As Telenovelas Brasileiras: Heróis E Vilões

As Telenovelas Brasileiras: Heróis E Vilões

AS TELENOVELAS BRASILEIRAS: HERÓIS E VILÕES Maria Lourdes Motter Professora livre-docente da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, coordenadora do NPTN-ECA USP e do Núcleo de Pesquisa Ficção Seriada da Intercom. É autora dos livros Ficção e história: imprensa e construção da realidade e Ficção e realidade: a construção do cotidiano na telenovela. E-mail: [email protected] 64 ALAIC - 1-85 64 9/27/04, 5:34 PM RESUMO O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre o modelo atual de telenovela brasileira, buscando identificar nas narrativas os deslocamentos que a afastam da qualidade crescente alcançada na última década. Categorias de personagens como herói e vilão são analisadas para avaliar o grau de protagonismo de cada um e identificar, nas telenovelas no ar no primeiro semestre de 2004, possível inclinação tendencial para a simplificação narrativa - com repetição de fórmulas, estratégias e esquemas maniqueístas - e recuperação de elementos do folhetim clássico. PALAVRAS-CHAVE: TELENOVELA • PERSONAGEM • HERÓI • VILÃO •BRASIL. ABSTRACT The current paper aims to ponder on the current model of Brazilian telenovelas, so as to detect in the narrative the causes for the downgrading in the quality that marked the past decade. Character categories such as heroes and villains are analyzed to assess their degree of protagonism and to spot in first-half 2004 telenovelas a possible tendency towards simplifying the narrative, by repeating formulae, strategies and manicheistic schemes, and recovering elements that belong to the classical folhetim (daily novel chapters formerly published in newspapers). KEY WORDS: TELENOVELA • CHARACTER • HERO • VILLAIN • BRAZIL. RESUMEN Este trabajo tiene por objetivo reflejar el modelo actual de la telenovela brasileña, buscando identificar en las narrativas las dislocaciones que la separan desde la creciente calidad 65 alcanzada en la última década. Las categorías de personajes como el héroe y el villano son analizadas para evaluar el grado de protagonismo de cada uno e identificar, en las telenovelas televisionadas en el primer semestre de 2004, la posible inclinación tendencial para la simplificación narrativa - con la repetición de fórmulas, estrategias y esquemas maniqueístas - y la recuperación de elementos del folletín clásico. PALABRAS-CLAVE: TELENOVELA • PERSONAJE • HÉROE • VILLANO • BRASIL. ALAIC - 1-85 65 9/27/04, 5:34 PM Na telenovela, como na história das narrativas cotidiano dissolvente, os ofendidos e oprimidos por que atravessam o tempo, o herói deve ser alguém um sistema social cruel (como Fabiano em Vidas que tenha qualidades se não excepcionais, pelo Secas, de Graciliano Ramos), se afirmam pela menos diferenciadas. Suas virtudes nascem da negativa mais do que pela positiva. E deste modo relação que se estabelece entre ele e seus antago- invertido reinterpretam a condição de centralidade nistas, os quais podem ser vários ou tão-somente que o herói conhecera (Reis e Lopes, 1988, p. 193). um, podem ser da ordem dos homens comuns O conceito de herói relaciona-se com uma con- ou seres imaginários como deuses ou entidades cepção antropocêntrica da narrativa em torno do sobrenaturais, pode ser representado por animais, qual ela existe e se desenvolve. Ele é uma figura máquinas ou artefatos desconhecidos ou seres central que se destaca dos outros seres que po- estranhos - estes mais próprios de filmes ou ficção voam a história como protagonista qualificado destinada ao público infantil ou juvenil. Os anta- “Esta e as categorias que a estruturam são, pois, gonistas podem ser simplesmente um conjunto organizadas em função do herói, cuja intervenção de dificuldades banais que impedem a consecução na ação, posicionamento no espaço e conexões de sua trajetória na busca de uma realização. com o tempo contribuem para revelar sua cen- O próprio conceito de herói varia no tempo: se tralidade indiscutível” (Reis e Lopes, 1988, p. 210). na época das grandes descobertas os heróis eram O herói é uma personagem, categoria funda- navegadores, que se arriscavam no desconhecido mental da narrativa. para vencer perigos e realizar conquistas para seu Na narrativa literária (da epopéia ao romance e rei ou seu povo, ou estrategistas que venciam pela do conto ao romance cor-de-rosa), no cinema e na astúcia lutas e guerras contra um inimigo para história em quadrinhos, no folhetim radiofônico ou anexar terras, dominar povos e expandir um im- na telenovela, a personagem revela-se, não raro, o pério, com o Renascimento e o Romantismo o eixo em torno da qual gira a ação e em função do herói vai se configurar de modo privilegiado. No qual se organiza a economia da narrativa [...]