AS BRASILEIRAS: HERÓIS E VILÕES

Maria Lourdes Motter

Professora livre-docente da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, coordenadora do NPTN-ECA USP e do Núcleo de Pesquisa Ficção Seriada da Intercom. É autora dos livros Ficção e história: imprensa e construção da realidade e Ficção e realidade: a construção do cotidiano na .

E-mail: [email protected]

64

ALAIC - 1-85 64 9/27/04, 5:34 PM RESUMO O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre o modelo atual de telenovela brasileira, buscando identificar nas narrativas os deslocamentos que a afastam da qualidade crescente alcançada na última década. Categorias de personagens como herói e vilão são analisadas para avaliar o grau de protagonismo de cada um e identificar, nas telenovelas no ar no primeiro semestre de 2004, possível inclinação tendencial para a simplificação narrativa - com repetição de fórmulas, estratégias e esquemas maniqueístas - e recuperação de elementos do folhetim clássico.

PALAVRAS-CHAVE: TELENOVELA • PERSONAGEM • HERÓI • VILÃO •BRASIL.

ABSTRACT The current paper aims to ponder on the current model of Brazilian telenovelas, so as to detect in the narrative the causes for the downgrading in the quality that marked the past decade. Character categories such as heroes and villains are analyzed to assess their degree of protagonism and to spot in first-half 2004 telenovelas a possible tendency towards simplifying the narrative, by repeating formulae, strategies and manicheistic schemes, and recovering elements that belong to the classical folhetim (daily novel chapters formerly published in newspapers).

KEY WORDS: TELENOVELA • CHARACTER • HERO • VILLAIN • BRAZIL.

RESUMEN Este trabajo tiene por objetivo reflejar el modelo actual de la telenovela brasileña, buscando identificar en las narrativas las dislocaciones que la separan desde la creciente calidad 65 alcanzada en la última década. Las categorías de personajes como el héroe y el villano son analizadas para evaluar el grado de protagonismo de cada uno e identificar, en las telenovelas televisionadas en el primer semestre de 2004, la posible inclinación tendencial para la simplificación narrativa - con la repetición de fórmulas, estrategias y esquemas maniqueístas - y la recuperación de elementos del folletín clásico.

PALABRAS-CLAVE: TELENOVELA • PERSONAJE • HÉROE • VILLANO • BRASIL.

ALAIC - 1-85 65 9/27/04, 5:34 PM Na telenovela, como na história das narrativas cotidiano dissolvente, os ofendidos e oprimidos por que atravessam o tempo, o herói deve ser alguém um sistema social cruel (como Fabiano em Vidas que tenha qualidades se não excepcionais, pelo Secas, de Graciliano Ramos), se afirmam pela menos diferenciadas. Suas virtudes nascem da negativa mais do que pela positiva. E deste modo relação que se estabelece entre ele e seus antago- invertido reinterpretam a condição de centralidade nistas, os quais podem ser vários ou tão-somente que o herói conhecera (Reis e Lopes, 1988, p. 193). um, podem ser da ordem dos homens comuns O conceito de herói relaciona-se com uma con- ou seres imaginários como deuses ou entidades cepção antropocêntrica da narrativa em torno do sobrenaturais, pode ser representado por animais, qual ela existe e se desenvolve. Ele é uma figura máquinas ou artefatos desconhecidos ou seres central que se destaca dos outros seres que po- estranhos - estes mais próprios de filmes ou ficção voam a história como protagonista qualificado destinada ao público infantil ou juvenil. Os anta- “Esta e as categorias que a estruturam são, pois, gonistas podem ser simplesmente um conjunto organizadas em função do herói, cuja intervenção de dificuldades banais que impedem a consecução na ação, posicionamento no espaço e conexões de sua trajetória na busca de uma realização. com o tempo contribuem para revelar sua cen- O próprio conceito de herói varia no tempo: se tralidade indiscutível” (Reis e Lopes, 1988, p. 210). na época das grandes descobertas os heróis eram O herói é uma personagem, categoria funda- navegadores, que se arriscavam no desconhecido mental da narrativa. para vencer perigos e realizar conquistas para seu Na narrativa literária (da epopéia ao romance e rei ou seu povo, ou estrategistas que venciam pela do conto ao romance cor-de-rosa), no cinema e na astúcia lutas e guerras contra um inimigo para história em quadrinhos, no folhetim radiofônico ou anexar terras, dominar povos e expandir um im- na telenovela, a personagem revela-se, não raro, o pério, com o Renascimento e o Romantismo o eixo em torno da qual gira a ação e em função do herói vai se configurar de modo privilegiado. No qual se organiza a economia da narrativa [...]. Os 66 Renascimento, o herói expressa a capacidade hu- escritores testemunham eloqüentemente o relevo e o mana de enfrentar a intransigência dos deuses e poder impressivo da personagem; Flaubert revela: a adversidade dos elementos da natureza e no Ro- Quando escrevi o envenenamento de Emma Bovary, mantismo, em cenário histórico-social diverso, o tive na boca o sabor do arsênico com tanta herói vai enfrentar um percurso cheio de obstá- intensidade, senti-me eu mesmo tão autenticamente culos, solitário e em conflito com as convenções envenenado, que tive duas indigestões [...] (Reis e sociais. Esse herói romântico tende a surgir no Lopes, 1988, p. 215). curso de uma viagem ou de um percurso atribu- No mundo atual, com domínios mapeados e lado de sua vida, caracterizado pela impossibi- consolidados, pouco resta para a produção de lidade de harmonizar seus ideais com os cons- grandes heróis como os da Antigüidade Clássica. trangimentos impostos pelo sistema social e im- Cessadas as grandes circunstâncias que propicia- pedimento para que eles se realizem. vam o nascimento e a consagração de heróis, o É a partir do Realismo e do Naturalismo que a mundo contemporâneo centra-se no conhecido figura do herói aparece despojada das marcas de e no cotidiano rotineirizado, onde produção, co- excepcionalidade que no Romantismo conhecera; mércio, mercado e tecnologia enlaçam e restrin- as personagens em quem se centra o processo crí- gem as dimensões de um vasto e antes desconhe- tico de uma sociedade em crise, a irônica recons- cido espaço em uma aldeia loteada e atada por tituição dos percursos épicos desvirtuados por um uma trama de comunicação que a torna global.

