Universidade do Estado do Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes

Bernardo Magina Teixeira

Viagem ao desconhecido

Rio de Janeiro 2016 Bernardo Magina Teixeira

Viagem ao desconhecido

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de mestre ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea.

Orientadora: Profa. Dra. Cristina Adam Salgado Guimarães

Rio de Janeiro 2016

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CEH/B

T266 Teixeira, Bernardo Magina. Viagem ao desconhecido / Bernardo Magina Teixeira. – 2016. 78 f.: il.

Orientadora: Cristina Adam Salgado Guimarães. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Artes.

1. Criação na arte – Teses. 2. Pintura – Teses. 3. Cor na arte – Teses. 4. Espaço (Arte) – Teses. 5. Percepção visual – Teses. I. Salgado, Cristina, 1957-. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III. Título.

CDU 7.021

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação desde que citada a fonte.

______Assinatura Data

Bernardo Magina Teixeira

Viagem ao desconhecido

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de mestre ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea.

Aprovado em 30 de setembro de 2016.

Banca Examinadora:

______Profª. Dra. Cristina Adam Salgado Guimarães (Orientadora) Instituto de Artes - UERJ

______Profª. Dra. Regina de Paula Instituto de Artes - UERJ

______Profª. Dra. Viviane Matesco Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro 2016 DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos meus ancestrais, aos meus guias espirituais e ao grande amigo, mestre e mentor Prof. Dr. Orlando de Magalhães Mollica.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Cristina Salgado por esses dois anos de orientação dedicada, sempre me fazendo refletir sobre os passos dados e sobre as direções tomadas, apresentando-me inúmeros caminhos principalmente através de livros, textos e de conversas. Não posso deixar de mencionar sua atuação também em sala de aula que proporcionou uma significativa mudança no meu trabalho assim como o contato com os professores Marcelo Campos, Malu Fatorelli, Regina de Paula e Ricardo Basbaum durante o mestrado. Agradeço especialmente ao Orlando Mollica que me proporcionou uma formação prática em arte: primeiro como seu assistente de ateliê, durante o ano de 2011, e posteriormente com o convite para lecionar em parceria o curso Desenho Contemporâneo na Escola de Artes Visuais do Parque Lage de 2012 até seu falecimento em meados de 2014. Este trabalho é dedicado à ele, pois só foi possível por esta imersão no universo do desenho e da pintura e por sua generosidade em me preparar diariamente. Agradeço ao José Maria Dias da Cruz pelos seus esforços como artista e teórico das cores que era chamado de mestre por Orlando e evidentemente ainda é por mim e por algumas gerações de artistas que foram seus alunos. Possibilitou-me outra experiência radical quando fui seu assistente, durante o ano de 2013, em seus workshops também lecionados na EAV. Agradeço à minha mãe Isaura e ao meu pai Delfim pelo amor incondicional e por me estimular desde criança a vivenciar processos criativos quando, por exemplo, ela dedicou uma parede da casa para ser minha tela ou pelos incontáveis LEGOS montados e remontados com meu pai. Agradeço à minha avó Maria José que certamente tem a história de vida mais inspiradora que conheço e que é meu maior exemplo com seus 96 anos de muita garra. Agradeço ao meu irmão de sangue João Pedro e aos outros de consideração pela parceria e amizade ao longo dos anos. À todos os meus familiares consanguíneos ou não. Agradeço à Dafne Vasques pela parceria no Studio Travellero e na vida. Agradeço à Cau pela parceria diária ao longo dos meus 27 anos de vida. Agradeço a professora Tania Clemente pela leitura atenciosa do trabalho.

Caminhos não há, Os pés na grama, Os inventarão.

Ferreira Gullar

RESUMO

TEIXEIRA, Bernardo Magina. Viagem ao desconhecido. 2016. 78 f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

Este trabalho aprofunda os processos de produção visual a partir das experiências vivenciadas tanto em deslocamentos pelo espaço real quanto nas atividades de desenho e pintura seja dentro ou fora do ateliê. O conceito de não saber e suas manifestações perpassam o trabalho, sendo apresentados no primeiro dos quatro capítulos junto com aproximações conceituais e relatos de outros artistas. O segundo é dedicado ao movimento de espacialização do meu trabalho e de referências teóricas relacionadas; o terceiro compreende minha viagem ao território colombiano como uma experiência artística, e, por fim, o quarto trata da transição de minha pintura para o espaço externo.

Palavras-chave: Pensamento não-verbal. Desenho. Pintura e cor.

ABSTRACT

TEIXEIRA, Bernardo Magina. Travel to unknown. 2016. 78 f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

This thesis deepens the visual production processes from experiences lived both in displacement in the real space and also drawing and painting activities, inside and outside the studio. The concept of not knowing and it manifestations pervade this work, being shown in first of four chapters with concept similarities and other artists reports. The second chapter is dedicated to the movement of my work of taking over the space and related theoretic references. The third one talks about me traveling to the Colombian territory as an artistic experience. Finally, the fourth chapter describes the transition of my painting to the outside spaces of the city.

Keywords: Non-verbal thought. Drawing. Painting and color.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Avenida Brasil, 2013. Bernardo Magina ...... 14 Figura 2 – Free Wheeler., 1955. CY TWOMBLY...... 22 Figura 3 – Sem título, 2014. Bernardo Magina ...... 23 Figura 4 – Indiferenciados, 2001 , Anna Bella Geiger ...... 28 Figura 5 – Seawall, 1957. Richard Diebenkorn ...... 34 Figura 6 – Woman outside, 1957. Richard Diebenkorn ...... 35 Figura 7 – Árvore-mãe, 2013. Bernardo Magina ...... 37 Figura 8 – Vista da exposição Antígona como imagem, 2015 ...... 41 Figura 9 – Sem título, 2015. Bernardo Magina ...... 42 Figura 10 – Sem título, 1965, Sven Lukin ...... 44 Figura 11 – Sem título, 1969, Robert Morris ...... 45 Figura 12 – Sem título, 2015, Pedro Varela ...... 47 Figura 13 – Instalação no Ateliê 397, 2011, Pedro Varela ...... 48 Figura 14 – Grafite na Autopista Norte, Bogotá, 2011, Yurika MDC ...... 52 Figura 15 – Grafite no bairro de La Candelaria, Bogotá. CABZ ...... 52 Figura 16 – Grafite no Centro Histórico de Cartagena. Yurika MDC ...... 53 Figura 17 – Trama para realização do painel El Penol, 2016, Bernardo Magina ...... 56 Figura 18 – IKB 3, Monochrome blue, Yves Klein, 1960 ...... 60 Figura 19 – Além do círculo imóvel. José Maria Dias da Cruz, 2007 ...... 61 Figura 20 – Pintura no muro do Centro Cultural Casa 7, 2016, Bernardo Magina .... 64 Figura 21 – Caixa de madeira, 2016, Bernardo Magina ...... 65 Figura 22 – Pintura no muro da escola Municipal Marília de Dirceu, 2016, Bernardo Magina ...... 66 Figura 23 – Grafite de Piá no centro do Rio de Janeiro ...... 68 Figura 24 – Grafite de TARM na zona norte do Rio de Janeiro, 2016 ...... 69 Figura 25 – Duas pinturas formando o painel mural da Casa 7, 2016, Bernardo Magina ...... 70 Figura 26 – Pintura na Escola de Comunicação da UFRJ, 2016, Bernardo Magina .. 71

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 10

1 O SENTIMENTO DE NÃO SABER ...... 13

1.1 Postura diante do trabalho e do mundo ...... 13

1.2 A cor ...... 23

1.3 Deslocamentos no espaço real e no espaço imaginário ...... 25

1.4 É uma questão de se colocar no fluxo ...... 30

2 DESDOBRAMENTOS ...... 39

3 COLÔMBIA ...... 49

4 O ESPAÇO EXTERNO COMO LUGAR DA PINTURA ...... 55

CONCLUSÃO ...... 73

REFERÊNCIAS ...... 75

ANEXO ...... 78

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INTRODUÇÃO

Minha pesquisa caminha paralelamente com minha produção artística e, nesta dissertação de mestrado, faço um recorte, mostrando um movimento de espacialização ocorrido primeiro no desenho e depois na pintura. Um aspecto recorrente em minha experiência artística é a presença de um não saber, um sentimento diretamente relacionado com a maneira de se trabalhar. Por sua constância, percebi seu papel central em meu processo artístico e que se apresenta em dois momentos distintos: quando me desloco pelo espaço, seja no ambiente urbano ou não, e quando estou desenhando ou pintando. No primeiro momento, ele emerge nas escolhas de por onde seguir em um caminho, por exemplo, mas certamente é na captação de imagens que ele é mais forte, considerando-se que não posso saber o que vai me chamar atenção durante um trajeto e o que vai ficar guardado na minha memória. O segundo momento corresponde ao que inicialmente me refiro como práticas de ateliê, pois era o único lugar onde de fato desenhava e pintava, já que recentemente passei a pintar também em ambientes externos como menciono mais adiante no texto. Refere-se às decisões durante o embate com o suporte que acontecem a cada instante e através de um pensamento plástico. No primeiro capítulo, menciono que o não saber não se opõe à existência de outros saberes na elaboração de uma obra de arte. Trata-se de uma articulação de pensamentos que não ocorre pela linguagem verbal. Como o meio aqui é textual, busco outros artistas que de algum modo se aproximam deste sentimento em seus respectivos processos e teóricos que comentam a dificuldade de se falar de alguns conceitos que vão além do campo das palavras. Para falar destas articulações mentais que estão além da intenção do artista, apresento as pesquisas do psicólogo norte-americano Daniel Goleman sobre o funcionamento do cérebro. Ele analisa profissionais de diversas áreas do conhecimento que se deparam com situações que demandam outras maneiras de pensar. Além disso, baseio-me nas ideias de Roland Barthes, Jacques Derrida e Marcel Duchamp sobre a conexão deste campo enigmático com a produção de arte em si. O uso da cor traz consigo uma série de questões que também estão ligadas ao não saber e que são fundamentais para a estruturação de meus trabalhos. Busco apresentá-las minimamente neste momento do texto, pois, mais adiante, no capítulo 4. O espaço externo como lugar da pintura, aprofundo-me no assunto, contextualizando-o na utilização que passo a fazer da cidade como suporte.

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Quanto aos deslocamentos, busquei referências na figura do flâneur de Charles-Pierre Baudelaire e na Teoria da Deriva de Guy Debord que será melhor contextualizada no terceiro capítulo, durante viagem à Colômbia. Baseio-me também nos relatos de Anna Bella Geiger sobre a importância da atividade de flanar para seu processo artístico. Em relação ao embate com o suporte, à prática de ateliê, apresento relatos de artistas como Francis Bacon, comentando a relevância do acaso para sua pintura, e Nuno Ramos que menciona a necessidade de criar métodos para lidar com o desconhecido. Além disso, as reflexões de Roland Barthes sobre os desenhos de Cy Twombly, ajudam-me a traçar um paralelo, permitindo-me ver aproximações e diferenças. Ainda no primeiro capítulo, correlaciono os métodos surrealistas com minha produção do ponto de vista da técnica e dos procedimentos associativos. No segundo capítulo, descrevo duas exposições que participei no ano de 2015 que foram fundamentais para a ideia de espacializar o trabalho. Falo da relação com o papel de arroz e das especificidades de cada uma das galerias que me fizeram pensar duas maneiras diferentes de colocar o trabalho no espaço real. O não saber se manifesta aqui tanto na elaboração dos desenhos quanto na sua disposição no espaço expositivo. Dentro da ideia de campo ampliado, desenvolvida por Rosalind Krauss, dialogo com artistas norte-americanos como Robert Morris e Sven Lukin, destacando nossa principal semelhança, o uso e a ocupação do espaço real, mas pontuando também uma série de distâncias históricas e processuais. Estendo este diálogo ao trabalho do meu contemporâneo Pedro Varela que apresenta circunstâncias em comum além da questão espacial. No terceiro capítulo, falo da minha viagem à Colômbia como uma experiência artística. Um território para me deslocar e para entrar em contato com o desconhecido. Cito novamente a figura do flâneur e relaciono as movimentações durante a viagem com a Teoria da Deriva. A cor, a escala e a presença contínua dos grafites nas grandes cidades colombianas, em especial em Bogotá, impressionaram-me bastante. Senti-me imerso em grandes pinturas que tomavam determinados trechos da cidade. No último capítulo, refiro-me a influência deste contato com os grafites colombianos. A rua que antes servia como fonte de memórias oriundas dos deslocamentos, passa a ser suporte para minha pintura. Comento esta transição do ateliê fechado para as particularidades de se trabalhar à céu aberto, além é claro das diferenças intrínsecas à atividade de pintar. Descrevo meus procedimentos de pintura, apresentando a trama e suas conexões com a teoria da arte. Foi

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necessário, então, explicar como o não saber dialoga com todo um conhecimento prévio de pintura e com as memórias. Para tal, aprofundo as questões cromáticas citadas anteriormente no primeiro capítulo, relacionando-as com as reflexões do artista José Maria Dias da Cruz, fundamentais para meu pensamento plástico. Por fim, destaco Piá e TARM, dois artistas da cena carioca do grafite. O primeiro usa uma metodologia similar a trama e o segundo um jogo de cores refinado com passagens e nuances. Vejo também que minha técnica difere da maioria dos grafiteiros locais que se utilizam majoritariamente de sprays, enquanto uso pincel e tinta acrílica. O mural de TARM na lateral de um prédio na Praça da Bandeira, zona Norte do Rio de Janeiro, que comento, apresenta uma escala monumental, servindo como uma inspiração e uma espécie de meta. Meu trabalho na rua é recente e, neste pouco tempo, tem se adequado à nova realidade de suporte: a última pintura que apresento na dissertação é a fachada do novo prédio anexo da Escola de Comunicação da UFRJ que já é bem maior do que as outras experiências descritas, apresentando suas particularidades.

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1 O SENTIMENTO DE NÃO SABER

1.1 Postura diante do trabalho e do mundo

Para mim, a experiência de produção em arte é da ordem de um não saber. As infinitas possibilidades diante de um suporte, seja ele uma folha em branco, com ou sem marcas do tempo, uma serigrafia, uma fotografia ou uma tela, seduzem-me – e posso incluir agora, nesse repertório de suportes, a experiência mais recente da pintura sobre muros, que pode dialogar com o grafite. As eventuais imperfeições nesse plano original servirão como inspirações pré-pictóricas, sendo incorporadas às peças. O não saber não significa que a construção do trabalho seja aleatória, pelo contrário, indica apenas que não há planejamento racional prévio, exigindo uma série de escolhas rápidas durante a execução. Há uma consciência de que a produção imagética tem como fim a construção de uma paisagem, mas é uma modelagem espacial sem briefing ou coordenadas. Após cada entrada na superfície, seja tracejando, pontilhando ou manchando, surgem de fato os primeiros problemas. Uma entrada não tem uma quantidade de informação ou de tempo determinada, apenas a noção de que há intervalos. Ela pode ter uma linha ou um emaranhado delas. Sua definição passa pelo afastamento e pela contemplação daquilo que já se tornou visível, aquilo que já foi feito. Esta sucessão de escolhas configura um caráter intuitivo ao processo de surgimento dos trabalhos. Não é possível afirmar que haja uma metodologia linear que poderia ser descrita com uma ordem exata. Isto se evidencia, pois muitas destas primeiras informações visuais depositadas no suporte tem vínculo com a memória e, portanto, com experiências que impregnaram meu imaginário. Esta coleta é uma atividade que pode ser prévia ou paralela à execução de uma peça dentro do ateliê e corresponde às caminhadas. Estas podem ser dentro do perímetro urbano ou não e também não possuem uma meta ao serem iniciadas. Pode acontecer até mesmo em meio aos compromissos cotidianos. O simples fato de ir à padaria, por exemplo, pode oferecer impressões sensíveis antes desapercebidas pelo olho. Não me limito a estes curtos trajetos, o primeiro trabalho a ser realizado dentro desta proposta, por exemplo, surgiu um dia após a volta de uma viagem a Camburi-SP. Durante o retorno ao Rio de Janeiro, meus olhos só conseguiam focar as pichações sobre edifícios abandonados na Avenida Brasil. A sobreposição das infinitas camadas de tinta formava uma grande pintura.

