de origem não europeia, mas que faziam parte das transações comerciais responsáveis por abastecer as costas de Angola de marfim e cera no momento da “ascensão do comércio lícito”322. Nesse sentido, em diferentes regiões eram demandados diferentes produtos, sendo esse um conhecimento fundamental para a realização do comércio e para a própria

319SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 242-243. (14/10/1853). No caso do tabaco, provavelmente Silva Porto deveria vender produção do próprio Bié, já que era uma das principais plantas cultivadas no Planalto Central, sendo o seu cultivo controlado pelos homens mais ricos da região. HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 53, 64. 320 A busca por enxadas de ferro no interior do continente era tão grande que os batoka, povo tributário do Barotse, para adquirirem esses instrumentos, procuravam vender escravos diretamente para os mambari, desafiando o monopólio régio dos kololo. HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 96. 321 Madeira vermelha utilizada para fazer tinturas. 322 Mariana Candido também destaca o lugar do papel nesse grupo de objetos que circulam pelas caravanas no interior. É interessante destacar que a única referência em Silva Porto sobre uma caravana carregando papel dentro desse recorte é o apontamento do dia 26 de abril de 1864, em que recebe a notícia de emissários do soba Mbonge (D. João Bongue) do Bailundo que, diante de conspiração para destituí-lo, tinha enviado por esses emissários pólvora e papel “para a sua defesa”. Na versão revista desse apontamento enviada à Sociedade de Geografia Comercial do Porto, Silva Porto comenta que de fato a conspiração já tinha sido bem sucedida. CANDIDO, Mariana, Os Agentes Não-Europeus na Comunidade Mercantil de Benguela, c. 1760- 1820, Saeculum - Revista de História, v. 29, n. João Pessoa, 2013, p. 118. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 220-221; BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 261-262 (ambos os apontamentos são referentes a 11/01/1862).

145 efetivação da passagem das caravanas por essas terras, já que teriam que pagar as quibandas e outros presentes323. Como seria de se esperar, essa especificação regional das demandas de produtos vai inclusive pautar as demandas das comitivas de bandoleiros que atacam as caravanas. Silva Porto comenta, em 1847, que nas terras a Oeste do Bié geralmente roubam-se mais os gêneros que saem de Benguela (fazendas, aguardente, pólvora, entre outros) do que os que entram (marfim, escravos e cera, principalmente), por serem mais fáceis de permutar. Situação inversa ocorreria no interior, a leste do Bié, pois enquanto estavam cheias de fazendas as caravanas caminhavam com maior tranquilidade, mas quando voltavam com marfim e cera, os riscos eram bem maiores324. Por fim, cabe dizer que o uso de certos produtos no comércio de longa distância podia sofrer transformações conjunturais por causa do fornecimento desses bens. É o caso do gado bovino, elemento associado à riqueza e poder em boa parte da África Central325, constantemente dizimado pela epizootia da tripanossomíase animal, a nagana, como será comentado no capítulo 3. Silva Porto, que sempre se refere a ela simplesmente como “epizootia”, comenta que essa doença foi responsável por dizimar milhares de cabeças de gado no Humbe após 1862 e os criadores dessa região só foram afluir de volta no mercado após 1868326. Quando essa moléstia atacou no Bié três bois do rebanho de seu amigo, o sertanejo Bonifácio José Rasquete, Silva Porto deu a ordem que matassem esses animais e vendessem sua carne em troca de mantimentos, já que os bienos não tinham escrúpulos em comer essa carne, e comentou na sequência que, por causa da doença, tem evitado comprar gado, tentando se desembaraçar desses animais para não perder riquezas – quando não conseguia vender o animal vivo, vendia a carne em troco de cartuxos de pólvora, que seriam úteis para comprar cera327. Por motivos diferentes, a pólvora também era produto demandado no interior do continente, mas conjunturalmente sua circulação poderia ser prejudicada. Em maio de 1864, Silva Porto reclama frente a um ataque de lobos contra seu estabelecimento nas margens do rio Cuchibi, não podendo afastar os animais com as armas de fogo por falta de

323 Uma citação bastante interessante de Capelo e Ivens sobre os produtos que eram necessários para cada trecho da viagem está reproduzida em: ALMEIDA, Comércio, bens de prestígio e insígnias de poder, p. 147–148. 324 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 47. (13/03/1847). 325 Joseph Miller coloca a hipótese de que os primeiros reis do Planalto Central seriam senhores de rebanhos de gado bovino, sendo que o funcionamento do poder nas relações entre patrões e clientes e a generalização da prática das razias seriam derivadas desse fato. MILLER, Angola central e sul por volta de 1840, p. 13. 326 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, op. cit., p. 46-48. (13/03/1847). 327BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 100-101. (06/01/1867). No mesmo apontamento, Silva Porto ainda comenta que em umbundo essa moléstia era chamada de “cauánha” ou “chiéffo”.

146 pólvora na caravana. O motivo da escassez de item tão necessário foi a proibição do governo colonial de sair pólvora do litoral para o interior do país após uma revolta de alguns sobas no domínio de Angola. O sertanejo comenta que, por causa dessa medida, há escassez do gênero em toda parte, prejudicando não só as permutas, mas a própria manutenção da segurança das caravanas328.

2.4 Política e Comércio no Barotse, o Eldorado do Marfim Como já foi comentado anteriormente, o principal destino das caravanas dos sertanejos do Bié durante as décadas de 1840, 1850 e 1860 foi o Barotse, planície às margens do rio Zambeze, no Oeste do que hoje é a Zâmbia. Silva Porto registra para essa mesma região dois nomes, Lui ou Genje, sendo chamada em textos de língua inglesa também de Bulozi, termo derivado de lozi, o povo majoritário que residiu nessa região nos últimos séculos329. A partir da década de 1840, essa região que continuava a manter contato indireto com a Zona Atlântica, comercializando os produtos vindos das caravanas de longa distância somente pelo comércio regional com seus vizinhos a norte, no Luvale. A partir de então, por causa de mudanças radicais no seu cenário político, envolvendo a ocupação territorial por um povo estrangeiro, o Barotse abriria suas portas para o comércio dos mambari, sendo chamado pelos sertanejos de Eldorado do marfim, graças aos extensos carregamentos de marfim que tais negociantes conseguiram arrecadar nesse período330.

328BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 116-117. (06/03/1864). 329 O termo Luyi significa estrangeiros, sendo o nome dado pelos antigos habitantes da planície aos conquistadores lozi provenientes do Império Lunda-Luba, imigrados na segunda metade do século XVII. SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 352. O termo lozi foi usado pelos kololo, povo que, como comentaremos na sequência, é proveniente do sul do continente, para nomear os povos do lui, significando planície. Desse termo, também grafado como Rotse, que viria Marotse, que significa o povo da planície que, com a equivalência de Ba e Ma em algumas línguas, daria origem ao nome da região, Barotse, registrado depois pelo colonialismo inglês. Segundo Silva Porto, o termo Genje significaria “audacioso”, sendo o nome dado pelos indígenas ao povo kololo, que seria como ficou sendo denominado o país durante a sua ocupação. BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 92-94. (22/01/1848). 330OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust, p. 70–71. Sobre essa conexão dos sertanejos de Angola com a região, ver em especial o sub-capítulo de Maria Emília Madeira Santos: SANTOS. O Eldorado do Marfim. In: Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 105–132.

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Mapa 8 – Máxima Zona de Influência Lozi e as fronteiras dos países atuais

Retirado de: http://www.barotseland.net/barotsemaps1.htm . Acesso em 30/01/2021. A história da região do Barotse no século XIX estaria diretamente ligada ao reinado de Mulambwa Santulu (Sanduro, em Silva Porto), soberano lozi que governou o país no início do século. Sucedendo seu meio irmão Mwanayanda, lembrado nas tradições orais como um rei cruel, Santulu disputou o trono com o seu irmão Kusio, tendo-o derrotado em guerra, sendo essa possivelmente a razão de ter sido conhecido pelos seus súditos pela alcunha Cacoma Milonga, “aquele que lanceou o reino”331. Por não haver relatos escritos diretamente da época de seu reinado, há debates entre os historiadores sobre a periodização do governo de Santulu. Em estudos baseados em tradições orais, estima-se que o reinado de Santulu tenha se iniciado em 1798 e durado 14 anos. No entanto, como aponta Hogan, 1812 é uma data final muito anterior ao que parece ser de fato o encerramento de seu governo já que, como será comentado na sequência, seria não muito depois de sua morte a invasão dos kololo na região, datada da década de 1840332.

331Em inglês, “he who speared the kingdom”. HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 67. 332 Ibid., p. 73. A principal referência de Hogan entre os acadêmicos que coletaram tradições orais sobre o assunto foi o estudo de MAINGA, Mutumba. Bulozi under the Luyana Kings: Political Evolution and State Formation in Pre-colonial Zambia. London: Longman, 1973.

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Seria por informações de segunda mão, incialmente colhidas por David Livingstone entre os kololo na década de 1850 que foi registrado o reinado desse soberano do começo do século XIX. Sua importância histórica estaria ligada a episódio narrado por Livingstone em que caravanas dos mambari teriam chegado ao Barotse e tentaram fazer negócios com Santuru, oferecendo bens importados em troca de escravos. O soberano lozi, segundo a tradição recolhida pelo missionário escocês, teria entregado em troca um grande presente de gado e dito que “amava demais seu povo para pensar em vendê-lo”333, recusando integrar-se de forma direta ao comércio da zona atlântica334. É importante destacar que, para além do efeito retórico dessa afirmação bastante conhecida entre os especialistas na região, os lozi na época se integravam indiretamente às rotas do comércio de longa distância vindas de Angola pelos Estados ligados à sua fronteira Norte, já que permutavam gado bovino por tecidos com a Lunda e também recebiam, através do comércio com o Luvale, produtos importados do Atlântico, principalmente tecidos, louça e contaria335. Por essa razão, Jack Hogan procura explicar a decisão de Santulu enfatizando que a escravidão era tão central para a economia e política da região, que valeria a pena a recusa frente aos mambari, mesmo que esses pudessem trazer contato

333 Livingstone, 1960 [1851-1853] apud HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 73. 334 HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 67, 71–73. Giacomo Macola comenta que é por causa dessa decisão, que na prática expulsou os mambari do Barotse por décadas, que foram deslocadas as rotas mais ao norte, transformando o Luvale na principal região do Alto Zambeze em contato com a zona atlântica - sendo especialmente importante para essa ligação a entrada massiva de armas de fogo entre os luvale. MACOLA, Giacomo, Reassessing the Significance of Firearms in Central Africa: the case of north-western Zambia to the 1920’s, Journal of African History, v. 51, p. 301–321, 2010, p. 306–307. É interessante destacar que Silva Porto parece desconhecer essa tradição oral, não citando em seus cadernos e, mesmo em seu manuscrito "Silva Porto e Livingstone" o episódio não aparece na passagem em que lança suas próprias hipóteses sobre contatos dos brancos com o Barotse durante o reinado de Santulu - o que se explica, em partes, por José de Lacerda não se referir a essa passagem de Livingstone e ter sido a partir de Lacerda que Silva Porto comenta a obra do escocês. SILVA PORTO, Silva Porto e Livingstone, p. 39. 335 Não há registros do que produtos eram utilizados pelos lozi na permuta com o Luvale por produtos europeus, mas Hogan aponta que havia uma série de objetos produzidos na planície do Barotse que eram demandados nas áreas mais altas, incluindo os reinos a Norte. HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 74. As ligações históricas entre os lozi e os povos ao seu norte ainda nos reservam várias dúvidas. John Thornton acredita que o Estado lozi deve ter sido formado em meados do século XVIII e vê evidências de que, sob reinado de Santulu, o Estado, em plena expansão, pode inclusive ter anexado o Luvale por pequeno período de tempo, até a região ser tomada pela Lunda. Segundo Thornton, mesmo que não tenham fontes escritas da época de Santulu que possam confirmar sua hipótese, houve incômodos entre coletores de tradições orais luvale em relacionar a história da região com os povos lozi, sendo um silenciamento provavelmente intencional. Por outro lado, Thornton acredita, a partir do caderno de Rodrigues Graça, que o Barotse possa ter sido conquistado pela Lunda nesse período, já que o estado tributário da Lunda listado por Rodrigues Graça com maior pagamento ao Muatiânvua foi registrado como "Cacoma Milonga" - título de Mulambwa Santulu. Quanto a essa informação, me parece menos provável de ser correta, já que, além de não ter nenhum outro registro dessa possível expansão lunda na região, em 1846 (data da viagem de Rodrigues Graça), o soberano do Barotse não era mais Cacoma Milonga, tendo sido a região, como comentaremos na sequência, conquistada pelos kololo em 1840. THORNTON, A History of West Central Africa to 1850, p. 310–311, 318–319.

149 mais direto com os produtos vindos do atlântico. Ainda que tais produtos já fossem apreciados pela elite lozi, por causa do contato indireto via Luvale, a rota pelo norte evitava que os lozi perdessem contingentes de escravos ao venderem para negociantes estrangeiros336. Achim von Oppen inclusive acredita que o acesso das mercadorias vindas do Atlântico pelo Luvale foi uma das razões principais que levaram os kololo, que já ocupavam o sul da região no final do governo de Santulu, terem procurado expandir seu controle até o Norte. Tal hipótese se fortalece com a afirmação recorrente de Sebitwane, líder dos kololo, de seu grande interesse de comercializar com os brancos, como declara repetidamente aos funcionários de Silva Porto e a Livingstone337. O aumento da população escrava, assim como o crescimento da demanda por trabalho forçado dos povos tributários, levou a crescentes tensões políticas e sociais na região que, com a morte do rei (ou , na acepção local), resultaram em um conflito sucessório entre seus dois filhos que dividiu o país e enfraqueceu o Estado frente a ameaças externas. Entre as ameaças estava o povo kololo (macorrollo, em Silva Porto, derivado do plural dessa palavra, makololo), liderado por Sebitwane (Xebitane, em Silva Porto), que já ocupava o sul do reino mesmo antes da morte de Mulambwa. Com a oportunidade do conflito interno de seus rivais a Norte, por volta de 1840, esse povo invadiu o vale matando o recém-empossado rei Mubukwanu e capturando dois de seus filhos, Sibeso (Quibésso, em Silva Porto) e Sipopa (Xipopa, em Silva Porto)338. Depois disso, a elite lozi se fragmentou em várias facções da linhagem dominante no exílio, entre elas, a liderada por Riumbo – filho de Santulu –, instalada no Lukulu, base que os funcionários de Silva Porto entraram em contato desde 1845. Com a morte de Riumbo, em 1849, sucedeu-lhe seu primogênito Imasiku (Machico, em Silva Porto). No entanto, ao saber da vinda das caravanas mambari até o Lukulu, no ano seguinte, Sebitwane mandou atacar os domínios de Imasiku, expulsando o chefe lozi para outra região. Assim, quando chegou a expedição

336OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust, p. 71; HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 74–75. Na mesma passagem, Hogan destaca ainda que o reinado de Mulambwa é marcado pela realização de razias em busca de escravos nas regiões vizinhas e pela demanda de trabalho forçado dos povos tributários, sendo boa parte dos relatos de herdeiros de escravos entrevistados em estudo clássico de Eugene Hermitte, realizado na década de 1970, realizados com sujeitos que afirmaram que seus ancestrais teriam sido levados para a região durante o governo de Santulu. 337OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust, p. 72; SILVA PORTO, Silva Porto e Livingstone, p. 15. 338 Não aparece em Silva Porto nenhum termo similar a “Mubukwanu”. Pelo contexto dos cadernos, minha hipótese que Riumbo seja Mubukwanu (talvez por seu nome completo ser Mulena Yomuhulu Mbumu wa Litunga Mubukwanu, podendo “Riumbo” ser derivado de Mbumu), já que é ele quem Silva Porto alega ter perdido o controle do país a Sebitwane, além do fato de seu primogênito chamar-se Imasiku. BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 173-174. (20/07/1867). No entanto, ao contrário do que diz Jack Hogan sobre Sibeso e Sipopa serem filhos de Mubukwanu, Silva Porto afirma que ambos eram filhos de Santulu – assim como Riumbo e Ímbua, todos sendo, portanto, irmãos. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 143-144. (27/05/1864).

150 dos caixeiros de Silva Porto, Mariano e Fonseca, em 1850 ao Lukulu, a terra estava abandonada. Diante dessa situação, a comitiva decidiu seguir o curso do rio para Sul, quando chegaram a Nalieli, cidade dominada pelos kololo. Encontrando-se pessoalmente com Sebitwane e seus principais oficiais, a partir de então, as caravanas de Silva Porto optaram por negociar com os kololo e não mais com os lozi, fazendo a viagem diretamente a Nalieli339. No entanto, outra facção lozi do exílio, liderada por Imbua (Rimbúa, em Silva Porto) – irmão de Riumbo –, que dominou a região do rio Nyengo, manteve contatos comerciais frequentes com as caravanas de Silva Porto e, por toda a década de 1850, o sertanejo e seus agentes mantiveram relações diplomáticas frequentes com esse mandatário, ao mesmo tempo que evitavam entrar em conflito com os kololo, que se mantiveram como os principais interlocutores do comércio de marfim para os sertanejos340. Mapa 9 – Os Povos do Alto Zambeze por volta de 1900

Retirado de: HOGAN, Jack. The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia, p. 9. Os kololo, povo de origem sotho, vieram da atual África do Sul se deslocando na década de 1920 por causa de conflitos no sul do continente conhecidos como mfecane341.

339 SILVA PORTO, Silva Porto e Livingstone, p. 16–18. 340BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 92-94. (22/01/1848); OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust, p. 76. 341 Para um levantamento histórico e historiográfico sobre os conflitos conhecidos como Mfecane e Difaqane na África do Sul, as suas causas, suas consequências regionais e um balanço de seus impactos comparados a outros processos violentos simultâneos, como a Grande Jornada (Great Trek), ver: COQUERY- VIDROVITCH, Catherine, Africa and the Africans in the Nineteenth Century: A Turbulent History,

151

Em 1853, Sebitwane foi sucedido por seu filho Sekeletu (Xiquereto, em Silva Porto), cuja idade estimada por Livingstone era de 18 anos342. Talvez a principal mudança pela qual a região passaria a partir da conquista dos kololo foi a abertura do reino para o comércio com os mambari, sendo as armas que esses negociantes vendiam em troca de escravos o principal interesse dos kololo. A integração dos mambari, em geral, e cada vez mais dos sertanejos, em particular, nessa geopolítica é tão importante que Sebitwane chegou a mudar a capital de Nalieli (ou Nariere, em Silva Porto) para Linyanti (ou Rinhande, em Silva Porto). Hogan acredita que essa decisão foi tomada exatamente para a corte se instalar mais próxima do acesso às mercadorias importadas, em especial as armas, para controle mais direto da entrada do produto no reino. No caso dos sertanejos, como já foi discutido anteriormente nesse capítulo, o principal interesse não era mais a compra de escravos, e sim marfim, sendo Linyanti ponto central para a reunião das presas coletadas pelos caçadores do país343. Com seu sistema de governo centralizado, relativo isolamento comercial e grandes populações de elefantes, que não eram encontradas mais no Centro e no Leste da atual Angola, os negociantes de influência europeia vindos de Angola, a partir de 1845, e da colônia do Cabo, a partir de 1862, tinham profundo interesse no marfim do Barotse, encontrando presas em quantidade e qualidade tão superiores que compensavam o empreendimento de viagens de centenas de dias pelas caravanas344. Em clara minoria numérica frente aos povos subjugados, que os kololo chamavam de makalaka, os novos senhores da planície tiveram que adotar as estruturas de governação dos lozi. Baseado nelas, Sekeletu declara que todo o marfim do país pertence ao chefe, sendo por isso usado como produto preferencial para os pagamentos dos impostos pelos povos subordinados, formando um monopólio régio para manter controle, em última instância, sobre a entrada de armas e produtos importados no país. Dessa forma, os mambari só poderiam, pela lei

New York: M. E. Sharpe, 2009, p. 135–143. Para mais sobre conflitos armados na África austral durante o século XIX, ver: SANTOS, Gabriela Aparecida dos, Lança presa ao chão: guerreiros, redes de poder e a construção de Gaza (travessias entre a África do Sul, Moçambique, Suazilândia e Zimbábue, século XIX), Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2017. Sobre a migração dos kololo, ver ainda: KALUSA, Walima T., Elders, Young Men, and David Livingstone’s “Civilizing Mission”: Revisiting the Disintegration of the Kololo Kingdom, 1851-1864, The International Journal of African Historical Studies, v. 42, n. 1, p. 55–80, 2009, p. 60–61. 342HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 75–78. 343Ibid., p. 79–81. 344 SANTOS, Maria Emília Madeira, Os Lozi e o Zambeze: a água e a organização do espaço, in: Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX), Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 308. Reforçando o que já foi dito antes, essas datas de referência são relativas ao comércio de marfim, já que os mambari anteriormente já compravam escravos na região, desde o começo da década de 1840, após abertura do comércio pelos kololo.

152 do reino, comprar marfim diretamente com o soberano, que, portanto, também seria o único a receber os produtos vindos do Atlântico, ou com quem tivesse permissão expressa do rei/litunga. Silva Porto comenta que os impostos cobrados por Sekeletu eram tão excessivos que davam causa a fugas de povoações inteiras para fora da planície, em busca dos territórios dominados pelos sobas lozi do exílio (Imasiku e Imbua). Para além do marfim, tributos eram pagos em escravos, enxadas, machados e mantimentos345. Em 1853, Silva Porto realiza viagem ao Lui e, por vários motivos, permanece meses no país. Nessa oportunidade, para chegar à capital e se encontrar com o Litunga, a caravana do sertanejo faz a travessia do rio Zambeze de acordo com os costumes do país, ou seja, por supervisão do lugar-tenente de Sekeletu, Mpepe (Pepe, em Silva Porto), governador de Naliele e sobrinho de Sebitwane, aristocrata que se tornou grande aliado do sertanejo durante essa sua estadia346. Nesse mesmo período, tensões causadas pelo monopólio régio e proibição, no próprio ano de 1853, das razias e do comércio de escravos, ao mesmo tempo em que escalavam os ânimos na política regional, enfraqueciam os rivais de Sekeletu – que perdiam cada vez mais possibilidades de reunir armas e riquezas por conta própria –, estimulando, no entanto, conspirações dentro da própria linhagem real347. O principal líder desses rivais do Litunga foi o próprio Mpepe348. Por este motivo, em 31 de março daquele

345 HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 78, 82; SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 215-217. (02/04/1853). Em de apontamento de 20 de agosto de 1858, Silva Porto narra que ele e outros sertanejos interromperam a execução de um soba tributário de Sekeletu, que tinha sido condenado à morte por faltar com o tributo de marfim ao soberano no ano anterior e no atual, apresentando-se somente com mantimentos, justificando-se com a “infelicidade” na caça de seus filhos (isto é, súditos). A execução foi evitada e o suserano cobrou de seu dependente que fosse mais pontual no cumprimento de seus deveres nas próximas vezes. BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 52. Para considerações mais genéricas do instrumento do monopólio como forma de controlar as trocas dos objetos e, portanto, a sua capacidade de virarem mercadoria, ver: APPADURAI, Introdução, p. 32, 38. Vale destacar ainda que, entre as referências que Appadurai utiliza para basear esse trecho de seu argumento, está o estudo de Max Gluckman sobre os lozi. Gluckman, Max. Essays on Lozi land and royal property. Greenwich, Conn: JAI Press, 1983 [original de 1943]. 346 Sobre travessia do rio Zambeze e sua importância para proteção e controle das passagens para o exercício do poder regional, ver: SANTOS, Os Lozi e o Zambeze, p. 308–312. 347 HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 82. Uma das particularidades fundamentais dessa disputa eram as tensões entre os homens mais velhos, veteranos da migração e conquista kololo da região, com os mais jovens - o que incluía o próprio Sekeletu, além de Mpololo. Acumulando gado, escravos e esposas, esses barões da época da conquista se recusavam a obedecer o jovem Litunga e seus companheiros, utilizando o tráfico de escravos com estrangeiros como forma alternativa de enriquecimento frente ao monopólio de Sekeletu sobre o comércio de marfim. Por este motivo o Litunga chegou a proibir o tráfico na região, com esperança que assim conseguiria minar as possibilidades de acesso de seus rivais aos bens de prestígio importados, e também às armas de fogo. KALUSA, Elders, Young Men, and David Livingstone’s “Civilizing Mission”, p. 66–67, 72–74. 348 A aliança de Silva Porto com Mpepe influenciará diretamente na polêmica do sertanejo com David Livingstone, já que o explorador britânico chegou ao país como hóspede de Sekeletu – tendo em cada um dos relatos europeus os bastidores de ambos os lados da disputa. Não nos aprofundaremos sobre essa polêmica neste trabalho, mas é importante destacar que a conjuntura de disputas internas do Barotse também influenciou esse debate intelectual, para além das rivalidades entre portugueses e ingleses na legitimidade sobre as explorações europeias na África.

153 ano, Mpepe planejava sair de Nalieli por causa dos boatos que Mpololo (Borolo, em Silva Porto), irmão de Sebitwane, tinha dito a Sekeletu, sugerindo que o tenente planejava tomar o poder do país. Para evitar a perseguição do Litunga/rei, Mpepe planejava fugir para o Mashukulumbwe (Miqueselumbue, em Silva Porto), terra tributária do reino, com todo o gado e povo que o pudesse acompanhar, destituiria o soba local, e ficaria a salvo da ira de Sekeletu. Temendo represálias do senhor da terra, Silva Porto se recusou a apoiá-lo, alegando que não queria se indispor com o Litunga, que era, nada mais, nada menos, a principal fonte de marfim do sertanejo349. Alguns meses depois, Mpepe seria assassinado em viagem conjunta com Sekeletu e Livingstone350, e não muito depois, o pai de Mpepe e outro apoiador teriam tido seus corpos esquartejados e dados como “comida para os jacarés”351. Na viagem seguinte de Silva Porto para a região, em 1858, seria a vez do próprio Mpololo, que ocupava agora o antigo cargo de Mpepe, lugar-tenente responsável pela travessia do Zambeze, de ser encarado como ameaça ao governo de Sekeletu. Por esta razão, Mpololo recusava-se a atender aos pedidos do soberano para que se dirigisse para a capital, tentando fugir do mesmo destino de Mpepe352. A crise do governo de Sekeletu vai se relacionar diretamente à estrutura do Estado lozi, adotada pelos kololo para governar a região. Baseada num complexo mecanismo de nomeação de administradores locais, os manduna, que deviam seus cargos ao Litunga, essa estrutura era, ao mesmo tempo, importante instrumento de centralização do poder, mas também fator de grande fragilidade do Estado, por causa da dependência do soberano frente à ambição dessa aristocracia, principalmente durante as crises sucessórias353. Por

349 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 190-191. (31/03/1853). A justificativa comercial é tão central para explicar a atitude de Silva Porto que, no mesmo apontamento, o sertanejo comenta ter recebido proposta semelhante de Imasiku, ao qual teria dado a mesma resposta. No entanto, dias depois, Imasiku tentaria impressionar os sertanejos entregando três dentes grandes de elefante, fato que Silva Porto ironiza - tendo em vista o aspecto muito superior da fatura em marfim que conseguia com o Litunga - e termina por dizer ao magnata que tinha vindo para tratar de negócios, e não da política do país. É interessante pensar sobre como esse cálculo comercial se aplica a outro contexto distinto: em 1858, a caminho do Lui, Silva Porto recebeu de presente de emissário de Imbua, outro soberano lozi no exílio, dois dentes de marfim meão, além de dois escravos. O líder dos lozi insistia que o sertanejo instalasse um estabelecimento em sua terra, assim como o que tinha em Linyanti, para trazer fazendas e permutá-las por marfim. Para não se indispor com o chefe lozi, retribuiu os presentes "além do seu valor", alegando que em outra viagem iriam anuir a seus desejos, mas na ocasião não se tinham prevenido para o caso. O esforço para não ser partidário de algum dos lados do conflito, e, principalmente de não contrariar os interesses do chefe mais forte, está sempre presente nessas escolhas. BPMP 2º vol. p. 36 (29/06/1858). 350Idem, Ibidem, p. 201-202. (12/07/1853). 351 HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 82. 352 BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 40-41 (06/06/1858). Nesse mesmo apontamento, Silva Porto conta que Borolo teria pedido ao sertanejo que, diante do seu conflito com o soberano do país, se poderia acompanhá-lo na viagem de volta e instalar-se no Bié. Diante da proposta, Silva Porto o aconselhou a pensar bastante sobre o assunto antes de partir, mas que não teria problemas – tal plano seria abandonado pelo aristocrata alguns dias depois. 353HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 69–70.

154 essa razão, Jack Hogan, que dialoga com uma longa tradição analítica sobre o funcionamento do Estado lozi, defende que, ao mesmo tempo em que as tensões entre o soberano e os manduna abriram portas para a invasão dos kololo, será a tensão dessa aristocracia com os novos soberanos a principal responsável pela queda do seu poder. Ao contrário do tempo de Mulambwa, em que recursos que antes eram usados para alimentar o patrocínio dos soberanos lozi para agradar esses administradores locais, no tempo dos kololo, o Litunga reunia para si o gado, marfim e escravos do país, frequentemente de forma violenta, e os utilizava para alimentar a demanda do comércio externo354. As intrigas na corte se intensificaram com o adoecimento de Sekeletu, que segundo Livingstone, tinha contraído lepra355, o que levou o Litunga a acusar seus familiares de feitiçaria, e, mesmo antes da sua morte em 1863, as intrigas da linhagem reinante já resultavam em rebeliões em algumas regiões do país. Como será analisado na sequência, seguiu-se à morte de Sekeletu uma guerra civil no país e o lado vencedor seria o dos apoiadores do falecido soberano, fortalecidos pelo acesso privilegiado a armas de fogo proporcionado pelo monopólio régio, que montariam um governo com um filho de Sekeletu menor de idade como Litunga, e Mpololo como seu regente até atingir maioridade356. As facções lozi no exílio, que haviam guerreado entre si desde a década anterior, viram a oportunidade de reconquistar o país por causa da guerra civil entre os kololo. Desse modo, o grupo liderado por Sipopa, em setembro de 1864, avançaria para conquistar o território, apenas um mês depois da partida de Silva Porto da região. Como já dito, Sipopa, filho de Mulambwa, foi capturado jovem na época da invasão dos kololo, tendo sido

354Ibid., p. 85. Por outro lado, Kalusa defende que, no lugar de só se adaptarem às instituições já existentes no país, os kololo trouxeram consigo uma série de elementos de sociedades guerreiras dispersadas pela Mfecane/Difaqane, em especial a divisão entre grupos de idade, com a concentração de produtos de razias nas mãos dos generais mais velhos. Como já apontado, essa seria a base para a disputa de Sekeletu com Mpepe, que atuava em Naliele como se não tivesse que obedecer ao soberano do país. KALUSA, Elders, Young Men, and David Livingstone’s “Civilizing Mission”, p. 62–65; SILVA PORTO, Silva Porto e Livingstone, p. 27. 355 Como pode ser visto na carta de 1º de maio de 1864, enviada por Silva Porto para seu armador, Manuel António Teixeira Barbosa, reproduzida no Anexo III desse trabalho, Silva Porto acredita, por outro lado, que a doença de Sekeletu era escorbuto, que já era grave na última vez que tinha visto pessoalmente o soberano kololo em 1858. 356 HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 82–83. Kalusa chega a afirmar que a entrada de armas de fogo no país enfraqueceria o controle kololo na região por incentivar posteriormente os povos dominados a se levantarem contra as azagaias dos invasores. No entanto, Macola, apesar de reconhecer o interesse kololo pelas armas, discorda da ideia de que a planície tenha sido inundada de armas de fogo após a abertura de contato direto com o Atlântico, considerando que os kololo em geral não utilizavam muito as armas de fogo em suas guerras, o que é bem diferente da situação no período seguinte, durante o reinado de Sipopa, quando o Litunga procurou amplo acesso a armas de fogo pelos seus contatos estrangeiros, tanto entre os mambari, quanto com os comerciantes da região do Cabo. KALUSA, Elders, Young Men, and David Livingstone’s “Civilizing Mission”, p. 67; MACOLA, Reassessing the Significance of Firearms in Central Africa, p. 306.

155 integrado na corte de Sebitwane e tratado como um favorito do líder dos kololo e, em 1859, teria fugido junto a seu irmão Sibeso em direção a um dos territórios dominados pelos lozi do exílio357. Antes da fuga, Sipopa vivia na corte de Sekeletu como príncipe, aprendendo sobre o funcionamento do Estado e sendo extremamente influenciado pela prática de governo dos kololo. Quando Silva Porto encontrou pela primeira vez o Litunga, em 1865, ficou impressionado com o comportamento cortês e o seu domínio de várias línguas (dominando, segundo o sertanejo, o sikololo, siluyana, ganguela e o umbundu). Tais atributos provavelmente haviam sido adquiridos no longo período que passou como cortesão, onde certamente aprendera a mobilizar um modus operandi conveniente para agradar os negociantes estrangeiros. E era exatamente esse o objetivo principal do novo chefe, retomar a economia e estabilidade política do país antes do interregno kololo e, ao mesmo tempo, manter o contato com o comércio externo e a cobrança dos tributos dos chefes subordinados358. Ao estabelecer o contato com o novo chefe do país, Silva Porto procurou deixar claro que o seu interesse principal continuava sendo a compra de marfim. Nesse sentido, o sertanejo receberia do soberano generosos presentes deste item. No entanto, os números totais das permutas eram cada vez menores por causa, como falaremos na sequência, da concorrência com negociantes de outras praças, o que levaria Silva Porto a buscar secretamente fazer permuta diretamente com os caçadores, apelando, portanto, para o que

357HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 83, 85–87. Para uma relação entre o discurso de redenção e salvação do cristianismo pregado na atuação missionária de Livingstone na região com o levante dos povos dominados contra os Kololo, ver: KALUSA, Elders, Young Men, and David Livingstone’s “Civilizing Mission”, p. 59–60, 78–79. 358HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 84. Como já dito antes, Silva Porto partiu do Barotse um mês antes da reconquista dos lozi. As informações que o sertanejo registrou em seus diários sobre a reconquista, sempre referida nas tradições orais pela sua violência atroz, vieram de dois homens, António Maurício de Faria e José Corrêa do Sacramento, provavelmente dois pombeiros que tinha deixado atuando no estabelecimento, como era prática comum no comércio de longa distância. Sacramento teria morrido no massacre ao tentar defender o regente Borollo, sendo, portanto, Faria o informante de Silva Porto. Por causa da violenta expulsão dos kololo que eles não estão presentes no mapa 9, que retrata os povos que ocupavam a região por volta de 1900. Outro reino "kololo" se formou nessa década na região do rio Chire, no atual Malawi, no entanto, como mostram Allen Isaacman e Elias Mandala, na realidade os líderes desse estado eram antigos carregadores de Livingstone que o levaram do Barotse até Moçambique e, após período de estadia em Tete, se recusaram a retornar à sua terra, onde eram sujeitos ao trabalho forçado - se instalando em definitivo no vale do Chire. Mesmo que tenham se identificado como "makololo" durante sua estadia em Moçambique, identidade que se manteve no novo Estado, provavelmente esses sujeitos eram pertencentes aos povos dominados pelos kololo durante seu controle sobre a região, sendo, portanto, utilizados até então como mão de obra para o serviço forçado como carregadores. ISAACMAN, Allen; MANDALA, Elias, From Porters to Labor Extractors: The Chikunda and Kololo in the Lake Malawi and Tchiri River Area, in: COQUERY-VIDROVITCH, Catherine; LOVEJOY, Paul E (Orgs.), The Workers of African Trade, Beverly Hills: Sage Publications, 1985, p. 229–238.

156 era considerado nas leis do país como contrabando, por desrespeitar o monopólio régio sobre o marfim359. Imagem 3 - Retrato de Sipopa

Retirado de: Holub, Emil. Seven years in South Africa: travels, researches, and hunting adventures, between the diamondfields and the Zambesi (1872-79), vol. 2. London: Sampson Low & Co, 1881, p. 220. As demandas dos negociantes vindos de Angola e do Cabo voltaram à centralidade das preocupações do soberano lozi assim que conseguiu reunificar o seu país, com a concorrência crescente entre os negociantes dessas duas praças, disputando os espólios de marfim reunidos pelo rei/Litunga360. Na década de 1870, Sipopa mudaria novamente a

359HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 88. 360 O contato com negociantes vindos da Costa Oriental não tem tanto destaque no trabalho de Hogan. Como comenta Maria Emília Madeira Santos, negociantes vindos tanto da Bisa (Biça, em Silva Porto), quanto de Zanzibar, disputavam o comércio de marfim na costa oriental e, por consequência, em seu hinterland, procurando mais mercados, mais a oeste, com o avançar do século. SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 117–121. Silva Porto narra vários encontros com caravanas dessas duas terras em momentos que visita o Lui, sendo mais frequentes esses encontros na década de 1860 – a exemplo de 5 de agosto de 1867, quando encontra com uma caravana da Bisa no Mashukulumbwe, ou de 21 de setembro do mesmo ano, em que encontra caravana vinda de Zanzibar. Em ambos os apontamentos, o sertanejo lamenta o crescimento da concorrência, também por parte dos negociantes vindos da África Oriental. BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 178-180, 202-203. (05/08/1867; 21/09/1867).

157 capital do país, para a região de Sesheke (Quiceque em Silva Porto), buscando interlocução mais direta com o negociante George Westbeech Cobb, chamado no interior de Big George, que, vindo da colônia de Natal (na atual África do Sul), teria chegado ao sul do Zambeze em 1871. Trazendo armas melhores que os mambari, esse grupo foi ficando cada vez mais em segundo plano nas exportações do Barotse. Por essa razão, os mambari, em busca de melhores condições de permuta do que na planície, foram procurar marfim em regiões mais a norte, como a Lunda, Luba, Samba e Katanga. O comércio com o Cabo, e principalmente a introdução massiva de armas de fogo de maior qualidade vão trazer consequências desestabilizadoras para o exercício do poder de Sipopa, derrubado em 1876; no entanto, trata-se de outro contexto temporal bastante distinto da época de atuação das caravanas de Silva Porto na região e, portanto, não cabe ser discutido dentro do recorte desse trabalho361.

2.5 Os Pontos Intermediários do Comércio Sertanejo Mesmo no auge do comércio do Barotse, as caravanas nunca se resumiram a permutar somente no destino final da viagem, visto que muito marfim e cera transportados pelas caravanas dos sertanejos do Bié vinham de várias regiões do interior, adquiridos por dádivas, permutas e compras menores realizadas ao longo do caminho, tanto pelo chefe da caravana, quanto pelos pombeiros com as suas cargas subsidiárias. Isso se materializou, ao longo das décadas, na especialização dos sobados localizados no meio da rota principal entre o Bié e o Lui da produção de gêneros demandados na zona atlântica a serem vendidos para negociantes europeus e africanos. Portanto, as chefias do caminho, para além de procurarem acumular receita a partir de trocas de presentes e tributos de passagem, foram tornando-se grandes produtores, tanto dos gêneros buscados no litoral, como o marfim e cera, quanto dos objetos necessários para o funcionamento interno do comércio, discutidos na sessão 2.3 desse capítulo, como enxadas e objetos de ferro em geral, sal, tabaco, gado bovino, mantimentos, além de escravos. Em menores quantidades do que no Lui, nas regiões a leste do Bié, nas chamadas ganguelas, também havia caça aos elefantes, já que os chefes locais sabiam do interesse das caravanas de longa distância pelas presas do paquiderme. Esse é o caso do episódio

361 HOGAN, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), p. 91–93. Existe também a hipótese de alguns autores de que, para além da influência de Big George, a mudança da capital para Sesheke estava relacionada à crescente escassez de marfim por causa do massacre contínuo dos elefantes causado pela venda do produto, já tendo sido esgotado no Luvale na década de 1840, e mesmo em Linyanti, outrora tão opulenta, já na década de 1880 os elefantes eram quase ausentes na Planície. Ibid., p. 92.

158 narrado na abertura do capítulo, ocorrido em 1858, quando a caravana de Silva Porto estava seguindo para o Lui e o soba Muéne Caihombo entrega de presente um dente grande de marfim. Levando em conta todas as considerações expostas anteriormente sobre troca de presentes, é importante destacar que geralmente os sobas entregavam como retribuição da quibanda alimentos, e com frequência animais, porém o marfim era reservado para a venda para os negociantes das caravanas362. O que ajuda a entender a ação do soba das margens do rio Cuchibi em, não só usar o marfim como presente, mas também prometer reservar todo o marfim que conseguisse para entregar ao sertanejo, é a compreensão da situação política regional. Como explica Silva Porto, as margens do rio Cuchibi, região rica na produção agrícola de mantimentos, sofria na década de 1850 com disputas sucessórias entre a linhagem reinante após a morte do soberano Cachitto. Sucedido inicialmente por sua filha, Numba Amottembe, que seria a soberana que Silva Porto encontraria governando a região em sua viagem ao Lui em 1853, a governante sofreria um golpe de Estado perpetrado por seu tio paterno, Muéne Hibambo, que além de depor Numba Ammotembe, prendeu seu principal concubino. No episódio já relatado de 1858, após o encontro com Muéne Caihombo, mais a sul, os dois soberanos em disputa, Muéne Hibambo e Numba Amottembe, entregaram ao sertanejo, cada um, um dente de elefante, além de mantimentos. Numba Amottembe entregaria, no dia seguinte ao primeiro encontro, um dente de marfim meão ao sertanejo, já que no anterior a ponta entregue também era dessa classe, sendo, portanto, menos valiosa que o presente do tio363. Assim, para a disputa do poder regional, os diferentes chefes procuravam se colocar como interlocutor principal das

362 Para compreender a distinção entre presenteamento, tributos e venda, vale a pena comparar esse episódio com uma outra ocasião em 1863, na qual Silva Porto comprou uma ponta de marfim de lei do mesmo Muéne Caihombo. Depois de pesada a ponta e acertados os valores da troca (que incluiu fazendas, armas de fogo, pólvora, vestuário, sal e agulhas), Silva Porto apresentou a Caihombo uma palha que ambos quebraram ao centro e lançaram o fragmento de cada um para trás das costas, significando um juramento de que o negócio estava fechado a contento dos dois agentes, o que é registrado com três golpes de machado em uma árvore acompanhados por um juramento oral. Silva Porto explica que esse é o procedimento de fechar negócios entre a "raça ganguela", sendo o mesmo ritual feito ao final de uma disputa por mucanos na região. Assim, ao contrário de trocas de presentes que poderiam sugerir (ou exigir) sequências de trocas consecutivas, as permutas principais do comércio nos sertões tinham que marcar claramente a sua conclusão e aceitação recíproca entre os envolvidos. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 88-89. (21/12/1863). 363 Além de Numba Ammotembe, há vários registros em Silva Porto de mulheres que ocupavam os cargos máximos de chefia local, como era o caso da poderosa Muéne-Gambo, com quem Silva Porto encontrou pessoalmente em 1868, quando tinha cerca de 80 anos, sendo mãe de vários soberanos da região de Cangila, Gonga e Lutembo (seu primogênito, que governou o Lutembo, é o já comentado soba Cabita). BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 48-49. (01/06/1868). Outro exemplo interessante é o de Ma-Sekeletu, mãe de Sekeletu que disputou o poder com Mpololo após a morte de seu filho, sendo assassinada pelo regente após este vencer a Revolução de Linyanti. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 114-115. (01/03/1864).

159 caravanas que passavam por suas terras, e também, consequentemente, como principais receptores das mercadorias estrangeiras trazidas por elas364. Porém, não só no bojo das disputas políticas por legitimidade interna que os sertanejos poderiam ser beneficiados com presentes de marfim durante o trajeto da viagem. Um dos casos interessantes envolve os pombeiros de Silva Porto, que em 1848, seguiam viagem do Bié para o Lui e no caminho encontram um grupo de khoisan (cassaqueres, em Silva Porto), povo nômade e caçador, de pele mais clara e língua bastante distinta das línguas dos grupos bantu. Os pombeiros compram dos khoisan a carne de três elefantes e mel em abundância em troca de missangas e tabaco, já que para esse povo não interessavam tanto as fazendas365. Após a conclusão do negócio, o chefe dos caçadores entregou as presas dos elefantes caçados, já que para eles o marfim não tinha valor comercial366. Em outra ocasião, Silva Porto comenta que até 1845 os khoisan eram constantemente caçados pelos ganguelas para serem escravizados e, segundo o sertanejo, a relação entre esses povos do interior teria se alterado por causa da demanda crescente de marfim no litoral, já que os ganguelas podiam vender o marfim caçado pelos khoisan para as caravanas que passavam por suas terras, marfim esse que era entregue como dádiva pelos caçadores367. Outro produto fundamental de exportação para o Atlântico era a cera. Sendo especialmente importante em países católicos para o fabrico de velas, a cera contou com uma demanda interna considerável em Angola desde o século XVIII, tanto pela comunidade cristã, quanto pelos outros povos africanos que passaram a adotar as velas em seus rituais fúnebres. No entanto, foi a demanda internacional que potencializou a

364 BPMP. Ms. 1236. SILVA PORTO. Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 31-32. (13-15/06/1858); SGL. Res. 2 - C - 6. Idem, Viagens e Apontamentos, 1º volume, p. 142-145 (9-10/01/1853). Para não se indispor com nenhum dos soberanos em disputa, Silva Porto sempre procurou retribuir os presentes e pagar a quibanda a cada um dos chefes; inclusive, em passagem posterior pela região, o sertanejo chega a pagar quibanda a um 3º soberano da mesma linhagem, Muéne Tahull, para evitar inconvenientes causados pelos conflitos entre os soberanos. BPMP. Ms. 1238. Idem, Viagens e Apontamentos, 3º volume - BIS, p. 89 (22/12/1863). 365 Pensando em discussões já realizadas nesse capítulo sobre o uso dos objetos importados como bens de prestígio, é interessante contrastar essa consideração da bibliografia e do próprio Silva Porto sobre certo desinteresse dos khoisan com as fazendas, com episódio de junho de 1861: interessado em cobrar dívida causada por brancos, um chefe khoisan vai acompanhado de um soberano ganguela para interpelar Silva Porto em Belmonte sobre o caso. Para tal ação, vestiu-se com pompa, com vários elementos provenientes das caravanas de longa distância que não deviam ser utilizadas pelo dito chefe em outros contextos sociais: bata encarnada, camisa e jaqueta de chita, uma espécie de vizeira lhe cingia a testa, feita de missangas de diferentes cores, e na nuca, um grande penacho de penas de aves de diferentes cores, arma de fogo, azagaia, patrona à cinta, machado de enfeite, bem como o competente machado de trabalho. SGL. Res. 2 - C - 6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, p. 46-51. (13/06/1861); SANTOS, Tecnologias em Presença, p. 246. 366 SGL. Espólio de Silva Porto, Caixa 1. Silva Porto, António Francisco Ferreira. Borrões da 3ª viagem, p. 11-12; BPMP. Ms. 1236. Idem, Viagens e Apontamentos, 2º volume, p. 90-91. Ambas são versões diferentes do mesmo apontamento referente ao dia 12/01/1848. 367 SGL. Res. 2 – C – 6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º volume, p. 152-154. (23/01/1853).

160 produção angolana de cera: com o esgotamento da produção de mel e cera no Brasil entre os séculos XVI e XVII, o preço internacional desse produto sofreu aumento considerável e a cera era enviada como complementação dos lucros dos negreiros com destino às Américas, o que aumentou com o ciclo da mineração no Brasil durante o século XVIII368. Para atender essa demanda, a cera, junto do mel – utilizado para alimentação e fabrico de bebidas alcoólicas – eram retirados tanto de colmeias selvagens, quanto em recipientes fabricados e instalados no meio da floresta. Duas vezes ao ano eram realizadas colheitas, a primeira e maior, em janeiro e fevereiro, e uma menor no mês de junho, na qual uma expedição majoritariamente masculina, em atividade análoga à caça, iam até os enxames para retirar os favos369. No que diz respeito à cera embarcada no porto de Benguela, a sua principal origem era as regiões a leste do Planalto Central, sendo a grande fonte de riqueza dos diversos povos chamados de ganguelas. Nessa região, geralmente cada produtor possuía centenas de colmeias espalhadas pelos matos e margens de rios, além de se reunirem em bandos de dez a vinte pessoas que seguiam nos matos à caça de animais e de colmeias selvagens370. Entre as décadas de 1810 e 1830, houve uma rápida expansão das cifras de exportação da cera angolana para o Brasil ao acompanhar o auge do tráfico de escravos; no entanto, na década de 1840, Portugal é que se tornaria o principal destino da cera africana, já que na Península, região tradicional de produção de cera e mel, houve queda da produção com o esgotamento das colmeias, aumentando a relevância do produto vindo de Angola para manter Portugal como grande exportador de cera. Foi nesse contexto, com a proibição legal do tráfico de escravos em 1836, que a cera de abelha tornou-se o principal produto de exportação da alfândega de Benguela e um dos mais importantes da colônia por todo o século XIX, sendo Angola um dos principais produtores mundiais de cera até meados do

368 VELLUT, Jean-Luc, Diversification de l’économie de cueillette: miel et cire dans les sociétés de la forêt claire d’Afrique centrale (c. 1750-1950), African Economic History, v. 7, p. 93–112, 1979, p. 97, 99–100. 369 Ibid., p. 95, 97. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 243 (28/02/1862). 370BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 262-264 (04/12/1852). Os ganguelas usavam a cera para permutar com as caravanas por escravos e, se não lhes agradasse os serviçais, os revendiam, além de permutarem por armas, pólvora, fazendas, tabaco e sal. Quanto à localização das colmeias selvagens, como explica Isabel Castro Henriques, uma das estratégias mais recorrentes nessa região era seguir o Cucus indicator, chamado pelos povos do Planalto de ongilla ou ossole, o pássaro do mel. HENRIQUES, Isabel Castro, O Pássaro do Mel - Estudos de História Africana, Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 16–23. Os observadores europeus sempre criticaram os métodos centro-africanos de extraírem a cera e supuseram uma falta de produtividade por causa das técnicas se manterem extensivas e operacionalizadas no interior das florestas. No entanto, a sobrevivência dessa produção diante do esgotamento das colmeias no Brasil e, como comentaremos na sequência, em Portugal desafiam leituras etnocêntricas sobre essa produção. Ainda sabemos pouco sobre as técnicas de coleta e refino utilizadas - e se elas se transformaram consideravelmente ou não ao longo dos séculos de exportação para o Atlântico. VELLUT, Diversification de l’économie de cueillette, p. 105.