ALAIC - 1-85 66 9/27/04, 5:34 PM “Na telenovela, como na história das narrativas que atravessam o tempo, o herói deve ser alguém que tenha qualidades se não excepcionais, pelo menos diferenciadas.”

Se antes a função do herói pressupunha quali- golpe, o adversário com outro mais astucioso, dades pessoais de caráter, força física e moral com mais esperto e inteligente que o anterior. finalidade que transcendia o individual e visava Naturalmente, ele começa a nascer de um mo- sempre ao engrandecimento de um grupo, reino, tivo. Um motivo que pode ser forte ou pueril, que povo ou nação, hoje, são as finalidades do indi- pode estar enraizado num trauma: vingança, res- víduo que prevalecem. Não sendo nossa intenção gate, superação; ou num jogo de ultrapassagem de focalizar a ficção em geral ou a literária, mas sim sua condição social: “vencer ou vencer”, numa a da telenovela brasileira, que preenche parte competição por sucesso pessoal ou consagração substancial da programação de nossa maior rede social. Na ficção, o motivo mais comum é a vin- de televisão aberta, procuraremos verificar como gança como reação a prejuízo que se julga ter so- se configuram os heróis nas narrativas atuais e o frido. Se a motivação de base do vilão é falsa ou espaço que lhes é reservado, suas qualidades e seus verdadeira, é outra história. É difícil imaginar que campos de ação. uma personagem virtuosa como Maria Clara (Ma- Quais as possibilidades deixadas à fabricação lu Mader em ) tenha sido diferente no de heróis nas narrativas que povoam o imaginário passado - má na infância e na adolescência - como de consumidores de produtos da indústria cultu- acredita Laura (Cláudia Abreu). Parece incoerente ral como a telenovela? Se tomarmos como parâ- e inverossímil uma mudança tão radical: Maria metro a novela Celebridade1, que terminou em Clara não só é boa, como ingênua, chegando a ser junho de 2004, e a que ainda permanece no ar simplória, por não perceber as articulações golpis- 67 em agosto de 2004, Da Cor do Pecado2, podemos tas de sua inimiga, que só será identificada como afirmar que aos heróis cabe apenas resistir e esca- tal quase no fim da telenovela. De qualquer modo, par das armadilhas preparadas pelo adversário. na história, ela coincide com o modelo de mulher O trabalho de escultura do herói desloca-se para e empresária bem-sucedida, que Laura não seria o seu oponente, o vilão. Pallottini, citando Wla- por usurpação daquela. Laura julga ter sido rouba- dimir Propp, define o vilão como o antagonista, da e, por isso, castrada nas suas possibilidades de o malfeitor ou o bandido, a personagem que faz ter a trajetória de êxitos que coube a Maria Clara. o mal. Ele é o responsável pelo infortúnio que Assim, rouba para ter o que quer, quando poderia, golpeia o herói e obstrui seu caminho para o ob- por seu talento, apenas concorrer com ela no cam- jeto ou para o seu destino ou para sua . po profissional, já que inteligência, bom gosto, bele- O vilão deve ser construído com requinte para za, elegância, esperteza e capacidade de ação não derrubar, a cada tentativa de recuperação de um lhe faltam. Exemplo negativo, que receberá sua sanção no