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A viagem em si foi para um quilombo situado na praia e teve como um de seus objetivos a prática do surfe. Nunca havia pisado lá, somente ouvido sobre o formato tubular de suas ondas. Apesar de não ter sentado para desenhar a fim de ilustrar esta vivência, ao observar o trabalho com calma depois de seu acabamento, pude reconhecer alguns elementos que ficaram gravados na memória. Há uma influência tanto da atmosfera do lugar e das ondas, quanto das escritas sobrepostas nas paredes. Além disso, há elementos de composição que não posso atribuir a nenhuma delas. Em alguns trabalhos, faço também uso de sketches, fotografias e vídeos que funcionam como anotações. Importante ressaltar que nunca copio essas imagens geradas para o suporte. No máximo olho para algumas delas e utilizo-as como estímulo visual, guardando- as em seguida. Há uma preferência pelo que fica registrado na mente. Nessa viagem narrada acima, por exemplo, não levei câmeras e nem sequer um caderno.

Figura 1 - Avenida Brasil, técnica mista sobre papel, 21x 29 cm, 2013. Bernardo Magina

Fonte: O autor, 2013

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Também não há um prazo estipulado para coletar informações que entrem numa peça. Há influências de experiências distintas em um mesmo espaço, mostrando cruzamentos de tempos diferentes em uma mesma imagem. É interessante notar que o reconhecimento de elementos gravados na memória acontece apenas após uma análise consciente enquanto não desenho. O filósofo francês Jacques Derrida descreve acontecimento como algo surpreendente, de fato, e que não vem diante de nossos olhos, pode apenas vir verticalmente. Seguindo este entendimento, ele desdobra:

O fato de que um acontecimento digno desse nome venha do outro, de trás ou de cima, pode abrir os espaços da teologia ( o Altíssimo, a Revelação que nos vem do alto), mas também do inconsciente ( isso vem de trás, de baixo ou simplesmente do outro). 1

Derrida prossegue, relacionando o sujeito desenhista com o acontecimento do desenho, do processo artístico, falando de uma cegueira necessária ao artista durante a execução:

A questão de que tratamos até aqui, “ver e pensar, pensar-ver, ver-pensar”, é, portanto, primeiramente a questão do acontecimento, da experiência do acontecimento, e do que é o desenho, a relação entre o desenho e o acontecimento. Que relação pode ter o desenho com o que acontece? Ou com quem chega? O desenhista é alguém, e temos aqui uma grande testemunha disso, alguém que vê vir, que pré-desenha, que trabalha o traço, que calcula etc, mas o momento em que isso traça o movimento em que o desenho inventa, em que ele se inventa, é um momento em que o desenhista é de algum modo cego, em que ele não vê, ele não vê vir, ele é surpreendido pelo próprio traço que ele trilha, pela trilha do traço, ele está cego. É um grande vidente, ou mesmo um visionário que enquanto desenha, se seu desenho constitui acontecimento, está cego.2

Marcel Duchamp, em O ato criador3, expõe um raciocínio para propor o conceito de coeficiente artístico pessoal que seria a diferença entre o que o artista planejou e o que ele de fato realizou em uma obra. A argumentação que ele usa para esta formulação é muito próxima do que chamo de sentimento de não saber neste texto, pois ele entende que o caminho que o artista percorre da intenção à realização é composto por uma cadeia de reações totalmente subjetivas.

1 DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Organização Ginette Michaud, Joana Masó e Javier Bassas. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012. p. 71. 2 Idem 3 DUCHAMP, Marcel. Le processus créatif. In: Duchamp du Signe. Paris: Flammarion, 1994. p.187-189.

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Duchamp explica: “A luta pela realização é uma série de esforços, de dores, de satisfações, de recusas, de decisões que não podem nem devem ser totalmente conscientes, ao menos no plano estético.”4 Em O óbvio e o obtuso5, Barthes propõe um conceito próximo, chamado de sentido obtuso, aquele que estaria além do nível da comunicação e da significação, ou seja, fora da linguagem articulada. Este sentido está nessa zona além da intelecção, ajudando a suplementar o que a esta não consegue absorver bem. Com os surfistas, o mar se comunica, exigindo que fiquem atentos a cada detalhe segundo após segundo. É preciso lidar com a correnteza, com os ventos, com as alternâncias de marés, com o fundo e saber dar uma resposta com a maneira de se posicionar e até mesmo tendo a humildade de sair da água. Mas independente do conhecimento e da experiência, é preciso ultrapassar a racionalidade e se conectar com o oceano no sentido proposto por Barthes. Não se trata de uma ciência exata ou de um cálculo, a ação exige um senso de presença e um tipo de pensamento diferenciado. Para os surfistas, o outside é uma região logo após a arrebentação do mar onde geralmente se posicionam à espera das ondas com melhor formação e potencial. É se dirigindo para lá ou lá mesmo que passam a maior parte de seu tempo durante cada sessão dentro da água e é ali que, de fato, ocorre toda a preparação para o momento em pé sobre a prancha. Sentir-se um só com o mar, é essencial para ter – ou desenvolver- a capacidade de ler a movimentação do oceano e entender seu tamanho diminuto diante das forças e do fluxo no qual se insere. Posicionar-se bem no outside é uma dádiva, principalmente se o pico – praia- escolhido não tem uma regularidade na formação de suas ondas. Em nenhum lugar do mundo as ondas se repetem, mas onde há fundos de coral, por exemplo, as ondas são muito parecidas umas com as outras, tornando mais fácil a leitura. Este tempo do outside equivale à preparação para meus desenhos e pinturas. O trabalho de atelier é análogo ao breve momento de estar, de fato, surfando do ponto de vista da execução – em pé na prancha. É preciso entrar em contato com o todo, com o resto do mundo antes. Prestar atenção nas particularidades do entorno. O psicólogo norte-americano Daniel Goleman aponta a consciência aberta como uma das três modalidades do foco – as outras duas são atenção seletiva, referindo-se a um desafio

4 Ibidem. 5 BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990

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criativo específico e foco orientado quando se busca e fica imerso em qualquer tipo de dado- e vejo esta paciência exigida ao surfista como próxima a este conceito assim definido: “quando nos entregamos à associação livre para permitir que surja uma solução – e então nos concentramos na solução.”6 Segundo Goleman, o estado mental de consciência aberta é fundamental para compreender o conceito de serendipidade. O nome vem de um conto de fadas persa que conta a história dos Três príncipes de Serendip que “estavam sempre fazendo descobertas, por obra do acaso e sagacidade, de coisas pelas quais não estavam procurando.” O autor apresenta pesquisas científicas que comparam adultos diagnosticados com TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade- com adultos sem o transtorno, com ênfase em seus sistemas cerebrais envolvidos com divagação da mente que foram observados em atividade pouco antes das pessoas examinadas chegarem a um insight criativo. Foi mensurado que o primeiro grupo mostra mais realizações criativas reais. Há outros testes como o de achar novos usos para um tijolo em que as pessoas com TDAH se saem melhor, por exemplo. Nessas pesquisas foi possível mapear também que o cérebro, em seus momentos criativos menos agitados, pouco antes de um insight, costuma descansar em um foco aberto, caracterizado por um ritmo alfa, sinalizando um estado de devaneio ou sonho acordado. “Como o cérebro armazena diferentes tipos de informação em circuitos de amplo alcance, uma consciência vagando livremente aumenta as chances de associações com serendipidade e novas combinações.”7 Foi aferido também que o local do pico gama durante um insight é justamente uma área associada aos sonhos e às metáforas, elementos que operam na linguagem do inconsciente, uma esfera onde tudo é possível, segundo o autor. Ele cita o método da associação livre de Freud – em que se fala o que vem a cabeça sem censura- como um exemplo de uma porta aberta para esta modalidade de consciência aberta. Portanto, torna-se importante pôr a mente à deriva assim como o surfista está à deriva no mar. E, no caso, do meu processo artístico esta deriva corresponde não só ao estado mental, mas também ao próprio corpo em relação ao espaço físico do mundo. Deslocar-se e, em especial, viajar é para mim a melhor maneira de me colocar nesta condição. Funciono como uma antena móvel, instalada em um carro, por exemplo, buscando sempre sinal das rádios próximas, com a diferença que é como se eu tentasse reproduzir a transmissão com

6 Goleman, Daniel. Foco a atenção e seu papel fundamental para o sucesso. Tradução Cássia Zanon. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. p. 48 7 Ibid. p. 49

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minha própria equipe de radiodifusão e sem compromisso de replicar o conteúdo com precisão. A realização do trabalho de ateliê em si tem início com a necessidade de escolher um suporte e os materiais que possam ter seu uso otimizado nele. Os instrumentos possíveis de serem utilizados, sejam eles canetas, pincéis ou bico de pena assim como os materiais disponíveis como nanquim, tinta acrílica, guache ou aquarela são escolhas que devem estar em consonância com o suporte. O artista Nuno Ramos comenta esta relação da parte corpórea do trabalho e como ela influencia na produção na medida em que o artista se encontra em constante embate com ela:

Você intui umas coisas, mas existe um mundo de procedimentos materiais... existe um mundo real da obra que é aquilo com o qual você precisa negociar. Quer dizer, ninguém tem intuição no vazio, aliás ninguém nunca está. A gente é uma coisa numa dimensão real. Tem um corpo, tem uma circunstância. Nunca é ideal, ninguém discursa no vazio em uma condição grega, você está sempre... no meio de alguma coisa mais confusa que isto. Isso em obra é aquilo que você consegue lidar, os procedimentos inconscientes, as formas que você sem querer retorna, isso tudo é muito válido. Hoje em dia, isso tudo é muito rebaixado. Em geral, o artista acha que a intuição é igual ao significado e não é. O significado é uma parte pobre da intuição. As vezes é bom, ajuda, mas a intuição da obra é muito mais complexa que um significado. Então, não adianta você ir atrás do sentido daquilo que você faz e reiterar isso discursivamente.8

A intuição se manifesta principalmente no desenrolar plástico das ideias que emergem durante o embate com a realidade física da obra. Intui-se dentro de um contexto. Não precisa ser exatamente diante do suporte trabalhando, mas com ele em mente já é possível. Por muitas das ideias intuídas estarem além da zona de intelecção, a negociação entre elas e a materialidade do trabalho demanda etapas. É nesse sentido que o significado é colocado por Nuno Ramos como algo mais pobre, pois é fruto de operações mentais complexas e rápidas dentro da sucessão de escolhas que envolvem tanto o desenho quanto a pintura. Antes de falar da ação em si, prossigo com minhas ponderações ao iniciar um trabalho: se for em papel, a gramatura é um impedimento para técnicas mais úmidas, por exemplo. O gestual realizado com cada um deles também difere tanto pela espessura quanto por sua aderência ou atrito. É importante ressaltar isto, pois os grafismos de que me utilizei nas duas últimas séries, que funcionam como elementos constitutivos das imagens, são de um domínio oriundo do desenho em que o papel foi colocado na posição horizontal, diferindo portanto de uma pintura com o suporte na posição vertical ou outras técnicas disponíveis. Não há um

8 Diverso - Nuno Ramos. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=fzlOAmvc4EA>. Acesso em: 05 abr. 2016.

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impeditivo para que o trabalho possa partir para outras metodologias que já foram experimentadas, ou não, no passado, mas atualmente com o uso do nanquim sobre papel de arroz, exploro ao máximo esse recurso do desenho realizado com o suporte apoiado em uma mesa. Há uma potencialização de suas qualidades ali. Não é uma zona de conforto, pelo contrário, é uma zona de invenção, pois nesta estrutura, acredito ter sempre recursos para evitar traços e soluções estéticas maneiristas, no sentido de soluções clichê. Esta execução propriamente dita é composta por variados modos de ação perante o suporte. Quando me refiro a não haver uma metodologia linear, além das influências de memórias pertencentes a temporalidades distintas condensadas em uma mesma imagem, falo também dos procedimentos. Há momentos em que dou vazão a fluidez da linha e tento me afastar o máximo possível do controle do gesto, objetivando sua soltura, entretanto há outros momentos em que a ação com o instrumento, seja o pincel ou a caneta, é lenta e meticulosa. Prendo-me aos detalhes, às pequenas curvaturas, ao jogo de cheios e vazios das formas que vão sendo criadas. Não existe um botão de liga/desliga para alternar entre estas maneiras de trabalhar. É nesse ponto que entra um tipo de cálculo que não se opõe à ausência de um planejamento prévio e ao sentimento de não saber. Uma negociação com as informações já depositadas sobre a tela ou o papel. Há um senso de composição, um diálogo com a História da Arte. Os elementos visuais que são imprevisíveis passam a ser operados como partes de um todo. É possível saber que precisarei adensar determinada área do trabalho, mas não sei o que vai entrar ali exatamente, só descubro fazendo. O desenho (e também a pintura) para mim é uma maneira de pensar dentro do entendimento de pensar proposto por Derrida:

O que se entende por pensar? O pensamento não se reduz nem a razão, nem ao saber, nem a consciência; há pensamento inconsciente, há um pensamento irracional, há um pensamento sem conhecimento: Kant distingue muito rigorosamente entre a ordem do pensável e a ordem do cognoscível. 9

O teórico prossegue sua explanação: “Em todo o caso, o que é certo é que “pensar” , essa zona, esse ponto cego ao nosso vocabulário, “pensar” a priori não se reduz nem ao saber, nem ao conhecimento, nem à consciência, nem à razão.” 10 Ainda sobre esta maneira de pensar exercida durante o ato do desenho é preciso ressaltar também que ela se encontra na minha postura como artista diante do mundo. O título desta dissertação é uma mostra disto. Mesmo que saiba o nome da região ou cidade para onde