161 século XX371. No entanto, como Silva Porto destaca em vários momentos, o valor reduzido da unidade, um pão de cera, que geralmente pesava 60 libras, não era suficiente para compensar a viagem e o pagamento da fatura, mantendo, portanto, entre os sertanejos do Bié, a necessidade de fazerem viagens mais longas em busca das presas de elefante372. No entanto, essa mesma característica tornava o comércio de cera mais atrativo para negociantes africanos que não tinham acesso direto ao crédito dos comerciantes de Benguela. Umas das características que compatibilizaram a produção da cera com o comércio retalhista protagonizado por negociantes de empreendimentos menores era que ela passava por dois processos de refino. Inicialmente, no interior, retirava-se o produto dos favos para formar os pães a serem carregados para os presídios, feiras e cidades europeias. Nessa fase, principalmente após a pacificação do trajeto entre os reinos do Bié e Bailundo, a partir da década de 1850, muitos negociantes mambari vindos do Bailundo passaram a ultrapassar o território do Bié e fazer permutas com os ganguelas ou coletarem por conta própria a cera dos favos, trazendo os pães até os presídios portugueses ou diretamente para Benguela373. No entanto, havia um segundo refino, desses pães trazidos pelos africanos para fôrmas de tamanho padronizado, geralmente feita nos postos comerciais portugueses, ou, no caso dos sertanejos, em seus estabelecimentos no Bié ou no caminho. Nesse processo por vezes eram identificadas fraudes dos africanos, que aumentavam o peso dos pães com areia, farinha ou impurezas, o que, no entanto, não podia ser conferido no momento da compra, pois era motivo de mucano partir o pão ao meio para conferir o seu interior; assim, reservava-se a descoberta para o momento do refino, quando os vendedores já tinham partido374. Mesmo sem esse tipo de artimanha, a maior proximidade das ganguelas do litoral, se comparado com as regiões produtoras de marfim, e o valor reduzido dos pães de cera, permitiram aos negociantes africanos desenvolverem empreendimentos com investimento inicial menor e que podiam ser feitos com viagens mais curtas e ágeis, enchendo o porto de Benguela com esse produto. Assim, mesmo antes do boom da borracha, apontado pela historiografia como o momento chave da quebra de hierarquias no Planalto, pequenos negociantes mambari podiam acumular recursos para uniões matrimoniais, defesa contra mucanos, compra de escravos ou mesmo resgate de parentes. Por esses mesmos motivos, muitos dos pombeiros que viajavam com Silva Porto

371SANTOS, Perspectiva do Comércio Sertanejo do Bié, p. 11–12; VELLUT, Diversification de l’économie de cueillette, p. 101–102. 372 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 127. (24/05/1861). 373 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 263-264. (02/01/1868). 374 BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 342. (18/09/1862).

162 acabavam dando preferência por comprarem cera no interior com as suas partes dos banzos375. A goma copal, resina retirada de árvores, geralmente é lembrada pela bibliografia como um importante produto que marca esse crescimento do comércio lícito em Angola, incluída entre aqueles que eram provenientes do interior das sociedades africanas autônomas. Dentre a documentação consultada referente ao recorte dessa pesquisa, não há referências de que goma copal tenha sido um dos vários produtos carregados nas caravanas de Silva Porto, nem em direção ao litoral, e nem para o interior. No entanto, o sertanejo faz algumas considerações sobre o extrativismo desse produto nas regiões próximas ao porto de Benguela, que nos permitem entender melhor sobre a sua produção, transporte e comercialização. Segundo apontamento de 1863, as quipambalas, caravanas indígenas de pequeno porte que viajavam pelas proximidades de Benguela, eram responsáveis por se instalar nas serras a partir de Cisanji (Quiçanje, em Silva Porto), coletar a goma no local chamado Cócôto, e levariam o produto para permutar em Catumbela376. Em outra referência, Silva Porto comenta em 1846 que habitantes de Quisanje levavam a goma, tanto para a cidade de Benguela, como para a Hanya e o Egito, e, somente seis anos depois, em 1852, ao passar novamente pela região, Silva Porto dá destaque à escassez crescente da goma copal nos bosques: nessa época, apanhadores gastavam um mês para completar a carga de 40 a 50 libras, enquanto em 1846, conseguiam apanhar de 12 a 16 libras por dia. Na opinião do sertanejo, as culpadas pela escassez eram as grandes comitivas de negros que andavam fazendo a colheita desse gênero, cuja cobiça ainda os levavam a perpetrarem roubos e assassinatos contra viajantes377.

375OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust, p. 65–66; VELLUT, Diversification de l’économie de cueillette, p. 103–105. Para ver os dados relativos à exportação de cera em Luanda e Benguela de 1830 a 1884, em peso, ver: HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola, p. 557. 376BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 4-5. (05/01/1863). Para mais sobre as quipambalas, ver o Capítulo 3. 377 Apesar de não utilizar esse termo no apontamento de 1852, as características que dá às “grandes comitivas de negros” é exatamente as de suas futuras reclamações sobre as quipambalas, que parecem intensificar a sua atuação ao longo das décadas cobertas por esse estudo. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 17-18 (07/06/1846); SGL. Espólio de Silva Porto, cx. 1. SILVA PORTO, Borrão da 4ª viagem, p. 13; BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 249-250. (ambos os apontamentos são referentes ao dia 22/05/1852).. Apesar de ser bastante lembrada nas considerações sobre as transformações da economia angolana, faltam estudos mais detidos sobre a produção e comercialização da goma copal em Angola. No que diz respeito aos dados de exportações desse produto em Luanda e Benguela, há relação, em peso, sobre a goma proveniente de , aparentemente sem incluir a coletada nas proximidades de Benguela, em: HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola, p. 560.

163

2.6 “Barco parado não ganha frete” Existia uma série de questões operacionais a serem consideradas no cotidiano do comércio sertanejo. Conseguindo com seu armador no litoral fazendas, pólvora, armas e aguardente, entre outros produtos, o sertanejo tinha que ter sempre em mente que parte considerável desses produtos não seria usada na permuta principal, a realizada com o soberano do Barotse. Muitos desses gêneros não serviriam nem mesmo para as permutas realizadas ao longo da viagem, que ajudavam a complementar os ganhos, adicionando marfim e cera nas cargas da caravana que retornava a Benguela meses depois. Como já dito anteriormente, era necessário incluir no cálculo do empreendimento o gasto de mercadorias utilizadas para o pagamento das quibandas, que permitiam a passagem da caravana para regiões tão distantes, ou, para o desespero de muitos sertanejos, para pagar mucanos cometidos pelos negociantes ou seus dependentes. Além disso, também era prática comum que sobas do caminho, alguns das proximidades do Bié, e mesmo membros da corte local e vizinhos dos sertanejos, viessem à casa do sertanejo para pedir dádivas ao negociante estrangeiro. Essa prática, que Silva Porto por vezes chama de comedorias ou simplesmente de peditórios, fazia parte do cotidiano da atividade comercial no interior, sabendo que, assim que chegavam as caravanas com os produtos importados, já se reuniam os interessados nas cercanias dos estabelecimentos dos sertanejos do Bié378. Mesmo causando revolta e sendo frequentemente descrita com sarcasmo em seus diários, Silva Porto sabe que tal prática era importante para manter alianças políticas com os povoados do interior, pelos quais as suas caravanas inevitavelmente teriam que passar. Ele chega a reconhecer esse cálculo político em novembro de 1860, quando em seu estabelecimento de Belmonte está alojado o soba D. Bernardo, do sítio de Calembe, localizado em Ngalangi, e o chefe africano pede para Silva Porto o socorrer com fazenda, pólvora e aguardente, o que leva o sertanejo a afirmar em seu diário que: "É necessário viver em harmonia com todos estes marotos, porque não obstante a longitude que existem, sempre aparece um dia em que tomam vingança de um desserviço mesmo involuntário"379. Mesmo quando o soba do Bié dá autorização a Silva Porto para expulsar os pedintes de

378SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 9. (17/11/1860). Silva Porto comenta nessa data que, como tinha acabado de pagar os carregadores após a viagem, já seria espalhada a notícia de sua chegada para iniciar os pedidos das comedorias. O sertanejo inclusive afirma que os africanos estavam tão “amestrados” nesse negócio, que reconheciam o direito do sertanejo primeiro se ocupar com os carregadores, para, depois disso, poderem visitá-lo. 379 SGL. Res. 2 – C – 6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º volume, p. 12. (28/11/1860).

164 seu estabelecimento, o sertanejo decide por não praticar tal ação para não criar inimigos380. Entre os pedidos das comedorias estavam os próprios presentes periódicos de fazenda e aguardente que precisavam ser enviados ao soba do Bié, sendo todos os meses enviados emissários da libata grande para cobrarem o sertanejo em Belmonte381. Não só o soba, mas os membros da corte do Bié em Ecovongo, em geral, cotidianamente pediam presentes aos estrangeiros do país, levando, como já dito no capítulo anterior, a Silva Porto chamar sugestivamente tal grupo social de “sorvedouro sem fundo”382. Quando o armazém de Belmonte ficava vazio, ou seja, não tinha mais fazendas e aguardente, os principais produtos demandados cotidianamente nas comedorias, Silva Porto conseguia adiar o pagamento dos presentes solicitados. É o caso do episódio ocorrido em 4 de julho de 1861, em que o soba de Cangilla, hospedado na libata de Belmonte, decide esperar, junto do sertanejo, a chegada da comitiva de Benguela que traria fazendas para o estabelecimento383. No dia 18 do mesmo mês, Silva Porto também consegue adiar o pagamento do presente periódico do soba do Bié, pedindo para o soberano também esperar a chegada da caravana que vinha de Benguela, já que sua casa estava “limpa”384. Em 21 de junho do ano seguinte, Silva Porto admite inclusive que decidiu passar o dia na lavoura para evitar encontrar com os importunos, não aguentando mais receber as “habituais choradeiras”, se achando novamente sem fazendas no seu armazém385. O adiamento era

380Idem, Ibidem, p. 281. (29/05/1862). Em um apontamento bastante interessante de Silva Porto, datado de 10 de dezembro de 1863, durante a passagem da caravana pelas terras do soba Cangilla, o sertanejo comenta que o dito soba passa pela caravana para obter tributo de sal e tabaco dos membros da comitiva e os membros da caravana não satisfazem seu pedido, tendo o soba que se contentar com a resposta, pois “a quibanda recebeu ele [o soba] da minha mão [de Silva Porto], e por este motivo não tem mais direito a qualquer pedido. Há de contentar-se com o sim ou não, depois de ter recebido o tributo do chefe da caravana”. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, 3º volume - BIS, p. 84. A partir desse episódio, podemos pensar que a quibanda, para além de servir como condição para o direito de passagem segura pelas terras do soba, também poderia ser aproveitada pelo sertanejo como uma forma de fixar um limite aos presentes envolvidos na troca com os sobas, podendo, portanto, controlar a perda de mercadorias para comedorias. Essa possibilidade de interpretação está ausente na historiografia mais clássica sobre o comércio de longa distância, que parece destacar somente as perdas que os negociantes europeus tinham ao terem que viver entre africanos, reverberando os lamentos de Rodrigues Graça, e do próprio Silva Porto, pelas terras do interior não serem dominadas pelo exército português. É o exemplo de: HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola, p. 425. Assim, esses autores não conseguiram perceber que essas regras sociais africanas também poderiam ser foco de estratégias dos negociantes. 381 Os registros dos pedidos do soba do Bié são vários e de frequência constante. Ver por exemplo os apontamentos de: SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 19, 28, 36 (18/12/1860; 03/01/1861; 17/01/1861). 382BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 69-70. (08/10/1863). 383SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 144. (04/07/1861). No apontamento deste dia, Silva Porto ironiza a atitude do soba, dizendo que estava em sua casa [de Silva Porto] o seu amigo, o soba de Cangilla, ou mais propriamente, o amigo de sua fazenda. 384Idem, Ibidem, p. 151-152. (18/07/1861). Ver para esse e o episódio anterior, que na Tabela 5, apresentada na sequência, a caravana de número 7, vinda de Benguela, entra em Belmonte em 30/07/1861, podendo assim serem pagas as dádivas exigidas anteriormente. 385Idem, Ibidem, p. 278. (21/06/1862).

165 aceito pelos africanos por causa de lógicas de uso do tempo entre esses povos que diferiam dos europeus, sendo pouco relevante se a dívida fosse paga no dia seguinte ou em dois anos – essas eram as mesmas lógicas que, em outros contextos, podiam significar a um sertanejo pagar a dívida feita por outro negociante branco anos antes, ou a interrupção do comércio de uma região com os brancos por causa de rituais religiosos386. Considerando então os gastos envolvidos nesses pedidos e a possibilidade de adiamento, Silva Porto comentou em apontamento de 23 de novembro de 1860 que era estratégico não manter por muito tempo paradas as cargas em Belmonte, já que as despesas eram contínuas, os peditórios imensos e as possibilidades de negócio cada vez menores. Por esse motivo, decide nesse dia que precisa enviar uma caravana com as fazendas que tinha para o Genje (Barotse), citando ainda um rifão que dizia “barco parado não ganha frete”387. Como se pode ver na Tabela 5, as caravanas enviadas para o Genje podiam demorar mais de sete meses na viagem antes de voltarem ao Bié, tendo ainda que considerar a duração da viagem de ida e volta de caravana do Bié para Benguela, que durava pelo menos 40 dias, para poder assim reaver as fazendas do negócio. Para lidar com esse tempo operacional do comércio caravaneiro, e poder ter recursos financeiros entrando durante todas as épocas do ano, era necessário aos sertanejos administrarem várias caravanas simultâneas388. Vale apontar, nesse sentido, a partir da Tabela 5, situações como a da chegada da caravana de número 1, com fazendas vindas de Benguela, em 14 de novembro de 1860, e da saída de caravana para o interior com essas fazendas apenas uma semana depois, no dia 27; algo parecido ocorre com a chegada em Belmonte das caravanas de números 10 e 12, respectivamente em 6 de agosto e 15 de novembro de 1861 que, após a chegada das cargas da caravana de número 12, o sertanejo já devia ter reunido bens em quantidade suficiente para realizar a viagem para as ganguelas, saindo caravana uma semana depois, no dia 22 de setembro389. Além disso, com riscos de cada viagem relacionados a roubos, sequestros, acidentes, entre toda uma série de problemas que poderiam significar a perda de cargas e

386HENRIQUES, Isabel Castro, Tempos africanos, leituras europeias, in: O Pássaro do Mel - Estudos de História Africana, Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 134–137. 387SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, op. cit., p. 11. (23/11/1860). 388 Vale apontar ainda que, como também dá para se ver na tabela 5, para outras regiões das ganguelas, como o caso da Quiginga, a duração da viagem de ida e volta podia ser ainda maior. 389 Por razões diferentes, nesse caso ligadas à dimensão viva da carga no comércio transatlântico de escravos, Cândido Domingues em texto recente discute grandes problemas que podiam ser causados pela demora de uma carga parada para os ganhos dos comerciantes envolvidos. DOMINGUES, Cândido, Tráfico, Tempo e Lucro: capitães negreiros e redes comerciais da Bahia setecentista, in: CASTILLO, Lisa Earl; ALBUQUERQUE, Wlamyra; SAMPAIO, Gabriela dos Reis (Orgs.), Barganhas e Querelas da Escravidão: Tráfico, Alforria e Liberdade - Séculos XVIII & XIX, Salvador: EDUFBA, 2014, p. 21–60.

166 trabalhadores no caminho, que inclusive resultariam em demoras ainda maiores, a necessidade de operar várias caravanas simultâneas era estratégica para que os investimentos dos sertanejos não dependessem totalmente de uma só expedição. Para administrar essas várias caravanas, os sertanejos tinham necessidade de contratar os seus macotas, termo utilizado para designar os empregados de confiança do sertanejo que eram usados para chefiar as caravanas na sua ausência, além de geralmente haver um macota, grande ou pequeno, acompanhando pessoalmente o sertanejo nas suas próprias viagens390. O caso do ano de 1861 é útil para avaliarmos o esforço de gestão dessas várias caravanas, já que Silva Porto passa o ano inteiro em Belmonte, administrando à distância várias caravanas simultâneas. Como se pode ver na tabela 5, entram nesse período no Estabelecimento de Silva Porto três caravanas vindas do interior com marfim e cera, além das seis que saíram com fazendas rumo ao interior do país. Para completar o empreendimento, o marfim e a cera que chegavam em Belmonte foram escoados em seis caravanas que saíram para Benguela, para poderem ser trocados por fazendas e outros gêneros que serviam de moeda de troca do interior, entrando também sete caravanas vindas da cidade, para dar sequência ao comércio nos sertões.

390 SANTOS, Perspectiva do Comércio Sertanejo do Bié, p. 17. Como comentado no Capítulo 1, esse termo foi derivado do vocabulário político, utilizado para os membros do conselho governante diretamente subordinado ao soba. A denominação de macota grande e macota pequeno dizia respeito à hierarquia interna desses funcionários frente ao sertanejo, sendo o macota grande o principal. Como sugere a situação do ano de 1861, detalhada na Tabela 5, Silva Porto deveria contar com vários macotas, já que ele permanece durante todo o período em Belmonte, não chefiando, portanto, nenhuma das caravanas registradas no período.

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Tabela 5 – Movimentação das Caravanas de Silva Porto no sítio de Belmonte, Bié, durante o ano de 1861 Nº de Referência* Data Evento Destino/Origem Duração da Viagemº 1 14/11/1860 Entrada Benguela** - 2 27/11/1860 Saída Genje/Lui 7 meses e 24 dias 3 01/01/1861 Saída Benguela 42 dias 4 23/02/1861 Saída Benguela 83 dias 3 12/03/1861 Entrada Benguela 42 dias 5 10/04/1861 Saída Quiginga - (ganguelas) 6 16/04/1861 Entrada Quiginga 11 meses e 21 dias 4 16/05/1861 Entrada Benguela 83 dias 7 18/05/1861 Saída Benguela 74 dias 8 05/06/1861 Entrada Quiginga 10 meses e 26 dias 9 08/06/1861 Saída Vertentes do rio - Loengue 2 21/06/1861 Entrada Genje/Lui 7 meses e 24 dias 10 25/06/1861 Saída Benguela*** 42 dias 11 01/07/1861 Saída Benguela - 7 30/07/1861 Entrada Benguela+ 74 dias 12 01/08/1861 Saída Benguela 44 dias 10 06/08/1861 Entrada Benguela 42 dias 12 15/09/1861 Entrada Benguela 44 dias 13 22/09/1861 Saída Genje/Lui - 14 23/09/1861 Saída Humbe - 15 28/09/1861 Saída Margens do rio - Loengue ?++ 08/11/1861 Entrada Benguela - Dados retirados de: SGL. Res. 2 – C – 6. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 2º volume. *Registros com o mesmo número de referência são da mesma caravana, por exemplo, a caravana 3 saiu de Belmonte em direção à Benguela no dia 01/01/1861 e retornou da cidade, chegando de volta a Belmonte no dia 12/03/1861. ºDuração informada, ou diretamente por Silva Porto, ou cruzando as informações dos apontamentos escritos durante o ano de 1861; não foram inseridos os dados relativos a quando essa informação não foi dada diretamente pelo sertanejo, ou quando o retorno não foi no ano de 1861 **Trata-se de caravana liderada pelo próprio Silva Porto, que ao chegar em Belmonte ficaria estacionado na região por todo o ano seguinte. *** A necessidade de enviar a fatura da Caravana 2 para Benguela era tão grande, que essa caravana foi formada diretamente pelos quimbares de Silva Porto, e não através do contrato de pombeiros. +Caravana sofreu roubo de pólvora e aguardente no caminho de volta. ++Silva Porto não especifica qual o dia da partida dessa caravana, então preferimos não afirmar com certeza o seu número de referência, só informa que a comitiva chegou “sem novidade”, o que podemos conjecturar tratar-se da caravana 11, cujo retorno não foi explicitamente registrado nos apontamentos escritos durante o ano de 1861, e os 4 meses e 2 dias passados até o registro de novembro é tempo suficiente para ida e volta do Bié para Benguela.

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O funcionamento das caravanas, além de possibilitar a circulação de mercadorias, também permitia a circulação de informações. Isso permitia com que Silva Porto, mesmo quando estava em seu estabelecimento em Belmonte, acompanhasse à distância as notícias envolvendo suas caravanas em movimento. Nesse sentido, uma preocupação recorrente da atividade sertaneja era com o espalhamento de boatos, geralmente manipulados como estratégias intencionais de chefias africanas para manter monopólio de caminhos, fazendo as caravanas retrocederem, ou para realizar sabotagem contra chefes rivais, convencendo líderes de caravana a evitarem a rota por sobados específicos391. Uma das situações que preocupou Silva Porto enquanto estava estabelecido em Belmonte foi a notícia chegada em 28 de dezembro de 1860 de que uma caravana sua que voltava do Humbe tinha sido sequestrada por um desertor de um presídio português, que fez sequestro de 30 cabeças de gado e uma ponta de marfim de lei, alegando que o encarregado da comitiva tinha dívidas com ele392. O boato se confirmou com a chegada em Belmonte do encarregado da dita caravana em 4 de março do ano seguinte, e dois dias depois, por causa de outro boato envolvendo o desertor, que teria afirmado que era um assassino de sobas, sendo convocado pelo soba do Bié para se explicar na libata grande. Silva Porto reconhece que esse boato era claramente uma calúnia que armaram contra o desertor, mas, com rancor, o sertanejo escreve que ele que se arranjasse em lidar com bianos, porque não seria Silva Porto que iria lhe salvar393. No dia 9 do mesmo mês chegaria ao Bié o responsável pelo sequestro, mas posteriormente, em apontamento do dia 26, Silva Porto admite em seu diário que desistiu da contenda, demitindo o seu funcionário responsável pela perda do gado e marfim, e desistindo de cobrar do desertor, que acabou gastando suas economias pagando a multa de traição ao soba e que, portanto, não tinha recursos para pagar o sertanejo naquele momento394. Episódios como esse levaram Silva Porto a temer, em setembro do mesmo ano, pelo retorno de uma caravana do Humbe, considerando que as suas duas últimas, enviadas para a mesma região, tinham sido sequestradas395. Em episódio posterior, Silva Porto inclusive mandaria comitiva armada para se encontrar com uma caravana sua que vinha da dita terra, já que havia se espalhado no interior o boato de que a caravana seria

391HEINTZE, Beatrix, Comércio Distante, Notícias e Boatos: Estratégias de Comunicação Centro-Africanas (c. 1850-1890), in: A África Centro-Ocidental no Século XIX (c. 1850-1890): Intercâmbio com o Mundo Exterior, Apropriação, Exploração e Documentação, Luanda: Kilombelombe, 2013, p. 210–215. 392SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 25. (28/12/1860). 393Idem, Ibidem, p. 59-60. (04/03/1861; 06/03/1861). 394Idem, Ibidem, p. 61, 68-69. (09/03/1861; 26/03/1861). 395Idem, Ibidem, p. 180-181. (23/09/1861).

169 sequestrada396. Ao contrário dos roubos mais genéricos, os sequestros geralmente incluíam a possibilidade de devolução das cargas ou pessoas sequestradas, sob condição de liberação do pagamento exigido – por causa dessa possibilidade de cobrança do resgate que, em episódios como descrito acima, Silva Porto sabia a localização dos sequestradores que, apesar de realizarem prática considerada ilegal no seio das sociedades africanas, não se escondiam, tendo bastante expectativa de que seriam pagos pelo negociante. Isso diferia bastante dos casos de sequestros de pessoas na época do tráfico, em que era prática comum o deslocamento do capturado para dificultar a sua ligação com a sociedade de origem. Nos diários de Silva Porto são frequentes os pedidos de resgate recebidos pelo sertanejo, tanto referentes a cargas de suas caravanas, ou a seus dependentes e escravos que haviam sido capturados, parecendo que o sequestro, apesar da ilegalidade, tornava-se quase uma modalidade de acumulação de riquezas paralela ao comércio de longa distância, assim como as quibandas e a cobrança de mucanos397. No entanto, se for permitido dobrar um pouco a metáfora de Silva Porto, por vezes os barcos parados poderiam ganhar frete. Mesmo que os principais negócios de Silva Porto e outros sertanejos dependessem das caravanas suas e de seus funcionários, seus estabelecimentos no Bié poderiam ser ponto de comércio para caravanas africanas de longa distância. É o caso das caravanas chokwe que passam por Belmonte em 1862. Nessas ocasiões, tais comitivas pararam no estabelecimento de Silva Porto para comprarem produtos diversos, como arcos e flechas, objetos de metal ou peles, mas também para vender cera, o que o sertanejo admite ser um ganho substancial nessa transação (sem custos de transporte) frente a prejuízos recentes que teve naquele ano. O sertanejo inclusive elogia a cera dos chokwe que, apesar de ter menos valor na exportação, por ser a variedade mais comum em Luanda, era mais pura após o refino, não registrando as fraudes que, como já comentamos, eram comuns nos pães vindos das ganguelas398. Diante de todos os riscos e da morosidade inerente ao comércio caravaneiro, os sertanejos procuravam complementar seus ganhos com outras atividades econômicas. Em

396Idem, Ibidem, p. 242. (26/02/1862). 397CANDIDO, Fronteras de esclavización, p. 178, 184. Vale destacar, por fim, que o monólogo do soba Cutumbuca, reproduzido na epígrafe desse trabalho, é uma resposta a um boato de que ele sequestraria a caravana dos pombeiros de Silva Porto, durante a viagem com destino à Ilha de Moçambique. 398 BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 346-347, 365. (02/12/1862); Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 360. (20/10/1864). Vellut explica que a cera branca, mais cara, era mais comum em Pungo Andongo e no Ndongo. No entanto, no século seguinte foi a cera amarela a variedade mais comum, o que está ligado exatamente com a expansão da produção dos chokwe dessa variedade. Ao que parece, portanto, a cera das ganguelas que chegava em Benguela nas caravanas mambari, sejam elas de africanos ou sertanejos, era, em geral, a cera branca. VELLUT, Diversification de l’économie de cueillette, p. 102–103.

170 suas propriedades no interior, tanto para a subsistência, quanto para o sustento das caravanas que partiriam em viagem, os sertanejos cultivavam alimentos como mandioca e batata, além do milho e do trigo399. Por causa da semelhança climática entre o Planalto Central de Angola e Portugal, também era comum que procurassem cultivar plantas europeias, como, por exemplo, figueiras e videiras. Como destaca Constança Ceita, quem administrava a libata de Belmonte era a terceira esposa de Silva Porto, Mãe Rosa. Na região era de responsabilidade das mulheres a administração e o trabalho com a agricultura, criação e educação das crianças da casa, ainda mais considerando o deslocamento de uma população majoritariamente masculina que compunha as caravanas e que, portanto, passava meses longe de casa400. Para além da produção de mantimentos em Belmonte, Silva Porto procurou complementar os rendimentos do comércio caravaneiro com uma feitoria de apanha de urzela, que administrou no período em que residiu em Benguela em 1863. A urzela é um fungo que produz corantes de cor púrpura e azul, e suas exportações aumentaram consideravelmente em Angola nesse período de ascensão do comércio lícito. Como explica Silva Porto, considerando, com certo rancor, que no comércio dos sertões “a despesa é certa e o rendimento nenhum”, mobilizar seus escravos e dependentes de sua propriedade de Benguela a recolher o fungo nas proximidades da cidade, em feitoria próxima à costa, era uma boa alternativa econômica401.

399 A produção de mantimentos, geralmente tido como assunto secundário nos estudos sobre comércio, frente a outros produtos que eram mais diretamente comercializados pelas caravanas, era central para permitir que comitivas enormes, compostas por centenas ou mesmo milhares de membros, pudessem se deslocar por tanto tempo. Assim, tais caravanas dependiam de muito alimento a ser comprado em vários pontos da estrada, já que o que saía da propriedade de Belmonte não duraria para a viagem inteira. Achim von Oppen defende que a produção em alta escala de alimentos para venda para as caravanas de longa distância foi um aspecto menosprezado pela historiografia, assim, o autor procura mostrar não só como a expansão do comércio de longa distância forçou conexões no comércio regional de alimentos no Alto Zambeze e Kasai, como também que crises de fome no começo do século XX tiveram impacto dramático sobre o funcionamento desse comércio. OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust, p. 87–89, 94–96. Estratégias do cotidiano das caravanas para suprir essa necessidade, como a compra de mantimentos a partir do pagamento da ração de cada membro da caravana, as caçadas, assim como o aproveitamento dos animais, bebidas, cereais e farinha adquiridas na retribuição dos sobas às quibandas, serão discutidas no Capítulo 3. 400CEITA MIGUEL, Constança do Nascimento da Rosa Ferreira de, A Vida e a Obra do Portuense Silva Porto no Reino Ovimbundu - Bié (1839-1890), Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras - Universidade do Porto, Porto, 2001, p. 81–82. Texto gentilmente cedido pela autora. Sobre a importância do trabalho feminino para expansão do comércio caravaneiro, ver capítulo 3. 401BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 9. (23/01/1863); Idem, Ibidem, p. 52. (09/08/1863); WISSENBACH, Entre caravanas de marfim, o comércio da urzela e o tráfico de escravos, p. 35–36.

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2.7 Endividamento e a “Crise” dos anos 1860 Existe uma interpretação consolidada na historiografia de que na década de 1860 o comércio dos sertanejos do Bié passaria por enfraquecimento, levando boa parte desses agentes a entrar em falência e/ou abandonar o interior do continente durante essa década. A razão principal da crise seria a concorrência crescente que teriam frente aos comerciantes africanos do Planalto, alguns deles tendo atuado anteriormente como pombeiros dos sertanejos, que montariam suas próprias caravanas com foco na exportação de borracha. De fato, a coleta de borracha pelo extrativismo foi uma atividade econômica fundamental para história do Planalto Central de Angola, tendo o seu boom de produção a partir dos anos 1870 e tornando-se o segundo produto de exportação de Angola no final do século (perdendo apenas para o café)402. O comércio da borracha, além de envolver boa parte da população do Planalto na sua coleta – com a formação de infinidades de caravanas, menores e mais ágeis que as dos sertanejos –, facilitava o acesso de uma fração bastante ampliada da sociedade a bens de prestígio e posições sociais que até então estavam ainda reservadas às elites políticas403. Mesmo que não seja contraditório a esse cenário, considero importante destacar que a centralidade econômica e as profundas transformações sociais que a borracha vai ter no período posterior ao recorte deste trabalho não eram tão claras para os agentes do comércio no início da década de 1860, como podemos ver em um apontamento de Silva Porto de 1862: "o gênero que denominam borracha, mas creio que para comércio, nenhum fructo se poderá obter, em consequência da longitude da beira mar; aqui no centro, com o dito ponto; só [rende] o recurso da cera e marfim."404 Mais perceptível que a futura ascensão do comércio da borracha, a crise do comércio sertanejo era destacada várias vezes nos diários de Silva Porto pelas queixas envolvendo o endividamento crescente pelo qual estava passando. Em uma passagem, um tanto melodramática, num apontamento de 10 de setembro de 1861, Silva Porto chega a

402 Para mais sobre a cultura do café em Angola, ver, entre outros: FERREIRA, Abolicionismo versus Colonialismo, p. 105–108; VILAS BÔAS, Felipe Pires, Portugueses, moradores e Sobas em Golungo Alto, Angola: negociação e conflito em narrativas de militares, (c.1840-c.1860), Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. 403SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 97–98; OPPEN, Terms of Trade and Terms of Trust, p. 78–86; HEYWOOD, Linda Marinda, Porters, Trade and Power: The Politics of Labor in the Central Highlands of Angola, 1850-1914, in: COQUERY-VIDROVITCH, Catherine; LOVEJOY, Paul E (Orgs.), The Workers of African Trade, Beverly Hills: Sage Publications, 1985, p. 243–268; HEYWOOD, Contested power in Angola, p. 1–30. 404 SGL. Res. 2 – C – 6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º volume, p. 230.

172 escrever que "(...) é triste dizer no último quartel da vida, esta pungente e amargurada verdade!! Estou pobre!!"405. Mesmo considerando o aspecto discursivo desses apontamentos como denúncia do abandono dessas terras (e por extensão, dos sertanejos), pelo Estado colonial, o lamento não é tão exagerado, como Silva Porto chega a admitir em 1866 que devia ao seu armador em Benguela, Manuel António Teixeira Barbosa, 16 contos de réis406. A nível de comparação da ordem de grandeza dessa dívida, vou destacar o balanço de duas viagens realizadas ao interior em 1862, não por acaso, as duas deficitárias: a primeira, proveniente da terra do Lui, tinha como fatura inicial em fazendas 3:250$000 réis e permutou o equivalente a 2:667$600 réis em pontas de marfim, tendo, portanto, um prejuízo de 582$400 réis407. Outra caravana, essa vinda do Humbe, tinha como fatura inicial em fazendas 1:415$700 réis, sendo permutados 303$200 réis em gado e marfim, tendo, portanto, um prejuízo de 1:112$500408. Isso quer dizer que, mesmo se as caravanas fossem superavitárias, o seu valor inicial da fatura, de cerca de 3 contos de réis no primeiro caso, e cerca de metade disso no segundo, era menor do que 1/5 da dívida que Silva Porto ainda tinha a pagar com o armador, que só aumentava por causa dos prejuízos frequentes dessas viagens da década de 1860. A situação só piorava por causa da necessidade de fazerem viagens para outros cantos por causa da concorrência crescente que os sertanejos encontravam no Barotse frente a comerciantes africanos, primeiro relativamente aos da terra da Bisa, depois dos “mouros” de Zanzibar, e mais tarde inclusive de comerciantes vindos de Kasanje. Por isso, em apontamento de 21 de agosto de 1861 Silva Porto comenta que enviava também caravanas para o rio Loengue, onde se tinha muito marfim, mas que o custo das pontas era quatro vezes maior do tinha sido anteriormente o valor no Lui409. A ideia dessas viagens para outras regiões era de atingir as condições originais que se tinham nas terras do Lui a partir de meados da década de 1840, o que se demonstrou com o tempo ser uma busca sem sucesso410. Outra tentativa de Silva Porto realizada na década de 1860 era de permutar marfim na terra do Humbe, a sul do Planalto Central. No entanto, como foi descrito na sessão anterior desse capítulo, os frequentes sequestros realizados às caravanas sertanejas

405Idem, Ibidem, p. 176. 406 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º volume, p. 67-69. (09/10/1866). 407SGL. Res. 2 – C – 6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º volume, p. 272. (01/05/1862). 408Idem, Ibidem, p. 280-281. (27/05/1862). 409Idem, Ibidem, p. 164-165. (21/08/1861). A listagem dos concorrentes que Silva Porto encontrava no Barotse é proveniente do mesmo apontamento, sugerindo, portanto, que nessa época ainda não tinha iniciado a concorrência com os comerciantes vindos da região do Cabo. SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 157–165. 410SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 133–147.

173 no caminho para essa região, além da morte do gado por causa da epizootia, tornavam quase certos os prejuízos nessa região411. Vale destacar que Silva Porto já tinha chamado em 1847 a região do Humbe de "Eldorado da tribo quimbunda", por causa de sua riqueza em gado e marfim412. Além dessas questões mais estruturais, havia fatores conjunturais da década de 1860 que podiam intensificar o endividamento dos negociantes do interior. Esse é o caso do aumento do preço dos tecidos na primeira metade da década, por causa da Guerra de Secessão nos Estados Unidos (1861-1865), produtor mundial de algodão. Por causa desse conflito, os preços das fazendas aumentaram no litoral e no interior, como registrado em apontamento de março de 1863, no qual Silva Porto comenta que as fazendas em Benguela estavam custando o dobro de outrora413. Pela mesma razão, o sertanejo registra a inconformidade dos negociantes africanos de Caquingue que chegavam em Benguela e conseguiam quantidades muito menores de tecidos na permuta dos gêneros que traziam do interior. Ao mesmo tempo, com a subida do preço dos tecidos, alguns africanos passaram a plantar algodão em pequenas propriedades nos arredores da cidade414. Minha hipótese para se pensar as razões da crise do comércio sertanejo parte, portanto, da compreensão dos problemas percebidos nos relatos cotidianos dos agentes desse comércio, e não focalizando processos históricos posteriores, que é o caso da ascensão da borracha. Nesse sentido, fica patente que o comércio caravaneiro de longa distância tinha que conviver com uma grande instabilidade ligada aos riscos que essas caravanas tinham ao lidar com diferentes contextos sociais e políticos interligados as suas redes. A fragilidade estrutural desses empreendimentos sertanejos foi fatal para a continuidade desse comércio a partir do momento que passou a crescer a concorrência no Barotse. A inspiração dessa hipótese é proveniente de texto recente de Maximiliano Mac Menz, em que o autor analisa como o comércio atlântico de escravos entre 1740 e 1807 é montado pela conjugação de diferentes esferas de agentes, incluindo grandes capitalistas e investidores da metrópole, capitães de navios que atravessavam o Atlântico, e agentes

411SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 280-281. (27/05/1862). 412BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 50-52. (17/03/1847). 413BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 17. (01/03/1863). 414Idem, Ibidem, p. 25 (14/04/1863); Idem, Ibidem, p. 39 (25/06/1863). Roquinaldo Ferreira destaca que desde 1840 havia fomento sistemático à plantação de algodão em Angola, sendo produto utilizado principalmente pelo mercado interno por causa do uso generalizado dos tecidos para o comércio de longa distância. FERREIRA, Abolicionismo versus Colonialismo, p. 103–105. O próprio Silva Porto, diante dessa conjuntura, chegou a plantar algodoeiros na sua horta em Benguela, mas posteriormente desistiu do intento por demandar muito mais cuidado do que a apanha de urzela que estava desenvolvendo simultaneamente. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 10, 32 (28/01/1863; 22/05/1863).

174 diversos das povoações luso-africanas que arrecadavam os cativos no interior. Para Menz, a conjugação dessas diferentes camadas de agentes se dava por uma distribuição desigual dos lucros e riscos do investimento, ou seja, as camadas mais altas, como investidores da metrópole, perdiam parte das suas taxas de lucro em troca de maior imunidade frente aos riscos cotidianos do comércio, a exemplo da morte de escravos em caravanas ou nos navios, revoltas e fugas de cativos, ou toda uma série de riscos que as caravanas podiam passar no interior frente às chefias africanas, riscos estes que permanecem durante o século XIX. Assim, mesmo que os grandes investidores ganhassem muito com o tráfico atlântico, muitos intermediários, principalmente esses agentes luso-africanos residentes em Angola, poderiam acabar em falência, ou mesmo com a morte415. Assim como no comércio de escravos, mesmo que os dados de exportação continuassem altos, e por vezes aumentassem, ao longo da década de 1860, os sertanejos se endividavam e abandonavam o interior, devido à fragilidade de sua atividade comercial frente aos riscos causados pelas transformações sociais radicais que estavam ocorrendo no interior do continente em meados do século XIX. Para defender essa hipótese, analisarei com mais detalhes uma situação discutida na sessão 2.4, em que, na época do levante sucessório, após a morte de Sekeletu no final do ano de 1863, que Silva Porto vai chamar de Revolução de Linyanti. Nessa mesma época, a caravana do sertanejo seguia para a capital do Lui e, diante dos boatos sobre o conflito416, os carregadores se recusaram a seguir viagem, pois ficaram aterrorizados com os riscos que a caravana podia sofrer ao passar em território de guerra. Portanto, a comitiva ficaria estacionada no estabelecimento de Silva Porto construído às margens do rio Cuchibi, para o desespero do sertanejo417. Com a paralisação do avanço, as fazendas que o sertanejo tinha comprado a crédito no litoral não poderiam ser transformadas em gêneros demandados em Benguela, não conseguindo, portanto, recolher o que seria necessário para pagar investimento inicial do armador. Diante dessa situação crítica, Silva Porto envia, em 20 de

415MENZ, Maximiliano M., From the Sea to the hinterland. Profits and risks in the slave trade form Angola c. 1740-1807. (no prelo). Texto gentilmente cedido pelo autor, a quem agradeço. 416 Quem dá a informação sobre a Revolução é o quimbanda (curandeiro) de Sekeletu, que encontra caravana em 29 de dezembro de 1863 e diz que abandonou Rinhande por causa da revolta dos kololo contra seu senhor, tendo sido Sekeletu morto por estrangulamento e teriam seguido enfrentamentos entre diferentes facções da linhagem real dos kololo. Apesar de Silva Porto afirmar ao quimbanda que já tinham tido notícias do ocorrido anteriormente, essa é a primeira ocasião que o assunto é citado em seus cadernos. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 92. (29/12/1863). 417 Sobre uso de boatos para amedrontar os carregadores e assim paralisar caravanas, ver: HEINTZE, Comércio Distante, Notícias e Boatos, p. 210–215. Nesse texto, Beatrix Heintze mostra como o chefe dos Yaka, nas margens do rio Kwango, espalhando boatos entre os carregadores da caravana, incluindo de que haveria canibais no caminho, procurou impedir a passagem da comitiva de Alexander von Mechow por seu território.

175 janeiro de 1864, uma carta para seu armador, que continuava sendo Manuel António Teixeira Barbosa, pedindo para que o comerciante esperasse mais pelo retorno da caravana, pois naquelas condições o sertanejo não teria como avançar a viagem. Silva Porto registrou uma cópia dessa missiva nos seus diários418. Tendo que ficar parada no Cuchibi no período entre 22 de dezembro de 1863 até 3 de abril de 1864, portanto por mais de 4 meses, a caravana só conseguiu avançar com a notícia da vitória de Mpololo na contenda entre a elite kololo. A notícia do final do conflito chegou em uma caravana do mesmo chefe, que levava marfim para Benguela. Essa informação também está presente em carta enviada por Silva Porto a Teixeira Barbosa, com objetivo de anunciar para o armador a continuidade da viagem (reproduzida no Anexo III). Enquanto não consegue avançar, para tentar permutar as fazendas – salvas em meio ao conflito – que tinha trazido originalmente para serem trocadas no Lui, Silva Porto enviará uma série de pequenas comitivas para regiões próximas do estabelecimento. Em janeiro de 1864, Silva Porto despachou do comitiva para permutação de marfim na região do rio Kwando419, e no mesmo mês enviaria também outra pequena comitiva para o Luvale e Lutembo, onde se permutavam escravos, cera e marfim, o último em pequena quantidade. Silva Porto inclusive instruiria os seus imediatos para que comprassem um único serviçal, mas admite que era raridade nas viagens em geral, e nessas terras em particular, que as caravanas não permutassem escravos. Essa segunda expedição (para o Luvale e Lutembo) retornaria ao estabelecimento sem ter conseguido trocar nada, por causa da falta de marfim e cera nos sobados a que se dirigiram, pois as reservas desses chefes já tinham sido esgotadas anteriormente em uma permuta com pombeiros420. Silva Porto ainda envia pombeiros para pegar marfim e escravos no Kwando, objetivando vender esses escravos no Mashukulumbwe. Nesse sentido, registra em seus diários que o vendedor de marfim nunca prescinde de fazendas, armas, pólvora, contarias e escravos, sendo esse último era a primeira mercadoria que pediam no interior a fim de dar princípio à troca421. Em outro contexto, em junho de 1864, Silva Porto tentaria novamente enviar pombeiros para o Lutembo e Luvale, conseguindo somente comprar cera e escravos, e sendo impelido,

418 Ver a transcrição dessas cartas no Anexo III. 419BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, op.cit., p. 93. (01/01/1864). 420Idem, Ibidem, p. 96. (10/01/1864); Idem, Ibidem, p. 101. (24/01/1864). Esse episódio já havia sido comentado na nota 273 desse capítulo. 421Idem, Ibidem, p. 97. (16/01/1864). Em outro apontamento, Silva Porto comenta que Muéne Hibambo tentou vender uma escrava para ele, o que o sertanejo recusou, pois, para a permuta por marfim, só se aceitavam menores de idade escravizados, sendo esta também a preferência do sertanejo para seu “consumo próprio”, pela facilidade das crianças em se “familiarizar” rapidamente com o trabalho e a menor impulsão para fugas. Idem, Ibidem, p. 106. (09/02/1864).

176 na sequência, a levar esses produtos para o Mashukulumbwe para tentar trocar por marfim422. Vale relembrar o fato de que o Mashukulumbwe era uma terra de caçadores de elefantes que eram tributários do Litunga do Barotse, portanto, o contato direto que Silva Porto e seus pombeiros faziam com esses caçadores tinha que sempre ser secreto, pois era considerado pelas leis do país como contrabando423. Mesmo fora dessa conjuntura específica da Revolução de Linyanti, o sertanejo não encontrava mais no Barotse as condições ideais para troca existentes durante as décadas anteriores, o que significa que, não trocar as fazendas, como indica a situação acima, traduz-se na perda da capacidade de pagar o crédito investido pelo comerciante do litoral. Os soberanos do Barotse, cada vez vendendo mais marfins para os negociantes do Cabo e da costa oriental, não ofereciam mais a fartura de carregamentos que os sertanejos podiam retirar sem concorrência no chamado “Eldorado”. Assim, tinham que fazer viagens mais longas e/ou perigosas para outros lugares, como bem mostrou a Tabela 5, revelando que, já em 1861, o sertanejo se viu obrigado a mandar caravanas para, além do Lui, o Humbe, Quiginga e Loengue. Na mesma década, Silva Porto acabaria por mandar caravanas também para o Nyengo (Nhengo, em Silva Porto), Mbukushu (Umbucusso, em Silva Porto), Samba e Lunda424. Mas nessas longas viagens, mesmo que conseguissem algum marfim nos pontos intermediários, acabavam tendo que gastar suas fazendas na permuta de cera ou mesmo escravos, o que resultaria em vendas menos lucrativas ao levarem as cargas para Benguela. Vale por fim destacar que, mesmo considerando o impacto dos problemas dessas novas condições do comércio dos anos 1860 para o endividamento da comunidade sertaneja, não se pode considerar que o risco de perda de todo o conteúdo da caravana era somente produto de temores momentâneos de Silva Porto e de seus carregadores. Nesse mesmo contexto em que Silva Porto estava estacionado no Cuchibi, Lucas José Coimbra, primogênito do major Francisco José Coimbra, herdeiro do pai nos empreendimentos comerciais e com experiência nos sertões desde que tinha atuado como criado do sertanejo Luiz Albino Rodrigues, perdeu toda a sua carga em um sequestro. Em 1º de fevereiro de 1864, Lucas José Coimbra passa pelo estabelecimento de Silva Porto no Cuchibi e comenta estar em viagem para a terra do Nyengo, sob controle do soba Imbua que, como já comentei

422Idem, Ibidem, p. 146. (03/06/1864). 423SANTOS, Tecnologias em Presença, p. 237. 424 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 93-94, 123-124. (04/01/1864; 03/04/1864); Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 357-359. (21/11/1862); Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 248. (15/01/1869).

