UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

Maria Beatriz Cyrino Moreira

UM CORAÇÃO FUTURISTA: DESCONSTRUÇÃO CONSTRUTIVA NOS PROCESSOS COMPOSICIONAIS DE NA DÉCADA DE 1970

CAMPINAS 2016

Maria Beatriz Cyrino Moreira

UM CORAÇÃO FUTURISTA: DESCONSTRUÇÃO CONSTRUTIVA NOS PROCESSOS COMPOSICIONAIS DE EGBERTO GISMONTI NA DÉCADA DE 1970

Tese de doutorado apresentada ao programa de Pós-graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Música na área de concentração Fundamentos Teóricos.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Rafael Carvalho dos Santos ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA MARIA BEATRIZ CYRINO MOREIRA E ORIENTADA PELO PROF. DR. ANTONIO RAFAEL CARVALHO DOS SANTOS.

Campinas 2016

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2012/05846-2; CAPES

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Moreira, Maria Beatriz Cyrino, 1985- M813c MorUm coração futurista : desconstrução construtiva nos processos composicionais de Egberto Gismonti na década de 1970 / Maria Beatriz Cyrino Moreira. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

MorOrientador: Antonio Rafael Carvalho dos Santos. MorTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Mor1. Gismonti, Egberto, 1947-. 2. Música instrumental - Brasil. 3. Música popular - Brasil - 1970-1979. 4. Canções - Brasil. I. Santos, Antonio Rafael Carvalho dos,1953-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: A futuristic heart : constructive deconstruction in compositional processes of Egberto Gismonti in the 1970s Palavras-chave em inglês: Gismonti, Egberto, 1947- Instrumental music - Popular music - Brazil - 1970-1979 Songs - Brazil Área de concentração: Fundamentos Teóricos Titulação: Doutora em Música Banca examinadora: José Alexandre Leme Lopes Carvalho Carlos Gonçalves Machado Neto Rurion Soares de Melo Sérgio Augusto Molina Paulo José de Siqueira Tiné Data de defesa: 30-08-2016 Programa de Pós-Graduação: Música

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Agradecimentos

À Fapesp.

À CAPES.

Aos meus pais Ângela e João, pessoas incrivelmente motivadoras que foram meu suporte durante todo o período de formação acadêmica.

À Unicamp, que se tornou uma casa generosa e abundante – fomentando meu interesse pela pesquisa.

Ao Prof. Rafael dos Santos, pela parceria, paciência, conselhos e inspiração.

Ao Prof. José Roberto Zan, pelas idéias, discussões, suporte e inspiração.

Ao grupo de pesquisa “Música popular: produção, história e linguagem”, em especial aos amigos, Rodrigo Vicente, Thais Nicodemo, Adelcio Machado, Gabriel Rezende, Almir Côrtes, Ismael Oliveira, Sheyla Diniz, Sheila Zagury, Rafael Tomazoni e Guilherme Freire, que dividiram as agruras do mestrado e doutorado.

A todos os colegas da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), pela compreensão, paciência e suporte dado nos últimos semestres do doutorado.

Aos membros da banca de defesa, professores doutores Sérgio Molina, Zé Alexandre de Carvalho, Rurion Soares Melo, Cacá Machado e Paulo Tiné, pelas valiosas contribuições ao trabalho.

A Egberto Gismonti e Geraldo Carneiro, por cederem seus tempos em entrevistas e conversas por email.

A Alberto Ferreira, por todo carinho, atenção, conselhos, conversas, críticas e inspiração.

Resumo

Este trabalho consiste em uma investigação sobre o início da carreira do músico brasileiro Egberto Gismonti entre os anos de 1969 e 1977. A pesquisa procura contextualizar a inserção do artista dentro do campo da música popular brasileira no período de transição das décadas, marcado por transformações diversas dentre as quais podemos citar a expansão da indústria fonográfica e seu desenvolvimento tecnológico e as transformações estéticas da canção popular, que se via cada vez mais abertas às informações de gêneros e estilos estrangeiros. Durante este período observa-se ainda o trânsito de Gismonti entre os universos da canção e da música instrumental. Procuramos assim, através da análise do material musical, desvendar os conflitos e as realocações dos mais diversos recursos composicionais presentes nos fonogramas, nos quais experimentalismo, recriação, transcrição/reescritura e novas sonoridades amparadas pela tecnologia parecem ser ferramentas analíticas indispensáveis para se compreender as articulações criativas de Gismonti deste período.

Palavras Chaves: Egberto Gismonti, música popular brasileira, década de 1970, canção popular, música instrumental brasileira.

Abstract

This work is an investigation about the beginning of Brazilian musician Egberto Gismonti's career between the years 1969 and 1977. The research aims to contextualize the artist's inclusion within the field of Brazilian popular music in the transitional period between those decades, marked by several changes among which we can mention the expansion of the music industry and its technological development and aesthetic transformations of popular song, which was more and more open to information genres and foreign styles. During that period we can also observe the transit of Gismonti between the worlds of song and instrumental music. Thus we seek, by analyzing the musical material, uncover conflicts and reallocations of various compositional features present in the phonograms in which experimentalism, recreation, transcription and new sounds supported by technology seem to be indispensable analytical tools to understand Gismonti’s creative articulations from that period.

Key words: Egberto Gismonti, brazilian popular music, 1970´s, popular song, brazilian instrumental music.

Índice

Introdução ...... 10

Capítulo I ...... 16 1. Egberto Gismonti – Situando o objeto...... 16

Capítulo II...... 34 1. O campo da MPB pós-1968...... 34 2. Debate da Revista Civilização Brasileira – Os caminhos da MPB .... 36 3. A canção popular e suas transformações no pós-1960 – referências teóricas ...... 39 4.Inclusão e Recriaç ão como práticas na música popular brasileira... 41 5. Transcrição como desconstrução construtiva...... 44 6. Experimentação ...... 47 7. Sonoridades ...... 53 8. Perspectivas do olhar o objeto – Como se estruturam as análises..... 56

Capítulo III...... 60 1. Boa bossa, Bach ou Beatle bem bacana? ...... 60 2. Adormece canção acorda música instrumental – Os “sonhos” de Egberto Gismonti...... 67 3. Considerações sobre os resquícios do “nacional popular” nas faixas “Salvador”, “P´rum samba”, “Atento e alerta” e “P´rum espaço”...... 81 4. A recriação em duas versões de “Janela de Ouro” ...... 86

Capítulo IV ...... 100 1. O -rock, o fusion e suas características ...... 100 2. Os discos Academia de Danças de 1974 e Corações Futuristas 1976107 3. Dança das cabeças...... 114 4. A viagem no “Trem Noturno” de Egberto Gismonti ...... 127

5. A recriação no “pianismo de Gismonti”: O exemplo de “Ano Zero”139 6. A recriação nos sambas soltos de “Café” ...... 163

Capítulo V...... 181 Discursos de permanência em meio às transitoriedades...... 181 Considerações Finais ...... 189

Bibliografia ...... 192

ANEXO I...... 200 ANEXO II...... 217

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Introdução

A idéia de se aprofundar na obra de Egberto Gismonti surgiu a partir da experiência de pesquisa obtida durante o mestrado, no qual os esforços concentraram- se na tentativa de compreensão da música popular brasileira feita na transição das décadas de 1960 e 1970, período de grande efervescência cultural. Neste período, originaram-se diversos grupos musicais que assimilavam em suas sonoridades uma amplitude de gêneros e estilos diversos, configurando o que alguns chamam de produções “híbridas”, outros de “experimentação” e outros ainda de “fusão” das características polarizadoras - “erudito X popular”, “culto X massivo”, “nacional X internacional”. Muitos destes grupos 1 obtiveram menor sucesso comercial em relação aos grandes nomes da MPB, mas ajudaram a transformar o cenário da música popular brasileira e a promovê-lo como um tipo de segmento de grande impacto não só regional ou nacional, mas fundamentalmente global. Em 2011, assim como boa parte do público consumidor da “música instrumental brasileira”, conhecia apenas os trabalhos de Gismonti que o levavam a figurar como um exímio instrumentista dentro do cenário musical e tomava como verdade, sem muitos questionamentos, o fato de sua música realizar uma “mistura” entre o popular e o erudito. Como vinha trabalhando majoritariamente com formas musicais derivadas da canção, almejava me aprofundar na obra musical de artistas- instrumentistas, de modo que o trabalho contribuísse para a área dos estudos da música popular, através de uma discussão multidisciplinar, de um tipo de repertório pouco estudado. Foi neste momento que me deparei com o primeiro disco de Gismonti de 1969. Surpreendida pela data do LP, levando em consideração a noção de que seus trabalhos mais reconhecidos datavam da década de 1980, foi uma grande surpresa perceber que um dos ícones da música instrumental brasileira parecia ter iniciado sua atuação no mercado compondo canções. Veio então o conhecimento de toda uma discografia que percorre a década de 1970, na qual, além de compor e cantar suas próprias canções, Gismonti envereda por distintos caminhos estéticos, da música de concerto romântica à dodecafônica, do jazz ao rock e funk, do samba à bossa nova,

1 Clube da Esquina, , Som Imaginário, Mutantes, Secos e Molhados, Jards Macalé, Novos Bahianos, Walter Franco, etc. A lista de artistas das mais variadas linhas que surgem neste período é grande. E são cada vez mais numerosos os trabalhos que tratam destes temas. Ver por exemplo, NICODEMO, 2009 e 2015; DINIZ, 2012; FREIRE, 2015; SANTOS, 2010; ZAN, 2006.

11 do frevo e baião à música indígena. Esta constelação de elementos díspares se funde em estruturas nada convencionais, mas que possuem, em certa medida, uma organização primária dos códigos capaz de jogar com as nossas expectativas de ouvintes. Desta maneira, fez-se a escolha de se aprofundar neste material, sabendo de antemão que o grande desafio seria encontrar uma ferramenta de análise musical que pudesse dar conta de todo o conteúdo intrincado e de certa forma caótico que se apresentava naqueles discos. Optei por delimitar meu material de análise musical em 8 discos de Gismonti. São eles: Egberto Gismonti (1969), Sonho 70 (1970) , Orfeu Novo (1971), Água e Vinho (1972), Egberto Gismonti (árvore) (1973), Academia de Danças (1974), Corações Futuristas (1976) e Carmo (1977). Uma boa parte da pesquisa, assim como supostamente deve ser todo aprofundamento sobre o material musical estudado, foi dedicada à escuta atenta dos fonogramas e a transcrição inicial de alguns deles. Centrei-me na transcrição mais detalhada das linhas melódicas principais, do piano e contrabaixo, enquanto foram identificadas as harmonias do violão e algumas levadas rítmicas sem uma pormenorização das aberturas específicas da primeira e da distribuição das figuras rítmicas dos instrumentos de percussão, empreitada laboriosa para não-especialistas nestes instrumentos. O material era rico e instigante. Foram feitas transcrições que não aparecerão neste trabalho, realizadas num momento em que ainda não me eram claros os critérios de agrupamento nas amostragens das análises. No início, a seleção de fonogramas se mostrava quase impossível. Ao longo da pesquisa, fui delimitando um número de fonogramas tendo como princípio fundamental destas escolhas as composições que apareciam regravadas e com arranjos distintos em diferentes álbuns. Disto resultou a seguinte proposta, que incluem os fonogramas descritos na tabela abaixo:

Canção Instrumental O sonho (1969) O sonho (1971) O sonho (1970) Prum Samba (1969) Salvador (1969) Prum Samba (1972) Salvador (1973) Janela de Ouro (1972) Janela de Ouro (1970) Ano Zero (1972) Ano Zero (1976) Trem Noturno (1976) Dança das cabeças (1976) Café (1977) Café (1976)

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Num segundo momento, fundamental para a pesquisa, buscou-se por documentos históricos que permitiriam uma visualização mais ampla das condições mercadológicas a que Gismonti estava submetido durante o período estudado. Foram coletados em torno de 40 reportagens de jornais e revistas datas entre 1969-1977. Entre 2013 e 2014 foram realizadas duas entrevistas importantes. A primeira, com o poeta e letrista Geraldo Carneiro, parceiro de composição e produtor de alguns dos Lps deste período e a segunda com o próprio Egberto Gismonti, ambas na cidade do . Infortunadamente, um problema com os arquivos gravados da conversa com Gismonti fez com que boa parte do registro se perdesse. Para minha surpresa e alívio, recentemente foi divulgada na internet uma entrevista bastante detalhada com Egberto Gismonti realizada pelo músico Charles Gavin, a qual veio suprir parte desta perda. Gavin é responsável por um projeto que disponibiliza este e outros materiais de entrevistas exclusivas realizadas com inúmeros personagens da música popular brasileira que gravaram discos importantes da história desta música. 2 Coincidentemente, esta entrevista abordava a história do disco Academia de Danças e se assemelha bastante ao relato que ouvi do próprio Gismonti no dia em que pude realizar a entrevista. O lançamento do álbum Academia de Danças é um ponto de transformação na carreira de Gismonti e um dos eixos fundamentais desta pesquisa, juntamente com o disco Coração Futuristas, o qual foi uma extensão das experimentações de seu irmão precedente. Neles, Egberto se dedica mais à música instrumental e suas composições passam a carregar uma forte influência do jazz-rock ou fusion , suportadas por procedimentos sonoros “experimentais”, equipamentos eletrônicos e expansão dos materiais de composição. Feitas as justificativas que impulsionaram a realização desta pesquisa, passo a uma breve explanação da estrutura desta tese e do conteúdo de seus capítulos: O capítulo 1 é dedicado à apresentação detalhada dos álbuns selecionados. Nele, estão expostas informações a respeito destes discos, incluindo gravadoras, músicos participantes e suas principais tendências estético-musicais.

2 O projeto, inicialmente pensado como um programa de televisão intitulado “Som do Vinil”, disponibiliza seu material no site http://osomdovinil.org . O link para a entrevista com Gismonti é http://osomdovinil.org/egberto-gismonti-academia-de-dancas--odeon-1976/ . Além de site foi lançada uma coleção de livros pela editora Imã Editorial.

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No capítulo 2, proponho a discussão de dois eixos teóricos básicos que orientam esta pesquisa: um deles voltado à contextualização do período histórico- social e outro às discussões de conceitos estéticos concernentes à música popular brasileira, tendo como fundamento básico a transformação da canção popular em fins da década de 1960, sua abertura a novos estilos, sua interação com o mercado e com os novos meios tecnológicos. No primeiro eixo, são tomadas as observações feitas por Marcos Napolitano em seu livro “Seguindo a Canção”, que contribui na formulação de um panorama mais completo da situação sócio-histórica deste contexto. Em seguida, apresentamos o debate publicado na Revista da Civilização Brasileira, que nos dá exemplos das formulações e posições sócio-culturais e estéticas materializados nos discursos dos atores sociais que ajudavam a construir este campo. Em um terceiro momento, adentramos a discussão específica da transformação estética da canção popular, utilizando como principais referências o trabalho de Santuza Naves e Sérgio Molina. No segundo eixo, discuto quatro importantes vetores estéticos que considero importantes para a compreensão deste recorte da obra de Gismonti. São eles: “Inclusão e recriação”, “Transcrição ou reescritura”, “Experimentação” e “Sonoridades”. É no final do capítulo, no “item 8” intitulado “Perspectivas do olhar o objeto – Como se estruturam as análises”, que apresento o planejamento destas a partir das discussões apresentadas, junto à incorporação de alguns referencias do pesquisador Sérgio Freitas sobre harmonia e forma. No início do capítulo 3 são aprofundadas questões sobre a identidade de Gismonti nos primeiros anos da carreira, entre 1969 e 1971. Discute-se sua participação no Festival da Canção e os referentes apontamentos da crítica especializada, que tentava “encaixá-lo” em algum segmento, gênero ou estilo do campo da música popular. Discute-se ainda a oposição entre as estéticas do “mínimo” e do “máximo” em suas composições e relativiza-se sua posição dentro da indústria fonográfica como parte do casting dos “artistas de prestígio”. Em seguida, apresento as análises das três versões de “O sonho”, primeira composição de Gismonti a participar do Festival da Canção e obter maior reconhecimento do público. Nesta análise, poderemos ver como esta composição se transforma e se recria nas três versões, numa contínua transmutação da relação letra e música junto a um movimento que oscila entre uma roupagem sonora mais “erudita”,

14 no de herança modernista, e uma interação com elementos “estrangeiros” do funk e do jazz . No item 3 deste capítulo, trato de apontar os resquícios dos elementos de caráter “nacional-popular” que aparecem em algumas composições; “Salvador”, “P´rum samba”, “Atento e alerta” e “P´rum espaço”. Em seguida analisaremos as duas versões de “Janela de Ouro”. O processo de transcrição e recriação evidencia a tendência da desconstrução de uma narrativa linear que se apóia na tradicional distribuição da instrumentação como ferramenta de contraste entre as seções para uma ambiência sonora mais regionalista onde eventos sonoros surgem sob uma textura rítmica redundante executada por piano e contrabaixo. Inicio o capítulo 4 com uma discussão sobre o gênero musical jazz rock ou fusion , mencionado como referência estética e sonora para as produções de Gismonti a partir do disco Academia de Danças. Optei por abrir um espaço neste trabalho para a apresentação de um breve panorama histórico do gênero, levando em consideração as importantes constatações realizadas por John Covach em um dos poucos artigos de teor analítico-musical sobre este tipo de música. O artigo nos traz uma possibilidade de compreensão em relação ao “hibridismo” de estilos presentes no jazz-rock além de nos fornecer uma alternativa pertinente ao trabalho de análise deste tipo de composição, através do reconhecimento de suas estruturas formais e sonoras específicas. Na sequência, tratamos de retomar e aprofundar, assim como fizemos no início do capítulo 3, a questão da recorrente transformação da identidade de Gismonti que, a partir de 1974, remodela alguns aspectos entre “forma” e “conteúdo” através da relação mais próxima com as novas tecnologias, da priorização da performance ao conteúdo e da diluição das polarizações conceituais de raízes modernistas na articulação de identidades plurais. Em seguida, apresentamos a análise da composição instrumental “Dança das cabeças” como exemplo significativo deste novo tipo de trabalho mais “experimental” no qual ficam mais evidentes as correspondências com o jazz-rock . “Trem Noturno” desponta como mais um exemplo de experimentação onde a canção, em flerte com a tecnologia, transforma-se numa sequencia de cenas e ambientações sonoras consideravelmente contrastantes. O “pianismo” de Gismonti é esmiuçado na análise das duas versões de “Ano Zero”, que invoca a prática da transcrição/reescritura e seu efeito na transformação da

15 textura pianística. Por último, na análise das duas versões de “Café”, considero novamente o processo de transcrição/reescritura e experimentação como reestruturador da forma. Este processo atua na desconstrução da levada do samba, sutilmente citado na letra da canção da segunda versão. Estas versões finalizam a demonstração dos processos criativos de Gismonti através da confirmação de que seu “estilo próprio” passa a ganhar mais corpo e a se consolidar em fins da década de 1970. Por fim, no capítulo 5, fazemos um exame da nova posição do artista num contexto de modernidade-mundo, valendo-se dos referenciais teóricos de Michel Nicolau Netto e das análises dos discursos de Egberto Gismonti sobre mercado, internacionalização e linguagem artística, elaborando reflexões a respeito do tipo de identidade que passa a surgir neste contexto mais amplo de transformações sociais do pós-1970.