9 DERRIDA, op. cit., p. 74 . 10Iibid., p. 74.

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vá, o fato de ir buscando experiências novas através de acontecimentos me coloca na condição de um viajante aberto a possibilidades e não de alguém que vai com um roteiro fechado, com uma checklist do que ver ou fazer. No mundo contemporâneo, é difícil viajar sem nenhuma relação com a indústria do turismo, mas de fato, não me importa se estou dormindo em um hostel ou viajando de avião, mas o intuito da viagem tem que ser distinto do turismo de massa, meu objetivo com os deslocamentos é justamente estar sujeito a experiências singulares não publicitadas em guias ou revistas de turismo. Ir atrás de acontecimentos que de alguma forma possam se relacionar com minha produção artística. Por isso, é uma busca pelo desconhecido: lugares, pessoas e situações vão se apresentando pelo simples fato de estar lá e de transitar por lá, afastando-se do comportamento esperado de um turista convencional e de vivências de algum modo padronizadas, no sentido de mera contemplação daquilo que se exibe diante de meus olhos. Portanto, vejo relações entre meu modo de "desenhar a experiência de minhas viagens e deslocamentos" o modo como meu desenho propriamente dito se elabora – e sobre isso falarei mais adiante ao desenvolver a narrativa sobre o surgimento de minhas pinturas sobre muros. O desenho para mim não funciona como uma espécie de marcação, ele não é uma tradução do espaço a fim de representá-lo no papel. Além de me utilizar do resultado dos gestos soltos descritos anteriormente e interferir com sutilezas gráficas, não necessariamente nesta ordem, há uma incorporação de certos acidentes que reforçam uma busca pela expressividade plástica. As marcas do processo não são apagadas, elas funcionam como informações visuais que se houver interesse deixo lá, senão passo por cima. No processo de impressão serigráfica, por exemplo, as primeiras cópias saem com uma nitidez e opacidade próxima de 100%, cobrindo toda a superfície, pelo menos as lisas como o papel, mas as impressões seguintes saem com falhas que podem ser aproveitadas como uma base, que será o ponto de partida do trabalho. Além disso, em determinados momentos pode haver o uso de um pincel largo diferente do ideal para detalhes ou pinceladas menores e, após sua secagem, é possível interferir, fazendo uso daquela informação visual, dando continuidade com sobreposições de tratamentos. Roland Barthes comenta esta relação do fundo alterado com o grafismo:

Sabe-se que o que faz o graffiti não é, a bem dizer, nem a inscrição nem a sua mensagem, é a parede, o fundo da mesa: é porque o fundo existe plenamente, como o objeto que já viveu, que a escrita lhe aparece sempre como um suplemento enigmático: o que está a mais em excesso, fora do seu lugar, isso é que incomoda a ordem; ou melhor, é na medida que o fundo não está limpo que ele é impróprio para o pensamento (ao contrário da folha branca do filósofo), e portanto muito própria

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para todo o resto (a arte, a preguiça, a pulsão, a sensualidade, a ironia, o gosto: tudo o que o intelecto pode sentir como outras tantas catástrofes estéticas). 11

Roland Barthes, ao analisar o trabalho de Cy Twombly, frisa que sua relação com a caligrafia não é de imitação, tampouco de inspiração, mas uma alusão à escritura. O importante é o gesto que a produz, não importando o produto. Faz uma conexão com “gauche”(canhoto), que seria estar à margem, ser uma espécie de cego:

“vê mal a direção e o alcance dos seus gestos; é guiado apenas por sua mão, e não pela aptidão instrumental dessa mão; o olho é a razão, a evidência, o empirismo, a verossimilhança, tudo o que serve para controlar, coordenar, imitar e, como arte exclusiva da visão, toda nossa pintura passada foi submetida a uma racionalidade repressiva.12

Logo, para o teórico, Cy Twombly libera a pintura da visão. Ele foi um artista radical nesse sentido. Não tento liberar meu trabalho completamente da razão como ele. Meu interesse é em seu gesto, não no intuito de imitá-lo, mas de ir por um caminho desconhecido, já que não tenho como objetivo ter total controle do que acontece no plano. Trata-se de um diálogo. Entender o trabalho como uma via de mão-dupla. Os sinais visíveis vão aparecendo à medida que o evoluo, etapa após etapa, e cabe a mim captá-los e avançar com o traçado. O artista Paul Klee escreve em seu diário: “a mão deve ser levada pela linha, como o equilibrista é levado pela corda bamba.” A fluidez é, neste modo de desenhar, um valor importante e a partir do momento em que a linha amplia sua existência para além de um elemento gráfico e passa a assumir também o papel de condutora, há um equilíbrio de forças entre o desenhista e o desenho. A linha se comunica com o artista que responde com a mão. Assim vão se formando camadas que aos poucos configuram o plano do papel.

11 BARTHES, op. cit., p. 151. 12 Ibidem, p. 148.

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Figura 2 - Free Wheeler. Óleo, lápis de cera e lápis sobre tela. 174 x 190 cm, 1955. CY TWOMBLY

Fonte: artchivi.com

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Figura 3 - Sem título, nanquim sobre papel, 2014. Bernardo Magina.

Fonte: O autor, 2014

1.2 A cor

Há também um aspecto importante que deve ser observado: a cor. Seu uso implica em exercitar uma lógica dos coloridos que também não é de uma ordem racional. Não vejo a cor como o preenchimento de uma superfície , mas como um pensamento capaz de ambientalizar a forma. Com ela é possível trabalhar em outras dimensões que podem entrar ou sair do plano, transcendendo-o, ou seja, diminuir ou ampliar as distâncias, configurando o campo pictórico. Deste modo, o colorido passa a não ser entendido como uma questão meramente técnica, mas como uma complexa cadeia de pensamento visual, impossível de se encontrar fórmulas fechadas para resumi-lo ou aplicá-lo. O saber do olho que é desenvolvido ao longo do tempo de prática passa a ser o principal recurso para criar espaços com a cor. Para evitar o paradoxo, explico: é necessário um não saber no sentido de não dominar o próximo passo, mas é preciso também de um saber prévio para confiar no olho. De acordo com a concepção de desenho de Derrida apresentada anteriormente, pode-se dizer que o conhecimento prévio permite confiar cegamente no olho.

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Não adianta ter como parâmetro o círculo cromático newtoniano e fazer cálculos matemáticos, afirmando que essa cor é oposta à essa e operar esse conhecimento como uma máquina. Há também teorias como a harmonização por acordes perfeitos de Delacroix com alaranjados, esverdeados e violáceos, mas seria uma limitação se me fixasse em qualquer teoria em meu processo criativo. Minha própria prática pictórica e principalmente os pensamentos de artistas como Nuno Ramos, Francis Bacon e José Maria Dias da Cruz, dentre outros que mencionarei mais adiante, mostram-me que preciso entender a cor como um fenômeno temporal, pois é uma questão rítmica e que só pode ser considerada dentro de um contexto específico, ou seja, o colorido. As cores fazendo sentido dentro de um todo da imagem, exercendo relações múltiplas entre si. Um complexo jogo de forças que se transforma à medida em que um novo tom entra no suporte e altera a totalidade. Além dos fenômenos óticos, há também as misturas pigmentares que são questões distintas. Uma cor feita pela mesma mistura pigmentar pode ser percebida pelo olho do espectador ( e do próprio pintor também) de modo diferenciado, dependendo de sua vizinha, ou seja, o ambiente no qual ela é inserida vai influenciar o modo como o olho a lerá. Como letras em relação a palavras, se as trocarmos de lugar podem constituir outras palavras ou mesmo criar algo ilegível. Os alfabetos visuais são diferentes e não são exatos, não se trata de uma ciência matemática. O pintor tem que lidar com os nomes das cores, com os nomes que as marcas fabricantes de tinta dão as cores, mas também tem que aprender a lidar com elas em uma relação de intimidade: buscar entender seu funcionamento tanto por experiência empírica intransferível quanto por anotações e questionamentos de terceiros que geram as teorias cromáticas. A teórica francesa Anne Cauquelin, ao mencionar as pinturas gregas explicita esta relação com as cores ao citar os gregos e sua dificuldade com os tons de azul, indisponíveis à época: “as cores são ideias de cores, e quem não tem a amostra (o paradigma) não tem a coisa.” 13 Louis Cane comenta a relação do gesto com a cor e o ato que citei no início do texto de se deparar com a tela em branco:

O branco da tela, cor que já está lá, impensada uma vez que sempre coberta pela “cor”, é originalmente a proposta do trabalho. Não se trata de nada além do que tornar esse branco, essa cor significante-Cor a cobrir por uma outra cor para marcar, a partir do exterior, o interior dessa diferença que a torna diferença. Além do gesto (que “abre” essa superfície e trapaceia uma vez que já está dissolvido outro gesto o

13 CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007. p. 54.

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preparou) o efeito da surpresa se concentra nessas diferenças: assim, a cor “descoberta” não esconde mais o gesto que descobre- o corpo (o gesto) sabe o que a pintura faz saber. O “medo” do pintor, diante da tela branca, é parido junto com a cor. 14

Reitero que para meu processo o branco da tela se coloca apenas como um desafio motivador, mas compreendo a relação de apreensão no que tange sair do passo inicial do trabalho. O uso da cor é algo intrigante e desafiador, e mesmo um desenho feito em preto e branco com nanquim traz influências diretas dos estudos de pintura pregressos, já que o preto para mim é sempre operado e lido pelo olho como uma cor, e tão ou mais importante do que as formas geradas pelas linhas. Aliás, vejo a própria linha como um elemento do colorido. Pois preto e branco são cores antes de qualquer definição científica ou filosófica.15 Então um pequeno traço preto num fundo branco é além de um elemento gráfico, uma cor ocupando o campo pictórico. Os intervalos gerados pelos cheios e vazios são equivalentes a intervalos gerados por outras cores e suas relações entre si. Como exemplificado na questão do desenho em preto e branco, o raciocínio relativo ao espaço plástico é um só, mas é preciso ter consciência das qualidades intrínsecas dos materiais e suportes, suas potencialidades expressivas, e de suas limitações para ter noção se o trabalho vai seguir um caminho mais gráfico ou mais pictórico. Na maioria das vezes, oscilo entre ambos, mas só não poderia afirmar que isto é irrelevante, pois as tais limitações referentes às escolhas técnicas me fazem ter que optar por um caminho ou por outro. Aqui me volto para a experiência da negociação entre o saber constituído pela prática de ateliê e pelo conhecimento da história da arte e a ideia de um não saber. Voltarei a falar sobre minha experiência e meu entendimento do trabalho com a cor de forma mais detalhada no capítulo 4. O espaço externo como lugar da pintura. Quando o trabalho avança para os murais e a cores estão explicitamente mais presentes no processo.

1.3 Deslocamentos no espaço real e no espaço imaginário

14CANE, Louis; FERREIRA, Gloria; COTRIM, Cecilia (Org.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. 15 Importante mencionar que Kandinsky classifica o preto, o branco e os cinzas como "não cores". KANDINSKY,Wassily. Do espiritual na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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Como não há um compromisso com a representação do real, mas sim com a apreensão de determinadas experiências oriundas dos deslocamentos livres pelo espaço físico, não existe a prática de começar os trabalhos com uma foto de um referencial paisagístico na mão a fim de reproduzi-lo ou com uma espécie de esboço. Com o desenrolar plástico é que algumas imagens ficam mais nítidas e é possível acentuar algumas figuras. Mesmo assim há diversos elementos que não possuem uma definição exata, mas que apenas remetem a possíveis figuras ou fragmentos delas. Penso que minha experiência se assemelha com o que o teórico francês Gilles Tiberghien atribui ao cartógrafo. A ideia de mapear para o artista não necessariamente está atrelada à busca pela exatidão da cartografia, mas justamente o contrário. Passa por confundir as medidas, podendo “pensar o mapa como um diagrama que desenha multiplicidades espaço- temporais, de tal modo que o mapa se torna um traçado de relações de força, um sismógrafo de intensidades, a figuração de coisas efêmeras e quase inapreensíveis.”16 Em seu artigo, Tiberghien prossegue afirmando que o imaginário que esse tipo de mapa testemunha não afasta o espectador do real, mas o faz entrar na visão e nos modos de ver e sentir do artista, restituindo as imagens como pedaços de sonhos. O cruzamento temporal de experiências diversas, já mencionado acima, exige um pensamento que se aproxima da colagem, possibilitando a convivência espacial harmônica de fragmentos referentes a lembranças e imagens distintas. A curadora e historiadora de arte inglesa Fiona Bradley menciona a comparação feita por Breton entre a colagem e a metáfora poética, entre o semelhante e o dessemelhante a fim de atingir a inspiração e a compreensão: “ É a maravilhosa faculdade de alcançar duas realidades muito distantes sem abandonar o domínio da nossa experiência; é reuni-las e tirar uma fagulha de seu contato.”17 A autora explica que para Breton desenvolver esta teoria ele se baseou em dois outros poetas: Paul Reverdy que observara que “a imagem é uma pura criação do espírito; não pode surgir da comparação, mas somente da reunião de pares inesperados.” E também Isidore Ducasse, o conde de Lautréamont, que em sua obra mais célebre, Os Cantos de Maldoror, escreveu a famosa frase “belo como o encontro casual de um guarda-chuva com uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecações.” 18 As “pinturas de colagens” de Max Ernst apresentavam uma versão visual dos versos: combinava uma grande variedade de objetos em

16 TIBERGHIEN, Gilles. Imaginário cartográfico na arte contemporânea: sonhar o mapa nos dias de hoje. Trad. Inês de Araujo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 57, p. 233-252, 2013. 17 BRADLEY, Fiona. Surrealismo. São Paulo: Cosac Naify, 1999. p.28. 18 Ibidem, p.28.

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contextos inexplicáveis e surpreendentes, “cada qual pintado com uma claridade insolente, indiferente e desprendida”19. O interessante destas definições é que apresentam fundamentos importantes do procedimento adotado para construção dos trabalhos surrealistas. É importante ressaltar que meu processo artístico não é realizado nem se insere no contexto surrealista, ainda que lide com um certo procedimento associativo e com um tipo de processo que envolve encontros não premeditados, em que o acaso é um agente importante, como nas práticas surrealistas. O acaso, nesta circunstância, refere-se às práticas como andarilho e coleta de informação visual, ou seja, as minhas fontes, pois não posso controlar a experiência durante determinado trajeto mesmo que premeditasse o caminho a ser trilhado. Por exemplo, se decido caminhar por uma rua, não tenho como saber o que encontrarei e o que mais chamará minha atenção nesta movimentação. Anna Bella Geiger, em artigo para o suplemento dominical do jornal O Globo intitulado Artista e Flâneur, relatou seu hábito de perambular pelas ruas, ladeiras e escadarias desde sua adolescência. Começou pelas ruas do Catete onde residia e se estendeu por outros bairros como Glória e Santa Teresa onde estudava arte com . Manteve o hábito enquanto morava em Nova Iorque e depois em seu retorno ao Rio de Janeiro. Foi expandindo seus percursos e suas andanças foram determinantes tanto para sua vida pessoal quanto para sua vida profissional. Ela comenta que foi numa dessas caminhadas que conheceu seu marido e pai de seus filhos e que ser uma “ambulante obsessiva” – termo usado pela artista- a ajudou ou foi elemento inspirador de algumas obras. Ela narra o passeio que originou suas obras denominadas “Fronteiriços”:

As minhas incursões iam se expandindo a cada descoberta, tornando-se úteis para os meus trabalhos. Em uma delas, ao lado dos depósitos de ferro-velho do morro atrás da Central do Brasil e do Morro da Providência, vi no chão uma gaveta de arquivo usada, de ferro. Tive ali uma espécie de epifania, como numa aparição se manifestando, divina. Surgia na minha frente o que eu sempre procurara, mas nunca soubera nem o que nem como era. 20

A série Fronteiriços, de 2001, de Anna Bella Geiger, é diversa entre si, tendo a gaveta de ferro como ponto comum, mas possui obras como Indiferenciados que evocam pensamentos de naturezas distintas misturados entre si. As gavetas e sua tridimensionalidade trazem o viés escultórico, a aplicação da encáustica propõe uma abordagem pictórica oriunda

19 Ibidem 20 GEIGER, Anna Bella. Artista e Flâneur. Revista O Globo, Rio de Janeiro, 4 out. 2015.

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da pintura, enquanto o desenho surge como um elemento, uma parte do todo. Há histórias diferentes nesse trabalho que reúne saberes distintos, mas que começa a partir de um não saber característico dos deslocamentos no espaço físico, conforme narrou a artista.