177 anteriormente, era um dos chefes lozi no exílio, e depois para o Mashukulumbwe425. No dia 24 do mesmo mês, Lucas Coimbra retornaria ao estabelecimento de Silva Porto, contando que havia perdido todos os membros de sua caravana em uma emboscada, assim como todas as cargas426. Portanto, o comércio sertanejo poderia gerar muitos lucros aos seus líderes, mas que também era envolto de muitos riscos que impactavam diretamente nos sertanejos, e menos nos seus investidores do litoral. As mudanças no equilíbrio político de regiões do interior, assim como as concorrências que foram crescendo por causa das transformações sociais e econômicas em tais regiões, que traziam novos produtos, novos atores, e novas rotas, foram conjugação de fatores para o enfraquecimento da comunidade sertaneja do Bié. *** Nesse capítulo procurei discutir as estratégias dos sertanejos do Bié para manterem, dentro das condições próprias do interior de Angola, um negócio estável e lucrativo. Para tal, era necessário que reconhecessem sua posição subalterna frente a algumas chefias africanas e procurassem compreender e manejar as demandas dessas mesmas chefias por produtos importados, para poderem, assim, organizar suas caravanas e arrecadar os gêneros tão demandados pelos seus armadores de Benguela. Para além dos sertanejos e de suas estratégias, tentei demonstrar o quanto essa história também é da agência dessas chefias africanas, que, assim como o soba Cutumbuca, apresentado na epígrafe dessa dissertação, valorizavam a passagem dos negociantes das caravanas por suas terras, por trazerem produtos importantes para o seu exercício do poder. Dessa forma, esses soberanos também aprenderam a manejar a demanda dos chefes das

425BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, op. cit., p. 104. Nesse apontamento, Silva Porto alega ter aconselhado Lucas Coimbra a esperar chegarem notícias do conflito no Lui, já que o Nyengo era terra sujeita a razias dos kololo com objetivo de expulsarem Imbua e que, por isso, não era lugar para um sertanejo qualquer ir, inclusive porque o povo dessa região não tinha tempo para amanhar [cultivar] terras e montar [caçar] elefantes – conselho que Lucas Coimbra não seguiu. 426Idem, Ibidem, p. 110-111. (24/02/1864). Sobre o episódio, Beatrix Heintze diz que toda a mercadoria de Lucas José Coimbra tinha sido confiscada nesse episódio por causa de indenização pela prisão de um rapaz ocorrida numa viagem anterior. HEINTZE, Beatrix, Pioneiros africanos: caravanas de carregadores na África Centro-Ocidental (entre 1850 e 1890), Lisboa: Editorial Caminho, 2004, p. 208–210. Na sequência dos diários, Silva Porto conta que, após investigação, o próprio Imbua mandou emissários avisarem que o sequestro tinha sido feito sem o seu consentimento, mas que os responsáveis alegavam a falta de filhos de suas povoações, que teriam sido apreendidos por dois sertanejos do Bié. Assim, Imbua recuperou as pessoas sequestradas e procurou entregá-las de volta ao chefe da caravana para que os sertanejos não deixassem de passar por seus domínios por causa do ocorrido. Sobre a alegação do povo do Nyengo, Silva Porto considera que não só era um pretexto falso para o ataque, como também consistia em uma acusação direta, mesmo sem informar nomes, aos dois únicos sertanejos que passavam nas terras de Imbua: Guilherme José Gonçalves e o próprio Silva Porto, iniciando uma série de intrigas entre o primogênito do major e os dois líderes da comunidade sertaneja do Bié. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, op. cit., p. 121-124. (28/03/1864; 03/04/1864).

178 caravanas por gêneros coloniais, para assim permitir o acesso aos produtos importados, tentando manter o controle sobre os termos dos negócios, a partir de sistemas de impostos e monopólios aos quais os negociantes eram obrigados a obedecer – ou que, caso não o fizessem, pelo menos fingir o respeito às leis regionais. Portanto, para além do cálculo do sertanejo de como lidar com todos os fatores envolvidos no investimento, havia simultaneamente, e com valores mercantis tão arraigados quanto o dos sertanejos, o cálculo dos chefes africanos. Era o caso, entre os vários outros levantados ao longo desse capítulo, do soba Muéne Caihombo do Cuchibi, ao reservar o marfim para os seus parceiros brancos. É verdade que a crescente dependência que foi criada por esse comércio conectado ao Atlântico enfraqueceria tais chefias, cuja autoridade se encontraria bastante corroída no final do século, às vésperas da conquista colonial do interior, mas isso não estava no horizonte dos atores históricos da época estudada nesse trabalho427.

427HENRIQUES, Isabel Castro, Comércio e empresários em Angola na 2a. Metade do século XIX, in: Os pilares da diferença: relações Portugal-África séculos XV - XX, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2004, p. 395–398. Sobre as consequências políticas da dependência crescente pelo comércio de longa distância, ver: GORDON, Wearing Cloth, Wielding Guns, p. 18–19; PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, Olivier, Long- Distance Trade and Economic Development in Europe and Black Africa (Mid-Fifteenth Century to Nineteenth Century): Some Pointers for Further Comparative Studies, African Economic History, v. 29, p. 163–196, 2011.

179

Capítulo 3 – A vida em caravana: trabalho e dependência nas sociedades em movimento

Comecemos o capítulo retomando os acontecimentos que fecharam a análise do anterior. Em dezembro de 1863, quando estavam a caminho do Lui, ao passarem pela região do rio Cuchibi, chegou na caravana a notícia do conflito sucessório na corte dos kololo, denominado por Silva Porto de Revolução de Linyanti. Temendo possíveis ataques à comitiva pelos grupos em guerra, os carregadores se recusaram a seguir viagem428. Apesar de todas as dificuldades comerciais que tal decisão dos carregadores trouxeram para o sertanejo, como discutido anteriormente, a caravana não seguiu viagem até ter a certeza do fim da insurreição, o que ocorreu com a tomada de poder por Mpololo429. Apesar da impaciência do sertanejo e de suas reiteradas reclamações, a comitiva só avançou quando os carregadores consideraram o caminho seguro, sabendo muito bem que, em última instância, eram eles que decidiam quando a caravana seguiria viagem, e quando ela pararia. A necessidade da manutenção de uma rígida organização interna de caravanas que chegavam a reunir centenas, ou mesmo milhares de membros, não se resumia, no entanto, a evitar revoltas dos trabalhadores como a descrita. Para além das dificuldades inerentes da atividade do carregamento, consistindo em aguentar fardos pesados por horas de caminhada contínua por trajetos que podiam demorar meses, as caravanas da África Central passavam por terrenos de diversas configurações físicas e jurisdições políticas, controlados muitas vezes por sociedades locais extremamente interessadas no conteúdo das cargas levadas do litoral atlântico para o interior, e vice-versa430. No entanto, o envolvimento com o comércio de longa distância também apresentava grandes oportunidades para os seus agentes. Com o pagamento em tecidos e contarias, mercadorias que serviam como moeda no interior, carregadores que não pertenciam às linhagens dominantes poderiam acumular algum pecúlio, e determinados líderes africanos das caravanas, ao repartirem os ganhos das permutas, chegaram a acumular riquezas suficientes para arrecadarem títulos nobiliárquicos e se tornarem chefes de povoações no Planalto Central, os chamados sekulus431. Esses agentes e o seu cotidiano

428 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume - BIS, p. 92. (29/12/1863). 429 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º volume – BIS, p. 114-115. (01/05/1864). 430 Para além dos vários ataques a caravanas que analisarei ao longo deste capítulo, vale o destaque ao sequestro da caravana de Lucas José Coimbra, apontado no capítulo 2. 431 Sobre esse processo, ver principalmente: HEYWOOD, Linda M., Contested power in Angola: 1840s to the present, Rochester, NY: University of Rochester Press, 2009, p. 1–30.

180 de trabalho, marcado por constantes negociações e conflitos entre os diversos estratos da comitiva, são os temas desse capítulo.

3.1 Os Carregadores em Angola Em meados do século XIX, o comércio de longa distância nos territórios da Angola portuguesa parece marcado por um grande contraste. Por um lado, são recorrentes os relatos de dificuldades nos presídios portugueses instalados ao longo do rio Kwanza para contratação de carregadores para as caravanas necessárias ao transporte das mercadorias do interior para as cidades litorâneas. A grande resistência dos súditos dos sobas avassalados a aceitarem esse trabalho preocupava as autoridades coloniais já no século anterior, com esses carregadores em potencial fugindo de suas casas antes de serem recrutados, ou mesmo durante a viagem, o que resultou no despovoamento de territórios inteiros432. Simultaneamente, em meados do século XIX, Silva Porto afirma comandar uma comitiva formada por cerca de 5000 carregadores para fazer o trajeto entre o Bié e o Lui, consideravelmente mais longo do que a distância da maioria dos presídios e distritos portugueses até Luanda433. Como será detalhado na sequência, fugas, acidentes e até mesmo a morte de carregadores faziam parte do cotidiano árduo das caravanas mambari, mas contrasta intensamente o fato de que, enquanto nas margens do Kwanza os africanos parecem fazer todo o esforço possível para fugir do recrutamento, no Planalto Central milhares de homens, mulheres e crianças eram envolvidos todos os anos na formação das caravanas de longa distância. A explicação tradicional da historiografia para essa diferença na adesão ao recrutamento é baseada em diferenças legais entre as regiões portuguesas, havendo dois regimes de contrato: enquanto em Luanda e nos distritos e presídios do seu interior (Golungo Alto, Pungo Andongo e Cassange) vigoraria um modelo baseado no trabalho forçado dos súditos dos sobas avassalados, haveria um outro modelo em Benguela (valendo também para o , Bembe e Duque de Bragança), baseado no Regimento de 1796, que obrigava os negociantes a alugar os serviços dos carregadores, não sendo possível “tirar” os carregadores dos sobas (com a intermediação e cumplicidade dos

432 MARGARIDO, Alfredo, Les Porteurs: forme de domination et agents de changement en Angola (XVIIe- XIXe siècles), Revue française d’histoire d’outre-mer, v. 65, n. 240, p. 377–400, 1978, p. 380. 433 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 149. (15/01/1853).

181 capitães-mores)434. Como será demonstrado ao longo deste capítulo, tal explicação é artificial e incompleta, sendo insuficiente para compreender as relações de dependência que possibilitavam o recrutamento e disciplinamento dos carregadores nos territórios da atual Angola. *** Mesmo tendo sido o principal meio de transporte de cargas durante a Era Moderna na África Central, a demanda por caravanas de carregadores humanos aumentou consideravelmente na fase do comércio lícito. Alguns autores já apontaram que durante a fase do auge do tráfico de escravos, apesar da importância de carregadores para levar mercadorias do litoral para serem trocadas por escravos no interior, no sentido inverso da viagem, tais trabalhadores não seriam necessários, já que escravos andavam por conta própria e poderiam inclusive carregar eventuais gêneros de exportação comprados no interior, como cera e marfim. Elaine Ribeiro relativiza essa afirmação, questionando a viabilidade dos escravos como possíveis carregadores, tanto pela possível falta de conhecimento específico e condições físicas dos cativos que eram necessárias para a atividade do carregamento, além de dificuldades físicas mais imediatas, como o fato de fazerem parte considerável da viagem acorrentados ou presos a libambos435. Mesmo assim, a reconversão da pauta de exportação angolana para produtos que em geral eram provenientes dos sobados do interior aumentou consideravelmente a demanda por carregadores nos dois sentidos da viagem436. Assim como em outras regiões do continente africano, não havia na África Centro- Ocidental substitutos viáveis aos carregadores no setor de transporte de cargas. Como já

434 TORRES, Adelino, O império português entre o real e imaginário, Lisboa: Escher, 1991, p. 78–79. A listagem dos distritos que obedeceriam a cada um dos modelos é feita por Adelino Torres – no entanto, como será discutido ao longo do capítulo, acredito que, pelo menos no caso de Duque de Bragança, a prática de recrutamento deve ter sido análoga à de Luanda. 435 SANTOS, Maria Emília Madeira, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), in: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da (Ed.), Viagens e Apontamentos de um Portuense em África. Diário de António Francisco Ferreira da Silva Porto, Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1986, v. 1, p. 40; RIBEIRO, Elaine, Barganhando sobrevivências: os trabalhadores da expedição de Henrique de Carvalho à Lunda, São Paulo: Alameda, 2013, p. 150. 436 Para a costa da África Ocidental, Robin Law estima que a conversão do tráfico de escravos pela produção de óleo de palma aumentou consideravelmente os gastos de transporte, que consistiam principalmente no recrutamento e manutenção de carregadores. Comparando os valores médios dos galões de óleo de palma com o de escravos, o autor aponta um aumento de 50 vezes nos custos de transporte, ou seja, sendo necessário 50 vezes mais carregadores para movimentarem cargas de valor equivalente às da era do tráfico. Em regiões com rios navegáveis como a bacia do Níger, segundo o cálculo de Law, a diferença diminui, mas ainda é na ordem de gastos três vezes maiores. LAW, Robin, Introduction, in: LAW, Robin (Org.), From slave trade to “legitimate” commerce: the commercial transition in nineteenth-century West Africa : papers from a conference of the Centre of Commonwealth Studies, University of Stirling, Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2007, p. 10–11.

182 foi comentado no capítulo anterior, a presença endêmica das moscas tsé-tsé em amplas regiões do interior de Angola espalhava a tripanossomíase animal, impossibilitando o uso de carros de boi nesses territórios437. Entretanto, em regiões sem esse parasita, como era o caso de alguns trajetos entre o Bié e Benguela, o uso de carros de boi dos migrantes bôeres do sul de Angola no final do século XIX se mostrou mais lento, mais caro e mais suscetível a desastres naturais, sendo especialmente ameaçado pelo surto de peste bovina (rinderpest) de 1896, no qual boa parte das vacas do Planalto Central foram eliminadas438. O desejo de diminuir a dependência do transporte comercial frente aos carregadores levou a algumas iniciativas do governo colonial em introdução de animais de carga na província, para além da citada acima. No final do século XVIII, o governador D. Miguel António de Melo revogou disposições que proibiam a entrada de cavalos em Angola, com a esperança que esses poderiam ser usados junto a camelos e jumentos no transporte de mercadorias dos sertões. Em relatório posterior, no entanto, o governador lamentou a falta de interesse dos moradores na importação de éguas do Brasil439. Em 1845, o governador Pedro Alexandrino da Cunha registraria no seu relatório do estado da província o envio de camelos para a instalação de uma pequena carreira entre Luanda e Calumbo, para

437 SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos, “Expedição Portuguesa ao Muatiânvua” como Fonte para a História Social dos Grupos de Carregadores Africanos do Comércio de Longa Distância na África Centro- Ocidental, Revista de História, v. 169, 2013, p. 369. A mosca tsé-tsé é um inseto hematófago que é vetor obrigatório de protozoários do grupo dos tripanossomas, que causam em seres humanos a doença do sono e a nagana entre o gado (a epizootia recorrentemente registrada por Silva Porto). Segundo John Ford há 34 espécies, subespécies e raças de moscas tsé-tsé, sendo quatro delas responsáveis por gerar a tripanossomíase em animais domésticos e uma dessas também em humanos. Apesar da seriedade da doença do sono, segundo Jill Dias, no século XIX tal enfermidade só atraiu atenção colonial a partir da década de 1870, com o registro de um primeiro surto da doença em 1873 na região do Golungo Alto. Em Silva Porto não aparece em nenhum momento preocupação da ameaça que a tsé-tsé pudesse oferecer aos humanos e Dias acredita que a ampla circulação de caravanas no Baixo Kwanza foi um dos fatores responsáveis pelo espalhamento das epidemias de doença do sono da década de 1870. FORD, John, The Role of the Trypanosomiases in African Ecology - a study of the tsetse fly problem, Oxford: Clarendon Press, 1971, p. 2–3; DIAS, Jill, Famine and disease in the history of Angola c. 1830-1930, The Journal of African History, v. 22, n. 3, 1981, p. 371-372. 438 HEYWOOD, Linda M., Porters, Trade and Power: The Politics of Labor in the Central Highlands of Angola, 1850-1914, in: COQUERY-VIDROVITCH, Catherine; LOVEJOY, Paul E (Orgs.), The Workers of African Trade, Beverly Hills: Sage Publications, 1985, p. 245. Outro problema do transporte de cargas em Angola era a falta de rios navegáveis por longos trechos, opção que alimentava as expectativas de criação de redes de navegação a vapor no XIX, diminuindo assim a dependência das caravanas. Com o sucesso relativo da construção de linhas de escoamento no norte da colônia pelos rios Kwanza e Bengo, no final do século XIX alguns teóricos coloniais esperavam conectar a essas linhas os rios do interior de Benguela. No entanto, os cursos de água do sul serviam mais de obstáculos do que de ajuda. Os rios Kutato e Keve não permitiam a passagem de embarcações maiores e os rios , Katumbela e Kubal não eram navegáveis. HEYWOOD, Linda M., Production, Trade and Power: the political economy of central Angola, 1850- 1930, Tese de Doutorado, Columbia University, New York, 1984, p. 131–133. 439 COUTO, Carlos, Os Capitães-Mores em Angola no Século XVIII - subsídio para o estudo da sua actuação, Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola, 1972, p. 235–236. Sobre a importação de cavalos do Brasil para Angola, não só para fins comerciais, mas também militares, ver: FERREIRA, Roquinaldo, O Brasil e a arte da guerra em Angola (sécs. XVII e XVIII), Estudos Históricos, v. 39, p. 3– 23, 2007.

183 demonstrar aos moradores locais a utilidade desses animais. No ano seguinte, no entanto, o mesmo governador enviou uma petição ao ministério da marinha e ultramar pedindo que subsidiassem a vinda de jumentos de Cabo Verde, já que apesar dos camelos serem úteis e apreciáveis na colônia, custam muito para serem trazidos das Canárias e demandam grandes dispêndios com habitação, sustento e arreios, sendo impraticáveis para os pequenos proprietários da província, podendo ser usados somente pelo governo. Enquanto isso, jumentos não teriam tais limitações e igualmente demonstravam ser resistentes e úteis para o transporte de cargas na região. Ao longo do século, houve também experimentos com cavalos e, como já dito, com carros de boi440. Além das dificuldades já apontadas, um dos principais fatores que sempre deixaram os animais de carga em segundo plano em Angola era, na realidade, a maior eficiência dos carregadores humanos. Enquanto carregadores podiam fazer várias viagens ao longo do ano por trajetos de diferentes configurações, podendo parar potencialmente em quase qualquer ponto do caminho, animais de carga precisavam de áreas de paragem com disponibilidade de pasto e água, andando em média distâncias menores. No caso dos carros de boi, apesar de terem capacidade individual de cargas bastante superior a dos carregadores (aguentavam cargas cerca de 50 vezes mais pesadas), o seu funcionamento necessitava de estradas com infraestrutura praticamente inexistente em Angola nos oitocentos. Mesmo com a construção de um caminho para os carros de boi de Benguela a Caconda pelos bôeres em 1890, Linda Heywood calcula que o uso dos animais ainda custava mais do que o dobro do valor dos carregadores, além destes serem muito mais rápidos441.

440 AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 8 A e C, 19 de outubro, 1845; AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 10 A, 14 de novembro, 1846. Stephen Rockel aponta para o uso de burros nas caravanas dos nyamwezi da África Oriental que, mesmo não sendo adequados para carregar marfim, eram úteis para outros tipos de fardo como alimentos e tinham relativa resistência à tripanossomíase. Linda Heywood, no entanto, aponta que em Angola os burros se demonstraram pouco resistentes ao rigor do terreno, tendo mais sucesso no uso de cavalos, que por sua vez também demonstrou problemas por causa do desenvolvimento de doença fatal no cérebro desses animais. ROCKEL, Stephen J., Carriers of Culture: Labor on the Road in Nineteenth-Century East Africa, Portsmouth: Heinemann, 2006, p. 54–55; HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 135–136. Elaine Ribeiro aponta para experimentos com dromedários no início do século XX, principalmente acompanhando missões militares, destacando que, desde 1838, Sá da Bandeira defendia o uso de camelos como substituição do serviço de carreto. SANTOS, Elaine Ribeiro da Silva dos, Sociabilidades em Trânsito: os carregadores do comércio de Longa Distância na Lunda (1880-1920), Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 48– 54. 441 Segundo a autora, o custo médio do quilograma carregada pelos carros de boi era de 37 cêntimos de libra, frente aos 12 cêntimos que custava o quilograma dos carregadores. HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 136–139, 143.

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No entanto, não se deve concluir, a partir dessas considerações, de que não existiam animais dentro das caravanas. Para além dos bois e outros animais de criação que o sertanejo recebia como retribuição das quibandas, servindo eventualmente de alimento para o povo da caravana, há ainda a presença de outros animais domésticos que poderiam servir de presentes, como os cavalos que levou para presentear Sekeletu em 1863, e mesmo uma gata que entregou para Mpololo no ano seguinte, para que pudesse caçar ratos. Na mesma ocasião Silva Porto entregou ao regente da terra um casal de cães perdigueiros, sendo o último casal que tinha sobrado dos dois que trouxe na caravana, tendo outros ainda no Bié442. No entanto, principalmente no caso de animais que acompanhavam a caravana por todo o trajeto, como era o caso de cavalos, alguns cuidados eram necessários, principalmente com as infestações de tsé-tsé nas margens do Zambeze. Por esse motivo, em junho de 1853, Silva Porto deixa seus cavalos junto aos povos guete443 para evitar passar com os animais nas áreas infestadas do rio Luangwa (Loanja, em Silva Porto). Procedimentos parecidos eram feitos pelos senhores do país, narrando Silva Porto a cuidadosa operação que envolvia a circulação do gado de Sekeletu pela planície, apelando em certos trechos para marchas noturnas que evitassem o ataque das moscas444. Não só os animais viajavam ao lado do povo da caravana. Com as conexões intensas realizadas pelas caravanas pelo interior da África Central, passageiros invisíveis se espalharam pelas regiões conectadas ao comércio de longa distância, alastrando epidemias mortais por toda as redes mercantis. A mais temida das doenças epidêmicas de Angola era a varíola, cujo espalhamento era diretamente relacionado à circulação das caravanas. Uma das mais violentas epidemias de varíola do século, a ocorrida entre 1864 e 1865, está relatada nos cadernos de Silva Porto, que registra em outubro de 1864 a preocupação com as notícias de Luanda, especialmente por causa de uma caravana do soba do Bié com pelo menos três infectados, que naquele momento estavam incomunicáveis e em tratamento. Em fevereiro do ano seguinte, quando estava em Benguela, o sertanejo

442 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 70; Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 327. (10/10/1863; 25/07/1864). Sobre a retribuição das quibandas, ver capítulo 2. 443 Segundo Jack Hogan, os povos guete são chefiados por Sipatonyana, um chefe toka-leya. Segundo o autor, Silva Porto afirma que as terras dos guete são limítrofes com as dos leya. HOGAN, Jack, The ends of slavery in Barotseland, Western Zambia (c. 1800-1925), Phd Thesis, University of Kent, Canterbury, 2014, p. 89. 444 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 197, 194-195. (30/06/1853; 26/06/1853). Vale destacar que, na primeira viagem de Livingstone para o Barotse, o missionário britânico perdeu todas as suas vacas nas proximidades de Linyanti por causa da tripanossomíase. LIVINGSTONE, David, Missionary Travels and Researches in South Africa, London: John Murray, Albemarle Street, 1857, p. 80–83.

185 relatou grande dificuldade de vender seus escravos para os moradores da cidade por causa da epidemia, tendo nessa época em sua caravana um sujeito claramente infectado e outros cinco escravos que se queixavam de dor no peito. Na mesma época, na Catumbela, principal ponto de passagem das caravanas que iam para a cidade, a mortandade era tão alta que estavam queimando os cadáveres dos falecidos para evitarem mais contágios. Em outras passagens, Silva Porto relata a agressividade desse mesmo surto no Humbe e a chegada desta epidemia no Barotse em novembro de 1865445. Além de espalharem, com frequência os membros das caravanas eram vítimas das enfermidades. Para além de doenças infecciosas mais conhecidas, tornou-se especialmente grave para as caravanas o ataque das bitacaias, ou bicho-de-pé, inseto parente da pulga que geravam feridas nos pés descalços dos carregadores e causavam a tungíase446. Apesar desses inconvenientes acompanhantes nas viagens, os carregadores de longa distância foram responsáveis por um fluxo inaudito de mercadorias do interior para o litoral, e vice-versa. Para atender essa demanda, Alfredo Margarido estima que, no final do século XIX, por volta de 200 000 carregadores eram necessários anualmente para levar os produtos de exportação para os principais portos angolanos, o que equivaleria a 4% da população total estimada para os territórios da atual Angola. A partir de relatório colonial de 1907, Heywood aponta que foram contados 200 000 carregadores que passaram pela principal rota da borracha vinda do planalto ao longo de um ano, o que é mais impressionante ao se considerar que a população total do planalto é estimada para essa época em 500 000, sendo provavelmente 140 000 os homens que seriam capazes de executar tal tarefa447. Uma estimativa mais recente realizada por Paulo Teodoro de Matos e Jelmer Vos para a população de Angola em 1800, portanto para período anterior aos

445 CANDIDO, Mariana, Trade, Slavery, and Migration in the Interior of Benguela: The Case of Caconda, 1830-1870, in: HEINTZE, Beatrix; VON OPPEN, Achim (Orgs.), Angola on the Move: Transport Routes, Communications and History - Angola em Movimento: Vias de Transporte, Comunicação e História, Frankfurt: Lembeck, 2008, p. 72–73; DIAS, Famine and disease, p. 359, 362–363. BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 358-359, 396, 419. (18/10/1864; 01/02/1865; 28/03/1865). Sobre a epidemia no Humbe, ver: BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 46-48. (13/03/1847). Sobre a chegada do contágio no Barotse, ver: BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 512-513. (26/11/1865). 446 HEINTZE, Beatrix, Pioneiros africanos: caravanas de carregadores na África Centro-Ocidental (entre 1850 e 1890), Lisboa: Editorial Caminho, 2004, p. 362–363. Segundo Jill Dias, a tungíase foi reintroduzida em Angola pelos ingleses em 1872 e chegou a ser a segunda maior causa de mortes no hospital de Luanda no segundo semestre de 1877, perdendo somente para a varíola. DIAS, Famine and disease, p. 368. 447 É difícil calcular quantas vezes um mesmo carregador passava pelo posto colonial no mesmo ano, mas de qualquer forma é notável esse registro de um evidente envolvimento de parte considerável da população masculina do Planalto Central de Angola para tornar possível tal cifra. MARGARIDO, Les Porteurs, p. 389– 397; HEYWOOD, Porters, Trade and Power, p. 261–262.

186 grandes booms de exportação de gêneros ao longo do XIX, define a cifra impressionantemente similar de 193.000 trabalhadores envolvidos com o comércio, cerca de 10% da população economicamente ativa apontada por esses autores448. A proximidade dos números de Matos e Vos com os de Margarido, em um período em que a demanda por carregadores era bem menor nos faz desconfiar de que as estimativas tradicionais de Margarido foram relativamente conservadoras. Ao mesmo tempo, tal constatação parece consistente com o argumento de Stephen Rockel, para o comércio da África Oriental, de que a ampliação das exportações aumenta o mercado de trabalho dos carregadores, não sendo, portanto, causada por um empobrecimento rural que obrigou esses homens a se juntarem às caravanas449. Mesmo envolvendo tanta gente, o recrutamento de carregadores em Angola foi um processo historicamente marcado por conflitos. A principal fonte de carregadores era de dependentes dos sobas avassalados, que eram obrigados a ceder trabalhadores para a autoridade colonial portuguesa instalada na região, geralmente o capitão-mor. O fornecimento de carregadores e soldados era um dos compromissos dos sobas impostos pelos tratados de vassalagem, que supostamente ofereceriam a esses chefes africanos proteção militar e reconhecimento do status jurídico da liberdade de seus súditos não escravizados. Para reunirem os carregadores exigidos pelos capitães, muitas vezes os sobas tinham que se utilizar de ameaças, castigos e multas contra seus súditos, causando a já comentada aversão a esse tipo de trabalho450. Os sobas avassalados eram obrigados a disponibilizar carregadores duas vezes ao ano, alguns mensalmente, de acordo com o número de habitantes por aldeia. Assim, soberanos que tivessem mais súditos forneciam um potencial maior de carregadores aos sertanejos, enquanto os sobados menores tinham uma posição mais frágil, podendo serem derrubados por conluios entre a administração colonial e as elites locais, caso não cumprissem as obrigações do carreto. A extorsão e corrupção dos capitães-mores em conluio com os sertanejos, como já discutido no capítulo

448 MATOS, Paulo Teodoro; VOS, Jelmer, Demografia e relações de trabalho em Angola c. 1800: um ensaio metodológico, Diálogos, v. 17, n. 3, p. 807–834, 2013, p. 827–828. 449 ROCKEL, Carriers of Culture, p. 88; HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 261. A título de comparação, estimativas da África Oriental para a segunda metade do XIX calculam que cerca de 90 000 homens nyamwezi se envolveram com o comércio de longa distância, valores que Rockel critica por desconsiderar várias rotas interioranas. ROCKEL, Carriers of Culture, p. 33. 450 HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 65; FERREIRA, Roquinaldo, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the era of the slave trade, New York: Cambridge University Press, 2012, p. 58; MARGARIDO, Les Porteurs.

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1, era bastante recorrente na região e intensificava a rebeldia contra a violência dos recrutamentos451. Para além das revoltas e fugas, uma estratégia crescente de resistência ao recrutamento de carregadores nas terras avassaladas foi a emergência de novas identidades africanas. Adotando uma série de práticas culturais europeias, incluindo o uso de sapatos fechados, alguns dos habitantes do vale do rio Kwanza passaram a se identificar como camundeles, o que literalmente era entendido como “pessoa branca”. Tais sujeitos negavam sua posição como súditos dos chefes locais, praticando um estilo de vida assemelhado aos portugueses e sendo extremamente ativos na atividade comercial e na intermediação com os sobas. Assim, mantinham papel fundamental para o exercício administrativo regional, mesmo que frequentemente fossem vistos com irritação pelos funcionários administrativos por causa de sua excessiva autonomia452. O seu posicionamento específico no arranjo social fazia com que os camundeles negassem suas obrigações frente aos sobas, recusando assim a obrigação ao carreto. Não à toa, quando o alferes Manoel de Castro Francina critica as atitudes dos meirinhos camundeles, refere-se a tais oficiais como “um bando de carregadores que, imbuídos com a ideia de brancura, se empenhavam a tributar como soldados”453. A recusa das populações dos sobados avassalados ao trabalho de carreto preocupava as autoridades portuguesas desde muito antes da ascensão do comércio lícito. Desde o regimento do governador Tristão da Cunha de 1666, preocupavam o que eram considerados excessos dos capitães-mores, o que ameaçava a regularidade do fluxo comercial com a falta de trabalhadores e fuga dos súditos aliados para terras dos sobas rivais. O próprio regimento prevê a proibição do serviço gratuito de trabalhadores para os negociantes nas feiras portuguesas, sendo medida que, no entanto, não foi aplicada454. No entanto, na segunda metade do século XVIII, com o pombalismo, novas iniciativas partiram do governo central com o intuito de cercear os excessos dos administradores

451 HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 264–265; RIBEIRO, Barganhando sobrevivências, p. 84–87; VILAS BÔAS, Felipe Pires, Portugueses, moradores e Sobas em Golungo Alto, Angola: negociação e conflito em narrativas de militares, (c.1840-c.1860), Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018, p. 107–109. 452 VILAS BÔAS, Portugueses, moradores e Sobas em Golungo Alto, Angola, p. 94–98. A referência da expressão "novas identidades africanas" é ao estudo clássico de Jill Dias: DIAS, Jill, Novas identidades africanas em Angola no contexto do comércio atlântico, in: BASTOS, Cristiana; ALMEIDA, Miguel Vale de; FELDMAN-BIANCO, Bela (Orgs.), Trânsitos Coloniais: Diálogos Críticos Luso-Brasileiros, Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 315–343. 453 Francina, 1864 apud VILAS BÔAS, Portugueses, moradores e Sobas em Golungo Alto, Angola, p. 102. 454 COUTO, Os Capitães-Mores em Angola, p. 230–231; MARGARIDO, Les Porteurs, p. 378.

188 locais. Prevendo tanto mecanismos para punição dos capitães, quanto formas de assegurar o pagamento dos carregadores, a intenção de combater abusos para permitir um fluxo comercial constante continua como lógica principal, além do temor de que essas violências ameaçassem a segurança das posições militares lusitanas no interior. Como já comentado no capítulo 1, o governo geral de Angola temia especialmente as ligações entre sertanejos e administradores de baixa patente, tentando controlar ao máximo as ações dessas malhas de agentes luso-africanos455. António Saldanha da Gama, em suas memórias já comentadas no capítulo anterior, escritas em 1814, fez considerações sobre o ódio e repulsa dos africanos ao serviço de carregador, o que considerava um empecilho para o desenvolvimento da agricultura por causa da fuga de seus trabalhadores em potencial. A publicação dessas memórias em 1839 estimulou o ministro e secretário de estado da marinha e ultramar, o então Visconde de Sá da Bandeira, a abolir o serviço de carregadores em Angola por portaria legislativa assinada pela rainha em 31 de janeiro do mesmo ano456. A reação na província foi ágil. Em junho do ano seguinte, o governador Antonio Manuel de Noronha foi substituído por uma junta governante que, aliada aos interesses dos comerciantes locais, imediatamente modificou o decreto de Lisboa para na prática anulá- lo, o que foi confirmado por novo governador em decreto de 10 de outubro de 1840457.

455 COUTO, Os Capitães-Mores em Angola, p. 232–234; MARGARIDO, Les Porteurs, p. 378–382. No trecho citado do texto de Carlos Couto é reproduzido um excerto do relatório de 1802 do governador de Angola D. Miguel António de Melo, no qual afirma que os feirantes em Benguela tinham o costume de ajustar-se diretamente com os carregadores ou com os sobas, sem recorrerem aos capitães mores, enquanto no sertão de Angola (do reino de Angola) se observava o contrário, o que procurou “emendar sem fructo”. É possível que esse seja um dos primeiros esforços de consolidar a interpretação da diferença entre um “modelo de Luanda” e “modelo de Benguela”. 456 MARGARIDO, Les Porteurs, p. 382–385; GONÇALVES, Ivan Sicca, Apontamentos Vindos dos Sertões: negociação, comércio e trabalho nas Caravanas de António Francisco Ferreira da Silva Porto (década de 1840), Campinas: Coleção Monografias IFCH/UNICAMP, 2019, p. 59–60; COUTO, Os Capitães-Mores em Angola, p. 236–237. Em sua interpretação de clara corroboração do colonialismo português, Couto chega a afirmar que a decisão de Sá da Bandeira nada inovava juridicamente sobre o assunto, já que os regulamentos dos governadores pombalinos já antecipavam, na sua opinião, a política abolicionista da segunda metade do século XIX. Para o autor, a prática se mantinha por causa das prepotências e corrupção dos feirantes. A interpretação de uma tensão constante entre o imediatismo dos agentes da colônia frente aos ideais de governadores e políticos da metrópole marca interpretações clássicas do colonialismo português, mesmo entre os seus críticos. O próprio título do livro de Adelino Torres evidencia esse raciocínio: "O Império Português entre o Real e o Imaginário". MOURÃO, Fernando Augusto Albuquerque, As duas vertentes do processo no século XIX: idealismo e realismo, in: SANTOS, Maria Emília Madeira (Org.), Actas da 1a RIHA - Relação Europa-África no 3.o Quartel do Século XIX, Lisboa: IICT, 1989, p. 73–81; TORRES, O império português entre o real e imaginário, p. 79–82. Para uma leitura mais atualizada das tensões e disputas internas entre os vários agentes envolvidos na colonização em Angola nos séculos XVIII e XIX, inclusive contextualizando-os nas malhas do Atlântico Sul, ver: FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World. 457 MARGARIDO, Les Porteurs, p. 385–386. AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 18 A, 9 de novembro, 1852. Erroneamente Alfredo Margarido afirma nesse trecho que a anulação do governador foi feita em decreto de 1846 e não de 1840.

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Mesmo com esse retrocesso, a notícia da proibição se espalhou pelo interior e ampliou a recusa dos africanos avassalados a servirem como carregadores. Em janeiro de 1840, os moradores do presídio de Pungo Andongo enviaram para Luanda um abaixo assinado pedindo carregadores ao governo central pois, diante das novas regras, não conseguiam mais gêneros para permutas e nem mesmo alimentos458. Por sua vez, o comandante de Duque de Bragança alegou que não conseguia cumprir as instruções de fomento agrícola de incentivo às plantações de cana de açúcar, algodão, café, arroz, trigo e tabaco pois os sobas e os seus súditos supostamente não tinham interesse nas atividades agrícolas e depois de terem sido aliviados do serviço de carregadores, “se entregaram ao descanso”, não conseguindo o comandante recrutar trabalhadores. O chefe de Ambaca, na mesma época, reclama que os fardos de cera e marfim se acumulavam em seu território sem ter quem os levasse para o litoral. Reclamação semelhante fez o chefe do distrito do Golungo Alto, que envia relação nominal dos fardos de negociantes com destino a Luanda e à feira de Cassange, todos eles parados sem carregadores459. No Golungo Alto, inclusive, há o registro de ocasião em que um chefe teria sido apedrejado pelos súditos quando este tentou recrutar carregadores460. A nova legalização do serviço de carreto não durou por muito tempo. Em meio ao debate abolicionista de meados do século XIX, quando foram promulgadas as primeiras leis de emancipação dos escravos nas colônias africanas, um novo decreto, em novembro de 1856, proibiu novamente o serviço de carregadores em Angola. Ocupando pela 5ª vez o cargo de ministro e secretário de estado dos negócios da marinha e ultramar, Sá da Bandeira também foi o responsável por esse novo decreto que introduzia um raciocínio distinto à lógica vigente até então para o controle dos abusos dos administradores. Em seu preâmbulo fica introduzido o novo argumento para a necessidade de abolição desta prática: “[...] Atendendo a que o direito, que pela Carta Constitucional da Monarquia pertence a todos os portugueses, sem distinção de raça, cor,

458 AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 3, 7 de janeiro, 1840. 459 AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 3, 29 de janeiro, 1840. O caso de Duque de Bragança é interessante pois contradiz a avaliação de Saldanha da Gama e o argumento abolicionista de que o carreto retirava mão de obra em potencial da agricultura. 460 FERREIRA, Roquinaldo, Dos sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito em Angola 1830-1860, Luanda: Kilombelombe, 2012, p. 293–294. Esse tipo de reação reforçou, mesmo diante dessa conjuntura de nova legalização do carreto, o antigo receio do governo central com os abusos de funcionários locais. Tal preocupação está expressa em ofício do governador de Angola enviado em 1850, denunciando o fato dos comandantes de presídios e distritos estarem pedindo quantidades excessivas de súditos dos sobas vassalos em relação ao tamanho das aldeias, pedindo que esses oficiais produzissem listas nominais dos carregadores com referências de onde foram tirados, com que destino viajariam e se foram pagos. AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 16, 20 de abril, 1850.

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ou crença religiosa, de poderem dispor de seu próprio trabalho e de sua própria indústria pela maneira que melhor lhes convier, deve ser mantido aos ditos negros livres; (...) Atendendo a que o argumento que se tem apresentado, para impedir a extinção de semelhante vexame, de que se os negros não forem obrigados ao serviço de carregadores, cessará inteiramente o comércio do interior da Provincia (...) é um pretexto que se deve considerar da natureza d'aqueles que sempre foram empregados pelos defensores do estado da escravidão, contra os adversários d'esta iniquidade [...]”461 Portanto, a apropriação política dessa pauta pelos abolicionistas associou as alegações de impossibilidade de abandono do sistema de carreto com os defensores da escravidão462. Além disso, também colocou como pressuposto que o dito sistema ofendia o princípio constitucional de igualdade entre os súditos de Portugal, sem distinção de “raça, cor ou crença religiosa”, já que o trabalho forçado, entre suas iniquidades, podia sujeitar até mesmo homens livres a esse tipo de regime463. A presença de pessoas livres exercendo o trabalho de carregadores levanta outras questões para além da igualdade jurídica entre os súditos de Portugal. Com o aumento do

461 PORTUGAL. DECRETO de 3 de novembro de 1856. Legislação: Trabalhadores e Trabalho em Portugal, Brasil e África Colonial Portuguesa. Base de Dados, CECULT (IFCH-UNICAMP) e CEDIS (FD-UNL), www.ifch.unicamp.br/cecult/lex. Acessado em 09/01/2021. 462 SOUZA, Maysa Espíndola, A Liberdade do Contrato: o trabalho africano na legislação do Império Português, 1850-1910, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017, p. 77–78. Texto gentilmente cedido pela autora. MARGARIDO, Les Porteurs, p. 386–387; GONÇALVES, Apontamentos Vindos dos Sertões, p. 61–63. Como em outros projetos liberais, havia a expectativa de que a inserção desses sujeitos no trabalho livre os tornaria mais aptos a acumularem riquezas, ampliando a legislação de cobrança de impostos por dízimo a serem pagos com dinheiro ou gêneros. Dois anos mais tarde o governador de Angola foi repreendido pelo ministério por não combater a prática, havendo alegação do governador de que havia relutância dos africanos de trabalharem sem coação. A réplica do governo, assinada por Sá da Bandeira, foi incisiva na defesa da superioridade do trabalho livre sobre o escravo e de que haveria formas indiretas de compelir os indígenas ao trabalho, incluindo construção de casas e uso de vestimenta à moda europeia, missionação cristã, pagamento em dinheiro, entre outras estratégias. SOUZA, A Liberdade do Contrato, p. 78–80. 463 O debate político no final do século XIX classificou as políticas liberais como artificiais e idealistas frente à realidade das colônias, tendendo a distorcer os verdadeiros contornos das propostas liberais para emancipação da escravidão e colonização do continente africano. Sem dúvida é notável o princípio de igualdade entre os súditos portugueses independentemente de suas raças, o que seria diametralmente o oposto da política colonial do século XX baseada no Estatuto do Indigenato, no entanto, como aponta Ana Cristina Nogueira da Silva, deve-se lembrar que por boa parte do século XIX as populações súditas de Portugal se resumiam aos moradores de enclaves na África e Ásia bastante menores do que o território colonial do século XX e que o projeto colonial dos liberais tinham grandes apostas no potencial civilizador da introdução do trabalho livre e de medidas como as previstas na nota anterior. SILVA, Ana Cristina Fonseca Nogueira, Constitucionalismo e Império: A cidadania no Ultramar português, Coimbra: Almedina, 2019, p. 54– 64. Como bem mostra Leo Spitzer, as derrtotas dos projetos liberais concernentes a assimilação e projeto civilizatório no final do século XIX estiveram longe de se resumir ao império colonial português. SPITZER, Leo, Vidas de Entremeio: Assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental 1780-1945, Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p. 147–224.

191 tráfico atlântico na segunda metade do século XVIII, muitos habitantes dos sobados avassalados, mesmo nascido livres e que, por esse motivo, não poderiam ser escravizados pelos portugueses, acabaram sendo enredados nas malhas do cativeiro. Roquinaldo Ferreira analisa um sequestro ocorrido nas imediações de Benguela em 1789, no qual o sertanejo Manoel José da Cruz, em conluio com o governador local, capturou 25 de seus carregadores, vendendo-os como escravos para um comerciante da cidade. Sendo súdito do soba Bailundo, ou seja, provenientes de terras avassaladas, dois companheiros fugitivos apelaram sem sucesso pelo direito à liberdade de seus colegas. Episódios deste tipo, apesar do apoio do governador de Benguela, preocupavam as autoridades e sertanejos do interior por causa de possíveis represálias contra as feiras, em à mercê dos grandes sobados do interior464. Portanto, mais do que só reconhecer os estatutos jurídicos desses trabalhadores, a ligação dos membros das caravanas, sendo homens livres ou escravizados, com os seus sobas precisava ser respeitada para evitar desentendimentos na complexa diplomacia com os mandatários aliados de Portugal, como foi mostrado no capítulo 1 nos casos da Guerra do Canduco e do sequestro perpetrado por António Francisco das Chagas. Além de argumentação de cunho humanitária, os liberais da metrópole viam outro grande problema na compulsão de africanos ao serviço de carreto. Desde as memórias de Saldanha da Gama, consolidava-se no meio liberal a consideração de que o trabalho forçado do carreto impedia o fomento à agricultura em Angola, não só pelo dispêndio de mão de obra com serviços tão brutais, mas porque criava entre os povos das regiões que aplicavam tal regime uma aversão ao trabalho. Ao apelarem para o que Valentim Alexandre chamou de “mito do Eldorado”, no qual os portugueses defendiam a existência de uma infinidade de riquezas em suas colônias que nunca foram exploradas, os liberais defendiam que o fim do carreto era passo fundamental para destruir elementos das relações de trabalho arcaicas que impediam o desenvolvimento agrícola da colônia465. Até este momento, nos detemos sobre o que foi classificado como o “modelo de Luanda”. A base da argumentação de que em Benguela teria sido desenvolvido um outro modelo de recrutamento está na promulgação, em 1796, de um regimento do governo local.

464 FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 52–58. 465 ALEXANDRE, Valentim, A África no imaginário político Português (séculos XIX-XX)., Penélope - O Imaginário do Império, n. 15, p. 39–52, 1995; RIBEIRO, Barganhando sobrevivências, p. 79–82. Considerações semelhantes foram feitas para a África Oriental, afirmando que as caravanas denotavam atraso e um desperdício anacrônico de força de trabalho, cf. ROCKEL, Carriers of Culture, p. 5. Vale destacar o contraste desses argumentos com a reclamação supracitada do comandante de Duque de Bragança à abolição de 1839, na qual o oficial alega que a falta da obrigação do carreto fragilizou relações hierárquicas, diminuindo, portanto, os instrumentos de intimidação para forçar os africanos a trabalharem na agricultura. AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 3, 29 de janeiro, 1840.

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Produzido em meio à legislação para cercear os abusos dos capitães-mores, tal norma obrigava que os negociantes pedissem aos sobas os seus filhos para servirem de carregadores, com a convenção do preço de pagamento por carga. Assim, portanto, não caberia ao administrador colonial forçar os chefes africanos a liberarem seus filhos, e sim ao sertanejo negociar diretamente com a chefia. Como já explicado no capítulo 1, após as grandes operações militares da Guerra do Bailundo, o poderio e interferência militar dos portugueses no Planalto Central foram diminuindo ao longo das décadas, aumentando os graus de autonomia das autoridades africanas avassaladas. No sentido de fornecimento de carregadores, os portugueses nunca tiveram o mesmo nível de obediência dos sobas dessa região, se comparados ao interior de Luanda, tendo somente alguns registros de sobas das proximidades de Benguela que forneciam trabalhadores para trabalhos públicos e trabalho nas minas de sal e cal do Lobito466. Na realidade, mais do que a negociação direta com os sobas, a principal estratégia para os sertanejos formarem caravanas no Planalto Central consistia na intermediação com pombeiros. Tais agentes, já bastante presentes nos capítulos anteriores, tornaram-se fundamentais para o comércio itinerante em Angola a partir do século XVIII. Sendo em geral homens negros com ligações com os sertanejos, os pombeiros tinham maior facilidade de atuar fora das áreas das feiras oficiais lusas, espalhando os produtos vindos do atlântico aos arrepios da fiscalização colonial e sendo responsáveis pelo fornecimento de grandes contingentes de cativos para as malhas do tráfico. Para manterem suas atividades, tais sujeitos manipulavam marcadores sociais e culturais para se distinguirem de suas vítimas e, assim como os camundeles, eram conhecidos pelo uso de sapatos, sendo por isso entendidos como “brancos” pelos povos do interior467. No século XIX não existiam mais proibições portuguesas para circulação de brancos no interior, no entanto, a importância dos pombeiros para os seus parceiros de negócio não diminuiu. Mesmo com acesso ao investimento das casas comerciais do litoral, raramente um sertanejo tinha mais de 50 carregadores a seu dispor entre seus escravos pessoais, os quimbares. Para manter o funcionamento de suas lavouras e, ao mesmo tempo, conseguir administrar várias caravanas simultâneas, cada uma delas podendo se envolver em viagens de mais de 100 dias, como mostra o padrão da tabela 5 do 2º capítulo, era indispensável ao sertanejo a contratação de pombeiros. Para compensar viagens tão longas

466 COUTO, Os Capitães-Mores em Angola, p. 235; HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 116– 118. 467 FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 59–60.

193 e dispendiosas, era necessário que cada caravana sertaneja tivesse alta capacidade de carregamento, sendo inviável o empreendimento sem os carregadores extras que esses intermediários podiam arregimentar468. Para utilizar do serviço de pombeiros, o sertanejo dividia os fardos de tamanhos pré-definidos, os banzos, entre os vários intermediários, de acordo com a quantidade de carregadores cada pombeiro contratava junto de si. Recebendo esses banzos de forma subsidiada, os pombeiros poderiam trocar por conta própria parte desses fardos em suas viagens secundárias, após a entrega da fatura principal aos soberanos dos pontos finais da viagem pelo sertanejo, sendo responsabilidade do pombeiro prestar contas no seu retorno dos fardos trocados sob sua responsabilidade. Cada banzo tinha um valor aproximado de um escravo ou de uma ponta de marfim de lei, sendo composto principalmente por fazendas, mas também geralmente contendo contarias, pólvora ou outros gêneros, e ficando sob a responsabilidade nominal de cada carregador escolhido pelo pombeiro469. Geralmente pombeiros escolhiam entre seus parentes, dependentes ou mesmo escravos, um pequeno conjunto de carregadores, sendo o pagamento individual do pombeiro definido de acordo com o número de contratados, assim como a quantidade de banzos sob sua responsabilidade. Além disso cada carregador recebia um pagamento individual pela tarefa da viagem, efetuado antes da saída da comitiva, independentemente da duração da viagem. No entanto, a duração da viagem interferia no pagamento individual das chamadas rações, que eram pequenas quantidades de gêneros, distribuídas periodicamente pelos chefes da caravana de forma individual para pombeiros e carregadores, para assim permitir a alimentação durante o caminho, consistindo por vezes em alimentos, ou mesmo em tecidos ou contarias, que serviam de moedas para que os membros da caravana pudessem comprar mantimentos nos entrepostos de paragem470. Dentro dessa organização, é difícil, senão impossível, mensurar se a maioria dos membros dessas caravanas eram sujeitos livres ou escravos. A contabilidade de fontes como o livro de cargas de Silva Porto, que será detalhado na sequência, não revela os estatutos jurídicos

468 SANTOS, Maria Emília Madeira, Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX), Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 16–17. 469 HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 292; SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 87– 89, 102. Ver no anexo IV a descrição da composição dos banzos, incluindo os diversos gastos previstos em cada carga. 470 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 9. (16/11/1860); SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 87.

