Revista de Guimarães Publicação da Sociedade Martins Sarmento

PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE (868-1128). FERNANDES, A. de Almeida Ano: 1972 | Número: 82

Como citar este documento:

FERNANDES, A. de Almeida, Portugal no Período Vimaranense (868-1128). Revista de Guimarães, 82 (1-2) Jan.-Jun. 1972, p. 37-90.

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Portugal no Período Vimaranense (8684128) (Continuada da página 254 do rol. XXXI)

POI A. DE ALMEIDA FERNANDES

V

Do FASTÍGIO ÀQUEDA E À RUÍNA

a) O mais alto grau do Poder Portzggaleflse.

Entretanto, pontificava no mosteiro vimaranense como principal no corpo dos «dornnos de Vimaranes›› uma nova e ilustre condessa Mumadona, neta e inteira- mente homónima da fundadora. Filha de Diogo Mendes e de Ildôncia (DC 77), devia Ser já então viúva, sem isso significar que no mosteiro vivesse quando se tornou nele a do/fiifza principal. No meu actual entender, havia casado com o conde Telo Alvites, ainda parente seu (um primo direito do pai da dona, como sabemos) e bisneto do duo Lucídio Vimarâniz (1). Seu marido vivia ainda em meados de 985,

(1) Qualquer opinião minha anterior em total ou parcial discrepância com esta (AFI 136-138) deve corrigir-se pelo que agora digo. Do conde não há qualquer notícia posterior a 985, e de forma nenhuma será possível supor que se trata de Telo Aldiâniz (suges- tão em FCP 16, obra que eu só conheci quando o cap. IV deste trabalho estava na tipografia), que num dos primeiros anos do séc. XI assistiu ao julgamento de Eirigo Gonçalves (o traidor do castelo da Maia) presidido pelo duo magnos de Portugal. Não há confusão possível entre Alvito e Áldila e os respectivos patroní- micos. 38 REVISTA DE GUIMARÃES

data em que ‹‹simul cu uxore me Mumrnadornna» doou ao mosteiro de Antealtares de Compostela certos haveres na margem sul do Lima (do. GA3 300-302). Casado com uma parente do rei, não admira que este, com seus magnates, entremos quais o nosso conde Gon- çalo Mendes, tio dela, haja dado a sua confirmação solene ao acto, mostrando bem a alta posição social dos doadores. Antes de entrar ‹‹deovota›› como sua avó homónima (DC 223) no seu mosteiro, a residência ou casa principal de Mumadona devia ser a actual Conde, perto de Vima- ranes. O local denominava-se nesse tempo ‹‹Sancto Mar- tino›› semente (DC 212) e por isso mesmo é que devia ter então principiado a chamar-se-lhe ‹

(1) Em concordância, há que foi conde o marido da dona - e por isso mesmo ela condessa. Mas não o digo por ela assim se titular, já viúva (DC 212): disso darei melhor explicação. Esta dona Mumadona tem sido até hoje confundida com a primeira, a ‹‹maior››, e, salvo um improvável erro, fui eu o primeiro a distin- gui-las- tarefa simples se atendermos a que os autores que agora tem a mesma opinião entendem escusado citar a minha precedên- cia. O conde Telo Alvites possuía grandes haveres entre O Ave e o Lima, pelo menos (doc. GA3 300-302, LF 825, etc.), e podia, pois, ter sido o dono do local. Quando não, possuiria aí de sua esposa ‹‹illo palacio obdonigo» de seus antepassados (DC 121). Entre estes, comum a ambos, pois que eram parentes, se nos apresenta logo o conde Lucídio (bisavô dele e trisavô dela), que após a presaria de Portugale por seu pai teve o cor isso de «Intel ambas Aves» (DC 5).

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‹‹vobis coMtissa mostra doma Mummadomna›› (expres- são cuja presumível importância veremos), constante de bens na vizinha Nespereira, os quais passaram ao cenóbio por morte da condessa, se lhos não doou antes (DC 212), o mais cível. A fidelidade destes administradores da casa condal vimaranense parece não poder resistir às ausências dos senhores. Veremos que um facto semelhante se deu na ‹‹casa de Nugaria» da comítessa magna Toda (LF 176). De acordo com a presumida posterioridade a 985 da entrada de Mumadona como domina de Vimaranes, é de Setembro de 992 a primeira notícia dessa sua pre- sença - - uma incomuniação «vobis me doma Mumma- domna prolix Didaci et ad fratres er sorores habitantes in cenobio Vimaranes››: di-Io o próprio incomuniador, um frade certamente deste mosteiro, que chama «donos mos›› em conjunto àqueles (DC 166). Terá aqui a expres- são um sentido diferente do domínio de Mumadona, qual- quer membro da comunidade se devendo considerar um servo dos demais, seus ‹‹donos» por isso P Neste tempo, as ameaças almançorianas mantinham o seu rugido constante desde a revolta galaico-portuga- lense sufocada em 986-987 por Vermudo II, sucesso faci- litado precisamente por aquele perigo iminente. já vimos ¡ que em 987 capitulou Conimbria, que foi abandonada Í r durante sete anos pelos seus habitantes, vindo os mouros a reedificá-la e repovoá-la em 994 (I). O conde Frota Gonçalves, que teria recebido de Almançor o governo do condado conimbricense, já então devia residir em Montemor (DC 242), a partir da conquista desta praça pelo hágibe cordovês em 990 (APV-E. H. 293-294), em meu entender; e aí se conservaria até à reconquista crista, pelo conde Mendo Lucídiz, no segundo decénio do séc. XI. gl Portugale estava perigosamente ameaçado. Como ele- mento dissuasor de resistência eventual à submissão, atra-

(1) Suponho que esta destruição de Conimbria respeita à velha Conimbriga, por muito que se estranhe- . o que não inte- ressa, nem posso, desenvolver aqui. Quando as fontes dizem É «habitaverunt in illa anhos LXX**›› os mouros (APV~ E.H. 293), embora haja nisso acordo perfeito com a reconquista definitiva de por Fernando Magno, em 1064, penso que se trata de uma confusão sobre as duas povoações- a nova Conimbria e a então definitivamente destruída, para sempre extinta. 40 REVISTA DE GUIMARÃES

vessou Almançor o Douro em 995 para conquistar o castelo de Aguiar, na «província portucalensi», foz do Sousa (PMH-SS 19). A guarnição muçulmana passaria a constituir um espinho cravado no manco do condado, para eliminar O qual não mostrou poder o velho Gonçalo Mendes, duo mag/2ur, não pouco pela própria felonia de subalternos. De facto, o castelo da Maia (cerca de Erme- sinde) caiu, por traição, em poder do conde Veila Gon- çalves, talvez irmão do dux conimbricense almançoriano, e por esta perda e análogas _ pois não pode ter sido a única, tendo ela por si apenas uma recordação documental mais ou menos fortuita-, todo o entre Douro e Ave escapou à autoridade dO conde de Portugale antes de 997. Assim se.pode compreender que, quando estalou a tormenta esperada, o hágibe cordovês, passando por Viseo e La reco e atravessando o Douro, viesse esperar em Portugale cidade (se este nome se lhe pode dar então) a esquadra que lhe trará os reforços para a sua terrível invasão do Norte, passando para lá do Minho pelo vau de Valadares (cerca da actual Monção). Com ele, andam aque- les e outros condes cristãos, mas nada sabemos de positivo acerca da atitude tomada por Gonçalo Mendes. Ter-se- -lhe-ia também submetido P Os antigos autores noticiam precisamente para este ano de 997 um cerco de Portugale cidade por Almançor, defendendo-a um conde Gonçalo que nessa heróica defesa morreu (HGB III 3). Não há qualquer motivo para duvi- dar de que esses velhos autores possuíssem ainda notícias que não chegaram até hoje; mas parece-me havia-lo quanto à integridade no concernente a harmonia com as circuns_ tâncias documentadas expostas. A sua deturpação é natural, e parece mesmo evídenteno facto de se julgar que esse ‹‹conde Gonçalo» (como era designado em tais noticias, o que mostra a realidade delas) era Gonçalo Moniz- -no que se equivocam, porque este havia sido conde de Conimbria e morrera anteriormente a 984, como já sabemos. A única forma de se entenderem estes factos parece-me ser a resistência certamente fraca oposta pelo nosso duo magna à progressão de Almançor ao norte do Ave, sem ser impossível que Gonçalo Mendes houvesse conseguido contra os seus subalternos traidores (como O conde Veila) a posse de Portugale cidade até ao ataque de Almançor. PORTUGAL no PERÍODO VIMARANENSE 41

Tudo indica, de facto, tratar-se de Gonçalo Mendes, que ainda então era o conde de Portugale e, para mais, desaparece desde esta mesma ocasião. Mostra-se não só pela sua idade avançada mas também porque logo no ano seguinte (998) é já dz/x magmas de Portugale seu ilho Mendo Gonçalves (DC 183), o que não significa sucessão nessa precisa data. Em concordância, é em princípio de 999 (o que não quer dizer exactamente desde então) que aparece como úrmíger do reino o conde Frota Mendes, cargo esse que o nosso conde havia recebido de Ver- mudo II, que lho não iria tirar para o dar àquele e lho havia conferido sobretudo para com um aumento de poder lhe captar a fidelidade --. o que só à primeira vista poderia parecer contraproducente (do. GA3 313) (1). À sua morte, depois de quase meio século de governo portugalense, atravessando inúmeras dificuldades e tirando delas todo o partido possível, legava Gonçalo Mendes ao seu sucessor um condado pràdcamente livre sob o ponto de vista político, embora de momento na maior parte em poder dos cordoveses. Essa situação procurara-a ofilho de Mumadona marcar sempre que podia, não hesitando em servir-se para isso da rebelião e até. do quase desato pessoal à autoridade do rei, por questões às vezes de pouca monta, mas, precisamente por o serem, bem significa- tivas (do. E. S. XIX 382, etc.) (2).

Com as campanhas de Almançor, não teve Portugale (cidade e província) a terrível sorte de Conímbría (quer a antiga Conímbriga, destruída, só então, creio eu, definí-

(1) Já pude dizer que, ao contrário do que às vezes se quer (FCP 50), a «última vez›› que nos surge não é a de 985 (A. P. XXVII 151): ainda vivia e governava depois de 993 (do. GA3 153, etc.) ; mas são respeitantes a outro todas as notícias directas posteriores a 997. Assim a de meados de 1001, de um ‹‹concílio ante iudicum comes Gundisalvus Menendiz›› e outros- até porque se trata de uma agnição na Galácia setentrional (Compostela) (doc. GA3 313). (2) Regro-me ao caso de que me ocupo em AFP 118-119, onde porém se deve corrigir a data, 993, que é a do documento. Este reporta-se a factos passados e tanto assim que se dá a situação curiosa de o nosso conde, então nas melhores graças do soberano, ser por este chamado ‹‹rebelde››, do rei. E um caso que pode escla- recer a situação do conde Ximeno em face de Ordonho III em Conimbria depois de expulso e exautorado da Galácia, como vimos. 42 REVISTA DE GUIMARÃES tivamente, quer a antiga Ermínio, aniquilada por vários anos, ficando a respectiva província praticamente elimi- nada); mas a província portugalense restou em poder muçulmano para o sul do Ave-Vizela, aproximadamente. Dir-se-ia que, mais que qualquer outra fortaleza dessa linha, contivera Vimaranes a dominação arábico (melhor que Vermuím), nas primeiras balizas do respectivo (commissorium›› (aqueles rios), efeito do poder do seu castelo, que para essa defesa deliberadamente havia sido construído (DC 97). Nada me custa, de facto, admiti-lo, à luz documental e circunstancial. Vermudo II devia ter sofrido um grave desgosto com a perda de todo o vasto sudoeste do seu reino (Conimbria e grande arte de Portugale), talvez uma das razões por que não sobreviveu à situação. Faleceu, de facto, em 999, com muito menos de meio século de idade. Pouco tempo, porém, durou aquela situação, por~ que, como em trabalho paralelo a este creio explicar, a restauração do domínio portugalense nos seus territórios meridionais (até ao Vouga inferior) foi efectuada em ambas as partes do Douro por caudilhos das ‹‹stirpes››. Estas viriam a notabilizar-se já sobre quaisquer outras em Portugale e assim pôde servir-se delas o novo duo magna: portuga- lense quando O seu ice-reinado em Leão absorvia a sua actividade (do. E. S..XXXVI Ap. 9), como pouco mais de quatro decénios adiante Fernando Magno as aprovei- taria para a substituição da administração condal. Sobre- tudo notável naquela empresa de eliminação dos alman- çorianos em Portugale, cristãos e muçulmanos, o duo Mário Viegas da <‹stirpe>› gascã (antepassados vindos das províncias bascas P), um dos comités subordinados ao conde Mendo Gonçalves e à sua viúva e sucessora, comí- íerra Toda (DC 223). Deve notar-se que OS nossos velhos autores possuem aqui uma das suas não abundantes congruências, porque datam acertadamente de 999 o início da expulsão dos almançorianos de riba de Douro, a partir de Portugale cidade, pelas «stirpes» (sobretudo a de Mário Viegas, desde logo ligado à recuperação da dita cidade), uma das quais a maiata. Regro especialmente esta porque neste mesmo tempo (999) um dos seus membros, Love- sendo Abunazáríz, de raiz mourisca, como o nome deixa entrever, sustentava uma questão sobre bens em riba de

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Cávado em seu nome e nos «de suo germanos vel here- des››. Contra os «adornos de Vímaranes Gonta abba et Mummadornna Dídaz››, requereu ele a causa ‹‹ad ílle omite Menendo Gunsalvi›› (DC 183), que desde o ano anterior «ipsum comítatum imperabat» (DC 311). Ora a «stirpe›› maiata tinha o seu omisso ou comissos precisamente no litoral do Douro para o norte, e o seu chefe era então Trastamiro Abunazáriz, irmão daquele (do. H. G. Pr. III 539) e tronco de vultos importantís- simos do nosso período portugalense. Em Maio desse ano, quando corria aquela questão contra os ‹‹donos›› vima- ranenses, devia ele andar empenhado na acção contra os almançorianos; mas não foi por isso que nessa questão figurou o irmão' esses haveres apenas respeitavam a este, pelo seu casamento e não por estirpe, além de que-. se situavam fora dos comíssos desta (1).