Figura 4 - Indiferenciados, técnica mista, 2001, Anna Bella Geiger

Fonte:

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Ela descreve uma revelação como também acontece inúmeras vezes em meu processo descrito neste texto. Tais descobertas servem como disparadores dos processos associativos citados anteriormente. Esta incursão ao desconhecido relatada por Anna Bella, em um processo que envolve deslocamentos, pode acontecer de outros modos dentro dos processos de criação. No caso do pintor Francis Bacon, a viagem ao desconhecido acontece no diálogo entre as telas e o artista. Ele discorre sobre:

Você sabe, no meu caso, toda a pintura – e quanto mais velho fico, mais isso é verdade- é fruto do acaso. Bom, prevejo em pensamento, prevejo a imagem, mas dificilmente ela será executada como fora prevista. Ela se transforma em decorrência da própria pintura. Eu uso pincéis muito grossos, e, por causa da maneira como trabalho, muitas vezes não sei o que a tinta fará, e ela faz muitas coisas que são muito melhores do que se seguissem estritamente minhas ordens. Isso seria obra do acaso? Talvez alguém dissesse que não, porque acaba tornando-se um processo seletivo que começa com algo imprevisto, selecionado para ser preservado. A pessoa é claro procura conservar a vitalidade do imprevisto mas preservando também a continuidade.21

Logo, essas duas maneiras de viajar ao desconhecido, ou de lidar com o acaso, exemplificadas por Anna Bella e por Francis Bacon, são tipos de operações que acontecem nesta pesquisa, visto que me desloco no espaço físico como a primeira e que, durante a produção do trabalho, busco um embate com a materialidade como o segundo. O processo de Anna Bella mostra uma conexão com a Teoria da deriva, enunciada por Guy Debord, na qual ele a propõe como uma técnica ininterrupta de trânsito através de diversos ambientes. Fazia parte dos procedimentos situacionistas:

O conceito de deriva está ligado indissoluvelmente ao reconhecimento de efeitos da natureza psicogeográfica, e à afirmação de um comportamento lúdicoconstrutivo, o que se opõe em todos os aspectos às noções clássicas de viagem e passeio.22

O poeta francês Charles-Pierre Baudelaire, em seu ensaio Le Peintre de La Vie Moderne, publicado em 1863, apresenta o caricaturista Constantin Guys que é um artista classificado como um autêntico flâneur. Um observador que apreende cada detalhe durante seus passeios, acostumado a estar em movimento em meio à multidão. Recolhe as impressões e depois volta para seu estúdio para jogá-las no papel. Este olhar refinado capaz de captar as

21 SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon, a brutalidade dos fatos. São Paulo: Cosac Naify, 1995. 22 DEBORD, Guy. Teoria da deriva. p. 1 Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2016.

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cenas da rua e guardá-las na memória, sabendo que o ato da transposição para o suporte é uma edição, é o que me conecta com esta figura. A relação do flâneur com o tempo é diferente da sociedade na qual ele emerge na segunda metade do século XIX, quando Paris encontrava-se em seu processo de modernização. O ócio do flâneur de Baudelaire tem características aristocráticas remanescentes de um período prévio entre as décadas de 1830 e 1840, segundo o historiador Marco Antonio de Menezes.23 Com as transformações históricas e socioeconômicas, o tempo passa a ser visto como uma mercadoria, a força de trabalho que pode ser vendida em meio ao comércio e à indústria parisiense. O fato do personagem não ter direção nem propósito e vagar por aí não faria sentido naquele momento histórico, pois tal comportamento era associado à preguiça. Anteriormente cultivar o ócio era visto como um luxo aristocrático. Ele estava alheio a velocidade e à mentalidade de um grande centro urbano. Vejo esse tempo empregado nos deslocamentos e na contemplação como um investimento para o processo, pois é uma maneira de exercitar o olhar, além de uma fonte de matéria prima visual. Há uma diferença fundamental entre a postura do flâneur e a minha diante do mundo. A personagem carregava uma melancolia associada à solidão que ele experimentava em meio à multidão. Só observava, quase não interagia, permanecia oculto no mundo. Diferentemente dele, procuro me inserir no contexto pelo qual transito, além de contemplar. Mais adiante, no capítulo 3.Colômbia como experiência artística, apontarei os conceitos da Teoria da Deriva e os aspectos mencionados acerca do flâneur que possuem uma relação com meu processo exemplificados na viagem àquele país.

1.4 É uma questão de se colocar no fluxo

Da perspectiva dos processos criativos, independente se na área da arte ou não, essa busca pelo desconhecido que encaixa ou se adequa à continuidade e à necessidade da realização de um trabalho pode ser elucidada pela descrição do funcionamento do cérebro. O psicólogo norte-americano Daniel Goleman recorre a neurociência para tal e introduz

23 MENEZES, Marco Antonio. O poeta Baudelaire e suas máscaras: boêmio, dândi, flâneur. Revista fato&versões, n.1, v.1, p. 64-81, 2009.

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premissas para se compreender tal operação. O cérebro pode ser dividido em parte superior e em parte inferior:

Nosso cérebro tem dois sistemas mentais semi-independentes, amplamente separados. Um tem grande capacidade computacional e trabalha constantemente, funcionando silenciosamente para resolver nossos problemas, nos surpreendendo com uma solução repentina para raciocínios complexos. Como trabalha além do horizonte da percepção consciente, não enxergamos seu funcionamento. Este sistema nos apresenta o fruto de seus vastos trabalhos como se surgissem do nada, numa profusão de formas, seja guiando a sintaxe de uma frase ou construindo provas matemáticas extremamente complexas.24

Ou seja, quando se está inserido dentro de um processo e se chega a algum resultado inesperadamente, há a sensação de “eureca” que nada mais é do que uma parte do cérebro que trabalha de forma involuntária em favor daquilo que já habita os pensamentos. Há então dois movimentos mentais: o ascendente – mente de baixo pra cima- e o descendente – mente de cima pra baixo. O primeiro se refere ao caminho da mente inferior à mente superior se caracterizando por ser mais veloz em tempo cerebral, já que opera em milissegundos, por ser involuntária e automática, estando sempre ligada, ser intuitiva, operando através de redes de associação, por ser impulsiva, movida pelas emoções, por ser executora de nossas rotinas habituais e guia de nossas ações e por ser gestora de nossos modelos mentais do mundo. Em contrapartida, a mente de cima pra baixo se refere ao caminho da mente superior à mente inferior sendo marcado por ser mais lenta, voluntária, esforçada, capaz de aprender novos modelos, fazer novos planos e podendo assumir o controle do repertório automático em determinados momentos. O que chamo de não saber neste texto está diretamente ligado ao movimento ascendente, haja vista que este sistema analisa o que está no campo de percepção do indivíduo antes mesmo de o deixar saber o que aquele selecionou como relevante para este, acompanhando uma profusão de informações simultaneamente, segundo o autor. Mais algumas observações do trabalho de Goleman sobre a relação dos dois sistemas e, em especial o sobre o próprio sistema ascendente, se tornam necessárias para compreender a relação do processo artístico com a viagem ao desconhecido. Como se encontrou nos escritos de Leonardo Da Vinci a ideia de que arte é coisa mental25, penso que o psicólogo norte-americano apresenta possibilidades de conhecer um pouco melhor a mente, e, portanto, os processos artísticos.

24 GOLEMAN, op. cit., p. 31. 25 DA VINCI, L. Tratado de pintura. Trad. Angel González García. 2. ed.. : Ed. Akal., 1993.

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O ato de estar desenhando ou pintando é para mim rotineiro. Mais desenhar do que pintar. O segundo exige preparação, ordenamento do espaço de trabalho e separação de materiais. Já o primeiro dá pra fazer em qualquer lugar, até mesmo em guardanapos. Essa mobilidade faz com que este seja mais comum na minha vida. Isto posto, para ligar esta frequência do ato com sua automatização. Goleman explica como a medida em que se faz determinada atividade, a mente do indivíduo muda em relação a ela:

Os sistemas ascendente e descendente distribuem tarefas mentais entre eles para que consigamos fazer o mínimo de esforço e obtenhamos ótimos resultados. Conforme a familiaridade torna uma rotina mais fácil, ela passa de descendente a ascendente. Da forma como vivemos essa transferência neural, cada vez precisamos prestar menos atenção – e, afinal, nenhuma atenção-, até que ela se torne automática.26

O autor continua, ressaltando que é necessário estar relaxado e confiante nos movimentos ascendentes, pois mais liberada ficará a mente para ser ágil: “O auge do automatismo pode ser visto quando a expertise gera um bom resultado de atenção sem esforço para uma alta demanda, seja numa partida de xadrez profissional, numa corrida da Nascar ou na elaboração de um quadro a óleo.” No que tange meu processo artístico, desenhar ou pintar correspondem a colocar-se neste estado mental, ou seja, inserir-se num fluxo de trabalho. É como se esta atividade fosse uma espécie de portal para que o que é desenhado passe para o suporte. Mas como o próprio Goleman ressalva, há uma alternância entre este fluxo e as decisões conscientes que também acontecem no decorrer do meu processo. O artista Nuno Ramos comenta o que ele chama de seu método inconsciente:

Você nunca realiza uma imagem, você vai pelo seu método inconsciente que é lidar com materiais, ou com formas ou com operações que você está ali preso naquilo e elas que te guiam, elas é que te levam. Mas é preciso ter um ponto de desejo que a imaginação muitas vezes oferece. Então, as vezes há coisas bestas como um sonho, como uma imagem, como uma palavra, uma frase, alguma coisa assim. Isso é o imaginado, mas entre esse imaginado e o caminho para lá, você tem que dar conta do seu método. E esse método você foi fazendo, ninguém sabe bem qual é o seu método. 27

É relevante acentuar a relação entre lidar com materiais, ou com formas ou com operações com o fato delas guiarem o artista. Isto é algo que identifico como constante durante a execução dos trabalhos. Se elas são capazes de levar o artista é porque estabelecem uma relação, o que chamo de diálogo. O artista e estas circunstâncias listadas.

26 GOLEMAN, op. cit., p. 34. 27 Diverso - Nuno Ramos. Disponível em: . Acesso em: 05 abr. 2016.

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Derrida afirma que “o pensamento é também pensável em um movimento pelo qual se chama a vir, ele chama, ele nos chama, mesmo que não saibamos de onde vem o chamado, o que significa o chamado, ele chama.”28 Ele continua colocando como uma “questão de hospitalidade: o pensamento chama, ele é hospitaleiro em relação a quem vem, justamente.”29 Mesmo com pensamentos não-verbais é possível pensar desta forma, com sugestões as quais o artista é chamado ou incitado. Francis Bacon comenta esta maneira de trabalhar:

E as sugestões. Outro dia, tentando desesperado pintar a cabeça de certa pessoa, usei um pincel enorme, um monte de tinta e comecei a pintar de uma maneira solta, muito solta; no fim, simplesmente já não sabia o que estava fazendo, mas de repente deu um clique e a coisa se transformou exatamente na imagem que eu estava tentando reproduzir. Mas não por causa de uma vontade consciente ou de qualquer coisa ligada à pintura ilustrativa. O que até hoje nunca se analisou é o porquê dessa maneira de pintar ser mais profunda do que a ilustração. Talvez seja porque essa pintura tenha uma existência totalmente particular. Ela vive por conta própria, por isso transmite a essência da imagem com mais profundidade. O artista assim pode expandir-se, ou melhor, diria que ele pode abrir as válvulas do sentimento, e desse modo pode remeter o espectador à vida com mais violência.30

O artista americano Richard Diebenkorn é um representante da segunda geração do Bay Area Figurative Art, movimento que aconteceu na costa oeste dos Estados Unidos durante o 1950 e 1965. Enquanto em Nova Iorque, a pintura abstrata está em alta principalmente através de artistas com suas produções vinculadas ao expressionismo abstrato, na costa do Pacífico, um grupo de artistas retoma a figuração, usando os mesmos conceitos revistos no leste. Há uma preocupação com aspectos intrínsecos ao campo da pintura que também eram abordados por artistas como De Kooning, Arshile Gorky, Hans Hofmann, Adolph Gottlieb e Robert Motherwell como o gesto, com a expressividade da pincelada e questões de harmonização cromática. “The Royal Academy of Arts” disponibiliza em seu site um texto intitulado “Dez notas para mim mesmo quando começar uma pintura” que corresponde a anotações feitas nos últimos anos de vida de Richard Diebenkorn. A íntegra das notas está anexada ao trabalho, entretanto destaco três delas que fazem conexão com os relatos de Nuno Ramos e de Francis Bacon. A primeira diz: “Tente o que não é certo. Certeza pode vir ou não depois. Isto poderá, então, ser uma valiosa ilusão”. A sétima: “Erros não podem ser apagados, porém, te tiram da sua posição atual” e a nona: “ Tolere o Caos”. As três

28 DERRIDA, op. cit., p. 75. 29 Ibidem. 30 SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon, a brutalidade dos fatos. São Paulo: Cosac Naify, 1995. p. 17.

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–como todas as dez- são observações quanto a postura do artista diante da execução de seu próprio trabalho, mas em especial, tem relação com a condição do viajante que não possui um caminho pré-definido. Tentar o que não é certo não significa ir por um caminho errado, significa que não existe caminho ideal e que seja qual for aquele que o artista seguir em seu processo haverá erros e acertos e do próprio será exigido que ele saiba lidar com eles. Para tal é preciso coragem para se manter trabalhando, tendo uma autocrítica, mas ao mesmo tempo não se permitindo um julgamento excessivo que tenha possibilidade de paralisá-lo. Por isso é relevante atualizar sempre sua posição, mover-se sempre e não se abalar com o que seria considerado um erro de percurso. Basta lembrar que o percurso é criado durante o caminho. Para se tolerar o caos é preciso uma dose extra de coragem e principalmente paciência.

Figura 5 - Seawall. Óleo sobre tela, 1957. Richard Diebenkorn

Fonte:

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Figura 6 - Woman outside. Óleo sobre tela, 1957. Richard Diebenkorn.

Fonte:

Volto para o surfe, mas desta vez para o surfe de ondas grandes para tentar criar uma imagem semelhante. Em meio a um mar de ressaca, revolto, extremamente mexido, mas que ainda assim conserve boas ondas, cabe ao surfista ter calma e paciência para se deslocar nos momentos mais favoráveis. A coragem do surfista aqui não significa ter o peito aberto e pronto para qualquer adversidade e sim confiar na sua capacidade de se colocar em fluxo. O entorno perigoso pede que se redobre a atenção sobre as correntes, pois seria ignorância e não coragem fazer um esforço contra o fluxo natural do mar. Este não perdoa. É muito mais forte do que a musculatura humana e um desperdício de energia contra a corrente pode significar uma morte por afogamento. Na pintura, não se trata de uma morte, mas de ter a capacidade de resiliência diante de situações adversas na relação com o suporte. Aos poucos é possível ir dando um ordenamento.