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Capítulo I

1. Egberto Gismonti – Situando o objeto

Inicio este capítulo com uma instigante afirmação de meu objeto de estudo, o músico brasileiro Egberto Gismonti. Entre os contatos que estabeleci com ele durante a pesquisa, que inclui uma entrevista ao vivo e algumas trocas de correios eletrônicos, recebi, em resposta a um dos artigos que escrevi para um simpósio, uma declaração sua bastante intrigante. Egberto refutou a expressão que utilizei neste artigo, na qual dizia que ele havia “adentrado” no campo da música popular brasileira junto à forma canção e concomitantemente ao período dos grandes festivais (MOREIRA, 2012, p.844):

"Adentrei" no campo da música popular brasileira a partir da cidade que nasci, Carmo, onde os roceiros e os imigrantes conviviam alimentando aquilo que nos torna brasileiros, a miscigenação. Essa minha observação não tem nenhum outro propósito além de procurar qualificar os meus pais que romperam com princípios culturais das suas raças (Italiano e Árabe), casaram-se e acreditaram na contradição de que os diferentes têm mais possibilidades de sobreviverem - conceito de todo imigrante que se preza”. (GISMONTI, correio eletrônico recebido pela autora, 2014)

Pude perceber nesta resposta traços de uma certa preocupação ainda mantida, mesmo após 40 anos de carreira, com a afirmação e a retomada de uma identidade purificada, numa tentativa de “restaurar a coesão, o fechamento e a tradição frente ao hibridismo e à diversidade”, para citar Stuart Hall (HALL, 2005, p.95). “Hibridismo” e “Diversidade” são categorias axiomáticas do período abordado neste trabalho, momento histórico no qual o artista iniciou sua carreira, marcado pela “mundialização” 3 (ORTIZ, 2005). Para amenizar os efeitos colaterais da declaração de Gismonti, faço proveito da assertiva de Stuart Hall sobre o sujeito moderno: “sem um sentimento de

3 “Empregaria o primeiro [termo, globalização,] quando me referir a processos econômicos e tecnológicos, mas reservarei a idéia de mundialização ao domínio específico da cultura. A categoria ‘mundo’ encontra-se assim articulada a duas dimensões. Ela vincula-se primeiro ao movimento de globalização das sociedades, mas significa também uma ‘visão de mundo’, um universo simbólico específico à civilização atual. Nesse sentido, ele convive com outras visões de mundo, estabelecendo entre elas hierarquias, conflitos e acomodações”. O Estado-nação, elemento anteriormente hegemônico, é deslocado por outras forças no contexto da modernidade-mundo. Também se rompem a conjunção entre nação e modernidade”. ORTIZ, 2005, p. 29

17 identificação nacional o sujeito moderno experimentaria um profundo sentimento de perda subjetiva” (HALL, 2005, p.48). É interessante notar, a partir da declaração de Gismonti, que a experiência da perda subjetiva ainda subsiste em pleno início do século XXI. Esta declaração parece ainda requentar uma visão específica sobre o processo de miscigenação considerado como essencial à formação da identidade brasileira. Nesta visão está incutida a construção imaginada de uma identidade nacional que “aceita” o elemento estrangeiro através de um processo cordial e homogêneo de sintetização de culturas. Sua afirmação de que os “diferentes têm mais possibilidade de sobreviverem” logo me remeteu à explicação de Mário de Andrade sobre a formação do Brasil a partir da Independência, presente em seu famoso livro “Evolução social da música no Brasil”. Arnaldo Contier, interpretando os referenciais deste documento, afirma que Mário acreditava que de 1822 a 1922 a música de caráter europeu e internacionalista teria dominado a cena cultural por conseqüência da fragmentação do “povo” em raças diferentes, o que teria dificultado o processo de uma “aculturação” entre estas identidades. Nesta busca por uma síntese dos opostos, não deixando de lado seus conflitos e acomodações, Mário de Andrade defendia uma “música interessada”, onde o artista estaria comprometido com o projeto nacional. O autor via a “música desinteressada” (aquela “para se ouvir”, “autônoma”, “civilizadora”, “individualista”) como um projeto futuro compatível apenas com o estágio avançado de desenvolvimento de uma nação. Em grande parte das entrevistas, Gismonti faz referência a Mário de Andrade, considerando-o como grande mentor de seu pensamento artístico e parece manter relações com este projeto “andradiano” de Brasil. No campo musical, este projeto de sintetização de culturas se consolidaria na concepção de que o material “populário” (advindo do folclore e da tradição popular) deveria ser revestido de uma elaboração formal para alocar-se no registro “erudito”. Esta idéia se torna uma espécie de aforismo quando se trata de explicar ou definir o trabalho de Egberto Gismonti, por parte tanto da crítica quanto de seus ouvintes. Voltaremos a esta discussão sobre a idéia da identidade brasileira mais tarde. Primeiramente, é importante apontar que os discursos dos atores sociais são essenciais para a pesquisa, no entanto, devemos partir sempre do pressuposto que suas falas podem escamotear ou esconder significados mais amplos. Desta forma, minha pesquisa pretendeu investigar e discutir a trajetória de Gismonti desde os primórdios de sua atuação no mercado, marcada sobretudo por experiências no âmbito da canção

18 popular. Assim, tento levantar pistas sobre o que prenunciou este “retorno a Mário de Andrade” procurando esclarecer quais tipos de processos criativos e planos estéticos estavam por trás deste período cultural brasileiro que tem como signo principal o característico “hibridismo”. Optei por me aprofundar em um período pouco estudado, tanto da própria carreira de Egberto Gismonti quanto da música popular brasileira, situado na transição das décadas de 1960 e 1970. Este período é marcado pela régia de uma ditadura militar no país, uma indústria cultural em expansão e debates intelectuais sobre a questão da identidade e conformação cultural brasileira.

No Brasil, após um período de obscuridade e conturbações políticas, o Ato Institucional nº5, em 1968, marca, além do completo enrijecimento do regime militar, um crescimento considerável da classe média, o que fez com que o mercado de bens de consumo se ampliasse, acelerando também a expansão da indústria fonográfica. Esta indústria assistiu a um crescimento de 15% ao ano durante a década de 1970. Rita Morelli, em seu livro “Indústria Fonográfica – um estudo antropológico” nos fornece informações mais detalhadas: Em 1976, por exemplo, consumia-se principalmente música em formato de LPs. A produção destes discos era monopolizada por sete das maiores gravadoras instaladas no país. Embora as análises de Rita Morelli não apontem um predomínio do consumo de música estrangeira no país, pode-se dizer que a demanda de música internacional cresceu bastante nestas décadas por conta da consolidação de um segmento consumidor formado por jovens, mesmo que estes ainda não contassem com grande poder aquisitivo. Interessante notar que o ano de 1978, limite contextual deste trabalho, demarca no plano político a queda do AI-5 e no plano musical-artístico o auge da disco , gênero estrangeiro reproduzido massivamente em versões brasileiras pela gravadora WEA. O ano de 1969, data de lançamento do primeiro álbum de Gismonti, demarca também uma etapa importante na história da música popular brasileira, na qual os Festivais da TV Record de São Paulo (Festival de Música Popular Brasileira) e da TV Globo do Rio de Janeiro) já não contavam mais com os grandes nomes que surgiram no auge da chamada “era dos festivais”. Estas iniciativas perdiam prestígio e gradativamente deixavam de ser um canal de acesso aos novos compositores e intérpretes da cena musical popular brasileira. Retornando a nosso objeto de pesquisa, é sabido que Gismonti, possuidor de prestígio internacional e de uma carreira consolidada no Brasil é constantemente

19 associado ao segmento da música instrumental brasileira, que despontou no mercado fonográfico também a partir dos anos 1970. 4 Junto a Hermeto Paschoal, seu nome se destaca na lista de artistas que obtiveram certo reconhecimento junto ao público nesta década. (BAHIANA, 2005. p.65) Entretanto, ao investigarmos as informações sobre o início de sua carreira, sua atuação no mercado e seus primeiros álbuns, encontraremos uma ampla produção no âmbito da canção. É com este tipo de formato musical - que desempenhou um papel importante de crítica nos campos da cultura e da política durante as décadas de 1950 e 1960 no Brasil, colocando os artistas na posição de “formadores de opinião” (NAVES, 2010), que Gismonti se insere no campo da música popular brasileira, mais precisamente no III Festival Internacional da Canção no ano de 1968, com sua composição “O sonho”. A estréia do músico no mercado fonográfico se dá através do LP intitulado Egberto Gismonti , lançado pela gravadora /Philips. A gravadora “Elenco”, conhecida pelo seu caráter visual inovador (as capas de discos estilizadas) e pelo registro de áudio de boa parte do repertório da bossa nova, tinha sido vendida em 1968 para a Philips Records 5, mas sub-existiu até 1971, quando foi definitivamente fechada. A Philips, por sua vez, era uma multinacional que detinha, no início dos anos 1970, “contrato com a quase totalidade dos artistas que integram esse segmento prestigioso do mercado, identificado como MPB” (CAVALCANTI, 2007, p.25). A produção deste disco ficou a cargo do músico bossa-novista Durval Ferreira, que em 1969, além de ter participado como júri no Festival da Canção gravou e produziu a cantora Dulce Nunes, parceira de Gismonti neste e em outros de seus álbuns. Egberto Gismonti é lançado pela série de discos “De Luxe”. Esta série teve início em 1966 com um elepê da Elis Regina; tratava-se de uma iniciativa de produção de discos que “dispunham de um orçamento de produção mais elástico, incluindo produção de fotos, design de capa, textos de contracapa, e com frequência,

4 Artigo de Ana Maria Bahiana “Música Instrumental – o caminho do improviso à brasileira”, escrito no ano de 1977, ressalta o crescimento e o reconhecimento da música instrumental por volta de 1976/1977. Neste artigo, o termo “música instrumental” se refere “às formas musicais cunhadas na informação do jazz e à geração de seus praticantes, os instrumentistas dispersos com o esvaziamento da bossa nova e o desinteresse do mercado e da indústria fonográfica”. BAHIANA, 1977. 5 Filial do homônimo holandês, o selo Philips chegara ao Brasil em 1958 comprando a brasileira Sinter (Sociedade Interamericana de Representações, responsável pelo lançamento do primeiro LP fabricado no Brasil e que em 1955 passou a se chamar CBD – “Companhia Brasileira de Discos). Mantivera na presidência da nova firma o ex-dono da empresa adquirida, Alberto Pittigliani, que permanecerá até 1966. Em 1960, a Philips está avançando os primeiros passos na trajetória que a conduzirá ao domínio da posição MPB, na segunda metade dessa década. (CAVALCANTI, 2007.p.170)

20 também encartes com as letras das músicas ou outros elementos, tudo contribuindo para propiciar ao consumidor a sensação de possuir bem mais valioso que o padrão comum do mercado”. (IDEM, p. 25) O disco possui 12 faixas, que, em uma primeira audição, não se conformam dentro de um único estilo, não sendo possível caracterizá-lo como um disco pertencente ao segmento tradicional da MPB até então. A heterogeneidade de gêneros percebida confunde o ouvinte apreciador deste tipo de repertório. As faixas “Salvador”, “Estudo nº5” e “Tributo a Wes Montgomery” são uma amostragem do violão ainda jovem de Gismonti; Baden Powell, Bach, e Wes Montgomery, são inspirações para estas gravações. As demais faixas, todas canções, (com exceção de “O gato”, talvez a mais “estrangeira” das composições por se assemelhar ao funk norte-americano, gênero que se fará presente no vocabulário musical da época, como demonstrarei em algumas análises) são envoltas ou por uma textura orquestral “grandiosa” ou por um tipo de articulação bossanovística na maneira de cantar, inspirada na dicção sussurrada de João Gilberto. A relação com a música de concerto aparece também de forma alegórica; na marcação audível de um metrônomo no “Estudo nº 5” ou na presença de um “oboé” - instrumento pouco utilizado dentro contexto da música popular - como articulador da melodia principal da canção “O sonho”. Estes elementos criam um ambiente sonoro paradoxal se justapostos às também presentes citações de samba, letras de protesto ou temas espaciais. Devemos atentar também aos músicos que participam na gravação deste álbum: Wilson das Neves (bateria) e Sérgio Barrozo (contrabaixo). O primeiro possuía ampla experiência com orquestras e conjuntos maiores, como o conjunto de Steve Bernard em 1963, a Orquestra de Astor Silva em 1964, a Orquestra da TV Globo do Rio de Janeiro e a Orquestra da TV Excelsior em São Paulo (orquestras oficiais dos Festivais de Música destes canais). O segundo, contrabaixista de grande atuação na bossa nova, tocou com Roberto Menescal, Nara Leão e Maysa e gravou diversos discos lançados pela Elenco. Participou também dos trios de sambajazz “Salvador trio” (com o pianista Dom Salvador) e “Rio 65 Trio” (com Edison Machado na bateria).