(1) O facto de ainda em 1004 julgar uma causa um «magis- ter» Evenando de quem se diz ‹‹mandabat›› a circunscrição maiata (DC 183) e não O dux Trastamiro, o muito que poderia significar seria que ainda nesse ano se não estabelecera ali o cor isso da ‹‹stirpe», mas apenas deve querer dizer que se tratava de uma autoridade meramente judicial (o próprio título de magirter o indica), que, segundo creio, pode comparar-se a um acto condal de «dar per sagionem» em certas questões (para o que nem preciso, por ser situação corrente, de lembrar que o mesmo cor isso da Maia possui o caso pouco posterior do ‹‹sagion›› do duo magna: nela, Gundesindo, DC 258). Esse acto podia provir directamente do conde de Portugal (como se entenderia de outro modo o seu alto poder?) ou ter por intermediário o duo maiato subalterno, não sendo preciso citar-se este. Aliás muito menos significativo o caso desse Evenando. Numa questão dos inícios do séc. xr, enquanto ‹‹dedit per sagionem›› aquele mesmo Gondesindo, um litigante «dedit suum assertarem magister Evenando» (DC 258), como podia ter dado diferente (por exemplo, o como ele «magister Dulcidus» que, com ele ainda, confirma em 1021 um documento, DC 248). Lembra logo o adsørtor Pari: da época visigótica (Cód. Vis. II 1-4, 15, 17). Aqui está o que era esse Evenando tão engrandecido pelos nossos autores: «gover- nante›› da Maia pelo conde de Portugal (HD 190) ou o ‹‹seu repre- sentante na Maia» (FCP 51-52), não sendo nada disso. Nenhum poder político-administrativo, mas simples atribuições judiciais de certa permanência. Dizer-se dele em 1004 que «mandabat terra» da Maia pelo duo magna: (DC 183) «ad rnagistrum Evenando qui illam teriam mandabat sub presente corte Menendo Gundisalviz», significa apenas aquilo- que ainda se revela em frases estereoti- padas como ‹‹a iudice qui illam terra imperaverit» (DC 385): um imperium nem político nem administrativo. . 44 REVISTA DE GUIMARÃES

A dita causa terminou por uma agnição de Lovesendo Abunazáriz (1), confirmada pelo próprio conde de Portu- gale, pelo bispo Arias (resignatório de Durne), que talvez vivesse no cenóbio, não só pelo facto da resignação mas porque figura mais vezes nos seus documentos, e) entre outros, por Paio Gontemires, que viria a ser um dos ‹

(1) De notar que este era genro de Égica Onorigues que em 968 encontrámos a testemunhar a doação do conde Gonçalo Mendes a Vimaranes (DC 99) e havia sido, portanto, além de pessoa influente, afecto à linhagem vimaranense. A isto não obsta o facto de ter sido acusado naquela questão de autor de malfeitorias em pessoas e terras de uma concessão que OS <‹domnos de Vimaranes» lhe haviam feito (DC 183). Não há motivo plausível para deduzir de um que facto tão correntio diferenças de carácter político, é O que para a nossa História interessa. (2) Mais uma razão, em meu ver, para não se poder admitir, ao contrário do que se aventa (FCP 27), que o abade Gonta ‹‹deve ser o mesmo que Gontemiro››. Aliás são nomes diferentes, apenas um tema comum. PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 45 ele o duo magnas, como vários documentos nossos Iem- bram (DC 183), etc., seria essa referência quase escusada. A sua autoridade aqui não carecia de tal realce, dessa ver- dadeira definição de poder. É nitidamente resultado de uma impressão causada, própria de um tempo em que, como veremos, a influência condal magna ia inegavelmente decaindo, entregue a senhoras, uma situação que logo se seguiu à morte do conde, avultando em compensação as famílias condais subordinadas. Portanto, uma notícia histórica já nesse tempo - notícia essa bem justificada pelo facto de Mendo Gonçalves ter tido o reino, praticamente, em suas mãos até ao seu assassinato. Não faltam factos que provam a circunstância» plena- mente, e alguns deles, como os entendo, passo a expor : 1) Falecido Vermudo II, constituiu-se, como consta, uma regência triunvirato: a rainha viúva, Elvira; seu irmão, conde de Castela; e o conde de Portugal, seu primo pelo falecido esposo. Parece que, conforme ao reino de Leão flanqueavam Portugale e Castela, assim a rainha mãe se ladeava dos respectivos condes. Mas não resta dúvida de que, apesar de a soberana ser uma senhora de alto carácter e bom senso, ou talvez por isso, o nosso conde logo tomou a prática direcção da regência. Mendo Gonçalves deveria ter-lhe depressa merecido mais confiança que o próprio irmão, que, herdeiro do carácter ambiciosíssimo do pai, se comportou sempre de um modo tal que o próprio Afonso V, já rei, se queixava dele como de pessoa que tramava dia e noite o seu mal ou perda (do. E. S. XXXVI Ap. 12). O título de ice-rei, significação de víøarius neste caso, prova bem o poder espedal do nosso conde, e com ele concorda o facto de Afonso V só ter começado a reinar após a morte de Mendo Gonçalves: isto como se, estando todo o poder em mãos deste, fosse preciso ele desaparecer para que Afonso V pudesse dispor enfim dessa autoridade. 2) Durante a regência, conseguiu o nosso conde casar com o jovem rei uma de suas ilhas, Elvira. Não foi, pois, também este consórcio o factor do valimento e especial autoridade do nosso conde sobre Leão (com as mais directas repercussões na autonomia do nosso con- dado), embora, como se compreende, ainda mais os houvesse aumentado. Pelo contrário, foi deles conse- quência um tal enlace, que tem ainda o valor de mostrar a inclinação da rainha mãe para o nosso conde na política 46 REVISTA DE GUIMARÃES

e administração do reino. Não era ela mulher para aquies- cer a um acto da sua discordância. Tudo isto devia ter sido altamente odioso ao conde de Castela, não só porque era irmão da rainha viúva mas ainda porque também tinha filhas; e não me custa crer que daí veio o pior da rnalquerença entre o rei seu sobrinho e ele. Pior, no entanto, seria ela contra o nosso conde , e pode compreender-se chegasse um dia em que a ilustre viúva de Vermudo II não pudesse conservar o instável equilíbrio que a sua presidência na regência mantinha. Inclino-me, porém, para a sua firmeza de princípios e de atitudes correspondentes; e a conspiração poderia vir a ser então a inelutável consequência, quando não mesmo a luta civil,` sucesso demasiadamente trivial então no noroeste peninsular para poder surpreender-nos. Em todo o caso, não creio que o nosso conde tivesse perdido a vida em guerra intestina. 3) Que Mendo Gonçalves sucumbiu por meio vio- lento é indubitável: em 6 de Outubro de 1008, «occisus fui comes Menendus›› (PMH-SS 9). Embora dubitativa- mente, lembrou um historiador notável um combate com os normandos (LGA II 117), e assim se aceitou (HD 190 ; R. P. H. III 154; etc.). No meu primeiro estudo das origens portugalenses (AFI 129-130), inclinei-me para luta civil, por motivos que aqui não repito, até porque os não aceito hoje. A verdade é que a fonte daquela notícia não se refere a normandos e que a expressão ‹‹occisus fuit» é a de um assassinato. Um magnate com o poder do nosso conde, obtido, para mais, por meios singulares e não acatáveis em legiti- midade pela maioria de outros de sua ou semelhante plana ou que a esta ambicionavam ascender por títulos de família ou outros, esteve sempre arriscado a um tal em. Não terá figurado mais ou menos encobertamente o despeitado conde de Castela? Lembrareí também que Ramiro Mendes, ilho do nosso conde, casou por esse tempo com uma senhora da alta estirpe castelhana dos Vegilaz (ou Veilas, com menos. correctamente escrevem os autores), a condessa Toda Vigilaz, o que a tornava cunhada dos soberanos leoneses regidos Afonso V e Elvira de Portugale. Pelo menos deve- riam entender-se já entre si as duas famílias, e a dos Vegilaz havia muito se inimiStar com o seu conde, ganhando

| PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 47 agora grande Mfluência na corte leonesa (1). Aqui temos, em meu entender, um poderoso factor de reacção política. E não era ele o único. Creio que, enquanto as ‹‹stirpes›› dos chamados infan- ções portugalenses libertavam Portugale duriense dos almançorianos, assim o fazia o conde Mendo Lucídiz no omisso de Santa María e alguns vizinhos, pelo menos o de Alafões. Ele e o 'duo magna: de Portugale represen- tavam as duas linhas do conde Virara ou, melhor, de seu ilho conde Lucídio° a feminina, então no poder magno, desde que, em meu entender, o conferira em 926 Ramiro II a Oneca Lucídiz, e a masculina (de Alvito Lucídiz, irmão daquela comitexsa magna). Nada mais natural que a ambição do conde Mendo Lucídiz ao comítaíum superior portuga- lense ou, pelo menos, a talhar-se um condado próprio, separado de Portugale, não podendo obter este. Creio que assim procedeu ao sul do Douro, pois que ainda muitos anos depois surge em Santa Maria e vizinhas nitidamente isento da autoridade do duo magna portugalense (DC 296 e 378) (z). Ora esta proeminência condal não podia deixar de chocar-se com a do conde Mendo Gonçalves, de cujo condado. se separava assim o omisso de Santa Maria,

(1) Ao contrário do que se pensa (FCP 55), creio não poder admitir-se a filiação da condessa Toda Vegilaz no conde Veila Gon- çalves, o almançoriano do nosso castelo da Maia. Este, se veio a submeter-se ao conde Mendo Gonçalves, te-lo aos caudilhos das ‹‹stirpes››, O que lhe seria humilhante, e pela força, e uma reconci- liação, se existiu, só poderia ter sido aparente. O conde de Portugal talvez tivesse sido morto por iniciativa sua. Direi adiante porquê. Supõe-se que Toda Veilaz era irmã de Rodrigo Veilaz, arrmzger leonês, e filhos ambos de Veila Enéguiz (R. P.H. V 488); mas este, contra o que se cuida (FCP 55), não pode ser Egica Enéguiz (Enne- coni, Ennegot) que aparece ligado nos meados do séc. X ao mosteiro e estirpe vimaranense (DC 71 e 97): os nomes Végila e Egica (ou mesmo Bégica, creio que deturpação) são perfeitamente distintos nos seus temas germânicos. Também o facto de Rodrigo Veilaz aparecer não em Portugale, propriamente, mas na corte, isto é, ao lado de Afonso V (DC 223, LF 22), não significa alheamento das coisas portugalenses, porque resulta do exercício do cargo de armiger que aquele rei lhe dera, contribuindo, assim, ainda mais .. para enciumar o conde de Castela. (2) Que ele pretendia restaurar para si o condado de Conim- bria, em meu entender, ainda o mostra a sua acção de reconquis- tador, levada mais tarde até Montemor contra Froila Gonçalves, almançoriano, colocando aí como dux subordinado Gonçalo Viegas (DC 242, 378, 549), o que fizera, creio eu, em Alaföes com 48 REVISTA DE GUIMARÃES pelo menos, além de impedir a expansão portugalense para o sul do Vouga inferior, como no trabalho lateral deste se explica. Acresce o atentado a sentimentos de família pela inimizade de Mendo Lucídiz a Froila Gonçalves, o conde conimbricense almançoriano e «congermano» da romiíerra Toda, esposa do nosso dux magno, tão afectiva e confiantemente relacionados que o conde Frota a faria sua testamenteíra (DC 234). O comportamento político deste almançoriano não prejudicava, de facto, Portugale a não ser que o condado conimbricense deixava de ser o anteparo do nosso em face dos muçulmanos _ de resto, sempre pouco de confiar, em razão da persistente rivalidade luso-galaica concretizada na oposição Conimbria-Portu- gale. O conde Mendo Gonçalves não poderia ver impas- sível aquela subtracção ao seu condado e era natural se . aprestasse para a recuperação de Santa Maria - outro zé elemento de reacção política, em meu ver. Mas há mais, pois me não custa admitir que a morte violenta do nosso dux magno tivesse por fautores mais ou menos directos homens na posição do conde Veila Gon- çalves e de Eirigo Gonçalves, se não a tramou precisa- mente aquele. Sabemos que, tendo Almançor conquistado o castelo de Aguiar, cravando-0 em Portugale como espinho, o seu partidário conde Veila apoderara-se do castelo da Maia, que Eirigo Gonçalves lhe entregou e ele transformou em base de operações entre Douro e Ave. E quantos casos a este análogos se não teriam então veri- ficado, depois severamente reprimidos, aumentando os inimigos do dux portugalense? O exemplo daquela con- duta e do seu castigo conservou-se por um acaso documen- tal, mas chega para revelar os outros. Capturado anos depois o traidor, foi este julgado por um tribunal presi- dido pelo conde Mendo Gonçalves, cerca de Portugale cidade, na ‹‹villa›› Recaredi. Nem ele nem o conde Veila, com os respectivos partidários e parentes, deveriam ter-lhe ficado afectos, e o assassino do conde de Portugale

um irmão deste, Formarigo Viegas (DC 268). Se, como se quer, estes próceres eram bisnetos do conde Gonçalo Moniz (ainda vivo em 981, DC 130, o que força bastante a genealogia, embora a não impossibilite), teríamos nisso um factor mais na velha inimizade portugalense-conjmbricense em reacção contra o nosso dux magnas.

nl PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 49 pode ter sido um acto impulsionado por um deles ou um indivíduo em situação parecida (1). .

/9) Início da decadência do Poder condal.

O trágico fim do nosso conde magno parece-me ter provocado uma espécie de luta armada pela sua sucessão. Que a guerra civil (alfétena) se seguiu não me parece passível de dúvida. Uma fonte poucos anos posterior refere-a depois de aludir à morte do conde, dando a enten- der que o em deste não se verificou nela, mas antes : «advenit mos ad ille coite››, seguindo¬se perturbações na população ‹‹per alfetena que cadívit in ílla terra» portu- galense (LF 22). Essa luta teria sido, pois, aberta pelo assassinato político do nosso duo, em 1008. Perfeitamente harmónica com o facto, parece-me existir uma primacial circunstância que dá todo o carácter a essa luta civil em Portugale: quebrou-se com essa morte a sucessão condal portugalense de pai por ilho, mas não porque lhe faltassem alhos. Além de bastantes filhas, nunca

(1) Talvez se relacionam com este violento episódio .as questões condais ainda recordadas três séculos depois, com as deturpações naturais ao tempo, pelos linhagistas (PMH-SS 199) : um conde Mendo Soares «de Novelas›› (omisso de Penafidele) tinha complicações com cinco outros condes, aos quais, enquanto dormiam, fez cegar ali; mas um vassalo de um deles, andando O conde Mendo Soares ‹‹um dia correndo monte na Portela de Vaade›› (cor isso de Anóbrega), se «chegou a ele›› e matou-o. Ora o conde assim vingado chamava-se «el conde dom Veia de Tamial›› (omisso de Amaia, que nesse tempo se estendia no litoral entre Douro e Lima, PMH-SS 277). (Veia é a forma evoluída de Veila, sendo esta a de Végila). Não se vê razão que contrarie ter sido esse conde o expugnador almançoriano do castelo da Maia, isto é, o conde Veila Gonçalves (com seu paço em Ta mel), e a correspondência do conde Mendo Soares ao dux magna: Mendo Gonçalves. Paleogràficamente, era fácil a confusão dos patronímicos Gundisalviz e Suariz, em abre- viaturas, muito usadas. Acresce que O assassinado era ‹‹adentado» do rei de Leão em Portugale, e está claro que aquele termo é uma adaptação terminológica e funcional à época da narração (séc. XIII- -xlv), correspondendo ao imperante ou, no caso presente, duo magunr, qualidade que os outros cinco condes não tinham. Se o tempo do facto conviesse mais a Mendo Gonçalves da ‹‹stirpe» maiata, meio século depois, bastaria contra ele não constar. que tivesse morrido assassinado, e os anacronismos serem correntes nas fontes narrativas do séc. x11-xv, pelo menos. 50 REVISTA DE GUIMARÃES

inabilitadas pelo seu sexo nesta época para o cofizitatum magno, pelo menos cinco filhos: Gonçalo Mendes, que parece o primogénito e por isso .um seu natural sucessor, a ter perseverado a situação condal instaurada em 926 (1), o já citado Ramiro Mendes, Egas, Mendo e Múnio ou Nuno Mendes (DC 225, etc.). Mas, se filhos faltassem ao conde assassinado, ter-se-iam habilitado à sucessão os irmãos' Diogo, Ramiro e Rudesindo Gonçalves (DC 133 e 225, TCP-4 51) ou mesmo Mumadona Gonçalves (DC 121 e 420). E não será inútil lembrar as naturais pretensões da outra linha do conde Virara ao .comitatum magno, existentes em vultos notáveis como o já referido conde Mendo Lucídiz. Pois a verdade é que nenhum deles ou nenhuma delas aparece nesse poder, mas a øomiíefƒa viúva, Toda, tendo por adjunto ou sob sua direcção O conde ; e todos aqueles surgem como subalternos de sua mãe ou cunhada, pelo que a «comitiva Tora doma in ipso tem- pore ipsum comitatum imperabat›› (DC 225 e 311, etc.). Não é possível crer que a falta de sucessão num filho do conde morto se deveu a menoridade, contra o que se pretende (FCP 53)° primeiro, porque não era nem nunca fora isso impedimento, havendo fartos exemplos do con- trário (um deles anos depois em Portugale° a sucessão do conde em menoridade dirigida por sua mãe desde 1027); segundo, para mais não alegar, porque não se pode crer fossem em 1008 menores os alhos do duo assassinado, pelo menos todos (2). Não interessa aqui imediatamente que a condessa Toda tenha ou não suce-