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Busco também referências metodológicas do desenho e da pintura automática. Ambos vem do conceito de automatismo, descrito por Breton no Manifesto do surrealismo e na revista La Révolucion Surréaliste como a prática artística surrealista mais importante:

Surrealismo.S.m. Automatismo psíquico puro, por meio do qual alguém se propõe a expressar- verbalmente utilizando a palavra escrita, ou de qualquer outra maneira- o verdadeiro funcionamento do pensamento, na ausência do controle exercido pela razão, livre de qualquer preocupação estética ou moral.31

Como já mencionado, em alguns momentos opto por um afastamento de controle, visando a fluidez e a expressividade da linha, sendo possível fazer um paralelo com o conceito de automatismo psíquico puro, embora este conceito que não considero ser atingido, já que ele lida com a ausência total de controle. A definição de Breton serve como programa para a arte surrealista que deve ter origem no encadeamento das primeiras palavras ou imagens que ocorressem à mente. Segundo Bradley, Andre Masson foi o mais bem sucedido dos artistas dentro desta proposta, pois teria descoberto a capacidade de retirar um traçado do inconsciente direto para o papel, só depois permitindo sua consciência de dar formas às linhas e manchas. Ela afirma que “Masson identificava nos desenhos automáticos uma semelhança entre o desenho e a escrita” 32 , fazendo uma analogia à caligrafia automática, em que a caneta ou lápis correm a toda a velocidade. Roland Barthes, no catálogo da exposição Sémiographie d`Andre Masson, na Galeria Jacques Davidson, em 1973, ressalta que o traçado do artista é uma prática obsessiva e única, sendo indiferenciado o grafismo desenhado do escrito. Para o teórico, o pintor ajuda a compreender que a verdade da escritura não se encontra nas mensagens, mas sim na mão que apoia, traça e se dirige, isto é no corpo que vibra (que goza). 33 A pintura automática, em princípio, teve dificuldades de ser executada pela própria natureza do meio. A utilização da tinta óleo exige uma certa destreza com o material que o lápis e o nanquim não exigem tanto. Logo, os primeiros resultados pareciam traduções de pinturas à óleo dos desenhos automáticos como se fossem fruto de um trabalho consciente. Bradley comenta a solução dada por André Masson para esse problema conceitual:

A pintura com areia foi uma técnica muito bem-sucedida, descoberta e praticada por Masson. Ele pingava ou espalhava cola ao acaso sobre um pedaço de papel ou uma tela, jogava areia sobre cola e depois servia-se das manchas de areia resultantes

31 BRETON, André apud BRADLEY, op. cit., p. 21. 32 BRADLEY, op. cit., p. 24. 33 BARTHES, op. cit., p. 140.

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como inspiração pré-pictórica. Tal como as primeiras manchas no desenho automático, a cola e a areia forneciam-lhe um ponto de partida infenso tanto à sua racionalidade como à sua vontade artística.34

Vejo algo em comum entre esse método de Masson e a base para a imagem, definida como inspiração pré-pictórica, nos termos usados por Fiona Bradley, como metodologia, de que me apropriei para minha pintura através do uso das bases serigráficas impressas sobre papel como técnica. Na imagem abaixo, a pintura é feita com tinta acrílica sobre a serigrafia, aproveitando, inclusive, as falhas remanescentes do processo de impressão.

Figura 7 - Árvore-mãe, técnica mista sobre papel, 29x42cm, 2013. Bernardo Magina

Fonte: O autor, 2013.

Segundo Bradley, a diferença entre os dois tipos de pintura possíveis no movimento surrealista: “Na pintura automática, supunha-se que as justaposições inesperadas da imagem surrealista se fixassem na tela de maneira natural e espontânea. Na pintura de sonhos, a imagem era conscientemente escolhida e pintada com realismo.”35

34 BRADLEY, op. cit., p. 22. 35 BRADLEY, op. cit., p. 33.

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Meu processo não se restringe, mas faz uso das duas maneiras surrealistas de criar visualmente – automática ou de sonhos -, evidenciando uma alternância entre o traçado "inconsciente" – ou sem um cálculo premeditado – e um trabalho "consciente", quer dizer, de uma construção espacial mais meticulosa e mais evidentemente deliberada. Apesar de não haver uma ordem pré-definida, elas não ocorrem simultaneamente. Posso usar linhas criadas a partir do procedimento automático como elementos e a partir dela inserir outras memórias ou fragmentos das andanças ou desconstruir algumas destas imagens colocadas com um procedimento inverso. Quando as formas e cores, mesmo que ainda próximas da abstração começam a indicar alguma espécie de figuração que me faça sentido no momento da execução, não hesito em trazer à tona um elemento figurativo, por exemplo. É um processo associativo que pode deixar margem para incorporar fatores os quais não sabia que poderiam acontecer, surpreendendo-me. Além disso, os afastamentos para observação do trabalho, ou intervalos de entradas, são momentos em que uma lógica advinda da noção de paisagem entra em ação no processo, ajudando a configurar o espaço plástico. Isto resulta em imagens híbridas com pedaços cognoscíveis e outros nem tanto, permitindo uma ambiguidade de possíveis significados que, segundo Bradley, é uma marca registrada da poética surrealista36. Estas formas que vão sendo esculpidas, ou estas paisagens que vão sendo descobertas traço após traço, mancha após mancha ou pincelada após pincelada tem uma associação direta com a memória.

36 BRADLEY, op. cit., p. 26.

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2 DESDOBRAMENTOS

Em junho deste ano, participei de duas exposições em que os limites conceituais e de formatação do trabalho foram testados. “Antígona como Imagem” e “Antígona e a outra coisa” realizadas na Galeria Gustavo Schnoor, na UERJ, e na Galeria Graphos S.A. Nessas mostras, meus trabalhos de desenho geralmente realizados em formatos A3, A4 ou similares foram desafiados a se adequar aos espaços expositivos, ganhando uma nova fisionomia. Foram realizados em nanquim sobre papel de arroz o que para mim já era um novo suporte e que de fato se comporta de maneira diferente dos outros papéis ao absorver este tipo de tinta. Mas, foi no processo de ampliação do trabalho que o maior desafio apareceu. Primeiramente, minha expectativa em aumentar os desenhos não envolvia manter sua escala proporcional ao novo suporte, mas manter sua escala de produção a fim de conservar o gestual possível de ser realizar com bico de pena em posição horizontal. Ou seja, o crescimento ocorreria em relação ao tamanho do suporte apenas. Utilizei um rolo de papel de arroz de 46 cm x 25m e nos dois primeiros testes cortei o papel em 125 cm, obtendo suportes de 46 cm x 125 cm. Como já era de praxe nos meus desenhos, executei-os com a maior lateral servindo como comprimento e a menor como altura, configurando a estrutura horizontal retangular. Os primeiros testes já estavam em consonância com a proposta curatorial, todavia o rolo de papel de arroz e sua continuidade me incitaram a aumentar o tamanho do suporte e a não cortá-lo antes de começar o desenho. Paralelamente a isto, fiz uma visita técnica à Galeria Gustavo Schnoor onde ocorreu a primeira exposição e percebi que não seria produtivo em termos de otimização do espaço expositivo crescer o trabalho horizontalmente sem esta mensuração do tamanho do corte. Principalmente porque a convivência com os trabalhos dos outros seis artistas que participaram da exposição coletiva ficaria difícil já que todos, exceto um deles não tinha relação com as paredes. Pensei, então, em alongar o suporte na vertical, fazendo o trabalho da mesma altura do pé direito da galeria e tendo a largura de acordo com o formato padrão do papel: 46 cm. O pé direito da galeria tem 2,93m, entretanto durante o processo produtivo da peça, fui desenhando e me preocupando com o ritmo dos traços e os intervalos entre áreas brancas e as áreas interferidas com o uso do preto. Quando pareceu-me ter concluído aquele trecho, medi o trabalho e ele já tinha 3,40m de altura. Não achei cabível cortar uma parte do desenho, justamente por interferir em sua unidade. Aquilo se apresentou de modo indivisível.

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Como a exposição na Galeria Graphos teve início apenas onze dias após a vernissage da UERJ, a produção de trabalhos ocorria simultaneamente. Na Graphos, o espaço para ser ocupado pelos sete artistas era bem maior e de acordo com as particularidades dos trabalhos de cada um, me foi cedida uma parede com 7,32m de comprimento e pouco menos de 3 metros de altura disponível, pois as luminárias tapariam a visão do trabalho caso ele atingisse a altura do pé direito. Para lá decidi então manter o formato vertical, mas criar uma sequência de desenhos que pudessem ser dispostos na parede. Foram seis desenhos de 46cm x1,80m expostos lá. Isto posto para colocar que a questão da montagem foi fundamental para entender a relação do objeto com o espaço físico das galerias. Em nenhum dos dois casos foram apenas desenhos em formatos retangulares chapados contra a parede. Pelo menos depois de prontos, não conseguia imaginá-los arranjados na galeria individualmente. Cada exposição formava um conjunto que tinha uma relação formal de apresentação dos desenhos. Na UERJ, foram apresentados a maior peça de 3,40m x 0,46m e mais uma menor de 0,46m x 1,80m. Para pensar em como mostrar a maior, foi preciso alterar também sua natureza que passou a dialogar mais explicitamente com o espaço expositivo, pois passou a assumir um formato tridimensional. Os pregos que sustentavam as presilhas foram colocados à 2,50m do chão, prendendo o topo do objeto. A parte inferior foi colada no chão com uma fita discreta por baixo do papel. Este caimento formou um abaloado que trazia o desenho para dentro da galeria, na direção do espectador. O trabalho menor ficou preso apenas no topo, na mesma altura – 2,50m- do maior. Com a ventilação da sala ambos pareciam respirar, adquirindo movimento constante de acordo com a saída de ar do ar condicionado. Tive a sensação de ver meu trabalho funcionando dentro da lógica do campo ampliado – termo cunhado pela teórica norte-americana Rosalind Krauss, que potencializa as questões relacionadas ao entendimento das categorias tradicionais, abrindo possibilidades de reflexão sobre os novos modos de produção de arte que vinham surgindo desde os anos 1970s. Krauss explica a prática do artista no campo ampliado:

não é definida em relação a um determinado meio de expressão –escultura- mas sim em relação a operações lógicas dentro de um conjunto de termos culturais para o qual vários meios- fotografia, livros, linhas em parede, espelhos ou escultura propriamente dita – possam ser usados. 37

37 KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Revista Gávea, n 1, p. 136, 1984.

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Figura 8 - Exposição Antígona como imagem, Galeria Gustavo Schnoor – UERJ, junho de 2015.

Fonte: O autor, 2015.

Reconheci que algo novo acontecia com meu trabalho, que ele ganhava uma qualidade de objeto, de tridimensionalidade, novas relações com o espaço físico a partir do uso do rolo de papel de arroz solto no espaço, do desenho fora da moldura. O uso do papel de arroz potencializou o trabalho e só foi possível pela familiarização com o material e o reconhecimento de seus limites através de tempo de trabalho com o mesmo.

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Na Galeria Graphos, a montagem dos seis painéis de 46cm x 1,80m também foi feita de modo que eles criassem uma unidade. A ideia é que eles também fossem trabalhados presos tanto em cima quanto embaixo. Criaram, então uma relação diferente com a parede, fugindo um pouco da noção de pendurar os trabalhos, pois lado a lado, podiam ser lidos como uma só sequência. É claro que eles também poderiam ser vistos individualmente e os detalhes e contrastes dos desenhos induzem a isto, mas se observado com um mínimo de distância, percebe-se que cada retângulo de papel de arroz é também um traço que risca a parede. Uma questão rítmica referente a ocupação espacial surge: a ausência de um trabalho no lugar onde estaria o sexto gera uma dúvida quanto sua integralidade. É apenas uma pausa.

Figura 9 - Montagem da exposição Antígona e a outra coisa, Galeria Graphos. Rio de Janeiro.

Fonte: O autor, 2015

Na UERJ, a leveza do papel e suas dimensões acrescentaram, de fato, a qualidade tridimensional que foi agregada aos desenhos. Em ambos os casos, a espacialização dos trabalhos foi central nas decisões. Donald Judd, em seu texto “Objetos específicos”, explica que seu afastamento da escultura e da pintura tradicionais se dá por um descontentamento em relação as limitações desses meios que chamava de continentes.

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Estou usando o espaço real [actual], porque quando estava fazendo pinturas não conseguia encontrar um jeito de evitar uma certa dose de ilusionismo nas pinturas. Achava que essa também era uma qualidade da tradição ocidental e eu não a desejava. 38

A pintura contemporânea mostrou outros caminhos para continuar se desenvolvendo no suporte bidimensional, mas o que se destaca daqui é que para o processo artístico dele não servia mais, motivando-o a buscar novas saídas. Judd prossegue no texto, apresentando uma série de artistas norte-americanos que buscaram a espacialização como caminhos para suas pesquisas artísticas. Para ele, “os novos trabalhos obviamente assemelham-se mais à escultura do que à pintura, porém estão mais próximos da pintura.”39 Refere-se a tridimensionalidade de objeto que os trabalhos passam a ter, mas reconhece que o pensamento de ordenação espacial é mais próximo do campo pictórico. Dos artistas citados por ele, há os europeus Castellani e Philip King, os norte-americanos do oeste como Sven Lukin e Kenneth Price, além dos trabalhos nova-iorquinos de Frank Stella, Robert Morris dentre outros que interveem no espaço real, fazendo um desenho com objetos no espaço expositivo. Este passa a funcionar como suporte para disposição física da materialidade da obra. Judd menciona que alguns destes artistas vinham fazendo tanto trabalhos tridimensionais quanto pinturas. Em meu trabalho, há mais de uma funcionalidade para o papel de arroz: ele é ao mesmo tempo o tradicional suporte e o traço. Intervir no espaço real com o objeto é o meu ponto de contato com esses artistas citados. Acontece na medida em que o desenho se materializa no espaço real. Donald Judd aponta para as inúmeras possibilidades dos trabalhos tridimensionais:

Obviamente, qualquer coisa em três dimensões poder ter qualquer forma, regular ou irregular, e pode ter qualquer relação com a parede, o chão, o teto, a sala, as salas e o exterior, ou absolutamente nenhuma. Qualquer material pode ser usado, como é ou pintado.40

Há uma obra de Sven Lukin e outra de Robert Morris que possuem a relação de ocupação do espaço real em comum com o trabalho que apresentei na UERJ, considerando a sensação física experimentada pelo espectador ao transitar pelo espaço arquitetônico em relação ao objeto de arte disposto no ambiente da exposição.

38 JUDD, Donald. In: FERREIRA, Gloria; COTRIM, Cecilia. Escritos de artistas 60/70, p. 128. 39Ibidem, p. 100. 40Ibidem, p. 103.

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Figura 10 - Sem título. 1965, Sven Lukin.

Fonte:

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Figura 11 - Sem título, 1969, Robert Morris.