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Em entrevista para este trabalho 6 Gismonti afirma sua indefinição estética ao ser questionado sobre este período de gravação de “canções” em contraponto ao seu extenso trabalho instrumental: “Bom, e aí, eu não tinha uma música definida o que é que eu queria fazer na vida. Eu achava que a música podia ser cantada ou tocada. Na época eu não sabia que a música podia ser tocada de cento e oitenta maneiras diferentes e cantada de não sei quantas, o que eu não sei até hoje. Cantada eu não sei, mas tocada eu sei que tem uma meia dúzia de cem aí no meio. Então o fato de ter aquelas canções era porque eu gostava e gosto de canções. E cada vez gravei menos canções cantadas”. (GISMONTI, Entrevista concedida à autora, 2014)

A formação musical disponível para a gravação de discos na época segue em concordância com o tipo de resultado sonoro deste primeiro LP. Novamente na entrevista concedida, Gismonti nos conta:

“A primeira vez que eu fiz arranjo na vida, Bia, profissionalmente falando, foi no festival da canção que eu participei com uma música chamada “O Sonho”, que quando eu cheguei com o arranjo...este festival acontecia no Maracanãzinho e Maracanãzinho vazio era um local de reverberação absoluta, concreto puro, não sei o quê, redondo, e tinha uma orquestra que era a OSB que tocava pro Festival que, nestes anos aí, final dos 1960 e 1970, orquestra tava em todo canto. Orquestra era o instrumento da hora, de se usar. Isto e trios, piano, bateria e baixo tinha em todo canto, e orquestra”. (GISMONTI, Entrevista concedida à autora, 2014)

O segundo disco de Gismonti, intitulado Sonho 70 , foi lançado em 1970. O LP é composto por nove faixas, das quais cinco delas possuem letra e outras quatro possuem a voz apenas como instrumento melódico executando vocalizes sobre a harmonia. Neste trabalho Gismonti parece explorar ainda mais a orquestra como ingrediente sonoro comum aos arranjos de suas composições. Além de “O sonho” composição regravada sem letra (esta versão será analisada mais profundamente no Capítulo 3) a canção “O mercador de serpentes” também teve sua participação registrada no IV Festival Internacional da Canção Popular (FIC) da TV Globo em 1969. As letras foram escritas em parceria com artistas bastante atuantes na música popular e no circuito dos festivais, como Arnoldo Medeiros e Paulinho Tapajós. O disco foi lançado pela companhia brasileira Phonogram (antiga CDB, ainda subsidiada na transnacional Philips) e contou com a produção musical de Roberto

6 Ver Anexo I

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Menescal. Não há indicações dos músicos participantes nos encartes do LP. No entanto, há a intensificação de um traço estilístico comum já citado anteriormente: um tipo de levada rítmica funkeada . Contrabaixo, bateria e percussão (pode-se ouvir alguns instrumentos percussivos “de mão” adicionado às levadas de bateria) constroem este tipo de sonoridade nas faixas “Janela de Ouro” (aos 2:24), “Parque Laje”, “Indi” (aos 1:00) “O sonho”, “Pêndulo” (aos 2:20) e “Lírica 1” (aproximadamente aos 3:15). A hipótese levantada é que esta formulação estética para a “cozinha” provavelmente foi delineada pela produção de Roberto Menescal. Podemos encontrar semelhante tratamento, por exemplo, no disco Como e porquê de Elis Regina, gravado em 1969 pela mesma companhia (ainda com o nome de CDB). Este disco conta com arranjos de Roberto Menescal 7 e Erlon Chaves. Este último, até então considerado “patrimônio da música dançante e do movimento black no Brasil”, trabalhou com Wilson Simonal e no FIC de 1970 regendo um coro de 40 vozes que logo passa a apresentar-se sob o nome de “Banda Veneno”. 8 No Festival de 1969, Gismonti conhece a cantora e atriz francesa Marie Laforêt. A tão comentada viagem ao exterior do músico, onde normalmente menciona o motivo de seus estudos, se deu justamente por este contato. Laforêt convida o músico, ainda jovem e inexperiente, a escrever arranjos para seu disco e ir à para gravá-los. Por este motivo, Gismonti viaja à Europa e enquanto trabalha como músico, compositor e arranjador nas variétés françaises procura também encontrar professores de música com quem pudesse estudar. É aí que se efetivam os encontros com a renomada compositora e com o compositor Jean Barraqué. 9

7 “Integra entre 1963-1966 o gupo "Conjunto de Roberto Menescal" pela Elenco e a partir do final dos anos 1960 ao longo da duas décadas seguintes desenvolverá carreira de dirigente de gravadora, colocando em segundo plano tanto o papel de compositor quanto o de músico. (...) Com Menescal e Lyra ocorre algo semelhante ao que já experimentara Aloysio de Oliveira na geração anterior: são atraídos pela profissionalização musical, e concluindo o segundo grau, abrem mão do curso universitário. Não obstante a resistência que alguns jovens bossanovistas encontram na família para dedicar-se profissionalmente à música, o violão propicia-lhes ganhos que permitem dispensar a mesada paterna e demonstra que atividade musical pode não ser "degradante". (CAVALCANTI, 2007, p. 88 e 89) 8 O exemplo deste tipo de sonoridade “ black” ou “funkeada” está na música “Eu quero é mocotó”, de , defendida no palco do V FIC em 1970, com arranjo de Erlon, ou ainda em sua composição “Pigmaleão”, tema da novela homônima de 1970. 9 “Neste festival veio uma mulher atriz francesa chamada Marie Laforêt, eu nem sabia que ela cantava. Eu sabia que ela existia porque era um pouco uma daquelas atrizes do cinema francês que eu gostava muito (...) ela tava no Rio e disse assim: "queria muito que você fizesse uns arranjos pro meu disco", mal sabendo ela a idade que eu tinha e o absoluto desconhecimento do métier; que a primeira vez na vida que eu toquei profissionalmente foi no Maracãnazinho. (...) eu fazia arranjo porque tinha estudado em Conservatório, o que não era normal, ninguém estudava naquela época. (...) A Marie Laforêt não sabendo que eu tinha zero de experiência de tocar, de show, de não sei o que diz assim:

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É durante esta estadia na Europa que Gismonti grava seu terceiro álbum, intitulado Orfeu Novo . A gravação foi feita na Alemanha e lançada pelo selo Corona Music Jazz , produzido pelo crítico e especialista em jazz Joachim A. Berendt. 10 A formação instrumental conta com os músicos franceses Jean François Jenny Clark (contrabaixo), vencedor do prêmio do Conservatório de Paris e atuante tanto no universo da música contemporânea de concerto como no jazz e Bernard Wystraete (flauta), também vencedor de prêmio no Conservatório de Paris. Egberto fica responsável pelos arranjos, piano e violão, dividindo os vocais com a cantora Dulce Nunes. Interessante levantar os aspectos do texto crítico impresso no encarte deste álbum, assinado por Gerald Merceron, que deve se tratar provavelmente de um crítico musical ou músico francês com acentuada admiração pela música brasileira. No texto, é destacada a popularização da bossa nova ao redor do mundo, gênero este considerado pelo autor responsável por ter tornado a música popular brasileira importante o suficiente para competir com a música popular norte-americana. A música brasileira é vista como “diferente” e ainda “inacessível” aos músicos de outros países, porém, portadora de “traços distintos” e “sensibilidade”. 11 Em seguida, o autor descreve as qualidades de Egberto como compositor de canções e instrumentista, fazendo questão de ressaltar, mais uma vez, sua habilidade de aproximar os campos da música erudita e popular. São destacadas ainda suas habilidades para resolver problemas rítmicos e dinâmicos dos arranjos bem como executar improvisações de caráter lírico e cantar de maneira delicadamente expressiva. O autor também expressa

"você não quer fazer uns arranjos pro meu disco?", eu disse "claro". Aí, fiz os arranjos. Os arranjos foram pelo correio. Passado não sei quanto tempo, ela me escreve e diz assim: "Você não quer vir gravar os arranjos aqui em Paris?" digo: "Ué, ótimo". Lá chegando ela disse: "Você não quer formar um grupo aqui pra tocar, a gente faz o lançamento..." eu disse: "Também topo." Passado um ano e meio que eu estava nesta fico ou não fico, ganhei dinheiro como o diabo e tocando varieté français (...)até que, tive tempo pra procurar e achei professores e comecei a estudar e ai acabei me formando em outras coisas de música, estudando com Nadia Boulanger (...)” (GISMONTI, Entrevista concedida a Charles Gavin, 2015). Link: https://www.youtube.com/watch?v=pStNFUmt0aY. 10 Neste link é possível encontrar uma interessante review sobre o livro “The return of jazz: Joachim- Ernst Berendt and West German Cultural Change”, do escritor Andrew Wright Hurley. http://www.h- net.org/reviews/showrev.php?id=25888 . Acessado em 14/11/2015. 11 “ The impressive number of first -class musical talent´s Brazil has shown up especially since 1958 made it the only veritable competitor to the United States in the fields of popular music. This enviable position does not explain only by the quality of Brazil´s popular music but additionally by its being so different. Maybe one day there are non Brazilians capable of assimilating, playing, and composing the Brazilian way as well as the Brazilians themselves do - as, for example, this applies to a small group of European Jazzmen with respect to their big American rivals. Howsoever, this day is still to come, and while awaiting it you may be reassured that the distinctive traits of Brazilian sensibility alone allow to present the world with the one and only alternative to American creativity and American technique.”

24 sua opinião acerca da maneira como a música popular brasileira, através de Gismonti, foi “elevada” a um alto padrão de qualidade atestando o início do que ele alega ser um novo estágio de seu desenvolvimento. 12 O disco possui uma sonoridade bastante camerística, diferenciada dos arranjos orquestrais realizados anteriormente. São regravadas as versões de cinco de suas composições originalmente registradas nos álbuns anteriores como “Indi”, “Lendas”, “O sonho”, “Parque Laje” e “Salvador”. As outras duas são um arranjo para duas composições de Baden Powell “Consolação” e “Berimbau” e uma pequena “suíte” para violão e flauta intitulada “ Three portraits for guitar and flute : Retrato I, Retrato II e Retrato III”. É possível visualizar quatro categorias deste repertório do disco: “Temas” (“O sonho” e “Parque laje”); “Peças de inspiração oriental” (“Indi” e “Lendas), “Peças diretamente influenciadas pela música popular brasileira da década de 1960” (“Consolação/Berimbau” e “Salvador”) e “Composição de caráter camerístico” (“Suíte Retratos”). Outro traço interessante de se destacar da crítica do álbum escrita por Merceron é a menção à ausência da bateria. O autor afirma que Gismonti “teve de escrever as linhas do baixo e as estruturas do piano, fortes os suficiente para substituir a bateria” (tradução nossa). Desponta pela primeira vez um traço bastante característico de Gismonti como músico que é sua implicação com a presença de um baterista no grupo que irá tocar, visto que sua atividade rítmica pianística se desenvolve e ganha cada vez mais destaque na maneira como toca suas composições. No ano de 1972, Egberto lança seu quarto álbum e talvez o primeiro deles que ganhou uma maior projeção e reconhecimento. Trata-se do disco Água e vinho lançado pela EMI-Odeon, que inaugura sua parceria com o poeta e letrista Geraldo Carneiro, que também assina a produção do trabalho. Gismonti afirma em entrevista que este disco fora dedicado ao seu avô, um “exímio compositor de valsas”. Por este motivo é que podemos identificar na capa a figura de um manequim “italiano”, porque seu avô era, além de músico, alfaiate. Essencialmente composto por canções (com exceção da faixa 8 “Eterna”) Água e vinho marca o encontro de Egberto com

12 Egberto Gismonti came last amog the Brazilian creators. And he is not only a singularily gifted instrumentalist and a remarkable author of themes and chansons, but also a composer who eith the same ease approaches the classical and the popular music. He is an able and original arranger very sensible towards rhythmical and dynamical problemas; he is a classical pianist - in the strict sense of it; he plays a subtle guitar an he improvises intelligently and lyrically; and he sings with a delicate expression. His compatriot Augusto Marzagão, director of the International Chanson Festival of Rio de Janeiro, call him Brazil´´s most perfect musician”.

25 diversas figuras importantes da música popular e de concerto essências para que a estética do disco se consolidasse desta forma. Gismonti em entrevista, afirma que ao retornar da Europa percebeu que a quantidade de informações musicais que tinha adquirido até então precisavam ser emitidas de alguma forma, em algum tipo de produção:

Eu voltei com esta informação, informação de conservatório, a formação de ter dirigido um show da Marie Laforêt que viajou 30 países e mais a informação de Nadia Boulanger e Jean Barraqué (...) E ai fui morar em Teresópolis e pouco a pouco comecei a me dar conta que aquela informação tinha que servir pra outras coisas. Aí comecei a conhecer pessoas, Geraldinho Carneiro, não sei quem, etc...gente como o diabo, e fui entendendo que cada uma dessas pessoas, tinham não só conhecimento, mas sobretudo, como eu, idéias, que poderiam ou não serem realizadas. O tempo foi passando e uma delas me levou a de querer fazer discos, me levou pra Odeon (GISMONTI, Entrevista concedida à Charles Gavin, 2015).

Em 1972, a Odeon, gravadora citada no depoimento acima, era reconhecida por ter como produtores agentes como Milton Miranda e Mariozinho Rocha, profissionais que incentivaram a produção de discos de músicos que compunham o casting mais “nobre” da música popular brasileira, possibilitando seu financiamento, dando-lhes plena liberdade de gravação e horas ilimitadas de uso nos estúdios da gravadora, favorecendo assim a criação coletiva e a experimentação característica da época. (MOREIRA, 2011, p.2) Uma nota publicada no Jornal Folha de São Paulo em 1971 atesta esta iniciativa: "A Odeon vai deixar que Milton Nascimento, o Som Imaginário, Equipe Mercado, A tribo e o Conjunto Módulo 1.000 façam um elepê com plena liberdade. Nada comercial. Cada um vai produzir sua parte”. 13 Provavelmente Gismonti também foi um dos beneficiados por este empreendimento. Gismonti menciona inclusive, seu estímulo em estar na mesma gravadora de Milton Nascimento, e sua admiração por este nome:

“Como é que você foi parar na Odeon? - Eu tinha um sonho que era fazer um disco que tivesse a participação do Milton, eu conheci o Milton do Festival, de Travessia, etc. O meu desejo de poder convidar o Milton pra alguma coisa, que eu viesse a fazer, só seria viável se eu tivesse uma gravadora, nada melhor que eu estivesse numa gravadora que ele estivesse. E o Mariozinho Rocha, junto com o Gaia, facilitaram a história. ” (IDEM)

13 Seção Shows. Jornal Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. 05/02/1971.

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Uma das grandes contribuições à formatação estética deste álbum se deve à participação da orquestra de cordas da Associação Brasileira dos Violoncelos, presidida na época pelo violoncelista Peter Dauelsberg 14 e dirigida pelo maestro Mário Tavares. Ambos são figuras de enorme importância dentro da história da música popular brasileira, que mereciam, cada uma delas, um estudo mais aprofundado. Entre 1970 e 1973, Peter cuidou dos arranjos de cordas da Phillips, tocou como primeiro violoncelista nas orquestras da Globo e fez os arranjos para as cordas de importantes discos da música popular brasileira. 15 A participação da Associação Brasileira dos Violoncelos deu a Gismonti capital cultural para legitimar ainda mais a produção do disco. “E Geraldinho Carneiro me perturbando a cabeça dizendo: “Temos que gravar este disco de canções, maravilhosas canções”. Eu disse: “O Geraldinho, eu não sei cantar” ele disse: “Não, sabe”. E eu morria de medo de cantar, e não cantava direito e me sentia mal. E eu digo: “Associação brasileira de cellos vai me dar uma competência, vai me dar um lastro maior de qualidade do disco. E o grande, o cabeça da associação brasileira dos cellos era o Peter Dauelsberg um dos grandes cellistas que o Brasil já conheceu que era um alemão que veio e trouxe toda a competência alemã pra botar na OSB. E o regente era o grande Mário Tavares, um sujeito que eu admirei a vida inteira e foi grande amigo meu. Negócio da coleção de amigos é antigo, você está vendo?” (GISMONTI, Entrevista concedida à autora, 2014.)

Sobre a parceria entre Geraldo Carneiro e Egberto Gismonti, acredito ser de grande importância citar um trecho da entrevista realizada com o poeta, em que este discorre sobre esta relação profissional estabelecida ao longo dos anos:

“Olha, quando eu o conheci ele já era um monstro. Um monstro pronto. Já tocava violão tão bem quanto Baden Powell, tocava piano tão bem quanto Luizinho Eça, era um monstro, um craque. Era um compositor já originalíssimo, com caminhos muito

14 “Fiz minha primeira apresentação pública em um teatro brasileiro em 1972, com a participação de dois mestres já reverenciados pelo meio musical: e Peter Dauelsberg. A relação com eles foi fundamental para meu desenvolvimento artístico. Peter propôs que eu estudasse violoncelo e se prontificou a me ensinar. Também colaborou nos meus primeiros quatro discos. A participação dele na minha vida musical foi orientadora e importante pelos conselhos, pelas correções propostas à minha escrita, pela sugestão de músicos e regentes capazes de melhor executar as partituras, pela orientação discreta, mas definitiva, pela cumplicidade com a música, pela amizade, pelo respeito e dignidade à música.” (NOGUEIRA, 2010, p. 8) 15 Dentre os discos encontrados em quais Peter Dauelsberg participou tocando ou dirigindo as cordas estão: Coisas (Moacir Santos – 1964, Tamba trio (Tamba trio - 1966), Edu ( – 1967), Milagre dos Peixes (Milton Nascimento – 1973, Milagre dos Peixes ao vivo (Milton Nascimento -1974, Minas (Milton Nascimento – 1975, Geraes (Milton Nascimento – 1976, Nana (Nana Caymmi – 1977, Clube da Esquina 2 (1978), Amor de ìndio (Beto Guedes - 1978).

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peculiares. Então eu me tornei instantaneamente um admirador total dele. (...) e ai criou-se entre nós uma relação forte, grande amizade, e fomos nos tornando cada vez mais amigos. Houve uma época em que nos tornamos irmãos mesmo, havia uma fraternidade enorme entre nós. E em 1971 ele me convidou pra escrever uma letra, ele viu umas letras minhas feitas pra outros compositores, gostou muito e me convidou para escrever uma letra. Um destes estudos pra piano, que era o “Água e vinho” que foi a primeira música que nós fizemos. A segunda foi o “Ano zero”. E aí fizemos talvez umas 50 ou 70 canções, sem muita continuidade, quer dizer, de início fizemos umas 30, 35 canções, depois descontinuamente continuamos a fazer uma série de canções. Mas aí houve um divórcio, houve esta aproximação dele que era natural, com o imenso talento dele que era instrumental, e ele foi se bandeando para a música instrumental e foi cada vez menos fazendo canções. Nós continuamos às vezes, de vez em quando fazendo uma cançãozinha, só pra matar a saudade”. (CARNEIRO, entrevista concedida à autora.2013).