194 dos membros das comitivas, e os relatos cotidianos de Silva Porto se referem tanto a escravos quanto a homens livres durante as viagens471. Para analisar os padrões de organização interna analisarei o Livro de Cargas de Silva Porto, documento de uso pessoal do sertanejo, no qual organizava as informações sobre os carregadores de cada viagem sua. Infelizmente, o livro de cargas disponível no acervo da Sociedade de Geografia de Lisboa não corresponde ao recorte cronológico da nossa pesquisa, registrando informações de comitivas que viajaram entre 1879 e 1889. Mesmo assim, levando em conta as importantes transformações que o comércio caravaneiro sofreu no interior de Angola após o boom da borracha, acredito que muitos padrões organizativos das caravanas sertanejas se consolidaram no período anterior, abarcado por esta pesquisa, podendo estimar que os dados das viagens do fim da carreira de Silva Porto podem ser análogos ao período em meados do século. Esse documento consiste em uma longa listagem nominal de todos os carregadores que participavam de cada viagem desse período, informando o nome do pombeiro responsável por cada um, o local de origem, o número de referência que o sertanejo dava para cada fardo individual, assim como a descrição do conteúdo da carga, discriminando os objetos e o peso. Além disso, tem as anotações do sertanejo feitas ao longo da viagem, como a informação sobre já ter sido pago cada carregador específico, além de outras observações em caso de morte ou roubo do conteúdo472. Com esse documento podemos perceber alguns padrões que já foram apontados pela historiografia. Inicialmente, que os pombeiros em geral traziam consigo quantidades modestas de carregadores – há casos de pombeiros com mais de 20 ou 30 carregadores,

471 Trabalhadores escravizados e penhorados sem dúvida eram fontes fundamentais de dependentes a serem reunidos pelos pombeiros do Planalto Central, sendo possivelmente parte considerável da composição de cada caravana. HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 119–120. Em levantamento histórico e historiográfico bastante erudito, Rockel aponta, no entanto, o quanto o imaginário imperialista europeu reverberou a imagem de grandes caravanas de escravos atravessando o continente africano, povoando o discurso abolicionista, principalmente nas campanhas contra os traficantes árabes da costa Índica do continente. No entanto, esse autor defende que via de regra a expansão do comércio caravaneiro na África Oriental significou a formação e fortalecimento de um mercado de trabalho livre, sendo a maioria das caravanas africanas chefiadas e compostas por sujeitos livres. ROCKEL, Carriers of Culture, p. 12–23. Para a África Ocidental, no entanto, mesmo que críticas análogas possam ser feitas sobre o imaginário abolicionista sobre caravanas africanas, parte considerável dos carregadores das caravanas, tanto as reunidas por corveia nos presídios do interior de Luanda, quanto as formadas por pombeiros, parecem ter tido considerável composição de mão de obra escrava, mesmo que acompanhados de muitos sujeitos livres em busca de ascensão. Na realidade, a imagem dos abolicionistas portugueses de homens africanos livres sendo forçados a um trabalho análogo ao de escravos possa ser pouco fiel às dinâmicas que ocorriam de fato dentro das caravanas que atravessavam o interior angolano durante o século XIX. HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 262–263; HEYWOOD, Porters, Trade and Power, p. 248–249. 472 SGL, Res. Ms. 2 - B - 31. Silva Porto, António Francisco Ferreira. Livro de Cargas. 1879-1889. Ao distribuírem as cargas e ficarem responsáveis pela gestão de seus carregadores, os pombeiros em si não carregavam carga nenhuma.

195 mas são mais frequentes aqueles que reuniam pequenos grupos de até 10 carregadores473. Como já comentado no capítulo anterior, por vezes as comitivas para Benguela poderiam ser menores do que aquelas que se destinavam para leste, no caso da necessidade de trocar os gêneros na cidade o mais cedo possível. Nas viagens do final da carreira de Silva Porto, o sertanejo registra comitivas com poucos pombeiros, por volta de 10 por comitiva; no entanto, acredito que para o período do auge do comércio sertanejo, nas décadas de 1850 e 1860, o padrão deveria ser de comitivas bem maiores, principalmente no trajeto do Bié para o Lui474. Em 1868, por exemplo, Silva Porto, ao retornar do Barotse, espera o pagamento de 90 pombeiros475. Levando em conta que o livro de cargas de Silva Porto só dá o nome do carregador responsável pelo fardo, e esse geralmente podia ser acompanhado por esposas, crianças e escravos, pode-se entender como as caravanas chegavam a alcançar milhares de membros, tendo registros, como discutiremos adiante, de comitivas de 3000 ou até 5000 membros. Portanto, as caravanas do comércio de longa distância em geral se organizaram internamente de acordo com estruturas sociais africanas, as quais se baseavam em relações de dependência e responsabilidade. Quando estrangeiros passam a se envolver mais diretamente nessas redes comerciais, como foi o caso dos sertanejos, eles tiveram que se adaptar e obedecer às regras que regiam tais comitivas. No entanto, o acesso direto que esses agentes tinham aos investimentos das casas comerciais dos portos coloniais fez com que sertanejos pudessem arregimentar para si uma quantidade inaudita de pombeiros, possibilitando a formação de caravanas muito maiores do que era o comum entre os negociantes africanos da região, mesmo frente às caravanas dos sobas476. Como discutimos até agora, essa excepcionalidade das caravanas sertanejas não dispensou os sertanejos de submeterem-se às lógicas locais de dependência que organizavam tais comitivas, não

473 Esse padrão de pulverização de pequenas quantidades de mercadorias nas mãos de cada pombeiro já existia na era do tráfico, com a observação de que, nesse caso, as “mercadorias” espalhadas nas mãos de vários negociantes africanos eram em geral pessoas escravizadas. FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 62–63. 474 SGL, Res. Ms. 2 - B - 31. Silva Porto. Livro de Cargas. 475 BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 29. (26/04/1868). 476 ROCKEL, Stephen J., Decentering Exploration in East Africa, in: KENNEDY, Dane (Org.), Reinterpreting Exploration: the West in the World, Oxford: Oxford University Press, 2014, p. 161. Beatrix Heintze faz um breve inventário dos tamanhos registrados de caravanas para as várias regiões de Angola, sendo via de regra na ordem de dezenas ou no máximo algumas centenas de pessoas, cf. HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 280–282. Sobre a importância e impacto do crédito estrangeiro para a expansão do comércio caravaneiro em moldes africanos, ver o estudo basilar de Joseph Miller: MILLER, Joseph C., Way of death: merchant capitalism and the Angolan slave trade, 1740-1830., Madison, Wis.: Univ. of Wisconsin Pr., 1988, p. 173–206, especialmente 174-175; HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 129–130.

196 podendo negociar sem o recrutamento de pombeiros477. Por este motivo, discordo da separação proposta por Isabel Castro Henriques entre caravanas europeias e caravanas africanas como se fossem regidas por princípios organizativos diferentes. Para além da distinção evidente de quem chefiava a caravana e das dimensões da comitiva, não me parece ser tão distinta a organização interna de caravanas chefiadas por europeus frente às caravanas de negociantes africanos478. Mesmo as expedições científicas europeias que se multiplicaram na África Central durante a 2ª metade do século XIX, chefiadas muitas vezes por sujeitos que nunca tinham antes pisado no continente, dependeram do sistema caravaneiro africano. Não só as rotas de longa distância foram muitas vezes as referências dos trajetos das viagens que supostamente desbravavam o continente, mas os carregadores que formavam suas comitivas frequentemente tinham experiência pregressa nas caravanas comerciais. Especialmente importantes foram os intermediários, muitas vezes negociantes, fossem eles europeus, africanos ou luso-africanos, que serviram não só para lidar com os membros das comitivas, mas eram também guias, informantes ou intérpretes, sabendo transitar entre os códigos da sociedade colonial e das autoridades africanas autônomas479. Entender os mecanismos de organização interna dessas caravanas, portanto, é mais fundamental do que simplesmente associar o recrutamento de carregadores no Planalto Central com um regime de liberdade em oposição à corveia cobrada nas regiões a norte da

477 HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 66–68. Isabel Castro Henriques, a partir dos relatos de László Magyar, descreve a intermediação dos homens do clã de sua esposa, filha do soba do Bié, para conseguirem reunir pombeiros e partir em viagem. HENRIQUES, Isabel Castro, Integração do comércio no religioso, in: O Pássaro do Mel - Estudos de História Africana, Lisboa: Edições Colibri, 2003, p. 46–48. Heywood descreve procedimento similar, mas com a intermediários de sekulus das zonas de origem dos pombeiros, no lugar de parentes do sertanejo. HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 121. Não me parece claro o quanto as relações de parentesco eram ou não fundamentais no caso de outros sertanejos quanto Silva Porto no ato de reunião de pombeiros para as caravanas, mesmo que, como já foi dito, esses sujeitos, assim como Magyar, casaram-se com mulheres africanas, por vezes até mesmo adotando a poligamia, formando famílias mestiças que auxiliaram em diversos elementos de sua integração social, ou nos termos de Constança Ceita, de sua transculturação. CEITA, Constança do Nascimento da Rosa Ferreira, A Transculturação de Silva Porto na África Central – Viyè – Século XIX, Mulemba, v. 5, n. 10, p. 185–232, 2015, p. 191–197. 478 HENRIQUES, Isabel Castro, Percursos da modernidade em Angola: dinâmicas comerciais e transformações sociais no século XIX, Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1997, p. 402, 412–416; HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 351. Ao analisar o caso específico de Silva Porto, Henriques caracteriza as atitudes do sertanejo como tentativas de europeizar o funcionamento do comércio. Como a própria autora reconhece, a real capacidade do portuense de interferir nos códigos de conduta cotidiana da caravana, como veremos ao longo deste capítulo, é bastante discutível. HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola, p. 417–418. 479 Nesse sentido, ver principalmente o trabalho seminal de Heintze: HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 268–269. Para estudos mais recentes, ver: RIBEIRO, Barganhando sobrevivências; SANTOS, Sociabilidades em Trânsito. Para a porção oriental da África Central, ver ainda: ROCKEL, Carriers of Culture.

197 colônia480. Relações de dependência africanas, que incluíam a escravidão, eram os verdadeiros instrumentos que instituíam o recrutamento e disciplinamento dos trabalhadores para as caravanas em um trabalho que, como será descrito na sequência, era sem dúvida árduo e brutal. No esforço de compreender esse regime africano de trabalho e organização de caravanas que poderemos entender as dinâmicas cotidianas do comércio mambari, e não por uma suposta aplicação de legislação portuguesa setecentista em um território no qual, como já foi repetidamente destacado nesse trabalho, a interferência política da administração colonial portuguesa era frágil ou nula481. Meu objetivo, portanto, é de ampliar a compreensão sobre como no cotidiano do trabalho das caravanas de Silva Porto foram estabelecidos e negociados os termos do que Elaine Ribeiro classificou como vínculos sociais de responsabilidade entre os membros das caravanas, que, por um lado, permitiam que os sertanejos pudessem formar essas comitivas enormes, que por sua vez permitiam grandes taxas de lucratividade mesmo com viagens a territórios tão distantes. Ao mesmo tempo, eram esses mesmos vínculos que permitiam que os carregadores, pombeiros e os mais diversos membros das caravanas pudessem lutar por suas condições de vida e trabalho, fazer reivindicações coletivas e se

480 Inclusive, não se deve ignorar que em pelo menos uma ocasião, em 1864 após a revolução de Linyanti, Silva Porto precisou de carregadores extras para a torna viagem do Barotse - possivelmente tendo arcado com deserções após a paragem da caravana no rio Cuchibi. Nesse episódio, o sertanejo apelou para carregadores adquiridos no Barotse mediante corveia, regime de trabalho que inclusive o sertanejo compara com a situação dos presídios portugueses. BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 333-334. (12/08/1864). Portanto, me parece uma simplificação relacionar o trabalho forçado de carregadores como causa mecânica de instabilidade das caravanas. Um exemplo interessante nesse sentido é dos carregadores “kololo” que foram recrutados por Sekeletu para acompanharem Livingstone em sua viagem para Luanda. Allen Isaacman e Elias Mandala analisaram o exemplo dessa comitiva em detalhes para um estudo comparado, apontando que os mesmos carregadores que o missionário tanto elogiou na dita viagem, quando acompanharam o missionário em direção a Moçambique e passaram um período no mercado de trabalho livre em Tete, esses sujeitos desenvolveram novas noções sobre seus direitos e condições de vida, recusando-se a retornar junto a Livingstone ao seu Estado de origem, onde estariam novamente vulneráveis ao trabalho forçado. ISAACMAN, Allen; MANDALA, Elias, From Porters to Labor Extractors: The Chikunda and Kololo in the Lake Malawi and Tchiri River Area, in: COQUERY-VIDROVITCH, Catherine; LOVEJOY, Paul E (Orgs.), The Workers of African Trade, Beverly Hills: Sage Publications, 1985, p. 211, 225–229. Sobre a identidade desses trabalhadores como "kololo", ver a nota 358 do Capítulo 2. 481 Esse é um exemplo latente da tendência historiográfica sobre o Império Português criticada por Alfredo Margarido, Isabel Castro Henriques e Estevam Thompson, na qual historiadores tradicionalmente tenderam a interpretar situações de autonomia política africana por meio da chave interpretativa do controle imperial. MARGARIDO, Alfredo, Algumas Formas da Hegemonia Africana nas Relações com os Europeus, in: SANTOS, Maria Emília Madeira (Org.), Actas da 1.a RIHA - Relação Europa-África no 3.o Quartel do Século XIX, Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1989, p. 383–406; HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola, p. 83–104; THOMPSON, Estevam C., Fontes coloniais para uma história pré-colonial de Benguela, séculos XVII a XIX, Africana Studia, v. 25, n. Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, p. 33–69, 2015, p. 34–35.

198 revoltar contra o que achassem injusto, ou seja, que pudessem barganhar suas sobrevivências482.

3.2 O Povo da Caravana Como já foi apontado anteriormente, o contrato de pombeiros permitia que as caravanas que saíssem do Planalto Central pudessem ser compostas por até milhares de pessoas. Para estimar a magnitude de um deslocamento populacional desses, deve-se destacar que, segundo estimativas de Linda Heywood e John Thornton para esse mesmo período, em geral os vilarejos do planalto tinham em média 120 habitantes e as cidades, com exceção das capitais dos estados falantes de umbundu, tinham na maioria dos casos entre 1000 e 4000 habitantes483. A manutenção e coesão interna de comitivas que eram verdadeiras sociedades em movimento, portanto, demandava uma rígida organização de tarefas e uma série de instrumentos para manutenção da segurança do povo e de suas cargas durante a viagem. A própria atividade do carregamento dos fardos necessitava de atenção especial. Contrariando representações que menosprezam os trabalhos manuais, Elaine Ribeiro destaca uma série de conhecimentos necessários para os carregadores conseguirem realizar suas tarefas diárias de forma mais confortável e segura. Assim, era necessário o que Ribeiro chamou saber-fazer dos carregadores, que incluía questões fundamentais para o trabalho diário como onde pisar e como pisar, manter os fardos seguros de quaisquer acidentes, assim como saber distribuir o peso desses fardos para suportar no corpo durante as marchas. A montagem dos suportes dos banzos, chamados em kimbundu de muhamba e em umbundu de mutete ou olomango, era prática importante não só para evitar acidentes, como para distribuir o peso e poder liberar o fardo com cuidado nos horários de descanso. Portanto, o carregamento não era um ato exclusivamente mecânico e pessoas recém- introduzidas nessas atividades poderiam sofrer com a ausência de tais conhecimentos técnicos. Além disso, são esses conhecimentos que podiam balizar o aceite ou não das

482 Faço aqui clara alusão ao livro de Elaine Ribeiro: RIBEIRO, Barganhando sobrevivências. Para a noção de vínculos sociais de responsabilidade, ver: SANTOS, Sociabilidades em Trânsito, p. 142–175. 483 HEYWOOD, Linda M.; THORNTON, John K., African Fiscal Systems as Sources for Demographic History: The Case of Central Angola, 1799-1920, The Journal of African History, v. 29, n. 2, p. 213–228, 1988, p. 218–219. Vale ainda destacar, para termos comparativos, que a própria população de Benguela provavelmente nunca ultrapassou 3.000 habitantes na primeira metade do século XIX, desconsiderando as caravanas que chegavam na cidade e os cativos que seriam embarcados para o Atlântico. CANDIDO, Mariana Pinho, Fronteras de esclavización: Esclavitud, comercio e identidad en Benguela, 1780-1850, México: El Colegio de México, 2011, p. 75-77.

199 condições de trabalho pelos carregadores, afinal, eles sabiam fazer suas tarefas e poderiam perceber quando as exigências eram abusivas484. A falta desses cuidados no carregamento poderia gerar acidentes. Em 1846, em uma viagem do Bié para Benguela, um escravo de Pedro, caixeiro de Silva Porto, deixou cair de seu fardo uma ponta de marfim miúdo, ferindo a canela de um morador de Candala, terra tributária de Cipeyo485. Para além do ferimento, que gerou cobrança posterior de um mucano, semelhante acidente poderia levar à quebra da presa de marfim, o que desvalorizava o produto, já que a libra do marfim avariado valia menos do que as das outras classes (de lei, meão e miúdo), conforme explicado no capítulo anterior. Além de dificuldades diretamente ligadas ao processo de trabalho, a segurança das cargas, e dos carregadores, era ameaçada pelo risco de roubos e ataques à caravana perpetrados por grupos de bandoleiros. Esse foi o caso de uma viagem do Bié para Benguela, em 1846, na qual caçadores da Hanya (Anha, em Silva Porto) usavam de sua atividade como pretexto para fazer incursões noturnas contra caravanas, ficando nos matos à espreita para fazerem emboscadas. Inclusive apresentavam no acampamento carne de caça e mantimentos para ser vendida aos carregadores, aproveitando para reconhecimento da organização das barracas para assim fazerem seus assaltos à noite486. Estratégia semelhante foi aplicada pelo soba de Candala na mesma viagem quando, após visitar o acampamento para cobrar a quibanda, pôde fazer reconhecimento da localização dos fardos e assim, supostamente, organizou um ataque na mesma noite para levar duas pontas de marfim de lei e três gamelas de cera487. Nem sempre os ataques eram realizados no anonimato da noite, como em viagem de 1866, no mesmo trajeto, após a caravana

484 SANTOS, Sociabilidades em Trânsito, p. 31, 42–46. Nesse trecho, Ribeiro reproduz uma passagem do relato de Henrique de Carvalho em que carregadores testam e avaliam o peso de um fardo para decidir se aceitariam ou não carregá-lo. Sobre a divisão entre as representações sobre trabalho intelectual e manual no conhecimento desenvolvido com as narrativas de viagem oitocentistas, ver: PRATT, Mary Louise, Os Olhos do Império: relatos de viagem e transculturação, Bauru: EDUSC, 1999, p. 58–59; HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 37–53. Joseph Miller faz considerações instigantes sobre como a noção ocidental de capital humano, relacionada a treinamento e especialização de pessoas para lidarem com tecnologias avançadas, exclui o valor potencial do trabalho braçal enquanto recurso de produtividade, tomando esses trabalhadores como supostamente "não qualificados". MILLER, Way of death, p. 42–43. 485 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 9. (15/10/1846). 486 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 7-8. (21/05/1846). 487 Idem, Ibid., p. 15. (29/05/1846). Os sobas não só serviam como potenciais ameaças nos esforços de evitar o roubo de cargas no caminho. Em viagem ao Lui de 1858, às margens do Zambeze Silva Porto deu falta de um pequeno fardo de fazendas e missangas roubadas pelos fundos de uma barraca de um pombeiro. Interrogando o soba local sobre o assunto, o mandatário reuniu seus súditos e, diante da recusa de delatarem os responsáveis pelo roubo, sujeitou eles a provações envolvendo pegar um fio de missangas em águas ferventes, o que intimidou alguns dos envolvidos a recuperar parte do fardo roubado, não o suficiente para interromper a investigação. Segundo Silva Porto, ele mesmo acabou por convencer o soba a interromper o processo para não “recorrer a esse extremo por causa de uma ridicularia”. BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 43-44. (19/07/1858).

200 atravessar o rio Kubal, ladrões roubaram um saco de missangas de Silva Porto desferindo três tiros de espingarda contra o carregador, que ficou ferido do ombro ao joelho488. Nesse último caso, apesar de membros da caravana perseguirem os ladrões, estes conseguiram fugir ao entrarem em bosques mais espessos. Por causa da proteção que a cobertura vegetal oferecia para os bandoleiros, Silva Porto ordenou aos adiantados de uma caravana sua a lançar fogo no mato, para que a trilha estivesse mais limpa de arbustos que pudessem ocultar os atacantes a partir dos matos de Songo e Supa. Vale destacar que não poderiam fazê-lo em quaisquer trechos do caminho, já que tinham que evitar possíveis conflitos com os residentes locais e suas legislações próprias, como era o caso em Ciyula (Quibula, em Silva Porto) e Cisanji (Quiçanje, em Silva Porto)489. Além de esperar a queima do mato, Silva Porto também quis que a dita caravana aguardasse a chegada de outras comitivas para que, com maior número de membros, o agrupamento infundisse mais respeito nas populações locais. Até mesmo no aspecto visual, a aproximação de um conjunto de centenas, senão de milhares de pessoas caminhando juntas de forma constante e ordenada, era responsável por levantar grandes nuvens de poeira, podendo sufocar e formando crostas de terra por cima da pele dos carregadores – o que fazia com que os trabalhadores, imediatamente após a montagem do acampamento, fossem se lavar490. O tamanho das comitivas de Silva Porto, quando informado, variava muito, tendo registros desde 600 pessoas, em viagem de 1866, até de 5000 membros, na viagem de 1853 do Bié ao Lui491. O portuense esclarece que, no caso dessa comitiva de 5000 membros, viajavam junto de si as caravanas de outros dois sertanejos, Caetano José Ferreira e Norberto Pedro de Sena Machado, o que ajuda a entender número tão avultado. A junção com caravanas de outros negociantes era procedimento comum no comércio de longa distância, sendo frequente que pequenos negociantes independentes esperassem a passagem de caravanas maiores para ter uma viagem mais segura492. Mesmo detendo vários

488 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 64. (02/10/1866). 489 BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 341-342. (17/09/1862). 490 BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 33-34. (22/06/1858). 491 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 1-2. (03/05/1866); SGL. Res. 2- C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 126-127, 198-199. (14/12/1852; 03/07/1853). Henriques considera que esses números de milhares de membros por caravana seriam excessivos pela dificuldade de manter gestão de tantas pessoas, considerando que no máximo as caravanas deveriam chegas a 1500. Acredito que, não só os números de comitivas que chegavam a milhares de pessoas são coerentes com as estimativas que fiz anteriormente com os dados do Livro de Cargas, mas a preocupação que aparecem em episódios que Silva Porto fala abertamente do tamanho dessas comitivas dizem respeito exatamente a dificuldades de gestão dessas pessoas, seja com alimentação ou com travessia de rios, parecendo-me pouco evidentes os motivos do sertanejo para inflar tais registros nos cadernos. HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola, p. 408. 492 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 149. (15/01/1853). Por este mesmo cálculo, em julho de 1864, Silva Porto decide esperar no Lui a chegada da caravana de Guilherme José

201 administradores em cada parte da comitiva total, a caminhada conjunta era um desafio logístico, sendo necessário manter um ritmo de marcha comum que permitisse a junção periódica da vanguarda e da retaguarda mesmo que, em áreas de maior segurança, a caravana tendesse a se espalhar em vários conjuntos menores493. Com agrupamentos dessas dimensões, quaisquer decisões sobre mudanças de rota ou paragem no meio do caminho precisavam ser combinadas com antecedência e devidamente comunicadas a todos os membros da comitiva. Em um relato de 1846, Silva Porto explica como funcionava a tomada de decisões nos momentos que antecediam a continuação das marchas: “(...) tendo chegado os senhores sertanejos e povo Bieno de diversos pontos, e reunidos depois do ocaso, fizemos ver que o dia seguinte seria de marcha, e atendendo a ser domínio estranho aquele por onde a caravana tinha de transitar[,] passávamos a nomear os quiçongos [kesongos] ou guardas avançados da frente, esperando absolutamente ninguém passasse avante (...). Terminada a audiência, e retiradas as pessoas de que se compunha aos seus respectivos quilombos mandámos deitar bando da deliberação tomada para que ninguém alegasse ignorância, e continuação da marcha no dia seguinte."494 Portanto, assim que os chefes das partes da caravana decidiam em conjunto qual seria o trajeto da marcha do dia seguinte, além de outras questões fundamentais como a escolha dos oficiais que abririam o caminho na vanguarda, os kesongos, o pregoeiro transmitia à noite a informação nas barracas, para que todos os membros tomassem conhecimento e não pudessem alegar ignorância, caso desobedecessem às ditas decisões495.

Gonçalves para voltarem juntos para o Bié, podendo infundir mais respeito nos habitantes do caminho. BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 327. (24/07/1864). Em outro episódio, chama a atenção que Silva Porto afirma que a caravana tinha de mil a quatro mil pessoas – a imprecisão da informação, diante da existência de sistema tão organizado quanto era o registrado em seu livro de cargas leva a crer que nem todos os membros da dita comitiva estavam sob sua responsabilidade, sendo possivelmente de outros sertanejos que viajavam juntos. BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 24-28. (26/05/1846). 493 ROCKEL, Carriers of Culture, p. 114; HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 279–280, 353. Rockel aponta que, para além da segurança, outra vantagem para caravanas menores viajarem em conjunto era para dividirem entre si o custo do mesmo tributo de passagem. ROCKEL, Carriers of Culture, p. 52–53. Em 1867, Silva Porto, ao decidir não pagar tributo de passagem a um sobeta, admite que pode fazer esse tipo de procedimento porque a caravana tinha clara superioridade numérica frente aos locais. BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 228-229. (15/11/1867). 494 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 8-10. (17/05/1846). 495 SANTOS, Nos caminhos de África, p. 26. Silva Porto comenta que o termo que utilizam em umbundu para deitar pregão é dacca ou ondacca. BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 7-8. (16/05/1846).

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Além de organização interna, um elemento fundamental para assegurar a segurança das caravanas foi o uso de armas de fogo. Como já discutido no capítulo anterior, o comércio de longa distância desde a Era do Tráfico se baseou na venda de pólvora e armas de fogo como um dos principais produtos importados demandados pelos africanos. No século XIX, o seu uso era generalizado por toda a zona atlântica de Angola, sendo frequentes as considerações de Silva Porto sobre o uso de armas pelos povos visitados por suas caravanas. Mesmo assim, o sertanejo destaca o quanto os bianos se diferenciam dos ganguelas, tanto no uso, quanto na manutenção das armas. Enquanto era comum e necessário que parte dos carregadores da caravana usassem armas de fogo nas caças e em eventuais conflitos com povos locais, em geral nas ganguelas, Silva Porto aponta para um uso misto pelos guerreiros locais entre armas brancas e de fogo, criticando uma suposta irracionalidade entre eles496. Mais do que interpretar qual seria o uso correto de armas de fogo, nos é interessante recuperar o processo que Giacomo Macola chama de domesticação das armas de fogo na África Central, que consiste na utilização de formas mais ou menos previsíveis pelos estudiosos que vão além da caça e da guerra, mostrando um potencial enorme de inventividades locais no uso desses objetos estrangeiros497. Assim como os outros produtos analisados no capítulo anterior, a vida social das armas de fogo se modificava de acordo com quem as utilizava, e os africanos não se resumiam a consumidores nesse caso, fabricando munição e, no caso dos ferreiros bianos, inclusive consertando armas avariadas498. O uso das armas de fogo nas caravanas e pelos povos do interior envolvem debate clássico sobre a real eficácia de armas de fogo na África Pré-Colonial. Enquanto

496 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 107-108. (15/02/1864); Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 83, 77-78. (19/12/1847; 05/12/1847). 497 MACOLA, Giacomo, Reassessing the Significance of Firearms in Central Africa: the case of north- western Zambia to the 1920’s, Journal of African History, v. 51, p. 301–321, 2010, p. 303–304; MACOLA, Giacomo, The Gun in Central Africa: a history of technology and politics, Athens: Ohio University Press, 2016, p. 9–13. Agradeço à Cristina Wissenbach por me apresentar e sugerir o livro de Giacomo Macola. 498 Sobre as munições feitas localmente, ver: BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 107-108. (15/02/1864). Em pelo menos duas ocasiões Silva Porto afirma que os ganguelas não consertavam armas de fogo, especificando que no caso do Muatamjamba até conseguiam fazer reparos, mas eram incapazes de consertar o cano. BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 77-78, 318-319. (05/12/1847; 12/12/1847). Um episódio interessante acontecido no Cuchibi envolveu um ferreiro da caravana de Silva Porto que havia consertado as armas de fogo de dois mbunda e, com um assalto ao estabelecimento de Silva Porto, tinha perdido as ditas mercadorias. Por esse motivo Silva Porto acabou por indenizar os dois proprietários, cobrando o valor do ferreiro, e não descartando a hipótese de serem o ditos proprietários os perpetradores do ataque. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 123. (01/04/1864).

203 importantes autores africanistas tentaram relativizar o real impacto que as armas de fogo teriam tido na conquista europeia do continente, no final do XIX, apontando para a má qualidade das armas e para os usos alternativos que esses instrumentos tiveram, dando importante contribuição para o combate ao determinismo tecnológico, Macola critica a continuidade desse certo consenso sobre irrelevância e inoperância de armas de fogo, que ignora a grande demanda africana e reais impactos comparativos em sociedades que as introduziram mais profundamente499. São vários os conflitos descritos por Silva Porto entre a sua caravana bem armada com povos locais, alguns deles analisados no 1º capítulo, em que os resultados dos combates são bastante desproporcionais, tendo numerosas baixas entre os locais e, geralmente, a caravana mambari ficando quase intacta. Os pombeiros que fizeram a viagem para Moçambique narram um episódio no qual, ao lado dos bisa que os acompanhavam na caravana, resistiram a um ataque dos súditos do soba Guáxi. O resultado dos combates mostrou o quanto os bianos, com as suas lazarinas, eram melhor armados e treinados do que os bisa (que tinham cerca de 20 espingardas para uma caravana de cerca de mil pessoas), demonstrando também o impacto da maior entrada de armas de fogo pela zona atlântica do que pelo Índico, em meados do século, trazendo vantagem de combate dos bianos frente aos seus rivais500. Outro episódio interessante para analisar o papel das armas de fogo nas caravanas sertanejas se deu em 1866. Com revolta do chefe de Sesheke, Sipatonyana, tributário do Lui, recusando-se a reconhecer a restauração dos lozi com Sipopa, o litunga do país chamou Silva Porto para participar de uma missão punitiva contra o rebelde. Além disso, Sipatonyana havia conseguido cavalos e pólvora com os ingleses, decidindo assim revoltar-se contra os tributos de Sipopa logo depois do encaminhamento deste ao trono do Lui. Silva Porto cedeu o seu macota, com cerca de 100 soldados bem armados, para acompanhar o litunga e o dito intermediário depois deu ao sertanejo um pormenorizado

499 MACOLA, Reassessing the Significance of Firearms in Central Africa, p. 301–302. Vale destacar que essa demanda continental por armas de fogo se intensificou muito na 2ª metade do século XIX, por tornarem- se instrumentos fundamentais na "produção" das duas principais mercadorias da África Central - marfim e escravos. Tais demandas levariam a um grande influxo de armas produzidas na Europa, muitas vezes de segunda mão e utilizadas em conflitos europeus como as guerras napoleônicas, para o continente africano; irradiando, inclusive, no caso da África Oriental, para o mundo árabe armas africanas originalmente produzidas na Europa, por causa da expansão de Zanzibar. GORDON, David M., Wearing Cloth, Wielding Guns: Consumption, Trade, and Politics in the South Central African Interior during the Nineteenth Century, in: ROSS, Robert; HINFELAAR, Marja; PESA, Iva (Orgs.), The Objetcts of Life in Central Africa: The History of Consumption and Social Change, 1840-1980, Leiden - Boston: Brill, 2013, p. 21–22, 29–30; JANZEN, John M., Situating the Hamburger Loango Ivory in Kansas African Collections, in: JANZEN, John M. (Org.), A Carved Loango Tusk: Local Images and Global Connections, Lawrence: University of Kansas, 2009, p. 7; COQUERY-VIDROVITCH, Catherine, Africa and the Africans in the Nineteenth Century: A Turbulent History, New York: M. E. Sharpe, 2009, p. 185. 500 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 378-379. (15/04/1854).

204 relato da expedição, que resultou na derrota do chefe local, tendo importância fundamental a intervenção armada dos mambari501. Além de serem bem equipados, os membros das caravanas mambari também se destacaram no interior por causa de suas perícias. O aumento das demandas comerciais por caravanas a partir do Planalto Central levou a um processo análogo ao apontado por Rockel de profissionalização dos carregadores da África Oriental. Para o autor o simultâneo crescimento do comércio de longa distância nas regiões conectadas ao Oceano Índico levou à especialização de grupos específicos como intermediários preferenciais no setor de transportes, como foi o caso dos nyamwezi, mas também à especialização dentro das comitivas, com membros experientes que desenvolviam tarefas específicas que traziam a eles prestígio dentro da caravana502. Nesse processo de profissionalização, Rockel, inspirado na noção de costume, de E. P. Thompson, defende que se fortaleceu a organização dos carregadores para transformarem suas práticas cotidianas em costume. Ou seja, da mesma forma que os trabalhadores ingleses do século XVIII desenvolveram uma cultura plebeia na defensiva do avanço da exploração da gentry sobre suas condições de vida e trabalho, utilizando do costume como uma retórica de defesa de um direito original para se opor àquilo que fosse considerado inaceitável, de forma análoga, os carregadores africanos, na sua experiência comum de longas viagens e vida coletiva, não só desenvolveram uma cultura própria interna da caravana, no momento que passaram a se dedicar com maior frequência ao comércio em ascensão, mas vão definindo no cotidiano elementos de convívio que consideram adequados e aceitáveis, revoltando-se caso os negociantes ou outros possíveis chefes de caravanas desrespeitassem essas práticas que agora eram costumes503.

501 BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 512-513, e, principalmente, p. 571-581. (26/11/1865; 11/03/1866). O envolvimento do sertanejo com essa missão punitiva relativiza um pouco a constante afirmação de Silva Porto de que ele sempre evitava participar das intrigas políticas das regiões onde negociava. Vale destacar novamente que, segundo Macola, foi depois da restauração lozi na planície, com Sipopa, que aumentou consideravelmente a demanda por armas de fogo, sendo instrumento fundamental para impor os direitos monopolistas do litunga sobre a produção de marfim em episódios como este. MACOLA, Reassessing the Significance of Firearms in Central Africa, p. 310–311. 502 ROCKEL, Carriers of Culture, p. 65–66, 72–73. Os estudos de Elaine Ribeiro sobre a caravana da expedição de Henrique de Carvalho, realizada nos anos 1880, não só apontam o lugar de prestígio que certos intermediários, os chamados loandas, ganharam no interior da caravana, mas também como eles desenvolviam tarefas bastante específicas, mostrando um possível cenário mais avançado da profissionalização que se acelerou com a fase do comércio lícito. Ver, principalmente: RIBEIRO, Barganhando sobrevivências, p. 230–276. Na sequência desse capítulo será comentado o caso de algumas posições de especialistas, cuja importância dentro das caravanas foi crescendo com a expansão do comércio em meados do século – caso dos pombeiros, kesongos, quimbandas e kaleys. 503 ROCKEL, Carriers of Culture, p. 24–25; THOMPSON, E. P., Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 15–17. A definição de costumes, para Thompson, poderia levar os patrícios a se tornarem reféns do povo em caso de desrespeito a esses

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Como seria de se imaginar, a definição de carga máxima por carregador era um dos elementos fundamentais na definição desses costumes. No Livro de Cargas, a maioria dos fardos individuais pesam entre 60 e 70 libras, o que são aproximadamente 30 a 35 quilogramas. Caso não tivesse dependentes para carregar para si, o carregador teria ainda que levar junto seus objetos pessoais como mantimentos, esteiras e panelas. Em 1864, um carregador de Silva Porto fugiu no meio da viagem e retornou ao estabelecimento de Silva Porto no Cuchibi – no meio do caminho para o Lui. Quando interrogado sobre sua ação, o trabalhador afirmou que o cansaço e o peso da carga “deram causa” para regressar ao ponto de partida, mas que não tinha interesse em evasão, estando à disposição para a torna viagem. O caso pode parecer insólito, mas tem sua racionalidade. Vejamos, não havia interesse nenhum do sujeito de abandonar a carreira como carregador e nem enfrentar os possíveis riscos da fuga, que serão detalhados na sequência. Na verdade, estamos diante de uma recusa bastante clara de levar uma carga considerada excessiva, estando o mesmo carregador disposto a trabalhar para o mesmo patrão, mediante novas condições, na próxima viagem504. Não sabemos o quanto pesava o fardo deste carregador em específico, mas os relatos são recorrentes em apontar que carregadores em Angola geralmente rejeitavam cargas que ultrapassassem as 80 libras. Como está registrado no Livro de Cargas, por vezes uma ponta maior de marfim de lei poderia ultrapassar esse limite, como é o caso de uma carga da terceira viagem desse livro, em que a ponta de marfim pesa 124 libras e é carregada ao mesmo tempo por dois carregadores, Nunda e Chimuando. Apesar de não termos esse tipo de informação, podemos imaginar que cálculo similar era feito ao dividir entre dois carregadores o peso do próprio Silva Porto em sua tipoia – podendo o sertanejo ser um “fardo” até mais pesado do que a média, caso pesasse mais de 80 quilogramas. Em caso de problemas durante a viagem, uma carga poderia ser passada para outro carregador e, como mostra o livro de cargas, as referências numéricas dos fardos poderiam se manter para a viagem seguinte caso os pacotes não fossem desfeitos505.

pressupostos morais, tendo sempre a possibilidade de rebelião aberta como elemento de barganha dos dominados. Da mesma forma, ao desrespeitarem os interesses dos carregadores, chefes de caravana poderiam encarar rebeliões contra o seu controle, prejuízos financeiros ou mesmo levar as caravanas para experiências trágicas de viagem. Ibid., p. 152–153; ROCKEL, Carriers of Culture, p. 111; HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 388. 504 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 125-126. (08/04/1864). 505 SANTOS, Sociabilidades em Trânsito, p. 46; SANTOS, Nos caminhos de África, p. 20. Rockel aponta como entre os nyamwezi havia a nível pessoal o desejo de demonstrar resistência e força física, com os carregadores mais experientes mostrando capacidade de levar cargas maiores, o que era aproveitado pelos chefes de caravanas - no entanto, caso fosse considerada excessiva a demanda, também abandonavam a carga e caravana, sendo questão importante o fato de deixar a carga para trás, para não ser entendido como um ladrão. O autor ainda comenta o quanto esses carregadores não gostavam de levar cargas em duplas, pelos incômodos da regularidade de marcha que tal tarefa exigia, principalmente em terrenos acidentados. Os

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Imagem 4 - Pombeiros e Carregadores com marfim em frente a uma casa comercial

Retirado de: SANTOS, Maria Emília Madeira. Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX). Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 217. O mesmo vale para a duração da caminhada diária. Em geral as marchas diárias das caravanas de Silva Porto não excediam 4 ou 5 horas. No entanto, momentos de espera para reagrupar a vanguarda com a retaguarda, o que era necessário de duas a três vezes por dia, assim como travessias em rios por pontes, poderiam fazer com que a caminhada durasse até 10 horas506. Além disso, como caminhavam descalços, a caravana evitava marchar nas horas mais quentes do dia, fazendo o percurso de madrugada e no começo da manhã. Por tal motivo, em alguns apontamentos, Silva Porto registra o início da caminhada por volta das quatro da manhã. No dia seguinte, iniciou a marcha as duas da manhã, parando as sete para refeição. Em outra ocasião, começaram a marcha às quatro da manhã, param às nove para refeição, retornando a marchar às duas da tarde para chegar no ponto desejado às três, onde montaram o acampamento507. limites de peso por carregador, que são similares aos da África Centro Ocidental, também eram ultrapassados pelas presas de elefantes maiores, tendo que ser carregadas por dois trabalhadores cada. ROCKEL, Carriers of Culture, p. 82-83,105. 506 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 10-12. (18/05/1846). 507 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 19-21. (09/06/1846; 10/06/1846); Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 1-2. (27/10/1860). Rockel aponta o mesmo tipo de dificuldade de marcha para a África Oriental. ROCKEL, Carriers of Culture, p. 113. Cabe destacar que esse tipo de rotina que começa de madrugada também parece fazer parte do cotidiano de Silva Porto quando está no seu estabelecimento. Em um apontamento interessantíssimo, no qual o sertanejo descreve sua rotina diária em Belmonte, afirmando que iniciava o dia às quatro horas e meia da manhã, almoçando às oito e jantando às duas da tarde. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 132-133. (03/06/1861).

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É difícil definir a distância que essas caravanas transpunham no período de um dia. Somente no relato da viagem de Moçambique Silva Porto registra diariamente quantas léguas eles transpuseram, fazendo isso por causa da exigência do relatório a ser entregue ao governo colonial, como será detalhado na sequência. Segundo os registros de Silva Porto, de forma geral a caravana caminhava em média 5 léguas por dia, mas esse número poderia variar bastante pela conveniência do local de paragem, seja forçando a caravana a parar antes, ou, em caso de ser lugar inadequado para o abarracamento, forçando a caravana a andar por mais tempo até terem uma paragem mais segura. Para permitir chegar em pontos mais estratégicos, Silva Porto admite que em certos trechos necessitava impor uma marcha forçada com a caravana, como nas áreas secas do caminho de Benguela durante o verão508. Além disso, caravanas maiores eram mais lentas e, segundo Rockel, cargas mais pesadas também forçavam os carregadores a marcharem mais devagar. Isso influi no fato da caravana de Moçambique, composta por uma pequena comitiva liderada por um macota de Silva Porto, como será detalhado na última parte deste capítulo, andasse em uma média diária de quase oito léguas509. Da mesma forma, em 1852, quando Silva Porto foi fazer seu acordo com o soba Mbonge do Bailundo, ele e pequena comitiva saíram do acampamento da caravana principal em Yikoma (Quicuma, em Silva Porto) e marcharam por quinze horas contínuas para chegar na corte do dito estado510. Vale destacar que geralmente Silva Porto não acompanhava esses trajetos a pé. Além de usar animais de montaria como cavalos, é provável que boa parte do tempo o sertanejo dependesse dos seus carregadores de tipoia, deixando registros dos episódios nos quais foi obrigado a andar a pé por necessitar desses carregadores em outras tarefas, deixando subentendido que em outras ocasiões fazia o trajeto em cima da tipoia511. Como já foi comentado anteriormente, na viagem de 1853 para o Lui, Silva Porto deixou seus cavalos nas pastagens do povo guete para evitar as regiões de enxames de tsé-tsé. Nessa ocasião, em uma viagem de Linyanti a Naliele, Silva Porto foi obrigado a fazer o trajeto a

508 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 1-2, 18-19. (15/05/1846; 08/06/1846). 509 Em termos comparativos as caravanas nyamwezi eram consideravelmente mais rápidas do que as de Silva Porto, provavelmente por causa do tamanho colossal das caravanas sertanejas. Rockel fala de uma média de 22 milhas diárias, o equivalente a aproximadamente 7 léguas portuguesas, considerando os dias de paragem. No entanto, o autor comenta que, no caso de caravanas maiores, a velocidade média poderia chegar a 9 milhas por dia, equivalente a menos de 3 léguas, considerando dias parados. ROCKEL, Carriers of Culture, p. 81–82. Como será dito na sequência, há críticas contemporâneas à falta de precisão dos dados de distância no relato da viagem de Moçambique. 510 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 232-233. (04/05/1852). 511 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 125. (06/04/1864); Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 47. (02/08/1858); Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 343. (10/09/1864).

208 pé, com bastante dificuldade, a ponto de se recusar a almoçar com Livingstone e Sekeletu para molhar os pés em água quente com sal, relatando, com seu melodrama característico, que estava “fazendo das tripas o coração”512. Heintze aponta que muitos exploradores achavam a tipoia extremamente fatigante e desconfortável, preferindo fazer grandes trajetos a pé513. No entanto, esse não parece ser o caso de Silva Porto, que apelava para tipoia até mesmo nas travessias dos rios, incluindo no episódio de 1864, no qual os carregadores deixaram cair o sertanejo no rio Kwando514. Imagem 5 – O Transporte na Tipoia

Retirado de: SANTOS, Maria Emília Madeira. Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX). Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 205.

512 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 206. (16/07/1853). Frederico Delgado Rosa e Filipe Verde recusam a justificativa que o sertanejo deu para não comparecer ao jantar. Mesmo que reconheçam o fato do sertanejo estar sem cavalos, alegam que não era motivo que justificasse a sua prostração. Na hipótese dos autores, o sertanejo estava transtornado com o encontro com o britânico. Além de todos os problemas já apontados no capítulo 2 sobre a interpretação desses autores sobre o dito encontro, eles parecem ignorar o fato que o sertanejo raramente andava a pé em suas viagens, sendo mais verossímil que de fato Silva Porto estivesse incomodado com a caminhada. ROSA, Frederico Delgado; VERDE, Filipe, Exploradores Portugueses e Reis Africanos: Viagens ao coração de África no século XIX, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013, p. 141–142. 513 HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 278. Rockel registra preferência análoga entre os europeus nas caravanas da África Oriental: ROCKEL, Carriers of Culture, p. 109–110. Nesse mesmo trecho, o autor aponta que, nas últimas décadas do século XIX, no entanto, havia a preferência de que mulheres brancas, principalmente missionárias, fossem levadas nas tipoias para não terem que andar longas distâncias. 514 BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 347. (20/09/1864). Heintze sugere que os carregadores da tipoia tinham posição de status elevado entre a comunidade caravaneira. Houve ocasião inclusive que o soba do Bié pediu a tipoia emprestada para Silva Porto para ingressar em missão punitiva contra um de seus súditos. HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 277–278; SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 66-67. (22/03/1861). Para a África Oriental, no entanto, aparentemente isso não ocorria, sendo considerada uma humilhação carregar outras pessoas entre os nyamwezi e, segundo Rockel, sendo até então prática inexistente entre os povos da região, com exceção de Moçambique. Uma hipótese que coloco é o quanto essa prática pode ter se naturalizado nas regiões africanas em contato mais direto com os portugueses, ainda mais levando em conta a demanda do soba do Bié. ROCKEL, Carriers of Culture, p. 109–110.

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Às horas de caminhada somava-se os esforços específicos de travessia de rios. Para além dos casos em que povos locais ofereciam cobranças de pontes ou de serviços de travessia por canoa, como já comentado no capítulo 2, a caravana com frequência atravessava rios em regiões despovoadas, sendo os membros da comitiva responsáveis pela manutenção da logística que envolvia a delicada atividade. Quando os rios não davam vau, ou seja, quando os carregadores não conseguiam atravessá-los pisando no seu leito, era necessário improvisar um meio seguro para transferir de uma margem à outras milhares de pessoas e suas cargas. A forma mais segura era pela construção de pontes, o que Silva Porto descreve em várias ocasiões. Os membros da expedição reuniam madeiras, cordas e entrecascas de árvores para a edificação, o que podia demorar mais de cinco horas, ou mesmo 11 horas em caso de ponte mais elaborada515. Em rios mais caudalosos, uma opção menos segura, mas também bastante frequente, era a construção pelo povo da caravana de canoas, podendo levar um dia para montar as embarcações em quantidade necessária para fazer a travessia com todos os membros, ficando a travessia para o dia seguinte. Há casos inclusive de, depois de usá-las, o povo da caravana vender as canoas para povos locais em troca de mantimentos516. O maior desafio de travessia para as caravanas de Silva Porto era o rio Zambeze: na época da cheia eram necessários seis dias para atravessar todo o povo da caravana. Nesse processo, o lugar-tenente do Lui era o responsável por fornecer as canoas e comandar os canoeiros, sendo monopólio dos chefes políticos do Barotse o controle da travessia do rio517.