Fonte:

Vejo a grande distância que me separa da geração minimalista americana – e certamente a experiência da espacialização do meu desenho foi o que me fez mencioná-los aqui. A obra de Morris acima foi apresentada na exposição Anti-Ilusion, no Whitney Museum of American Art, em 1969. Com esta série, o artista transcendeu algumas questões conceituais dentro do próprio minimalismo como a concretude dos objetos de arte, já que opta pelo uso do feltro. Tal escolha transcende o acabamento industrial das peças anteriores feitas por seus contemporâneos. A influência da gravidade sobre este trabalho é um fator importante, pois ajuda a moldar sua materialidade no espaço. A utilização que faço do papel de arroz na UERJ se assemelha ao uso que Morris faz do feltro industrial nessa obra. A maleabilidade dos materiais permite este tipo de intervenção no espaço. Vejo-me aqui vivendo o processo que procuro descrever desta dissertação, a do não saber, e me relacionando bem mais de perto com o conceito do desenho no campo ampliado como o vivem meus contemporâneos Carolina Ponte, Daniela Antonelli, Malu Saddi e Pedro Varela que também trabalham com um desenho expandido, por exemplo, como pude ver na exposição Desenho no Campo Ampliado, em 2011, no Espaço Cultural Municipal Sérgio , no Rio de Janeiro, com curadoria de Noeli Ramme.

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Todos os trabalhos que participaram da mostra tem em comum um desenho expressivo e autônomo sem a função existencial ser um esboço e se desenvolvem além dos formatos tradicionais de papel. A curadora destaca no texto de apresentação da exposição que haveria uma valorização extrema do gesto por parte dos artistas em cada trabalho e uma temporalidade lenta para sua cuidadosa execução. Identifico-me com este procedimento quando estou desenhando com nanquim, apesar de em determinados momentos fazer traços e gestos rápidos, no geral, praticamente um dia para terminar um trabalho em formato A3, por exemplo. Ela também ressalta uma característica que está presente em meu processo criativo que é o fato de haver figuração em alguns trabalhos, embora não sejam representações. São os fragmentos de memória que me refiro no capítulo anterior. E, por fim, Noeli comenta a transformação do trabalho quanto às dimensões do suporte: “Há ainda uma busca de ampliação do espaço gráfico até o ponto em que este encontra o espaço real. Isso significa uma ampliação da bidimensionalidade até o volume, quando o desenho transforma-se em escultura, maquete ou objeto.” Este contato com o externo, este diálogo com o espaço real foi o grande legado para meu processo de criação oriundo dessas experiências artísticas. O desenho pôde assumir sua autonomia e se impôs aos formatos clássicos que antes utilizava, abrindo novas perspectivas de espacialização do trabalho nas próximas experiências. Comentarei dois trabalhos do artista Pedro Varela, sendo o primeiro uma pintura sobre tela, continuando na parede, e a segunda somente na parede. A curadora Paula Braga assinala que Varela submete os espaços a um processo de urbanização onírica em texto disponível no site do artista.41 Espalha também seu mundo imaginário através de vinil adesivo colorido sobre vidros, papéis, paredes, chãos e outros suportes que interessem a ele. Meu ponto de contato com Varela é que temos um desenho expansivo que não se contenta com um formato tradicional, convive com ele, mas pede sempre algo novo, algum suporte novo onde ele tenha que se transformar, onde ele tenha que se relacionar de outra forma com o espaço real. Escolhi propositalmente duas pinturas de Varela que tendem mais para o campo gráfico do que para o pictórico, justamente para acentuar esta necessidade expansiva quanto ao desenho. Ele é um exímio pintor e sabe utilizar as cores para construir espaços como faz bem em outros quadros e chega até a colocar cores no chão desta intervenção, mas esta expansão da cor para o espaço real analiso mais adiante no texto quando falarei sobre as pinturas murais.

41 Disponível em: .

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Há duas maneiras de interagir com este tipo de desenho que gerarão uma percepção geral deles: vê-los de perto ou de longe. De longe, os trabalhos sugerem suas formas expansivas e sua ocupação espacial. Ao passo que o espectador se aproxima, percebe melhor os detalhes e recebe uma série de outros estímulos, criando percursos extras para o olhar em relação ao trabalho. Isto resulta em uma outra temporalidade de contato com a obra.

Figura 12 - Vista da instalação de Pedro Varela na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, durante a exposição Ficções. 2015.

Fonte: pedrovarela.com

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Figura 13 - Instalação de Pedro Varela no Ateliê 397, em São Paulo, 2011.

Fonte: .

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3 COLÔMBIA COMO EXPERIÊNCIA ARTÍSTICA

Falo aqui do que significa a recente viagem à Colômbia como experiência artística. Não existe a pretensão de fazer um diário de bordo, relatando como foi dia após dia, mas tentar mapear os aspectos da cultura experimentada naquele território e apontar possibilidades de diálogo com o meu trabalho. O objetivo principal desta viagem foi o encontro com o desconhecido como sugere o nome desta dissertação. Fugir ao máximo de vivências padronizadas e uma busca pela singularidade local. Derrida define este tipo de travessia, diferenciando-a das viagens oferecidas por agências ou outros stackholders42 do mercado de turismo:

a viagem ou a travessia, o que quer dizer experimentar rumo a, através da ou desde a vinda do outro na sua heterogeneidade mais imprevisível , trata-se da viagem não programável, da viagem cuja cartografia não é desenhável, de uma viagem sem design, de uma viagem sem desígnio, sem meta e sem horizonte. A experiência ao meu ver seria exatamente isso. 43

Como já mencionado no primeiro capítulo, a noção de deriva proposta por Guy Debord também se afasta da ideia de um passeio ou de uma viagem. Entretanto, apesar de ver os territórios como áreas para me colocar à deriva, meus deslocamentos nesse país não são de um caráter totalmente aleatório. Passagens de ida e volta, dois voos internos e algumas cidades já haviam sido pré-definidos por questões geográficas e burocráticas. 44Cheguei em Bogotá, depois segui para Medellín, ainda na região montanhosa no centro do país. Voei para Santa Marta, no Norte, cidade mais próxima do Parque Tyrona. Posteriormente segui mais a leste pela rodovia Transcaribe até a pequena cidade de Palomino. Por fim, retornei pela mesma estrada, indo mais algumas horas na direção oeste até Cartagena. Debord coloca que a parte aleatória do trabalho é pequena se comparada ao todo, já que há correntes constantes, pontos fixos e multidões que dificultam o acesso a determinadas zonas. Há uma noção dos espaços deveras transitáveis ou não, mesmo sendo estrangeiro por lá. Sabe-se das limitações impostas principalmente por questões sociais relativas à violência urbana e zonas de risco. No centro de Bogotá, por exemplo, fui avisado por um

42 “Players” ou agentes de determinado nicho de mercado. 43 DERRIDA, op. cit., p. 79. 44 É necessário ter passagem de entrada e saída do país e ter uma estadia pré-agendada para passar pela migração.

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policial que após determinada rua, não estaria mais seguro sem a presença de um local. Nada muito diferente da minha cidade natal, o Rio de Janeiro, mas aqui como morador, mesmo quando estou deambulando a deriva, tenho este cálculo pré-determinado de áreas, pelas quais evito ou me desloco com mais atenção. De fato, ele nunca é exato, pois os conflitos e os perigos urbanos são móveis e não deixariam de ser em qualquer outra cidade, a questão é estar atento ao entorno, sem permitir que isto funcione como um bloqueio para o ato de se deixar levar. “ O terreno apaixonadamente objetivo em que se move a deriva deve definir-se ao mesmo tempo de acordo com seus próprios determinismos e com suas relações com a morfologia social.”45 A deriva como descrita no Manifesto Situacionista se limita a percursos reduzidos e geralmente repetidos no dia-a-dia. Liga-se às atividades cotidianas e às zonas da cidade onde ocorrem e, deste modo, funciona como um instrumento de pesquisa urbanística capaz de trazer o acaso como um fator importante. Debord anuncia que o acaso na deriva é diferente do acaso no passeio, pois na deriva não se ignora o contexto da caminhada. A deriva tem um caráter urbano que na medida do possível conservo em meu trabalho, mas conforme já relatei no primeiro capítulo, utilizo-a também para cruzar outros tipos de ambientes e também não me limito a estar nesta condição somente durante os percursos cotidianos. No caso específico desta viagem, é até possível criar um pequeno mapa de afetos de locais pelos quais mais transitei, perto de onde dormi, por exemplo, mas de fato pelos quinze dias de duração, a ideia foi deslocar esta técnica para uma série de encontros com lugares e pessoas das mais diferentes ordens possíveis. A própria ideia do flâneur e da deriva não tem uma conexão óbvia com uma viagem em outro território. São ideias oriundas de um desbravar urbano com um intuito de conhecer melhor onde se vive. No meu caso, além desta aproximação com o entorno, destaco o olhar atento para os detalhes e a postura de se colocar à disposição do acaso, de se colocar à deriva. Para mim são válidas ambas modalidades de trabalho: posso fazer isto em minha cidade natal ou escolher um outro terreno para me deslocar. Devido à origem urbana, há observações feitas tanto sobre a figura do flâneur quanto sobre a Teoria da Deriva que são bastante específicas. Por exemplo, para Debord, a duração média de uma deriva é o mesmo que o intervalo de tempo compreendido entre dois períodos de sono, advertindo que a luz do sol faz bem para a atividade. Assim como para o flâneur: “é durante o dia que os aspectos mais característicos da modernidade tendem a revelar-se; é

45 DEBORD, GUY. Teoria da deriva. Revista Internacional Situacionista, 1958.

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quando a multidão se refaz , se consolida e a máquina a vapor põe-se novamente a produzir em larga escala para abastecer a cidade faminta de significados.” 46 Mas se nota que posteriormente outras figuras associadas a flânerie passam a deambular também pelas noites como, por exemplo, o cronista João do Rio. Para meu processo, especialmente para a condição de viajante, não determino o horário, visto que considero a observação presença constante em todos os momentos possíveis. Claro que em especial durante os deslocamentos, mas quaisquer detalhes são captados, se marcantes. Em Medellín, encontrei condições propícias para o deslocamento com a rede de metrô que conecta toda a cidade e as ramificações com ônibus. Caminhei por muitos bairros, pois era só voltar para o metrô que é construído em cima de um rio homônimo à cidade que a corta no meio. Pude conhecer um pouco do ritmo de vida local. Em Bogotá era mais difícil se deslocar entre os bairros, mas isso me fez gastar mais tempo andando a pé no interior deles. Assim foi possível conhecer de um modo um pouco mais íntimo não só o lugar, mas também as pessoas. Entrar nos estabelecimentos em que os moradores vão e receber dicas de programas que eles mesmos gostam de fazer. Bogotá é uma das capitais mundiais do grafite, mas não esperava ter a epifania que tive diante das pinturas murais que tomavam a cidade, dos mais variados tamanhos, estilos e vertentes. Não conhecia nem os atores nem a cena da arte de rua local, mas fui me deparando com trabalhos que foram guiando meu olhar e a caminhada. Há uma força muito grande do grafite também na cena carioca e na paulista, mas a maneira como as pinturas vão se expandindo sobre determinadas áreas da cidade de Bogotá, principalmente próximo a estação de Las Águas, é particularmente impressionante. Tomam a arquitetura e mobiliários urbanos de épocas distintas, criando grandes áreas de pintura. Há um refinamento geral no uso da cor muito intrigante e que contribuiu para minha forte identificação com o que passei a ver como autênticos murais.

46 PASSOS, GOUVÊA, TOSTI e POLITO.

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Figura 14 - Grafite na Autopista Norte, em frente a Estação de Toberín. Yurika MDC. Bogotá, 2011

Fonte:

Dentro das grandes cidades a exuberância da natureza já chama bastante atenção, nas áreas mais distantes dos grandes centros e menos urbanizadas, destaca-se mais ainda. Há grafites figurativos que utilizam uma iconografia referente às florestas e à cultura indígena, evidenciando uma conexão de seus autores com questões históricas e geográficas locais. A presença da cultura pré-colombiana é visível não só nos murais como também no vestuário, nas propagandas e nas Instituições como o Museu del Oro e na Escuela de Artes y Ofícios Santo Domingo. Colombianos de diferentes classes sociais e gêneros utilizam as bolsas Wayu em todas as cidades que passei, por exemplo.

Figura 15 - Grafite no bairro de La Candelaria, Bogotá. CABZ.

Fonte:

O país reserva lugares que de fato parecem intocados pelo homem como o Parque Tyrona, no norte, uma reserva ambiental, mas o controle do Estado e as inúmeras regras de

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circulação fazem lembrar que aquela paisagem é extremamente controlada. Mesmo assim, lancei-me à deriva neste espaço. A natureza ali certamente era imponente e era preciso cuidados nas caminhadas, pois havia animais selvagens no Parque. Trajetos com muita diversidade de formas e cores presentes tanto na fauna quanto na flora da floresta equatorial. Mais para o nordeste do país, visitei uma pequena cidade chamada Palomino, indicada por um americano radicado na Colômbia que conheci em Bogotá. A ideia era me aproximar o máximo possível de vilarejos calmos com mais influência da cultura pré- colombiana do que da comunicação nacional e transnacional. Inicialmente a meta era ir até Cabo de La Vela, mas não havia tempo hábil para isto em virtude da passagem de volta para o Brasil. Palomino fica situada no estado de Sierra Nevada com a presença de muitas tribos que ainda residem nas florestas por onde pude caminhar. Essas duas experiências me fizeram entrar em contato com a cultura local e com a natureza de uma forma mais intensa. Esta é plural, instigante e policromática como vários dos grafites feitos nas grandes cidades.

Figura 16 - Grafite no Centro Histórico de Cartagena. Yurika MDC

Fonte:

O artista Yurika MDC é um exemplo da diversidade da cena da arte de rua colombiana, pois produz trabalhos bastante distintos entre si. O grafite em frente à Estação de Toberín está relacionado com o estilo nova-iorquino das décadas de 1970 e 1980, inicialmente realizados nas galerias e nos vagões do metrô. Por lá, os pseudônimos grafitados eram retirados de quadrinhos undergrounds ou de seus próprios nomes e vinham seguidos do

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número de sua rua ou de um índice de filiação ou de sua dinastia.47 Os participantes eram jovens moradores de regiões de menor poder econômico e geralmente negros ou porto- riquenhos. Foi uma atuação de caráter totalmente transgressor, sendo inclusive reprimida pela polícia. GASTMEN E NEELAN (apud Cantanhede48) chamam o período entre 1971 e 1975, em Nova Iorque, de mágico, pois se percebe que “a escrita do grafite cresceu das simples assinaturas e figuras desenhadas para maravilhosos e coloridos murais tipográficos.” No trabalho realizado em Cartagena, Yurika MDC se afasta da iconografia dos quadrinhos, fazendo uma menção à fauna local. Há outros grafiteiros que mesclam esses estilos diferentes e outros que até abdicam da figuração totalmente. Eles me fizeram repensar a relação das imagens que crio com o espaço público, visto que entendo meus trabalhos como fragmentos de memória que são editados dentro dos contextos específicos das pinturas e dos desenhos. A rua sempre teve o papel de fonte no meu processo. Diante destes murais, decidi que ela passaria a ser suporte também. Esta decisão foi fruto desta jornada que não seria exatamente uma flanagem contemporânea, mas que tem um pouco do espírito deambulante do flâneur. Segundo João do Rio, “ flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e contemplar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. É ter a distinção de perambular com inteligência.”49 Vagabundo chega a ser relativo, pois o próprio João do Rio escreveu bastante e outros artistas como o pintor Paul Klee tinham como hábito caminhar por aí, observando. Para o artista “a contemplação é uma revelação.” 50 Nesse ponto, a questão do não saber é exemplificada quanto ao exercício do olhar, haja vista que se há uma revelação, algo previamente desconhecido vem à tona.