(1) Gonçalo Mendes já aparece em 983 ao lado de seu avô homónimo duo magna; (DC 138) e sobreviveu a seu pai (DC 225 e 234). Deve ser o mesmo conde que em 1001 preside a um con- cilio judicial cerca de Compostela (doc. GA3 313), em função talvez representativa de seu pai vice-rei ou øícaríw régio de Leão, conde esse que às vezes se confunde errOneamente com seu avô homónimo. (2) Gonçalo Mendes, este ao menos, já seria maior cerca de 980, como vimos em nota anterior (DC 138), e parecidamente se dirá de Ramiro, além de outros. O avô nasceu antes de 930, primo- .génito de Mumadona ‹‹maior›› (DC 31 e 76), e o pai já em 980 não é jovem (DC 130). Mas a falha destas proles no comitatum magno obscureceu-as, pode dizer-se, inteiramente nos anos posteriores (citarei haveres de Gonçalo Mendes neto cerca de Vimaranes DC 410, etc., mas nunca poder especial), remexo visível da sorte geral da ‹‹stirpe›› vimaranense que tão alta foi.

I PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 51 dido logo ao, marido, problema que debateremos em breve. Quando digo que todos aqueles próceres ficararn sujeitos à øamitesga e seu adjunto, exceptuo, pelos motivos já de passagem apresentados, o conde Mendo Lucídiz, uma espécie de rebelde a Portugale em Santa Maria ; mas é notável em vista das suas naturais pretensões que Alvito Nunes, o duo magna: adjunto, seja um seu sobrinho: mais exactamente, sobrinho-primo. Perante o grande número de personagens preten- dentes 8 sucessão de Mendo Gonçalves e a luta civil (alfétena) que à morte dele se seguiu indubitavelmente e de que aqueles ou alguns deles não podiam ter deixado de participar, há dois factos que me parece não deverem ser alheados dessa luta: o começo do governo efectivo de Afonso V, até então tendo por tutor seu sogro, o nosso conde, e a subida de uma cofizitesƒa ao comitatum magno portugalense, tendo ao lado Alvito Nunes. A autoridade dela não proveio de sí própria, em tal ambiente e condi- ções tais, e, em razão destas, sobretudo, não foi certamente ela quem associou a esse comitatum aquele prócer. A sub- missão total dos próceres a este arranjo, porque não volta a veríficar-se perturbação em todo o seu governo, foi demasiado completa para a não considerarmos resultado de um poder superior - o do rei, apesar de jovem, ou, ainda melhor, o da rainha mãe, que, contra as esperanças ou desejos de seu irmão conde de Castela (que não pode- remos supor de todo alheio à dissensão ou problema portu- galense), teria determinado esse arranjo ou solução : nem irmao....+ nem filho do conde morto, mas uma senhora da ‹‹stirpe››, embora assistída,- - uma assistência, porém, de molde a favorecer tal solução. De facto, para evitar conflitos resultantes das pretensões do outro ramo do conde Virara ao mmííaíum magno, indicar-se-ia ou inves- tir-se-ia algum membro dela ao lado da comítefla. Mais ainda, em meu ver: se não expressamente, .foi consentido de um modo tácito ao mais importante e ambicioso membro desse ramo então, o conde Mendo Lucídiz, um comííatum magno ao sul do Douro, nos comis- sos já libertados e nas terras de que ele por seus meios pudesse vir a apoderar-se ao sul (DC 296 e 378, e ainda DC 242, 268 e 579), como princípio da restauração da 52 REVISTA DE GUIMARÃES

eliminada província de Colímbria. A situação, quanto a este conde, resolveu-se por uns anos, mas é evidente que, nunca abdicando Portugale dos seus territórios de entre Douro e Vouga anal (bem evidente situação na frase de 1018 «territorio portugalensi in domuuo Sancte Marie Clvltatls››, DC 236), gerrnínava nela um conflito que, segundo interpreto, veio a custar a Mendo Lucides o seu mmiƒatum e a Conírnbria a sua aniquilação provincial, começada com os almançoríanos. Nisto não foi pouco ou foi tudo o curso expansionista de Portugale, objecto de outro meu trabalho (1).

Mas quem teria, na verdade, sucedido a Mendo Gon- çalves? A este respeito, parece-me muito de notar, para o caso, uma frase quase imediata ao seu assassínio: «comí- tíssa ostra doma Murnmadornna» (DC 212), que é a

(1) Entre as referências ao condado sul-duriense de Mendo Lucides, é expressiva esta, respectiva à «riba de Antena» (o terri- tório de Santa Maria, ao norte do Vouga): ‹‹ille comes Merendo Luci qui illa terra inperaba sub grafia de ille rex (Afonso V) quis ille dux tenuit regalenga et condado et mandúme/n'o›› (DC 549); e o mesmo para o sul do Vouga (DC 378), do mar ao Buçaco (DC 385), por ele libertado antes de 1020 (DC 342). Os seus poderes e prerrogativas estão ali bem definidos, num tríplice aspecto: o ‹‹reguengo››, posse dos haveres próprios da coroa (LF 22, AF2 87); o ‹‹condado››, não o território, e ainda menos a função condal, mas as terras destinadas a estipêndio desta (cf. PMH-I 304, 305, 332, DR 107, etc.) ; e o ‹‹mandamento››, que, também aqui, não tem o sentido usual da subdivisão do compasso (como 0 vimos no caso vimaranense, DC 223, 420, etc.), mas o da própria autoridade conda1,- - magna, neste caso, visto que, entre ela e a real, não há intermediário (DC 549 cit., 378, etc.). Por outro lado, Santa Maria era Portugal desde sempre (séc. X-XI, DC 87, 117, 189, 317, para não citar outros, posteriores ao em do conde Mendo Nunes), como logo se considerava legalmente até o sul do Vouga (libertado por Gonçalo Tras- tamires, DC 401, etc.) ; e tudo assim, mesmo durante o condado magno de Mendo Lucides. Compreende-se a iMinência contínua do conflito entre este e o conde ou a condessa de Portugal (a comiƒisra Toda ou Alvito Nunes, até 1025, e, depois, e a comitexsa Ilduara). A verdade me parece, de facto, que Íá em 1026, O camítatum sul-duriense de Mendo Lucides havia terminado (DC 261, 317, etc.), ao que voltarei a referir-me. PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 53 segunda Mumadona Dias, então a domina do mosteiro de Vimaranes. Teria passado a esta, por medida régia, o co/øzilatum portugalense? . De facto, para além do que julgo significar aquela frase, -creio que com suficientes razões (1)-, há cir- cunstâncias concordes com tal possibilidade. Assim, é de reparar que a mesma senhora, conquanto esposa de um conde, que foi Telo Alvites (e, se o marido não tivesse sido esse ou outro conde, ou ela nunca houvesse casado, com mais força o caso se evidenciaria), nunca em vida deles e na dela depois de viúva, isto é, até à data (1009) e depois de 1008-1014, se intitula de condessa (DC 166, 168, 183, 247, 259, 407). O título, portanto, não parece ser ali honorífico, mas de sentido administrativo. Por outro lado, a condessa Toda só surge como mmiíessa magna em 1014 (DC 225), e, se nada prova que o não fosse de algum tempo antes (pelas notícias que dela temos), também nada demonstra que sucedesse ao marido. A pró- pria escolha de Mumadona II explicaria melhor a um pouco singular de Alvito Nunes para o catflitaíum magno : era um sobrinho de seu marido (o conde Telo) e, por- tanto, dela-necessitada de um adjunto não só por ser mulher (o que já bastava) mas também por ser dozøzifia do mosteiro e neste recolhida em <‹tradíção›› (pois que não em profissão). E até o partido que eliminara, pelo assas-

(1) Naquela expressão documental (de DC 212), O possessivo ‹‹mostra›› não afecta ‹‹domara››, evidentemente, mas ‹‹comitiva›› - portanto, «comitiva mostra››. Mesmo numa expressão de sentido dominical, o que se teria mais justamente (e assim sucedia) seria domina. Sem querer significar que Murnadona II não fosse coinci- dentemente domina dos outorgantes, trata-se aí de øomitessa como título geral ou para o geral da população- e, portanto, portuga- lense. Não escasseiam expressões análogas àquela, com O sentido administrativo e não honorífico: «omite rostro Enrico» (DP 80, 154); «principie rostro domno Egas» (DP 443) ; «corte rostro domno Ermigio» (do. ]AF I § 6). Estas menções acham-se numa parte do respectivo documento dedicada ao registo das autori- dades então vigentes, o que ali não sucede, mas isso não constitui diferença, visto que são sempre os outorgantes quem exprime aquele ‹‹rostro›› ou ‹‹ostra››. Só em aparência, pois, em relação a eles - - como oca assim bem claro. 54 REVISTA DE GUIMARÃES

sínato, o conde anterior aquietar-se-ia mais com esse arranjo do que com a imediata Ascenção da viúva. Se, como creio, as coisas podem ter passado assim, a verdade é que, por motivos que hoje nos escapam, não teve Mumadona II por largos anos o øomiíaíum de Por- tugale. Indubítàvelmente mais inclinada à vida monás- tica, em que estava havia muitos anos, deve ter-se afastado da vida político-administrativa (melhor do que ter sido afastada) logo que a serenidade dos ânimos permitisse ao rei a chamada da condessa Toda, sua tia e sogra, conti- nuando Alvito Nunes como dá/x magna: adjunto e, assim, no poder as duas linhas do conde Vincara. Veremos adiante que a elevação de Alvito Nunes e a de Mendo Lucides, separados pelo Douro, não foi o único modo de evitar discórdias e lutas de pretensão ao comítatum magno após o assassínio de Mendo Gonçalves, pretensão essa na linha masculina do conde Lucídio Vimarâniz, preterida a favor da feminina em 926 pelo rei Ramiro. Mas convém antes disso algumas considerações que poderão explicar em parte o valimento da condessa Toda para esse comiíaíum, embora não imediatamente ao marido. Trata-se de um mero problema de parentesco, mas muito difícil ou mesmo de impossível solução, pois que nem um patronímico nos surge para esta. Já uma vez a tentei (AFI 123-124), de um modo fortemente dubitativo, mas que só ponho de lado por um equivalente: se não era irmã da rainha Elvira, mulher de Vermudo II, sê-lo~ia deste e bastarda como ele. Que Afonso V a chame ‹‹mãe›› entende-se, por sogra (DC 259), mas já não, a não ser daquele modo, cumulativamente ‹‹tia››. Não pode ser um parentesco amém ou mais ou menos remoto, porque, cha-

4 . mando-a ele mãe, essa mostra de veneração não aumen-

v taria ajuntando-lhe, como o faz, o tratamento de tia. Se o fez em conjunto, é que se trata de directo laço sanguíneo : irmã de seu pai (ou de sua mãe, na minha primeira hipó- tese, AF1 132-134). . No primeiro caso, seria bastarda de Ordonho III que, .tão apegado, como vimos, à sua prima portugalense, milagre seria ter tido dela apenas Vermudo II - tantas as reincidências na afeição a ela, depois de outros tantos e muito forçados afastamentos. Ouso propor esta solução I PORTUGAL no PERÍODO VIMARANENSE 55

porque, além de explicar ser tia de Afonso V, no preciso sentido deste parentesco, a øomitessa, mostra como esta podia ser, ao mesmo tempo, ‹‹congerrnana›› (1) do conde Frota Gonçalves (2) (como a dizem DC 234 e 259) :

Ero Fernandes I

Ilduara Eres Teresa Eres (c. c. Guterre Mendes) (c. c. Gonçalo Betótiz 1 Ermesinda Paio Ermenegildo múnio Guterres ~C. C. Gonçalves Gonçalves Guterres

Elvira Pais Ilduara c. c. Gonçalves Pais Mendes GoflÇ3l0 Moniz Vermudo II Toda c. c. Mendo Gonçalves

Froila Gonçalves Afonso V c. c. Elvira Tudo indica que a comiƒissa Toda viveu em Vimara- nes, governando naturalmente do mosteiro, onde a domina «maior» era Mumadona «menor››, prima co-irmã de seu assassinado esposo. Isso não quer dizer que não passasse tempos na chamada ‹‹casa de Nugaría» (Nogueíró,