1 Telenovela de Gilberto Braga, Rede Globo de Televisão, final da história, Laura, com comportamentos an- veiculada em horário nobre, de 13/10/03 a 25/6/04. tiéticos e amorais, representa um estímulo per- 2 Telenovela de João Emanuel Carneiro, Rede Globo de Televisão, manente à adoção de seu modelo e de suas prá- veiculada em horário nobre, iniciada em 26/1/04. ticas e um forte apelo para todos aqueles que, do

ALAIC - 1-85 67 9/27/04, 5:34 PM lado oposto da cerca que separa as celebridades recem outras situações em que adultos aliciam das pessoas comuns, sentem-se roubados pela sor- menores para práticas condenáveis, como garotos te e aspiram à vida no Olimpo contemporâneo, sendo pagos para roubar o caro biquíni que Ja- erigido por Hollywood e popularizado pela tele- queline (Juliana Paes em Celebridade) vestia na visão. Para estes, ser vilão passa a constituir uma praia, ou para sumir com os filhos de Ana Paula alternativa no percurso para se tornar “herói” no (Ana Beatriz Nogueira em Celebridade) no parque, mundo do espetáculo, no qual a vilania gera um por iniciativa da mãe, com o objetivo de res- pequeno castigo, mas não impede a consagração. ponsabilizar a namorada do ex-marido. Sabemos Veja-se o Big Brother Brasil, versão Globo 2004. que tais situações são comuns na nossa realidade O castigo para o participante é sair da competição cotidiana, mas o didatismo do “como fazer” não (pelo prêmio em dinheiro), mas o passo seguinte pode ser justificado sequer sob a rubrica de é o pódio e as glórias pelo heroísmo de ter passado denúncia. pelo confinamento. Revelando bom ou mau ca- Com a retomada da receita clássica, prevalecem ráter, não se perde o prêmio maior: ele já saiu do as personagens planas, sem conflitos, sem com- anonimato, se tornou uma celebridade e isso será plexidade psicológica. Os vilões ficam fortes, por capitalizado pela própria emissora, pela mídia serem movidos por um comportamento obses- especializada em TV e pela mídia em geral. sivo. Eles têm como único propósito na história A telenovela retoma o modelo clássico, incorpora serem maus. E, como na telenovela são belos e o show, como aconteceu em O Clone3 e traz sofisticados, fazem grande sucesso junto ao pú- personalidades do mundo artístico-cultural. É ágil, blico, principalmente no caso de Laura, que tem bem tramada, mas muito didática nos pequenos uma justificativa para sua vilania e assume o papel ou grandes golpes, um manual que ensina passo a da vingadora. Como todo bom vilão, Laura tem passo como cometer delitos, seja criando arma- parceiros fixos e ocasionais que servem ao seu dilhas para armar flagrantes (roubo da chave, cópia propósito: 68 e devolução, roubo do chaveiro de Eliete (Isabela Marcos (Márcio Garcia) é o principal coadju- Garcia em Celebridade), dado por Maria Clara, vante, seu ajudante de ordens e parceiro fixo; contratação de Bidu (Dudu Azevedo em Celebri- Renato Mendes (Fábio Assunção) é um mau ca- dade) para roubar a roupa de Hugo (Henri Castelli ráter que trafega num mundo sofisticado, mas se em Celebridade), fazer-se de seu amigo e levá-lo identifica com o submundo da prostituição e do para o apartamento de Maria Clara, onde o portei- crime. É bonito, charmoso, mas extremamente ro já estava subornado por Marcos (Márcio Garcia vulgar. Atua ora como antagonista ora como par- em Celebridade) para deixá-los subir; após o banho ceiro ocasional; de Hugo, oferecimento de roupa e preparação do Beatriz (Deborah Evelyn) é uma parceira po- lanche para dar a ele suco de laranja com sonífero); derosa, que se une à vilã na tentativa de afastar seja aliciando menores para ações delituosas, como Maria Clara do marido Fernando (Marcos Pal- foi o caso de Bidu, que ajudou a plantar Hugo sem meira) e para manter o terrível segredo de um roupa na cama de Maria Clara e, em outra oportu- filho que não é dele; nidade, para avisar a polícia sobre a droga (planta- Ana Paula é uma mulher fútil, invejosa, que da) no carro de Maria Clara. Nessa telenovela apa- quer ser aceita socialmente como a irmã, Maria Clara. Para isto, pratica todo tipo de traição para