515 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 230-231, 241-242. (30/04/1852; 12/05/1852). 516 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 133-135. (23/12/1852; 24/12/1852; 26/12/1852). Para a venda de canoas, ver: BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 59. (28/03/1847). 517 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 164-166. (07/02/1853- 12/02/1853). Para mais sobre a travessia de caravanas pelo Zambeze, ver: SANTOS, Maria Emília Madeira, Os Lozi e o Zambeze: a água e a organização do espaço, in: Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX), Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 305–332; GONÇALVES, Apontamentos Vindos dos Sertões, p. 95–97.

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Imagem 6 - Canoeiros do Lui

Retirado de: SANTOS, Maria Emília Madeira. Nos caminhos de África: Serventia e Posse (Angola-Século XIX). Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998, p. 325. Outra atividade diária que envolvia o trabalho dos membros da caravana era a construção de barracas, os quilombos518. As cabanas, chamadas cubatas, eram montadas em círculo acompanhando uma paliçada central, onde se instalavam os membros principais das caravanas e os fardos, cuidadosamente fechadas e vigiadas por sentinelas para evitar roubos noturnos. A escolha dos espaços para construção dos quilombos, em geral, privilegiava áreas com fácil acesso à água e próximas de aldeias, mas não tão próximas, para evitar conflitos entre o povo da caravana e os locais. Em cada cubata dormiam de dois a quatro carregadores, mas também era possível dormir a céu aberto no caso da estação seca, mantendo-se agrupados ao redor das fogueiras. Sem ter que se preocuparem com a chuva, no entanto, o frio que podia alcançar a noite, principalmente no trajeto entre o Bié e o Lui, era uma ameaça grande, principalmente para carregadores que se cobriam com poucos tecidos, precisando passar a noite em volta das fogueiras com grande proximidade, provocando por vezes queimaduras no peito por causa deste proceder519.

518 Segundo Elaine Ribeiro, o termo kilombo tinha vários significados. Além de designar o acampamento das caravanas, também era o nome dado ao rito de iniciação dos meninos do Planalto Central. SANTOS, Sociabilidades em Trânsito, p. 111. 519 HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola, p. 422; HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 356– 357; SANTOS, Nos caminhos de África, p. 28. A estação das chuvas poderia trazer inconvenientes para a formação das barracas, diminuindo a moral da comitiva e dificultando a atividade de construção. Em março de 1847, por exemplo, Silva Porto comenta que seus carregadores não conseguiram terminar as barracas, se aglomerando aqueles que o fizeram, enquanto os outros ficaram desabrigados, aquecendo-se ao fogo. BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 54. (22/03/1847).

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Maria Emília Madeira Santos comenta que, mesmo que as caravanas geralmente fizessem os mesmos itinerários nas suas viagens, e geralmente acampassem nos mesmos lugares, os sertanejos evitavam entrar nos quilombos antigos pois, com a madeira ressecada, o risco de incêndio era muito grande. Segundo a autora, portanto, na torna viagem, geralmente era construído um novo acampamento nas imediações, utilizando no máximo a madeira do quilombo anterior como combustível das fogueiras520. No entanto, com base nos apontamentos que analisei nos cinco primeiros cadernos, parece ser recorrente a prática de reutilizarem os quilombos da viagem de ida na jornada de retorno. Ao encontrar em duas ocasiões seus quilombos incendiados no meio tempo entre as duas viagens, Silva Porto chega a comentar sobre a necessidade de precauções para evitar tais acontecimentos, como o de lançar fogo em círculos em volta dos quilombos para limpar o terreno e evitar incêndios – justificando em um dos casos que o povo da caravana de Bonifácio José Rasquete havia se descuidado ao não realizar tal procedimento521. No entanto, os incêndios eram de fato o maior risco das viagens, não só por serem acidentes recorrentes, como em ocasião que um membro da caravana, ao fundir a cera se descuidou e queimou o capim, fazendo labaredas que cresceram com o vento e incendiaram 16 barracas, mas principalmente porque esse tipo de acidente responsabilizava o originador do fogo por pesados mucanos, podendo condenar o sujeito e seus familiares para a condição de escravos522. Outra atividade importante para a vida em caravana era a caça. Passando as caravanas muitas vezes por grandes manadas de animais de médio porte como antílopes, era comum que Silva Porto, após a construção do quilombo, liberasse o povo da caravana para caças coletivas, que poderiam fornecer vultuosas quantidades de carne523. No entanto, como o sertanejo em mais de uma ocasião afirma, poucos eram os caçadores experientes entre os membros da comitiva, sendo muitas vezes incapazes de trazer grandes quantidades de alimento. Nas palavras sarcásticas de Silva Porto “na caravana existem alguns indivíduos que se dizem caçadores, mas que ainda não mataram uma única peça de

520 SANTOS, Nos caminhos de África, p. 27–28. Infelizmente, nessa passagem, a autora não cita as fontes primárias nas quais baseou a afirmação. 521 BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 218-220. (04/11/1868; 05/11/1868). 522 Ver: BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 27. (22/06/1866); Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 19-20. (08/05/1858); SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 22-23. (17/12/1854). Tendo ao menos dois outros casos de mucanos pagos por Silva Porto dentro do nosso recorte por causa de incêndios causados por seus dependentes. 523 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 126-127. (14/12/1852).

212 caça”524. No Planalto Central, segundo Linda Heywood, as caças eram atividades coletivas organizadas pelos Estados para redistribuição posterior dos resultados entre os súditos, fazendo parte dos mitos fundadores dos sobados da região, assim como dos rituais de investidura dos soberanos. No entanto, como já foi apontado, animais de grande porte como os elefantes já rareavam na região em meados do século XIX, perdendo a caça sua importância relativa ao longo do tempo525. Isso diferenciava as caravanas mambari de comitivas da África Oriental, como as dos nyamwezi, já que estes não só controlavam as rotas de longa distância, mas também eram provenientes de regiões produtoras de marfim, tendo íntimas relações entre a organização interna das caravanas comerciais e da atividade de caça526. As mulheres exerceram papel fundamental para a expansão do comércio caravaneiro. Enquanto, no caso do Bié, homens desdenhavam a agricultura, considerando atividade emasculante, mulheres dominavam o trabalho agrícola, que fornecia não só mantimentos, mas até mesmo produtos de troca para o comércio no interior527. Silva Porto registra a presença tanto de homens, quanto de mulheres, na sua lavra em Belmonte, manifestando inclusive a preferência pelo trabalho masculino; no entanto, provavelmente parte importante desse contingente era de escravos – sustento essa hipótese pois, como afirma Isabel Castro Henriques, muitas vezes sobravam aos escravos as tarefas destinadas originalmente a mulheres e crianças não púberes528. Esse excedente de mão de obra masculina, que não se envolvia diretamente com as atividades agrícolas, permitiu uma disponibilidade de carregadores para as caravanas virtualmente em quase qualquer época do ano. Em contraste, como os carregadores nyamwezi geralmente eram envolvidos na atividade agrícola, principalmente na época chuvosa, as caravanas na África oriental praticamente só partiam na época da seca e relatos de europeus mostram uma total ausência

524 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 86. (17/12/1863). Ver comentários parecidos também em: Idem, Ibid., p. 86. (16/12/1863). 525 HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 18–21. No entanto havia também a caça profissional, que se organizava em pequenas expedições de gente especializada. Baseada em Magyar, Heywood chega a falar desses caçadores profissionais acompanhando caravanas nas viagens para o interior para, por conta própria, caçarem elefantes e venderem o marfim. No entanto, para esse recorte, não encontrei nenhuma referência desses sujeitos nas caravanas de Silva Porto. Ibid., p. 23. 526 ROCKEL, Carriers of Culture, p. 35, 37, 40–41, 56–57. 527 HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 42–43. No mesmo trecho, Heywood cita a partir de Magyar um ditado popular no Bié que dizia “você não é um homem, pegue uma enxada”. Sobre uso de produtos agrícolas do planalto para o comércio de longa distância, ver capítulo 2. 528 BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 418. (26/03/1865); HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola, p. 410. Silva Porto comenta que algumas atividades agrícolas, como a sementeira de milho e feijão, eram exclusivamente masculinas, o que, considerando as questões levantadas, podemos estimar que deveriam ser majoritariamente realizadas por homens escravizados. BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 368. (10/12/1862).

213 de carregadores disponíveis durante a época de chuvas529. Evidentemente, as mudanças meteorológicas das estações do ano influenciavam nas escolhas dos chefes de caravana, e questões climáticas traziam dificuldades extras para as viagens das comitivas, mas, ao contrário de outras regiões, aparentemente, em meados do século XIX, no Planalto Central de Angola havia carregadores à disposição de negociantes para viagens o ano inteiro, o que sem dúvida era possibilitado pela predominância de mulheres no trabalho da lavoura530. No entanto, algumas mulheres também participavam das caravanas. Menos frequentes nas narrativas de viagem em geral, e mesmo em Silva Porto, por vezes há a referência às mulheres carregadoras da caravana. Para saber mais dos fragmentos de informações sobre a vida de seus trabalhadores, homens e mulheres, que sobraram nos interstícios da escrita de Silva Porto, são especialmente fecundas as reclamações do sertanejo sobre o trabalho que eles realizavam531. Em uma passagem Silva Porto reclama que uma escrava sua, em viagem de Benguela para o Bié, deixou cair uma quinda (cesto) de louça, deixando a carga em pedaços, já tendo acontecido a mesma coisa com outra carregadora na mesma viagem. Em outra ocasião, uma carregadora sua foge durante a marcha, sendo hipótese do sertanejo que a trabalhadora recusou a carga pelo seu peso, de 40 libras. No mesmo dia que ela seria encontrada, no entanto, ela fugiu novamente532.

529 ROCKEL, Carriers of Culture, p. 48-49–69. Com base nos dados da Tabela 5 do Capítulo 2, sobre as caravanas que saíram do Bié no ano de 1861, além dos registros das próprias viagens que o Silva Porto fez, temos registros de caravanas saindo do Bié para Benguela em Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto e Dezembro; e do Bié para as ganguelas em Março, Abril, Maio, Junho, Setembro, Novembro e Dezembro. Tendo registro, portanto, de caravanas saindo do Bié em quase todos os meses do ano, com exceção de Outubro. Assim, podemos estimar que os fatores apontados no item 2.6 do capítulo anterior influenciavam mais na escolha da saída de caravanas do que qualquer evento agrícola. 530 Sobre dificuldades nas viagens de acordo com o clima, ver: Ibid., p. 100–103. 531 Rockel enumera uma série de constrangimentos dos viajantes europeus de comentarem sobre a presença de mulheres como carregadoras da caravana, incluindo os valores vitorianos, a reticência de missionários homens e a preocupação de censurarem suas relações com mulheres negras. Ibid., p. 117, 272. É interessante o destaque do mesmo autor sobre o silêncio da presença feminina nas caravanas também em suas entrevistas orais na Tanzânia atual, sendo negada a possibilidade de carregadoras mulheres por muitos de seus interlocutores, tendo somente algumas entrevistas com informantes mulheres que afirmavam a presença de várias gerações de suas antepassadas nas viagens. Ibid., p. 122–123. 532 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 66-67. (29/09/1863); SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 1-2. (27/10/1860). Vale destacar, no segundo caso, que o sertanejo pressupõe que a carga máxima do fardo da carregadora era menor do que dos seus correspondentes homens – ou pelo menos era assim defendido como aceitável pelos costumes dos carregadores. Por desconhecimento sobre nomes em umbundu, sou incapaz de identificar se todos os nomes no livro de cargas de Silva Porto são somente de homens. Roquinaldo Ferreira comenta, para o século XVIII, sobre algumas mulheres sertanejas que organizaram caravanas pelo interior, no entanto, não encontrei referência a nenhuma delas nos cadernos analisados nesse estudo. De forma análoga, Mariana Candido refere-se também a algumas comerciantes do interior que formavam caravanas para o litoral, caso de Dona Ana José Aranha, residente de Caconda. No entanto, para esse caso específico, a autora não informa se ela liderava pessoalmente tais caravanas. FERREIRA, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, p. 33– 34; CANDIDO, Mariana P. Merchants and the Business of the Slave trade at Benguela, 1750-1850. African

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No entanto, além das carregadoras, muitas mulheres participavam das caravanas como companheiras de viagem de seus parentes. Atuando como verdadeiras sócias dos seus parentes masculinos, as mulheres usavam sua força de trabalho para aumentar a capacidade de carga, levando consigo objetos pessoais do carregador e produtos próprios para serem vendidos, oferecendo o suporte necessário para ampliar a independência econômica de carregadores mais ambiciosos que desejavam mais do que só os pagamentos por levar os fardos do chefe da caravana533. No entanto, as funções das mulheres da caravana incluíam diversas atividades para além do carregamento de fardos. Em uma de suas reclamações noturnas, Silva Porto compara ao inferno o clarão enorme, a música e o barulho de homens e mulheres da caravana batendo para fazer farinha do milho comprado no caminho534. Em atividades como essa, as mulheres davam importantes contribuições às atividades de manutenção das condições de vida da caravana, cozinhando, coletando insetos, plantas comestíveis e lenha535. Outra importante função das mulheres dentro das caravanas era o de acompanhar e cuidar das crianças que faziam parte dessa sociedade. É provável que as crianças que eram socializadas dentro das caravanas seriam elemento importante de reprodução do sistema ao seguirem a carreira comercial ao longo da vida, no entanto, sua presença, assim como das mulheres é bastante silenciada nas fontes europeias. Sejam parentes ou escravos pessoais, carregadores mais jovens poderiam levar panelas e outros objetos pessoais dos carregadores, cargas para serem vendidas por conta de seus patrões ou mesmo poderiam ajudar a segurar os fardos dos carregadores em momentos de descanso536. A presença das

Economic History, nº. 35, 2007, p. 12. Esse silêncio sobre as sertanejas na documentação consultada, no entanto, não reflete a rica historiografia sobre a participação das mulheres no comércio angolano, mesmo que ainda haja um destaque maior às opulentas Donas de Luanda e Benguela. Um bom balanço desses estudos, além de um dimensionamento do protagonismo feminino nesses processos sociais, é feito em: OLIVEIRA, Vanessa dos Santos, The Gendered Dimension of Trade: Female Traders in Nineteenth Century Luanda, Portuguese Studies Review, v. 23, n. 2, p. 93–121, 2015. Sobre a participação feminina mais ampla no comércio em Luanda, ver também: OLIVEIRA, Vanessa dos Santos, Donas, pretas livres e escravas em Luanda (Séc. XIX). Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 44, n. 3, p. 447-456, 2018. 533 ROCKEL, Carriers of Culture, p. 119–121; HEYWOOD, Porters, Trade and Power, p. 251, 257. Rockel defende que, com esse tipo de parceria, mulheres que se envolviam no comércio caravaneiro poderiam ocupar espaços de maior autonomia do que na maioria das suas sociedades de origem. ROCKEL, Carriers of Culture, p. 128. 534 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 91. (27/12/1863). 535 HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 25; ROCKEL, Carriers of Culture, p. 124. Nesse trecho Rockel comenta de pelo menos dois observadores contemporâneos na África Oriental, William Stairs e Emin Pasha, que apontam o quão fundamental era a presença feminina nas caravanas para assegurar a qualidade de vida de seus membros. 536 HEYWOOD, Porters, Trade and Power, p. 257; ROCKEL, Carriers of Culture, p. 128–129. Nesse mesmo trecho, Rockel fala inclusive de registros de mulheres grávidas que davam a luz durante a viagem, tópica que, quando aparecia nos relatos europeus, falava mais da moralidade do observador do que do processo social que observava. Em Silva Porto, nesse recorte, não encontrei nenhum caso semelhante.

215 crianças nas caravanas de Silva Porto também é registrada de forma esparsa em seus relatos; há relato do sertanejo, em viagem 1847, de que as crianças da caravana caçando ratos e lebres com enxadas, enquanto os adultos capturaram veados537. Em outra viagem, de 1863, Silva Porto revela que na área onde dormiam os “serviçais de 10 aos 20 anos”, uma criança da comitiva, em um desmaio por causa do fumo sorvido de um cachimbo, caiu na fogueira, sendo recolhida e colocado pelo de lebre na ferida, prática comum entre os sertanejos para essas situações538. Imagem 7 - Mulheres e Crianças da caravana de Henrique de Carvalho

Retirado de: https://henriquedecarvalho.bnportugal.gov.pt/fotos/foto155.htm. Acesso em 29/01/2021. No entanto, como sugerido no próprio formato do livro de cargas, o pagamento individual por carregador era referente somente àqueles que levavam os fardos do chefe da caravana, sob responsabilidade dos pombeiros. Assim, o pagamento feito pelo sertanejo ao carregador era desvinculado da quantidade de dependentes que acompanhavam o trabalhador. Além disso, esse pagamento era fixo, com valor determinado para o percurso inteiro, pago antes de partirem, independentemente de quanto tempo durasse a viagem539.

537 BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 52. (19/03/1847). 538 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 89-90. (23/12/1863). 539 HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 284–285, 289–290. Silva Porto em vários momentos considera o pagamento de carregadores como o gasto mais justo que fazia no interior da África, não tendo “nenhum [serviço] mais digno de recompensa que este”. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 8. (16/01/1863).

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Antes da caravana partir era necessário que o sertanejo providenciasse a composição dos fardos e reunisse todos os pombeiros em ponto de encontro para distribuírem as cargas entre seus funcionários. Geralmente, o bom sucesso da viagem dependia também de festivais e rituais próprios para evitar quaisquer acidentes futuros, podendo sair do ponto de encontro no momento que fossem reunidos todos os pombeiros necessários para levar as cargas já distribuídas540. Ao chegar de viagem, era costume que o sertanejo organizasse uma nova sessão de pagamento dos carregadores, dessa vez como gratificação pelo recebimento da carga pessoalmente das mãos do trabalhador, para assim guardar as mercadorias em seu armazém no Bié. Também era costume que ao final do processo Silva Porto distribuísse um presente coletivo, como um boi e uma ancoreta de aguardente, para comemoração grupal541. A escolha do sertanejo em fazer esses pagamentos extras, para além de um discurso de dádiva, parece seguir a racionalidade de respeitar costumes com o intuito de evitar represálias. Um dos problemas que era comum, por exemplo, era dos membros de caravanas vindas tanto de Benguela, quanto das ganguelas, arrearem os fardos quatro ou cinco dias antes de chegarem no estabelecimento do sertanejo, já que passavam nas proximidades das próprias habitações. Apesar de haverem punições a tal proceder, o sertanejo admite que o problema era recorrente, tendo que apelar a contratar novos carregadores para terminarem o trajeto. A possibilidade de recebimento de uma espórtula no ponto final, tenho como hipótese, poderia ser uma estratégia do sertanejo para tentar evitar semelhante contratempo542. Mesmo assim, em casos sem prejuízos imediatos havia um certo apelo para razoabilidade na negociação dos carregadores com o sertanejo, como no caso que exigiram um pagamento extra ao chegarem em Benguela em 1863 e descobrirem que o sertanejo não retornaria ao Bié, não tendo cargas para compensar a torna-viagem – o que Silva Porto considerou justo, pagando em fazendas e cobres para cada carregador poder comprar sal para despesas da viagem543.

540 BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 383. (26/12/1864); Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 253. (22/11/1852); Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 282. (30/01/1868). Quando estava estabelecido em Benguela em 1863, Silva Porto, em uma das ocasiões que enviou caravanas para o interior, terminou de distribuir os fardos entre os carregadores para conseguir se livrar dos ditos trabalhadores pois, até o momento da partida, estava sendo obrigado a sustentá-los com mantimentos. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 59. (10/09/1863). 541 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 39. (20/07/1866). 542 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 128-129. (25/05/1861). 543 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 8. (15/01/1863).

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Apesar do pagamento principal do carregador ser por viagem, a duração da viagem interferia nos gastos do sertanejo com seus trabalhadores por causa do pagamento das rações. Geralmente, baseadas em valores diários de gêneros que cada carregador poderia receber para sua alimentação individual, o sertanejo distribuía esses valores em tecidos ou contarias, por ocasião de paradas da caravana próximas a povoações que oferecessem mantimentos para vender. Comitivas com milhares de membros não aguentavam longos períodos sem repor os estoques alimentícios, sendo essas compras no caminho, junto às caçadas e às retribuições das quibandas, as principais formas de alimentar o povo da caravana544. Grupos itinerantes poderiam ir atrás das caravanas para vender alimentos em troca das rações dos carregadores, como era o caso das quipambalas dos arredores de Benguela, área despovoada e desértica que fazia com que fossem uma das poucas fontes de mantimentos545. Não só comida era comprada no meio do caminho pelos membros da caravana. Carregadores entravam em contato com habitantes das aldeias que visitavam e muitas vezes montavam redes sociais de troca de produtos e valores. Como será comentado na sessão seguinte deste capítulo, era comum inclusive que penhorassem mercadorias pessoais e, com esse crédito intra-africano, potencializassem as permutas dentro dos limites físicos da capacidade da caravana. No entanto, essas relações de confiança por vezes poderiam ser quebradas e são frequentes os conflitos entre os povos dentro e fora da caravana. Na região do Cuchibi, o soberano da parte sul do território, Muéne Hibambo, reclamou a Silva Porto que o povo da caravana estava roubando mandioca de suas lavouras, o que levou o sertanejo a sugerir ao seu interlocutor a colocar sentinelas para evitar tais ataques. Três dias depois, os sentinelas do soberano local prenderam um carregador de Silva Porto, exigindo que seus parentes pagassem pelo resgate546. O sertanejo

544 Silva Porto faz uma longa descrição do pagamento das rações e do fornecimento de produtos nas terras do Cuchibi em: BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 87-88. (20/12/1863). Em outra ocasião, Silva Porto afirma pagar de ração um pano por carregador e dois por pombeiro. Idem, Ibid., p. 63. (20/09/1863). Para ter acesso a esses mercados, além da retribuição das quibandas, as caravanas precisavam passar com frequência por terras povoadas, sendo o trecho entre Benguela e Bié mais denso, passando 22 dias em áreas povoadas em viagem de 1852, em um total de 31 dias; e o entre o Bié e o Lui, mais esparsamente povoado, passando 31 dias em áreas povoadas em viagem do mesmo ano, que durou no total 60 dias. Em ocasiões que caravanas de Silva Porto passaram por terras que não ofereciam alimentos o suficiente para as permutas da caravana, a situação poderia levar a várias mortes na comitiva, como ocorreu em caravana de 1862 para o Mashukulumbwe, cf. SANTOS, Nos caminhos de África, p. 20. 545 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 65. (24/09/1863). Outro caso similar aconteceu em Yikoma, com grupos itinerantes aproveitando para vender alimentos aos carregadores em troca dos gêneros que estes conseguiam pelas rações. Idem, Ibid., p. 68. (02/10/1863). 546 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 218-219. (29/10/1867; 01/11/1867).

218 por outras vezes repreendeu seus carregadores por deixarem pilhagens pelas povoações por onde passavam, principalmente com o roubo de alimentos, o que levava à preocupação do sertanejo com futuras represálias ou com cobranças de mucanos. Esse tipo de práticas poderia levar ao escalamento de tensões em complexas contendas, nas quais os crimes de cada lado justificavam o outro, com roubos de alimento gerando confisco de mercadorias, capturas ou mesmo confrontos armados547. Cabia ao sertanejo, além de tentar evitar ameaças diretas à segurança de passagem das caravanas, controlar e dirimir contatos entre as populações locais e os povos das caravanas, sendo impactado a longo prazo principalmente por causa de mucanos, em especial os concernentes a adultério548. Para além das tentativas de controle dos sertanejos sobre suas comitivas, os povos locais não aceitavam de forma passiva os ataques e artimanhas dos membros das caravanas. Por um lado, havia as estratégias de cobrança de mucanos, que se somavam a outros métodos de aumento das taxas de escravização na Angola oitocentista, como era o caso da montagem de armadilhas no caminho do Bié até Benguela, em que os locais ofereciam água aos carregadores e depois cobravam por terem os salvado da sede, ou quando vendiam alimentos por fazendas e, no dia seguinte, desfaziam o negócio ao devolver as fazendas para exigir o alimento de volta, tendo já sido consumido, aumentando o valor despendido por causa da multa549. Em casos de represálias frente à violência do povo da caravana, no lugar de cobrança de multas, os chefes poderiam ter atitudes mais enérgicas. Um caso desses ocorreu em Solo, no caminho para Benguela, no qual o soba local mandou emissários expulsarem vendedores de alimento que estavam no quilombo dos sertanejos por motivo de Silva Porto não ter pago a quibanda – atitude que o sertanejo justificou por causa de roubo exercido pelo dito mandatário anos antes550. No entanto, os conflitos armados também estavam no campo de possibilidades de represálias às ações da caravana, como em 1866 no Cuchibi, quando um conflito armado entre locais e o povo da caravana do macota de Silva Porto, iniciado por um roubo de alimentos, levou ao assassinato de

547 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 223-225. (09/11/1867). 548 HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 374. Ver as considerações sobre mucanos no capítulo 1, em especial sobre os mucanos de adultério. Em diversos episódios, o envolvimento dos homens da caravana com as mulheres locais era preocupação constante do sertanejo, como em 1863, quando o soba do Bailundo enviou para o acampamento da caravana em Quiceque suas várias concubinas, com grande séquito de músicos. Diante dessa situação, Silva Porto mandou deitar pregão para que os carregadores não se envolvessem com as visitantes, alojando-as nas barracas dos sertanejos. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 66-67. (29/09/1863). 549 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 19-20, 17-18. (09/06/1846; 07/06/1846). Nesse segundo caso, ocorrido em Cisanji (Quiçanje, em Silva Porto), é interessante o fato do sertanejo afirmar que essa artimanha, assim como outras, foram reprimidas e o problema foi resolvido por causa de uma guerra do soba do Huambo contra os locais para corrigir sua perversidade. 550 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 2-3. (29/10/1860).

219 parente do soba Muéne Hibambo. Com o pagamento da vida do falecido pelo macota o litígio se resolveu, mas o sertanejo comenta que em outros lugares o resultado desse tipo de ação seria o sequestro dos carregadores e perda das cargas, como ocorreu em várias ocasiões com os sertanejos do Bié551. Para compreender esse tipo de confronto, para além dos eventos específicos que caracterizaram cada caso, é interessante considerar a comparação de Rockel das caravanas africanas com outros trabalhos de comitivas (crew workers). O autor, ao comparar os carregadores de caravanas com os marinheiros de navios mercantes, entende que a definição de costumes em comum se dá por forma específica não só pelos intensos contatos transculturais que envolviam nas viagens, ainda mais no caso das caravanas que não ficavam isoladas por longos períodos, ao contrário dos navios, mas também por serem ambientes marcados pela brutalidade do trabalho, inclusive com recorrência de mortes552. Assim, esses tipos de trabalhadores, com amplo controle do processo de trabalho e, ao mesmo tempo, grande necessidade de estabelecimento de estratégias coletivas para lidar com os perigos do labor, desenvolviam rígidas regras profissionais, que regulavam não só elementos laborais como horários de descanso, jornadas de trabalho e ritmos de marcha, mas também regras de conduta social. No entanto, para Rockel, assim como em outros trabalhos em comitiva, acompanhava essas regras o espectro da desordem, eclodindo em momentos de paragem inúmeros conflitos controlados durante os períodos de trabalho553. Esse elemento da quebra periódica das regras rígidas de conduta de carregadores ajuda a entender, junto com a demanda crescente por escravos, a recorrência de casos de sequestros e mucanos contra carregadores de Silva Porto durante as viagens. Por causa da alta probabilidade de conflitos durante a viagem, sempre antes de partirem as chefias das caravanas proibiam todos os tipos de mucanos entre os membros da comitiva. Silva Porto afirma que esse era procedimento de todos os brancos que habitaram o Bié, com fim de

551 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 21-23. (11/06/1866). Em 1862, a caravana de Silva Porto foi sequestrada no Samba. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 357-359. (21/11/1862). Em 1868, a caravana de Bonifácio José Rasquete teve o mesmo destino no Mashukulumbwe. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 201-202. (03/10/1868). Para o caso do sequestro da caravana de Lucas José Coimbra no Nyengo, ver capítulo 1. 552 ROCKEL, Carriers of Culture, p. xiii–xiv, 23–25. 553 Ibid., p. 98–99, 111–112. Heintze associa esse tipo de comportamento a uma certa arrogância por parte dos carregadores dos europeus frente às populações locais. É interessante destacar o quanto "arrogância" foi uma característica recorrentemente apontada nas imagens feitas sobre os sujeitos "crioulos", que sabiam transitar por vários universos culturais e assim gozavam de um cosmopolitismo que lhes dava maior autonomia do que era recorrente nas sociedades de origem. HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 370; BERLIN, Ira, From Creole to African: Atlantic Creoles and the Origins of African-American Society in Mainland North America, The William and Mary Quarterly, v. 53, n. 2, p. 251–288, 1996.

220 precaver a discórdia que sempre estava latente nas comitivas554. É interessante o caso já citado de julho de 1854 em que, quando estavam em Linyanti, o cozinheiro acidentalmente causou um incêndio em um rancho dos kololo. Entre os alvos das chamas, estava uma cartucheira, que explodiu contra um membro da caravana. Segundo o sertanejo, durante a viagem, nem o ferido e nem os seus familiares “se atreveram à menor palavra”, mas assim que chegaram ao Bié veio cobrar Silva Porto pelo incidente, esperando, portanto, conseguir indenização que era proibido de solicitar durante a viagem555. Como já explicado no capítulo 1, muitos dos pagamentos de mucanos não eram referentes a ações pessoais do sertanejo, e sim de contravenções de dependentes com quem mantinha os seus vínculos sociais. Diante dos grandes riscos que envolviam os conflitos do caminho, um dos objetivos do contrato de pombeiros era também o de repartir os vínculos sociais de responsabilidade, sendo de responsabilidade dos pombeiros assegurar a disciplina e segurança de seus carregadores, com o sertanejo em várias ocasiões negando responsabilidade sobre as ações de trabalhadores que não estavam sob sua direta incumbência. Um caso interessante para se pensar é o que abre o capítulo, quando a caravana em direção ao Lui soube da Revolução de Linyanti. Após a recusa dos carregadores de seguirem viagem, depois dos pombeiros terem esgotado as tentativas de persuasão para que seguissem adiante, foi proposto que a caravana poderia seguir viagem caso o sertanejo assumisse a responsabilidade direta pela vida de todos da comitiva – o que Silva Porto considerou um risco absurdo, optando por retornar ao Estabelecimento no Cuchibi. Diante dos gastos que tal decisão poderiam resultar para o sertanejo, ele calculou que não valia a pena se arriscar tanto e preferiu retornar ao Cuchibi, a esperar a situação se acalmar556. Esse acordo de divisão de responsabilidades com os pombeiros, apesar de permitir uma divisão dos riscos e própria formação de caravanas enormes que rentabilizavam as viagens, no entanto, também traziam muitos problemas aos sertanejos, com a divisão de seus lucros com uma série de agentes africanos que tinham prioridades e práticas bastante distintas de seus patrões. Por esses motivos, que serão analisados com mais detalhes na sequência, o contrato de pombeiros, visto pelos sertanejos como uma faca de dois gumes.

554 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 3. (17/05/1846). 555 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 22-23. (17/12/1854). 556 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 93-94. (04/01/1864).

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3.3 Os “incorrigíveis” Em ensaio introdutório de coletânea clássica sobre o estudo dos trabalhadores do comércio africano, Catherine Coquery-Vidrovitch e Paul Lovejoy apontaram o quanto que o processo de expansão do comércio de longa distância, cuja acumulação de excedente frequentemente era controlada pelos Estados, permite que os próprios trabalhadores pudessem acessar e acumular riquezas. Assim, baseados nos vários estudos de caso que compõem a coletânea, os autores afirmam que os trabalhadores, ao serem pagos em espécie e não em dinheiro, carregavam junto das mercadorias dos chefes também as mercadorias para si mesmos, tornando-se pequenos negociantes ou sócios de negócios familiares, sendo o trabalho em caravanas um caminho de transformação desses carregadores em futuros negociantes, tendo como objetivo acumular capital para alcançar ascensão social557. Nesse sentido, Beatrix Heintze registra a reclamação de Max Buchner da ganância de seus carregadores, que logo quando podiam já compravam cera. O viajante alemão chega a afirmar que “Esta é uma das razões por que não é aconselhável aligeirar os carregamentos. Caso contrário, os carregadores atulham-se com os seus próprios trastes”558. Rockel entende de outra forma esse processo. No lugar de se tornarem pequenos negociantes, carregadores se socializavam dentro da comitiva e passavam por um processo de profissionalização. Mesmo que o trabalho nas caravanas fosse uma das formas de maior acesso a produtos importados, o autor defende que foi na experiência da caravana que tais trabalhadores formaram uma cultura distinta, marcada pelo desenvolvimento de status e orgulho profissional na especialização. Assim, acumulavam pecúlio, mas também tinham como marcadores sociais marcas corporais, musculatura e aprendizado de línguas, desenvolvendo uma identidade cultural enquanto carregadores profissionais, e não enquanto homens de negócio, ou nos termos de Coquery-Vidrovitch e Lovejoy, pequeno- burgueses. Portanto, para Rockel a ideia de que os projetos dos carregadores de ascensão se resumiam ao acúmulo pessoal de excedente e ascensão de status ignoraria não só a formação de identidades ligadas à atividade profissional, mas também as mobilizações por

557 COQUERY-VIDROVITCH, Catherine; LOVEJOY, Paul E, The Workers of Trade in Precolonial Africa, in: COQUERY-VIDROVITCH, Catherine; LOVEJOY, Paul E (Orgs.), The Workers of African Trade, Beverly Hills: Sage Publications, 1985, p. 12–14, 16–19. 558 Buchner, 1999 apud HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 44–45. Sobre as possibilidades de acumulação dos seus carregadores, Silva Porto comenta que aqueles que conseguiam comprar escravos no Lui aumentavam as chances de ascensão comercial, já que um escravo valia por seis cabeças de gado e, com esse gado e mais "quatro ou seis escravos", a pessoa saía "da classe plebeia para a nobre", aumentando o acesso a concubinas e podendo entrar na carreira de pombeiro, o que possibilitava receber fazendas diretamente dos sertanejos, como já comentamos. SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Silva Porto e Livingstone: Manuscripto de Silva Porto encontrado no seu espolio, Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1891, p. 24.

222 aumentos salariais e defesa de seus costumes559. Inclusive esse autor critica as formulações da historiografia sobre uma relativa facilidade e recorrência de casos de carregadores que se tornaram negociantes a partir de seus pequenos pecúlios de trabalho. Em geral tais visões, além de ignorarem as dificuldades desse tipo de trajetória, também reproduzem imagens pouco sensíveis às estratificações internas de sociedades como os nyamwezi, não percebendo que a ascensão política de novas elites comerciais, como era o caso dos vbandevbas entre os nyamwezi, não significava que todos os agentes do comércio de longa distância poderiam chegar a compor novas elites560. Se aceitarmos a premissa de trabalhos como o de Rockel e de Elaine Ribeiro, os quais afirmam que a caravana constituía uma sociedade com vínculos, valores e costumes próprios, torna-se importante considerá-la a partir dos seus estratos internos561. Assim, poderemos refletir o quanto as escolhas e estratégias dos seus membros durante as viagens envolviam elementos de lutas coletivas pelas condições de trabalho, mas também o quanto suas ações poderiam ter como objetivo mais claro a acumulação de pecúlio para ascensão social e mesmo maior autonomia comercial para fazerem viagens por conta própria. Para tal, será necessário focalizar inicialmente sobre as ações dos pombeiros, que mais diretamente vivenciavam a experiência de sócios comerciais dos empreendimentos maiores dos seus contratantes e que, potencialmente, fariam parte das novas elites de grupos que, fora das linhagens aristocráticas, acumularam bens de prestígio e erodiram a autoridade das chefias562. Como já explicado anteriormente, além dos banzos destinados para a permuta principal do sertanejo com o grande soberano, uma parte dos fardos ficava comissionada com os pombeiros para estes realizarem viagens subsidiárias com os seus carregadores e pagarem ao sertanejo um percentual de seus ganhos563. Assim que chegavam no ponto final

559 ROCKEL, Carriers of Culture, p. 65–66, 74–76; COQUERY-VIDROVITCH; LOVEJOY, The Workers of Trade in Precolonial Africa, p. 7–8. 560 ROCKEL, Carriers of Culture, p. 56. Henriques faz crítica análoga para o comércio da África Centro- Ocidental, apontando que, apesar reconhecer a possibilidade de um afloramento de crescente espírito comercial entre os agentes das caravanas, o pagamento em gêneros (fazendas ou contarias) aos carregadores dificultava a acumulação de riquezas - tendo mais sucesso aqueles que conseguiam trocar por fontes mais rentáveis de capital, como escravos e marfim. HENRIQUES, Percursos da modernidade em Angola, p. 410–411. 561 ROCKEL, Carriers of Culture; SANTOS, Sociabilidades em Trânsito. 562 HENRIQUES, Isabel Castro, Comércio e empresários em Angola na 2a. Metade do século XIX, in: Os pilares da diferença: relações Portugal-África séculos XV - XX, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2004, p. 393–413; HEYWOOD, Contested power in Angola, p. 1–30. 563 Para se ter dimensão da proporção entre a fatura principal e os negócios com os pombeiros, em 1868 Silva Porto registra o resultado de viagem ao Lui trazendo 4689 libras de marfim (sem informar as classes), sendo 2.267 libras suas e 2.422 libras permutas pelos seus pombeiros. O sertanejo lamenta o resultado, pois, no ano

223 da viagem, o sertanejo se estabelecia na corte do grande soberano e os pombeiros poderiam fazer suas permutas sob permissão do soberano, mas geralmente em terras fora da sua jurisdição, já que, como discutimos no capítulo anterior, o marfim era monopólio do litunga do Barotse, sendo considerado contrabando se qualquer chefe subordinado vendesse diretamente aos estrangeiros. Em uma discussão bastante acalorada entre Silva Porto e Sipopa em 1868, o litunga protestou contra o envolvimento do sertanejo e de seus pombeiros com o contrabando em suas terras, ao que Silva Porto respondeu que o soberano nem deveria mandar afiar as azagaias, pois nem mesmo com o marfim oferecido pelos contrabandistas a quantidade de pontas era suficiente para compensar as fazendas que o litunga tinha recebido. Silva Porto ameaçou que, se Sipopa não mudasse o seu sistema de captação e reserva de marfim, os sertanejos do Bié não viriam mais às suas terras, sobrando ao soberano só comercializar com os ingleses. O tom desse debate, que se encerra com Sipopa saindo abruptamente do acampamento ao alegar que não estava para aturar Silva Porto, demonstra as tensões crescentes de um mercado de marfim que já começava a demonstrar escassez diante da concorrência vinda de várias regiões do continente564. Mesmo sendo responsáveis por parte considerável da fatura final de uma viagem ao interior, nem sempre era fácil a Silva Porto recuperar os recursos investidos nos seus pombeiros. Eram frequentes as suas reclamações sobre pombeiros que não pagavam os banzos assim que partiam para a torna viagem, tentando cobrar seus pombeiros por todo o trajeto, já que Silva Porto temia que os intermediários se dispersassem ao chegarem de volta do Bié e as dívidas permanecessem não pagas565. Nem sempre Silva Porto se atinha a somente a reclamações, devolvendo pagamentos insuficientes para forçar que a fatura toda fosse paga566, ou mesmo ameaçando os seus pombeiros. Em outubro de 1864, ao chegarem no Bié, dois pombeiros entregaram em cera e escravos somente um terço do valor investido, diante da situação, o sertanejo os obrigou a reunir pelo menos mais um terço do valor acordado, ameaçando de prendê-los. No dia seguinte, acabou cumprindo a

anterior, os funcionários haviam pago 1624 libras a mais, mesmo tendo sido investida a mesma fatura. BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 214-215. (25/10/1868). 564 BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 205. (11/10/1868). A fatura descrita no apontamento anterior é o resultado desta viagem. Nela, Silva Porto afirma que 400 libras eram provenientes do contrabando. 565 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 235. (24/11/1867). Em uma dessas ocasiões, Silva Porto cobrou seus pombeiros recalcitrantes ao chegarem no Cuchibi, no entanto, estes intermediários tinham depositado cera nas mãos dos locais, o que era prática comum, como discutiremos na sequência. E quando chegou a caravana no local, os seus habitantes haviam abandonado a aldeia em busca de alimentos no mato, forçando Silva Porto esperar o seu retorno para que assim os pombeiros tivessem de volta a cera e pagassem as dívidas com o sertanejo. BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 226. (20/11/1868). 566 BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 368. (08/11/1864).

224 promessa, obrigando que os pombeiros presos mandassem buscar o que faltava para quitar a dívida, o que foi feito no dia seguinte567. Parte dos problemas que envolviam as dificuldades do sertanejo conseguir recuperar os valores investidos nos pombeiros era a preferência destes pela permuta de escravos e cera, produtos de menor lucratividade no mercado de Benguela. Com frequência, o sertanejo reclamava da suposta imprudência das escolhas comerciais dos pombeiros, tanto por gastarem suas fazendas com animais para comer, ou comprando produtos como a cera em locais mais caros, justificando assim que esses “incorrigíveis” viviam endividados e “vivendo de trapaças”568. No caso de comprarem escravos, o sertanejo reclamava do fato de que, com certa frequência, os pombeiros acabavam perdendo o “investimento” por causa da fuga dos cativos durante a viagem, estando, por esses motivos, sob responsabilidade dos pombeiros as fugas e mortes até a chegada da caravana no Bié569. Um elemento importante para pensar nas motivações dos pombeiros ao se envolverem no comércio de longa distância, que não se resumiam a cumprir planos dos sertanejos, é a origem geográfica desses funcionários. Como pode ser observado no livro de cargas, ainda que o mesmo pombeiro pudesse ter consigo carregadores de mais de uma proveniência, é de se esperar que pelo menos todos seus carregadores, ao serem geralmente dependentes, escravos ou familiares, fossem súditos dos mesmos Estados. Enquanto a maioria dos pombeiros e, por consequência, dos carregadores de Silva Porto, eram do Bié, após o acordo de 1852 com o soba Mbonge, o comércio do Bailundo se abriu para as ganguelas, e o sertanejo passou a contratar pombeiros também dessa proveniência. Com frequência, Silva Porto montava caravanas com pombeiros das duas origens, havendo necessidade de apelar para pombeiros bailundos quando já tinha acionado todos os bianos e ainda tinha cargas para serem levadas570. O sertanejo admite ter preferência pelos carregadores do Bié, por “se acharem mais domesticados com os europeus”, mas por vezes acabava privilegiando o recrutamento de bailundos por questões de conveniência, como

567 BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 354-355. (06/10/1864- 08/10/1864). Por vezes Silva Porto demonstrou seu rancor com os pombeiros de forma menos draconiana, recusando-se a dar presentes costumeiros após o final de viagens, ou mesmo presenteando carregadores, mas se recusando a presentear os pombeiros da mesma comitiva. BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 232, 240. (04/12/1868; 27/12/1868). 568 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 58. (07/09/1863); Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 43-44. (24/05/1868). 569 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 222-223. (08/11/1867). 570 BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 248. (15/01/1869); Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 359. (19/10/1864).

225 em 1862, em viagem para Benguela em que os trabalhadores do Bailundo já tinham levado os fardos de Belmonte até Yikoma e, nesse ponto, no lugar de ir atrás de pombeiros bianos, Silva Porto considerou mais prático contratar os mesmos trabalhadores para o trecho até Benguela571. No entanto, a presença conjunta de pombeiros e carregadores destas duas localidades era motivo para vários conflitos no interior da sociedade caravaneira. Com regras bastante claras sobre a preferência por carregadores bianos, na ordem de distribuição das cargas e dos pagamentos, as tensões entre os dois grupos eram grandes. Para evitar qualquer escalamento de conflitos, o sertanejo tentava balancear a distribuição dos fardos e cumprir as demandas dos dois grupos. Silva Porto registra em vários episódios as reclamações dos carregadores bailundos frente aos privilégios dos bianos, considerando aqueles mais turbulentos e impertinentes, mesmo que o sertanejo reconhecesse que poderiam ser melhores para a condução e, como já dito, indispensáveis para conseguir levar todas as suas cargas572. Manter a disciplina e coesão interna da caravana era tarefa que cabia ao chefe desta, um sertanejo ou seu macota. Em caso de falecimento durante a viagem desse chefe, a comitiva poderia acabar se dispersando ou ficando paralisada no caminho por causa das consequências materiais e espirituais desse tipo de evento. Foi o que ocorreu 23 de maio de 1858, nas margens do rio Nyengo, quando o sertanejo açoriano Luiz Albino Rodrigues acabou sendo atacado violentamente por um búfalo em uma caçada mal sucedida,

571 BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 389-391. (22/12/1862). Constança Ceita sugere que alguns dos carregadores de Silva Porto poderiam ser naturais das ganguelas. Mesmo que a hipótese seja verossímil por causa do aumento do tráfico interno do Planalto Central durante o século XIX, sendo trazidos grandes contingentes de indivíduos escravizados provenientes das terras a leste, as identificações que os africanos desenvolviam no interior de Angola com frequência eram referentes aos soberanos políticos que dominavam as terras onde moravam e, portanto, com pombeiros súditos do Bié e do Bailundo, provavelmente assim também se identificavam os seus carregadores. CEITA, Constança do Nascimento da Rosa Ferreira, Silva Porto na África Central – Viye / Angola: História Social e Transcultural de um Sertanejo (1839-1890), Tese de Doutorado, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2014, p. 216. Para mais sobre a formação de identidades africanas no século XIX, ver capítulo 1. Vale ainda apontar que, em pelo menos uma ocasião, Silva Porto também teve que recrutar carregadores no Barotse, a partir da corveia cobrada pelo soberano do país. Ver nota 480 deste capítulo. 572 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 69, 59. (06/10/1863; 11/09/1863); Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 283-284. (08/04/1869- 10/04/1869). Esse tipo de rivalidade demonstra o quão inoperante era nessa época qualquer tipo de identidade e solidariedade comum entre os diversos povos do Planalto Central. Não só a origem de diferentes sobados alimentava rivalidades entre carregadores, sendo frequentes que tensões cotidianas incitassem os ânimos dos trabalhadores, como ocorreu em 1862, quando carregadores do sítio Camucumba no Bié começaram uma briga generalizada com a gente da libata grande após um acidente na travessia de uma ponte, na qual um pequeno dente de marfim caiu do fardo de um carregador e feriu o ombro direito do outro. BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 384-387. (20/12/1862). HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 369–370.

226 falecendo no dia seguinte por causa dos ferimentos573. Quando Silva Porto encontra a caravana de seu falecido amigo paralisada, auxiliou o encarregado da caravana a distribuir os tecidos para carregadores e pombeiros, que se sentiam lesados em relação aos serviçais pessoais do falecido, que haviam dividido entre si os fardos guardados pelo defunto para a torna viagem. Optaram, portanto, por distribuir quatro panos por pessoa, o que satisfez o povo da caravana e, junto com os devidos rituais para evitar futuras represálias do espírito do chefe, permitiu que a comitiva encerrasse a viagem com todas as responsabilidades recíprocas já quitadas, ou seja, honrando os mecanismos de crédito que haviam formado inicialmente o empreendimento caravaneiro574. Era comum que, além do investimento de chefes das caravanas em seus pombeiros, os próprios, ou mesmo alguns carregadores, depositassem seus produtos já permutados nas mãos de chefias ou parceiros comerciais do caminho, para assim aumentar a capacidade de acumulação de gêneros nas permutas finais, sem a necessidade dos carregadores passarem a viagem inteira para o interior levando mercadorias que só seriam necessárias na torna viagem575. Ao retornarem aos mesmos pontos na volta, os membros da caravana exigiam a devolução dos seus objetos penhorados, o que nem sempre era bem sucedido. Em mais de uma ocasião, contravenções causadas por outros carregadores impediam que membros da caravana conseguissem de volta seus objetos penhorados, com negociantes locais confiscando para si tais produtos a título de reparação576. Por causa desses confiscos, Silva Porto frequentemente critica seus pombeiros por confiarem nos ganguelas para esse tipo de operação, o que, em último caso, dificultava que esses mesmos pombeiros conseguissem pagar suas dívidas com o sertanejo577. No entanto o próprio sertanejo aplicava tal prática, tendo como importante interlocutor o soberano do Cuchibi, Muéne Hibambo. Pela confiança de que podia contar com este soberano, Silva Porto o elogia em viagem de outubro de 1867, pois recebeu de volta as cargas que tinha

573 BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 28-29. (02/06/1858). Rodrigues Graça erroneamente afirma em sua listagem de moradores do Bié que Luiz Albino Rodrigues era natural da ilha da Madeira, enquanto Silva Porto afirma que seu amigo era proveniente da ilha Terceira. GRAÇA, Joaquim Rodrigues, Expedição ao Muatayanvua: Diário de Joaquim Rodrigues Graça. Manuscripto Original da Sociedade de Geographia de Lisboa, Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa, v. 8 e 9, 1890, p. 399–400. 574 BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 32-33. (19/06/1858). 575 No final do século, com a racionalização do comércio no eixo de Angola para a Lunda, Elaine Ribeiro mostra como o papel escrito foi se tornando um instrumento importante para esse tipo de mecanismo de crédito nas casas comerciais ao longo das rotas. SANTOS, Sociabilidades em Trânsito, p. 126–127, 134– 135. 576 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 223-225. (09/11/1867). 577 BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 226. (20/11/1868); Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 25-26. (18/06/1866).