47 Exemplo: Taki183 - nome Taki, morador da rua 183. 48 p. 19 - CANTANHEDE. Rosane. Grafite/pichação: circuitos e territórios na arte de rua– 2012. 49 RIO, João do apud PASSOS; GOUVÊA; TOSTI; POLITO 50 Paul Klee. O diário de um artista. Disponível em: .

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4 O ESPAÇO EXTERNO COMO LUGAR DA PINTURA

Antes de entrar nestas questões de pintura propriamente ditas, há algumas observações quanto a natureza do processo a serem pontuadas. Destaco a mudança do local do ateliê. Antes acostumado a imersões dentro de um ambiente fechado e controlado, tive que me adaptar e passar a lidar com as interferências urbanas. Há interações inesperadas com os transeuntes e reações das mais diversas: desde conversas até tentativas de furto, narro isto apenas para dizer que não é possível se concentrar somente na pintura e esquecer do entorno. Há também a iluminação e as questões climáticas. A luz do dia se mostra mais propícia para o tipo de pintura que realizo, logo, estipulo meus turnos de pintura de acordo com ela e com a previsão meteorológica, visto que em dias de chuva não é possível pintar, pois a tinta é solúvel em água e precisa secar sobre a superfície para aderir. Além disso, a condição para o manuseio dos materiais piora, visto que cada muro, devido ao seu nível de porosidade, exige uma diluição específica da tinta e as preparo no local. No desenho, não utilizo nenhuma espécie de marcação prévia no suporte, já na pintura utilizo uma metodologia chamada de trama. Não é exatamente um esboço, pois apesar de funcionar como uma guia, não sigo as linhas de maneira restritiva, não preenchendo simplesmente os espaços com cor. Tem este nome justamente por ser um emaranhado de linhas resultantes da sobreposição de silhuetas que saem da memória para o suporte, gerando novas áreas a partir de seus entrecruzamentos. É feita com tons claros para que possa ser sobreposta por áreas de cor e para que não apareça no resultado final – a menos que posteriormente decida deixar propositalmente. O importante aqui é que as áreas delimitadas estão sempre sujeitas a serem alteradas enquanto a pintura é feita. O desenho aqui exerce influência, mas não domina a pintura. A trama tem uma origem relacionada com o cubismo. Os diferentes ângulos captados simultaneamente em um mesmo ato de olhar se mostram adequados ao fragmentado mundo moderno em que o movimento emergiu. Para mim, interessa-me a estética do fragmento, pois deste modo, articulo minhas memórias, que não são ângulos distintos de um mesmo objeto. O uso que faço desta grade, vai ao encontro do que o antropólogo argentino Nestor García Canclini51 propõe para o grafite como uma versão artesanal do videoclipe: um dispositivo de reprodução contemporâneo transtemporal, reunindo melodias e imagens de

51 CANCLINI, García Nestor. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2006.

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várias épocas e citando fatos fora de contexto. Além disto, ele menciona que a divisão de um muro por diversos autores contribui para o ritmo fragmentado do videoclipe. Penso o trabalho a partir de percepções distintas: o registro em si não é tão relevante quanto a multiplicidade e a diversidade de pontos e momentos de vista. É uma tentativa de somar recortes, uma vez que reúno imagens de momentos diferentes como uma maneira de contar histórias, de mostrar múltiplas facetas que compõem os territórios e suas vivências. Ainda no campo do desenho, a maneira como ele se relaciona com o muro se apresenta como uma primeira escolha de trabalho. Diferente de uma tela ou um papel em branco, o muro ou suporte público já tem sua história prévia. Há muros pintados de maneira monocromática, alguns possuem relevos determinantes para sua morfologia, enquanto outros tem pichações ou decalques impostos pelas intempéries climáticas. Sempre busco inserir a trama na edificação, levando em consideração estes aspectos.

Figura 17 - Trama para realização do painel El Penol; acrílica sobre muro; dimensões variáveis, 2016

Fonte: O autor, 2016

Acima, a estrutura linear do mural El Penol, realizado no muro do casarão do Centro Cultural Casa 7, localizado próximo ao Hospital de Ipanema, na Rua Piragibe Frota Aguiar,

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executado a partir de um convite. Lá a superfície era mais lisa, permitindo o uso das trinchas apenas umedecidas. Isso significa um gasto menor de tinta e de tempo, fazendo diferença não só economicamente, mas também no número de sessões necessárias para realizar cada trabalho. Como mencionei acima, a trama tem uma relação de origem com o cubismo e, portanto, com o espaço moderno. Ela só é possível devido ao cubismo analítico, praticado por Picasso e Braque, que ao romper com a maneira linear de representação do espaço, relativiza a percepção dos objetos inseridos no real. Ambos tem uma influência forte de Paul Cézanne, pois tal ruptura com espaço renascentista e o surgimento de mais de um ponto de vista em um trabalho só são possíveis pelo campo aberto pelo francês ao pintar, utilizando os dois olhos. Cézanne ia passo-a-passo, construindo o espaço plástico, moldando de acordo com sua visão binocular. Distancia-se dos impressionistas por não querer captar exatamente a luz ou a fugacidade do momento, por querer chegar a uma verdade do olhar, pintar como de fato via as coisas. Para isso, era impossível continuar pintando como uma lente estática, através de um ponto de vista, reproduzindo a tecnologia da câmara de desenho. Voltou-se então para a natureza, a fim de evoluir em sua pesquisa ótica. “ O método deriva do contato com a natureza.” 52 Os desenhos de Cézanne também demonstram esta preocupação relacional. Em seu livro Cromatismo Cezanneano, o artista José Maria Dias da Cruz afirma que eles “se ocupam mais de uma construção de um espaço do que de uma representação de figuras e formas.” 53 Nas palavras de Cézanne: “contrastes e relações de tons, este é todo o segredo do desenho e da modelagem.”54 Pontuo, então, que a grade, apesar de constituída de linhas, tem como princípio estrutural não ser determinista no âmbito formal. Ela está no muro com a finalidade de fornecer uma estrutura de espaço de relevo que receberá os elementos e as relações cromáticas que o processo for induzindo. O uso da cor é protagonista na construção destes murais. Há somente uma regra para a trama: pode ser modificada quando entro com a cor, ou seja, não se trata nem de uma ocupação pré-definida dos espaços, por isso a impossibilidade de um esboço, nem de um uso aleatório das cores, mas de uma construção pictórica que acontece pincelada após pincelada, formando uma grande rede de memórias.

52 CÉZANNE, Paul apud DORAN, MICHAEL (Ed.). Sobre Cézanne: conversaciones y testimonios. Barcelona: Gustavo Gili, 1980. 53 CRUZ, José Maria Dias da. Cromatismo Cezanneano. Florianópolis: Ed. do autor, 2010. p. 82. 54 CÉZANNE apud DORAN, op. cit., p. 38.

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Muitos artistas se debruçaram sobre o campo pictórico como área de estudo. Aquilo que chamo de não saber, nesta dissertação, perpassa as pesquisas de artistas de variados períodos históricos e, neste capítulo, busco relacioná-lo diretamente com a atividade de pintar. Há toda uma linguagem interna da pintura que traz consigo reflexões de difícil execução justamente pela natureza visual deste gênero. Alguns destes artistas geralmente encontram dificuldades linguísticas verbais para lidar com ele ou falar sobre. Gerhard Richter observa:

Falar sobre pintura não tem nenhum sentido. À medida que se comunica algo com a linguagem, altera-se o comunicado. Constroem-se essas qualidades que podem ser faladas e destroem-se aquelas que não podem ser faladas, mas que sempre são as mais importantes.

Pela reflexão do artista alemão, a missão deste quarto capítulo se torna paradoxal, visto que pelo campo das palavras, busco refletir sobre questões oriundas de um pensamento plástico. Não é um intento solitário, felizmente muitos dos artistas que pesquisam a cor, mesmo sabendo das limitações do campo das palavras, enfrentam o paradoxo. A tarefa é árdua, mas principalmente através das obras, de anotações deixadas sobre seus respectivos processos artísticos e da compreensão de críticos especializados é possível manter este diálogo aberto. Cézanne afirma que “ a técnica de uma arte envolve uma linguagem e uma lógica”. Se a linguagem é visual e como, percebe-se anteriormente com o depoimento de Richter, há uma dificuldade de se comunicar verbalmente sobre o assunto, há indícios para que haja uma lógica visual entre as cores e o espaço que também não estaria disponível – no sentido de ser acessada – pelas palavras. Penso que Richter se refere a algo que deve se comunicar com o que Barthes quer dizer com o sentido obtuso, que mencionei antes: há sentidos que são comunicáveis pela visualidade e que a palavra apenas pode transmitir parcialmente ou se aproximar. O teórico se pergunta: “Se não se pode descrever o sentido obtuso, é que, ao contrário do sentido óbvio, não copia nada: como descrever o que não representa nada? O “traduzir” pictórico das palavras é, aqui, impossível.”55 O conceito de fílmico, desenvolvido pelo francês a partir dos fotogramas de Ivan, o Terrível de Eisenstein, é o que não pode ser descrito no filme, pois: “encontra-se nesse ponto em que a linguagem articulada é apenas aproximativa, e de onde se inicia uma outra

55 BARTHES, op. cit., p. 54.

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linguagem ( cuja ciência não poderá, pois, ser a linguística, que será abandonada como um foguete propulsor.)”56 Como disponho majoritariamente do meio textual no formato de uma dissertação, o que faço adiante é colocar questões intrínsecas à minha pintura que me acompanham desde a minha iniciação nela. Apresento aqui conceitos e questionamentos sobre as cores e o olhar levantados por José Maria Dias da Cruz que não são para mim como uma metodologia fechada para pintar, já que isto seria contraditório em relação ao próprio não saber que abordo neste texto, mas que funcionam como indagações sobre a lógica mencionada por Cézanne. Dias da cruz classifica a pintura como enigmática. Há o problema da nomenclatura das cores: na embalagem vem escrito azul, mas além das possibilidades praticamente infinitas de mistura pigmentar, não se leva em consideração as característica que esta cor vai adquirir em sua atuação dentro do colorido do próprio quadro/mural. Ela vai se alterar e vai alterar também as cores do entorno. Dias da Cruz propõe o conceito de rompimento do tom, diretamente associado a um fenômeno ótico chamado de pós-imagem. Após observar determinada tonalidade por alguns segundos, sua tonalidade oposta começar a se apresentar diante dos olhos. Abaixo, o trabalho IKB 3, Monochrome blue, de Yves Klein. Este artista francês tem uma produção repleta de tópicos relevantes para serem abordados do ponto de vista da teoria da arte, mas para este pensamento cromático, destaco a reação do espectador após alguns segundos observando seu quadro azulado. O quadro fica amarelado com destaque para a borda pintada de branco. Depois uma teórica de Dias da Cruz sobre o fenômeno ótico.

56 BARTHES, op. cit., p. 58.

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Figura 18 - IKB 3, Monochrome blue, Yves Klein, 199 x 153 cm, pigmento puro e resina sintética sobre tela, 1960.

Fonte:

O que acontece diante do quadro de Klein é o rompimento do tom. O tempo de observação do espectador foi necessário para que acontecesse, caracterizando uma dimensão temporal da cor.

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Figura 19 - Além do Círculo imóvel. Técnica mista sobre tela, 2007. José Maria Dias da Cruz

Fonte:

Antes de prosseguir com o que isso significa em termos práticos do funcionamento do pensamento plástico, cito outra consequência desta percepção do ponto de vista teórico. Dias da Cruz propõe então observar o comportamento das cores sem o círculo cromático desenvolvido por Newton com 7 cores tampouco sem os discos cromáticos produzidos a

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partir das ideias de cores primárias e secundárias. Como visto no quadro e na assemblage, trata-se de um fenômeno ótico temporal que acontece na atmosfera e não de umas mescla pigmentar. Sabe-se que se misturar tons amarelados com tons azulados, será obtido uma tonalidade esverdeada. O que se percebe é um tom amarelado que aos poucos começa a emergir na atmosfera durante a observação do azul. Isto acontece não só com esta cor, mas com todas as outras tanto na natureza quanto em uma pintura. Os tons rompidos são tons de passagem entre uma cor e sua oposta. Cézanne usa o termo “decomposição de cores opostas”.57 Em alguns casos, é possível obtê-las através de uma simples mistura pigmentar, mas em outros é preciso compensar com mais de duas tintas para conseguir os tons intermediários como no caso dos amarelados/azulados. Também presente na assemblage, a proposição de um diagrama feito no intuito de orientar diante da dinâmica das cores elaborado a partir da observação do fenômeno descrito e da pesquisa do artista sobre as cores simples de Leornardo da Vinci. Um diagrama cromático que organiza suas oposições em relação à pós-imagem e que ao mesmo tempo permite que se pense a cor sem a necessidade de nomeá-la. Ao invés utilizar a ideia de um amarelo, utiliza-se um amarelado que pode tender mais para o vermelho ou para o verde, assim como um tom esverdeado que pode ser mais azulado ou mais amarelado; um avermelhado, mais azulado ou mais amarelado e, por fim, um azulado, mais esverdeado ou mais avermelhado. Isto se dá pela aceitação de que todos os tons vão ser alterados com o tempo de observação, ou seja, não adianta me apegar a uma mistura pigmentar, pois quando um tom entrar no contexto das outras cores na pintura, será alterado. Minha iniciação na pintura deu-se então sem a referência ao círculo cromático desenvolvido a partir dos estudos de Isaac Newton sobre a dispersão da luz branca. Influenciado pelo físico, o artista e cientista Goethe, mesmo discordando abertamente em alguns pontos, dá prosseguimento a pesquisa, chegando a outro círculo cromático bastante difundido hoje em dia que prevê as cores primárias e secundárias. Ambos tem um imenso valor histórico e influenciaram gerações de artistas, mas por lidarem com as cores de modo nominal e por organizarem as cores opostas de modo distinto da pós-imagem, faço a opção de pensar as cores fora de seus domínios. Há ideias relacionadas a este universo que convivo, mas que busco evitar como noções de cor fria, quente, pastel, pura e outras classificações que não a compreendem em constante transformação numa pintura.