O disco seguinte 16 intitulado Egberto Gismonti mais conhecido por Árvore (por conter esta figura na capa) continha ainda, parcerias com Geraldo Carneiro. Das oito faixas do disco, quatro são canções (“Luzes da Ribalta”, “Memória e Fado”, “Tango” e “Encontro no bar”) e quatro são instrumentais (“Academia de Danças – a dança dos homens- a dança das sombras”, “Adágio”, “Variações sobre um tema de Léo Brower” e “Salvador”). Os arranjos aparentam estarem mais organizados, sobretudo do ponto de vista da escrita orquestral. A faixa “Tango” é um exemplo contundente da forma como Egberto estava a desenvolver seu estilo pianístico peculiar. A faixa intitulada “Academia de danças”, dividida em duas seções “A dança dos homens” e “a dança das sombras”, apresenta experiências sonoras serialistas, bem como exploração timbrística diferenciada dos instrumentos. Dentre todos os músicos da orquestra dirigida por Mario Tavares 17 participaram da configuração da seção rítmica o contrabaixista Novelli, que gravou diversas vezes com Milton nascimento 18 , Paulo Moura, Edson Lobo, Tenório Junior e Dulce Nunes. Interessante notar que não há indicações do baterista e/ou percussionista em cada faixa. Sabe-se que Egberto Gismonti atuou em alguns fonogramas como percussionista. A suposição levantada em Orfeo Novo aparece novamente; a

16 Há controvérsias em relação a ordem de lançamento de Água e vinho e Árvore . Em entrevista, Gismonti afirma que o disco Árvore veio antes de Água e vinho . Nas fichas técnicas constam as datas de lançamento 1973 e 1972, respectivamente. Mesmo não conseguindo comprovar a ordem exata de lançamento dos álbuns, podemos imaginar que período de gravação entre um e outro foi relativamente curto. 17 Os nomes dos músicos que compunham a orquestra podem ser consultados neste link: http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI00907. 18 Os discos Milton Nascimento (1969), Milagre dos Peixes (1973), Milagre dos Peixes ao vivo (1974), Minas (1975), Geraes (1976), Clube da Esquina nº2 (1978).

28 sonoridade resultante dos seus discos é bastante determinada pela presença ou não de bateristas/percussionistas, cada um com uma linguagem própria. 19 Significativo em sua discografia, tanto pelo número de vendas como pelo resultado sonoro original é o seu sexto álbum, lançado em 1974: Academia de Danças. Mercadologicamente, sua realização é resultado da perspicácia profissional de Gismonti em relação à situação de crise pela qual a gravadora Odeon passava naquele momento, que resultava na suspensão dos contratos com diversos artistas renomados. Egberto, vendo a possibilidade de ser “despedido” da gravadora, resolve arriscar um projeto grandioso e experimental, voltado para a idéia de conseguir misturar ao máximo todas as informações musicais que tinha tido até então:

"A Odeon começou a entrar numa certa crise, mas a renovação do meu contrato não tinha sido feita mas eles tinham feito um aditivo que era mais um disco. E eu senti, pelas minhas contas, 1970 e tal, bom: "Se tem gente pra caramba aqui conhecida, como Edu Lobo, Francis Hime, que tão mandando embora, eu que não sou nada ainda, vou ser mandado embora é já, né" (GISMONTI, Entrevista concedida à Charles Gavin, 2015).

Contando novamente com a produção de Geraldo Carneiro, Gismonti reúne um “time” de músicos com grande experiência prática de performance e improvisação na música popular brasileira instrumental como (bateria), Luiz Alves (contrabaixo), Nivaldo Ornellas (sax), Tenório Junior (piano), Dulce Nunes (voz), Danilo Caymmi (flauta), dentre outros. 20 O disco é captado em poucas sessões no estúdio 21 e é dividido em dois lados. Um lado, intitulado “Corações Futuristas”, com as faixas “Bodas de prata”, “Quatro Cantos”, “Vila Rica 1720”, “Conforme a altura do Sol” e “Conforme a altura da Lua” e outro lado nomeado “Academia de Danças”, uma sequência de músicas sem interrupção nomeadas com frases do livro “1001 noites” 22 :“Palácio de pinturas Apostarei meu jardim de prazeres contra o seu Palácio De Pinturas”; “Jardim dos

19 O assunto que trata dos bateristas que tocaram com Gismonti em seus discos, também deveria ser assunto de um estudo mais aprofundado. Neste trabalho não foi possível realizar constatações mais específicas sobre a importante contribuição que estes deram na consolidação da sonoridade do músico. 20 http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI00908. 21 “O academia de danças ou seja, 85% deste disco foi gravado em dois dias em duas sessões de seis mais seis horas com uma hora de descanso, porque tinha que tocar. Quer dizer, o primeiro dia, que não conta como gravação ninguém gravou, porque o Mario Tavares ficou 6 horas lendo as partituras, mexendo no arco, corrigindo, etc. E ninguém gravou nada primeiro dia. Na hora que senta pra tocar, mete o cacete e vão embora”. 22 A escolha destes nomes não parece ter nenhuma razão em especial. Sabe-se que Geraldo Carneiro ocasionalmente estava folheando o livro enquanto se realizavam as gravações e incorporou as sugestões às faixas registradas.

29 prazeres. Suas núpcias foram celebradas naquele mesmo dia”; “Celebração De Núpcias. Então ele resolveu pensar na coisa toda como se fosse um sonho”; “A Porta Encantada. Para isso, disse o pássaro, vá de manhã cedo ao parque e descobrirás mais pérolas do que necessitas e “Scheherazade. Diga apenas a palavra e tudo estará mudado”.

“Eu entrei numa que o disco tinha dois blocos de música; um era o bloco chamado "Academia de Danças", que eu achava que era quase um jingle, lado 1, um negócio bem dançável, bem não sei o que. E o lado 2, era um lado, que depois virou um disco chamado Corações Futuristas, onde eu estava achando que a vida estava ficando muito complicada. Ai eu disse: "Geraldo, este disco tem dois lados.." (...) Resumo da ópera é que eu não sei se foi ele se fui eu, ou se foi alguém, que sugeriu que um lado chamasse Academia de danças e o outro por falar da tristeza que a gente estava prevendo, sentindo, que era futurista, mas como era tudo muito afetivo, era o coração futurista. corações futuristas é isso”. (GISMONTI, Entrevista concedida ao som do Vinil, 2015)

O ideal sonoro de Gismonti se distanciava de certa forma dos critérios de segmentação de gêneros da época. A concretização artística se dava principalmente a partir de uma “idéia” e de um “processo” que afortunadamente encontravam condições propícias para se materializar, na medida em que a gravadora Odeon ainda possibilitava estes tipos de experiências: “Este próximo disco da Odeon, ou vai ou racha, porque neguinho não vai deixar eu gravar mais". Vou fazer deste disco o meu sonho ideal que é o seguinte. Eu vou aproveitar cada segundo do disco, não vou ter nem pausa no disco, vou fazer uma música só, e vou misturar alhos com bugalhos, vou botar tudo o que me ensinaram junto" (IDEM)

Academia de Danças representa, na história de Egberto, um de seus trabalhos mais contundentes em relação ao “hibridismo” de gêneros e tipos de experimentos musicais. As melodias líricas ao estilo das canções de Água e Vinho e as experimentações orquestrais semelhantes às do disco Árvore , eram agora conjuradas num emaranhado de citações e elementos mais “populares” e “abrasileirados” retirados muitas vezes não só do populário regional como das raízes mais profundas brasileiras, a música indígena. Tudo isto era também capturado e absorvido por um sistema tecnológico de gravação ainda incipiente, mas que possibilitava um tipo de

30 experimentação em estúdio que não seria possível em qualquer outro período histórico posterior. 23 Não obstante, se a liberdade do processo abre espaço para um “caos” sonoro esta mesma liberdade foi amparada sobretudo pela organização composicional de Egberto. As partes de Academia de Danças foram previamente escritas e programadas. Mauro Senise, saxofista que também participou da gravação, relata este procedimento: “ O Egberto como o grande compositor que é, chega já com a música pronta, né. Com arranjo pronto, agora, abre espaço pra gente poder criar em cima, né, que é também um requisito pro músico tocar com ele” . Geraldo Carneiro também aponta o nível de exigência do trabalho: “As gravações eram muito sofisticadas, o nível de exigência era grande, o Egberto era muito exigente, eu era um produtor também muito exigente". Paradoxalmente, a quantidade de improvisos que vai surgindo em suas composições aumenta consideravelmente. Se distanciando do universo jazzístico, no qual normalmente a base de um discurso improvisatório se baseia na verticalização da estrutura harmônica, Gismonti constrói caminhos diferentes para a prática da execução em tempo real. Fornece assim, outros significados a seção de improviso, que incluem modificações texturais, ações quase que teatrais e cenários imagéticos, distanciando-se também do reconhecimento de uma seção de improviso apenas como uma exibição virtuosística do instrumentista. Suas improvisações circulam pela narrativa de maneira imprevisível e muitas vezes não demarcadas em inícios e finais de seções, como iremos ver em exemplos futuros deste trabalho. Sobre a improvisação Gismonti afirma: “ nesta época eu tinha dúvidas de quanto de improvisação a música que eu fazia devia conter”. Ao mesmo tempo estes tipos de decisões conjuntamente com sua disponibilidade para receber as contribuições individuais dos músicos, demandavam de Gismonti recriações de suas próprias escrituras: “Então, quando a cozinha ficava armada e o Robertinho dizia: "melhor maneira de tocar isso é tocar no chão, isso que você está propondo não fica confortável”. – “Então mostra o que fica confortável”. Aí o cara vai e mostra. Então vamos lá, vamos

23 Gismonti cita o técnico de som Toninho como grande responsável pelos efeitos; 1976, com o disco Corações Futuristas a utilização dos sintetizadores se torna mais ostensiva. O músico lembra também que na época a Odeon trabalhava com poucos canais: “a gente trabalhou com duas Max Studer de dois canais. Orquestra e conjunto sentaram a pua em dois canais depois os solos saíram de uma máquina pra outra e foram acrescentados”

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tentar. Isso fazia também com que eu tivesse que me ajeitar”. (IDEM)

Continuidade do disco Academia de Danças, o álbum seguinte, intitulado Corações Futuristas e lançado em 1976, reaproveita a formação da sessão rítmica do disco anterior. Diferem-se apenas em relação ao número de faixas instrumentais, que agora totalizam oito; com exceção apenas para “Trem Noturno” e “Baião do Acordar”. Dentre as oito faixas duas delas também são regravações: “Altura do Sol”, que reutiliza do tema apresentado no disco anterior inserido no universo textural dos sintetizadores e “Ano Zero” versão instrumental de sua homônima do disco Água e Vinho. Dois fatos são importantes de serem mencionados no ano de 1976. O primeiro deles é o interesse gradativo de Egberto por conhecer as tribos indígenas. Em 1976, de acordo com uma entrevista dada a Revista Veja, Gismonti afirma estar já há quatro anos envolvido com a música dos índios do Alto Xingu (SOUZA, Enfim Popular, 1976). A vivência e a experiência de Gismonti com a tribo lhe trazem questionamentos estéticos sobre a forma musical e a necessidade da racionalização desta. Em dado momento Gismonti afirma: "Passei a não ligar mais pra forma, para o autoquestionamento formal. A partir daí sei que sou mais diretamente ligado ao alto Xingu e indiretamente descendente do que se faz no resto do mundo". O segundo fato se trata de que, já em fins do ano 1976, Gismonti assina contrato com a gravadora ECM Records. Os dois discos seguintes lançados por esta gravadora, Dança das Cabeças (1977) e (1978) em parceria com o percussionista , parecem transparecer mais nitidamente estas experiências estéticas, através da redução da instrumentação e da evidência do aspecto rítmico das músicas, através da exploração de diversos instrumentos de percussão de naturezas distintas. 24 Os discos são instrumentais e sua estrutura representa a experiência musical dos índios do Xingu que “através da música fazem o aprendizado da própria vida”: cada tema corresponde a uma parte do dia e o todo forma uma história. 25 Por fim, dentro do recorte temático de nossa pesquisa, apresentamos o álbum Carmo , lançado em 1977, também pela Emi-Odeon. O disco divulgado num ano de

24 Optei por não incluir as faixas destes dois discos no escopo analítico deste trabalho. O recorte temático, junto a escolha das músicas acabou priorizando somente os discos lançados no Brasil. 25 Com pássaros e índios Egberto aprende muito. 12/12/1977.

32 intensas atividades profissionais em diversas frentes artísticas. O balanço de sua trajetória até este ponto resulta em sete discos gravados no Brasil, cinco entre Europa e Estados Unidos, dez trilhas sonoras para filmes, sete para peças de teatro e alguns prêmios como o “melhor músico do ano” pelas revistas estrangeiras Stereo Review e Melody Maker e o título de melhor disco do ano (dado à Corações Futuristas) pela Associação Brasileira dos Fonógrafos. Curiosamente, Carmo retoma as experiências de Gismonti com a canção e a parceria com Geraldo Carneiro. Oito das onze faixas são canções (“Café”, “Educação Sentimental”, “Apesar de tudo”, “Feliz ano novo”, “Calypso”, “As primaveras”, “Carmo” e “Hino do Carmo” – estas duas últimas unidas em um único fonograma). 26 O disco, como o título revela, é uma espécie de “homenagem” a sua cidade de origem. O último fonograma é bastante simbólico dentro desta temática: contém uma composição do próprio Gismonti, chamada “Carmo”, o hino de sua cidade, composto pelo seu tio Edgar Gismonti e uma valsa de seu avô Antonio Gismonti, intitulada “Ruth”: “ O Carmo é mais cantado. Um clima mais pra uma reunião familiar”. A formação instrumental de Academia de Danças ainda está presente na ficha técnica do disco. Dos músicos anteriores, permaneceram a dupla Luiz Alves (contrabaixo) e Robertinho Silva (bateria e percussão), o saxofonista Mauro Senise e o violoncelista Peter Dauelsberg. Integram-se a este grupo o baixista Valdecir (que mediante as poucas informações encontradas, acredita-se que é o contrabaixista que fez parte da segunda formação da Banda Black Rio e lançou o LP Gafieira Universal , em 1978) e os percussionistas Ubiratan e Neném. 27 Nos vocais, juntas a Gismonti aparecem as participações especiais das cantoras Wanderléia, Joyce, Marlui Marlei e Cristiane Legrand. Carmo apresenta um músico mais maduro tecnicamente, com legitimação suficiente para lhe viabilizar a gravação do tipo de música que desejasse:

"Este é um disco onde estou profundamente relaxado - diz ele - sem aquela parte instrumentalista dos anteriores. Fiz aquilo que queria, o que me dava prazer. E, se é verdade que saiu bom, é graças a esses 9 anos anteriores de muito estudo e concentração, que me deram condições de fazer uma gravação sem maiores

26 “Agora vai acontecer o seguinte: quando entrar no estúdio, sentar no piano e fizer "pimba", saberei que estarei sendo ouvido por qualquer produtor do mundo inteiro. E uma situação terrível, um peso enorme. Nem sei como vou reagir a isso”. 27 Os créditos para os músicos da orquestra de cordas podem ser verificados neste link: http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI00911

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problemas". (Folha de São Paulo. Um futurista volta às raízes, 1977)

Através da descrição deste caminho profissional de Egberto Gismonti, neste recorte temporal que abriga os anos de 1969 até 1977, podemos dar um passo adiante na compreensão do que foi sua obra musical neste período bastante fértil da história da música popular brasileira, que possibilitou de certa maneira, tantas experiências e buscas por uma sonoridade particular de um artista com uma bagagem musical tão abrangente e ao mesmo tempo tão incerta. A incerteza de que caminho seguir, posto que este seria um problema para Gismonti (o que de fato, percebemos que não foi) também acabou levando-o a alçar vôos em territórios mais longínquos, tornando a década de 1970 um período crucial para seu estabelecimento como artista respeitado e reconhecido. Neste período, sua figura e personalidade muitas vezes obtinham mais reconhecimento do que sua música. Seus discos continuavam a vender “pouco” e Egberto permanecia no objetivo de estabelecer uma carreira em que cada decisão musical era escolhida e planejada. Seu interesse em representar a música brasileira e seu engajamento na tentativa de ser representante de seu tempo, passa distante dos eixos culturais mais reconhecidos e aterrissa num território distante do Xingú, ao mesmo tempo em que se aventura pelas últimas novidades do mundo tecnológico. Sua música, contraditória por natureza, parece não dialogar com a situação política do Brasil e estar à margem do processo de consolidação da MPB e do debate identitário que fervia nos bastidores da indústria. Mas estas são apenas impressões. A música de Gismonti possui pontos de contatos com o que estava a acontecer social e culturalmente em seu entorno, tanto no campo da música popular brasileira como num plano ideológico mais amplo de trocas de informações culturais, num mundo onde a velocidade destas transformações demonstrava os impactos da globalização vigente.