3 Telenovela de Glória Perez, Rede Globo de Televisão, veiculada se dar bem sem esforço. É tão superficial que usa em horário nobre, de 1º/10/01 a 14/6/02. o marido, os filhos, a mãe e a própria irmã para

ALAIC - 1-85 68 9/27/04, 5:34 PM conseguir vantagens econômicas e sociais. grandeza ainda autorizam gestos de renúncia em Os vilões, ajudados pelos maus elementos, em- favor do outro: à perda de bens e prestígio se as- purram a ação criando problemas/conflitos/situa- socia a renúncia ao bem maior, àquele que re- ções que os heróis têm de resolver. Estes pouco ou nada fazem além de reagir aos sucessivos gol- “Se a ação é tarefa do antagonista pes desfechados pelos vilões. E, como são apenas bons, também são personagens quase planas, sem agressor, o heroísmo está sustentado densidade psicológica. São puros, ingênuos e não pela resistência do protagonista.” conseguem olhar para o lado, ver os inimigos e as armações que lhes preparam. Quando conseguem presentaria algum tipo de apoio e até, de certo se livrar da cegueira e começam a reagir, a história modo, solução para seus problemas, o amor. já está se aproximando do final, e eles ganham Amor que já gerou um filho, situação que ela mais feição de personagem redonda, como ocorre esconde para evitar que as suspeitas sobre a auto- em Celebridade. ria de um crime - assassinato de Lineu (Hugo Car- Na história, a vilã Laura poderia ter sua ação vana), presidente e dono do grupo Vasconcelos - limitada à reaquisição de bens desviados de sua recaiam sobre a pessoa amada. Na perspectiva família. Mas, sua investida persecutória se pro- relacional adotada, estão atribuídos: longa na vingança pessoal contra Maria Clara, a Ao herói: valores positivos de honra, bondade, quem odeia e a quem quer destruir. Portanto, a justiça, persistência, coragem e determinação. vilania objetiva mais do que a recuperação dos Para continuar fazendo o trabalho que escolheu bens perdidos: ela visa à destruição do suposto por vocação e realiza com prazer e sendo capaz adversário. É como se Laura quisesse se trans- de manter, ainda que de forma precária, compro- mutar naquela tendo que destruí-la para assumir- missos assumidos com a família, com funcio- se não como a Laura vitoriosa, mas como a pró- nários, com terceiros. pria Maria Clara, com suas relações de amizade, Ao vilão: os valores do herói são invertidos. A 69 sua atividade profissional, suas relações amorosas, persistência, a coragem e a determinação são seu brilho e seu charme. Ela não quer apenas exacerbadas e todos os meios são válidos para vencer, quer aniquilar Maria Clara para, com isso, alcançar seus objetivos. Inteligência e sagacidade ocupar os lugares profissional, social e afetivo da são mobilizadas no trabalho de arquitetura de outra, movida pela inveja patológica de quem quer planos requintados contra a personagem do herói. transformar-se antropofagicamente no outro. Estrategicamente elaborados, eles vão sendo postos em prática para, numa seqüência diabólica, E como reage nossa heroína? destruir completamente o herói. Na articulação dos módulos que compõem as Se a ação é tarefa do antagonista agressor, o he- etapas do plano como um todo, todos os meios roísmo está sustentado pela resistência do prota- são válidos e o espectador vive uma experiência - gonista. Ele não pode se entregar. A cada investida, quiçá uma aprendizagem - extremamente didática Maria Clara assimila suas perdas e tenta se reer- de como aniquilar e destruir . Um manual guer ou se manter na arena usando sua compe- - passo a passo - de como se despir dos valores tência, apoiada em sua força moral. É a crença socialmente relevantes e aprender em poucas em si mesma e em seus princípios que a faz forte lições como consumar uma vingança e vencer na diante da adversidade. Seu desprendimento e sua vida. Nenhuma dúvida, nenhuma hesitação deve

ALAIC - 1-85 69 9/27/04, 5:34 PM “A força da personagem vilã vem de sua determinação, da simplificação de suas características psicológicas: um ser de muita ação e nenhum conflito na sua trajetória de crueldades rumo à consecução de seu objetivo.”