(1) O parentesco de ‹‹congermano>› pode respeitar a vários graus de família, sobretudo primo co-irmão, primo em segundo grau, cunhado ou concunhado, mas irmão e que me parece que nunca. Daí que se me augure não de admitir-se para a øomitersa O nome de Toda ‹

a par de Braga, LF 176), não muito distante daquele claustro. Assim se explica melhor que, normalmente ausente, se proporcionasse ao administrador daquela casa o ensejo de irregularidades, de tal modo que so' foram descobertas e remediadas quando, por morte «de illa comitiva Tuda doma››, caiu a casa, na divisão entre herdeiros, ‹‹ad comide Nuno Alvitiz et uxor eius comitiva doma Ilduara›› (LF 176). Como deixei dito, não foi a associação do conde Alvito Nunes à øorøzilersa magna no mmíƒatum de Portu- gale o único meio de congraçamento das duas linhas de. descendência do conde Virara depois de quase um século, e de estabelecer por algum tempo a paz no condado inter- namente. Em breves anos, acresceu o casamento de Ilduara, outra das várias filhas do irado conde e da con- dessa Toda, com Nuno Alvites, filho do dux fá/:aguas adjunto desta. Este caso mostra também que não foi a menoridade (aliás inexistente) dos alhoS do conde Mendo Gonçalves à data da morte deste a razão por que nenhum lhe sucedeu, mas simplesmente a conveniência da polí- tia. Com efeito, também por utilidade para esta, os novos condes de Portugal viriam a ser Ilduara Mendes e Nuno Alvites referidos. Com eles se uniram as duas linhas da ‹‹:tirPe›› vimaranense. Tal casamento deve ter-se celebrado antes da morte daquele que, sobretudo politicamente, fosse o principal interessado nele, por ser também um reforço da sua posição. Esta não deixava de oferecer um certo aspecto de debilidade. Tão evidente, que os documentos só muito excepcionalmente se referem a Alvito Nunes como conde de Portugale, e sempre, ao que noto, em casos não directa- mente ligados à administração do condado, como um patronato sobre certas familias servis cerca de Braga (LF 22) e a defesa do território contra os normandos em Setembro de 1016: «venerunt lormanes ad castellum Vermudii... comes tunc ibi erat Alvitus Nu fiz›› (APV- -E. H. 295). No mais, é como se só a «comitiva Tota doma in ipso tempere .ipsum comítatum imperabat» (DC 311, etc.), expressão que parece confirmar isso. Aquela invasão, além do que já dela têm dito os autores e critiquei noutro trabalho (AF2 81-87), merece mais considerações pela sua inegável relação cor Virna- ranes. De facto, o castelo de Vermuim existia um tanto ao

|" PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 57 poente deste burgo, e podemos concluir, com a suficiente segurança, que os homens do Norte, atraídos pela fama e riqueza do mosteiro, se dirigiam para ele. Interessar- -lhes-ia mais que a própria sede primacial, Bracara, sempre ausente o seu bispo. já assim haviam feito mais de meio século antes, O que levou à erecção do castelo de São Mamede, mas O conde Alvito Nunes, em vez de os espe- rar neste, entendeu mais avisadamente fazê-lo naquele, que estava no caminho dos invasores. Diz-se na notícia do facto que o castelo de Vermuim se situava ‹‹in província bracharensi››. Esta expressão nunca teve senão um sentido eclesiástico, pelo que pendo a crer que se escreveu assim em vez de ‹‹provi« ia portucalensi››. Deste modo, a expressão (logo ligada) ‹‹comes tunc ibi erat Alvitus Nu fiz» pode não se referir ao castelo, nem mesmo se entendendo 'um conde de castelo; mas a Portugale. Tanto mais que se trata de dzzx magna: (como demonstro em AF2 81-87 contra o parecer, contrário, de um historiador ilustre, e parece ser agora aceite, FCP 17). Mas a menção de Vermuim não deixa de indicar a presença do conde aí, face aos normandos. A defesa deve ter sido eficaz, porque não se cita outro avanço dos invasores, mas não seria impossível que Alvito Nunes aí tivesse deixado a vida. Éque nada mais consta dele, surgindo a comítissa Toda como governante única do condado portugalense. Da esposa, condessa Gontina, não ocorre qualquer autoridade, nem mesmo em vida dele. Muito menos viria a tê-la depois do seu desaparecimento. Era apenas honorificarnente condessa como muitas e elevadas donas desta época ; mas tem a importância de ter sido mãe do duo magna: seguinte e de Pedro Alvites, que foi abade do mosteiro vimaranense até cerca de 1070 e teremos de conhecer melhor.

Entretanto, prosseguia a vida no mosteiro de Virna- ranes sem perturbações de monta, entre todos os perigos descritos, pois que nada de anormal nos consta nele desde .. morte do conde Mendo Gonçalves. Era domina durante esses dilatados anos Mumadona «menor››, a sua «domina maior» (DC 183), antes e depois, como durante o seu comitaíufiz magno de Portugale, se, como creio, de facto o teve; e Gonta o abade, até mais ou menos o tempo daquele triste acontecimento. No mesmo ano de 1008, 58 REVISTA DE GUIMARÃES

parece mesmo ter renunciado já a função abacial, visto que, pouco antes, o abade Onorigo, que como ele se dizia <‹confesso››, recebia a esse título doações para O mosteiro (DC 200). A doação que naquele ano lhe fez O próprio abade Gonta (DC 201) talvez seja, em parte, a res- tituição de ‹‹villas›› adstritos à mesa abacial; mas não afirmo. Outra dona Mumadona, também condessa, vivia nesse tempo no mosteiro, mas falecida já em 1013 - uma prima co-irmã da domina, Mumadona II, e cunhada da ao/øzitísya Toda (1). Essa dona havia doado àquela casa a sua ‹‹vila›› Paramos, «inter Amaria et Durio››, hoje Paranhos na cidade do Porto, certamente herança de seu pai, o conde Gonçalo Mendes. O cenóbio possuía-a depois, de facto, ‹‹sicut in testamento de illa comítissa Mumma- domna Gundesalviz resonat» (DC 420). Naquele ano, é feita a Vimaranes uma doação por sua alma - «Pro remedi de Mummadomna Gundísalbiz dive memorie›› (DC 121) - -na qual confirma o «confesso›› Vasco, que deve ser Vasco Ximenes, da ‹‹stirpe›› vimaranense, como vimos (2). No verão do ano seguinte, estava Afonso V com a •. rainha Elvira, sua mãe (não se fala da rainha Elvira, sua esposa, talvez já falecida, se não ficou em Vimaranes nessa visita, junto de Mumadona domina do mosteiro e sua tia- ~prima), ‹‹in Occulis Calidarum››, as Caldas de Vizela ;

(1) Não parece de duvidar que O mosteiro vimaranense, além de refúgio, confessional ou não, para a ‹‹stirpe›› de Mumadona, foi também O panteão desta. No entanto, podia haver excepções, porque, por exemplo, Loba Alvites, ilha do conde Alvito Nunes e da condessa Gontina (FCP 17-18), vivia no mosteiro de Argentini (Arentím, junto a Braga) no tempo da invasão normando referida. É muito possível também, pela conjuntura, perigosa para Vimaranes, que aquela estadia (referida em FCP 17), signifique um refúgio dessa dona e outras, mais ou menos temporário. (2) Foi um dos mais distintos ‹‹donos de Vimaranes››, e é O mesmo a quem a «comitiva dona Gonzina›› chama ‹‹dilectus mihi karissimus confranger Valascus Scemeniz›› (DC 168) e que .considerei ilho do conde Ximeno Dias. Teremos em breve de referir circuns- tâncias da sua morte. r Quanto aquela condessa, não deve ser confundida, como t sucede (em FCP 17 e 45), com a esposa do conde de Portugal Alvito Nunes. Trata-se da que foi esposa do conde Soeiro Gondernares, "¬\ a qual citei já, quando tratei das revoltas contra Vermudo II che- Í fiadas ou fomentadas pelo nosso conde Gonçalo Mendes: o DC 168 refere-se a esta (ano 994) e DC 216 à outra (ano 1011). PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 59

e aí, sob sua presidência e de sua mãe, se reuniu um concílio judicial que sentenciou a restituição ao mosteiro de certos haveres que lhe eram contestados. Compunham esse tribunal a então já condessa magna de Portugal ‹› gascã; dois alhos do 'assassinado conde (Mendo e Ramiro Mendes); os condes Mendo Lucídiz e Vasco Almeiuze ; e outros que não eram portugalenses e compunham parte do séquito real nessa vinda a Vimaranes (DC 223). Nos fins do ano seguinte, conduzia o mosteiro outra grave queixa por desvio de certos bens que ele havia con- cedido, em suas vidas, a Gonçalo Mendes e sua esposa Ermesinda, condes de Portugal, muitos anos antes (2). Então ‹‹ipsos donos de Vimaranes fecerunt ide querí- monia ad illa comitiva doma Tuta››, a condessa magna, que, em tribunal por ela presidido, ‹‹ante illa comitiva et cortes›› seus subordinados, sentenciou em seu favor. Entre ‹‹ipsos omites suos iudices››, vêem-se seu cunhado Rodesindo Gonçalves e três dos alhos dela, Nuno, Ramiro e Gonçalo Mendes. Entre os confirmantes, Ildonça Mendes, outra das suas várias ilhas (DC 225). Em meados de 1022, ‹‹venial febris trabissima>› ao já aqui algumas vezes referido Vasco Ximenes, um dos ‹‹donos de Vimaranes» - doença de que «mígravit ab hora seculo». Muito, certamente, pela alta qualidade do enfermo, compareceu, se não estava no mosteiro, a con- dessa Magna de Portugale, a em de presidir ao ‹‹concílío›› pedido pelo próprio «domo Velasco» para efeitos de um legado que pretendia fazer a seu neto Vasco Pais. Por isso, com efeito, ‹‹ibi fuerunt congregati in Vimaranes comi- tissa Tuta doma››, o abade do mosteiro (Onorico), o «confesso›› Paio Gontemires e a restante comunidade (DC 251). Não se encontra a domina «maior››, Mumadona, o que, em <‹concilio›› celebrado no seu mosteiro, é um tanto estranho; mas explica-se por tonalidade não directa- mente respeitante ao convento, ou porque a coá/zziteƒƒa

(1) A condessa Ermesinde ainda vivia em 1008, tendo neste ano recebido do mosteiro vimaranense, para si e para a condessa às Sisilde (que não sei quem é), o usufruto de certas ‹‹villas›› cerca de Vímaranes (DC 201). 60 REVISTA DE GUIMARÃES

magna ocupasse o seu lugar. Ou dever-se-á à já não recente substituição de uma pela outra no mfiøííaƒum magno, pelo menos em parte? . Mumadona, de facto, ainda é referida viva em Setem- bro de 1025, num documento de Afonso V, à testa dos <‹domnos de Vimaranes››, que reclamavam certos bens ‹‹ad obitum de illa comitiva» Toda Portanto, a condessa de Portugal faleceu entre 1022 e 1025 (DC 251 e 259), preferentemente cível esta data. O monarca, contando-se naturalmente (ao menos por «stirpe›› da primeira esposa) entre esses ‹‹donos›› vimaranenses, fala e procede por si próprio e ‹‹ad vícem et persona›› de seus filhos e «etiam in persona doma Mummadomna››, e ainda com o con- senso do conde Nuno Alvites e da ‹‹ comitiva doma Ilduara››, sua mulher (os condes de Portugale de então), da «comitiva doma Onneca›› (outra das filhas do dux magna; Mendo Gonçalves) e da «cornitissa doma Tuda Vigilaz» (viúva de Ramiro Mendes, ilho daquele duo) , com sua filha Loba e seu ilho Mendo ou Ermenegildo Ramires (DC 259). Parece-me ter este documento a grande impor- tância de nos colocar em presença do corpo completo dos ‹‹adornos de Vimaranes», a saber: a velha condessa Mumadona ‹‹menor››, cuja última notícia é esta, à cabeça dos ‹‹adornos›› confessionais, e os seculares, incluso `o rei. Mais ainda que isso: a importância de nos revelar a verdadeira identificação da casa real leonesa ao mosteiro vimaranense - sendo, quanto a mim, uma das explica- ções de nele lembrar Afonso V ser sua- ‹‹Mãe›› e tia a já falecida condessa Toda como títulos de justificação domi- nial. O que ao cenóbio respeitava pertencia-lhe também a ela: por isso a queda da dinastia leonesa em 1037 arras- taria a do mosteiro-ou a da ‹‹stirpe›› condal magna. As confirmações estão de acordo: o bispo Pedro, de Lugo, que o era também de Braga; o bispo Oneco, de Portugale, da ‹‹stirpe›› gascã; os condes magnos de Portugale, Nuno Alvítes e Ilduara Mendes ; as condessas cunhadas Oneca Mendes e Toda Veilaz, com seus sobre- ditos alhos; o conde Rodrigo Veilaz, Condestável do reino, irmão da segunda, o conde Pedro Froiaz, que creio antepassado (bisavô paterno) dos irmãos Travas que tanto intuíram de 1121 a 1128, um século depois, na conquista da independência de Portugal ; e mais que não se intitulam

‹ PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 61 neste documento condes, mas que o eram, como noutros sucede com um deles, Vasco Almeiuze, pelo menos. Prova de que a falta de intitulação não arma a inexistência do título, ao contrário do que às vezes se quer. A comítersa magna Toda teria, pois, falecido nos meados de 1025, já que o caso solucionado por este documento a seu respeito não poderia ter demorado sensivelmente. E a comitiva Mumadona ‹‹menor» não devia ter vivido também muito mais (1). Temos de concluir de tudo isto e das circunstâncias dominicais vimaranenses posteriores que a <‹beetria›› conventual escolheu para sua sucessora no dominízfifl a própria comííersa Ilduara de Portugale.

ø) Para 0 ena/ do fizonaquísmo uímaranense.

Foi em 1028 ou no ano anterior (2) que 2. øofizifesfa magna Ilduara enviuvou: ‹‹obiit magnos comes Nunus AIvitíz››, seu marido (APV-E. H. 295, correspondendo o magno comes desta fonte analítica ao duo magna: dos diplomas), não sabemos em que circunstâncias, que, geral- mente, eram trágicas para cada conde magno de Por- tugale. Então deve ter-lhe sido associado no governo do condado seu ilho Mendo Nunes, o último dux magna; do primeiro período condal portugalense. . Em 1037, caiu a dinastia leonesa: Vermudo III, primo co-irmão da nossa comitesra magna, é derrotado e morto por seu cunhado Fernando de Navarra, o futuro Fernando Magno, de Leão (1037). Não poderemos duvi- dar de que o nosso conde houvesse seguido na guerra de tão trágico desfecho, um dos acontecimentos capitais da nossa História, o seu soberano e primo. O facto agra-

(1) Em 1028 aparecem uns «incommuniatos de doma Mummadomna et de casa de Vimaranes››, num pacto com O abade Onorigo e seu prepósito Cartemíro (DC 264), mas trata-se de uma situação estabelecida antes, em nada indicando por isso que a domina vimaranense vivesse ainda. (2) A fonte desta notícia, a Cbroniøa Gotborum, traz adiantada de um ano a data ou era para a morte de Afonso V no cerco de Viseu, evento a que se refere a do nosso conde: «et in ipso ano obiit››, etc. Ora o que foi errado para um pode ter sido exacto para o outro , mas o mais natural é ter havido acrescente inadvertido de uma unidade pelos copistas ou o compilador. 62 REVISTA DE GUIMARÃES

vou, pelo natural ressentimento, a ignorância e incom- preensão que o navarro tinha das coisas leonesas em geral e, particularmente, das portugalenses. Os dias do nosso condado estavam contados desde então, não lhe fossem mesmo contrárias as ideias parece que centra- lízadoras ou de administrações provinciais burocráticas do novo rei nos casos perigosos (como o desta província) para a integridade do reino de Leão. A queda verificou-se em 1044 ou já em uns de 1043 - -e não deixa de merecer reparo o próprio facto de, cem anos exactos depois, o rei leonês ter-se encontrado na difícil situação de um reconhe- cimento da nossa independência (1143). De direito, porque de facto já ela tinha quinze anos. Tal o poder de libertação que os condes magnos aqui haviam lançado e que os infanções portugalenses, que lhes sucederam e que a burocracia pretendeu inútilmente imobilizar, cultivaram e levaram ao resultado irreversível. Nos uns de 1043, a 18 de Dezembro, o nosso conde ‹‹Menendus duo magnos prolix Nunus et Ilduare» doa ao mosteiro uma sua <‹villa›› não longe de Vimaranes. Os termos iniciais da escritura e as múltiplas e acentuadas expressões de procurado ‹‹remedo anime» dão, como de costume, a entender uma situação perigosa do doador. E, de facto, embora um ano depois, se não foi, como procuraremos ver, ainda naquele ano, morria o nosso conde tràgicamente: «occisus fuit comes Menendus in ripa Guetanie›› (APV-E. H. 295). Já num dos meus anteriores estudos me ocupei deste caso (AFI 145-150; AF2 88-90), identificando este conde ao nosso duo magna: e corrigindo o erro (assim o supus) de ter indo os dias na margem do Tea, anuente da direita do Minho: seria de preferência dentro do seu condado, o qual, como no trabalho paralelo a este explico, atingia já o Minho, de cuja margem esquerda aquele rio Gue- danha seria afluente (1), o que não desejo sustentar hoje.