57 CÉZANNE apud DORAN, op. cit., p. 38.

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Apesar de priorizar a experiência do próprio olho, há conhecimentos adquiridos durante minha formação de pintura que me possibilitam me deparar com o não saber durante a execução de um mural e conseguir lidar com ele. Ainda dentro das proposições cromáticas de Dias da Cruz , descrevo as três dimensões da cor anteriores à temporal: matiz, intensidade e valor. Por clave de valor, entende-se a variação que um colorido pode ter de claro-escuro. A clave de intensidade se refere à cromaticidade ou ao brilho de um colorido e, por fim, a clave de matiz que se refere à impressão de uma unidade cromática com determinada tonalidade. É preciso observar as ideias de tom e de escalas tonais que pressupõem um desenrolar temporal, inclusive com intervalos. Entendendo o colorido do suporte como um todo, é possível orientar percurso do olhar através do ritmo. Paul Klee comenta tal relação temporal que para ele está presente na música também: “ Cada vez mais paralelos entre a música e as artes plásticas se impõe à mim. Apesar disso, não consigo analisá-los. Certamente as duas artes tem uma natureza temporal.”58 A harmonização do espaço plástico acontece no decorrer do tempo tanto nos esforços do artista durante a execução quanto no período de observação do espectador que olha para a obra, restando ao próprio trabalho conduzir seu olhar. Cruz define:

Entendemos harmonização não apenas como possibilidades de transformações do divergente em convergente, mas como uma sequência de pequenas unidades cromáticas. Harmonia é, para nós, a permanência e o estado de consciência dos pontos ou momentos de passagens.59

Volto-me então para a elaboração dos murais, contextualizando o não saber e identificando o fenômeno de indução cromática que acontece durante a execução da pintura. O momento de entrar com as cores sobre a trama é quando o não saber se une às questões referentes à harmonização cromática. Aos poucos, ao avançar com as áreas de cor, vou preservando, destruindo ou alterando os entrecruzamentos. Isso faz com que em alguns momentos a pintura se aproxime da figuração e em outros da abstração. Reitero que não há uma fórmula, trata-se de lidar com forças que vão surgindo no suporte de acordo com as inserções de tinta. Nesse sentido, meu trabalho estabelece uma relação entre formas e cores que converge com a anotação de Cézanne:” A medida que pintamos, desenhamos. A precisão do tom dá a luz e a modelagem.”60

58 In: Paul Klee. Diário de um artista. Filme 59 DIAS DA CRUZ, José Maria. A cor e o cinza: rompimentos, revelações e passagens. Rio de Janeiro: Taba Cultural, 2001. 60 CÉZANNE apud DORAN, op. cit., p. 38.

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Figura 20 - Pintura no muro do Centro Cultural Casa 7, 2016. (Anteriormente apresentada em seu estágio inicial como trama).

Fonte: O autor, 2016

Em uma pintura com muitos tons, como no caso destes murais, torna-se impossível mensurar o comportamento de todas as matizes devido a sua posição no espaço plástico e ao tempo de observação. Uma mesma matiz pode adquirir diferentes qualidades, dependendo das circunstâncias em que se encontra. É possível compreender tais relações enquanto pinto, mas ao me afastar nos intervalos para contemplar, consigo entender melhor como o olhar está sendo conduzido. É uma reflexão plástica. Consigo ver as distâncias criadas dentro do próprio quadro, como uma cor aumenta ou diminui a profundidade de outra, por exemplo. Como é possível fazer determinados tons saltarem como se viessem na direção do espectador e ao mesmo conseguir por outros lá atrás. É nesse sentido que se dá a harmonização cromática em meu trabalho: ela não é o objetivo, mas é central para que eu possa articular os fragmentos. Enquanto os murais se resumiram a paredes bidimensionais, apenas as questões de pintura colocadas entraram. Aos poucos, fui percebendo que minha relação não é mais com a tela e ao utilizar uma caixa de madeira, por exemplo, o aspecto tridimensional do objeto foi levado em conta. Além disso, a própria arquitetura dos locais influencia bastante. A cor então se comporta de maneira bem diferente do que quando aplicada sobre uma superfície plana isolada. Este trabalho também foi fruto de um convite.

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Figura 21 - Pintura sobre caixa de madeira. 2016.

Fonte: O autor, 2016.

Para realização dos painéis, o material é simples: tinta acrílica branca para parede misturada com pó xadrez corante para obter as cores. Além disso, tinta acrílica para piso. Pincéis de pintura de quadros para os detalhes, mas também trinchas de obra em variados tamanhos para uma maior desenvoltura e fluidez nas áreas de cor intermediárias e grandes. Esta diferença instrumental faz com que tenha um processo um pouco diferente do usual entre os grafiteiros contemporâneos que em sua maioria utilizam as latas de spray e usam pincéis e rolos apenas para contornar o desenho e chapar uma cor na parede. Isso ficou evidenciado, pelo menos no âmbito local, no segundo trabalho realizado. Um grupo de grafiteiros se organizou e todos pintaram com spray os muros da Escola Municipal Marília de Dirceu, em Ipanema, no Rio de Janeiro. Passei por lá no dia em que estavam pintando e, na semana seguinte, vi o muro todo colorido com diversos trabalhos, entretanto seu final ainda estava cinza e com algumas pichações antigas. Decidi finalizá-lo. Foi o único ali feito somente com pincel e por isso apresenta suas características mais singulares como passagens

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de cor e pinceladas aparentes. Não é uma exclusividade minha utilizar pincel e não é possível dizer exatamente a proporção dos artistas que utilizam o pincel como principal instrumento para pintar os muros, mas em sua maioria, as pinturas são feitas com as latas de spray. A escolha instrumental faz com que o tempo e as condições de execução do trabalho sejam diferentes. Cada mural exige muitas sessões. A escolha dos locais que servirão como suporte passa a ter que ser mais criteriosa, dentro da lei sempre que possível, distinguindo de uma corrente da arte de rua que assume a ilegalidade como parte indissociável da atividade.

Figura 22 - Pintura no muro da escola Municipal Marília de Dirceu, 2016.

Fonte: O autor, 2016.

Entretanto, todas as outras pinturas que realizei na rua, desde que iniciei neste terreno, possuíam autorização. Há diferenças entre fazer com ou sem autorização, mas a sensação foi muito próxima, principalmente por montar praticamente um pequeno ateliê ao lado do muro. Não se tem como sair correndo com baldes de tinta e corantes. Há uma apreensão, mas as pessoas geralmente respeitam. A própria polícia para no intuito de assistir a execução do trabalho.

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Rui Amaral, um dos primeiros grafiteiros de São Paulo, iniciado nos painéis ainda na década de 1970 comenta esta relação com a legalidade do trabalho. Foi preso inúmeras vezes durante a ditadura civil-militar e mesmo após a abertura democrática enfrentou problemas policiais, mas com a valorização do grafite foi um dos primeiros grafiteiros a expor em galerias de arte no Brasil e atualmente tem trabalhos comissionados que envolvem toda uma estrutura logística como para pintar painéis em laterais de prédios, por exemplo. “Quando você faz um trabalho em estrutura que deixa de ser grafite, ele perde muito, né? Mas ganha em outras coisas, ele ganha em acabamento.”61 As condições para realização da arte na rua vem mudando, inclusive com novas leis regulamentadoras e ações de fomento. Ao me inserir neste contexto este ano, pude perceber que minha geração desfruta de conquistas de gerações passadas que para pintar na rua, obrigatoriamente tinham que ter a atitude mencionada por Amaral. Ainda é possível grafitar de forma ilegal, mas hoje também é possível faz sem pressa e com segurança. Abriria aqui um novo campo de reflexão que é o do circuito de exibição de meu trabalho e todas as questões aí implicadas, desde questões políticas e éticas , até as questões de mercado. Mesmo entendendo a importância desse aspecto, não pretendo me dedicar a ele neste trabalho. Um fator relevante é que não preparo o fundo dos murais. No caso da escola, permaneceu os tons acinzentados predominantes com algumas pichações. Uma semana após terminá-lo, os outros grafiteiros que haviam se organizado para ocupar o espaço do muro, fizeram o contorno da pintura, incorporando-a ao resto com um verde azulado que também servia de fundo para os outros grafites. Para mim isto foi um ato de reconhecimento por parte deles. Mencionei que tive uma espécie de epifania com os grafites colombianos e sua importância na minha decisão de pintar na rua, mas depois que voltei para o Brasil, passei a olhar os grafites com mais atenção, a pesquisar na internet o trabalho de artistas que vi em determinado muro e a criar um banco de imagens deles como já fazia com a pinturas sobre tela. Destaco aqui dois artistas da cena carioca que me identifico, vendo conexões. Analiso abaixo um trabalho de TARM e outro de Piá.

61 WEBDOC Graffiti– episódio7.4- Pós-Graffiti. Disponível em: http://www.webdocgraffiti.com.br/comercio- de-graffiti/pos-graffiti >. Acesso em:: 15 jul. 2016.

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Figura 23 - Piá. Grafite no viaduto em frente ao Centro de Convenções Sulamérica. Centro, Rio de Janeiro.

Fonte:

Piá, no grafite na coluna do viaduto, assim como em seus outros trabalhos se utiliza de um esboço que se assemelha a trama pelo entrecruzamento das linhas. Como eu, ele geralmente também não faz uso de linha entre as áreas de cor. Entretanto, o artista prefere o uso das cores em sua intensidade máxima e chapadas no suporte de modo heterogêneo. Além disso a harmonização cromática parece seguir mais o tracejado inicial, respeitando mais o desenho.

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Figura 24 - Thiago TARM. Grafite em prédio na Praça da Bandeira, Rio de Janeiro.

Fonte:

TARM tem uma peculiaridade em seu processo que é o uso de birros de diferentes tamanhos, conseguindo efeitos singulares. Isto é mais perceptível em seus murais em uma escala menor do que a deste prédio. Mas escolho citar esta pintura, pois o uso da cor feito pelo artista neste prédio é bastante refinado. Com uma paleta bem definida, ele carrega o desenho figurativo com tons de passagem, aumentando a intensidade da cor em outros pontos e áreas, criando pequenos contrastes que fazem os olhos se perderem por entre as rodas, por exemplo. Além disso, o tamanho da pintura é impressionante e conforme narro mais adiante, ir aumentando aos poucos o tamanho do trabalho é um caminho que já comecei a trilhar mesmo que em passos mais modestos. Inicialmente havia pensado a pintura mural do Centro Cultural Casa 7 ainda próximo à noção de uma tela retangular, depois decidi fazer outro ao lado que desse continuidade e que pudesse se expandir, adequando-se melhor à forma do muro e à estrutura de outdoor situada a frente dele.

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Figura 25 - Mural do Centro Cultural Casa 7 completo. 2016.

Fonte: O autor, 2016

Com fotografias e a internet, a produção se espalha pela rede rapidamente. Desta forma, enquanto pintava o quinto trabalho (quarto mural) recebi uma proposta para pintar o novo prédio anexo da Escola de Comunicação da UFRJ. O convite partiu da direção da escola e do DCE – Diretório Central do Estudantes. O novo prédio é composto por contêineres e foi projetado para ser uma estrutura temporária, mas uma vez que há dificuldades financeiras em diversos setores sociais atualmente e que levantar outro prédio de concreto ali é inviável no momento, ele continuará lá por tempo indeterminado. A universidade forneceu o material e me deu o tempo que quisesse para finalizar o trabalho. A fachada pintada possui 8m x 18m o que significou um ótimo teste de escala para a trama, o mesmo procedimento de outros muros. Demorei algumas horas apenas para marcá- la. Decidi começar a pintar pelo andar de baixo e, aos poucos, ir subindo.

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A escada na área externa do prédio também passa a ser suporte assim como todos os relevos presentes. Passo a considerar que tais formas pintadas funcionam como elementos da pintura. Ao mesmo tempo que se integram à pintura da fachada, tem sua autonomia tridimensional de fato em relação ao resto.

Figura 26 - Pintura em andamento no prédio anexo da Escola de Comunicação da UFRJ

Fonte: O autor, 2016

Assim como na escola municipal, a comunidade escolar, em especial, tem uma relação de gratidão com a ação. A pintura mural não é só um embelezamento, traz dignidade para as pessoas também. Alguns estudantes relataram o quão desanimador é entrar nos contêineres com seu aspecto cru e que estávamos trazendo vida para o campus. A pintura ali tem uma relação de humanização do espaço. Para mim, como menciono no início deste texto, a cor ambientaliza a forma. A pintura encontra-se no oitavo dia de execução e quase toda a fachada do prédio já foi ocupada pelas áreas de cor. Durante a execução, outras propostas de pinturas murais

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surgiram e este campo vem se configurando como um horizonte para novos desafios referentes a meu trabalho e a minha pesquisa. Até então os murais tem sido feitos somente com pincéis e tinta. Em breve pretendo começar a misturar com a técnica do spray, inserindo- a pouco a pouco nos trabalhos. Mesmo diante de saberes constituídos dos estudos de arte, o não saber está presente nesse processo como um elemento de extrema importância para sua execução. Os murais estão repletos de conhecimentos de desenho e pintura, das memórias que busco trazer de minhas caminhadas, mas estão tomados também por essas articulações da ordem que tento descrever com palavras, mas que são de outra natureza.

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CONCLUSÃO

Minhas caminhadas sempre estiveram conectadas com minhas práticas de ateliê e se influenciaram tanto mutuamente que poeticamente posso dizer que agora são um só. Do ponto de vista processual, o ambiente externo que funcionava como fonte de memórias para serem trabalhadas posteriormente no ateliê passou a ser também o próprio lugar da edição. Os fragmentos coletados nos deslocamentos tem a oportunidade de permanecer nos espaços públicos e não necessariamente de onde foram retirados. Vejo o uso do espaço externo como suporte como uma continuação das experiências com papel de arroz nas galerias. No fim deste período, vi que meu trabalho tem agora alguns horizontes abertos. O fato de estar me dedicando mais aos murais agora, não impede que os outros gêneros também sejam desenvolvidos, ou seja, ainda desenho em formatos tradicionais e pinto em tela, mas sinto também que é um momento de dar ênfase a estas pinturas à céu aberto. Quanto às caminhadas, elas continuam. Mas agora, além de elementos que podem virar mais tarde um fragmento da pintura, meu olhar é levado quase que instantaneamente para os muros, paredes, postes e mobiliário urbano em geral disponíveis como suporte. A reflexão de Barthes sobre o sentido obtuso me tranquiliza no sentido de não ter que expor uma definição exata do não saber com palavras. Sua abordagem ao cercar algo que ele reconhece a existência, mas que se declara incapaz de descrever, parece-me a mais adequada para continuar lidando com o não saber mesmo além desta dissertação. Preocupo-me mais em identificá-lo no processo e a entender sua articulação com outros elementos importantes para a realização de um trabalho. O sentido obtuso não representa algo exato e nem possui um significado único e estável, mas ele existe e se manifesta quando o teórico francês analisa os fotogramas de Eisenstein. O não saber aqui seria a sensação de que esse sentido existe na própria elaboração e execução do trabalho, no processo vivenciado pelo artista. Os relatos de diferentes artistas me mostram que não existe uma fórmula ou uma metodologia fechada para lidar com o desconhecido, mas que, pelo contrário, cada um acaba desenvolvendo sua própria maneira de acordo com seus saberes. A experiência do mestrado se mostrou enriquecedora para mim principalmente pela convivência com artistas mais próximos de outros meios o que certamente me ajudou a pensar as novas disposições espaciais de minha produção. Mas, foi além disso, pois vi que não era só

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uma questão de apresentação final dos trabalhos, era também uma mudança na concepção dos mesmos. E assim a viagem prossegue.

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ANEXO

Anotações para mim mesmo ao começar uma pintura – Richard Diebenkorn

1. Tentar/Arriscar o incerto. A certeza pode ou não vir depois. Isto poderá, então, ser uma valiosa ilusão.

2. O Belo é um ponto de partida que falta plenitude e não deve ser supervalorizado, exceto quando a estimular os próximos passos.

3. Pesquise!

4. Use e reaja às qualidades iniciais, porém as considere absolutamente expansíveis.

5. Não “descubra” um tema/assunto - de qualquer tipo.

6. Procure não se entediar, mas se acontecer, use isto no trabalho. Use o seu potencial destrutivo!

7. Erros não podem ser apagados, porém te tiram da sua posição atual.

8. Continue pensando sobre Pollyanna.

9. Tolere o caos.

10. Seja cauteloso apenas de um jeito perverso.