toldar esse trajeto. Obstáculos que ameaçam os o “plano”, o tipo de personagem que nunca sur- propósitos do vilão são prontamente contornados preende o leitor; ao contrário, lhe dá o prazer de ou superados com ameaças, subornos, alicia- sempre cumprir suas expectativas. Sabemos agora mentos e intimidações. Personagens ingênuas são que o personagem de tipo forte (ou “plano”) deriva convertidas em coadjuvantes importantes, pois da narrativa oral primária, que não pode oferecer confiam nele e lhe prestam serviços por acredita- personagens de outro tipo. O personagem típico rem na seriedade de seus propósitos e em suas (plana) serve tanto para organizar a linha narrativa promessas. como para administrar os elementos não-narrativos A frieza de Laura decorre de uma obsessiva per- que ocorrem na narrativa (Ong, 1998, p. 170). seguição. Por isso a personagem não tem hesita- Maria Clara ama Fernando até ao sacrifício ções, conflitos, não apresenta qualquer traço de máximo da renúncia. Ambos são belos, jovens, humanidade. Nada do que faz inclui sentimentos empreendedores, apaixonados, virtuosos: são positivos, ou de dúvida. Ela é movida apenas por trabalhadores, constantes, bons filhos, bons pais, certezas. Sua investida cega contra a heroína, Ma- compreensivos, honestos, leais, corajosos, justos. ria Clara, não inclui lampejo algum de consciência Do ponto de vista das categorias de vilão e de sobre estar atingindo o alvo certo. Ela apenas herói, se tomarmos Porto dos Milagres4 como objeto representa o seu oposto, representa a confluência de análise, veremos que Félix (Antônio Fagundes) de positividades que lhe foram negadas. Ao que e Adma (Cássia Kiss) são vilões. A motivação, 70 tudo indica, ela é apenas alguém que usufruiu diferentemente do caso de Laura (de Celebridade), indiretamente de algo que roubaram de sua famí- não é a vingança, mas a ambição sustentada pela lia, o que Maria Clara ignora. Ela mesma não teria usurpação e uma seqüência de atos criminosos usurpado nada, e, deste modo, seria uma vítima para alcançar riqueza, poder e poderes, entre os das circunstâncias, como a própria vilã. quais o político. O herói Guma () A força da personagem vilã vem de sua determi- é um pescador pobre com todas as qualidades e nação, da simplificação de suas características psi- virtudes. Ignorando ser o legítimo herdeiro dos cológicas: um ser de muita ação e nenhum con- bens usurpados por Félix (o todo-poderoso da flito na sua trajetória de crueldades rumo à con- cidade e da região), ele cumpre seu percurso de secução de seu objetivo. Laura pode se enquadrar construção paulatina como herói, apenas se na categoria que Forster classifica como perso- defendendo e resistindo às investidas do vilão Félix nagem plana. e da super vilã Adma Guerrero. Na realidade, temos À sua maneira, o leitor moderno entendeu a uma família inteira de vilões: pai, mãe, filho e ainda “caracterização” convincente na narrativa ou no um empregado5. drama como a produção do personagem “redondo”

- para empregar o termo de E.M. Forster (1974, 4 Telenovela de e Ricardo Linhares, Rede Globo, pp. 46-54) -, aquele que está “cercado pela veiculada no horário nobre de 5/2 a 28/9/2001. imprevisibilidade da vida”. Oposto ao “redondo” é 5 Sobre o assunto ver Motter, 2002.