. Os 66 Renascimento, o herói expressa a capacidade hu- escritores testemunham eloqüentemente o relevo e o mana de enfrentar a intransigência dos deuses e poder impressivo da personagem; Flaubert revela: a adversidade dos elementos da natureza e no Ro- Quando escrevi o envenenamento de Emma Bovary, mantismo, em cenário histórico-social diverso, o tive na boca o sabor do arsênico com tanta herói vai enfrentar um percurso cheio de obstá- intensidade, senti-me eu mesmo tão autenticamente culos, solitário e em conflito com as convenções envenenado, que tive duas indigestões [...] (Reis e sociais. Esse herói romântico tende a surgir no Lopes, 1988, p. 215). curso de uma viagem ou de um percurso atribu- No mundo atual, com domínios mapeados e lado de sua vida, caracterizado pela impossibi- consolidados, pouco resta para a produção de lidade de harmonizar seus ideais com os cons- grandes heróis como os da Antigüidade Clássica. trangimentos impostos pelo sistema social e im- Cessadas as grandes circunstâncias que propicia- pedimento para que eles se realizem. vam o nascimento e a consagração de heróis, o É a partir do Realismo e do Naturalismo que a mundo contemporâneo centra-se no conhecido figura do herói aparece despojada das marcas de e no cotidiano rotineirizado, onde produção, co- excepcionalidade que no Romantismo conhecera; mércio, mercado e tecnologia enlaçam e restrin- as personagens em quem se centra o processo crí- gem as dimensões de um vasto e antes desconhe- tico de uma sociedade em crise, a irônica recons- cido espaço em uma aldeia loteada e atada por tituição dos percursos épicos desvirtuados por um uma trama de comunicação que a torna global. ALAIC - 1-85 66 9/27/04, 5:34 PM “Na telenovela, como na história das narrativas que atravessam o tempo, o herói deve ser alguém que tenha qualidades se não excepcionais, pelo menos diferenciadas.” Se antes a função do herói pressupunha quali- golpe, o adversário com outro mais astucioso, dades pessoais de caráter, força física e moral com mais esperto e inteligente que o anterior. finalidade que transcendia o individual e visava Naturalmente, ele começa a nascer de um mo- sempre ao engrandecimento de um grupo, reino, tivo. Um motivo que pode ser forte ou pueril, que povo ou nação, hoje, são as finalidades do indi- pode estar enraizado num trauma: vingança, res- víduo que prevalecem. Não sendo nossa intenção gate, superação; ou num jogo de ultrapassagem de focalizar a ficção em geral ou a literária, mas sim sua condição social: “vencer ou vencer”, numa a da telenovela brasileira, que preenche parte competição por sucesso pessoal ou consagração substancial da programação de nossa maior rede social. Na ficção, o motivo mais comum é a vin- de televisão aberta, procuraremos verificar como gança como reação a prejuízo que se julga ter so- se configuram os heróis nas narrativas atuais e o frido. Se a motivação de base do vilão é falsa ou espaço que lhes é reservado, suas qualidades e seus verdadeira, é outra história. É difícil imaginar que campos de ação. uma personagem virtuosa como Maria Clara (Ma- Quais as possibilidades deixadas à fabricação lu Mader em Celebridade) tenha sido diferente no de heróis nas narrativas que povoam o imaginário passado - má na infância e na adolescência - como de consumidores de produtos da indústria cultu- acredita Laura (Cláudia Abreu). Parece incoerente ral como a telenovela? Se tomarmos como parâ- e inverossímil uma mudança tão radical: Maria metro a novela Celebridade1, que terminou em Clara não só é boa, como ingênua, chegando a ser junho de 2004, e a que ainda permanece no ar simplória, por não perceber as articulações golpis- 67 em agosto de 2004, Da Cor do Pecado2, podemos tas de sua inimiga, que só será identificada como afirmar que aos heróis cabe apenas resistir e esca- tal quase no fim da telenovela. De qualquer modo, par das armadilhas preparadas pelo adversário. na história, ela coincide com o modelo de mulher O trabalho de escultura do herói desloca-se para e empresária bem-sucedida, que Laura não seria o seu oponente, o vilão. Pallottini, citando Wla- por usurpação daquela. Laura julga ter sido rouba- dimir Propp, define o vilão como o antagonista, da e, por isso, castrada nas suas possibilidades de o malfeitor ou o bandido, a personagem que faz ter a trajetória de êxitos que coube a Maria Clara. o mal. Ele é o responsável pelo infortúnio que Assim, rouba para ter o que quer, quando poderia, golpeia o herói e obstrui seu caminho para o ob- por seu talento, apenas concorrer com ela no cam- jeto ou para o seu destino ou para sua felicidade. po profissional, já que inteligência, bom gosto, bele- O vilão deve ser construído com requinte para za, elegância, esperteza e capacidade de ação não derrubar, a cada tentativa de recuperação de um lhe faltam. Exemplo negativo, que receberá sua sanção no 1 Telenovela de Gilberto Braga, Rede Globo de Televisão, final da história, Laura, com comportamentos an- veiculada em horário nobre, de 13/10/03 a 25/6/04. tiéticos e amorais, representa um estímulo per- 2 Telenovela de João Emanuel Carneiro, Rede Globo de Televisão, manente à adoção de seu modelo e de suas prá- veiculada em horário nobre, iniciada em 26/1/04.

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