227 deixado com o mandatário em abril do mesmo ano, mesmo diante de ataques de membros das caravanas às lavras locais. O sertanejo reconhece que, se seus negócios fossem com outras pessoas, provavelmente suas cargas penhoradas seriam confiscadas em represália aos atentados do povo da caravana578.

3.4 “Nós não temos culpa do transtorno da viagem” Após termos discutido sobre os projetos, interesses e conflitos dos pombeiros com os sertanejos que os contratavam, falta agora refletir sobre os antagonismos que polarizavam os chefes das caravanas frente a gigantesca maioria de suas comitivas, os próprios carregadores. Além dos desafios naturais e questões de segurança na relação com as sociedades do caminho, boa parte dos mecanismos de controle e disciplinamento interno das caravanas servia para os chefes lidarem com os desejos e expectativas das centenas ou milhares de pessoas que caminhavam e carregavam fardos enormes lado a lado deles. Ao exercerem sua autoridade sobre a comitiva, os chefes sabiam que os carregadores tinham coesão suficiente para, caso julgassem que as atitudes do líder feriam seus interesses e costumes, poderiam paralisar a caravana ou mesmo abandonar seus fardos. Compreender as aspirações de seus subordinados, portanto, era vital para os sertanejos, condição essencial para a existência de seus empreendimentos caravaneiros579. Da parte dos carregadores, a necessidade dos chefes de manterem vínculos de responsabilidade com eles permitia que pudessem exigir benefícios de acordo com tais aspirações, sempre mantendo a ameaça da rebeldia como elemento de barganha580. Ao atentar para esses termos é possível entender a paralisação da caravana no episódio que abre este capítulo. Temendo pela própria segurança diante dos conflitos que pululavam no território do Barotse, os carregadores se recusaram a seguir viagem até terem notícias da pacificação do caminho. Além de conseguirem impedir o avanço da caravana até o Lui, os carregadores de Silva Porto, ao chegarem no Cuchibi, exigiram um pagamento extra para poderem comprar mantimentos para o período de paragem, exigindo corais para tais despesas, já que “nós não temos culpa do transtorno da viagem”. Diante da pressão, Silva Porto acabou cedendo a cada membro da caravana um fio de 100 bagos de coral que

578 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 218. (29/10/1867). Ver nota 546 sobre a mesma situação. Em outra passagem, Silva Porto confessa ter utilizado de outra estratégia para deixar as cargas sob segurança no caminho, tendo enterrado um pão de cera em baixo de sua barraca no estabelecimento no Cuchibi, encontrando o produto intacto meses depois. BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 220. (06/11/1868). 579 RIBEIRO, Barganhando sobrevivências, p. 17–18, 31–34. 580 SANTOS, Sociabilidades em Trânsito, p. 152–154, 165–168.

228 equivaliam a 2 panos581. Nessa mesma viagem, antes de chegarem notícias de Linyanti, tais carregadores já tinham pressionado Silva Porto por causa de suas remunerações, exigindo maior igualdade no pagamento de rações entre carregadores e pombeiros. Rejeitando serem pagos em 20 corais, exigindo receber meio fio (50 bagos) da mesma forma que os pombeiros, o que o sertanejo consentiu582. Além disso, a soberania do soba sobre os seus súditos ultrapassava fronteiras e acompanhava a caravana em movimento. Não só os sertanejos e pombeiros tinham vínculos de responsabilidade com os carregadores. Eventuais problemas que atingissem a eles poderiam gerar represálias dos sobas, como nos casos analisados no capítulo 1 sobre o sequestro ordenado por António Francisco das Chagas no Muatamjamba ou do ataque às caravanas na Guerra do Canduco. Assim, mesmo na relação com seus escravos pessoais, o sertanejo tinha que evitar conflitos com os trabalhadores, não só por causa da possibilidade de paralisarem ou abandonarem a caravana, mas também pelo risco de ser punido posteriormente pelos sobas dos quais esses mesmos trabalhadores eram súditos583. Mas, na maioria das vezes, esses antagonismos, que podem ser interpretados como ações de resistência dos trabalhadores, ou como projetos de ascensão individual, materializavam-se em casos de pequena escala, mesmo que recorrentes, como as fugas durante as viagens. Fugindo sozinhos ou em pequenos grupos, Silva Porto registra em praticamente todas as suas viagens tentativas, bem sucedidas ou não, de evasão por parte de carregadores mambari. Com frequência, quando era informada a deserção, o chefe da caravana mandava montar acampamento e reunia o grupo para tentar encontrar o fugitivo. O sertanejo comenta que as fugas eram frequentes tanto entre pessoas livres, quanto entre escravos, geralmente por causa do peso de suas cargas, podendo o mal tratamento ser outra motivação comum aos escravos. No entanto, era recorrente que esses indivíduos, livres e escravizados, acabassem sendo capturados pelos povos locais, que cobrariam o resgate dos parentes e do sertanejo584. Um tipo específico de fuga que era bastante recorrente entre os trabalhadores do Planalto Central era a tumbica. Como já explicado no capítulo 1, a tumbica consistia em uma estratégia de fuga de escravos na qual tentavam trocar de senhor a partir de uma contravenção contra um chefe que não era o seu – geralmente rasgando um pano, partindo

581 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 92-95. (29/12/1863; 31/12/1863; 04/01/1864; 07/01/1864). 582 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 90-91. (25/12/1863). 583 SANTOS, Sociabilidades em Trânsito, p. 152–153. 584 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 125. (05/04/1864); Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 237-238. (26/11/1867).

229 cartuchos de pólvora ou mesmo fazendo injúrias verbais. Assim, com a responsabilidade do antigo senhor de pagar a indenização pelo mucano do dito escravo, tal valor poderia ser pago com a cessão do próprio infrator, que se oferecia para tal. Essa estratégia era importante para a busca dos escravos por senhores mais poderosos que ofereceriam melhores condições de vida e, no caso das viagens, poderia ser uma opção mais segura do que a simples fuga, já que teria a seu favor um interessado na sua permanência – o seu novo soba – que geralmente tinham com essas práticas uma fonte importante de acumulação de dependentes585. No entanto, as fugas eram uma opção arriscada. Como já comentado, os fugitivos poderiam ser capturados pela gente da caravana ou por chefes locais interessados na cobrança de resgates. Além disso, o caminho era especialmente perigoso para quem marchava em grupos pequenos, como Silva Porto comenta sobre o caminho de Benguela, onde com frequência carregadores doentes ficavam para trás com seus parentes e eram capturados pelas quipambalas. Tais caravanas litorâneas conseguiam assim escravos sem grandes dispêndios586. Mesmo quem tumbicava não necessariamente conseguiria se ver livre definitivamente dos antigos senhores – ao fazer quilombo no Lóque, e descobrir que um escravo seu havia tumbicado com um chefe local, Silva Porto acionou o soba do país que deu ordem para entregarem de volta o carregador do sertanejo, por ocasião da torna viagem, pagando ainda uma indenização definida pelo chefe local587. Mesmo que vários dos sobas das proximidades do Bié procurassem mostrar esse tipo de cordialidade com os sertanejos, por causa das chamadas comedorias que podiam arrecadar, o principal aliado de Silva Porto nesse tipo de operação foi o soba Mbonge do Bailundo. Em mais de uma ocasião Mbonge mandou enviar para Silva Porto escravos fugidos das caravanas, ou mesmo do estabelecimento do sertanejo em Benguela, mandando devolver mercadorias

585 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 140-141. (26/06/1861); SEBESTYÉN, Éva, Escravização, escravidão e fugas na vida e obra do viajante-explorador húngaro László Magyar (Angola, meados do século XIX), in: DEMETRIO, Denise Vieira; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos; GUEDES, Roberto (Orgs.), Doze Capítulos sobre Escravizar Gente e Governar Escravos: Brasil e Angola - séculos XVII-XIX, Rio de Janeiro: Mauad X, 2017, p. 303–304. Elaine Ribeiro comenta de atos inspirados na prática de tumbica mesmo em cidades coloniais do litoral, analisando caso em Moçâmedes. RIBEIRO, Barganhando sobrevivências, p. 211–214. 586 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 66. (28/09/1863). Silva Porto desconfia, no entanto, que as ditas caravanas também conseguiam membros a partir da fuga de escravos da cidade de Benguela. BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 392. (23/01/1865). 587 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 4. (04/01/1863).

230 que eventualmente seus súditos poderiam ter subtraído do sertanejo, como foi o caso de um saco de missangas devolvido em dezembro de 1860588. Esse tipo de aliança conservada entre os sertanejos e os sobas não serviam somente para o combate às fugas. Após reclamação do soba do Bié, em outubro de 1861, de que o conteúdo de um carregamento de aguardente entregue por Silva Porto estava aguado, o sertanejo descobriu que duas ancoretas tinham passado por fraudes no caminho, sendo parte do seu conteúdo consumida e completada com água. Ao constatar que eram fardos sob responsabilidade de pombeiros do Bailundo, o sertanejo enviou emissários para reclamar com o dito soba, ação que não chegaram a concretizar pois, ao passarem pelas povoações dos pombeiros, estes imploraram para que a questão não chegasse ao soberano, seguindo para Belmonte e pagando a condenação e os prejuízos pela fraude. Assim, as alianças entre sertanejos e sobas poderiam servir também de instrumento de barganha dos chefes das caravanas para assegurar o disciplinamento do seu pessoal durante a viagem589. Estratégia análoga era utilizada a partir das hierarquias internas da caravana. Nos cadernos de Silva Porto, são recorrentes os registros de roubos perpetrados por membros da caravana, no entanto, nem sempre o sertanejo conseguia punir diretamente os seus trabalhadores, tendo que lidar com acusações de injúrias caso tais sujeitos quisessem disputar a posse dos produtos590. Por este motivo, poderia ser mais bem sucedida a punição ao cobrar a perda econômica do roubo com os pombeiros responsáveis por esses carregadores, transferindo a responsabilidade da cobrança para o intermediário. Como esses eventos ocorriam durante a viagem, era obrigação do pombeiro pagar as indenizações, assim, ao transferir tal responsabilidade, o sertanejo aumentava as chances de ser indenizado pelo dito pombeiro, mesmo se este não tivesse sucesso em recuperar a mercadoria com o carregador591. As fugas, roubos de cargas e mesmo quedas de fardos, possivelmente propositais, podem ter sido muitas vezes ações de resistência deliberada e cotidiana a um trabalho brutal. Como já foi destacado várias vezes, o comércio de longa distância oferecia riscos

588 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 13, 23, 105. (03/12/1854; 23/12/1860; 15/04/1861). 589 SGL. Res. 2 – C – 6. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, volume 2º, p. 187–188, 193. (15/10/1861; 16/10/1861; 27/10/1861). 590 SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 23-24. (12/05/1854); BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 126. (09/04/1864); SGL. Res. 1 – Past. E – 4 – 2. Silva Porto, Memorial de Mucanos, p. 10-11. (15/12/1846). Esse último caso, já analisado no capítulo 1, foi levado para decisão na libata grande, já que o carregador se defendeu da acusação de roubo ao acusar Silva Porto de injúria por lhe chamar de “ladrão”. Não temos conhecimento do resultado desse litígio. 591 BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 14. (23/03/1868); Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 94. (20/12/1866).

231 excepcionais a quem se envolvia com ele: acidentes, conflitos armados, doenças, sequestros, roubos de carga, entre muitos outros; no entanto, era, como já dito, uma modalidade de comércio que trazia oportunidades excepcionais para ascensão social592. Mesmo que não tenham sido muitos os carregadores que, como alguns pombeiros, conseguiram ascensão a ponto de se tornarem sekulus, manteve-se a associação do comércio caravaneiro com as oportunidades de enriquecimento, o que ajuda a entender a recepção bastante distinta desse tipo de trabalho entre os povos do Planalto Central em relação à reatividade contemporânea ao carreto nos distritos portugueses da região do Kwanza. Portanto, mesmo que durante a viagem os termos que regulavam as condições de trabalho e vida dos carregadores eram constantemente renegociados por atitudes de resistência mais sutis ou diretas, mais individuais ou coletivas, isso não mudava o fato que a carreira nas caravanas comerciais era bastante atrativa. Além disso, não é difícil de estimar que a experiência comum entre os membros das comitivas que passavam meses marchando em conjunto formava, além da identidade profissional como carregadores, laços de solidariedade entre a gente da caravana. Os momentos de lazer que se intercalavam com as caminhadas, marcados por cantorias, danças, divertimentos e bebedeiras, congregavam os trabalhadores em torno das fogueiras e não é difícil de estimar de que podiam aí formar códigos ou laços de companheirismo que se fortaleciam na experiência comum como viajantes – o que já foi apontado por diversos historiadores para esse tipo de trabalhadores africanos593. Nesse sentido, Silva Porto não é uma boa fonte para sabermos sobre o que os carregadores cantavam, o que conversavam, como se agremiavam, com quem comiam, como dançavam, pois os filtros eurocêntricos do sertanejo, somados aos seus próprios incômodos como patrão, em geral registram essas ocasiões denunciando as algazarras, a embriaguez e a suposta selvageria de seus carregadores. Em certa ocasião, Silva Porto compara os barulhos da noite em seu quilombo com o inferno, com grandes clarões, pilões de farinha batendo freneticamente no milho e com o coro de “milhares de bocas” – no entanto, nesse tipo de ocasião não nos informa o que as “milhares de bocas” estavam cantando594.

592 HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 362; CURTIN, Philip D., Cross-cultural trade in world history, Cambridge: Cambridge University Press, 1984, p. 5–6. 593 HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 359–360; ROCKEL, Carriers of Culture; SANTOS, Sociabilidades em Trânsito, p. 19. Sobre as sociabilidades criadas e fortalecidas em torno das fogueiras, ver ainda: SLENES, Robert, Na Senzala, uma flor: Esperanças e recordações na formação da família escrava, 2a edição. Campinas: Editora da Unicamp, 2011, p. 241–244, 247; GONÇALVES, Apontamentos Vindos dos Sertões, p. 119–120. 594 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 91. (27/12/1863).

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Podemos estimar que, portanto, para além das oportunidades de enriquecimento, um sentimento de pertencimento ou orgulho que pode ter se desenvolvido entre os carregadores era um outro atrativo, inclusive de valorização dentro das caravanas de quem tivesse mais experiência. Essa valorização também era dada pelos sertanejos, criando laços de confiança com intermediários mais experientes, podendo deixar sob sua responsabilidade a gestão de caravanas na ausência do negociante europeu – exercendo o cargo de macotas. Além dos macotas, a profissionalização entre carregadores que tinham a experiência de várias viagens abriu caminho para ocuparem cargos específicos dentro da sociedade caravaneira, como de kesongo (quissongos, em Silva Porto). Os kesongos eram aqueles que caminhavam na vanguarda da caravana, com bandeiras, abrindo caminho, retirando obstáculos e decidindo eventuais desvios, sendo nesse caso preciso que cada carregador avisasse o seu companheiro de trás prevenindo a mudança da marcha. Com a responsabilidade de assegurar a segurança física e espiritual contra armadilhas e feitiçarias no caminho, o kesongo impedia que qualquer carregador ultrapassasse a sua bandeira, gerando por vezes conflitos contra aqueles que desobedeciam a tal determinação595. O chefe da caravana e demais maiorais andavam, por sua vez, na retaguarda da comitiva, para assim não deixar ninguém para trás, forçar quem estivesse parado descansando a voltar a trabalhar ou mesmo tentar evitar fugas596. Presença constante nas caravanas eram também os quimbandas, curandeiros nativos que eram responsáveis também pela intermediação com os espíritos. Como já explicado no capítulo 1, grande quantidade de eventos envolvendo a vida no interior poderiam ser entendidos em função dos caprichos dos espíritos, sendo necessária a presença desses intermediários para fazerem adivinhações e curativos em caso de qualquer tipo de acidente durante as viagens. Mesmo acusando esses homens de embusteiros, Silva

595 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 3-4. (18/05/1846); BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 394-395. (26/12/1862). Inclusive, a bandeira que os kesongos carregavam era a bandeira das quinas, sendo também colocado o símbolo de Portugal nos estabelecimentos montados por Silva Porto no interior. Heintze, entre outros autores, afirma que kesongo é sinônimo de pombeiro, sendo a versão utilizada deste termo entre os bianos e bailundos. Reconhece, no entanto, que tinham esse papel específico na caminhada, o que não valia para todos os pombeiros. A autora, junto de Linda Heywood e Maria Emília Madeira Santos relacionam esse termo a terminologias políticas do planalto, sendo o kesongo um mordomo, um arauto público ou um guarda avançado no exército, sendo este último sentido o motivo que podemos estimar para o uso do termo também entre caravanas comerciais. Segundo Willy Bal, tal termo era originário do kimbundu, com o sentido de “chefe”. HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 274–275; HEYWOOD, Contested power in Angola, p. 7; SANTOS, Introdução (Trajectória do Comércio do Bié), p. 359; BAL, Willy, Portugais Pombeiro “Commerçant Ambulant du ”, Annali Dell’Istituto Universitario Orientale - Sezione Romanza, v. VII, n. 2, 1965, p. 161. 596 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 1-2. (27/10/1860).

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Porto sabia da importância de respeitar os ritos e compreender que não conseguiria forçar seus trabalhadores a seguir viagem sem que eles não estivessem temendo a represália de seres extraterrenos. Além disso, como curandeiros, os quimbandas tinham importante conhecimento médico e eram solicitados para casos de doenças e acidentes, tanto pelo povo da caravana como pelas populações locais. É interessante notar que o sertanejo, apesar de considerar as adivinhações como embustes, não negava que tais sujeitos de fato curavam muitas enfermidades, mas sim por conhecerem remédios locais, e não pela intermediação com espíritos597. Outros funcionários especializados que eram fundamentais para o sucesso do empreendimento caravaneiro eram os guias e os intérpretes, esses últimos conhecidos como kaley. As necessidades de seus conhecimentos se davam por razões evidentes, ainda mais quando muitas das regiões acessadas pelos sertanejos, em meados do século XIX, eram recém conectadas à zona atlântica, casos da Lunda, Samba, Barotse, Katanga, Mashukulumbwe e Mbukushu. Um caso interessante para pensar a importância e prestígio que um membro experiente da caravana poderia conseguir como guia e eventualmente como kaley é o de Joaquim Mariano. Mariano foi um dos caixeiros de Silva Porto que, junto com Francisco Monteiro da Fonseca, liderou pelo menos uma das quatro primeiras viagens de caravanas do sertanejo até o Barotse, a que se iniciou em 1847598. No caso dessa viagem, estes dois intermediários seriam responsáveis por contar com detalhes os acontecimentos e o roteiro da viagem a Silva Porto, o que acabou sendo inserido no 1º caderno do sertanejo. Em viagens posteriores, Joaquim Mariano foi utilizado como intérprete do sertanejo para tratar com a corte do Lui, podendo ter aprendido as línguas locais exatamente com a experiência pregressa de viagens. Além de organizar viagens subsidiárias como pombeiro, por ocasião da ida de Silva Porto ao Barotse em 1853, encontrando com a caravana de João da Silva no trajeto deste até Moçambique. Cinco anos

597 BPMP. Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 9-10. (21/05/1866); SGL. Res. 2- C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 149-150. (14/07/1861). Em 1864, Mpololo solicita a Silva Porto que o quimbanda que acompanhava a caravana pudesse servi-lo para curar inflamações em suas pernas. BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 144. (29/05/1864). Além dos serviços dos quimbandas, era frequente que outros artesões mambari que viajavam junto das caravanas, possivelmente como carregadores, tivessem seus serviços demandados pelos povos locais. HEYWOOD, Production, Trade and Power, p. 37–39. 598 As outras foram iniciadas em 1845, 1849 e 1850 – nenhuma delas com a participação presencial de Silva Porto, que foi pela primeira vez para a região na quinta viagem, iniciada em 1852. SILVA PORTO, Silva Porto e Livingstone, p. 16–18.

234 mais tarde, em 1858, Mariano aparece nos cadernos de Silva Porto como chefe de povoação no Bié, no lugar denominado Cabire599. Não sabemos, no entanto, como foram passadas as informações da viagem de Mariano e Fonseca para Silva Porto. Por documentação escrita posteriormente, sabemos que Mariano sabia escrever em português, pelo menos em 1879, quando trocou correspondências com o sertanejo, sendo possível, portanto, que tenha escrito um relato que foi alterado pelo sertanejo quando voltaram ao Bié600. Contudo, é provável que o sertanejo escreveu o relato desta viagem a partir de relato oral dos dois caixeiros. Caso tenha sido oralmente, cabe destaque ao detalhamento de informações do dia a dia nesse texto e, provavelmente, essa experiência interferiu na decisão posterior de Silva Porto de confiar parte da viagem com destino a Moçambique a um macota, João da Silva, mesmo que isso significasse fazer o relato de trechos inteiros nos quais nunca esteve presente. E é precisamente sobre esta viagem que discutiremos na última parte deste capítulo.

3.5 Pioneiros Africanos Como já foi brevemente comentado no capítulo 1 dessa dissertação, a travessia por terra de Angola a Moçambique era uma antiga obsessão portuguesa. Seja por intentos cartográficos, seja pelo contato direto com a Lunda, iniciativas em ambas as colônias foram feitas desde a segunda metade do século XVIII, geralmente por trajetos que já partiam das fronteiras de cada província e sem propriamente irem de costa a costa. Essa insistência se manteve no século seguinte, havendo um ofício do governador de Angola, Manuel Eleutério Malheiros, de janeiro de 1840, admitindo ao ministério da marinha e ultramar, em resposta a uma portaria desta de 25 de setembro do ano anterior, que não havia pessoa em Angola que se reconheça com habilidade ou tenha meios de fazer uma viagem por terra até Moçambique, perdendo as esperanças de realizar tal empreendimento601. As iniciativas feitas em ambas as colônias durante o pombalismo tinham necessidade de guias e intermediação diplomática para conseguirem passar por regiões sob várias jurisdições e que até então não tinham contato direto com a zona atlântica. No

599 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 190-191, 207-211, 249. (31/03/1853; 05/08/1853; 10/11/1853); BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 18, 23-24, 38-40. (02/05/1858; 28/05/1858; 05/07/1858). 600 Uma carta de Mariano a Silva Porto está reproduzida em: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário de António Francisco Ferreira da Silva Porto, Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1986, p. 424–425. 601 AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 3, 29 de janeiro, 1840. Ver esse e outros documentos oficiais sobre a travessia de costa a costa no Anexo V dessa dissertação.

235 entanto, por causa dos contatos indiretos que grandes estados da savana central como a Lunda e o Kazembe tinham com os mercados de ambos os oceanos, também havia iniciativas desses estados em estreitar relações com os portugueses das duas costas. Assim, as principais iniciativas portuguesas dessa travessia por terra se informaram ou acompanharam diretamente comitivas oficiais enviadas por iniciativa dos Estados africanos, o que vale tanto no caso da viagem de Francisco José de Lacerda e Almeida de Tete até Kazembe em 1798602, quanto para a viagem dos pombeiros Pedro João Baptista e Amaro Francisco, que partiram em 1802 da feira de Mucary e chegaram a Tete em 1811603, e também para a viagem de Antônio Cândido Pedroso Gamito, saída de Tete em 1831 com direção ao Kazembe604. Essa dependência dos portugueses no conhecimento africano para poderem realizar a travessia entre as duas colônias reapareceu em meados do século XIX de forma supostamente inusitada. Em 3 de abril de 1852, chegou em Benguela uma caravana de 40 carregadores liderada por três “árabes”605 vinda de Zanzibar. Tendo vindo de Katanga em companhia do major Francisco José Coimbra, tais visitantes, que eram negociantes de marfim e escravos, estavam com fazendas em falta, sendo esta a motivação de sua viagem junto do capitão-mor do Bié até a cidade do litoral atlântico. Ao chegarem na cidade, se estabeleceram para fazer negócios na principal casa comercial, a de José Luiz da Silva

602 RODRIGUES, Eugénia, Ciência europeia e exploradores africanos: a viagem de Francisco José de Lacerda e Almeida ao Kazembe, Africana Studia, v. 17, p. 81–102, 2011, p. 84–85. 603 VELLUT, Jean-Luc, Notes sur le Lunda et la frontière luso-africaine (1700-1900), Études d’Histoire africaine, v. III, p. 61–166, 1972, p. 105–110; HENRIQUES, Isabel Castro, Presenças Angolanas nos Documentos Escritos Portugueses, in: Actas do II Seminário Internacional sobre a História de Angola - Construindo o Passado Angolano: As Fontes e a sua Interpretação, Luanda: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 42–49. 604 SANTOS, Maria Emília Madeira, Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África, 2a edição. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1988, p. 213–214. O caso da viagem de Gamito é especialmente importante para estudar Silva Porto por duas razões: a primeira delas por ser dos poucos relatos de viagem ao continente africano que temos certeza que o sertanejo leu avidamente, fazendo comentários e mesmo comparando suas observações políticas e naturais do continente africano com as do escritor do "Muata Cazembe". O outro motivo que caracteriza o militar português não só como leitura, mas como interlocutor direto de Silva Porto, foi o desse oficial ocupar o cargo de governador do distrito de Benguela em 1863, ano em que lá residiu Silva Porto, tendo registro de um encontro entre os dois sujeitos em 14 de janeiro: segundo o sertanejo os dois tiveram uma longa conversa sobre qual deveria ser o futuro do domínio português sobre a África, com Gamito defendendo que Portugal deve consolidar o domínio do litoral e os africanos deveriam procurá-los em busca de civilização, enquanto o sertanejo afirmou que deveriam expandir o controle sobre o interior, senão outros como os ingleses vão se apossar dessas terras se os lusitanos não o fizerem a tempo. Sobre esse diálogo, ver: BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 8. (14/01/1863); Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 551-552. (06/02/1866). Para os comentários de Silva Porto sobre o "Muata Cazembe", ver: BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 370-374. (13/12/1862). 605 Segundo Rockel, "árabe" é uma categoria mutável na história da África Oriental. A maioria das pessoas descritas como "árabes" pelos europeus eram na verdade de origem da África Oriental, sendo as identidades árabes geralmente mudadas como mais ou menos inclusivas. ROCKEL, Decentering Exploration in East Africa, p. 174.

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Viana, e foram interrogados por Bernardino Freire Figueiredo Abreu e Castro, diretor da colônia de Moçâmedes e morador de Benguela. Abreu e Castro, que extremamente animado com as informações que conseguiu, enviou um ofício para o governo central da colônia relatando o ocorrido e contando sobre a vida de dois destes negociantes árabes. Nesse mesmo ofício, propôs que, quando os árabes fizessem sua jornada de retorno ao leste, fossem acompanhados por algum viajante português, em troca de um prêmio que incentivasse o aventureiro em potencial – sendo bem recebida a sugestão pela câmara de Luanda, que sugere que se cobre do possível viajante “uma relação minuciosa, senão exacta, ao menos mais aproximada possível” dos lugares por onde a caravana passasse, habilitando que governo pudesse fazer novas tentativas de comunicação entre as duas colônias606. Apesar de ser excepcional esse acontecimento em uma cidade angolana, a compreensão do funcionamento das rotas de longa distância da África Central mostra que a circulação dessa caravana não foi propriamente um raio em céu azul. Além dos dados informados no relato de Abreu e Castro, temos também outra fonte bastante instigante sobre essa comitiva, que é o relato autobiográfico de um dos líderes dessa caravana, o árabe Said bin Habib (Ben Habibe, em Silva Porto), que ditou em 1860 em Zanzibar uma breve descrição de suas viagens, que foi guardada pelo governo britânico da Índia607. A partir das duas fontes, sabemos que em 1845 tal caravana saiu da cidade de Bagamoyo (cidade continental próxima a Zanzibar), partindo com 200 escravos armados, provavelmente waungwana (escravos e libertos islamizados dos territórios de Zanzibar), e seguiu para o Kazembe, e de lá para Katanga. Como já dito, em Katanga encontraram com Francisco José Coimbra, que já atuava comercialmente na região pelo menos desde o início da década de 1850. Para repor os seus estoques de fazendas, teria então partido, junto com Coimbra, a pequena comitiva dos ditos quarenta carregadores para Benguela, que seguiu depois para

606 SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Silva Pôrto e a Travessia do Continente Africano, Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca - Agência Geral das Colónias, 1938, p. 17–20. Seguindo a mesma lógica do texto "Costumes e usos gentílicos", utilizarei o dossiê que Silva Porto entregou para a Santa Casa da Misericórdia do Porto, assim como outros documentos extras reunidos pela Agência Geral das Colónias, a partir da versão publicada. A versão manuscrita do dossiê de Silva Porto está disponível em: SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 71-100. (01/04/1861). Os dois ofícios, de Bernardino Abreu e Castro e da Câmara de Luanda foram publicados no Boletim Oficial do Governo Geral da Província de Angola (BOGGPA) e estão disponíveis também em um dossiê no AHU sobre a viagem de Silva Porto: AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 18 A, s/d, "Silva Porto - Comunicação terrestre entre Angola e Moçambique", 1850. 607 [Bombay] Government, Said Bin Habib. “Narrative of Said Bin Habeeb, An Arab Inhabitant of Zanzibar” (31 May 1860). Anne Martin, Heather F. Ball, Adrian S. Wisnicki, eds. One More Voice (an imprint of Livingstone Online), site launch edition, 2020, https://onemorevoice.org/transcriptions/liv_020001_TEI.html . Acessado em 17 de janeiro de 2021.

237 o Bié, que bin Habib chama de “Boira”608. Além de bin Habib, que era árabe, chefiavam a caravana outros dois homens, estes swahili, Abdel e Nasur ben Masud609. Portanto, mesmo que a travessia até Benguela possa ter sido algo singular, as rotas comerciais que saíam da costa Índica do continente cada vez mais se espalhavam para a região do leste da atual República Democrática do Congo, em especial na bacia do rio Kasai. Em busca de fartas manadas de elefantes na região, negociantes swahili e nyamwezi levavam suas caravanas para Katanga, onde alguns mambari como o major Coimbra também já atuavam. Nessa mesma região, em 1856, um chefe guerreiro nyamwezi, Msiri, instalou o império Yeke e teve como alguns de seus principais interlocutores os membros do clã Coimbra do Bié. Uma das ações mais importantes para consolidação dessa aliança foi o posterior casamento de uma neta do major, Dona Maria Fonseca, com Msiri, sendo frequentes os relatos de que ela era a esposa favorita do dito chefe, já que a partir de tal aliança ele tinha o seu principal contato comercial no fornecimento de mercadorias importadas610. Agora retornando à chegada da caravana em Benguela, o governo provincial aceitou a sugestão de Abreu e Castro e ofereceu em 30 de maio um prêmio de um conto de

608 Said Bin Habib. “Narrative of Said Bin Habeeb”, p. 147-148. É interessante que, apesar de comentar que conheceu Livingstone, Said bin Habib em nenhum momento registra ao governo britânico ter feito esses trajetos ao lado de portugueses. 609 ROCKEL, Carriers of Culture, p. 51–52; HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 207; ROCKEL, Decentering Exploration in East Africa, p. 164. Heintze afirma que uma filha de Coimbra acabou se casando com o árabe Said bin Habib, morrendo no parto do segundo filho. Posteriormente, o árabe teria escolhido se casar com outra filha do major. Em ambos os casos, as esposas acompanhavam o negociante em suas viagens caravaneiras. HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 211. Nasur ben Massud aparece como “Nassolo” no ofício de Abreu e Castro e no mesmo, informa que Abdel (Ben Abdalla, em Silva Porto) seria proveniente de Surate, cidade na Índia (Gujarat), com os pais originários de Mascate, no Omã, contradizendo com a afirmação de Heintze de Abdel ser swahili. Segundo o mesmo ofício estes teriam ido para ilha de Zanzibar em busca de parente de Nassolo, que fica subentendido ser bin Habib. Segundo Silva Porto, um dos líderes árabes da caravana se chamava Ben-Chombo (também escrito Hiombo ou Xihombo), que era tio de bin Habib e, como será comentado na sequência, será o responsável por liderar a caravana de Silva Porto para Moçambique na ausência do sertanejo. Ao final desta viagem, quando passam por Mikindani, no sul da Tanzânia, um porto swahili, Silva Porto informa que esta é a terra de morada de Ben-Chombo (que comenta, em outra passagem, ser natural de Zanzibar). Por causa do lugar de morada e do parentesco com bin Habib acredito que Ben- Chombo e Nasur ben Massud são a mesma pessoa. Há a possibilidade, no entanto, de serem pessoas diferentes, já que o governador de Benguela, José Rodrigues Coelho do Amaral, afirmar que na realidade eram cinco, e não três árabes, que chefiavam a comitiva. No entanto, Heintze, baseando-se em textos de François Bontinck, não trabalha com essa possibilidade. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 207-211, 397. (05/08/1853; 01/08/1854); SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 20–21. Constança Ceita também afirma que Ben Chombo é Nassolo. CEITA, Silva Porto na África Central – Viye / Angola, p. 216. 610 O fato de pombeiros de Coimbra terem se encontrado com a dita caravana árabe em Katanga por volta de 1852 demonstra, portanto, que esse clã comercial já tinha relevância entre os negociantes da região mesmo antes da ascensão do Império Yeke, o que pode ajudar a imaginar as motivações de Msiri em conservar tal aliança. O sobrenome “Fonseca” de D. Maria Fonseca, segundo Heintze, justifica-se por esta ter sido viúva de Francisco Monteiro da Fonseca, provavelmente o mesmo homem que acompanhou Joaquim Mariano ao chefiarem as primeiras viagens das caravanas de Silva Porto para o Barotse. HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 216–217.

238 réis, além do posto de Capitão de Passagens, a quem acompanhasse os árabes na sua torna viagem, entregasse um ofício ao governador geral da província de Moçambique e regressasse, por terra, à costa atlântica, enviando um relatório de viagem de formato pré- determinado. O governador de Benguela, José Rodrigues Coelho do Amaral, que em abril tinha sido menos otimista do que Abreu e Castro quanto ao potencial de diálogo com os árabes, inclusive pela dificuldade linguística, vendo a solução em algum português os acompanhar, solicitou a Silva Porto que assumisse tal tarefa. Na carta ao sertanejo, também de 30 de maio, Amaral afirma que já tinha conversado com Silva Porto em outras ocasiões e também já tinha tido acesso aos diários do sertanejo, e apela para o patriotismo do portuense para realizar “uma empresa tão vantajosa para a prosperidade comercial dos nossos domínios”. Silva Porto, que se encontrava em Benguela na ocasião, respondeu afirmativamente ao convite, o que o colocou no centro dos interesses da administração imperial611. Em anexo ao convite de Amaral para Silva Porto estão a instruções do governo provincial sobre como deveria ser feita a dita viagem e o seu relatório. As diretrizes previam o estabelecimento de relações amigáveis com os chefes do caminho e o convencimento dos régulos mais poderosos a serem aliados dos portugueses, em especial o Muantiânvua da Lunda. Esse era um ponto importante da encomenda: Amaral, desde seu convite para Silva Porto, deixara bastante clara a ordem de Silva Porto seguir com os árabes até o Kazembe, pressupondo a passagem da comitiva também pelas terras da Lunda612. As instruções também previam que o viajante aproveitasse todas as ocasiões possíveis de se corresponder diretamente com o governo central da província, ou com os chefes de distritos. Vale apontar, nesse sentido, que toda correspondência escrita nos sertões dependia do fluxo das próprias caravanas comerciais, sendo pouco comum que distâncias maiores fossem percorridas por emissários em pequenos séquitos. Assim, principalmente

611 SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 19–21, 25–26, 30–32; AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 18 A, s/d, "Silva Porto - Comunicação terrestre entre Angola e Moçambique", 1850. Em 18 de maio de 1852, o governador de Angola, António Sérgio de Sousa, informou o ministro da marinha e ultramar que alguns indivíduos tinham se proposto a fazer a tarefa, no entanto havia pressa na escolha, pois os árabes já tinham deixado Benguela para seguirem seu caminho. No mês seguinte, em 19 de junho, o mesmo governador avisou ao ministro do aceite de Silva Porto, que iria se encontrar com os árabes que estavam estacionados no Bié. No final daquele ano, ao saberem da existência dos diários de Silva Porto, o Conselho Ultramarino enviou uma consulta ao governo de Angola para solicitar ao sertanejo, além do relatório da futura viagem de Moçambique, "o maior número de documentos possíveis que o esclareçam acerca das nossas possessões na costa d'África". Amaral respondeu, em março de 1853, que repassaria o pedido oficial do conselho para o sertanejo para o ponto de onde o viajante mandasse notícias. AHU, SEMU, Conselho Ultramarino, Processos das Consultas, caixa 6, doc. 142, 1852, "Diários das viagens que Antonio Francisco Ferreira da Silva Porto tem feito aos sertões de Benguela". 612 SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 26–29, 31.

239 a partir do momento que a comitiva saiu do Barotse em direção a Moçambique, poucas ou quase nenhuma notícia de seu paradeiro chegaram ao governo colonial até que tal comitiva estivesse na ilha de Moçambique613. Como já foi dito, em 30 de maio, por ocasião do aceite de Silva Porto, que estava em Benguela, os árabes já haviam partido junto de Coimbra para o Bié, onde o sertanejo se juntou a eles na sequência614. Vale apontar, no entanto, que, apesar das instruções claras de que a viagem teria que passar pelo Kazembe, e de lá seguir para Rios de Sena (Moçambique), Silva Porto, após resolver o litígio concernente ao sequestro de António Francisco das Chagas, decidiu seguir para o Barotse, onde seus pombeiros já haviam feito duas viagens comerciais615. Esse tipo de atitude levanta dúvidas se de fato Silva Porto planejava fazer a viagem até Moçambique, desviando radicalmente do eixo de viagem que já faria por causa da própria atividade comercial. Seu aceite enviado para o governo de Benguela não é muito claro nesse sentido, afirmando na carta para a Amaral que, caso não pudesse concluir a sua viagem pessoalmente, “terei de mandar a correspondência a Sua Ex.ª o Governador de Moçambique”. A completa ausência da informação na frase sobre como seria feito esse envio da correspondência ao governador de Moçambique, e quem o faria, não deixa de contribuir para a dúvida616. Mesmo que fique também a interrogação sobre sua premeditação ou não. Em 24 de março de 1853 no Barotse, Silva Porto assinou uma carta endereçada ao governador de Moçambique avisando que, por motivos de doença, não poderia concluir a viagem, deixando sob responsabilidade do seu funcionário (macota) João da Silva, “pessoa em quem deposito inteira confiança e única que me poderá substituir em semelhante empresa”, a liderança da caravana a partir do dia seguinte617. Em nenhum dos apontamentos dos diários de Silva Porto há outra referência ao suposto adoecimento que teria tido no Barotse em março de 1853. Frederico Delgado Rosa e Filipe Verde estimam que isso pode ser explicado pela falta de forças do sertanejo no momento da convalescência, ou ainda pelo fato de considerar indigno a um explorador a apresentação pública do retrato de sua debilidade. Acredito que as duas hipóteses são frágeis, tanto pela prática recorrente de reescrita do sertanejo de suas experiências

613 Ibid., p. 50–51. 614 Em 18 de maio Silva Porto, quando viajava em direção da cidade, já havia se encontrado com Coimbra e os árabes quando passavam pelo Huambo, em direção ao Bié. BPMP. Ms. 1235. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 247-249. (18/05/1852). 615 SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 36–37, 27–28. 616 Ibid., p. 32. Tal hipótese foi levantada por: ROSA; VERDE, Exploradores Portugueses e Reis Africanos, p. 147–148. 617 Como será comentado na sequência, João da Silva não participa da viagem até o fim.

240 pregressas, sendo, portanto, pouco provável que a doença o impedisse de deixar relato escrito, e também os vários contraexemplos registrados nos diários nos quais o sertanejo expõe seus sofrimentos por contrair doenças infecciosas618. Em 1864, Silva Porto comenta que os negociantes de Zanzibar já atuavam no Mashukulumbwe, território tributário do Barotse, desde 1851619. Não é impossível, portanto, que os companheiros de viagem de Silva Porto tivessem algum nível de conhecimento das rotas partindo do Barotse até o Índico. Esse fato, somado aos inconvenientes de transpor o longo trecho da savana central até a costa de Moçambique, alimentam a hipótese de que, se Silva Porto de fato nunca tinha considerado fazer a viagem inteira, acreditava que o empreendimento teria sucesso mesmo na sua ausência. Para tal, a confiança em João da Silva era um elemento fundamental. Não só as habilidades de gestão da caravana que, como macota, tal indivíduo já teria provado em várias ocasiões ao sertanejo, mas era fundamental que, assim como nas viagens de Fonseca e Mariano, Silva Porto conseguisse posteriormente escrever o relatório da viagem no trecho da qual estava ausente – com o destaque de que o sertanejo afirma no ofício ao governador de Moçambique que João da Silva não fala outras línguas além do umbundu620. Mesmo que haja evidências de que pombeiros do Bié aprendessem as primeiras letras com os sertanejos desde finais do século XVIII, tudo indica que esse não era o caso de João da Silva ou dos carregadores que informaram o sertanejo sobre os trechos finais do trajeto. No entanto, como aponta Elaine Ribeiro, a adoção da escrita no interior de Angola se inseriu dentro de um contexto de valorização da oralidade, havendo incorporação e dinamização de elementos externos, mas sem substituir as formas orais de preservar conhecimento. Ou seja, as técnicas já existentes de preservação de quantidade enorme de informações pela oralidade eram utilizadas pelo sertanejo para recolher o relato da viagem dos membros da caravana posteriormente621. Pode soar um pouco banal esse

618 SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 45–47; ROSA; VERDE, Exploradores Portugueses e Reis Africanos, p. 330. Mesmo assim, é notável uma reticência pouco usual nos diários de Silva Porto, só registrando três apontamentos no mês de março (nos dias 12, 20 e 31), após ter interrompido o relato diário contínuo em 19 de fevereiro; além de, após passado o mês de março, só escrever novamente em 20 de junho. Esse silêncio pode ter sido sim causado por uma doença, ou mesmo pelo simples fato de não estar viajando no período - sempre lembrando que, nesse caso específico, Silva Porto alimentava seus diários para servirem de relatório da viagem de Moçambique. De qualquer forma, é pouco comum o completo silêncio em qualquer outra passagem dos cadernos sobre essa doença e não é difícil de imaginar as conveniências que o sertanejo calculou ao não se envolver com o restante de uma viagem que provavelmente duraria ainda mais de um ano. Silva Porto também não cita seu suposto adoecimento na passagem que comenta sobre esse período em: SILVA PORTO, Silva Porto e Livingstone, p. 35. 619 BPMP. Ms. 1238. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume-BIS, p. 138. (13/05/1864). 620 SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 46. 621 SANTOS, Sociabilidades em Trânsito, p. 98–99, 114.

241 arranjo, mas a quantidade de informação coletada com considerável precisão de um relato que fala do cotidiano, descreve cursos de rios e dá a descrição etnográfica dos costumes de cada povo visitado, além das informações de quantas léguas caminhadas diariamente, conforme exigido pelas instruções do governo colonial, é impressionante622. Esse relato é composto por uma quantidade nada sutil de 363 apontamentos diários, do período entre 25 de março de 1853 até 8 de setembro de 1854. Juntando com o relatório já escrito por Silva Porto do primeiro trecho da viagem, foi entregue ao governo colonial um texto de mais de 160 páginas manuscritas623. Há a necessidade, evidentemente, de um destaque extra sobre a composição desse texto. Não é uma consideração banal (e nem reconhecida) que o primeiro relato de viagem em língua europeia de uma travessia completa por terra de costa a costa do continente africano tenha sido escrito a partir do relato oral de um pombeiro africano, junto a carregadores do Bié, que compuseram uma caravana chefiada em boa parte da viagem por um swahili de Zanzibar. O evidente apagamento desse marco na memória institucional do colonialismo português, é um caso notório do que Heintze apontou como o incômodo e incompreensão frente à importância da “ralé negra dos exploradores”, frente ao imaginário sobre os grandes “desbravadores da África”624. Mesmo no caso das caravanas lideradas pessoalmente por homens nascidos na Europa e recém chegados no continente durante a segunda metade do século XIX, suas viagens só foram possíveis graças a esses intermediários envolvidos no comércio de longa distância. Como já foi apontado, não só o conhecimento das rotas, que eram via de regra por onde “desbravavam” os exploradores, mas também as diversas experiências que envolviam a comunicação e a diplomacia transcultural, foram protagonizados por essa “ralé negra e mestiça” que os grandes viajantes quiseram esconder, não só por vaidade,

622 SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 28–29. 623 O dado da quantidade de páginas do manuscrito é com base na versão do Porto. Não são todos os dias da viagem que são registrados no relato das duas viagens a partir do Barotse por haver supressão de períodos de paragem da caravana e do intervalo de tempo entre a primeira e a segunda tentativa da viagem, como será comentado na sequência. Em uma resenha feita em 1860 para o Journal of the Royal Geographical Society of London, James MacQueen parece ter entendido que o próprio Silva Porto tinha feito a viagem inteira, incluindo o trecho entre o Barotse e Moçambique. No entanto, na versão publicada do relatório nos Anais do Conselho Ultramarino, que é a versão que MacQueen analisa, o sertanejo deixou bem clara a informação sobre a passagem da responsabilidade da caravana para João da Silva. MACQUEEN, James, Journeys of Silva Porto with the Arabs from Benguela to Ibo and Mozambique Through Africa, The Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 30, p. 136–154, 1860; Silva Porto, Antonio Francisco Ferreira, Uma Viagem de Angola em Direcção à Contra Costa. Annaes do Conselho Ultramarino - Parte Não Official, Série I, outubro de 1856, p. 281-282. Após juntar as duas partes e enviar ao governo de Angola, tal relato inicialmente foi publicado no BOGGPA, tendo depois sido publicado nos Anais do Conselho Ultramarino, por ordem de Sá da Bandeira, entre outubro de 1856 e maio de 1858. 624 HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 37–53, especialmente p. 52–53.

242 mas também pela associação da imagem dos agentes do comércio africano com a continuidade da escravidão625. No entanto, tais incômodos e silenciamentos não se resumiram à construção da memória e da história da exploração europeia na África, já que a conclusão da viagem foi repleta de polêmicas. Pouco se sabe sobre o que aconteceu imediatamente depois de setembro de 1854, quando os pombeiros chegaram na ilha de Moçambique, capital da província na época. Uma certidão de Manuel da Silva Franco, secretário interino do governo de Benguela, de 25 de dezembro de 1855, registra o arquivamento do ofício do governador geral de Moçambique de 17 de setembro do mesmo ano, copiando o seu conteúdo. Segundo a certidão, os negros de Angola teriam chegado juntos de um mouro de Zanzibar e afirmaram que não podiam voltar pelo mesmo caminho, o que levou o governador de Moçambique a enviá-los por mar de volta para Benguela, na fragata Dom Fernando. No ofício ainda há uma relação nominal dos treze membros sobreviventes da comitiva626. Segundo o relato ditado a Silva Porto, Ben-Chombo foi o “mouro” que entregou os ofícios ao governador de Moçambique quando chegaram na capital e Silva Porto, ao ter notícias do paradeiro de Ben-Chombo em 1862, comenta que ainda busca pagar o viajante pelos seus serviços627. Tendo chegado a fragata Dom Fernando em Benguela em 19 de dezembro, aparentemente os 13 sobreviventes da caravana imediatamente seguiram para o Bié, desencontrando com Silva Porto, que pediu a cópia dos ofícios no dia 24 do mesmo mês. Após ter em mãos o ofício, o sertanejo avisou governo geral da província em 27 de dezembro de que cumpriria a sua promessa de montar o roteiro assim que reencontrasse com os carregadores. Em 4 de janeiro de 1856, o governo geral de Angola respondeu o

625 Ibid., p. 55–56; ROCKEL, Decentering Exploration in East Africa; SANTOS, Maria Emília Madeira, Silva Porto e os Problemas da África Portuguesa no Século XIX, Série Separatas, v. 149, n. Junta de Investigações Científicas do Ultramar, p. 5–27, 1983, p. 16–17. Para uma reflexão mais geral sobre a importância dos mediadores culturais para vários tipos de encontro transcultural, em específico para a construção do conhecimento, ver: RAJ, Kapil, Go-Betweens, Travelers, and Cultural Translators, in: LIGHTMAN, Bernard (Org.), A Companion to the History of Science, Chichester: Wiley Blackwell, 2016, p. 40–42. Rockel destaca que, apesar desses vários trabalhos importantes de africanistas destacando o quão essenciais foram os intermediários africanos para a compreensão da expansão europeia no século XIX, parte considerável da produção sobre as histórias dos exploradores e descobridores não dialoga com a produção africanista sobre a história das regiões "desbravadas". ROCKEL, Decentering Exploration in East Africa, p. 265. 626 SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 52–54. Tal certidão, exigida por Silva Porto – que estava em Benguela – no dia 24 de dezembro, foi redigida após a chegada da fragata em Luanda no dia 19 do mesmo mês. 627 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 401-405. (08/09/1854); Idem, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 240-241. (21/02/1862); Idem, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 211-212. (06/09/1853).