ALAIC - 1-85 70 9/27/04, 5:34 PM O herói tem adjuvantes fracos, mas muitos. formidade com essas leis. O que distingue uma Ainda em Porto dos Milagres, Rosa Palmeirão personagem de nós é que o relacionamento hu- (Luiza Tomé), sua tia, é uma peça importante por mano, considerado em si mesmo e não como uma não só dominar o segredo da identidade do herói contingência social, é visto como se fosse um es- como ainda atuar para desvendar o segredo e vin- pectro. Não podemos nos compreender uns aos gar-se do malfeitor. Aqui temos também um pe- outros senão de um modo imperfeito, não pode- queno desvio com relação à punição do mal. Félix mos nos revelar nem mesmo quando o queremos. sai vencedor, mesmo quando sua trajetória cri- [...] O que chamamos de intimidade é apenas um minosa é revelada. Apenas não usufruirá a glória expediente temporário; o conhecimento perfeito é conquistada por não ter conseguido o perdão de uma ilusão. Mas num romance podemos conhecer Rosa, que o mata no ato de posse como go- as pessoas perfeitamente e, à parte do prazer geral vernador do Estado da Bahia, pondo seu objetivo da leitura, podemos encontrar aqui uma de vingança acima da paixão que nutria por ele. compensação para sua imprecisão na vida. Neste Adma e o filho foram castigados. Guma recupera sentido, a ficção é mais verdadeira que a história, o que lhe é de direito, mas como se recebesse um pois vai além dos fatos comprovados, e cada um de prêmio, já que cumpriu sua trajetória heróica sem nós sabe, pela própria experiência que existe algo auxílio dos bens que lhe foram roubados. além dos fatos, e mesmo que o romancista não o Mais um herói que apenas reage ao vilão, mas tenha captado corretamente, ao menos tentou que sai fortalecido a cada investida do inimigo. De (Forster, 1969, pp. 48-49). um modo geral, o que se observa em muitas te- lenovelas, sobretudo nas mais recentes, não são Em síntese, as personagens do romance heróis em busca da consecução de um destino, mas protagonistas heróicos constituídos como tal no [...] são pessoas cujas vidas secretas são ou po- enfrentamento de vilões que são construídos com deriam ser visíveis; nós somos pessoas cujas vidas a determinação de convergirem sua astúcia para secretas são invisíveis. Eis porque os romances, 71 planejar e executar, com precisão cirúrgica, golpes mesmo quando são sobre pessoas perversas, po- sucessivos contra o herói para vencer sua resistência dem nos consolar; sugerem uma raça humana moral e destruí-lo. Como personagens, são planas, mais compreensível e, conseqüentemente, mais pois se movem impulsionadas por sua obsessão. dócil, nos dão a ilusão de perspicácia e poder Qualquer conflito ou dúvida sobre os próprios atos (Forster, 1969, p. 49). poderia enfraquecê-las. Assim, são frias, calculistas, Celebridade tem vilões de grande protagonismo egocêntricas, obstinadas e só enxergam seus e relevância na sua trama. Laura não age sozinha, objetivos. Todavia, tendo como álibi a posição de tem como adjuvante Marcos, um parceiro com- justiceiras, elas ganham a simpatia do público, que petente que, vez por outra, tenta convencê-la de até torce por elas, como se, de certa forma, resga- desistir de seu propósito último, que é tornar-se tassem um pouco as injustiças cotidianas de que é um quase clone de Maria Clara, destruí-la e assu- vítima o telespectador. mir uma identidade social em tudo igual àquela. Forster nos lembra que as personagens de ficção Tal hesitação funciona como um teste para a de- são reais não por serem como nós (embora pos- terminação de Laura e, ao mesmo tempo, esta- sam sê-lo), mas porque são convincentes, e são belece com a vilã uma relação hierárquica: se ele convincentes quando estão de acordo com as leis quer desistir do objetivo por algum lampejo de do romance: sua realidade decorre, pois, da con- medo ou dúvida quanto ao êxito do projeto é por

ALAIC - 1-85 71 9/27/04, 5:34 PM não compartilhar das mesmas certezas que a mo- exibe classe, segurança e obstinação. A persona- vem e isso lhe confere um traço de humanidade e gem é rude, calculista e determinada no comando o inferioriza em relação à vilania absoluta dela. de seus negócios, na manipulação dos parceiros, Outro vilão potente na telenovela é Renato de sua família e das relações sociais. Tornou-se sím- Mendes, o vice-presidente da empresa de com- bolo da corrupção em que estava mergulhado o unicação Vasconcelos. Ele e Laura se enfrentam e Brasil naquele momento (década de 1980). Houve mudam de posição com freqüência, num jogo de forte identificação entre a vilã e o país em que todos força na disputa de objetivos senão comuns, pelo os desmandos, falcatruas e artifícios eram válidos menos muito próximos quanto aos alvos a serem para se manter ou chegar ao poder. Sua parceria atingidos. Talvez seja essa briga de titãs o grande com Maria de Fátima (Gloria Pires), a vilã pobre achado do autor para superar a audiência das tele- que vende a casa da mãe e vai para o Rio de Janeiro, novelas que a precederam. Os vilões são jovens, disposta a enriquecer a qualquer preço, mostra a bonitos, cheios de glamour e sofisticação, vivendo força da “lei de Gerson”, do levar vantagem em num cenário charmoso e requintado, ainda que tudo, contaminando toda a sociedade brasileira e na intimidade se mostrem grosseiros, vulgares e demonstrando que o rico e o pobre podem ser exibam gosto pela luxúria, pelo mundo da igualmente maus e inescrupulosos. prostituição e do crime. Quebra-se o mito da oposição rico mau e pobre Com as atenuantes do parecer, eles passam a bonzinho. Enfatiza-se a ausência de valores e gozar de uma certa simpatia, sobretudo Laura dispositivos de controle social para punir os que que, ao se propor como vítima, justifica sua vin- agem contra a ordem moral. Odete Roithman exibe gança e legitima sua vilania. Embora pouco seu profundo desprezo pelo país e tripudia sobre a consistente, sua motivação consegue ser suficiente falência das instituições. Para legitimar a analogia para gerar o mínimo de ambigüidade necessário entre a ficção e o Brasil real, não há sanção para os para evitar contra a personagem sentimentos de culpados que vão embora do país, dando uma 72 forte rejeição. O senso comum contribui trazendo “banana” para os brasileiros, e reafirma o Brasil argumentos em sua defesa, como “os fins justi- como o país da impunidade. Para Pallottini (2000), ficam os meios” ou “olho por olho, dente por den- a benevolência do autor sugere afastamento da te”, ou ainda, “cada um tem o castigo que merece”. tradição do folhetim ou o desencanto com os Perdoar vilões e atenuar seu castigo é uma for- instrumentos de aplicação da justiça humana. ma de adequação da história à realidade, na qual A morte de Odete Roithman ocorreu por enga- os maus viram celebridades e, com freqüência, se no. Apenas um consolo para o telespectador, um dão muito bem. A política está repleta de exem- acontecimento fortuito, casual, conciliador, mas plos, assim como o mundo dos negócios e do não fruto de uma vitória da ordem sobre o caos. espetáculo. Quando a lei é a lei do mais forte e se Sua fama de grande vilã da telenovela brasileira tem que levar vantagem em tudo (Lei de Gerson), está associada ao suspense provocado pelo mis- as qualidades desejáveis são as do vilão, indepen- tério em torno da identidade do seu assassino, dente do uso que se faça delas: se para o bem ou descoberto alguns dias depois. para o mal. O que importa é vencer ou vencer, independentemente dos meios empregados e do rastro de destruição deixado pelo caminho. 6 Telenovela de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor 6 Odete Roithman (Beatriz Segall em Vale Tudo ) Bassères, Rede Globo de Televisão, veiculada em horário nobre, é uma empresária poderosa e sem escrúpulos, que de 16/5/1988 a 6/1/1989.