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Capítulo II

1. O campo da MPB pós-1968

O trabalho “Seguindo a canção” de Marcos Napolitano nos traz muitas reflexões e esclarecimentos a respeito do momento de transição entre as décadas de 1960 e 1970 e de como a música popular pode traduzir este processo. Contrário às referências que vieram sendo produzidas pela historiografia da música popular, Napolitano desenvolve sua discussão negando o argumento de que ela fora cada vez mais “cooptada” por um mercado cultural em larga ascensão. Desta maneira, contraria a formulação de que a música popular inserida na indústria cultural havia esgotado sua produção crítica e que estava, no pós-1964, tomada por um “vazio cultural”, conseqüência tanto da repressão política como dos exílios dos artistas que fomentaram o debate político e cultural desta década. De acordo com Napolitano, é neste período que, após longos processos de disputas ideológicas e estéticas dentro de seu campo, a MPB gradativamente passa a se consolidar como instância autônoma, denotando um tipo específico de música capaz de incorporar diversos gêneros e estilos distintos em seu conteúdo (NAPOLITANO, 2001). Para o autor, uma das características fundamentais da MPB constituída como “instituição” na década de 1970, é sua relação tensa e ambígua com o mercado, num movimento constante de aproximação e distanciamento que a coloca num outro nível de complexidade e a torna capaz de revelar os entroncamentos e conflitos da sociedade daqueles anos. Diversos são os fatores sociais que contribuíram para esta determinada lógica histórica da MPB. Dentre eles podemos citar o desenvolvimento e consolidação de uma indústria fonográfica regida por racionalidades capitalistas condizentes com as estratégias de mercado; ampliação do público consumidor de bens simbólicos; integração da indústria cultural como um todo (TV, marketing, publicidade, indústria de discos, trilhas de novelas, etc.); consolidação do formato LP, que proporcionou maior valor financeiro e simbólico ao produto; enfraquecimento da fórmula dos festivais da canção como principais agentes da descoberta de novos talentos e, por fim, o enrijecimento do regime militar após o AI-5.

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Napolitano identifica a Bossa Nova e o Tropicalismo como manifestações musicais que reorganizaram os materiais de referência estética e ideológica nas canções, demonstrando assim as descontinuidades do processo mais amplo do impasse entre arte, indústria e vida. Ao dizermos que a bossa nova e o tropicalismo “reorganizavam materiais” subentende-se que a MPB já estava a lidar com “práticas históricas misturadas”, não puras, onde certos elementos foram selecionados como referências estéticas. Após 1968, observa-se uma desarticulação destas identidades que estavam em jogo no campo da música popular brasileira. Contribuem para este processo a segmentação do mercado, a ampliação dos pólos de consumo da MPB e a incorporação de diversos estilos e gêneros que colocam em conflito sua relativa unidade estética vinculada historicamente a uma linha ideológica “nacional-popular”. A partir destas reflexões o autor nos propõe a pensar as produções artísticas deste período como veiculadoras de mensagens críticas e reprodutoras de ideologias, superando seu meio de circulação principal (mercado) e atingindo outros planos da sociedade. O diagnóstico de Napolitano sobre a MPB deste período nos ajuda a compreender os significados das produções musicais, a forma como se configuraram os juízos de valores e o julgamento dos artistas, a hierarquia do mercado e os sentidos que alguns elementos estéticos ganhavam no contexto de transição das décadas. Dois conceitos balizavam os debates sobre música popular nestas décadas: “impasse” e “evolução”. Consequentemente, as reflexões sobre a formação da “nação” e o papel da tradição na conformação da identidade brasileira eram retomadas e ganhavam novos sentidos. Podemos dizer que, no campo da música popular a partir de 1968, algumas categorias identitárias que dividiam os agentes dentro do campo ganhavam novos significados. As polarizações entre engajados X alienados, nacional X estrangeiro e popular X massificado conservam-se mas demonstravam, devido ao contexto, que estavam em busca de um parâmetro mediador que fosse capaz de integrar o tradicional e o moderno. É evidente que neste período a MPB passava, cada vez mais, a aglutinar outras tradições musicais que não àquelas relacionadas à “autenticidade brasileira” como o rock e o pop, no intuito de conquistar grupos consumidores mais jovens. Se no plano estético a fusão de diversos estilos e gêneros contribuía para garantir à MPB deste período um caráter híbrido, no plano econômico, as hierarquias simbólicas se

36 pautavam nas estratégias de vendas da indústria e na consagração de valores estéticos específicos. Havia então, uma polarização entre artistas considerados “populares quantitativos” e “populares qualitativos”; categorias estabelecidas através do grau de intelectualização do artista, de sua capacidade de penetração nas massas e do número de vendas (esporádicas ou de maior longevidade). Estas categorias delimitavam de certa maneira as fronteiras de “bom gosto” e “mau gosto” dentro da indústria fonográfica (POLETTO, 2010). A partir disso, é importante percebermos que permanecia a tentativa, por parte da indústria cultural e da classe média intelectualizada, de considerar a MPB como uma derivação lógica da tradição musical brasileira, um tipo de música que ao mesmo tempo em que se renovava e modernizava, não deixava de lado os elementos que a caracterizassem como “autêntica” e representativa da identidade nacional. É neste ponto que se encontram as infindáveis tentativas da mídia em categorizar a obra de Gismonti como “brasileira” e a consequente nebulosidade, criada pelo próprio artista, em torno da sua personalidade, por meio de afirmações que tensionavam ainda mais qualquer tentativa de captura de uma suposta “essência” de sua obra. Estas informações serão debatidas com mais detalhes no início do capítulo 3.

2. Debate da Revista Civilização Brasileira – Os caminhos da MPB

Em matéria publicada na revista Veja de 1969, Egberto faz uma curiosa afirmação: “passei por todas as fases da evolução da música brasileira” (Revista Veja, 1969, p.54). Tal afirmação me remeteu diretamente a um documento histórico, datado de 1966, que já foi objeto de análise de alguns estudos sobre música popular brasileira. Trata-se de um debate promovido pela Revista Civilização Brasileira, que incluiu artistas e intelectuais do período, com objetivo de discutir os novos rumos da música popular, visto que esta se encontrava num impasse cultural e político fixado entre seu caráter comercial e suas intenções ideológicas (NAPOLITANO, 2007, p.99). Nele estão representadas as diversas posturas e visões a respeito da MPB tratadas no item anterior, seus caminhos, suas características e seu futuro. Faço aqui uma breve explanação deste debate, procurando sintetizar - com base na análise desenvolvida por Napolitano em seu livro “A síncope das idéias” - traços importantes dos discursos dos participantes. A retomada deste debate, além de exemplificar as

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“categorias identitárias” citadas anteriormente, ajudará também a compreender e embasar temas que reaparecerão em diversos documentos (artigos de jornais e revistas) coletados nesta pesquisa. O debate intitulado “Que caminhos seguir na música popular brasileira” 28 contou com os seguintes participantes: Flavio Macedo Soares (crítico), (compositor) Nelson Lins e Barros (crítico), José Carlos Capinan (poeta), Gustavo Dahl (cineasta), Nara leão (cantora) e (poeta). O debate foi mediado pelo músico Airton Lima Barbosa. A temática principal do debate era a questão conflituosa da dupla vocação da MPB, cultural e comercial. Discutia-se também a capacidade da música de se ligar às outras artes e assumir uma postura denunciadora das contradições sociais do país. Alguns pautavam-se naquilo que consideravam “alienado” e “ingênuo”, julgando o iê- iê-iê como “submúsica”, justamente por sua postura aparentemente afastada da realidade. Depois da explosão da jovem-guarda, os artistas engajados preocupavam-se com a invasão da cultura musical norte-americana, temendo que a veiculação dos ideais nacionalistas através da música popular perdesse seu espaço. Caetano Veloso, por sua vez, defendia a retomada do procedimento metodológico de João Gilberto, a quem via como sintetizador da modernidade e da tradição, responsável pelo “passo à frente” da música popular. A idéia era retomar o procedimento seletivo consciente da tradição musical assim como fez o artista, “filtrada por uma informação técnico-musical avançada na busca de uma síntese atualizada em relação às tendências internacionais” (NAPOLITANO, 2007, p.103). Durante o debate, o poeta José Carlos Capinan ressaltou a necessidade que a música popular tem de se adaptar e se integrar às regras mercadológicas, argumentando que seu distanciamento da máquina industrial somente a afasta da possibilidade de ser consumida e de ter suas idéias veiculadas ao grande público. Atento aos mecanismos desta indústria, Capinan menciona os processos e as estratégias deste mercado, como informação, promoção e propaganda dos produtos culturais, além de reconhecer que o mercado deforma e cria distorções de seus produtos a fim de torná-los coincidentes com o gosto da época bem como acessíveis a um maior número de pessoas. Capinan compactua com as idéias de Caetano Veloso a

28 BARBOSA, Airton Lima, coord. "Que caminho seguir na música popular brasileira? Revista Civilização Brasileira nº 7, maio de 1966, p. 381.

38 partir do momento em que afirma que a postura crítica do artista é de extrema importância para que seu material não seja deformado pelo mercado. Nelson Lins de Barros, outro participante do debate, adepto à corrente nacionalista, não via em João Gilberto este papel “sintetizador” que Caetano defendia. Para ele, a tradição só seria retomada dentro da canção popular se esta partisse do material folclórico original ou de conteúdos nacionalistas trabalhados por um procedimento musical inovador, como foi na bossa nova. Mas constatou uma importante característica na geração daquela época, contraposta à contenção e ao equilíbrio da bossa nova: a estridência. Permito-me agora trazer à discussão as posições de e Júlio Medaglia, que embora estivessem fora do debate da Revista, estavam em plena atuação no campo cultural daquelas décadas. Campos e Medaglia reforçavam a visão da “retomada da linha evolutiva” proposta por Caetano, porém de uma maneira um pouco diferente. Para eles, a ideologia nacionalista era impregnada de traços folcloristas e xenófobos e a MPB realizada nos palcos da televisão retrocedia em relação ao avanço que a bossa nova havia dado, retomando alguns aspectos como o exibicionismo operístico, a teatralização e o expressionismo em função de sua vontade de popularização. Medaglia vê na bossa nova um tipo de música que recolocou os processos de simplicidade e despojamento da canção popular, religando- se às raízes do cancioneiro brasileiro e com o “samba autêntico”. Para o músico, a MPB dos festivais representava o oposto da BN, em relação à clareza e à sutileza deste gênero. Percebemos que as posições, grosso modo, se dividiam entre os que acreditavam na vocação da MPB como mantenedora da autenticidade brasileira, dos elementos populares e aqueles que viam uma possibilidade de atualização sem a necessária rejeição do mercado e das influências estrangeiras. De acordo com a análise de Marcos Napolitano, embora os rótulos derivados destas duas correntes – “nacionalistas” e “vanguardistas” pareçam resumir o problema, uma leitura atenta deste debate acaba por expressar a complexidade das questões que estavam em jogo e enriquecer a abordagem do contexto em que nosso objeto de pesquisa está inserido.

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3. A canção popular e suas transformações no pós-1960 – referências teóricas

Ao longo deste trabalho, trabalharei com a noção de que a canção popular surgiu como um fenômeno que “interagiu com uma série de ocorrências circunstanciais da indústria do entretenimento” (FREITAS, 2011, p.604), que tendia a apresentar uma estrutura padronizada. Entretanto, nosso olhar se dirigirá para as transformações e desvios que esta forma sofreu, à luz das transformações de determinada época e contexto, de forma a avaliar as suas “licenciosidades” e “indisciplinas” (IDEM, p.620). Um dos referenciais trazidos à pesquisa que pôde contribuir na avaliação destas “licenciosidades” da canção popular pós-1968 é o de “desconstrução da canção”, desenvolvido pela pesquisadora Santuza Cambraia Naves (NAVES, 2010). Napolitano, no trabalho citado anteriormente introduz a idéia de que no movimento tropicalista o conceito de canção foi dilatado e outros aspectos poéticos e musicais foram incorporados à sua estrutura, especialmente elementos dos gêneros e estilos da música pop norte-americana. A canção passou a se abrir a novos materiais e referências que não só aquelas relacionadas às intenções nacionalistas e politizadoras, mesmo porque no final desta década este tipo de postura já havia perdido um pouco de sua contundência revolucionária (NAPOLITANO, 2001, p.265). Santuza segue semelhante lógica adicionando que neste período pós-tropicalista não houve uma perda da atuação crítica e política por parte da MPB, mas verifica um processo de “desconstrução da canção” que gerou uma série de modificações em sua forma e conteúdo. (NAVES, 2010). De acordo com a autora, os compositores das gerações de 1950 e 1960 desenvolveram uma categoria de canção denominada “canção crítica”, assumindo uma postura política e cultural que os fez atuar como “formadores de opinião” na vida pública. Nestes períodos, o processo de composição voltou-se tanto para o próprio fazer musical recorrendo a procedimentos parodísticos, metalinguagem e intertextualidade (textual), como para a crítica contextual, a qual levava os artistas a se posicionarem diante das questões políticas e sociais do país. Enquanto na bossa nova a crítica textual era preponderante, ao longo da década de 1960 a crítica contextual prevalece, sobretudo na produção orientanda pelo CPC – Centro Popular

40 de Cultura. É a partir do tropicalismo que a canção sofrerá um abalo em sua forma e conteúdo, mas não perderá seu sentido crítico. De acordo com a autora, no tropicalismo o conceito de “forma fechada” passa a não mais existir. Os artistas deste movimento passaram a se comprometer com a estética do excesso e expandiram o conceito de canção, justapondo o “nacional” e “autêntico” ao lado do “estrangeiro” e “descaracterizador”. Retoma-se o uso abundante de citações, paródias, pastiches e procedimentos intertextuais, característicos do modernismo, imbuídos num “conceito unificador” onde elementos retirados de diversos repertórios (nacional, estrangeiro, pop, folclore, erudito) estarão presentes nas dimensões da forma canção. Outro referencial teórico mais recente que pode nos ajudar a compreender mais profundamente as modificações formais da canção do pós -1960 é a do pesquisador Sérgio Molina. Sua argumentação se constrói a partir da idéia da ocorrência de uma transformação fundamental na canção popular deste período que, em suas palavras, “fortaleceu consideravelmente seu corpo musical, seu caminho como “música cantada”. Portanto, a música da canção popular teria deixado de ser - ao lado da palavra e de todas as ressignificações que decorrem de seu enlace a ela - apenas um de seus ingredientes, para passar a ser o agente protagonista dessa trama composicional”. (MOLINA, 2014, p.13) Um das razões que contribuiu para a transformação da prática cancionista e que pode ser reconhecida na história discográfica de Gismonti relatada no capítulo 1 é a relação da música popular com a tecnologia. Cada vez mais o potencial criativo do objeto artístico é estimulado através dos “processos de estúdio, à montagem do fonograma com superposições de camadas, espacialização do som, utilização de filtros de freqüência e outras manipulações de áudio que operam diretamente na modelagem da sonoridade, do que necessariamente à qualidade intrínseca da melodia harmonizada”. (MOLINA. 2014. p.15). Desta maneira, é fornecida especial atenção à “construção de sonoridades, timbre, ruído, território de improvisação, meios eletrônicos, multimídias, montagem, cortes, colagens, fusões e sobreposições”. Outra razão apontada pelo autor, intrinsecamente relacionada ao desenvolvimento da tecnologia de gravação é a “multipista” (expansão dos canais) e a possibilidade de overdubbing, propiciando a criação de sobreposições de “acontecimentos musicais”. Estes fatores correspondentes às condições históricas da transição das décadas evidenciam, por conseguinte, uma “elaboração intrínseca” qualitativa, que condiciona a produção da música popular ao status de “arte” e que, do ponto de vista do nosso

41 trabalho, tensiona as relações desta com o mercado, naquele movimento de “aproximação e distanciamento” revelador de conflitos mais amplos da sociedade, citado por Napolitano. Neste novo sistema, observa-se assim que, também a música popular encontra-se afetada pelo espírito inventivo e experimental que paira sobre a música de concerto do meio do século XX e ao mesmo tempo se estabelece “como porto seguro para uma sobrevida anacrônica do sistema tonal” (VALVERDE, 2008, p. 271 apud MOLINA, 2014, p.24) Num parágrafo Molina resume o potencial “conflituoso” da música popular deste período, com suas invariáveis e inúmeras possibilidades de ferramentas comunicativas:

E uma vez que não é mais o principal responsável pela estruturação das composições, como o era nos períodos, barroco, clássico e romântico, o sistema tonal - na canção popular - pode ter suas regras constantemente burladas, mesclar-se a procedimentos eminentemente modais, ser abandonado, etc. Uma trama composicional pode ter como desafio o estabelecimento de uma determinada polirritmia que embasa e dialoga com uma poética em primeiro plano (como expresso 2222 de ) ao mesmo tempo em que sua harmonia, suas tríades, funciona meramente como o corpo por meio do qual o espírito rítmico da peça irá se movimentar. (MOLINA, 2014, p. 24-25)

4. Inclusão e Recriação como práticas na música popular brasileira

Gismonti parecia não se posicionar, no início de sua carreira, a favor da retomada de uma tradição nacional-popular assim como outros músicos que atuavam no campo da música popular. No entanto, em seus primeiros discos, poderemos perceber uma postura que não se desvencilhava completamente de tais símbolos, mas gradativamente apontava para uma desarticulação destas identidades. A partir deste item, trago para a reflexão alguns conceitos estéticos que me pareceram, ao longo da pesquisa, essenciais tanto para se compreender a obra de Gismonti deste período como para localizar os pontos de encontro e os conflitos que possibilitaram esta “desarticulação” de identidade. Os primeiros dois conceitos incluídos em nossa abordagem são os de “inclusão” e “recriação”. Entendo o primeiro como a “utilização de materiais pré- existentes” de diversas culturas (brasileira, européia, norte-americana) e o segundo como os processos criativos a que são submetidos estes elementos dentro dos