243 ofício de Silva Porto, afirmando que o governador de Moçambique nada tinha dito sobre receber os ofícios destinados a ele, supondo, portanto, que “seguramente” os ditos negros haviam extraviado tais documentos. Além disso, o secretário geral do governo, Augusto de Melo, acrescenta que “nenhum fruto se tivesse de tal tentativa, o que era de esperar, sendo ela cometida a negros absolutamente ininteligentes”. Mesmo diante de tal veredito, por causa da promessa de Silva Porto de fazer o relatório sobre o último trecho da viagem, pede ao sertanejo que transmita para o governo geral o que conseguir tirar de notícias dos ditos pretos628. Mesmo antes do ofício de Silva Porto chegar à Luanda, o governador geral da província, o já conhecido José Rodrigues Coelho do Amaral, que tinha contratado pessoalmente Silva Porto quatro anos antes, quando governava o distrito de Benguela, enviou uma carta em 22 (ou 23) de dezembro ao ministro da marinha e ultramar relatando a sua decepção com o empreendimento. Nessa breve correspondência, Amaral enumera algumas poucas informações que conseguidas ao interrogarem os carregadores (quantos formavam a caravana originalmente, quantos morreram, quanto demorou a viagem, o caráter do “gentio” e a abundância de marfim no caminho), que segundo o governador “nada adiantam” e que os ditos informantes “respondem incoerentemente”629. Em nenhum desses documentos, no entanto, parece ser sequer mencionada a justificativa apontada tradicionalmente pela historiografia para a polêmica do prêmio que não foi pago ao sertanejo: os pombeiros terem retornado para Benguela por mar, e não por terra630. Silva Porto contesta a decisão do governo de Angola, enviando um ofício em 5 de maio de 1856 pedindo para que fosse pago pelo menos o valor de um conto de réis, não para interesse próprio, mas porque havia dedicado no começo da viagem o valor do prêmio e a patente ao Hospital da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Assim, o sertanejo apelava para um certo caráter humanitário da sua cobrança, pedindo o pagamento para “as bençãos de centenares de infelizes aglomerados nesse estabelecimento pio da minha terra [o Porto]”631. Em 1º de abril de 1861, Silva Porto enviou ao provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, Inácio da Mota Vieira, um dossiê de documentos sobre o litígio, desde o seu convite feito por Amaral em 1852, até o aviso de recepção pelo governo de Angola em 1856 dos seus relatórios completos para serem publicados no BOGGPA, para

628 SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 55–56. 629 AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 18 A, s/d, "Silva Porto - Comunicação terrestre entre Angola e Moçambique", 1850. 630 DIAS, Gastão de Sousa, Preâmbulo, in: Silva Pôrto e a Travessia do Continente Africano, [s.l.]: Divisão de Publicações e Biblioteca - Agência Geral das Colónias, 1938, p. 11. 631 SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 56.

244 que Vieira pudesse dar sequência ao pedido frente ao governo colonial para que o prêmio fosse de fato pago632. Por causa dessa colaboração, Silva Porto recebeu o título de irmão da Misericórdia do Porto. Possivelmente, vendo aí uma oportunidade de ter novos vínculos sociais na metrópole, o sertanejo enviou em março de 1862 para a instituição a primeira versão de seus diários, sob o nome de “Cinco viagens ou Costumes gentílicos”, correspondendo ao primeiro volume de seus cadernos. No ofício de envio, Silva Porto afirma já ter enviado tal texto para ser publicado em Lisboa, o que resultou no retorno para a África do manuscrito, sem dar mais detalhes do que ocorreu; no entanto, o sertanejo reenviava para a metrópole o dito manuscrito com a justificativa de contribuir para a polêmica do prêmio633. Mesmo que o prêmio aparentemente nunca tenha sido pago para a instituição, o manuscrito da viagem de costa a costa teve melhor recepção. Como já foi comentado anteriormente, após a entrega do manuscrito por Silva Porto ao governo colonial de Angola em julho de 1856, para ser publicado localmente no BOGGPA. Reconduzido ao cargo de ministro da marinha e ultramar naquele mesmo ano, Sá da Bandeira mandou republicar o relatório nos Anais do Conselho Ultramarino634. Vale apontar que este foi um dos poucos textos de Silva Porto publicados durante a vida do sertanejo. A circulação desse texto atraiu relativa atenção na Europa, como demonstra a resenha feita por James MacQueen para a Real Sociedade de Geografia de Londres, ou mesmo a referência da viagem dos pombeiros no livro de José de Lacerda ao analisá-la ao lado de outros textos portugueses, incluindo os relatos de Pedro João Batista, Lacerda e Almeida e Gamito, em um subtítulo que deixa bastante evidente a importância que dava para essas viagens: “Os portugueses tinham realizado, anteriormente ao dr. Livingstone, a viagem pelo interior de África de uma à outra costa”635.

632 Ibid., p. 57–58. Foi com esse dossiê, sob os cuidados da Misericórdia do Porto, que a Agência Geral das Colónias organizou a transcrição dos documentos na sua versão publicada. ROSA; VERDE, Exploradores Portugueses e Reis Africanos, p. 151. 633 SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 58–59. 634 É importante destacar, inclusive, a advertência preliminar que antecede o relato de Silva Porto no BOGGPA, reproduzido nos Anais do Conselho Ultramarino. Mesmo questionando a total validade do relato feito a partir dos funcionários africanos de Silva Porto, com desejo de que "algum viajante intrépido e ilustrado" ainda cumpra completamente a missão, tal texto deixa uma defesa clara do merecimento de Silva Porto à premiação: "Fica sendo todavia digno de louvor o Sr. Porto pelos seus bons desejos. Pensamos que o Governo de Sua Majestade lhe deve alguma remuneração por estes, e em compensação das grandes despesas que sem dúvida fez.". SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Uma Viagem de Angola em Direcção à Contra Costa, Annaes do Conselho Ultramarino - Parte não official, 1856, p. 281–282. 635 MACQUEEN, Journeys of Silva Porto with the Arabs; LACERDA, José de, Exame das Viagens do Doutor Livingstone, Lisboa: Imprensa Nacional, 1867, p. 323–382, em especial p. 371–373 sobre a viagem dos pombeiros de Silva Porto.

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Apesar da decisão de Amaral, em maio de 1852, de que Silva Porto deveria ser o escolhido para acompanhar os árabes, com evidente rapidez para que não deixassem a caravana estrangeira partir de Angola sem nenhum acompanhante europeu, havia outros interessados em cumprirem a missão. László Magyar, em 21 de março de 1853, ofereceu- se para realizar a viagem. Mesmo que a caravana já se encontrasse nessa altura, no Barotse, tendo a última notícia chegado ao governo colonial em 19 de novembro de 1852, quando Silva Porto partiu do Bié. A proposta de Magyar, que incluía o envio de um mapa que estava elaborando sobre o sul de Angola, não foi rejeitada instantaneamente, passando por um longo processo administrativo que incluiu o governo de Benguela, o governo geral de Angola e ministério da marinha e ultramar. É difícil estimar qual era a expectativa desses agentes coloniais quanto à viagem em andamento de Silva Porto, sendo, ao que nos consta, enviado somente em 28 de dezembro de 1853, um aviso do retorno do sertanejo ao Bié, com expectativas que seus funcionários cumpririam o restante da viagem. Se Silva Porto enviou correspondência para Luanda ou Benguela diretamente do Barotse, antes disso, não há registros nem no dossiê enviado à Misericórdia do Porto, e tampouco no Arquivo Histórico Ultramarino. Me parece pouco provável que, uma carta assinada no Bié em 28 de dezembro de 1853 tenha sido lida antes de 24 de janeiro de 1854, quando o conselho ultramarino aprovou a proposta de Magyar. Isso pode explicar o fato dessa aprovação não incluir a proposta de viagem de costa a costa, priorizando a montagem do mapa636. No entanto, como não temos notícias de em nenhum momento terem diretamente recusado a proposta de Magyar de travessia do continente, mesmo diante da impossibilidade de ele fazê-la a partir da caravana árabe, que já tinha saído do território angolano anos antes, tenho como hipótese que a administração portuguesa tinha suas suspeitas da factibilidade da viagem de Silva Porto já em 1853, talvez considerando o húngaro para um possível substituto, dependendo do resultado do sertanejo. Se de alguma forma a administração portuguesa tiver tido notícias de que, desde 24 de março de 1853, a viagem do Barotse até Moçambique estava sendo liderada por um pombeiro (e um negociante swahili) e não pelo sertanejo nascido na Europa, essa

636 SEBESTYÉN, Éva, A sociedade ovimbundu nos relatórios de viagens do húngaro László Magyar: sul de Angola, meados do século XIX, História: Debates e Tendências, v. 15, n. 1, p. 83–100, 2015, p. 87–89; SEBESTYÉN, Escravização, escravidão e fugas, p. 296; SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 30– 31, 48. Na consulta ao Conselho Ultramarino sobre a proposta de Magyar, a proposta do explorador húngaro de travessia de costa a costa está citada, no entanto, nas instruções que o conselho envia a Magyar, só solicitam o dito mapa. AHU, SEMU, DGU, Consultas do Conselho Ultramarino, caixa 4, doc. 159, 1854.

246 desconfiança poderia ser ainda maior637. Mesmo que essas considerações sejam pura especulação, não se deve ignorar o impacto da decepção e da incredulidade que o governo colonial de Angola demonstrou claramente ao criticar Silva Porto por deixar sob responsabilidade de africanos a realização da última parte da viagem e da escrita do restante do relatório. Por esse motivo, considero que a questão não se tratava propriamente das instruções – em nenhum dos ofícios consultados, por exemplo, há reclamações sobre o evidente incumprimento da exigência da comitiva passar pela Lunda e Kazembe. Além disso, como já disse, também não há referência nenhuma nesses mesmos documentos da questão do retorno por terra. Defendo, assim, que o problema central foi quem fez e liderou a viagem. No entanto, há também outra questão que envolve esse relato. Apesar de haver indicações de léguas andadas por dia e referências em qual direção da marcha (norte, sul, leste ou oeste), o relato de Silva Porto, para ambos os trechos da viagem, é bem pouco informativo no sentido geográfico. Apesar de registrar os nomes e comprimentos dos rios, a ausência de dados de latitude e longitude é um problema significativo quando se tratava de regiões até então ausentes nos mapas. Não só o sertanejo não sabia medir as coordenadas geográficas, mas também lhe era estranho qualquer tipo de cartografia, sendo exemplar e público o famoso episódio no qual Livingstone mostrou um mapa para Silva Porto em Linyanti, para que este anotasse à lápis a localização do Bié e dos pontos principais da sua viagem e o sertanejo foi incapaz de fazer tal notação638. Esse tipo de episódio foi interpretado pela historiografia como uma superação do conhecimento prático dos portugueses e seus agentes frente ao conhecimento técnico de outros europeus, principalmente dos britânicos. Assim, se a participação de séculos nas redes comerciais e os seus intentos imperiais aumentaram o conhecimento produzido pelos portugueses sobre o interior da África e seus povos, no século XIX, as modernas expedições científicas rapidamente aprofundaram o saber sobre o interior do continente e escantearam dos espaços de prestígios os colonos que, até então, eram intermediários

637 SILVA PORTO, Silva Pôrto e a Travessia, p. 45–47. Vale relembrar que o ofício de Silva Porto assinado em 24 de março era endereçado ao governador de Moçambique e não para Angola, a ser entregue por João da Silva quando chegasse à contra costa. 638 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 202-205. (13/07/1853); SILVA PORTO, Silva Porto e Livingstone, p. 37–38; ROSA; VERDE, Exploradores Portugueses e Reis Africanos, p. 140–141. Vale a pena, nesse sentido, destacar os comentários presentes na advertência do BOGGPA, reproduzidos nos Anais do Conselho Ultramarino. Neles, criticam as imprecisões nas léguas informadas no relatório, alegando que são exageradas e que há também grandes erros nos rumos seguidos, ironizando que se tivessem de fato caminhado em tais medidas, teriam acabado a viagem a norte do Equador, e não em Moçambique. SILVA PORTO, Uma Viagem de Angola em Direcção à Contra Costa, p. 281.

247 obrigatórios para se acessar os sertões. Maria Emília Madeira Santos inclusive considera que o encontro de Livingstone com Silva Porto foi “o momento em que começaram a inverter-se as posições”639. Tais encontros alimentaram ressentimentos entre os agentes práticos, a quem foi negada a fama e o prestígio de muitos que os utilizaram como interlocutores640. Silva Porto, em particular, para além do encontro com Livingstone, tornou-se especialmente pessimista na década de 1860, após a recusa do prêmio da viagem para Moçambique. O sertanejo acreditava que o conhecimento sobre as suas viagens era importante para Portugal, principalmente diante das ameaças que a Inglaterra oferecia às suas possessões africanas; no entanto, a sua falta de credenciais entre os letrados levou à recusa da publicação do primeiro volume de seu “Cinco viagens ou Costumes gentílicos” em Lisboa, além de toda a polêmica sobre o prêmio da travessia de costa à costa641. Por estes motivos, em 1866, começou a redigir um manuscrito intitulado “Notas para Retocar a Minha Obra”, para que fosse enviado à metrópole com a expectativa de que assim poderia publicar o manuscrito recusado, o qual mandaria retornar de Lisboa para alterá-lo642. Silva Porto, nos anos seguintes, teve outras iniciativas de aproximação com os círculos intelectuais metropolitanos, sendo a mais importante delas a interlocução com a Sociedade de Geografia de Lisboa, após a fundação desta em 1875643. Esse tipo de debate sobre “superação” do conhecimento técnico dos portugueses pelas expedições científicas lega os intermediários africanos das expedições científicas e das caravanas comerciais ao completo apagamento. Ao contrário de tudo que discutimos até agora nesse último item do capítulo, Maria Emília Madeira Santos chegou a afirmar o seguinte sobre os viajantes das expedições científicas: "Os cientistas, já no século XIX, tomariam uma postura diversa [de Lacerda e Almeida no final do século XVIII], influenciada pelos estudos etnológicos e filosóficos da época. A ciência e a tecnologia europeias não

639 SANTOS, Viagens de Exploração Terrestre, p. 251–252; ROSA; VERDE, Exploradores Portugueses e Reis Africanos, p. 138–139; MOURÃO, As duas vertentes do processo no século XIX, p. 36–39. 640 HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 32–33. 641 Raciocínio similar é feito pelo sertanejo ao comentar o quanto Livingstone poderia ter aumentado suas descobertas se o utilizasse como informante, citando alguns pontos geográficos que conhecia e estavam ausentes nos cadernos publicados pelo missionário britânico. SILVA PORTO, Silva Porto e Livingstone, p. 9. 642 BPMP. Ms. 1237. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 3º Volume, p. 591. (01/04/1866); Ms. 1239. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 4º Volume, p. 1. (01/05/1866). Sobre a preocupação de Silva Porto com a ameaça de outras potências imperiais europeias, ver: BPMP. Ms. 1240. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 5º Volume, p. 295. (29/04/1869). 643 SANTOS, Viagens de Exploração Terrestre, p. 256, 260; SANTOS, Silva Porto e os Problemas da África Portuguesa no Século XIX, p. 18–19.

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recorriam ao saber africano. A participação de africanos nas expedições científicas limitava-se ao recrutamento de carregadores, guias e fornecimento de parte da alimentação."644 Assim, a simples participação africana no “recrutamento de carregadores, guias e fornecimento” não só não é considerada “saber”, como inviabiliza o debate sobre como esses agentes africanos e luso-africanos agiram diante de seu papel ambíguo de intermediários dos projetos globais aos quais contribuíram ativamente645. A simples recusa da relevância do sistema caravaneiro pré-existente para o funcionamento da exploração europeia, portuguesa ou não, impede que se avance na compreensão mais completa sobre esses processos históricos, mantendo um véu de ignorância sobre como os intelectuais e militares que supostamente protagonizaram a exploração do continente eram extremamente dependentes dos seus parceiros de viagem646. Essa dependência da experiência cosmopolita dos agentes das duas comitivas que caminharam juntas rumo a Moçambique, dos árabes e dos pombeiros, é visível em várias passagens do relato deste trajeto. Não nos deteremos com detalhes aos acontecimentos dessa viagem, que durou quase 500 dias entre 1852 e 1854, e mereceria um estudo à parte. Mas há várias evidências de elementos que apontamos ao longo deste capítulo sobre o funcionamento cotidiano das caravanas. Mais do que o “coração das trevas”, o interior da África Central que aparece nesse relato era uma região de pungentes redes comerciais que estavam em franca expansão durante o século XIX, conectando-se mais diretamente às redes vindas do Atlântico e do Índico647.

644 SANTOS, Maria Emília Madeira, Em Busca dos Sítios do Poder na África Centro Ocidental. Homens e Caminhos, Exércitos e Estradas (1483-1915), in: HEINTZE, Beatrix; VON OPPEN, Achim (Orgs.), Angola on the Move: Transport Routes, Communications and History - Angola em Movimento: Vias de Transporte, Comunicação e História, Frankfurt: Lembeck, 2008, p. 28. 645 Tenho por referência da expressão “projetos globais” o sentido dado por Walter Mignolo em: MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. 646 RAJ, Go-Betweens, Travelers, and Cultural Translators, p. 43–45; ROCKEL, Decentering Exploration in East Africa; HEINTZE, Pioneiros africanos. 647 Sobre imagens de uma “África Virgem” e da relação com as rotas e atores já existentes, ver: HEINTZE, Pioneiros africanos, p. 21–22, 26–28; CURTIN, Cross-cultural trade in world history, p. 15–16.

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Mapa 10 – Excerto do mapa de James MacQueen sobre a Viagem de Moçambique

Retirado de: MACQUEEN, James, Journeys of Silva Porto with the Arabs from Benguela to Ibo and Mozambique Through Africa, The Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 30, 1860. Ao contrário das grandes caravanas, que andavam mais devagar, tendo problemas com a logística de vultuosos fardos e necessidades de constantes reordenamentos de aproximação e reaproximação da vanguarda e retaguarda, sem contar a morosidade de travessia dos rios, a partir do Barotse a comitiva para Moçambique era pequena e rápida, chegando a fazer 14 léguas em um dia, com uma mediana de 8 léguas diárias (sem contar os dias parados)648. Para fazer o novo trajeto, a comitiva dependeu de contratar guias em cada centro de poder, com acordos de seguirem juntos até ponto pré-determinado, no qual o guia voltava para sua terra de origem e os chefes da caravana poderiam contratar um novo guia649. Inclusive, por um longo trecho, fizeram o acordo com um mandatário local, o soba650 Lúmbue, de origem bisa, que tinha se oferecido a guiar a comitiva até o litoral, e que, mesmo não cumprindo o trajeto inteiro, acompanhou a caravana entre dezembro de 1853 e março de 1854651. Para além da longa distância entre Katongo, próximo a Naliele, até o litoral Índico, a viagem sofreu um grande revés nos seus primeiros meses. Em 7 de junho, ao chegarem na terra de Iralla e montarem o quilombo, acenderem a fogueira, o que atraiu a atenção dos habitantes locais, pois, segundo um informante, era costume na terra que todos os fogos fossem acendidos a partir do fogo do chefe, tanto dos naturais, quanto o dos estranhos.

648 Sobre o impacto do tamanho da caravana na sua velocidade, ver: HENRIQUES, Comércio e empresários em Angola na 2a. Metade do século XIX, p. 400; ROCKEL, Carriers of Culture, p. 82. 649 Foram os casos em: SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 218, 220, 224- 227. (10/04/1853; 18/04/1853; 29/04/1853; 30/04/1853; 05/05/1853). 650 Lembrando sempre que Silva Porto, assim como outras fontes angolanas, utiliza o termo “soba” como sinônimo de chefia, mesmo em regiões não falantes de kimbundu, como evidentemente era o caso desse trajeto que passou por trechos dos atuais Zâmbia, Malawi, Moçambique e, por breve trecho, Tanzânia. A exceção nesse relato será feita somente aos xeques do litoral Índico. 651 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 357-360, 366-367, 373-374. (11/12/1853; 15/12/1853; 31/01/1854; 01/02/1854; 19/03/1854; 21/03/1854).

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Além disso havia o fato de parte da caravana ser composta por gente ndebele, sendo possíveis inimigos e não negociantes, se acumulando gente nas selvas para atacar a comitiva estrangeira na sequência. Mesmo com a argumentação de que quem liderava a caravana não eram os ndebele, apresentando uma série de marcadores que diferenciavam os mambari desse povo (uso de armas de fogo, dialeto e penteado), um conflito se iniciou entre os membros ndebele da comitiva com os locais, tendo que apelar para uma saraivada de tiros para dispersar os atacantes. Com o risco de represálias, a comitiva foi obrigada a retornar a viagem, chegando de volta ao estabelecimento de Naliele em 11 de agosto652. Esse retorno prematuro levou a vários equívocos de observadores contemporâneos e historiadores. Livingstone, em sua breve nota de rodapé sobre Silva Porto, trata com espanto o fato do sertanejo ter afirmado fazer o trajeto de costa a costa, já que, estava o sertanejo em sua presença quando veio a notícia da missão gorada do pombeiro – supondo, portanto, que a afirmação de que Silva Porto tinha feito a tal travessia era falsa653. Frederico Delgado Rosa e Filipe Verde chegam a afirmar que João da Silva nunca tinha saído do Barotse, sendo essa imobilidade a razão da irritação do sertanejo654. Constança Ceita afirma que, apesar de ter deixado sob responsabilidade de bin Habib a viagem a partir do Barotse (e não a João da Silva), Silva Porto tinha ficado insatisfeito com os serviços do árabe e decidiu substituí-lo por Ben Chombo – sem especificar, portanto, qual foi o motivo da insatisfação655. Assim, em setembro, teria partido uma nova caravana saindo do Bié, “seguindo para o Kazembe ou Katongo (Katanga), [e] dali para Moçambique”656. Não só a segunda caravana não saiu do Bié, e sim diretamente do estabelecimento de Katongo, próximo a Naliele, como o seu trajeto não passaria por Kazembe ou por Katanga (que é bem diferente de Katongo). O que ocorreu de fato, é que Silva Porto reorganizou sua pequena comitiva para uma segunda tentativa de travessia, saindo 6 de setembro de 1853,

652 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 235-238. (07/06/1853). Apesar de afirmar chegar no estabelecimento no dia 11, Silva Porto registrou o encontro com João da Silva de volta ao Lui no dia 4. Idem, Ibid., p. 206-207. (04/08/1853). 653 LIVINGSTONE, Missionary Travels, p. 217. Essa nota de rodapé é a única referência que Livingstone faz a Silva Porto em seus cadernos publicados. 654 ROSA; VERDE, Exploradores Portugueses e Reis Africanos, p. 142. 655 Na realidade, o que parece ter ocorrido foi que, com o fracasso da primeira tentativa liderada por João da Silva, Silva Porto procurou um dos árabes para liderar a expedição. Em seu ensaio "Silva Porto e Livingstone", o sertanejo afirma que queria originalmente contratar bin Habib para a tarefa, "pelo julgar mais hábil que seu tio Ben-Chombo", mas não se encontra com bin Habib na ocasião, já que o árabe estava viajando pelo país a negócios, optando, portanto, a deixar a caravana sob responsabilidade de Ben Chombo mesmo. É verdade que nas duas tentativas a comitiva do Bié acompanhava uma comitiva swahili – afinal, esse era o objetivo da viagem desde o começo –, mas aparentemente bin Habib e Ben Chombo não estavam presentes na primeira tentativa de travessia. SILVA PORTO, Silva Porto e Livingstone, p. 39. 656 CEITA, Silva Porto na África Central – Viye / Angola, p. 216. Sublinhado no original.

251 dessa vez bem sucedida, tendo contratado Ben Chombo para liderar a caravana. Ao que tudo indica, dessa vez, sem a participação de João da Silva e Said bin Habib657. Nessa segunda viagem, que contornaria as terras do mandatário de Iralla, a comitiva de Ben Chambo encontrou uma série de caravanas no caminho, sejam da bisa, sejam de Zanzibar. A frequência de caravanas do comércio das rotas do índico, inclusive, ofereceu problemas em algumas ocasiões, como quando, ao passarem pelas povoações do soba Hangaramo, a caravana quase entrou em um novo conflito armado, já que o soberano local, ao identificar que membros da caravana eram luvale e waungwana, armou o seu povo para a batalha, pois nessa região seus acordos comerciais eram com os bisa. Os carregadores de Silva Porto conseguiram evitar o confronto com a devida explicação de seus intentos, além do pagamento do soberano e vários magnatas, o que assegurou a passagem tranquila pela região658. Quem dominava as rotas de longa distância na África Oriental nessa época eram os povos do interior, principalmente os nyamwezi, e não os litorâneos como é o caso de Zanzibar. No entanto, ao seguirem o trajeto a partir do Barotse, tal caravana passou por regiões periféricas dos principais eixos comerciais, sendo essas rotas a sul disputadas pelos zanzibaritas e pelos bisa, ambos em expansão nesses eixos menos disputados durante a década de 1850. No entanto, os bisa entrariam em declínio nas décadas seguintes por causa de conflitos políticos nas suas terras, que resultaram na conquista bemba na segunda metade do século659.

657 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 211-212. (06/09/1853). O paradeiro de João da Silva e Said bin Habib é incerto – quando Silva Porto deixa Katongo em direção ao Bié em 30 de setembro, comenta que nessa época os dois negociantes estavam em Hibulo Hamucona e acabaram por retornar ao Bié, por terra, em 22 de abril de 1854. Em seu relato auto-biográfico, bin Habib afirma que, depois de viajar por trinta dias no rico país do Lui, viajaria para Luanda em um trajeto que durou oitenta dias, passando os anos seguintes negociando marfim na região e retornando à capital de Angola por três vezes, até que decidiu voltar para Zanzibar depois de anos longe de casa. Sabemos que não viajaram juntos de Ben Chambo, pois o relatório dos carregadores fala de passarem por Hibulo Hamucona somente em novembro. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 212. (30/09/1853); Said Bin Habib. “Narrative of Said Bin Habeeb”, p. 148; SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 251. (18/11/1853). 658 SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 253-255. (29/11/1853; 30/11/1853). 659 ROCKEL, Carriers of Culture, p. 37–39; GORDON, David M., Invisible Agents: Spirits in a Central African History, Athens: Ohio University Press, 2012, p. 28–29, 42–48. Além dos bisa e dos waungwana (ba-longoana, em Silva Porto), esse relatório também registra um terceiro povo bastante envolvido com o comércio de longa distância nas rotas sul, os yao (héiau, em Silva Porto – por corruptela do plural wayao), no entanto os carregadores de Silva Porto parecem desconhecer o envolvimento desse povo com o comércio caravaneiro quando fazem a descrição de seus usos e costumes. SGL. Res. 2-C-6. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 1º Volume, p. 393. (14/07/1854).

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Mapa 11 - Rotas da Savana Central

Retirado de: MACOLA, Giacomo, The Gun in Central Africa: a history of technology and politics, Athens: Ohio University Press, 2016, p. 40. Muitos outros pontos poderiam ser analisados sobre essa viagem. O que importa aqui é o quanto, mesmo fazendo um trajeto pouco usual, ela foi realizada dentro da organização e regras pré-existentes das caravanas comerciais centro-africanas, circulando pelas rotas do comércio de longa distância, o que não pode continuar sendo apagado pelas histórias escritas sobre a exploração europeia. Além disso, as caravanas não só permitiram o acesso dos europeus ao interior do continente, seja por fins político-militares, seja por fins comerciais, mas os próprios membros delas tinham interesse em realizar as viagens para cumprir projetos individuais e coletivos de ascensão social e manutenção de suas condições de vida e trabalho. Para se compreender o comércio de longa distância que abasteceu o litoral angolano de gêneros coloniais como marfim e cera, portanto, não basta só entender as dinâmicas políticas dos principais centros comerciais, como o Bié, ou as demandas materiais das chefias do interior, sejam das regiões produtoras, sejam as dos caminhos. É necessário ver o quanto os agentes de dentro das caravanas interferiam cotidianamente no funcionamento do comércio, tanto como participantes do empreendimento, quanto como trabalhadores em constante barganha por aquilo que consideravam justo e necessário.

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Considerações Finais

Começamos este texto com uma ponta de marfim; ao longo da dissertação, muitas outras apareceram. Nem todas geraram contestações e conflitos armados, mas a história das presas de elefante que chegaram ao litoral atlântico estão repletas de relações sociais na sua produção e circulação. Além delas, outras mercadorias circularam nos pacotes das caravanas: cera, sal, tabaco, enxadas, urzela, alimentos, além, é claro, das bebidas alcóolicas, fazendas, pólvora, armas de fogo e contarias que foram levadas continente à dentro. Mesmo com as demandas novas que se expandiram em meados do século XIX, bois e escravos mantiveram sua grande centralidade nas esferas de produção e troca das sociedades envolvidas com a zona atlântica. Estimulado pela história dos objetos, no entanto, esse estudo não se limitou a tratar sobre a circulação de mercadorias. As mercadorias têm indubitavelmente sua centralidade na história do comércio continental, e ainda temos muito a entender sobre a produção e circulação de cada uma delas. No entanto, esse trabalho se propôs a procurar entender mais sobre as pessoas que fizeram esse comércio: essa grande malha de agentes que ia desde os poderosos soberanos do Bié ou do Barotse, até o carregador que tentava acumular um pouco de tecidos para, senão acumular riquezas, pelo menos conseguir reunir recursos que poderiam assegurar a liberdade para si e para os seus em caso de litígios judiciais, que tanto serviam para a sanha da economia escravizadora. Mesmo que não sejam os únicos a ocuparem essas páginas, os sertanejos são fundamentais para entender as dinâmicas cotidianas desse comércio. Seu cosmopolitismo cultural, que permitia não só acesso ao capital das casas comerciais em Luanda e Benguela, mas também suas íntimas relações diplomáticas com as poderosas chefias do interior, foi experiência bastante distinta dos militares e cientistas que vão reivindicar para si a primazia das viagens pelo interior do continente. É esta experiência que deixa ainda mais rico o texto de Silva Porto, um caderno que se destaca não só pela profusão de informações, com milhares de páginas manuscritas sobre a vida cotidiana do interior, mas também porque estão repletos de interstícios do discurso colonial, que muito provavelmente pouco interessariam aos seus contemporâneos das sociedades científicas, o que pode ter retirado o sertanejo do tão desejado panteão, mas que torna seu trabalho mais interessante para o historiador das sociedades africanas. Lidar com esses interstícios do discurso colonial trouxe desafios especiais diante de silêncios das fontes e da historiografia. Seguir o dia a dia das caravanas não só levou

254 esse estudo para regiões cada vez mais distantes do litoral e pouco compreendidas pelos historiadores especialistas na história angolana, mas evidenciou agentes sociais que conhecemos pouco: sejam os pequenos sobados que manejavam ambiguamente sua aliança e subordinação ao estado colonial português ou aos sobas mais poderosos do interior; sejam as mulheres que participavam das caravanas, cujas aparições na documentação são bastante fragmentadas, apesar de serem membros constantes e essenciais nas comitivas; sejam os grandes soberanos do Bailundo, do Bié e do Barotse que aparecem em Silva Porto, e são apagados nos registros posteriores, orais e escritos. Lidar com esses silêncios, mesmo que em passagens que mereceriam ser melhor desenvolvidas com pesquisas mais aprofundadas, foi uma necessidade para compreender melhor tais processos, ao mesmo tempo que foi uma demonstração do potencial desses cadernos para enfrentar tais limites da produção acadêmica. Nenhuma das considerações feitas ao longo desse trabalho se propôs a ser uma explicação do funcionamento do comércio das caravanas mambari, apontando regras prescritivas e incontornáveis que tinham de ser seguidas por quem quisesse prosperar na atividade sertaneja. Mesmo que Silva Porto intercale suas narrativas de acontecimentos com tentativas de explicação dos mesmos, tomamos essa sistematização não como dado objetivo, e sim como construída dentro da experiência comum dos sertanejos no lidar com seus interlocutores europeus e africanos. Portanto, procurei fazer essa história com base nas relações cotidianas que pululam nos apontamentos diários de Silva Porto, mostrando seus conflitos, transformações e incongruências, estando em constante redefinição, o que, muitas vezes, inviabilizava as ações baseadas no entendimento e aprendizado desses agentes comerciais, necessitando desenvolver novas técnicas e protocolos. No entanto, algumas grandes questões se mantiveram para o período inteiro sob estudo. No capítulo 1, meu intento foi mostrar o quanto a intermediação dos sertanejos com as grandes autoridades políticas do Planalto Central de Angola foram fundamentais para o desenvolvimento do comércio regional e longa distância que marcou essa região desde o último quartel do século XVIII. Tal atividade passou por conjunturas que nem sempre foi benéfica ou efetiva a interferência administrativa portuguesa, forçando os sertanejos a criarem vínculos e estratégias com as chefias e sociedades locais para manterem seguras e operantes as bases de operação no território do Bié. No capítulo 2, saímos do planalto para ver o eixo comercial de forma mais ampla e politicamente mais complexa, não só considerando a interferência fundamental dos investidores em Benguela para as decisões dos seus aviados, mas principalmente os

255 interesses das chefias africanas: suas demandas, estratégias e artimanhas que forçaram a malha comercial dos mambari a se adaptarem a um universo político e diplomático complexo e em constantes transformações. Especialmente importante nesse sentido, apesar da política em sobados do caminho como o Lutembo e o Cuchibi tiveram impacto nas decisões dos sertanejos do Bié, foram as mudanças políticas e disputas militares no Barotse que causaram o mais profundo impacto na organização do comércio na região central de Angola, o que considero que ainda não foi suficientemente destacado pela historiografia do comércio lícito angolano. No último capítulo, focalizei nos personagens que possivelmente foram os mais fundamentais na moldagem do comércio caravaneiro centralizado no Planalto Central angolano: os membros das próprias caravanas que saíam e chegavam na região o ano inteiro, circulando essa enorme gama de produtos. Os registros cotidianos mostram o quanto, mais do que um amontoado de serventes braçais fazendo tarefas que foram tidas por muitos contemporâneos como banais, os trabalhadores das caravanas foram determinantes para o sucesso dos empreendimentos caravaneiros. Assim, eles foram agentes centrais da expansão e transformação de uma das principais categorias profissionais da África Central, cuja história ainda sabemos tão pouco, mas que povoaram os caminhos do interior, não só com o fluxo das mercadorias tão demandadas dentro e fora do continente, mas espalhando culturas, valores e ideias. Nessa experiência comum, tais trabalhadores montaram coletividades bastante integradas entre si, o que era fundamental para suas lutas e barganhas coletivas, ou mesmo para concretizar projetos de enriquecimento pessoal e familiar. Apesar dessa importância, mesmo entre trabalhos sobre as caravanas comerciais e as expedições científicas, as barganhas dos carregadores geralmente mereceram menor atenção dos historiadores frente aos chefes das caravanas ou aos grandes soberanos africanos. Argumento que é impossível entender o cotidiano de comércio continental sem compreender melhor as estratégias e expectativas dos trabalhadores que literalmente operaram esse comércio com as próprias mãos. Sem trazer uma definição rígida do que seriam as “dinâmicas” do comércio de longa distância, tentei povoar as páginas desse trabalho com seus agentes, que viajavam ou que estavam no caminho, que produziam ou que compravam, que eram brancos (ou desejavam assim serem vistos) ou que se identificavam com seus chefes locais, que escreviam ou que eram descritos. Afinal, são esses agentes que, em seu conjunto, definiram, de acordo com seus projetos individuais e coletivos, os contornos do que foi o comércio, a política e o trabalho nos sertões de Angola no século XIX.

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ANEXOS

Anexo I – Localização e Composição dos Fundos Documentais de Silva Porto Apesar de não ser desconhecida da historiografia sobre Angola, a obra de Silva Porto, pela sua extensão e pelo fato de só uma pequena fração dela estar reproduzida nas versões publicadas, permanece bastante intocada pelo trabalho dos historiadores. Reproduzo na sequência um inventário de todas as obras manuscritas e publicadas do sertanejo, com referência da sua localização e, quando necessário, um breve resumo do conteúdo. O objetivo dessa listagem é auxiliar no trabalho de colegas que estiverem interessados em pesquisar com essa rica fonte.

Biblioteca Pública Municipal do Porto (BPMP) Viagens e Apontamentos de Um Portuense em África. Ms. 1235. Vol. 1º (15/05/1846 - 30/04/1854), 400 fls. Ms. 1236. Vol. 2º (01/05/1854 - 31/12/1862), 400 fls. Ms. 1237. Vol. 3º (01/08/1862 - 30/04/1866), 602 fls. Ms. 1238. Vol. 3º-BIS (01/01/1863 - 03/06/1864), 146 fls.660 Ms. 1239. Vol. 4º (01/05/1866 - 29/02/1868), 300 fls. Ms. 1240. Vol. 5º (01/03/1868 - 30/04/1869), 300 fls. Ms. 1241. Vol. 6º (01/05/1869 - 30/06/1872), 416 fls. Ms. 1242. Vol. 7º (01/07/1872 - 31/01/1876), 406 fls. Ms. 1243. Vol. 8º (01/02/1876 - 07/07/1880), 400 fls. Ms. 1244. Vol. 9º (08/07/1880 - 31/08/1882), 400 fls. Ms. 1245. Vol. 10º (01/09/1882 - 13/03/1884), 174 fls. Ms. 1246. Vol. 11º (18/12/1884 - 15/07/1887), 335 fls. Ms. 1247. Vol. 12º (16/07/1887 - 31/10/1889), 400 fls.

Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL) Res. 2 – C – 6. Viagens e Apontamentos de Um Portuense em África. Vol. 1º (15/05/1846 – 08/09/1854), 184 fls. + 32 páginas datilografadas.661 Vol. 2º (25/10/1860 - 31/07/1862), 300 fls.

660 Trata-se de versão revisada de parte do volume 3º, que tem anotado em sua capa “Borrão”. 661 O primeiro capítulo do volume está em encarte datilografado. Junto a ele está um fragmento do caderno original, com o conteúdo das páginas 121 a 405, correspondente do período entre 5 de dezembro de 1852 a 8 de setembro de 1854.

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Vol. 7º (27/09/1882 - 15/07/1884), 175 fls. Vol. 11º (18/12/1884 - 15/06/1887), 335 fls. Vol. 13º (01/11/1889 - 27/03/1890), 106 fls.662 Res. 2 – C – 7. Notas para Retocar a Minha Obra logo que as circunstâncias o permitam, 1866. 138 fl.663 Res. 2 – B – 30. Copiador de Cartas de Silva Porto, 1871-1880. 300 fls. Res. 2 – B – 31. Copiador de Cartas de Silva Porto, 1888-1890 [2º vol.]. 300 fls. Res. 2 – B – 31. Livro de Cargas, 1879-1889. 300 fls. (encadernado junto do 2º vol. do Copiador de Cartas) Res. Ms. Pasta E – 4 – 2. Memorial de Mucanos, 1841-1885. 70 fls. Res. Ms. 145 – E – 1. Viagem ao Norte de um Portuense em África (1879-1880).

Espólio de Silva Porto – 2 caixas: Caixa 1 - Entre outros documentos diversos, destaca-se: Borrões da 2ª viagem. 22 fls. Borrões da 3ª viagem. 15 fls. Notas para Retocar a Minha Obra logo que as circunstâncias o permitam, 1866.664 Costumes e Usos Gentílicos por António Francisco Ferreira da Silva Porto. 44 fls. Borrão da 1ª viagem. 22 fls. Borrão da 4ª viagem. 14 fls. Correspondência oficial. Copiador (1848-1856). 26 cartas665. Quinta Viagem ou a Contra Costa. 53 fls. Diário dos Meus Apontamentos (25/10/1860-31/07/1862). 198 fls. Viagem à Corte Genje. (20/06/1853-15/07/1853) Minha última viagem (1882-1884). 214 fls. Caderno de Correspondência concernente a Expedição Científica Portuguesa. 1877-1788. 16 fls. (inclui Caderno de Cargas de 17 fls.). Apontamentos sobre a obra do Ex. Senhor D. José de Lacerda.666 Apontamentos de um Portuense em África. 13º volume – 1889-1890. 109 fls.

662 Silva Porto fez seu famoso ato de suicídio no dia 31 de março de 1890, falecendo no dia seguinte. 663 Incompleto. 664 Transcrição da mesma versão disponível na biblioteca de reservados – sendo também, portanto, incompleto; no entanto, o papel e o tamanho da letra são de melhor qualidade. 665 Reproduzido integralmente em: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira da, Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário de António Francisco Ferreira da Silva Porto, Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1986, p. 403–423. 666 Separado em 6 pequenos cadernos em folha azul.

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Caixa 2 - Entre outros documentos diversos, que incluem principalmente cópias de cartas originais enviadas nas décadas de 1870 e 1880, destaca-se: Viagem ao Lui [em] 1858. 16 fls. Silva Porto e Livingstone. 19 fls.

Versões Publicadas de Escritos de Silva Porto PORTO, António Francisco Ferreira da Silva. Uma viagem de Angola em direcção à contra costa pelo Sr. António Francisco Ferreira da Silva Porto. In: Annaes do Conselho Ultramarino. 1856, 1857, 1858. PORTO, António Francisco Ferreira da Silva. Novas jornadas de Silva Porto nos sertões africanos: Diários oferecidos à Sociedade de Geographia de Lisboa. Diário de 1-11-1879 a 13-08-1880. In: Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. 5ª (1885) e 6ª (1886) série. CORDEIRO, Luciano. Silva Porto. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1891. Dentre os vários documentos reproduzidos, a tipografia da Academia Real de Ciências no mesmo ano lançou dois deles em versões separadas: - Silva Porto e Livingstone: Manuscripto de Silva Porto encontrado no seu espolio, Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1891. - Os últimos dias de Silva Porto (extracto do seu Diário). Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 1891, 15 p. PORTO, António Francisco Ferreira da Silva. Silva Pôrto e a Travessia do Continente Africano. Com um prefácio por Gastão de Sousa Dias. Lisboa: Agência Geral das Colónias: Divisão de Publicações e Bibliotecas, 1938, 166 p. PORTO, António Francisco Ferreira da Silva. Viagens e Apontamentos de um Portuense em África: Excerptos do de António Francisco da Silva Pôrto. Lisboa: Agência Geral das Colónias - Divisão de Publicações e Biblioteca, 1942, 260p. A transcrição é realizada a partir da versão da Biblioteca Pública Municipal do Porto. Contém os 6 capítulos previstos para o volume 1º dos cadernos (as quatro primeiras viagens registradas, a parte inicial da viagem à contra costa – com a parte final reproduzida na publicação anterior da Agência Geral das Colónias –, e o texto “Costumes e Usos Gentílicos”, que inclui um vocabulário de palavras em umbundo, que está incompleto nas suas transcrições da Sociedade de Geografia de Lisboa).

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PORTO, António Francisco Ferreira da Silva. Viagens e Apontamentos de um Portuense em África: Diário de António Francisco Ferreira da Silva Porto. Leitura com Introdução e Notas por Maria Emília Madeira Santos – Volume 1. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1986, 462 p. A transcrição é realizada a partir da versão da Biblioteca Pública Municipal do Porto. Contém os três primeiros capítulos previstos para o volume 1º dos cadernos (as três primeiras viagens), assim como a reprodução de alguns documentos oficiais e pessoais do sertanejo e um importante ensaio introdutório escrito por Maria Emília Madeira Santos.

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Anexo II – Memorial de Mucanos – dados compilados Com a intenção de fazer uma primeira sistematização dos dados registrados no Memorial de Mucanos para o recorte desta pesquisa (1840 a 1870), reproduzo abaixo a tabela gerada no Excel que serviu de base para a compilação dos gráficos e tabelas do Capítulo 1. A data de referência no Memorial é a data do pagamento do mucano. As datas acompanhadas de um asterisco são referentes aos casos levados para a libata grande.