(1) Pensei já sem o asseverar tratar-se do anuente minhoto que atravessa o actual concelho de Monção, oNde passa em Moreira. De facto, numa doação feita em 959 ao mosteiro de Sobrado pelo conde Rodrigo Mendes e sua mulher Elvira Alvites (filha de Múnía, irmã de Mumadona «maior», e do conde Alvito Lucídiz), cita-se, entre outros bens, juntos do Lima, «in ripa Minei circo rivulo Equitanie vila Moraria» (doc. H. S. II 170). Hoje não farei essa identificação. Será algum afluente do Tea. \ PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 63

E emendei também o evidente erro de data para 24 de Dezembro de 1044, no que não devo ceder. De facto, enquanto um cronicão afirma a sua morte na margem do ‹‹Guetania››, refere-a outro ao Tea (Conimbr. PMH-SS 4); mas devem reportar-se ao mesmo (não é compreensível que o fizesse cada qual para um dos dois, e aqueles nomes são inconfundíveis), nada dizendo de normandos, para o caso. Devem, pois, os homens do. Norte ser arredados deste episódio, até porque as relações com eles já não eram tão sangrentas como antigamente, chegando a have-las boas e composições (DC 261, de 1026, na nossa Santa Maria; E. S. XL 410, de 1028-1032, na Galiza). De qualquer forma, é mais para crer que Mendo Nunes morreu não longe do Minho, mas já fora dos limites do seu condado. Portugale condal andou assim, o que exige para o acontecimento mais algumas conside- raçoes. A referida doação do conde «Menendus dux magnos››, como ele próprio nela se subscreve (DC 230), é confir- mada pelo abade Pedro do mosteiro e pela condessa Ilduara, sem isso querer dizer que em Vimaranes se lavrasse. Confirma-a também um «Adefonsus episcopus››, que creio só poder ser o de Tui, bispado que dentro do condado portugalense se estendia ao entre Minho e Lima. Não pode considerar-se mera coincidência a pre- sença deste prelado junto do nosso dux e da nossa comi- teƒsa, com o facto de o conde de Portugale ter morrido por essa ocasião e em plena diocese tudense. Que fazia ele aí? Tentativa bélica do alargar para além-Minho o condado? Em 1044, como tenho indicado, ou alguns meses antes, talvez não muitos, em uns de 1043, como ainda melhor penso hoje ser, por isso, foi que morreu o nosso dá/x magna: (1). O espírito de independência, porém,

(1) Como vimos em estudo anterior meu, na data indicada para a morte do conde Mondo Nunes teria de faltar, forçosa- mente, um X: daí a minha correcção no ano, 1044, ajudada (ou pro- vada) por tudo o mais. A verdade é que, estando indubitavelmente errada na sua fonte a data, o erro poderia manifestar-se de outro modo: em ‹‹Era Ma LXXIIa as unidades II podiam estar por X, como muitas vezes sucede, e faltar depois I, o que não acontece menos. Assim, teríamos 24 de Dezembro de 1043-sendo de menos de uma semana antes a doação do nosso duo nas circuns- tâncias apontadas, com uma redacção quase escatológica ou apoca- líptica. 64 REVISTA DE GUIMARÃES

esse não andou e teve dignos e indefectíveis cultivadores nos ‹‹infanzones›› e ice-reis da sua administração até o advento de Henrique de Borgonha. Que Mendo Nunes não surge depois é absolutamente indubitável; mas pareceres diferentes subsistem sempre nisto, contra mim, a todo o custo. Eu compreendo que o eles desaparecerem equivaleria à aceitação consequente da minha doutrina do triunvirato que substituiu o comi- z"a1!um; e isso não poderia ser com investigador de menos vulto, real ou aparente. Não vou alongar-me, no entanto, com isso, mas ocupar-me dos aspectos que externamente pareçam contrariar a minha tese, pois que no fundo care- cem, como vamos ver, de base : 1) O conde morto em 1044 ou fins de 1043, a data por mim restituída, poderia ter sido o conde Mendo Lucí- diz (Luci). Este prócer, no entanto, carece de notícias por dilatados anos anteriores, sendo as que dele se têm todas do reinado de Vermudo II e do de Afonso V (a última vez bastante anterior a 1020, DC 223, etc.). Nem mesmo recuando dez ou doze anos, tendo por exacta a era indi- cada pelos APV, esta circunstância deixa de pesar - o que significa ser já falecido. Já pude mostrar as suas ambições a um comitatum magno ao sul do Douro, iniciado na reconquista de Santa Maria do séc. X para o XI e levado depois a Mon-. temor, e creio que reconhecido num arranjo político con- sequente à luta civil que se seguiu ao assassinato do conde Mendo Gonçalves. Mas Montemor voltou pouco depois ao domínio dos mouros e Santa Maria aparece integrada de novo no condado portugalense -. - o que certamente aconteceu antes da morte de Afonso V, não sabemos quantos anos, fazendo-nos crer em efeito de uma inicia- tiva de recuperação efectuada no tempo da comiƒessa magna Toda, talvez pelos chefes das ‹‹stirpes››, qua.ndo desde 1016 lhe saltou o conde magno adjunto Alvito Nunes. Um daqueles ‹‹condes›› secundários, Gonçalo Trastamires, da ‹‹stirpe» maiata, reconquistou em 1034 Montemor, o que significa claramente como as coisas já haviam esca- pado a Mendo Lucídiz - eliminado do seu mando, caído na incapacidade política por força do poder condal magno portugalense e, finalmente, falecido já. Não se descortina circunstância que o favorecesse no redactor dos APV (E. H. 295) a dar dele lembrança da sua morte, PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 65 como facto capital ou de especial significado na história portugalense que aí se alinha (1). Alegar-se que, para se não aceitar 1034 dos APV, seria preciso alterar a ordem dos outros acontecimentos aí analisticamente exalados, não me parece ter peso. O redactor, tendo apontado mal a data ao coligir os anais, teria assim de colocar mal o facto entre os outros, sem que a cronologia destes pudesse padecer por isso. 2) Outra alegação é que o conde Mendo Nunes vivia ainda depois de 1044, e, para o provar, aponta um historiador insigne 1047 ; e outro, 1048. Pois vejamos se assim é : Em 1047 (DC 311), não figura o duo magno fala-se simplesmente dele ao referirem-se factos ocorridos havia muito. Basta ler o documento, que é todo, a bem dizer, uma espécie de visão retrospectiva. O insigne aceitador daquela data, porém, já se inclinou para as minhas ‹‹boas razões››, como se dignou chamar-lhes. Caso, .pois, encer- rado. Em 1048 (DC 366) também se não trata do nosso duo mag/1u.f: há a simples referência a um ‹‹sagion de parte de do Menendo››. E o que é que pode autorizar seja quem for a crer que se trata do conde de Portugale ? Nunca a um come: se chamou então ‹‹do››, para mais sendo um dux fiaagnur, como este próprio até a si mesmo se intitulava. Pelo contrário, esse ‹‹don Menendo›› é um

(I) Antes de 1019 (DC 242) foi que o conde Mendo Lucides conquistou Montemor, mas é muito anterior o seu poder em Santa Maria. Todavia, já em 1026 não tem aqui O mando: ia-se nesse ano, aí, «ante ípsos adornos que abitantes eram in assa de Sancta Maria de Civitate››, constituindo um triunvirato adminis- trativo (a que se associavam as respectivas esposas, porque eles e elas at «erant imperatores>›, DC 261 e 317). De Mendo Lucides não se fala- ele, pois, eliminado já do seu cømitatum sul-duriense: ao norte do Vouga, por próceres (que deviam mesmo ter sido aqueles três, Tédon Galindes, Fernando Gonçalves e Ero Teles), subordi- nados à comitanra Toda, que governou até 1025; e ao sul do Vouga, pelos mouros, que haviam retomado Montemor. Os APV não iriam assinalar-lhe a morte, contra o que se pretende, não só por essa eliminação política muito antes de 1035 (0 pretenso ano do seu óbito), mas também porque nem sequer referem a sua conquista de Montemor- e até, como creio terem sido dele, a conquista de Santa Maria e a de Lafões. 66 REVISTA DE GUIMARÃES

seu subordinado, Mendo Gonçalves da ‹‹stirpe›› rnaiata (I). E outras circunstâncias mais se poderiam alegar em meu favor (2). Creram ilustres historiadores (e eu o vim aceitando por eles, sem outra reflexão) que o conde Mendo morreu em combate, porventura contra os normandos; Acho, no entanto, de estranhar que os AP V, a fonte, não aludam a combate e a normandos. Pelo contrário, a frase ((OCC1S1lS fuit» significará de preferência um assassinato -- até porque é ela nessa fonte a mesma utilizada para registo dos assas- sínios que vitimaram o d/4x ffiagnw Mendo Gonçalves, como já vimos, e o duo maiato subalterno Gonçalo Tras- tamires. Para este, até se diz o local: «in Avenoso» (Aveoso, na Maia, no paço da ‹‹stírpe›>: cp. o meu artigo na G. E. P. B. XXXVIII 409-410), o mesmo que sucede com o conde Mendo Nunes: «rn ripa Guetanla›› - e sus- peítamos que na Portela de Vede o conde Mendo Gon- çalves. , Mas este caso do conde Mendo Nunes continua a merecer-nos mais algumas considerações, para melhor se conhecerem o seu destino pessoal e o do seu condado. Nunca demais terei dito que é a ele que os APV se referem, e não a Mendo Lucides; e com a data errada. Mas, ainda a provar-se um da que era a este, nem por

(1) ‹Filho*\do já referido duo Gonçalo Trastamires, era como seu pai o zfenem' da grande Amaia do tempo. O objecto da questão a que O documento se refere e para a qual ele «dedit sagionem››, não podendo ocupar-se dela pessoalmente, situava-se no antigo omisso de Refojos de Leza, em plena honor da ‹‹stirpe›› maiata - mais exactamente, na ‹‹villa›› Vnnaredi (Guimarei, e não Gui- marães, má interpretação por vezes ocorrente: PMH-I 524 ss ; PMH-SS 176 e 153, tradições do início desta linhagem). Por outro lado, não se poderá negar que, ao menos por estes anos de 1048, adrninistrasse Portugale um triunvirato (DC 471, AFI 150 ss). Ora .um dos três é precisamente Mendo Gonçalves. O tratamento que se lhe dá em DC 366 de «do Menendo» para a questão sobre Vimaredi é bem o dado a seu avô paterno, «don Trastarniru», longamente recordado nesse mesmo lugar (DC 796). E a função administrativa ou comissionada maiata de Mendo Gon- çalves já a haviam tido esse seu avô e seu pai: assim, um julgamento em Leza em 1032 foi feito «ante Gundisalvo Trastem.irizi›› (DC 273. CP. DC 222 de 1013). (2) No diploma de 1048, DC 366, figura um prócer da ‹‹stlrpe›› gascã, ainda vivo cerca de meio século depois (AF4 32-35 e 40-42; DC 743; DP 113 e 370; etc.). Parece-me haver boa razão para crer que a data 1048 não seja exacta,.mas posterior, muito ou PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 67

isso a minha doutrina da extinção do condado de Portu- gale se alteraria. Havendo, como temos visto, outras indicações bastantes, fácil é vê-lo, por exemplo, à luz de dois documentos de Celanova. Assim, em 1050, estando já Portugale, indubitàvel- mente, sob regime triunvíral (AF1 150 e seguintes, sem hoje concordar com quanto aí digo), aparecem ‹‹ducis in Gallecie Velasco Almeiuze et Menendus Nu fiz›› (do. HD 193). O primeiro destes condes, cujo nome me parece indicar uma procedência moçarábico, figura várias vezes no nosso condado, mas, em geral, ligado a Afonso V (como em 1025 › DC 259 e LF 22 › onde também surge Ordonho Almeiuze, que deve ser seu irmão). Aquele mando na Galiza não se refere, como é óbvio, a toda ela, senão que a um ou alguns dos seus comítatos oU comíssos. Com isto está de acordo o facto de o conde Vasco Almeiuze augurar em 1031 como mandante do omisso portugalense de Anóbrega, margem esquerda do Lima: ‹‹cornite rostro Velasco in territorio isto» (que é O ‹

O ambiente dominial do mosteiro vimaranense, como não podia deixar de ser, pela íntima aliança com a dinastia régia finda, encontra-se logo nitidamente alte- rado: «donos de Vimaranes» confessionais ou em regime monástico de ‹‹tradição››, já nem deles se fala. Dir-se-ia que a eliminação política da condessa Ilduara, significando indubitavelmente a da ‹‹stirpe›› condal, trouxe por imediata consequência a sua saída do dominium vimaranense. Tão identificados andavam então Portugale e Vimaranes que o domínio secular dr-se-ia ter andado aqui quando ali se eliminou a dinastia condal. De facto, essa coincidência é demasiado justa para podermos duvidar de que um facto acarretou o outro, simbióticos como eram os dois regimes: o da adminis- tração portugalense e o da administração vimaranense, exercendo-se esta, ainda num ponto de vista económico, em todo Portugale, e até mesmo um tanto para fora dos seus limites, o que poderia propiciar aos chefes portuga- lenses a expansão territorial que tinham em curso. O assunto é abordado noutro meu estudo, onde também se põe em contraste sintomático o Eigenk/õxfer virnara- nense ou da ‹

suficiente para uma diferença inicial relativamente aos galegos do norte (para além do Lima e, depois, do Leres) e para o sul do Douro e, depois, do Vouga, mas nunca por si bastante para uma criação política duradoura. Uma fermentação sócio-político-económica plasmada com os germes que por toda a parte existem, essa sim, mas conscientemente sustentada e levada ao desiderato pelos magnates: primeiro, os condes de 926 a 1043; depois, os governantes de diferenciado tipo que Portugale conhe- ceu de 1043 a 1128. Este fenórnenonão ocorreu em parte alguma da Penlnsula,' efeito de uma ambição humana que passava de uns próceres a outros, numa hereditariedade si referir que atingiu a sua inteira propriedade quando uma monarquia hereditária se pôde estabelecer. Por isto Por- tugal se armou na independência, e nenhum outro Estado peninsular o conseguiu. Não é possível admitir que essa fermentação já de um século se não apresentasse ao espírito de Fernando Magno ; e as suas intenções, embora quanto ao mosteiro menos urgentes ou drásticas (a sua simulação chegou ao ponto de ainda lhe confirmar o vasto ‹‹commis sorium›› do Ave ao Vizela, DC 372, como já sabemos), não deixam de trans- parecer na limitação dos meios de acção e até de subsistên~ cia do grande cenóbio, de cujos imensos haveres *mandou fazer inventário para lhos subtrair, se já antes se não apus_ sara deles (DC 420). Extinguir este centro monástico de. política e cultura, que não so' de religião, equivalia a apa- gar a luz, a fazer«se_a treva de que necessitava para reali- zação dos seus intentos. Mas teria sido ele o priMeiro monarca leonês a pro- curar quebrar OS impulsos separatistas? Creio bem que apenas foi o que mais claramente, apesar do jeito sub- -reptído, se lançou nesse caminho, adoptando um com- portamento diferente. Por muito que os monarcas leo- neses, do séc. X e até então, se revelassem afectos à ‹‹stirpe>› vimaranense, não deixa de existir, ao que julgo, uma cir_ constância que mostra que as suas intenções não primariam sempre pela pureza ou mesmo lealdade. De facto, se os portugalenses alcançavam tendenciosamente ligar-se, por casamentos, à família real, não é menos certo que esses consórcios em geral fracassavam. Lembremos o miste- rioso repúdio, que sempre intrigou desde então, da rainha Aragunta Gonçalves; o da rainha Adosinda Guterres ; PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 71