42 arranjos, imbuídos de um caráter experimentalista. Ambos se fazem presentes de modo geral da conjuntura estética da arte brasileira e mais especificamente da música, tanto erudita quanto popular. De acordo com Santuza Naves, estes conceitos são especialmente encontrados no modernismo e na música popular brasileira como uma extensão desta tradição. No caso dos modernistas brasileiros estes conceitos referem-se à atitude de retomada dos legados culturais de diferentes tradições, manipulados através de ferramentas de linguagens como imitação, pastiche, plágio, paródia, tradução, citação e incorporação. (NAVES, 1998) Estes procedimentos são reconhecidos como parte da atitude de um bricoleur , contraposto ao conceito de “engenheiro” 29 . Este último segue um rigor na construção de seu discurso, montado com as matérias- primas e instrumentos definidos e criados por ele mesmo. Posteriormente, Santuza reconhece que a atitude do “engenheiro” dominou o cenário cultural brasileiro por um período curto e atípico em oposição ao “bricoleur”. Este período foi contemporâneo à afirmação da modernidade industrial do país e a imposição de certos ideais de “funcionalidade” e “objetividade” em outros campos artísticos que não só na música. Para a autora, após este curto período (estamos a falar, por exemplo, de uma parte do repertório da bossa nova e da arte concretista) a estratégia do bricoleur, includente, flexível e subjetivista retoma a posição central que mantinha desde o início do século, no modernismo. É importante entendermos que a idéia de moderno no Brasil se associou a valores como progresso e civilização, no sentido da necessidade das classes dominantes brasileiras de serem reconhecidas e se reconhecerem em padrões europeus, evitando o olhar de subdesenvolvimento. De acordo com Renato Ortiz, este “desejo de modernização” esteve intimamente ligado à construção de uma identidade nacional. Num primeiro momento desta construção, temos um modernismo que se opõe ao passadismo e tenta absorver alguns parâmetros da vanguarda européia. Num segundo momento, temos a criação e elaboração de um projeto mais amplo, colocando a questão da brasilidade como central para o debate. Para Ortiz, a reificação da modernização e o foco em seu papel progressista dentro da sociedade brasileira fizeram com que mergulhássemos em uma visão acrítica do mundo moderno. (ORTIZ, 2006, p.36)

29 “Engenheiro” e “bricoleur” são categorias retiradas do pensamento de Levi-Strauss por Wisnik, que distingue na tradição européia do modernismo estes dois procedimentos estéticos. (NAVES, 1998, p. 134)

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Partir desta referência nos ajuda a pensar e expandir os diferentes sentidos que estes conceitos adquirem no período que estamos estudando. A hipótese neste trabalho é de que “inclusão” e “recriação” não são categorias que estarão conectadas à idéia de uma cultura nacional unificada e sim com uma retomada de culturas diversas num cenário fragmentado, composto por elementos que não se harmonizam em uma única identidade. Ainda são poucos os trabalhos que discutem a música popular brasileira, principalmente o segmento da música instrumental, através desta perspectiva. Neste sentido, é importante citar duas referências importantes que contribuem para a discussão da idéia de “inclusão” e “recriação”. No primeiro deles, encontrado no trabalho de Giovanni Cyrino, entendemos que, embora não relacione este procedimento diretamente com o modernismo, o autor parece retomar o conceito em outros termos, não mais pautado sobre a construção de uma identidade nacional, mas sendo ainda pensado como recurso composicional para “expressar as relações não resolvidas da identidade nacional”. Para Cyrino, o músico instrumentista da MPBI (música popular brasileira instrumental) 30 trabalha nesta versão “pessoal” em busca de “originalidade” e “pessoalidade” em suas obras, que representam uma “outra versão do Brasil”, “uma outra visão de nação”, uma nação com “diversidade cultural”. Este tipo de produção é pensado como “recriação” na medida em que o artista fornece uma “nova versão pessoal” à combinação de aspectos composicionais e interpretativos do universo erudito e popular, sendo que estas recriações podem estar conectadas com as exigências dos músicos deste meio, das audiências e da própria indústria fonográfica. (CYRINO, 2009) Já Rúrion Soares de Melo, em artigo sobre Egberto Gismonti, afirma que as peculiaridades do músico acabam por afastá-lo do pensamento de Mário de Andrade, mesmo que a conexão entre os dois seja estabelecida a priori. Para o autor, na música de Gismonti podemos ver mais facilmente esta “tensão” dos elementos “populares” como recurso composicional, não sendo interpretada como uma vitória do popular e nem da música “desinteressada”, dando uma resposta diferente à solução de Mário de Andrade: “as obras não podem mais ser compreendidas lançando-se mão dos elementos propriamente “brasileiros” do finado “nacional-popular”; (...) houve uma tendência à expansão do material musical, enriquecendo-se os recursos criativos e

30 Termo criado pelo próprio autor.

44 dinâmicos para a composição”. Rúrion parece se aproximar do pensamento de Cyrino quando afirma que o “estatuto popular” surge como uma “tensão não resolvida”, “nem negação total da música herdada, nem “solução na identificação determinada da tradição”. (MELO, 2007, p.194) É perceptível no recorte temático da obra de Gismonti que estamos a analisar a utilização de materiais pré-existentes de diversas tradições. No entanto, o que procuramos buscar aqui são os sentidos que ordenam os significados destes elementos e de que modo eles se afastam da concepção modernista tradicional da inclusão como categoria de “manutenção” de uma determinada identidade nacional, sobretudo com o intuito de descobrir e desvendar procedimentos estilísticos que parecem se desviar desta norma. Dito isto, traremos agora mais um referencial teórico que pode nos ajudar a compreender um pouco mais a fundo a dimensão “desconstrutiva” e experimental das novas proposições criativas e composicionais do músico.

5. Transcrição como desconstrução construtiva

Outra característica essencial da obra de Gismonti e que orienta quase a totalidade do material que foi analisado neste trabalho é sua tendência comprovada à “transcrição” 31 . Compreendo este procedimento como um ato de “recorrência ao seu próprio material compositivo”. Pude constatar a existência de um grande número de regravações, nos discos de Gismonti, de composições de sua própria autoria. Das 76 faixas somadas entre todos os LPs incluídos neste trabalho, 18 faixas são originais e versões, ou seja, aproximadamente 24% (quase 1/4) de seu trabalho no âmbito deste pequeno recorte. 32 Um referencial teórico que me pareceu importante durante a reflexão sobre o processo de transcrever consta no texto do compositor Luciano Berio intitulado

31 Compreendendo que a primeira acepção do termo “transcrição” pode significar a passagem de uma música em formato de áudio para a notação musical, ressalto que aqui o termo está sendo utilizado num sentido mais próximo ao ato de “transcriação” ou “reescritura” (BONAFÉ, 2011, p.14) de um objeto artístico já existente. 32 Música: “Água e vinho” (discos: Água e vinho e Alma); Música: “Ano Zero” (discos: Água vinho, corações futuristas e Solo), Música: “Salvador” (discos: Egberto Gismonti, Orfeo Novo, Dança dos Escravos, Egberto Gismonti 1973, In Montreal, Solo, The altitude of the sun), Música: “Café” (discos: Carmo, corações futuristas, Sol do meio dia); Música: “Palácio de Pinturas” (discos: Academia de danças, Sol do meio dia, Nó caipira); Música: “Dança das cabeças” (discos: Dança das cabeças, Corações Futuristas e The altitude of the Sun).

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“Translating music ”, no qual estão presentes algumas colocações pertinentes a esta prática. Berio aponta que o processo de transcrição ou “reescritura” fomentou e contribuiu na expansão das formas de se fazer música. Durante o século XV e XVI a música instrumental e a prática da melodia acompanhada se consolidaram a partir das reescrituras de polifonias vocais, respectivamente. Bach e seus contemporâneos transcreviam suas próprias obras para outras formações instrumentais. Por sua vez, os compositores do século XIX retomaram as obras de Bach e adicionaram acompanhamento de piano às suas melodias e até as transformaram em estudos para um instrumento em específico. Também no século XIX, a reescritura de obras eruditas para piano a quatro mãos tinha o intuito de popularizar o instrumento e um repertório na esfera da classe burguesa em ascensão. As transcrições de Liszt contribuíram para a evolução da técnica pianística. Citados estes exemplos, Berio passa a digredir sobre o fato de que, existem outras funções conferidas ao ato de transcrever, dependendo do tipo de repertório a que se recorre. Cita por exemplo o caso de Webern, discípulo de Schoenberg, que valia-se de suas transcrições como formas de análise, como formas de “ser o próprio texto que está sendo transcrito” 33 , aprofundar-se nele. No caso de alguns tipos de obras musicais (“Jeux” de Debussy, “Música para cordas, percussão e celesta” de Bartók, “Marteau sans maitre” de Boulez, “Carter´s Double Concerto” de Stockhausen), considera-se que, ao serem submetidas a uma transcrição, deve-se levar em conta seus os significados intrínsecos, que estão, dentre outras coisas, “na interação acústica de seus componentes, em sua caracterização musical e sua função, nas suas relações específicas sonoras, e na "tematização" destas relações específicas". (BERIO, 2004, p. 38). O processo de transcrição para Berio é um processo de “tradução” que implica na transferência de um material de um universo a outro, uma experiência musical para uma descrição verbal, um instrumento a outro, ou a transformação do texto musical em performance. A tradução também envolve processos de interpretação. O processo de interpretação da música no ato de uma tradução, se difere, de acordo com Berio, daquele que ocorre na literatura pelo fato da primeira se construir com instrumentos e materiais que não são tão permanentes como as páginas

46 escritas. Sendo assim, a recorrida da música aos elementos do passado é limitada e vulnerável, pois não lida, a priori , com a problemática da escolha de trair um significado pelo bem de outro (como no trabalho literário, no qual deve-se optar por ser mais fiel à tradução literal ou à tradução dos sentidos do poema). De qualquer maneira, as transcrições, de acordo com o autor, podem trazer à superfície e ampliar as funções que estavam escondidas por trás de uma dada configuração musical, e são compreendidas como “uma interação criativa com a natureza”, um ato contínuo sobre as potencialidades contidas no cerne do material com que se trabalha. Quando dois textos musicais são unidos eles podem estabelecer o que o autor chama de “múltiplas formas de interação”. Estas interações podem ser conciliadoras ou conflituosas. Na opinião do autor, é justamente quando há uma interação conflituosa que pode haver uma conexão profunda com as informações iniciais, as quais serão desafiadas e justificadas. Berio acrescenta que a possibilidade de abusar da integridade do texto inicial é um “ato construtivo” sobre o próprio material. Desta forma, o ato de transcrever atinge o centro do processo formativo e pode definir a estrutura de um trabalho – “não é o som que está sendo transcrito, mas a idéia”. (IDEM, p.45) Percebemos que a instabilidade identitária dos primeiros discos de Gismonti é resultado de exercícios criativos com estilos e gêneros já consolidados em um constante diálogo com uma formação musical erudita e com experiências mais ousadas no campo da música comercial. Gismonti, principalmente a partir do álbum Academia de Danças propõe uma nova noção de música popular brasileira e parece se interessar mais com a forma do que com o tipo de conteúdo que ela veicula, trazendo à canção popular e suas recriações instrumentais elementos que se afastam dos signos estabelecidos pela “linhagem tradicional” da MPB do pós-1960. 34 Sua relação com a programação das composições, que são quase que totalmente escritas e pensadas antes do momento da gravação, criando um elo com a prática da música de concerto, é confrontada com a abertura proporcionada pela interação com músicos do universo popular, universo este que geralmente fixa suas origens na tradição oral-aural. Estas novas maneiras de “formar” só são possíveis graças a um ato crítico que torna consciente as possibilidades estéticas até então. Gismonti parece negar a

34 Assim como afirma Sean Stroud; “ela (a canção popular brasileira) precisa ser derivada de uma forma regional, ser percussiva e elétrica e conter um discurso harmônico complexo”. (STROUD, 2008, p.40, tradução nossa).

47 necessidade de referências fixas e agir num contínuo de ações deliberadas de acordo com as escolhas e a eleição de suas próprias regras no decorrer do processo de sua criação, fazendo da transcrição/reescritura e regravação um dos caminhos criativos essenciais para a realização deste tipo de processo.

6. Experimentação

A partir da constatação de que boa parte das criações musicais de Gismonti deste período faz uso da “experimentação”, possibilitada principalmente pelos recursos de gravação disponíveis naquela época e pela forma como os fonogramas se materializavam a partir de “arranjos abertos”, trago outro importante referencial no qual nos apoiaremos para balizar futuras asserções sobre os significados desta experimentação. Trata-se do famoso ensaio sobre experimentalismo e vanguarda de Umberto Eco. No início de seu texto o autor aponta que as novas poéticas musicais 35 propuseram uma nova noção de forma artística e esclareceram, a partir da maneira como colocaram seus problemas toda uma situação cultural, revelando conexões com outros aspectos da arte e da ciência contemporânea. Para Eco, o artista contemporâneo só inventa por conta do resultado das provocações do material com que se trabalha, sendo impossível seu estímulo a partir de algo que lhe é desconhecido. A experiência experimental e as novas possibilidades formais devem, no entanto, serem contextualizadas; caso este exercício não seja feito, o próprio conceito perde seu sentido, pois “toda invenção artística é uma experimentação em todos os tempos e lugares”. (ECO, 1986, p. 227) Quando o artista experimental se “debruça no mundo dos sons para estudá-lo e abrir-lhe possibilidades até agora ignoradas” ele necessariamente recebe da ciência materiais para a sua música. Observamos antes e constataremos adiante que esta característica na obra de Gismonti está bastante vinculada a sua relação próxima com as tecnologias, aos novíssimos instrumentos eletrônicos de sua época e ao tipo de processo de composição e gravação. A concepção de sua tendência ao “monumental” e ao “erudito”, neste momento de sua carreira, transcende uma estética idealista apoiada sobre imaginação, auto-experiência e emocionalidade e passa a resultar de um

35 É importante ressaltar que o texto foi escrito em 1962 e se refere à música experimental erudita das décadas de 1950 e 1960.

48 contato vivo entre artista X matéria, meio X ação individual. A consciência crítica de Gismonti parece implicar na tendência aos comentários dos comentários - suas transcrições e recriações. Em entrevista a Sergio Cabral Gismonti afirma: “Levei 15 ano envolvido com a música erudita e foi difícil me livrar dela. Descobri que sou um músico do terceiro mundo. Eu estou preocupado é com outras coisas” 36 . Pertinente a este comentário é a assertiva de Eco que diz:

“um artista apenas age sobre o mundo através do modo de formar a própria obra, e que, portanto, quando a música põe em causa um determinado sistema de comunicação, uma certa visão do mundo(...) a visão do mundo está já a mudar no âmbito de uma cultura, e o artista sente que não pode dominar um mundo de tipo novo através de um sistema de relações formais que exprimia um mundo de outro tipo e que se, por conseguinte, continuasse a falar usando os velhos termos, produziria um discurso ambíguo e desonesto” (IDEM, p. 231).

Os ditames da MPB de protesto, que forneciam o modelo ideal para a canção brasileira, mesmo entre aqueles artistas que não estavam de acordo com um pensamento nacionalista radical da linha de Tinhorão, entravam em colapso a partir de fins da década de 1960, não representando mais a sociedade, a qual estava passando por profundas transformações em todos os âmbitos. Eco também nos chama a atenção para a relação entre “experimentalismo” e “indústria”. O ato experimental, visto como uma sequência de gestos que contrapõem um determinado conjunto de “padrões” e “regras” se tornou um hábito no interior das sociedades, tornando-se ele próprio uma regra na civilização artística contemporânea. O resultado de uma “experiência” no âmbito artístico é capturado pela indústria; ao enquadrá-lo nas redes de um produto vendável esta indústria acaba por neutralizar a ação rompedora desta experiência e seu impulso inventivo original. “Assim é experimental toda a atitude de pesquisa que culminar no fabrico de qualquer coisa de vendável.” (IDEM, p. 233). Assim, a obra de arte experimental esta sujeita tanto à cooptação pela indústria, quanto à imitação e ao surgimento de formas análogas desprovidas do intento inicial, “toda revolução em arte foi geradora de academia”, diz Eco, e se isso é possível de se perceber é porque a sucessão de soluções formais na arte se acelerou.