Valor Final do Data Tipologia do Mucano Quem cometeu? Mucano 13/08/1841 Dívida Outrem 441$000 06/12/1841 Morte / Assassinato Dependentes 258$000 21/01/1842 Questões Funerárias Outrem 500$000 26/09/1842 Sequestro (pessoas) Outrem 363$000 21/01/1844 Dívida Outrem 185$600 17/12/1844 Sequestro (objetos) Outrem 35$600 15/01/1845 Fuga Outrem 44$800 12/03/1845 Não Mucano 60$000 07/05/1845 Morte / Assassinato Silva Porto 676$200 12/10/1845 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 28$000 17/06/1846 Conspiração Outrem 125$000 15/10/1846 Ferimento Dependentes 52$000 23/11/1846 Dívida Outrem 33$600 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Animais 9$600 30/11/1846 Domésticos Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Animais 19$200 10/12/1846 Domésticos Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Silva Porto 24$000 15/12/1846* (1) + Injúria (2) 28/01/1847 Morte / Assassinato Dependentes 28$000 24/01/1847 Não Mucano 45$500 16/03/1847 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 19$200 10/09/1847 Fuga Silva Porto 48$000 13/07/1848 Adultério Dependentes 48$000 13/07/1849 Não Mucano 1:600$000 20/02/1850 Injúria Dependentes 24$000 28/07/1850 Não Mucano 35$200 06/10/1850 Não Mucano 134$400 10/07/1851 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 52$000 17/08/1851 Adultério + Fuga Dependentes 52$000 Dívida + Sequestro (pessoas) + Morte / Outrem 4:100$000 22/11/1852* Assassinato + Ferimento Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Animais 19$200 15/02/1853 Domésticos

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Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 48$000 17/12/1854 + Ferimento 12/05/1854 Não Mucano 144$000 18/02/1855 Feitiçaria Dependentes 964$000 15/03/1856* Feitiçaria Silva Porto 795$200 22/04/1856 Injúria Outrem 30$400 19/07/1856 Injúria Dependentes 38$400 20/12/1856 Dívida Outrem 300$000 23/12/1856 Injúria Dependentes 79$600 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 650 panos = 260$000 08/05/1857 + Morte / Assassinato 13/08/1867 Adultério Dependentes 116 panos = 46$400 25/01/1858 Adultério Dependentes 152 Panos = 60$800 26/01/1858* Morte / Assassinato + Dívida Silva Porto 674 panos = 269$600 20/02/1858 Não Mucano 301 panos = 120$400 07/04/1858 Sequestro (pessoas) Outrem 160$000 10/04/1858 Adultério Dependentes 27$200 11/04/1858 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Outrem 11$200 20/04/1858 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 17$600 26/04/1858 Morte / Assassinato Dependentes 16$000 03/05/1859 Não Mucano 100$000 19/05/1859 Não Mucano 100$000 24/05/1859 Não Mucano 100$000 07/06/1859 Ferimento + Fuga Outrem 20$000 27/06/1859 Contaminação Venérea Dependentes 10$000 22/06/1859 Não informado Dependentes 304$000 30/06/1859 Não informado Dependentes 105$500 30/06/1859 Não informado Dependentes 115$750 30/06/1859 Não informado Dependentes 165$500 30/06/1859 Não informado Dependentes 8$500 15/07/1859 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 15$000 15/07/1859 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 15$000 06/10/1859 Não Mucano 795$000 05/11/1859 Não informado Dependentes 18$000 05/11/1859 Não informado Outrem 64$000 14/03/1860 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 8$000 28/03/1860 Sequestro (pessoas) Outrem 75$000 05/04/1860 Sequestro (pessoas) Outrem 87$500 28/05/1860 Feitiçaria Dependentes 248$500 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 16$000 17/06/1860 + Fuga 28/06/1860 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 16$000 22/07/1860 Injúria Dependentes 40$000 23/07/1860 Injúria Dependentes 15$000 05/08/1860 Morte / Assassinato Outrem 53$000

273

06/08/1860 Não informado Dependentes 107$500 19/08/1860 Injúria Dependentes 29$000 26/08/1860 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 14$000 15/09/1860* Sequestro (pessoas) Outrem 433$000 14/09/1860 Não Mucano 50$000 25/11/1860 Não Mucano 55$000 13/12/1860 Adultério Dependentes 20$000 01/01/1861 Dívida Outrem 50$000 04/01/1861 Morte / Assassinato + Questões Funerárias Silva Porto 20$000 08/01/1861 Feitiçaria + Ferimento Silva Porto 10$000 Ferimento Animais 12$000 27/01/1861 Domésticos 15/03/1861 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 9$000 15/04/1861* Morte / Assassinato Silva Porto 63$600 17/04/1861 Dívida Dependentes 16$800 18/04/1861* Morte / Assassinato Silva Porto 94$000 Morte / Assassinato Dependentes / 171$000 23/05/1861 Outrem (?) 30/05/1861 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Outrem 67$200 23/06/1861 Dívida Outrem 45$000 30/06/1861 Não informado Dependentes 228$000 30/08/1861 Dívida Dependentes 22$000 14/09/1861 Adultério Dependentes 32$500 25/09/1861 Dívida Outrem 25$000 03/01/1862 Não Mucano 30$000 17/02/1862 Adultério Dependentes 32$400 02/05/1862 Não Mucano 96$000 08/05/1862 Dívida Dependentes 18$000 23/05/1862 Fuga Dependentes 9$600 26/05/1862 Adultério Dependentes 211$000 03/07/1862 Adultério Dependentes 24$000 08/07/1862 Ferimento Dependentes 9$000 15/08/1862 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 330 panos = 99$000 06/09/1862 Não informado Dependentes 120$000 11/09/1862 Não Mucano 86$000 14/09/1862 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 30$000 15/09/1862 Dívida Dependentes 7$200 23/09/1862 Não Mucano 100$000 24/09/1862 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Outrem 100$000 05/11/1862 Adultério Dependentes 36$000 10/11/1862 Adultério Dependentes 30$000 26/11/1862 Adultério Dependentes 24$000 12/12/1862 Ferimento Dependentes 19$200 20/10/1863 Dívida Dependentes 8$800

274

23/10/1863 Não informado Dependentes 12$800 26/10/1863 Não informado Dependentes 78$000 29/10/1863 Sequestro (objetos) Dependentes 20$000 12/11/1863 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 32$000 18/11/1863 Morte / Assassinato Dependentes 32$000 20/12/1864 Dívida Dependentes 12$000 22/12/1864 Dívida Dependentes 10$400 23/12/1864 Dívida Dependentes 30$000 25/04/1865 Morte / Assassinato Dependentes 16$000 30/05/1865 Não Mucano 613$350 01/06/1865 Não Mucano 60$000 06/06/1865 Ferimento Dependentes 8$000 07/07/1865 Dívida Dependentes 6$400 16/08/1865 Morte / Assassinato Dependentes 10$000 18/08/1865 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 6$400 30/08/1865 Morte / Assassinato + Adultério Dependentes 43$200 25/07/1866 Morte / Assassinato Silva Porto 70$000 13/08/1866 Morte / Assassinato Dependentes 26$000 06/11/1866 Morte / Assassinato Silva Porto 176$000 16/11/1866 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 6$400 15/12/1866 Morte / Assassinato Dependentes 32$000 08/01/1867 Adultério Dependentes 20$800 07/03/1867 Morte / Assassinato Dependentes 27$200 18/12/1867 Adultério Dependentes 30$400 06/04/1868 Não Mucano 100$000 11/04/1868 Adultério Dependentes 6$000 29/04/1868 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 6$000 30/04/1868 Roubo / Deterioração e/ou Apropriação do Alheio Dependentes 9$600 28/01/1869 Morte / Assassinato Dependentes 62$400 05/02/1869 Morte / Assassinato Dependentes 737$600 12/07/1869 Adultério + Fuga Dependentes 382$000 18/03/1870 Sequestro (objetos) Outrem 13$200 16/08/1870 Dívida Dependentes 8$400 23/08/1870 Não informado Outrem 121$000

275

Anexo III – Cartas de Silva Porto ao seu armador, Manuel António Teixeira Barbosa, 1864 Carta 1: Sr. Manuel Antonio Teixeira Barboza, Lisboa Cutti [Cuchibi], 20 de Janeiro de 1864 Cartas d'esta natureza incomodam o destinatário e o que a dirige, mas a amizade de vinte anos que nos têm enlaçado, e a posição de devedor á sua casa de Benguela, colocam-me no dever de expor factos que levam causa de ficar impossibilitado de seguir ao meu destino. No dia 2 do corrente mês tinha-lhe dito que no imediato continuava a minha viagem, mas impossibilitado de o levar a cabo em virtude da chuva, recolhido na minha barraca, percebi que os moradores das barracas contíguas tramavam em me abandonar no mato sob pretexto de não sacrificar vidas aos meus interesses. Estou às onze horas da manhã, e não obstante o afã simulado dos aprestos para partir, eu dei ordem para recolher cargas até nova resolução minha. Depois do sol posto chamei a capitulo os maiorais da caravana a quem passei a inquirir sobre o enredo maquinado a ocultas, mas não tanto que não chegasse ao meu conhecimento. Responderam que esta questão dizia respeito aos parentes receosos de prosseguir avante por causa da Revolução de Rinhande [Linyanti], e também por causa de Chacatabolla667 que se não tinha desempenhado da comissão de que fora encarregado por Xiquereto [Sekeletu], o que daria causa ao sacrifício do povo e haveres da primeira caravana que ali se dirigisse. Eles estavam resolvidos de me seguir ao infinito se necessário fosse, por terra, via fluvial, nadando ou voando, formais palavras; e não me abandonar jamais, qualquer que fosse a gravidade da situação. No dia 4 [de janeiro] segui avante, e posto no lugar do acampamento, tão depressa terminou o trabalho das barracas e do cercado, como fiz seguir o povo da caravana em transporte de madeira, casca e cordas de arvoredo para o fabrico de ponte no rio, a fim de facilitar a passagem da mesma caravana; mas não me sendo possível levá-lo a cabo em virtude do adiantado da hora, ficou espaçado para o dia seguinte. No entretanto, por de mais ao facto da disposição do meu povo rebelde para esta viagem, querendo profundar as disposições dos meus empregados n'este sentido,

667 Pombeiro de Francisco José Coimbra, capitão-mor do Bié. Esse funcionário recebeu 30 dentes de marfim de lei e meão de Xiquereto para comprar carneiros no Humbe para a propagação dessa espécie no Lui. No lugar de fazer tal operação, utilizou esse marfim para pagar dívidas que tinha com o amo, para pagar mucanos e ainda despachando uma parte para Benguela. Por não pagar coisa alguma de volta ao soberano, tal dívida deveria ser paga, pelas regras do país, por qualquer outro biano que chegasse ao Lui – tendo sido Silva Porto a pagar a comissão da dívida do pombeiro para tentar avançar para o país. BPMP. Ms. 1238. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 3º volume – BIS, p. 97-98 (14/01/1864; 18/01/1864).

276 a quem até então não tinha consultado em coisa alguma, e que depois do ocaso fiz chamar para esse efeito; que me havia de responder essa gente? Que tinham esgotado os meios persuasórios a fim de induzir os maiorais da caravana a prosseguir avante sem condições, salvo, se eu me responsabilizasse pela vida d'aqueles que por ventura viessem a faltar!!! A minha decepção foi completa ao ouvir semelhante proposta, inadmissível com gente sem lei nem grei, por que, admitida até o lugar do meu destino pela certeza de não haver novidade ali contra viajantes, apesar mesmo da Revolução, e também por causa d'essa comissão de Chacatabolla: Eles, porém, postos ali, e tendo depois de seguir para diversos pontos á permutação do marfim, pontos onde de raridade é a caravana que não recolhe com casos de gravidade pela mais insignificante bagatela; abrangê-la-iam em genérico, e por essa causa mais factual me seria prosseguir avante, que ter ficado conforme a resolução que acabo de tomar em presença da disposição d'aqueles que me mereciam alguma confiança. Falta-me aqui o meu Macota [João da Silva] em viagem do Umbucusso [Mbukushu], o meu braço direito; se ele fosse presente não teria de passar por semelhante desgosto. Como quer que seja; se em 1862 fiquei em Benguela por ter perdido o que era meu, desgraçadamente, este ano perderei o que é seu; por ser incalculável prejuízo não ter chegado onde pretendia chegar. Se um homem é bem sucedido n'uma empresa qualquer, pelas trombetas da fama atravessa o espaço com a rapidez do relâmpago, e o Capitólio é a recompensa que o espera do seu triunfo; se, porém, é mal sucedido; a Rocha Tarpeia [local onde eram feitas as execuções na Roma Antiga] é o prêmio da sua desgraça. Não lhe quero fazer a injustiça de dizer que assim me há de colocar, mas se assim o trago para a arena, a experiência do mundo e dos homens são a consequência d'essa expressão. Foi uma calamidade que me aconteceu, mas estou vivo, robusto, e pronto para trabalhar, e nunca a sua casa há de perigar por minha via; portanto, termino dizendo que - espere. Sem mais por agora. Desejo-lhe saúde e sou De V.S.a amigo mto. agradecido Antonio Franco Ferra da Sª Porto 1864 [assinado]"

BPMP. Ms. 1238. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 3º volume – BIS, p. 98-100 (20/01/1864).

277

Carta 2: Sr. Manoel Antonio Teixeira Barboza Lisboa Cutty [Cuchi], 1º de Maio de 1864 No dia 20 de Janeiro próximo passado do corrente ano [isto é, 20/01/1864, a Carta 1], dei- lhe notícias sobre o resultado da viagem com destino ao Lui, impossibilitado de prosseguir para este ponto em virtude do terror que infundiram no povo da caravana; notícias ministradas por um indígena procedente d'ali, que por acaso viemos encontrar no lugar, e que foi o meu anjo mau, pelo transtorno que me veio causar [o quimbanda de Sekeletu]. Necessariamente essa carta fá-lo-ia impressionar pelo risco do capital confiado a minha guarda, mas se me corria o dever de lhe fazer tal participação, com mais razão hoje me incumbe a obrigação de lhe dar conta do que acaba de ter lugar, e que vem mudar inteiramente a face dos meus negócios. Chegando na margem oposta uma pequena caravana da citada terra, caravana que veio sobressaltar os ânimos dos habitantes, julgando-a povo de guerra. Este facto deu ensejo a Muéne Hibambo antes de lhe dar passagem, de se dirigir ao Estabelecimento obter informações, fazendo-lhe então ver que não havia novidade, porque tendo pedido auxílio de carregadores ao Senhor do Lui, era essa gente que chegava, e não outra. Efetivamente chegou o chefe d'essa gente, que de ordem de Borollo [Mpololo] se dirige a Benguela permutar o marfim que conduz, dizendo que Lobussa e Maihôco filhos d'aquele, estavam reunindo os carregadores que tinham de vir em meu transporte, e quanto à Revolução de Rinhandy [Linyanti] o que segue. Xiquereto [Sekeletu], esse soba digno sem dúvida de melhor sorte, na minha estada ali em 1858, sofria de escorbuto horrivelmente, ao ponto de se lhe tornar insuportável tudo e todos, e, n'esse ano da minha retirada, esta, foi o alarma para o começo dos assassinatos dos magnates Macorrollos [makololo]; sucessivamente arguidos nas adivinhações de causa primordial de tão terrível mal, fazendo pôr a mãe em sobressalto, o diminuto número de magnates ainda existentes, e os validos, que, pactuaram em lhe dar morte, a fim de que o filho criança de tenra idade, ocupasse o lugar. É óbvio que Borollo lugar tenente de Xiquereto no Lui estava ao facto dos acontecimentos de Rinhandy, e tanto que foi ele o primeiro de se rebelar, mandando dizer-lhe pelo enviado da corte que o tinha vindo convidar por ocasião dos assassinatos dos magnates, para ali se apresentar; que o mandasse assassinar no Broze [Barotse], porque a Rinhandy não ia, e aos conjurados que o estrangulassem. Mamire n'este ponto, mordomo de Xiquereto, e parente da mãe, vendo surtir efeito o trama combinado, propõem em conselho a morte de Borollo e dos seus, e a

278 aclamação [de] Ritary [Litali] sob a Regência da Avó [Ma-Sekeletu]; proposta aceita unanimemente, mas hipocritamente formulada, porque, levava em vista descartar-se d'aquele e dos seus que lhe faziam sombra; mais tarde descartar-se-ia da avó e dos netos; aclamando-se depois Senhor do Lui. A ambição matou Caim, assim como este plano matou os Conjurados; porque Borollo ao facto d'ele, deixa o Broze, e a marchas forçadas dirige- se para Quiceque [Sesheke], onde se lhe junta o povo d'esta localidade que o aclama Regente do país durante a menoridade de Ritary; passa o Riambeje [Zambeze], e dirige para Rinhandy, onde encontra o povo em campo, pronto para o receber. Pergunta-se quem vive - De um lado, respondem que a avó durante a menoridade do neto; e do outro lado, respondem ser o tio durante a menoridade do sobrinho. Trava-se a peleja, e ao cabo de sete horas de luta desesperada, declara-se a Vitória a favor de Borollo que persegue os vencidos sem descanso, e a ninguém concede quartel. Ma-Xiquereto [Ma-Sekeletu], a mãe infeliz, do mais infeliz ainda soba Xiquereto, cai vítima aos golpes do ferro homicida. Maboto, sobrinho de Borollo, sofre igual sorte por seguir o partido d'esta infeliz mulher. Mamire, Cohénáne, Séróca, Séhulle, Puco, Pisanna, e Mallipa, conspirados e chefes da revolução; desaparecem, ignorando-se para onde, além das vítimas dos dois campos. A outrora Capital foi pasto das chamas. Recolhendo o espólio, [Mpololo se] retirou para Quiceque com Ritary e Chisanne[,] filhos de Xiquereto, sendo n'este ponto onde o deixaram em viagem de regresso para o Lui, que retoma o seu lugar de antiga Capital do país. Finalmente, elevado ao primeiro cargo da governação, aqui temos o imbecil, afeminado, e incapaz de se reger a si e aos outros, como por ironia dizia Xiquereto quando por acaso vinha apelo tratar-se de Borollo; Borollo senhor do país mais fértil e basto d'estas paragens, provando assim que_O hábito não faz o monge. Amigo-me com toda a consideração De V. S.a Amigo mto. agradecido Antonio Franco Ferra da Sª Porto 1864 [assinado]"

BPMP. Ms. 1238. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 3º volume – BIS, p. 114- 115. (01/05/1864)

279

Anexo IV – Considerações de Silva Porto sobre o valor dos banzos e os contratos com os pombeiros

“15 [de outubro de 1868]. Tenho falado dos prejuízos que comumente se dão por ocasião do regresso dos pombeiros, dos pontos a que se dirigem para a permutação do marfim, mas como não tenha sido explícito nas causas que originam esses mesmos prejuízos; hoje passo a ocupar-me de semelhante tarefa. Os filhos do país ao serviço do sertanejo, bem assim os bianos a quem ele confia as suas fazendas para negociar, e que têm o nome de pombeiros, recebem um certo número de banzos equivalente ao de carregadores que pôde obter, os quais, pela maior parte são seus parentes; o banzo sempre constou e consta até o presente de 56 panos para a compra do dente de marfim que por via de regra deveria ser de 32 libras para cima668, na falta marfim meão669 ou miúdo670 a prefazer o mesmo número de libras, e na falta d’este gênero um escravo; acrescendo sobre o dito banzo mais 28 panos como segue: 12 para o carregador, 8 para o pombeiro, 4 para despesas de comedorias, 4 para quibanda ou tributo de passagem pelas terras que tem de percorrer; finalmente, missangas, coral, pólvora, búzio e roncalha671, completam as miudezas indispensáveis a fazer face às despesas de comedorias e tributo de passagem pelas mesmas terras, por todo o tempo que o negociador tem de estar ausente. Na primeira época, isto é de 1840 a 1845, cada banzo sempre regulou de 30 a 60 libras de marfim, e na falta 1 escravo; na segunda época, de 1846 a 1859, sempre regulou cada banzo de 25 a 50 libras de marfim, e na falta 1 escravo; na terceira época, em 1861, tive o prejuízo já do conhecimento do leitor, e tendo finalmente continuado dela por diante até o presente, prejuízos mais ou menos sensíveis; valendo-me de alguma maneira as minhas viagens pessoais, para fixar o vácuo feito pelos empregados e pombeiros: regulando tudo às mil maravilhas na primeira quadra das épocas já citadas, usufruindo o sertanejo e aqueles, lucros avantajados em todas as viagens; além do desbarato das fazendas em provisões que o mesmo sertanejo não faria, depois de transporem os rios Cuquema e Cuanza.

668 Ou seja, classificados como marfim de lei. 669 Pela classificação de classes das pontas de marfim, o marfim meão é o proveniente de pontas que pesavam entre 16 e 32 libras. 670 Pela classificação de classes das pontas de marfim, o marfim miúdo é o proveniente de pontas que pesavam menos de 16 libras. 671 Tecido grosso, cor de leite.

280

Veio a segunda época, na qual as despesas e os desperdícios foram em crescente aumento, no entretanto equilibrando a despesa com a receita ainda o negócio menos mal corria; lucrando tão somente empregados e pombeiros, porque recolhiam a seus lares com escravos e pontas de marfim; dizendo sempre que se lhe queria ir à mão, ser proveniente da sua agência. Veio a terceira época, e dela até o presente tenho informado o leitor de todos os acontecimentos; o sertanejo vê-se na necessidade de continuar com tais sanguessugas, que, de ordinário usufruem maiores ou menores vantagens, mas, caso estranho: parece reconhecer-se aqui o rifão que reza: “O alheio chora por seu dono”; visto que em tão grande número de pessoas não conheço uma só que tenha levantado casa com aquilo a que indevidamente chama sua agência; e, se continuam como de princípio no mesmo modo de vida, é devido aos carregadores que apresentam, que, por via de regra vem a ser para o sertanejo, em virtude do excessivo número de cargas para conduzir, porque no caso de falecer algum, quem carrega com as consequências é o mesmo empregado ou pombeiro, que, necessariamente tem de pagar a vida do infeliz, dado o caso de que as adivinhações o venham a criminar sob qualquer pretexto, que se dão bastantes entre este povo. Alguns livram-se porque estão habituados às demandas, e outros pagam pela falta absoluta do mesmo condão; mas embora paguem, desembolsam aquilo que roubaram ao sertanejo, e por este motivo convêm-lhes sempre ser corretores, porque se torna de grande vantagem para eles, e para aquele unicamente por se esquivar a tais complicações; embora pudesse usar de igual direito, sempre lhe custaria muito mais caro, atendendo à sua posição; visto dizerem geralmente sem rebuliço 'é daí que nós comemos'. Com razão perguntará agora o leitor porque motivo se não modificam os preços dos banzos, bem assim se é possível que quatro panos para tributo, e outros quatro para despesas, deem para se transpor por tais terras, e para alimento do corretor e mais pessoas que o acompanham: Responderei que em relação à modificação de preços, seria ela justa no caso do sertanejo ter garantias nos haveres confiados a tais pessoas, mas não se dando tal circunstância, e verificada a modificação, os resultados seriam sempre os mesmos, em virtude do que se abstêm de a levar a efeito; enquanto ao tributo, e embora o sertanejo não siga viagem, mas sim despache empregados e pombeiros; o chefe da comitiva dispõe de grande recurso para esse mesmo fim, não exigindo dos subalternos subsídio maior além daquele que por tarifa compete dar; outro tanto se dá em relação a despesas, porque além dos quatro panos já mencionados, têm igualmente as miudezas que ficam descritas: agora, dada a particularidade do sertanejo seguir viagem pessoalmente, têm eles [os pombeiros]

281 a regalia de não despenderem coisa alguma até o estabelecimento; porque embora o tenham recebido, é ele [o sertanejo] quem se encarrega de todas as despesas. Tempo cálido, vento de sudeste e leste.”

BPMP. Ms. 1240. SILVA PORTO, Viagens e Apontamentos, 5º volume, p. 207-210. (15/10/1868)

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Anexo V – Documentos Oficiais: travessia de Angola à Contra-Costa672 1. Carta do Governador de Angola em 1840 sobre impossibilidade da viagem Ilmo. E Exmo. Snr. Em resposta à Portaria expedida por esse ministério com o n. 268 e data de 25 de setembro último, expedida a este Governo, tenho o dissabor de dizer a V. Exª, que por mais meios que se aplique com a promessa de grandes vantagens, não existe nesta província, pessoa em que se reconheça habilidade ou tenha meios para se encarregar da exploração de melhor estrada com comunicação com os Rios de Sena [Moçambique], e esta falta faz- me em tudo perder as esperanças de conseguir tal empresa, e para qual era preciso arriscar somas que os cofres nacionais não podem dispender. Deus guarde a V. Exª. Luanda, 29 de janeiro de 1840. Ilmo. Exmo. Snr. Francisco de Paula Aguiar Ottolini [Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar] Manuel Eleutério Malheiro [Governador-Geral interino de Angola]

AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 3, 29 de janeiro, 1840.

2. Relato de Bernardino Freire Figueiredo Abreu e Castro sobre a chegada dos “árabes” em Benguela em 1852 Sr. Redactor Escapam aos factos interessantes para a história, por falta de necessária publicidade, e para que isso agora não aconteça, tomo a liberdade de o incomodar, pedindo- lhe a publicação do seguinte acontecimento.

672 Com algumas alterações entre si, há duas versões de transcrição da correspondência oficial que Silva Porto reuniu em dossiê para enviar à Santa Casa da Misericórdia do Porto a fim de reivindicarem o pagamento do prêmio pela realização da viagem de travessia à Contra-Costa: uma delas está reproduzida no 2º volume dos seus diários, na versão do Porto; a outra, foi publicada pela Agência Geral das Colónias no seu volume concernente à mesma viagem, com inclusão de alguns outros documentos. BPMP. Ms. 1236. Silva Porto, Viagens e Apontamentos, 2º Volume, p. 55-75; PORTO, António Francisco Ferreira da Silva. Silva Pôrto e a Travessia do Continente Africano. Lisboa: Agência Geral das Colónias: Divisão de Publicações e Bibliotecas, 1938, p. 17-59. Além disso, há documentação manuscrita no Arquivo Histórico Ultramarino concernente à encomenda e acompanhamentos das autoridades coloniais dessa viagem, à qual Silva Porto nunca teve acesso, sendo tanto documentação do Conselho Ultramarino, quanto correspondência entre o Governador da Província de Angola e o Ministro e Secretário de Estado da Marinha e Ultramar. Para colaborar para o entendimento das disputas contemporâneas envolvidas na encomenda e realização dessa expedição, e em gesto de colaborar com colegas que queiram se aprofundar no estudo dessa viagem, reproduzo na sequência a parte dessa documentação que considerei mais relevante para o entendimento das questões que explorei no 3º capítulo. Agradeço à Natalina Sicca por ter me ajudado com o trabalho de transcrição de certas partes desses documentos na fase final dessa pesquisa.

283

No dia 3 do corrente [mês – abril] chegaram a Benguela três mouros acompanhados de uma caravana de 40 carregadores, que conduziam marfim e escravos para permutarem por fazendas. Estes ousados caminheiros, que, segundo dizem, vêm da costa de Zanzibar, atravessaram do Oriente para o Ocidente todo o sertão africano, e referem que, tendo-se internado, sucessivamente se foram desfazendo de todos os objectos de negócio que traziam, trocando-os pelos géneros acima referidos; e que, reconhecendo então ser-lhes já difícil voltar a suas terras por falta de fazendas que os habilitassem a retroceder, resolveram prosseguir a viagem na esperança de as encontrarem, como lhes asseverado, um pouco mais para o interior por troca de marfim. Efectivamente no sertão da Catanga [Katanga], se avistaram com o Major do Bié [Major Coimbra], que se dirigia a Benguela com os seus Funadores [pombeiros], e, tendo-os ele convencido a que o acompanhassem, aqui chegaram no dia acima indicado. Ansioso por colher notícias acerca desta interessante jornada, tive uma entrevista com os ditos mouros e pude colher o seguinte: Um deles, chamado Abdel, que já havia, como piloto, percorrido as costas da Índia, sendo natural de Surrate [Surate, no Gujarat, Índia] e seus pais de Mascate [no Omã], diz que associando-se com outro mouro chamado Nassolo [Ben-Chombo673], resolveram ir à ilha de Zanzibar, aonde este tinha um parente, o que efectuaram, e, reunindo-se os três, resolveram ir negociar ao Continente [África], para o que se dirigiram a Bacamoio [Bagamoyo], povoação gentílica no Zanzibar, aonde se encontram brancos que sabem escrever, que ali vão para mercadejar. Forneceram-se, portanto, aí, de carregadores para conduzirem as fazendas, e começaram a sua excursão, permutando-as sucessivamente por marfim e escravos, até chegarem aqui, o que só teve lugar no fim de seis meses depois da partida da Contra-Costa, tendo no decurso deste tempo sofrido algumas privações, e apenas a morte de três pessoas da caravana. Os pontos que dizem haver percorrido, são os seguintes: De – Bacamoio [Bagamoyo] – foram às terras de – Giramo [Zaramo] – depois do – Cuto [Kutu] – seguiram para – Segora [Sagara] – aonde atravessaram serras elevadas até – Gogo -. Deste ponto até – Mimbo [Kimbu?] – gastaram 15 dias sem encontrar povoação alguma, e, experimentando falta de água, seguiram para – Garganta [Galla?] – e aí tomaram um guia, que os conduziu a – Muga [Mgunda Mkali? Rubuga?] – aonde encontraram muito gado. Vieram depois a – Nugigi [Ujiji] – e toparam nesta paragem com o lago – Taugana [Tanganyika] – sendo ali obrigados a construir uma embarcação na qual atravessaram o dito lago, gastando nesta

673 Ver nota 609 no Capítulo 3.

284 viagem um dia e uma noite. Aportaram em seguida a – Marungo [Marungu] – povoação cujos habitantes tem por costume arrancar-se os dentes. Dali se dirigiram para Casembe [Kazembe] – aonde ficou um dos mouros natural de Mascate, chamado Said Gerad, com dois mulatos como guardas do marfim, que deixaram neste ponto, enquanto os outros seguiam para a – Catanga [Katanga] – tendo a felicidade de deparar aí com os funadores [pombeiros] do Major Coimbra, com quem vieram para o – Cahava [?] – caminho de – Macacoma [?] – aonde corre o rio – Leambege [Zambeze] – que parece ser o – Cambecis [Zambeze] – que vai a Quelimane -. Atravessaram as povoações de [soba] Cabita [Lutembo] – e – Bunda [Mbunda] – notando que nesta última corre o rio – Lungue-bundo [Lungwebungu] – confluente – do – Leambege [Zambeze] -. Desta paragem se dirigiram – Quanza [Kwanza] – Bié – e – Benguela – e pretendem regressar com brevidade às suas terras seguindo o mesmo itinerário. Nesta cidade foram hospedar-se e fazer negócio em casa do senhor José Luiz da Silva Viana, que se desvela em os tratar bem, assim como todos os moradores, de maneira que, não fosse a grande dificuldade da viagem, talvez que se abalançassem a empreender outra, em companhia de mais alguns especuladores. Tenho a honra de ser de V. – Atento Venerador. Benguela, 13 de abril de 1852. Bernardino Freire Figueiredo Abreu e Castro [diretor da colônia de Moçâmedes]

Retirado de: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira. Silva Pôrto e a Travessia do Continente Africano. Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca – Agência Geral das Colónias, 1938, p. 17-19.

3. Carta do Governador de Benguela ao Governo Geral de Angola sobre a chegada dos “árabes” na cidade Ilmo. Exmo. Sr. – Cumpre-me participar a V. Exª que chegou a esta cidade, vindo da ilha de Zanzibar, e atravessando o continente desde a contra-costa, uma comitiva de cinco árabes maometanos e vários escravos pretos indígenas. Ao que parece esta comitiva, quando no princípio da sua longa viagem, era muito mais numerosa, saiu com destino de resgatar marfim nas terras do gentio Cazembe, e aventurando-se mais para o Sertão, sofreu diversos transtornos, perdeu o caminho, e afinal encontrou alguns pretos pombeiros do Bié, com os quais os indivíduos dela que aqui estão seguiram para aquele sítio. Do Bié

285 acompanharam para Benguela com o sertanejo Francisco José Coimbra que veio a seu negócio. Nenhuma informação interessante se pôde tirar destes árabes acerca das circunstâncias da sua viagem nem do modo por que seria possível abrir comunicação e trato comercial com os Muganguelas [ganguelas] e sucessivamente com os ditos povos de Cazembe [Kazembe]; porque além de não haver aqui quem fale o idioma deles com suficiente perfeição, parece que o terem andado perdidos desde que saíram daquela localidade, os estorvou de fazerem observações de semelhante natureza. Julgando que talvez V. Exª queira – aproveitando o regresso dessa gente, que vai pelo Bié, e dali em demanda outra vez dos Cazembes – enviar alguma carta ao Governador Geral de Moçambique, de acordo com o qual se poderia porventura conseguir o tão proveitoso intento da comunicação por terra com a Costa Oriental da África, por isso faço a presente participação. Segundo as intenções de demora que manifestam os árabes, penso que haverá tempo de vir a dita carta de V. Exª antes que eles partam; mas, se assim não acontecer, escreverei eu mesmo para suprir quanto possível essa falta sempre muito sensível. Deus guarde a V. Exª – Governo de Benguela, 15 de abril de 1852 – Ilmo. Exmo. Sr. Governador Geral da Província de Angola – José Rodrigues Coelho do Amaral, Governador de Benguela.

Retirado de: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira. Silva Pôrto e a Travessia do Continente Africano. Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca – Agência Geral das Colónias, 1938, p. 20-21.

4. Carta do Governador de Angola ao Ministério da Marinha e Ultramar sobre chegada dos “árabes” em Benguela Ilmo. e Exmo. Sr. Um acontecimento notável, acaba de ter lugar nesta Província e se bem que nada se possa por ora colher de vantajoso de tal acontecimento, persuado-me que de futuro, proporcionando-se certos recursos, grande utilidade resultará ao comércio, e adiantamento à ciência da comunicação por terra entre as Províncias Ocidental e Oriental da África. E ofício, datado de 15 de abril último, participou o governador de Benguela que ali havia chegado uma comitiva de cinco árabes maometanos e vários escravos indígenas, que partindo da costa oriental para o interior a mercadejar, e tendo-se afastado um pouco do

286 sítio de Cazembe [Kazembe], por casualidade se encontraram com os pombeiros do chefe do Bié que também deste lado ocidental haviam ultrapassado um pouco os seus costumados limites. Tanto o ofício a que a cima me refiro, como em artigo comunicado pelo Diretor da Colônia de Mossâmedes Bernardino Freire de Figueiredo Abreu e Castro, se acham estampados, nos Boletins do Governo d’esta Província nº 343 de 24 de abril último, e 1º do corrente [maio], que por esta mala, tenho a honra de remeter a V. Exª e por isso me abstenho de enumerar os pontos que os ditos árabes dizem haver percorrido, mesmo porque das notícias por eles ministradas pouco se pode por ora coligir de interessante, além dos fatos positivos de haverem efetivamente atravessado o Sertão Africano do Oriente para o Ocidente. Reconhecendo as grandes vantagens que devem resultar a esta província e mesmo à Metrópole, além dos imensos auxílios que pode prestar à ciência em geral, o abrir-se uma comunicação por terra, que ponha em contato mais imediato, a Província de Moçambique com esta, não duvidei propor em Junta da Fazenda, a concessão de um prêmio para a pessoa que se prontificasse a acompanhar estes destemidos viajantes, e tendo-se em sessão da mesma Junta deliberado que o prêmio fosse de um conto de réis, nessa conformidade expedi o Ofício Circular, inserto no Boletim acima referido, nº 344 do 1º do corrente no qual para maior incentivo, prometo mais a quem se propusesse a fazer esta viagem, o Posto de Capitão de Passagens com o soldo de gratificação que o Governo de S. Alt. Rainha, designar além da recompensa que há de esperar A Mesma Augusta Senhora, sempre solícita em promover os interesses desta Província, de certo concederá a quem prestar tão importante serviço. Em resultado destas diligências alguns indivíduos se têm apresentado, propondo- se a intentarem a referida viagem, porém como em vista de participações ultimamente recebidas de Benguela consta que os ditos árabes já se puseram a caminho, pode acontecer, que a pessoa que daqui partir em direitura ao Bié, já ali os não encontre e se malogre assim esta tentativa. Por este motivo, averiguada como está a possibilidade de tais comunicações pelo fato acima relatado e outros anteriores, parece-me que o mais conveniente e melhor meio de se poder obter o relatório de viagem feito por pessoas para isso habilitadas, seria ordenar-se ao Governador de Moçambique, que numa época [ileg.] fizesse partir daquela Província, uma caravana dirigida por alguém que tivesse as qualificações necessárias para tal fim; e que, pelos caminhos já conhecidos dos naturais daquela parte da África, viessem

287 até Cazembe [Kazembe]; sendo da mesma forma e na mesma época uma outra caravana expedida daqui para o Bié. Chegados que fossem aos dois pontos já conhecidos, em um mês e dia determinado marchassem a encontrar-se, atravessando o espaço que separa o Bié de Cazembe [Kazembe] e que pouco excederá a umas 100 léguas; e logo que se encontrassem fazendo a devida permutação dos gêneros que por ventura trouxessem os exploradores se revelassem, voltando as comitivas ao ponto donde saíssem. Desta maneira parece-me aliviar-se o único inconveniente que se encontra, para que indivíduos nas circunstâncias de poderem fazer uma viagem científica, atravessem Sertões desconhecidos, pois com os meios de que pode dispor este Governo Geral, não é praticável fazer prestar os muitos carregadores precisos aos viandantes encarregados de tal exploração por sertões onde não é reconhecida a sua autoridade: obtendo-se assim e ao mesmo tempo dois relatórios da mesma viagem, e que poderiam retificar-se mutuamente. Sendo talvez fácil ao Governo de Moçambique o fazer chegar a sua comitiva até Cazembe [Kazembe], nenhuma dúvida haverá em encontrar, muito próximo de tal ponto, ou ali mesmo, a que daqui se expedisse muito mais, tendo o chefe do Bié prometido ao Governador de Benguela, fazer acompanhar os árabes por seus pombeiros, até ao ponto mais próximo de Cazembe [Kazembe] que lhe seja possível. Tendo o que deixo exposto na última parte deste ofício a minha humilde opinião sobre o modo que julgo mais fácil para se conseguir uma exposição mais exata sobre tal viagem, e com ela fixar depois as bases de mais regulares explorações e comunicação com a Contra-Costa; não julgando que seja o único nem o melhor, Sua Majestade, ordenará o que houver por mais acertado sobre tão importante objeto. Deus Guarde a V. Exª Luanda, 18 de Maio de 1852 Ilmo. Exmo. Ministro e Secretário d’Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar António Sérgio de Sousa [Governador Geral interino de Angola]

AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 18 A, s/d, "Silva Porto - Comunicação terrestre entre Angola e Moçambique", 1850.

5. Carta do Governador de Benguela ao Governo Geral de Angola sobre o convite e aceite de Silva Porto para realizar a viagem

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Ilmo. e Exmo. Sr. – Tenho a honra de acusar a recepção do ofício nº 474 expedido pela Repartição Civil da Secretaria Geral com data de 28 de abril próximo passado, no qual V. Exª me determina que procure encontrar alguém que acompanhe, no seu regresso, os Mouros de Zanzibar, vindos ultimamente por terra a esta Cidade desde a contra costa. Faz-me V. Exª igualmente saber, que será conferido o posto de Capitão de Passagens com o soldo ou gratificação que o Governo de Sua Majestade designar, e um prêmio de um conto de réis, pago pela Junta da Fazenda Pública da Província, à pessoa que empreender esta viagem, e que, na volta, trouxer resposta dos ofícios que há de levar para o Governador Geral de Moçambique, desempenhando além disso, as instruções que V. Exª serviu mandar-me remeter. Estas promessas são, sem dúvida vantajosas; e todavia é evidente que não podem convir se não a quem tiver uma certa fortuna, com a qual haja de ocorrer às avultadas despesas que exige semelhante viagem. Por isso eu, sem me demorar em ouvir as propostas de um ou outro indivíduo, somente ousado e mais ou menos inteligente, propostas que não podiam deixar de versar sobre a obtenção de auxílios que eu não estou autorizado a conceder, me dirigi ao abastado sertanejo do Bié, António Francisco Ferreira da Silva Porto – que, por fortuna, se achava nesta Cidade, e do qual conhecia o ânimo aventuroso, e a instrução bastante para empresa de que queria encarregá-lo. Pela cópia nº 1 do ofício que escrevi ao dito Silva Porto, depois de haver com este praticado largamente acerca do objeto do mesmo oficio, - e por a da resposta, sob o nº 2 que ele me fez; se dignará V. Exª ver os termos em que fica o projeto da viagem a Moçambique – projeto este que V. Exª bem como todos os homens capazes de reconhecer as vantagens que da realização dele podem vir às nossas possessões africanas de ambas as costas, tanto desejam ver realizado. Estou persuadido de que, a não se opor algum caso de força maior, este indivíduo há de dar conta de uma semelhante empresa. Por ele, que ontem saiu para o Bié, mandei a 1ª via da carta d’ofício que V. Exª me enviou com destino para o Governador Geral de Moçambique: a 2ª via da mesma Carta também lhe foi entregue a fim de ele a dar Major Coimbra, e este aos Mouros da comitiva de Zanzibar, os quais se acham ainda com o dito major no Bié. Rogo a V. Exª se digne mandar significar-me se satisfiz as intenções de V. Exª, ou se devo modificar o que tenho feito; o que é ainda possível, atenta a demora que o sertanejo Silva Porto há de ter no Bié, antes de seguir para o interior do país.

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Deus Guarde a V. Exª. Governo de Benguela, 3 de junho de 1852. – Ilmo. e Exmo. Sr. Governador Geral da Província de Angola – José Rodrigues Coelho do Amaral, Governador de Benguela.

BOGGPA – nº 355. 17 de Julho de 1852. Disponível em: AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 18 A, s/d, "Silva Porto - Comunicação terrestre entre Angola e Moçambique", 1850.

6. Carta do Governador de Angola ao Ministério da Marinha e Ultramar sobre o convite e aceite de Silva Porto para realizar a viagem Ilmo. e Exmo. Snr. Em data de 18 de maio último tive a honra de dar parte a V. Exª da chegada a esta Província de uma comitiva de árabes maometanos, que atravessaram o Sertão Africano do Oriente para o Ocidente. Por essa ocasião fiz igualmente saber a V. Exª quais as providencias, que havia dado para se procurar conseguir uma comunicação regular, ainda que provisória e imperfeita enquanto o Governo de Sua Majestade, sempre solícito em promover os interesses das suas possessões ultramarinas, não tomasse as medidas que entendesse mais adequadas para se levar a efeito tão importante comunicação, de uma maneira estável e que ofereça garantias aos que se aprontarem a estabelecer estas relações entre as duas Províncias de Moçambique e Angola. Em resultado pois das minhas diligências, que foram completamente auxiliadas pelo atual Governador de Benguela, o Major José Rodrigues Coelho do Amaral, consegui que o abastado sertanejo do Bié António Francisco Ferreira da Silva Porto se comprometesse a dar conta desta comissão, salvo qualquer incidente de força maior que obste ao seu cumprimento. Nesta conformidade foram entregues ao dito sertanejo a 1ª e 2ª via em um ofício que sobre este objeto dirigi ao Governador Geral de Moçambique, a fim de ser uma encaminhada por ele ao seu destino, e outra entregue ao Major Coimbra, que a deve confiar depois aos mencionados árabes, que já partiram de Benguela, mais ainda se acham estacionados no Bié. É o que acabo de relatar, tudo quanto por hora tenho podido conseguir sobre esse objeto, esperando fundadamente que mais tarde ou mais cedo obtenha um feliz resultado de tão importante tentativa; podendo assegurar a V. Exª que me não poupo a trabalho

290 algum, que seja tendente a realizar o futuro brilhante, tanto para o comércio, como para a ciência, que [ileg.] do estabelecimento de tais comunicações. Deus guarde a V.Exª Luanda, 19 de julho de 1852 Ilmo. e Exmo. Sr. Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar Antonio Sergio de Souza [Governador Geral interino de Angola]

AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 18 A, s/d, "Silva Porto - Comunicação terrestre entre Angola e Moçambique", 1850.

7. Carta de Silva Porto ao Governador de Moçambique avisando sobre a substituição da responsabilidade sobre a caravana para seu macota João da Silva Ilmo. e Exmo. Snr. Depois de uma longa enfermidade de que apenas me acho em convalescença, a custo lanço mão da pena para endereçar a vossa Ex.cia o Snr. Governador de Angola; o portador, João da Silva, pessoa em que deposito inteira confiança e única que me poderá substituir em semelhante empresa, dará conta a V. Exª dos dias de viagem desde o dia 25 do corrente em que levanta do ponto em que me acho, até a sua chegada a essa capital; única coisa que poderá fazer, pois que para esse mesmo fim, será necessário um intérprete capaz, porquanto, ele é alheio a qualquer idioma que não seja o seu, a língua quimbunda, e da qual eu tenho perfeito conhecimento, pois que logo que regresse da sua comissão, ser- me-á dada conta exata da sua viagem desde a saída do meu estabelecimento até Moçambique, para inteira conclusão do meu roteiro. À falta, pois, de dados positivos sobre tal derrota, o que posso asseverar a vossa Excia, em presença do meu diário incompleto, é que, da cidade de Benguela, ponto da minha partida, até a terra do Bié, lugar do meu domicílio, são 23 dias de viagem, e de esta última terra ao lugar do meu estabelecimento, onde presentemente me acho, são 43 dias de viagem, regulando cinco léguas de marcha diariamente; a marcha do portador para essa, deve de regular 8 léguas diárias pelas circunstância de ser uma viagem escoteira. Acho motivos para crer com todo fundamento, tendo em vista a péssima índole do gentio, de que esta descoberta, de há imenso tempo premeditada, para manter relações entre as duas capitais, só se poderá se conseguir por meio do comércio, Oriental e Ocidental; o primeiro existe estabelecido; resta portanto que por igual forma se estabeleça o segundo, tornando-se esse ponto o centro imediato de ambas as partes.

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Apreciando, pois, V. Ex.cia a incalculável vantagem que poderá resultar para a nação portuguesa, e com especialidade para o comércio Ocidental e Oriental, qual a que agora se acaba de conseguir, para ela se tornar permanente, as circunstâncias exigem atualmente que cinquenta pessoas dessa Capital regressem em companhia do portador, para seguirem até a capital de Angola, pois que serão elas o motor atraente daqueles que desejam procurar fortuna pelo vasto interior destas paragens. Deus guarde a V. Excia. Lui, 24 de Março de 1853. Ilmo. e Ex.mo Sr. Governador de Moçambique António Fran.co Ferr.ª da Sª Porto 1853

Retirado de: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira. Silva Pôrto e a Travessia do Continente Africano. Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca – Agência Geral das Colónias, 1938, p. 45-47.

8. Carta de Silva Porto ao Governador de Moçambique avisando sobre a falha da primeira tentativa de travessia e envio de nova comitiva, agora sob responsabilidade de Ben Chombo Ilmo. e Exmo. Snr. Havendo decorrido espaço de cinco meses depois da saída do meu substituto para essa Capital, segundo incluso ofício n. 7 de 24 de março do corrente ano [documento 7 desse anexo], passei pelo desgosto de ver abortar semelhante viagem a 2 do mês passado; os motivos pois que a fizeram frustrar, serão expendidos em tempo competente. Exausto de recursos e pronto para regressar para o meu destino, difícil me era o empreender uma dupla viagem; contudo, desejando ver cumpridas as ordens do Governo Geral e ao mesmo tempo realizadas as minhas esperanças, não se me oferecia senão o tempo necessário para mandar em transporte de novos recursos, e, de posse dos mesmos no dia 15, amanhã faço seguir o meu encarregado para essa Capital, cujo é Xihombo [Ben Chombo], natural da Ilha de Zanzibar, o qual, com mais quatro companheiros, acompanhados dos competentes negros, atravessaram o interior deste país com seus negócios e, em Maio do ano passado, se apresentaram em Benguela a permutar os mesmos. Empreendo, pois, essa dupla viagem e espero que a Divina Providência permitirá os seus felizes resultados. Deus guarde a V. Ex.cia. Lui, 21 de Setembro de 1853. Ilmo. Ex.mo Sr. Governador de Moçambique

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António Fran.co Ferr.ª da Sª Porto 1853

Retirado de: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira. Silva Pôrto e a Travessia do Continente Africano. Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca – Agência Geral das Colónias, 1938, p. 47-48.

9. Certidão do governo de Benguela que registra a chegada de Ofício do governo de Moçambique sobre a chegada da comitiva na capital (Ilha de Moçambique) Certidão Manuel da Silva Franco, Secretário Interino do Governo de Benguela &. Certifico que nesta Secretaria do Governo de Benguela, e no respectivo arquivo se acha devidamente arquivado o ofício a que o suplicante [Silva Porto] se refere na petição retro – cujo é do teor seguinte: = Moçambique = Gabinete do Governo Geral = Número 1. = Ilustríssimo Senhor. = Tendo chegado a esta Capital, vindos dessa cidade por terra os negros constantes da relação inclusa, acompanhando um Mouro de Zanzibar, e como os ditos negros me representassem não poderem voltar pelo mesmo caminho; por isso tenho a honra de lhos enviar para Vossa Senhoria se sirva dar-lhe o destino conveniente. = Deus guarde a Vossa Senhoria. Moçambique dezessete de setembro de mil oitocentos e cinquenta e cinco. = Ilustríssimo Senhor Governador de Benguela. = Vasco Guedes de Carvalho Menezes. = Relação dos negros que vieram de Benguela a Moçambique por terra. = Guilherme. = Atecau = Fernando = Xeimbomba = Caetano = Amaro = Gonçalo = Domingos = Inácio = Mouhomba = Luiz = Cipriano = Thomaz = Cheque Ambo = fica no hospital doente. = Secretaria do Governo Geral de Moçambique, dezessete de setembro de mil oitocentos e cinquenta e cinco % = José Barbosa Leão, Secretário Geral. – E nada mais consta do ofício e relação referidos, - dos quais, em cumprimento do despacho de Sua Senhoria o governador do Distrito [de Benguela], mandei extrair a presente certidão, que vai assinada e selada com o selo desta Repartição. Secretaria do Governo de Benguela, 25 de Dezembro de 1855. Manuel da Silva Franco. Secret. Int.º

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Retirado de: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira. Silva Pôrto e a Travessia do Continente Africano. Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca – Agência Geral das Colónias, 1938, p. 53-54.

10. Carta do Governador de Angola (José Rodrigues Coelho do Amaral) ao Ministro da Marinha e Ultramar sobre a chegada dos pombeiro em Benguela em 1855 Ilmo. e Exmo. Snr. Em 15 de abril de 1852, sendo eu Governador de Benguela, participei ao Governo Geral da Província, a chegada àquela cidade de uma comitiva de cinco Árabes maometanos, e vários escravos pretos, os quais tendo partido da ilha de Zanzibar, atravessaram o continente desde a contra costa; e ponderei as grandes vantagens, que poderiam colher-se da comunicação por terra com a costa oriental da África, lembrando a conveniência de se aproveitar a volta da mencionada comitiva, entregando-se-lhe uma carta para o Governador Geral de Moçambique, cujo acordo eu julgava facilitaria o referido intento da comunicação das duas costas. Em Ofício do ex- Governador Geral Antonio Sergio de Souza, dirigidos ao Ministério dignamente a cargo de V. Ex.cia em 18 de maio, e 19 de julho de 1852, foi noticiado o notável acontecimento da chegada dos referidos árabes, e o meio de que se lançara mão para tirar as vantajosas consequências, que se teriam. Procedendo-se na conformidade das recomendações da Portaria de 3 de maio de 1854, foram empregadas todas as diligências conducentes àquele fim: entretanto tenho a levar ao conhecimento de V. Ex.cia que o Governador de Benguela acaba de me informar terem aí desembarcado da Fragata Dom Fernando treze pretos dos que foram mandados por terra daquela cidade para Moçambique pelo sertanejo Francisco Ferreira da Silva Porto, encarregado da exploração, em que interrogados acerca da jornada que fizeram, nada adiantam, ou respondem incoerentemente, podendo unicamente coligir-se que eram trinta e seis quando saíram de Benguela; que cinco foram mortos pelo gentio com azagaias; e que os mais fugiram no caminho; que do Bié a Moçambique gastaram dezessete luas; que o gentio era completamente intratável; e que nas terras do interior por onde transitaram abunda o marfim. Deus guarde a V. Ex.cia. Luanda, 22 de dezembro de 1855. Ilmo. e Exmo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar José Rodrigues Coelho do Amaral

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Governador Geral [de Angola]

AHU, Angola, Correspondência dos Governadores, pasta 18 A, s/d, "Silva Porto - Comunicação terrestre entre Angola e Moçambique", 1850.

11. Resposta do governo geral de Angola para Silva Porto sobre a chegada dos pombeiros em Benguela Ilmo. Sr. Sua Ex.ª o Governador Geral encarrega-me de dizer a V. Sª., em resposta ao seu ofício de 27 do mês passado, que teve comunicação do Governador Geral de Moçambique, da vinda Fragata “Dom Fernando” dos pretos que para aquela Província haviam ido por terra; mas que nada disse àquele Governador acerca da recepção dos ofícios a que V. S.ª se refere, donde se conclui que não foram entregues seguramente porque os pretos os extraviaram. Sua Ex.ª sente que nenhum fruto se tivesse de tal tentativa, o que era de esperar, sendo ela cometida a negros ininteligentes. Que, todavia, espera Sua Ex.ª que V. Sª. trate de tirar algumas notícias dos ditos pretos, para as transmitir a este Governo Geral. Deus Guarde a V. Sª. Secretaria do Govº G.al da Província de Angola, 4 de Janeiro de 1856. Ilmo. Sr. António Francisco Ferreira da Silva Porto – Feirante estabelecido no Bié. Augusto de Melo S. G. do G. [Secretário Geral do Governo]

Retirado de: SILVA PORTO, António Francisco Ferreira. Silva Pôrto e a Travessia do Continente Africano. Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca – Agência Geral das Colónias, 1938, p. 55-56.