e, enfim, o da rainha Vasquida Ramires. Não podem explicar-se pela conveniência política dos reis Ordonho II, Ramiro II e Vermudo II num novo casamento, até porque nem sempre este se seguiu ao repúdio. E o próprio enlace de Elvira Mendes com Afonso V, nitidamente uma imposição do nosso dá/x magna: ao seu pupilo, não estaria sujeito ao mesmo desfecho se a jovem rainha não morresse prematuramente? Por outro lado, movendo-se a política melhormente nas sombras, podem muito bem estas esconder eliminações homicidas mais ou menos directa- mente procuradas, como as dos nossos condes Mendo Gonçalves e Mendo Nunes, pelo menos. . Revertamos ao ponto em que vemos a condessa Ilduara arredada definitivamente para a sua «casa de Nogueira››, junto a Braga, onde passou a viver como simples particular. Este retiro, porém, não desobrigava a ilustre senhora de sair dali em casos de solenidades ou etiqueta, como nos meados de 1049 em Vímaranes, onde veio, com recônditos uns que podemos suspeitar, o rei Fernando Magno com a rainha Sancha, sobrinha da nossa ex-mmitessa magna' ‹‹pervenimus in Iocum .cenobii Vimaranís››, dizem eles (DC 372). O ambiente magmático nesta visita régia, na sua pro- funda diferença do da época condal recém-finda, mostra a alteração administrativa e político-social a que Portugale fora submetido: com o rei, estão os três membros das ‹‹stirpes›› que formavam o triunvirato administrativo da província, Gomes Eicaz, sousão, Mendo Gonçalves, maiato, e Godinho Viegas, creio que baionês; está Garcia Moniz, da «stirpe›› gascã (ilho daquele conde Mário que havia sido subordinado da comitessa magna Toda); e está Soeiro Galindes, da «stirpe» baronesa e maioria régio em riba de Cávado. A presença da .ex-comiíessa magna Ilduara, da condessa Toda Velaiz e de sua cunhada Mumadona Mendes (outra das ilhas do duo magnas Mendo Gonçalves) constitui um simples adorno honorí- fico. A ‹‹Stirpe›› vimaranense lançava alguns dos seus últi- mos lampejos. Foi nesta visita que Fernando Magno não só confir- mou ao mosteiro o ‹‹commissorium›› de entre Ave e Vizela, concedido em 950 pelo rei Ramiro II, como tomou, certamente, um conhecimento mais directo daquilo que não esqueceria mais (devendo suspeitar-se que para 72 REVISTA DE GUIMARÃES

isso sobretudo aqui vinha): o dos inúmeros haveres do cenóbio, a par da decadência do corpo dos seus ‹‹donos››, três senis senhoras - -a condessa llduara, com sua irmã Mumadona e sua cunhada Toda, símbolos vivos então da decadência da «stirpe›› vimaranense. Ao contrário, a pre- sença dos ‹‹infanzones›› administrativos e dos ‹‹maiorinos>› régios, todos das quatro ‹‹stirpes›› portugalenses que O eclipse daquela desofuscou, é a mostra evidente da ascen- ção delas até à plenitude de 1128, ano em que deram a Portugale a independência de facto. O mosteiro prosseguia a sua marcha, para o rápido ocaso, porque a pujança da sua vida durou o mesmo que a da «stirpe›› condal magna - O século de uma identidade que revela esta como seu principal elemento vivificador. Em uns de 1046, «Flamula Ansurici nutri regis» fez uma doação ao mosteiro. Havia sido a ama de Afonso V, que, como se vê, se tinha criado em Portugale, provavel- mente no próprio mosteiro vimaranense. A doação é confirmada pela condessa Ilduara, sem qualquer aparato condal ou político - O que é mais uma indicação em favor da minha opinião de desaparecimento do conde Mendo Nunes em 1043 ou 1044. E esta circunstância realça-se pela presença, não da alta nobreza que dantes rodeava a comi tina magna, mas de muitos «filii benenatorum qui erant in concilio de Vimaranes» (onde a carta de doação foi lavrada). Dessa alta nobreza, apenas o conde Vasco Almeiuze e algum outro prócer em declínio perante os ‹‹infanções›> e até à face dos burgueses que nesse ‹‹concílio›› se encontram. Vimaranes dominial ia dando a transição a Vimaranes burguês, como melhor veremos (I). O acordo

(1) O documento foi publicado com a data 986, que os nomes dos confirmantes, para não se alegar mais, mostram irremissivel- mente errada; mas, em meu ver, também não é ela 1036, como julgam os autores dever emendar-se (GA4 30, etc.). Entre OS con- firmantes, estão O abade Pedro Alvites e seu prepósito, Pedro também. Ora em 1038 ainda o abade era Onorigo (DC 304, em que aparece com Paio Gontemires), `e o abade Pedro só começa Jaflfigurar em 1042 (DC 322), surgindo sem interrupção noslanos .F 11 i H: seguintes, até 1070 (DC 326, etc.). (No capítulo seguinte, voltarei a .. aí "servir-me deste documento). Pedro Alvites, que era filho do conde Alvito Nunes (FCP 18), aparece na já referida doação de Afonso V em 1025 (DC 259) ; mas não era ainda abade do mosteiro, embora pareça estar ia nele - que, não sendo familial, era, no entanto, patronal da ‹‹stirpe››. PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 73 com a eliminação da «stirpe» condal não pode ser mais flagrante. Mas as dádivas ao cenóbio tornam-se raras, em con- trapartida, começam a ser frequentes as escrituras de ques- tões judiciais sobre haveres movidos por ele contra OS indivíduos cada vez mais numerosos que buscam defrau- dá-lo. Alguns desses casos de disputarão de possessões parecem denotar no amiudado a tentativa de fuga dos habitantes dos prédios ou lugares ao senhorio monástico ; outros ainda pior: a oposição ou a cobiça de gente influente, que procura apoderar-se de certos bens. O mos- teiro conduzia vivamente a defesa e, nos casos em que dispunha de documentos comprovativos do seu direito, conseguia preserva-Io - -e, sinal dos tempos, já não em juízo dos condes magnos, acabados, mas ante os «infan- ções››, que haviam ascendido à autoridade. Para ilustração desta circunstância, bastam dois exemplos: nos meados de 1050, o julgamento ‹‹in Juga- rios›› (cor isso de Felgarias) ‹‹in presenta de Gomice Eicaz que illa terra (Portugalie) imperabat sub impero ipsius regis et ipse regire» (Gomes Eicaz, chefe triunvirato, da ‹‹stírpe›› sousã: AFI 151 e AF2 45-50), resultando a agnição aos «donos de Vimaranes>›, isto é, à comuni- dade vimaranense (sentido agora da expressão), da pro- priedade, ‹‹quis erat vertas de casa de Vimaranes›› (DC 376) (1); em 1053, o julgamento presidido por Diogo Troitosendes, um dos membros do corpo triunvíral de «maiorinos» adjuntos ao corpo tríunviral de «infan-

(1) Não destino este trabalho a uma repetição da minha doutrina do triunvirato administrativo que depois da eliminação do condado vigorou em Portugal até 1065. Nesta data, Fernando Magno, dobrando-se à individualidade portugalense, teve de contemporizar com ela, substituindo O regime triunvirato pelo de governante único, não condal, mas vicarial. Este assumiria o carác- ter de uma espécie de vice-reinado amovivel, amovibilidade essa que o diferençava do de Coimbra. Aquela doutrina foi formulada nos meus trabalhos anteriores, sobretudo AFP 150-176, onde se documentam os vários triunviratos de que nos resta notícia: DC 471 (do mesmo ano de DC 376 de que trato no texto: neste, apenas citado Gomes Eicaz, o que não quer dizer inexistência do triunvirato, visto que aquele a formula o que se aplicarás outros casos),LF23, DC 437, A. P. XXVII 152. 74 REVISTA DE GUIMARÃES

ores›› (1), do qual julgamento resultou a agnição que restituiu ao cenóbio o mistério de Lalim, cerca da foz do Cávado (2) (DC 386); etc. . A indicação de que Gomes Eicaz (Egicazi) imperava Portugal sem outro poder superior a não ser o do rei e da rainha parece-me um sublinhado intencional da nova situação administrativa portugalensez não há intermediária- mente o duo flídgfllíí. Não devo alongar-me referindo doações, mesmo nesta época, em que tão raras se vão fazendo, porque, além de não interessarem ao plano e objecto deste estudo, constituirão o fundo de Outro dedicado à economia portugalense. No entanto, referirei a da <› Ameni- tello (compasso de Montelongo, a nascente de Vimaranes), em razão de a confirmarem o chefe triunvirato Gomes Eicaz e a condessa Ilduara (DC 407). Não o fazem, porém, como autoridades, que ela, de resto, nem tinha já; mas, sendo o doador certamente pessoa para o conseguir, por sua qualidade social, fazem-no com um em de maior solenidade e firmeza, que ao acto trariam o governante actual e a governante passada. No entanto, nesta ainda devemos ver, através deste acto, um pálido efeito da condição de domina do mosteiro. Como deixei dito, este dominium, se não estava indo então, não passava de uma sombra sem necessidade e actividades práticas. Em 1065, faz uma compra para o mosteiro o prepó- sito Àrias ou Arriarão (DC 447). O respectivo documento tem uma dupla importância: não figura o abade e é o último, pelo menos conhecido (de qualquer modo, será dos últimos), do mosteiro,. o que forçosamente possui o seu significado, a desvendar. Daí por diante, raríssimas e indirectas as mostras da sua vigorarão. Deve notar-se que tanto o abade como aquele seu prepósito estiveram presentes, com outros muitos digni- tários eclesiásticos, bispos e abades, ao cerco de Coimbra

u (1) Sobre este triunvirato de maiorinOs ou vigários dos triúnviros ‹

(1) Compreende-se que a sua recordação haja perdurado por aqui. Ainda meio século depois nem se precisava dizer-lhe o nome para ser identificada: bastava a expressão «illa comitiva››, a condena por excelência (LF 641). Aliás já assim se fazia com seus pais (‹‹ille comes dor nus Menendus Gundisalviz et comitiva doma Tota››, LF 694, referente a uma «villa›› cerca daquela ‹‹casa›› ou seu paço, 76 REVISTA DE GUIMARÃES

Uma fantasmagoria depois de 1043-1044, com ela andara o efectivo senhorio laico de Vimaranes. A proba- bilidade em seu neto Nuno Mendes é um último reflexo. Todos os grandes senhores que domínialmente protegiam O mosteiro estavam em seus túmulos. Já a extinção do condado portugalense promovera o abandono do paço do mosteiro como residência preferida dos donos capitais, não só religiosa mas também político-administrativa ; e em breve arrastaria a queda da opulenta casa monás- tica. Três factos que julgo sempre ligarem-se intimamente, numa genética expressiva.

d) Os finaí: do período uimaraflense domina/.

O mosteiro vimaranense, como que o coração e, ao menos em certo aspecto, o espírito da dinastia condal, não desapareceu imediatamente à queda desta. Não havia sido fundado para lhe insular uma alma, até porque a dinastia vinha de antes, mas tornou-se um dos susten- táculos dela -podemos dizer o maior, ao menos desde certa altura. Talvez que sem o prestígio espiritual que por ele adquiriu se não tivesse podido erguer ela tanto, politicamente, mas, num remexo ou rnutuação de influen- eiações, foi ela que o etlrandeceu. Faltando ela, a sorte dele seria rapidamente diminuir~se. Um inegável paralelismo se observa, efectivamente, como tanto tenho dito, da «stirpe›› condal vimaranense para o seu mosteiro: à eliminação daquela na adminis- tração do condado, seguida de uma obscuridade cada vez em 1109, um século acabado de fazer sobre a morte dele): ‹

mais acentuada, até terminar na extinção ou na diluição em outras, semelhante a um desaparecimento (1), corres- ponde, no cenóbio, a obscuridade em que mergulhou e o conduziu, em breves decénios, à extinção. O lampejo anal da grandeza da ‹‹stirpe››, a elevação de Nuno Mendes, o filho do último conde, ao consulado portugalense, em minha tese (AFI 160-163), tem no mos- teiro o seu correspondente na confirmação que Afonso VI, pouco depois, lhe fez, ‹‹in Crasto Frota››, do' seu couto ou ‹‹commissorium›› (DC 372). Ao silêncio que cai politi- camente sobre a ‹

(1) De sua esposa, condessa Gontina (LF 253), teve Nuno Mendes, filho do nosso último dux magno, apenas uma ilha, Loba Nunes, ‹‹cognomento›› Aurovellido (ouro formosa), que casou com o moçárabe Sisnando Davídiz, mais tarde cônsul de Coimbra ou, melhor, que já o seria e era de categoria social muito inferior. A ilha que tiveram, parece que sua única descendência, casou, por sua vez, com Martim Moniz, da ‹‹stirpe›› gascã, mas sul-duriense, elevado depois do sogro ao consulado conimbricense (DC 641, \ 793, etc.). Quanto à descendência destes, se a houve, o que é pro- blemático, não transparece e nada goza de singular sobre a restante nobreza. Se passarmos aos tios de Nuno Mendes, encontramos essa mesma espécie de destino de má ventura: de Múnio Nunes, a única notícia é já um sintoma, a venda de bens (LF 497), em riba de Lima, não longe da ponte romana, da condessa Gontrode Nunes,certamente sem descendência (como que um anátema lan- çado a esta linha de Mumadona ‹‹maior››), só notícias que dão a entender haver ela própria desfeito a sua casa em dádivas pias (LF 122, 173, 201, 248, 253, 616). 78 REVISTA DE GUIMARÃES aos antigos ; mas esses favores talvez não chegassem se um outro elemento não fermentasse, cada vez mais ebu- lientemente, podemos bem dizê-lo, - - o espírito de liber- dade lançado pela casa condal e de que eles, talvez cons- cientes, se apoderaram com energia progressiva, até ao dia independência. Era uma plasmarão singular em que se misturavam elementos sociais, económicos e políticos, cuja inter- -reacção produziu aquele resultado em 1128, pelo efeito catalisador das ambições pessoais múltiplas sobre eles, todas com o em comum na liberdade. Não parece neces- sário definir melhor esses factores (nenhum historiador pensará talvez hoje em imperativos de território, de raça, de língua); mas O social oferece uma faceta como tudo sintomática: enquanto o mosteiro vimaranense, política e economicamente dominante em Portugale durante o seu século, que foi o condal (não interessa tanto aludir ao domínio cultural e religioso), se afunda na obscuridade e é substituído por uma comunidade canonical, que .não herdou a sua tradição monástica e os seus haveres e o peso político, outros mosteiros, como que impedidos até então pela tentacular influência daquele, surgem agora ou só agora avultam, sob o patronato dos novos grandes, das «stirpes››, que não são novas na existência mas são-no desde então em poderes maiores a que poderiam aspirar ou procurariam obter por seus meios (I). O seu TEz;gen/eläster é um aspecto essencial da factorizarão social da obtenção da nossa independência, como a sua desvinculação da Gqfolgsc/:aff condal. Como se havia chegado a tudo isto? A pergunta não pode ter aqui respostas extensas, mas só o bastante para a sua satisfação provisória. Mais não é ambição do autor deste estudo (2).