36 Egberto Gismonti, mais um que se foi. CABRAL, Sérgio. O Pasquim. Nº37. p. 22 e 23.11/03/1971

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No entanto, o artista não deve se afastar das premissas do mundo industrial e tecnológico, do seu próprio presente por que esta atitude “exprimiria uma forma de alienação bem mais grave” do que a sua submissão a certos “condicionamentos” da relação arte e mercado. O contexto em que foi gravado o disco Academia de Danças , apresentado no capítulo I, é um exemplo significativo desta sujeição às condições da indústria fonográfica, que no caso citado provocou mais “liberdades” do que impôs “limites”, resultando inesperadamente no maior número de vendagens da carreira de Gismonti até então. Outro texto de Umberto Eco intitulado “Necessidades e possibilidades nas estruturas musicais contemporâneas”, trará também algumas discussões acerca deste debate, concentrando-se no caráter “aberto” das formas musicais da música contemporânea. Eco inicia a argumentação relembrando que uma composição “tonal” que apresenta contornos melódicos e progressões harmônicas analisáveis do ponto de vista da teoria musical tradicional, fornece ao ouvinte estímulos previamente conhecidos, probabilidades esperadas dentro de um discurso e são construídas sobre o binômio “tensão/resolução”. Partindo desta lembrança e procurando construir as propostas poéticas das “novas estruturas musicais” Eco traz para a discussão a teoria de Leonard Meyer. Meyer em seu principal livro “ Emotion and Meaning in Music ” demonstra que as emoções são derivadas do processo cognitivo intrínseco aos padrões formais da música. Afeto ou sentimento emocional estão relacionados à sensação de expectativa, à espera por respostas após uma crise, ativada propriamente por situações de estímulo musical. Estes estímulos apresentam-se como ambíguos e inconclusos; geram crise e necessitam de uma resposta. Os “afetos” gerados no ouvinte ocorrem quando existe uma inibição temporária ou um bloqueio permanente da expectativa não respondida. Disso deriva sua “teoria do desvio”: certas emoções provocadas justamente pelos desvios de uma norma. Este conceito de expectativa é um conjunto de princípios perceptuais universais derivados da psicologia Gestalt 37 e da teoria da informação.

37 A teoria da Gestalt se apóia na lei da pregnância, do fechamento, da semelhança, da proximidade, da segregação, da simetria e da continuidade. Adota-se modelos formais mais simples possíveis e acredita- se na capacidade da mente de agrupar elementos similares, agrupamento com base na distância, simetria como unidade, padrões). O processo da Gestalt gira em torno do "modelo de implicação e realização" (vazio e preenchimento) e estilos (arquetípicos ou esquemas composicionais). Entendidos no campo musical, estes padrões estão também interligados às relações mensuráveis (Expressão matemática do ritmo, freqüências), passíveis de serem analisados e descritos. Contudo, Eco percebe que a psicologia Gestalt tem seus limites: as características destes modelos formais são tidas como tendências espontâneas dos processos naturais, a natureza humana tende a ver as formas do mesmo

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É aqui que Meyer aprimora seu pensamento ao definir as esperas e as tendências como dados culturais, ou seja, um modo de experiências anteriores que organizam perceptivamente um determinado campo de estímulos. Assim a “crise” e a “monotonia” se alteram dependendo do contexto sócio-cultural. A forma, neste caso musical, surge como uma tendência a certos tipos de estímulos, estipulando o tipo de “crise” que despertará e as soluções que as satisfarão. Eco resume:

Neste processo, a repetição simétrica e contínua de um evento musical, se num caso assume o aspecto inesperado de uma dilacção que espera compor-se, num outro caso pode surgir apenas como a expressão de um nível formal mais baixo que, no fundo, responde muito bem às exigências da forma, mas que necessita de se decompor e complicar, para dar lugar à espera e, portanto, ao aparecimento de uma solução bem mais complexa, conquistada com esforço. (IDEM, p. 166).

A teoria de Meyer, do ponto de vista de Eco, é esclarecedora, mas ainda assim, limitada para explicar o tipo de música pós-tonal para a qual o interesse do autor se volta. A tendência para se “resolver a crise pelo repouso, a perturbação pela paz, o desvio pelo retorno” são categorias que não se aplicam a outro tipo de código que não o tonal. A música de concerto tonal, na concepção de Henri Pousseur, compositor citado por Eco, tende a uma “inércia psicológica” através da polaridade das tonalidades, sempre preocupada em criar pólos de atração e a desenvolver uma “evolução temática” subordinadas aos critérios autoritários do tonalismo. A poética da “nova música” se coloca desta maneira a favor da multipolaridade da obra; a música soluciona a crise com uma nova crise. No caso da música serial as regras estabelecidas na composição respeitam apenas a estrutura da própria série ao qual se baseia o compositor. Poder-se-ia dizer que a música serial também necessita da criação de uma relação prévia que ordene os elementos da obra, assim como as regras da teoria musical tonal. Neste sentido, Eco propõe o entendimento destas novas propostas com o conceito de “constelação” - uma relação que a inteligência interpretante institui entre uma série de elementos isolados, sendo assim uma proposta formativa “aberta”. Trata- se de um campo de possibilidades contraposto à lógica de uma necessidade indiferenciada da música de concerto tonal. Este “campo de possibilidades” na fruição modo e de acordo com as mesmas leis da natureza, existe assim uma aproximação ao que seria uma “boa forma”, não existindo explicações do porquê de um auditor desejar uma “crise” num discurso que seria gestalticamente perfeito.

51 de uma obra musical indicado pelo autor se refere à sensibilidade perceptiva do ouvinte. Faz-se aqui uma analogia com as constelações: mesmo que se trate de um conjunto de estrelas que se definem pelo desenho que formam, um observador que nada sabe sobre astronomia pode imaginar e ligar estes elementos de modo a formar uma diferente imagem:

“Trata-se portanto, de compreender a obra como um organismo aberto, organismo, porque dotado de uma formatividade originária própria que não pode deixar de condicionar as escolhas efetuadas de entre uma gama de possibilidades; aberto, justamente porque a forma não obriga o fruidor a seguir uma direção necessária, mas apresenta-lhes como campo de possibilidades”. (IDEM, p. 172)

A música nova propõe uma nova relação do auditor com a obra, interativa e não passiva, de modo a promover “atos de liberdade consciente” a este ouvinte. A idéia de organismo permanece, porque não prescinde uma formatividade originária própria que organiza um campo de possibilidades. Entretanto trata-se agora de um “organismo aberto”, visto que não obriga o fruidor a seguir uma direção necessária e o faz aproveitar deste “campo de possibilidades”. Assim, diz Eco, “escolher uma rede de relações significa afinal escolher (...) um tipo de conclusão”, mas pressupõe também um ouvinte conscientemente desperto que não se contenta com a relação obtida, construindo uma relação viva com a estrutura da obra, uma obra em movimento (IDEM. p.173). Esta teoria implica em traços importantes do pensamento de Eco, que posteriormente fundará o conceito de “obra aberta”. Obra aberta, para o autor, é aquela que além de significar um novo tipo de poética contemporânea em que o interprete se torna co-participe da obra significa também uma poética que mesmo conservando a forma final da obra como acabada e imutável, admite, ainda assim, uma pluralidade de significados, a depender da abordagem do intérprete. Nesta teoria, devemos levar em conta que o auditor contemporâneo é educado por séculos de tonalismo. Portanto, Eco faz uso da “teoria da informação” para explicar a nova condição de composição e audição da música nova, multipolar e assimétrica. Entendida como uma maneira de mensurar qualitativamente as estruturas comunicativas, a teoria da informação de origem cibernética pressupõe certa ordem dos elementos para que a mensagem comunique o mais fácil possível uma quantidade determinada de significados. Para isso prescinde de redundância; quanto mais

52 previsível for uma situação informativa menos possibilidade tem de dizer algo de novo: “a redundância introduz ordem e previsibilidade num discurso: ao introduzir previsibilidade introduz obviedade” (IDEM, p. 175). “Por conseqüência, a comunicação mais carregada de informação é a que se revela menos pressionada pelas leis da redundância”. O processo que é capaz de destruir uma série de previsibilidades enriquece o auditor. Seguindo este pensamento Eco sugere que a linguagem estética sempre contém uma riqueza de informação na medida em que tenta fugir as leis da redundância quando se vale de módulos imprevisíveis “contrações, anacolutos, metáforas, uso de palavras com significados ambíguos e invulgares”. Eco ressalta que estas informações devem ser vistas como clarificadores da pesquisa artística e não como “chaves universais” que “explicam a obra”. Concluí-se assim que as obras que apresentam alto grau de ambiguidade e polissemia são mais aptas a serem categorizadas como “obras abertas”. No entanto, para defini-las como tal, Eco aponta que é essencial a “organização primária do código”, pois é sempre através dos caminhos possibilitados por uma estrutura maleável em alguns pontos e não em outros que se produz mensagens ambíguas. É esta dialética entre “definitude” e “abertura”, essencial a uma noção de arte, que caracteriza a utilidade do debate sobre obra aberta. Não se trata da dissolução da obra num universo de fruições possíveis, mas a redefinição de “definitude de um objeto” como “definitude de um campo de possibilidades interpretativas”. O artista criador permite uma livre fruição do espectador, mas o induz e orienta a certos tipos de respostas, apresentando a obra com um acabamento produtivo específico. Eco percebe que Meyer acreditava na ação do compositor em direção a incorporação de elementos de incerteza de modo a evitar que este se perca do potencial próprio de informação de uma obra artística. 38

Compor, apresenta-se, pois, como uma série de atentados ao sistema de redundância em ação no interior de um determinado estilo, para introduzir incertezas altamente informativas e, portanto, de grande eficácia estética: quantidade de informação adquirida e significado interno de um discurso musical surgem ao longo de um mesmo processo, pois se enquanto que ao receber a informação nos encontramos voltados para o evento esperado, ao compreender de novo a obra no seu significado voltamos com a memória ao

38 É importante verificar que Meyer acusa a música moderna de eliminar demasiadamente a redundância, nos impedindo de responder aos estímulos que realizam o significado.

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conjunto dos eventos passados e confrontamo-las nas suas mútuas relações. (IDEM, p. 177)

Eco propõe um olhar investigativo para a música contemporânea indagando em que medida a escolha de parâmetros para a composição não introduz uma base mínima de redundância, que façam do universo multipolar da obra aberta uma forma. Citando o engenheiro acústico, filósofo e físico Abraham Moles, que pesquisou as ligações entre estética e teoria da informação, Eco reitera que a ampliação do limite de perceptibilidade seria função de uma situação sociocultural, ou seja, quanto maior a informação e a articulabilidade das estruturas musicais, maiores são as chances da existência de obras que desenredem os hábitos da tonalidade por parte do público e maiores as chances da modificação de suas sensibilidades. Eco afirma que as categorias artísticas pós-modernas propõem uma alteração da sensibilidade do fruidor que põe em realce a intenção e as poéticas sem realizar juízos de ordem estética. O mundo contemporâneo, desta forma, substitui a tendência à univocidade pela tendência a possibilidade. Todas estas categorias de “fechamento” e “abertura”, “novidade” e redundância”, “multipolaridade”, “campo de possibilidades”, “previsibilidade e imprevisibilidade” estarão presentes em algum nível, nas estruturas musicais de Egberto Gismonti, como poderemos ver e discutir com mais profundidade nas análises dos próximos capítulos.

7. Sonoridades

Recorrendo novamente à tese de doutorado de Sérgio Molina observamos que o autor, além de verificar as condições contextuais que possibilitaram a transformação das práticas composicionais da música popular pós-1960, investiga os processos musicais intrínsecos a elas, valendo-se de diversos referenciais teóricos-analíticos advindos do campo de estudos da composição e da música contemporânea de concerto. Molina se baseia principalmente nas idéias do pesquisador Didier Guigue contidas no texto “Ferramentas para o futuro” presente em seu livro “Estética da sonoridade – matrizes de sonoridades na música do Século XX”. O autor relata que a discussão de Guigue, que por estabelecer vínculos de significado com nosso objeto de

54 pesquisa, toma Debussy como via composicional e se atenta às “elaborações compositivas” que possuem “uma estética que busca construir formas a partir da manipulação coordenada de componentes que agem diretamente na sonoridade” (GUIGUE, 2011. p. 144 Apud Molina, p.26). Este nível de articulações sobre o qual a forma se apóia é chamado por Guigue de “ nível secundário ” 39 – formado por “texturas, adensamentos, rarefações, operações de cortes e filtros de freqüência”. Compreendendo que é no neste “nível secundário” que subside os requisitos necessários para se compreender as composições de Gismonti deste período, descrevo alguns conceitos trabalhados na tese de Molina que poderão nos ajudar a balizar as constatações das análises num segundo momento. Para a análise deste nível secundário que prioriza a sonoridade, observa-se o grau de “transformação” a partir da “preocupação com a alternância dos momentos” dos conceitos de “repetição, similaridade e diferença” e suas “ênfases nas relações dos diversos componentes da sonoridade (texturas, âmbito, intensidade, densidade, etc.)” (MOLINA, 2014. p. 28). O conceito de “Momento” é descrito como a relação das sonoridades com os recortes no tempo, podendo corresponder a um segmento, período longo, ou até a obra inteira. (GUIGE, 2011, p.47 APUD Molina, 2014, p. 86) Dentro do momento há o que Guigue chama de “unidade sonora composta” que seria a “síntese temporária de um certo número de componentes que agem e interagem em complementaridade" (GUIGE, p.50 APUD Molina, p. 86). Portanto, a unidade sonora está ligada aos parâmetros intrínsecos e suas relações dentro da construção das “sonoridades” e o momento se relaciona ao recorte na linha do tempo realizado por esta estrutura sonora, criando um certo estado e contribuindo para a “forma” da música. 40 Os conceitos de repetição, similaridade e diferença, que não coincidentemente nos remete à já tratada discussão de Eco do item anterior, servem para “aferir o grau do contraste estabelecido em uma peça”. (GUIGUE, p.69 apud MOLINA, p. 125). Molina acrescenta que toda repetição já contém alguma diferença na medida em que

39 A este nível secundário se opõe o “nível primário”: “circunscrito a um reservatório de notas, de figurações, de gestos, seja a uma função de invariância, de estase, quiçá de unificação subjacente”. Observado na música que antecede Debussy (Beethoven e seus motivos gerados, Brahms e suas variações em desenvolvimento, Wagner e seu tecido cromático do encadeamento das vozes e modulações harmônicas etc,) (MOLINA, 2014. p.27) 40 A idéia de Momentum , de acordo com Molina, é retirada de Stockhausen.

55 sua posição no tempo é outra e ainda, que similaridade é compreendida como a relação entre permanência e variação dos componentes de uma sonoridade. Dentre os “componentes” ou “parâmetros” trabalhados na tese de Molina que nos interessam particularmente estão as avaliações da textura, densidade, registro de tessitura, intensidade e timbre. Por “textura” Molina incorpora em seu trabalho a seguinte definição de Kostka:

"Podemos dizer que textura se refere à relação entre as partes (ou vozes) em algum momento de uma composição, faz referência especialmente às relações entre ritmos e contornos, mas também abrange aspectos como espaço e dinâmica" (Kostka, 2006, p. 22 apud MOLINA, 2014, p 80)

As categorias texturais citadas são tanto aquelas comuns à análise de música dos séculos anteriores como monofonia, homofonia, contrapontísticas (polifônica) e textura em camadas quanto aquelas relacionados à música de concerto do século XX como pontilhismo, estratificação (sons contrastantes no sentido contíguo e não justaposto) e massa sonora (relativo a função que certos acordes estabelecem a partir de seu impacto físico e psicológico em detrimento de suas alturas). Em relação à “densidade” Molina destaca duas categorias importantes: as densidades acrônicas ; relativas à quantidade de fatos sonoros e acontecimentos musicais simultâneos, que podem ser “densos” ou “rarefeitos” e a densidade diacrônica ; relacionada à quantidades de fatos sonoros ao longo do tempo de cada unidade sonora (momento), do vazio ao saturado. As diferenças entre as extensões dos registros são tratadas como os “ âmbitos relativos”, que podem ser descritos como os limites das tessituras (IDEM, p.98) e as “ intensidades relativas ” como as diferenças entre as intensidades. Na acepção do referido trabalho, o timbre pode ser formado pela quantidade de instrumentos e pela qualidade do timbre ou ainda pela “ reverberação relativa ”, relacionada à relação espacial do som e a avaliação dos tipos de figura X fundo e pela “espacialização relativa ” referente ao posicionamento de cada instrumento, voz ou unidade sonora no espectro estereofônico. É a interrelação destes componentes que trarão a resultante da “sonoridade” de determinada obra. Estas sonoridades se alternam e se transformam e contribuem para a construção da forma.

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Guigue propõe uma divisão na percepção destes contrastes, que podem ser muito úteis na descrição dos materiais musicais analisados desta pesquisa: a distinção entre oposições adjacentes e oposições simultâneas . A primeira, relativa à noção de segmentação, é descrita como segmentos sonoros descontínuos numa linha horizontal do tempo, que geram implicações nas formas musicais. São divididos em três tipos: “cortes ” - quando há oposição direta entre uma sonoridade e outra encadeada uma em seguida da outra; " pivô " - quando há algum elemento em comum na transição destas duas sonoridades opostas e " telhagem" - quando há, numa situação de encontro de duas sonoridades, o compartilhamento sequencial de características uma as outras de maneira seqüencial num curto espaço de tempo. (IDEM, p. 81) A oposição simultânea, relativa à noção de segregação em camadas, compreende-se aquelas unidades sonoras que acontecem simultâneas ou paralelamente uma as outras (ao mesmo tempo) e podem estar devidamente “ segregadas ” – quando diferem-se uma a outra; ou num processo de “ fusão ” – quando há um maior índice de elementos comuns compartilhados entre elas. É na comparação entre dois pontos ou segmentos distintos no tempo que os contrastes de sonoridade podem ser aferidos.