ALAIC - 1-85 72 9/27/04, 5:34 PM Na telenovela A Próxima Vítima7, a grande ex- de decidir sobre a consagração de alguém, pectativa girava em torno da descoberta do serial Gilberto Braga preferiu não se arriscar nesse papel killer, que matou, um a um, várias personagens. de “Deus”, já que não é uma personagem, mas o Assim, havia também uma pergunta insistente e autor, dono do destino de suas criaturas ficcionais grande curiosidade sobre quem seria a próxima e não do de seres humanos reais. vítima até a revelação da identidade do assassino, no último capítulo8. Em Vale Tudo, a pergunta era “O que chama a atenção e desafia a análise é a quem matou Odete Roithmam, em O Astro9, predominância de personagens maniqueístas no quem matou Salomão Hayala (Dionísio Azevedo) e agora, com Celebridade, o mistério de dois assas- papel de vilões assumindo o protagonismo.” sinatos gerou a pergunta: quem matou Lineu? Como reza o modelo do folhetim, um vilão for- Num final de muita ação, Laura e Marcos são te tem que ser uma personagem plana, sem densi- mortos por Renato Mendes. Enquanto a polícia dade psicológica, sem conflitos: apenas determi- cerca a casa, Laura, agonizante, confessa o duplo nação cega para seus objetivos. Claro que o desem- assassinato e revela como e porque matou Lineu. penho do ator conta e conta muito, sempre. Quan- Isso frustrou um pouco a audiência. Não se sus- do uma personagem bem construída encontra um peitava que em meio a tantas culpas, a vilã car- bom ator, o casamento gera personagens inesque- regasse mais essas. Com esta sobrecarga transgres- cíveis. Odete Roithman marcou Beatriz Segall e sora, a morte como castigo foi considerada, para entrou para a história da telenovela, assim como significativa parcela dos telespectadores, uma Maria de Fátima consagrou Glória Pires e provavel- punição muito branda. mente acontecerá com Laura em relação à Cláudia O que chama a atenção e desafia a análise é a Abreu. O tipo de vilão que estamos focalizando predominância de personagens maniqueístas no acaba por ser uma personagem desejada. Bons ato- papel de vilões assumindo o protagonismo nas res, que fazem uma carreira como personagens tramas das últimas telenovelas brasileiras nos 73 bonzinhos, não se sentem realizados se não in- diferentes horários da emissora de TV (Rede Glo- cluem em sua história profissional um vilão forte. bo) que tem a hegemonia da audiência. Nelas, os Enquanto não se revelava quem seria o assassino heróis se empalidecem diante da pujança dos seus em Celebridade, especulava-se sobre a sorte da- antagonistas e esse deslocamento coincide com o quele(a) que o encarnaria. O jovem ator Márcio aumento progressivo da audiência. Embora possa Garcia, o Marcos, parceiro de Laura, era um forte ter um peso relativo como justificativa para o candidato. Circulava nos meios artísticos e na fenômeno, o destaque que vem sendo dado ao imprensa que, se ele fosse escolhido para ser o vilão pode ser uma entre as variáveis que impul- criminoso da trama, sairia da telenovela como um sionam esses índices. ator maduro e consagrado, entrando para a Ao lado deste, outros fatores sinalizam para um galeria dos vilões célebres na história da telenovela retorno ao folhetim e ao melodrama clássico, brasileira. Tendo em suas mãos a responsabilidade como as fórmulas simplificadoras e os esquemas fixos de que são exemplos o exame de DNA para 7 Telenovela de Silvio de Abreu, Rede Globo de Televisão, comprovação de paternidade, observados nos veiculada no horário nobre de 13/3 a 3/11/1995. capítulos de um mesmo dia em três diferentes 8 Sobre o assunto ver Motter, 2003. telenovelas da mesma emissora: às vinte horas em 9 Telenovela de Janete Clair, Rede Globo de Televisão, veiculada no horário nobre de 6/12/1977 a 8/7/1978. Celebridade, às dezenove horas em Da Cor do