(1) Não precisa o leitor de ser muito versado em História para insensivelmente lhe lembrar este fenómeno como o primeiro dos vários de parecida natureza que a aristocracia portuguesa nos apresenta: as sucessivas substituições- depois da morte de D. Fer- nando, das conspirações contra D. João II, de Alcácer Quibir, da Restauração e do Liberalismo, que acabou com ela em 'menos de um século. (2) Esta doutrina creio eu ter sido o primeiro a apresenta-la, desde 1965 (pelo menos, porque tem formulações anteriores minhas), e vem-se já manifestando a sua aceitação. No entanto, a minha precedência não me parece lembrada nunca. PORTUGAL no PERÍODO .VIMARANENSE 79

Enquanto. a protecção ao mosteiro se não revelou de consequências políticas mais ou menos inconvenientes à autoridade dos monarcas leoneses, pela gradual identi- íicação da casa condal e dominial com a comunidade, representada capitalmente nela pelos ‹‹donos de Vima- ranes», iam eles concedendo-lha, quase sem reservas. O facto de os principais dotadores regias terem sido os soberanosL dos seus primeiros tempos, Ramiro II e Ordonho III, não creio dever explicar-se apenas por uma necessidade maior na instituição incipiente, mas sobre- tudo pelas inconveniências políticas que se iriam paten- teando. O facho da liberdade parece aceso como fanai para Portugale inteiro nessa ‹‹casa de Vimaranes››, e tam- bém não pode deixar de ser significativo que, precisa- mente na segunda metade do século portugalense condal, essa dotação régia decaia e, paralelamente, se acumulem acontecimentos suspeitosos, como o repúdio da rainha Vasquida (escapando talvez a rainha Elvira à mesma sorte por falecimento, como aliás já lembrei) e, sobretudo, os assassinatos de condes magnos (Mendo Gonçalves e seu neto Mendo Nunes, com naturais suspeitas acerca da prematuro desaparecimento dos condes Alvito Nunes e seu filho Nuno Alvites). Para enquadramento dos novos factos e quanto, pois, à administração da província após a eliminação da dinastia condal em 1043-1044, bastará relembrar a minha doutrina de ao regime condal, praticamente autónomo, ter-se seguido um regime triunvirato até 10641065, ligado directa- mente ao rei, por meios burocráticos. Não será demais repete-lo. Nesta ocasião, em que se criou a província con- sular de Coimbra (tendo a condal soçobrado depois da tempestade almançoriana e da reconquista do litoral até o Mondego, sobretudo com a eliminação ‹‹portugaliza- dora» do conde Mendo Lucídiz), foi dado à portugalense um estatuto consular equivalente. Teria sido o próprio Fernando Magno quem, a poucos dias do seu falecimento e por morte do efémero cônsul anterior (Mendo Gon- çalves, da ‹‹stírpe›› maiata e já anteriormente membro de um triunvirato de infanções), chamou ao cargo uma indi- vidualidade que poderia estar a mostrar-se preocupante (o que o futuro bem depressa confirmou), Nuno Mendes, o filho do último dá/x magma. 80 REVISTA DE GUIMARÃES

Este prócer, nO entanto, insatisfeito .na sua natural ambição, que seria toda de independência, nunca usou o título de cônsul (o seu homólogo ao sul do Douro, seu genro Sisnando, também lhe preferiu O título arábico de ‹‹alvazir>› talvez porque, ao contrário daquele, não possuía qualquer tradição familiar condal), mas, como é natural, o de conde, em razão de ‹‹stirpe››. Não, pois, relativamente à função, que não devia ser a de seu melhor agrado, por tradição de família, senão que à sua alta qualidade pessoal. Entender-se o contrário parece-me ser causa de incongruências, como depressa veremos. Não me parece dever restar dúvidas da antipatia pelo menos inicial da dinastia navarra por Portugale o condado, a ‹‹stirpe››, o mosteiro, odiosos desde logo pelo natural apoio a Vermudo III. Apesar da preponderância política da mulher altímedieva, não obstou ao facto o parentesco íntimo da esposa de Fernando Magno com a linhagem vimaranense. Quando o príncipe navarro casou com essa princesa, portugalense pelo menos por incli- nação familial, ainda ele não podia prever que viria a ser rei de Leão; mas esse enlace viria a ser, ao que me parece, o motivo da legitimidade que a estes soberanos serviu para considerarem o mosteiro e seus haveres coisa tão sua como o condado e fazer deles O que entendessem. Tudo se teria passado, me parece, como se ao falecer a ex- -øomíleƒsa magna Ilduara, à roda de 1056, ou melhor, antes de 1060, como já vimos, a fantasmagoria que era já O seu dominium em Vimaranes pretextasse a sua recolha pela rainha Sancha, sua sobrinha, a coberto das disposi- ções de Mumadonaacerca dele (DC 97). A comunidade, que fazia a escolha da domina como em beetria, não ousaria orientar-se para outra pessoa, até porque aquela prin- cesa era a única qualificada para domina na linhagem vima- ranense a que, afinal de contas, pertencia. Convenço-me ainda de que o facto de Fernando Magno e Sancha terem mandado arrolar os haveres do mosteiro (esse ‹‹inventario mandamos lacere in terra de Portugale de villas et mandamentos et ornem veri- tatem in undisque partibus de cenobio Vimaranes ››, dizem eles, DC 420) só não denuncia uma intenção de apossamento de parte da coroa por ser precisamente, PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 81

quanto a mim, a_expressão desse mesmo prático apossa- mento (1). As circunstâncias denunciatórias do facto parecem- -me várias, bastando apontar aqui as três principais : 1) A sintomática coincidência de dataS da morte da quase teórica domina do mosteiro (mas legal domina) , condessa Ilduara, e desse inventário. Já mostrei que ela deve ter falecido antes de 1060 e depois de 1056 ; arrolamento dessa imensidade de haveres, capaz de J e o excitar a cobiça do mais opulento soberano, é de 1059 (DC 420). Este ano pode ser o do falecimento da condessa, e a razão que assim entendo é bastante para a minha demonstração.. O mais, porém, apoia : 2) A falta, Pode dizer-se total, de doações ao mos- teiro após esse inventário. Apenas em 1060 um ‹‹plazo›› sobre um cenóbio que era um dos adstritos ao de Gui- marães e que até me parece ter-se separado já deste (não pouco pela maior decadência da tradição frutuosiana) (DC 426); e em 1061 a doação de uma igreja vizinha, Santa Maria de Oliveira (Silvares) (DC 431). Mesmo assim, como bem se nota, interesses só de carácter ecle- siástico. Daí por diante, nada mais; ou tão pouco que as notí- cias se perderam totalmente. Há, por exemplo, o caso dos bens que ‹‹testavit Dordia Menendiz ad Vimaranes›› antes de 1103 (DP 125); mas nada nos prova que não fosse já a Colegiada canonical a recebê-los (2).

(1) O inventário não se fez para simples sequestro, e o mos- teiro não teria ficado com mais que alguns haveres dele exclusos intencionalmente ou a ele escapes. Será o caso de Vila Mel, obtida em 952 por Mumadona I e ao cenóbio doada por ela em 959 (DC e 66 e 76), porque não figura naquele rol (onde a última menção, ‹‹vila creiana››, não me parece estar por «villa reina››, DC 420). Ora em 1132 ainda a Colegiada a possui (DR 125; Vit. Elu¿. v. Clerigo). (2) Aquela dama é, quanto a mim, a esposa (já viúva) de Paio Guterres, o cônsul que em Portugale sucedeu ao conde Nuno Mendes; e pertencia e‹‹stirpe» maiata, ilha de Mendo Gonçalves, que primeiro tivera o consulado portugalense, abolido o regime triunvirato que ele próprio havia servido (LF 98 e 122, PMH-SS 180 ; AF2 137). Como esses bens eram no couto do mosteiro de Pom- beiro, da ‹‹stirpe›› sousã, e adiante nos interessará este caso, con- vém dizer que as duas linhagens estavam ligadas por casamentos. A mãe de Dordia Mendes, por exemplo, descendia do dux Ufo Ufes, sousão. 82 REVISTA DE GUIMARÃES

Penso também ser injustificada qualquer ideia de que o próprio mosteiro se desinteressasse dos seus haveres ou até abandonasse os mais longínquos. Num cenóbio que se mantivesse em condições normais, o que não era o caso, a situação social, política ou outra, como segurança de fronteiras, era então muito mais favorável que antes à manutenção e exploração desses bens, conquistadas já definitivamente Viseu, Seia, Coimbra, de 1055 a 1064. Basta dar um exemplo, precisamente para a circuns- tância mais desfavorável, a distância, o dos haveres vimaranenses possuídos desde os meados do séc. x (DC 81) na ‹‹Stremadura›>, do Távora ao Águeda inferior ; e seja esse exemplo o de Trancoso, Unicamente. Foi aí tão relevante e frutuosa a acção vimaranense que a pri- meira paróquia aí erecta, intra-muros do castelo (doado eM 960, DC 81 e 420), ficou com o nome de Santa Maria de Guimarães, que ainda nos inícios da independência se conservava (cf. o meu artigo na G. E. P. B. XXXII 464 e 481) (1). E mais a este respeito poderia se dizer daí (2). 3) Paralela à falta de documentos e de noticias do mosteiro desde cerca de 1070, é a carência de alusões, ainda indirectas, ao mesmo, como seja a citação de abades seus e de seus frades. A última referência a um abade indubitavelmente seu é a de 1070 (DC 491), o que não

(1) Dava-se até o interessante caso de existir junto da vila O local chamado Guimaralhas, derivado evidente de Guimarães : «in Guimarallas›› ou ‹‹in vale de Vimaralas» (LDT fl. 44). Mais tarde - talvez outra arbitrariedade, mas esta de origem erudita, eclesiástica- -, em razão da grande aura adquirida pela igreja colegial de Santa Maria da Oliveira em Guimarães, a referida primeira paróquia trancosã possuiu esta mesma designação: Santa Maria da Oliveira de Guimarães,~sem ter havido aí qualquer direito da comu- nidade colegial. Esta só por acaso teve alguma possessão do asfixiado e por em extinto mosteiro. Outros casos de alteração toponímica análoga se poderiam apresentar. (2) O facto mostra que não houve aí despovoamento, mas a queda do mosteiro explica que D. Afonso Henriques viesse a doar os seus direitos aqui à sé bracarense, antes de 1148, com- preendidos sem dúvida OS direitos eclesiásticos. E o mesmo se observa nesses outros ‹‹castra>› da Stremadura duriense (devendo confrontrar-se a este respeito DC 81, para o mosteiro, e CE 47, para a dita sé). Ora, para isso foi preciso que esses direitos houvessem passado ao poder real - . o que nos transporta sem dúvida à segunda metade do séc. XI. Um estudo perfunctório, de resto, seria bastante para mostrar que os haveres vimaranenses passaram à coroa, muito antes de andar o séc. xr, com alguma rara excepção. PORTUGAL NO PERÍODo VIMARANENSE 83

quer dizer que o mosteiro não durasse ainda algum pouco tempo - - ao que voltarei a referir-me, por julgar ligar-se à eliminação do conde Nuno Mendes (1). Certo é que temos. em 1103 «fratres de Vímaranes» e, com o prepósíto, o seu «abba Petro Toergis» (si, por Toereiz, DP 125); em 1107, «abbas Eika de Virna- ranes» (DP 202), e em 1109 ainda o mesmo (<‹Echega

(1) Em 1072, foi feita uma doação a «illos sanctos qui ibi sunt reconditos in cenobio Vimaranes», tendo Santo Antonino por patrono principal (LF 63), como se sabe de muitos documentos. Nessa doação, compreendia-se uma igreja de S. Pedro, que há quem diga ser a de Ri vós, cerca de Guimarães (S. Clemente de Sande), certamente em razão do 1'1OI'NC do cenóbio de Santo Antonino. Ora este era o de Barbudo (Vila Verde), e nada tem, pois, com a actual cidade. Podendo alegar-se mais, basta comparar três documentos que lhe respeitam ‹‹Menendus Formarikiz et presbiteros et fratres vestros de Sancti Antoníni... et abobas Suario Pelaiz›› (LF 63) ; «fratres Sancti Antonini nominibus abobas Suarius Pelaiz et Nunus F1-oilaz» (LF 621, de 1073); «fratribus de Sancto Antonino de Vima- ranes et Menendo Fromariquiz abobas›› (LF 616, posterior a 1078) ; etc. Todos de Barbudo. Guimarães, pelas suas instituições, pelo menos (o mosteiro e a Colegiada, o castelo e o município), parece-me ter marcado a toponímia, embora passageirarnente, até ao Mondego, nos séc. XI a XIII, como colho destes interessantes exemplos: Santa Maria da Oliveira de Guimarães, a primeira paróquia da vila de Trancoso (olhar aos DC 81 e 420, posse de Trancoso pelo mosteiro); a vila da Feira de Constantino de Guimarães e a respectiva paróquia de Santa Maria de Guimarães, como ainda se lhe chamava no séc. XIV (do. ML VI-6 557), recordando-se ainda em Santa Maria da Feira nos nossos dias (títulos da igreja de Constantino), na sede do con- celho de Panóías, certamente porque a este foi comunicado o foral de Guimarães (DR 1 e 3); o mosteiro conimbricense de Celas de Guimarães, do. ML Iv-12 c. 36. E outros casos haverá, os quais, apesar de o nome Vincara ter sido muito vulgar, não se devem a uma ‹‹vila» Vimaranis, mas a transporte do nome da actual cidade, nessa remota época. A designação ‹‹de Guimarães» para O mosteiro de Santo Anto- nino de Barbudo deverá explicar-se talvez pela afiliação (frutuo- siana) do mosteiro local ao vimaranense, tornando-se independente, como os mais em idênticas condições, com a extinção deste. Isto mesmo explica que o conde Nuno Mendes, pouco antes da batalha em que morreu, fizesse a sua doação, para bem de alma, a Santo Antonino de Barbudo (1071, LF 253); e que significa isto num membro, como ele era, da antiga família patronal vimaranense? Que o mosteiro de Virnaranes, praticamente, desaparecera e que aquele se mantinha como que em seu prolongamento ou represen- tação, tal que até o nome Vimaranes recebeu, nesse tempo precisa- mente (LF 63). 84 REVISTA DE GUIMARÃES abbas Vimaranes››, DR 15): mas de que instituição relí- giosa local enfim se tratará? Vê-lo-emos. O primeiro daqueles documentos é uma troca em que o conde D. Henrique e D. Teresa, OS «fratres de Vima- ranes›› nomeados (abade, prepósito e juiz) «et toti clerical qui sunt in Vimaranes››, constituindo uma das partes, cedem a Mendo Viegas, chefe da ‹‹stirpe›› sousã, ao conde Gomes Nunes (sobrinho deste) e a Toda Eitaz, que certa- mente se ligara à família, os haveres que a já referida Dordia Mendes, da «stirpe›› maiata, havia doado à casa vimaranense, situados no couto ‹