ALAIC - 1-85 73 9/27/04, 5:34 PM Pecado e às quinze horas em uma reprise do Vale vela, como é o caso do deslocamento da ênfase a Pena Ver de Novo; e o recurso ao suco de laranja do herói para o vilão, corresponde um menor cui- com adição de sonífero nas duas primeiras, no dado com a microestrutura narrativa e detalhes mesmo dia, usado pelos vilões ou seus auxiliares de produção erosivos para a coerência e a veros- para fazer dormir personagens, comprometer os similhança da telenovela. A nosso ver, eles fun- heróis ou preparar-lhes ciladas, nos capítulos das cionam como um alerta: a satisfação produzida duas primeiras telenovelas citadas. No início da pelo aumento dos índices de audiência pode telenovela Senhora do Destino10, que sucedeu constituir uma séria ameaça para o diferencial de Celebridade, assistimos a dois funerais: um às de- qualidade da emissora e firmar a tendência de re- zenove horas (Afonso, interpretado por Lima baixamento no nível artístico e no conteúdo social Duarte, em ) e outro às 21 horas da teledramaturgia televisiva brasileira, que po- (Leila, interpretada por Maria Luísa Mendonça, derá transformar sua criação ficcional em mais em ). um produto de consumo, entre tantos outros do Poderíamos acrescentar muitos outros exem- setor, no mundo industrial da cultura. plos de simplificação e descuido na tessitura de Finalmente, caberia pensar sobre o caráter he- narrativas recentes, como o esquecimento que gemônico da emissora nesse domínio, no qual não deixou sem solução o mistério da paternidade de tem concorrentes nacionais e, em termos de qua- Maria Clara (Celebridade), o de incoerências iden- lidade, também internacionais, em relação à busca tificadas em Senhora do Destino, como a não cor- de superação de índices de audiência, que não diz respondência entre o tempo da história (primeira respeito a outros canais ou redes de televisão, mas fase 1968 e segunda, “25 anos depois”, portanto, a ela própria; que num passado sem TV por as- 1993), e usos, costumes e tecnologia (carros, sinatura, contabilizou números bem mais expres- celulares, programas de computador) do tempo sivos. Por este raciocínio, a emissora estaria em uma do discurso (2004, ano em que a telenovela é es- disputa de audiência com ela própria. Todavia, a 74 crita, gravada e levada ao ar), mas estaríamos fu- questão envolve intrincadas preocupações de gindo ao propósito deste trabalho. ordem econômica, prevenção de riscos e incertezas Tais registros já sugerem, todavia, que às mu- do futuro num mundo de rápidas transformações, danças identificadas na macroestrutura da teleno- a serem discutidos em uma outra oportunidade.

10. Telenovela de Aguinaldo Silva, Rede Globo de Televisão, veiculada em horário nobre, iniciada em 28/6/04.

BIBLIOGRAFÍA

FORSTER, E.M. Aspectos do romance. Porto Alegre, Globo, 1969. ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. MOTTER, M.L. Telenovela e campanha política: porto dos milagres. São Paulo: Papirus, 1998. In: BARROS FILHO, Clóvis de (org.). Comunicação na Polis: ensaios PALLOTTINI, Renata. Telenovela: os bons e os maus. XXIII IN- sobre mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2002. TERCOM, GT 21 Ficção Televisa e Seriada. Manaus: 02 a 06 de setem- MOTTER, M.L. Ficção e realidade: a construção do cotidiano na tele- bro de 2000. novela. São Paulo: Alexa Cultural, 2003.

ALAIC - 1-85 74 9/27/04, 5:34 PM