(1) A troca de 1132 de Vila Mel, junto ao Douro, foi feita por D. Afonso Henriques ‹‹cu clericis et sorores et fratres de Vimaranes» ou «de Sancta Maria de Vimaranes›› (DR 125); mas até Vit. Eluc. s. v. ‹

Chamado ao consulado portugalense, creio que Nuno Mendes nem por isso residiria oficíalmente em Guimarães. O paço dos condes, aqui, a par do mosteiro, havia-o herdado ele, ao menos metade; e ainda não tinha passado à coroa (quando tal sucedeu, ficou por isso a chamar-se «paço real>›, DR 55); mas, extinto o condado, que nele se centrava, ligado a bem dizer ao claustro, já não interessava ao cônsul portugalense como residência oficial. Herdado por ele, de sua avó, o paço de Nogueira, a par de Braga (o pai dele falecera, como sabemos, antes dela), era aí que ele oficialmente residia. Tal residência permite-se mesmo compreender melhor que a batalha que encerrou tràgicamente a sua vida, em 18 de Março de 1071 (1), se travasse aí perto, não longe da margem do Cávado (LF 173, 201, etc.; PMH-SS 10). Cerca de meio ano antes, ainda vemos Nuno Mendes com o rei Garcia e, a seu lado, ‹‹Petrus abba de ascisterio vimaranensi››, com o seu prepósito Paio, num diploma régio (DC 491). É a última notícia curial do nosso cônsul «Nunno Menindiz comes>›; e também a de um abade de Guimarães, a última, pois, do mosteiro - -se exceptuar- mos a da confirmação que do seu couto ainda fez Afonso VI (DC 372). Noutro diploma régio, uns dias antes da batalha, já nem um nem outro surge (DC 491), o que só pode ter para então um significado. Trata-se de uma doação do rei Garcia a um prócer riba-duriense, da «stirpe» gascã, que indubitavelmente se alheou da revolta portugalense chefiada pelo cônsul, a qual já nesse tempo (Fevereiro de 1071) poderia temer- -se, - ou a quem o rei pretendeu, assim, chamar a seu partido. De qualquer modo, é uma atitude um tanto desconcertante num prócer dessa linhagem, sem, de resto, implicar um compromisso de toda a ‹‹stirpe» com o

(1) Em 17 de Fevereiro, ainda «comes Nunnus Menendiz et uxor Infifl comitiva domara Gontina ›› (Goncina?) fazem uma doação a bem de alma (LF 253). O facto, como de costume, denota uma situação perigosa: a sua rebelião, quanto a mim- ou seu projecto para muito breve. Creio que a batalha foi a 18 de Março seguinte, tendo o copista (se não O redactor dos anais) escrito por equívoco ‹‹15.° calendas Februarii» (APV-E. H. 298), por ter pre- cisamente na ideia O mês de Março: retrogradou, em vez de escrever as calendas de Abril. 86 REVISTA DE GUIMARÃES monarca (1). Uns dias depois, o perigo iminente levou Nuno Mendes a uma doação que previa a necessidade de sufrágio de alma brevemente (LF.253). Nos meados de Março, de facto, como acima indico, travou-se a batalha em Palatina (Padim, entre Braga e o Cávado). Não se tratou de uma aventura pessoal, como ainda não há muito constava na nossa historiografia, retirando- -se a Nuno Mendes mesmo o carácter de um governante portugalense; mas depressa a minha tese de que ele indu- bitàvelmente o foi parece ter sido aceite ou, por mais profundado raciocino, ao menos igualmente atingida (2). Não obstante essa opinião contrária (JM 84), era uma verdadeira rebelião portugalense pela liberdade. As frases «portugalenses commíserunt prelium›>, esta indicando um empenhamento de Portugale, e Nuno Mendes era ‹‹tunc caput in lapso belo››, são expressivas, - e nem nesta segunda se deve entender a chefia ocasional, até porque a autoridade daquele cônsul está suficientemente documen- tada em Portugale todo (DC 491, LF 173, etc.). Ora, que mais portugalense ainda então que Guima- rães, começando pelo seu cenóbio e, neste, pelo seu abade P Tanto mais que este era um rebento da banida «stirpe›› condal, tio-avô paterno de Nuno Mendes, e havia em todos tantas razões de queixa da pessoa real, fosse esta a de Fernando Magno, fosse a de Garcia, cujas vexações sobre os portugalenses deixaram um longo rasto de nítida memória. Certo é que, nesta recordação secular, figura, não o rei Garcia, propriamente, mas um seu prócer ou valido, Veila, algum conde seu (a quem os nossos cro- nistas chamam Verna, que creio má leitura ou má escrita daquele nome). Talvez Garcia tentasse substituir Nuno

(1) Deve notar-se no entanto que esta ‹‹stirpe››, passando já então a Riba de Douro, entre Paiva e Távora, deixara de ter inte- resses apenas portugalenses, visto que aquela região era da província de Coimbra (DC 699), cujo cônsul, Sisnando, apesar de genro do portugalense, guardou estrita neutralidade. (2) De facto, ao falar-se agora da «sucessão no condado por- tuca1ense››, nomeando-se OS condes magnos por sua ordem, encon- tramos no anal Mendo Nunes e Nuno Mendes (FCP 8). A minha doutrina não admite este como conde de Portugal e ainda menos a opinião, pensa àquela, de que a sua sucessão ‹‹se fez sem interven- ção real››: bastaria, contra isto, O tempo decorrido desde a morte de Mendo Nunes até ao seu advento; mas há mais, que é o que venho exprimindo sobre o carácter da sua administração- não condal, mas consular, efeito de um acto régio. PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 87

Mendes por esse prócer, mais de sua confiança, até porque não havia sido ele, mas seu pai, num dos últimos dias da vida (um desejo de reparar à beira da sepultura ultrages de toda a espécie por ele lançados sobre a nossa ‹‹stirpe›› condal magna ?), que havia elevado o ilho do último dux magnzzs, assassinado talvez por sua instigação ou pelo menos a seu aprazimento. Esse magnate galego poderá conside- rar-se, assim, um Trava antecipado (e não seria mesmo da linhagem a que pertenceram os Travas que precipi- tariam a revolta portugalense cinquenta e seis anos depois?): a rebelião portugalense de 1071 poderá consi- derar-se, assim, igualmente, uma antecipação da de 1127- -1128, de tão decisivo êxito, que aquela ainda não teve. Derrotado e morto o conde-cônsul, manifestou-se tal o ódio de Garcia que, não podendo vingar-se nele, fá-lo na esposa e na filha, confiscando para a coroa os haveres do vencido. Ninguém poderá pensar que a dita sua filha, o ozfroformoso do seu ‹‹cognomentum››, houvesse intervindo naqueles acontecimentos, tanto mais que era esposa de um homem como Sisnando Davídiz, o sempre comodista ‹‹alvazir>› de Coimbra, que nunca se envolveu em aven- turas (1). Só de Afonso VI é que os herdeiros obtiveram uma restituição, que esteve longe de ser total (com parte ficou a coroa: LF 754 e 755) e de que eles logo se desfi- zeram, como temendo que até essas relações com Portugal e agora os comprometessem- esse Portugale que, no fundo, Coimbra aborrecia e receava (2).

(1) Não devo deixar sem um reparo a expressão desta cir- cunstância conimbricense: a neutralidade do cônsul Sisnando e ainda melhor a sua inalterável passividade governativa, embora de lato poderes, SOI poderão explicar»se pela inexistência de ten- dências separatistas verdadeiras no territorio. O próprio poder conferido ao ‹‹alvazir›› seria um elemento aliciante de separação, e a verdade é que ele nunca a tentou. Só por fidelidade, que os

magnates pouco prezavarn? ' (2) Não se dirá que um facto tão evidente (embora não notado pelos autores) não concorda com o significado das atitudes despei- tadas de Martim Moniz, o genro e sucessor do alvazir Sisnando, quando teve de abandonar o governo de Coimbra em virtude do pacto sucessório, a favor de Henrique de Borgonha, que o mesmo seria dizer da causa portugalense (AFP 167-172 e 185-187; AFP 137, -143), contrastando tão nitidamente com a atitude de outro cônsul- o de Santarém-Lisboa, Soeiro Mendes, da <‹stirpe›› maiata. Martim Moniz assimilara os sentimentos da família onde casara; o outro ficara sempre um portugalense. _ 88 REVISTA DE GUIMARÃES

Ódio tão cego, que punia inocentes e insuspeitos, não podia deixar de alcançar os outros revoltosos ou seus simpatizantes: os magnates das ~‹‹stirpes» (os infanções que deviam ter apoiado o seu chefe provincial) e a comu- nidade vimaranense, em especial o seu superior. A minha tese em trabalhos anteriores indica a elevação de Paio Guterres, um não comprometido, ao vicariato portuga- lense - - o que me parece manifestar a intenção régia de arredar as ‹‹stirpes››. Nunca isso, porém, poderia ser con- seguido totalmente, em razão dos casamentos consu- mados ou eventuais. À roda de 1087, Paio Guterres, certamente pelas suas suspeitas ligações afectivas e polí- ticas com a <‹stirpe›› maiata (à qual pertencia por Adosinda Ermíges, sua avó, ilha de Ermigio Abunazáriz, e onde mesmo casou), foi substituído por alguém que deveria ser menos inconveniente, um estrangeiro, Henrique de Borgonha (subordinado então aos senhores da Galiza, infanta Urraca e Raimundo). Mas a ambição de indepen- dência era já tal que ele só poderia colhê-la e procurar realiza-la. Nada mais preciso acrescentar acerca da compli- cada situação nos inícios henriquino, não só porque ficou dito o suficiente nesses meus estudos (AF2 121-191, conso- lidando a doutrina que expus em AF1 163-195), mas também porque novos e importantes dados exponho e exploro no trabalho lateral. deste (sobre o território e politica portugalenses). A asfixia do mosteiro para a sua rápida eliminação seria tão procurada, por sua vez, como a eliminação das ‹‹stirpes›› na alta política e administração, modo de ver que de Garcia passou em curtos anos a Sancho II e deste a Afonso VI. Um dos meios utilizados, em meu entender, foi desfazer o verdadeiro primado religioso que o cenóbio até então exercera em Portugale (1).

(I) Era, com efeito, Guimarães o maior centro espiritual do País. Assim o determinara a quase nulidade do episcopado por- tucalense e, sobretudo, a ausência multissedular do prelado braca- rense (a qual só nesta ocasião se buscou ‹‹remediar››, depois de quatro séculos e meio de abandono, a pretextos especiosos que o a

PORTUGAL NO PERÍODO VIMARANENSE 89

Realmente, aquela data de 1071 e-me tão expressiva de várias e graves circunstâncias portugalense, as quais a bem dizer a têm, que nunca será escusado repeti-las, expondo ainda outras. Assim, é essa data : -A última do abade Pedro, de Vimaranes, ou, de outro modo - - o seu significado-, a derradeira do mos- teiro, praticamente. Não sendo, como cuido, o prin- cípio do seu breve fim, será difícil compreender como uma casa que, imediatamente antes, ainda era o maior centro espiritual do País, com a mais abundante documentação precisamente até este tempo, passa a ser, pode afirmar-se, inteiramente falha dela. Não há prova de que, depois de 1065, data do último documento directo (DC 447), uma venda feita em 1079 «vobis domo rostro Menendus abba›› (DC 570) seja realmente do mosteiro - já de resto, na decadência havia vinte anos (desde o arrolamento dos seus bens pela coroa leonesa) (1). ` - A data, pode dizer-se, da tentativa da restauração episcopal própria de Braga, como novo centro espiritual, que Vimaranes havia sido. Tentafiva a considero, embora com efectiva nomeação de um bispo; mas a sua frustração nos anais do século, se a não quisermos encontrar durante todo esse episcopado, revelou a sua impreparação -- diga- -se do bispo Pedro o que se disser, aliás sem argumentos convincentes (2),

meu trabalho lateral estuda) (do. E. S. XVII 248). Residindo em Lugo, preocupava-se ele tão pouco com Braga, embora cioso de lhe manter a posse, que deixava mesmo isentar-se da sua sujeição (por sinal, em favor dos próprios condes magnos) as ‹‹famílias» (servos) que aí e no imediato arredor possuía desde o repovoamento no tempo do bispo Oduário (meados do séc. VIII), como ainda em pleno séc. XI era constante (LF 22). (1) Não vai contra a opinião de um rápido deperecimento a confirmação que do seu couto ainda fez Afonso VI (DC 372), o que não deveria ser sensivelmente depois de 1072,em que regres- sou ao trono leonês, reunindo-lhe Castela e a Galiza, que primeiro não tivera. (2) Não é agradável, mas é sempre necessária às minhas pro- posições, a insistência que tenho feito contra a opinião de uma obra excepcionalmente valiosa deste prelado, baseada em erradas apreciações de um censual (de que se julgou ter sido o organizador, não o sendo) e nas muitas doações feitas então à sé bracarense. Estas não revelam uma obra sua, simples produtos como são da piedade dos fiéis, despertada pela substituição espiritual de Vimaranes por 90 REVISTA DE GVIMARÃES \

- A data a partir da qual os infanções, ou, melhor, as «stirpes», depois de um trinténio escasso de grande proeminência administrativa, sofrem neste ponto de vista um eclipse total. É esta uma circunstância em meu parecer relevantíssima, desde logo manifestada na ele- vação de Paio Guterres ao vicariato portugalense, sendo um prócer não directamente identificado às quatro ‹‹stirpes›› principais dos mesmos. A importância social deles, no entanto, manteve-se a mesma, e não menos fundamental para a causa da independência. Na ‹‹stirpe›› vimaranense, a perda da administração acentuou muito mais a sua decadência; com elas, não sucedeu assim (3). O desaparecimento das ‹‹stirpes›› da alta administra- ção parece-me explicável como consequência do seu comprometimento ao lado de Nuno Mendes. Depois da batalha, ele morto, «ali si fugerunt››, diz a crónica do evento. Esta, por certo, não se refere ao combatente anónimo, mas aos grandes - explicando bem a perda das funções vicariais das ‹‹stirpes›› e o súbito desapareci- mento do abade vimaranense. A influência ‹‹nacional›› dos infanções é que não desapareceu por isso, e vê-los- -emos em 1127-1128 (se não já antes), pelos seus descen- dentes, conduzir Portugal à independência.

(Continua)

Braga, e aquele O que mostra é o florescimento anterior do terri- tório, em paróquias, visto que, ainda a ter sido ele o organizador desse censual, não é possível concluir que ele as instituiu. As restantes alegações cincam_ por análogos defeitos de apreciação, que não interessa aqui apontar. (3) Dos chefes sousão (Egas Gomes), baionês (Gosendo Viegas) e gascão (Múnio Viegas II), nada consta senão causas parti- culares e as suas tenências, tornadas familiaisnnas ‹‹terras›› ou sua /Janor, e dos maiatos só volta a aparecer o seu alto*relevo, sobretudo com Soeiro Mendes, no tempo do conde D. Henrique. Realmente tão elevado que, comparando-o com a inteira obscuridade anterior, só poderemos concluir por um deliberado afastamento da adminis- tração, promovido pelos reis. E, no entanto, seu pai, Mendo Gon- çalves, havia ascendido ao mais-alto posto da mesma entre nós. Soeiro Mendes casou cornuma sobrinha de D. Teresa (ilha de um irmão desta-- irmão dela pela mãe, evidentemente), mas este casamento não é que lhe deve ter valido a ascenção: esta, ao con- trário, é que o terá possibilitado.