8. Perspectivas do olhar ao objeto – Como se estruturam as análises

Reitero aqui que a compreensão da forma como a música de Gismonti rompe com certas características e sonoridades do universo da MPB, universo este constituído por mensagens estéticas específicas alocadas em determinado período histórico, é tomada como uma das principais hipóteses deste trabalho. Faz-se importante desta maneira que as análises nos possibilitem verificar, dentro das composições de Gismonti, a quantidade de informações e a maneira como elas se articulam dentro das estruturas musicais, entendendo-as como parte de um campo maior. A compreensão da expansão das fronteiras da canção parece ser um tema comum abordado por diferentes perspectivas nos autores apresentados. Compreender o nível secundário sugerido por Molina como articulador das formas passa a ser também compreender, fora dos aspectos intrínsecos ao discurso musical, o processo de “desconstrução da canção” sugerido por Santuza. Verificar os graus de contrastes de seus “momentos” e observar os níveis de repetição, similaridade e diferença aparece

57 como ferramentas analíticas verificáveis e pertinentes a um objeto “aberto” e “multipolar”, uma composição que tem como princípio norteador a experimentação. As reescrituras de Gismonti de suas próprias composições aparecem também como outra atitude “experimental” que contribui para ampliar as funções que estavam escondidas em determinado material, tendo-se em conta que é necessário investigar e descrever a maneira que ele reutilizará os parâmetros intrínsecos da sua composição em outra versão para termos mais consciência deste movimento provocador. É possível aferir também que a exploração desta “resultante sonora” nos álbuns de Gismonti e consequentemente a desconstrução da forma através da provocação do material, nos termos de Eco, e da “manipulação coordenada de componentes” nos termos de Molina, são referências bases para se analisar e discutir resultados estéticos da obra do artista. Nas análises, procuramos descrever os fonogramas corridamente, respeitando o contínuo de seus “momentos” musicais ao longo de sua duração. Consideraremos nesta metodologia, que os momentos, ou as “unidades sonoras” estão dispostos nas “seções” da composição demonstradas nas tabelas no início de cada análise, a fim de estabelecermos criteriosamente onde começam e terminam o grupo de parâmetros sonoros. Pela divisão em “seções” reconhece-se aqui o ponto inicial de partida na idéia de forma canção ( template) “AABA” como discutida pormenorizadamente, desde sua origem 41 até suas implicações no âmbito da música popular contemporânea pelo pesquisador Sérgio Freitas em uma nota de sua tese de doutorado intitulada “Da estandardização e seu impacto nas normalizações das relações entre morfologia e escolha de acordes: teoria da harmonia da música popular? Da música tin pan alley ? Ou da jazz theory ? (FREITAS, 2010, p.630-624)

Embora a música de Gismonti aponte para um tipo de criação composicional onde a harmonia não contribui diretamente para o desenvolvimento da forma, não nos abstivemos nesta pesquisa do embasamento harmônico nas análises. No mesmo

41 “ Este rígido template harmônico-formal é de suma importância para a história do jazz , pois se tornou uma espécie de emblema de um denso processo de negociações que, por maneirismo, exacerbação e exagero, pouco a pouco, foi escancarando as tensões entre a cena jazz e a cena “ Tin Pan Alley ” chegando a alcançar a possibilidade de uma jazz composition independente. Isto é, a efetivação de outra forma de composição popular , mais e mais desvinculada das soluções previamente dadas pelo repertório standard. Um processo de libertação, de diluição da padronização que, paradoxalmente, no início, se pautou justamente por uma espécie de rígida obediência , pela repetição desmedida aos ditames formais e harmônicos de uma canção-padrão escolhida para ser “variada” (re-composta) até a exaustão” (FREITAS, 2010, p.622)

58 trabalho citado acima, Freitas propõe um olhar analítico histórico e contextual para as escolhas e combinações de acordes:

Mas seja como for, o escolher e combinar acordes depende de alguma precedência, depende das respostas que já foram dadas e da memória ou desmemoria que queremos e/ou pudemos guardar delas. Tais escolhas e combinações variam consideravelmente, se adéquam ou não aos gêneros, estilos, circunstâncias e propósitos e se mostram mais ou menos efetivas e convincentes considerando ‐se o onde e o quando , o por quem e o para quem , o porquê e o como cada solução se apresenta. (IDEM, p.25).

O autor reconhece que há, no fazer da música popular "tonal", um viés no qual se observa “a zelosa aceitação de valores orgânicos” e em outro viés são aceitos os fazeres “inorganizados”. Enquanto o primeiro viés procura perpetuar práticas de sistemas coerentes, respeitando as conformações de estilo e linguagem o outro permite a "desformação de conjuntos, o desmantelamento de relações as práticas desagregadoras, as escolhas impermanentes e incoerentes, infiéis e incompletas, as colagens dos recortes (...)" (IDEM, p. 361) Freitas também observa que em uma parte da música popular urbana do Brasil mantêm-se um ideário harmônico de fundo “germânico, romântico e expressionista" onde a tarefa do compositor é de buscar recursos harmônicos sofisticados, mesmo que estes estejam muitas vezes escondidos entre a artesanalidade da construção harmônica ou movidos apenas por um ideário de senso comum em que "qualquer acorde pode ser seguido por qualquer outro acorde”. No entanto o "tonalismo" não é a única via de expansão da sistematização, mas que não prescinde de "identificação de entidades harmônicas" ou de um "reconhecimento taxionômico dos acordes, proposto por um estoque taxionômico". O pesquisador Antunes Ferreira Correa distingue três categorias dentro dos "processos analíticos composicionais decorrentes da expansão do sistema tonal" que podem ajudar a ampliar nossas ferramentas de compreensão harmônica. No primeiro processo, existem “relações funcionais formais para um centro ou pólo de atração”. No segundo, “agrupam-se práticas "atonais" onde se ausenta um princípio de relação e atração para um centro tônico”. Por fim, num terceiro processo “admite-se formas atrativas com outros parâmetros gerados pela percepção e que não são notadas na superfície musical". (CORREA, 2006, APUD FREITAS, p.363) Esta última definição, considerada como uma categoria “pantonal”, observa-se outros recursos

59 estruturantes como "estrutura do acorde em outras superposições que não as de terças", "estruturas poliintervalares", "harmonia composta", "harmonia espelhada", "movimentação paralela", "novas formações escalares", "polimodalidade", "progressões por outros ciclos que não os de quinta", "progressões modais", "centricidade", harmonia estática", etc. Compreende-se assim, que dado o multifacetado caráter harmônico das composições de Gismonti, que ora distanciam-se da coerência tonal e ora aproximam- se da reutilização de recursos harmônicos retirados de determinadas linguagens que podem ser facilmente identificáveis na superfície musical, optou-se por manter uma lógica analítica que leve os "planos tonais", as "progressões" as "cadências", as "modulações" em consideração, mesmo que estes se apresentem muitas vezes desiguais, incoerentes, incompletos e infiéis. Esta opção pela descrição harmônica como base de nossa explanação analítica contribuirá ainda para formar uma idéia do "estilo pianístico" do compositor, possibilitando identificar alguns tipos de práticas técnico-mecânicas que se consolidarão ao longo de sua carreira.

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Capítulo III

1. Boa bossa, Bach ou Beatle bem bacana?

Durante a primeira década de sua carreira Gismonti parece ter produzido uma obra musical que dialogou com diversos estilos incorporando elementos poéticos do que era considerada a canção brasileira de então, procedimentos composicionais que remetem à música erudita e invenções experimentais que colocaram à prova e desafiaram as correntes mais conservadoras. O título de um artigo sobre Egberto Gismonti publicado no jornal Última Hora no ano de 1969, “Boa bossa, Bach ou Beatle bem bacana” é um exemplo que traduz com uma dose de ironia as contravenções deste período. Já sabemos que o tropicalismo, embora findado como movimento no ano de 1968 com o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, marcou a passagem de uma cultura política no Brasil de matriz romântica (nacional-popular), para uma cultura de consumo, na qual a canção assumia o lado mercadológico dentro de uma instituição dotada de legitimidade e representada pela sigla MPB. Em sua formação discursiva musical incorporou diversas formas de expressão da canção popular, independente de certas hierarquias ou valores políticos destas linguagens. Desta forma, no pós- tropicalismo, a MPB passou a representar socialmente uma instituição de profunda legitimidade intelectual, mas de pouca coerência estética. É sabido também que Gismonti mantinha um forte vínculo com a música erudita até meados da década de 60 – tendo estudado no Conservatório Brasileiro de Música. Em fins desta década estava prestes a viajar a Viena para se aprimorar nos estudos de piano, viagem esta que nunca acabou nunca se concretizando. Ao invés disso, sua canção “O sonho” foi uma das selecionadas para participar do III Festival Internacional da Canção. Defendida pelo grupo vocal “Os Três Moraes” com o acompanhamento de uma orquestra de 100 músicos, a canção chamou a atenção da mídia e da crítica especializada. Com base em documentos de revistas e jornais datados do ano de 1969, percebe- se que, embora não tenha angariado sucesso notório junto ao grande público Egberto Gismonti acabou chamando atenção da crítica, pois além de pianista concertista, compunha, regia, orquestrava, tocava violão e cantava (REGO, 1969, p.2).

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Nestes documentos é possível notar também uma fixação por parte dos jornalistas em ressaltar esta “versatilidade” musical de Gismonti. Devemos lembrar que alguns críticos daquele período acreditavam estar a MPB em um período “estático” devido ao exílio de alguns de seus principais personagens. O esgotamento dos debates e os conflitos em palco aberto também reforçavam a sensação de “vazio cultural”. Assim, Egberto se sobressaia como uma possível “novidade” e representava, de certa maneira, o próprio afrouxamento das disputas que acirraram o campo musical na década de 1960. Com isso, era de se esperar que a figura do músico causasse algum espanto entre estes especialistas, ainda tomados por profundas diretrizes nacionalistas, fossem elas embasadas por teorias folcloristas ou informadas pelo nacional-popular. Como poderia um músico de formação erudita, circular ao mesmo tempo pelos palcos dos festivais da canção, pelo interior do Teatro Municipal do Rio de Janeiro solando um concerto de sua autoria com a regência de Isaac Karabatchevsky e ainda apresentar em sua música traços da influência anglo- americana do pop e rock? Como visto no primeiro capítulo, os dois primeiros álbuns do músico intitulados Egberto Gismonti e Sonho 70, possuem fonogramas de características bem diversas. Entre canções ao estilo de João Gilberto, um estudo para violão e uma homenagem ao guitarrista de jazz Wes Montgomery, aparecem arranjos orquestrais grandiosos. Estas experimentações orquestrais incluem combinações instrumentais nada usuais no universo da canção popular, como por exemplo, oboés dobrando melodias junto à voz ou realizando linhas contrapontísticas bastante evidentes. Partindo destas observações, podemos concluir que estes primeiros trabalhos se apresentam como objeto paradoxal: ao mesmo tempo em que o compositor atua dentro da indústria fonográfica e parece estar “seguro” de sua postura aberta a ritmos e gêneros diferentes, suas composições ainda denotam um caráter “monumental” que tenta expressar-se à maneira erudita, através de orquestrações grandiosas. Gismonti parece se aproximar do sentido do “gesto modernista” que tenta perpetuar a idéia de recriação e atualização de determinado repertório revestido de uma estética que valorize toda a “monumentalidade” potencial da música brasileira. Na visão de Santuza, estes compositores intentaram dar continuidade à “maneira erudita” dentro do campo da música popular, prolongando um “idioma nacional” ou uma “identidade nacional”, carregada de traços grandiosos, condizente com a estética do excesso. (NAVES, 1998, 2010). Ao mesmo tempo, parece dialogar com a estética do

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“mínimo”, que se contrapõe ao registro do excesso e da grandiloquencia, a maneira da interpretação comedida e da redução de elementos musicais de seus arranjos. Esta divisão entre as estéticas do “mínimo” e do “máximo” pode ser vista no trabalho do músico Tom Jobim. No caso da obra deste importante músico, esta polarização ocorreu entre fases estéticas diferentes, assim como afirma Santuza Cambraia Naves: uma de cancionista (onde o músico parece articular a estética do mínimo) e outra que envolve suas composições instrumentais reveladoras de uma grande afinidade com os compositores modernistas, “cultivando um profundo carinho para com determinados legados musicais.” (NAVES, 2010, p.39). No caso de Egberto, os limites entre o mínimo e o máximo não são muito evidentes durante a década de 1970, que parecem se misturar de uma só vez já em seu LP de estréia. O tecido musical deste álbum se torna ainda mais complexo quando percebemos outras tradições que “não brasileiras” inseridas nas composições, como o pop , o funk e o soul , que garantem uma heterogeneidade estética para o disco, que parece não estar totalmente comprometido com um discurso eloqüente de afirmação de uma “identidade nacional”. É possível perceber também alguns elementos bossanovísticos em suas composições; nos arranjos equilibrados, na interpretação vocal sutil e em sua maneira de tocar o violão. Estas primeiras observações poderão ajudar a esclarecer e a desconstruir afirmações categóricas sobre o estatuto do popular na obra de Egberto Gismonti, revelando mais profundamente os conflitos e reajustes que foram necessários para sua inclusão inicial no campo da música popular. Quando apresentou sua canção “O sonho” no III FIC despertou a atenção de Tom Jobim, que se tornou uma espécie de “padrinho” de Gismonti. A autora Norma Pereira Rego arremata seu artigo sobre Gismonti com as palavras: “Ao me despedir eu guardo na cabeça o que a Dulce Nunes me contou sobre um telefonema de Tom Jobim logo depois de sua vitória no último FIC: “diga ao Gismonti que quem devia ganhar era ele”. (REGO, 1969). A menção a Jobim também aparece em uma entrevista dada por Gismonti no ano de 2011, na qual o artista ao relembrar sua trajetória, relata:

“(...)fiz uma especialização que me possibilitou ganhar uma bolsa pra Viena como intérprete, mas eu já conhecia o Tom Jobim, que me fez uma pergunta chave, dizendo: ‘Você quer ir pra Berlim pra estudar piano, ou você quer ir a Berlim?” Esta pergunta é definitiva. Eu disse: “eu quero é ir a Berlim”. Então ele disse: “então não vai nesta bolsa não, daqui a dois, três anos você

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poderá ir a Berlim, quantas vezes você quiser, todo mês”. (GISMONTI, entrevista concedida a Arrigo Barnabé, 2011)

Assim, para o álbum de estréia do músico, Tom Jobim fora convidado a escrever seis arranjos. Porém, como afirma a Revista Veja desta época, o “estreante estava bom demais: decidiu-se então que todas as músicas seriam dele”. Interessante notar, novamente se voltando para observações em torno da carreira de Tom Jobim, que em 1968, o maestro carioca promovia em seus trabalhos uma forte ligação com o universo dos códigos eruditos e com as experimentações formais, embora retomasse também uma identificação com uma noção de brasilidade aparentemente perdida no período bossanovístico. (POLETTO, 2010). Para o músico surgia a necessidade de recuperar os efeitos colaterais da modernidade, como a perda da cordialidade, o afastamento da natureza e a massificação da cultura. Aparentemente, Egberto somente retomará e incorporará esta perspectiva jobiniana em seus caminhos estéticos num período posterior a década que estamos estudando. A aprovação de Tom Jobim e as críticas altamente valorativas de sua personalidade musical nos artigos de jornais coletados podem proporcionar algumas leituras possíveis. Seu vínculo com a música erudita bem como sua versatilidade como músico (pianista, violonista, regente, compositor e arranjador) foram utilizadas como fatores legitimadores de seu trabalho inicial, trabalho este visto pela crítica especializada como uma continuidade dentro do campo popular de uma tradição musical erudita, iniciada pelo modernismo nacionalista de Villa Lobos e perpetuada por músicos como Radamés Gnatalli, Edu Lobo e novamente, o próprio Tom Jobim (NAVES, 2000. p. 38). Esta suposta herança que Gismonti carrega encheu de esperança aqueles que não viam com bons olhos os atributos comerciais de alguns gêneros presentes na música popular daquele período, como o rock do iê-iê-iê – retratado como “simplificado” - ou o suposto “entreguismo internacional” dos tropicalistas. Curiosamente, embora expressando uma vinculação com a estética modernista na música popular, muitos críticos o viam como um artista de pouca personalidade, um pastiche de estilos, recriado numa roupagem exageradamente erudita. O autor não identificado de um artigo publicado na revista Veja de 1969, cita os argumentos da chamada “turma da pesada” (críticos nacionalistas) em relação ao músico: "Não passa de um "pastiche" dos Beatles, e Tom Jobim". (Egberto Gismonti o º LP, Revista Veja, 1969)

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Em nota sobre o lançamento de seu disco Sonho 70, a Revista Veja novamente opina: “Mas como violonista é muito Baden Powell, como cantor é mais Edu Lobo e como arranjador, pela forma de usar os metais é Burt Bacharach. Dêle mesmo, conserva a formação erudita e muito enfeitada. O resultado é uma mistura que, acrescida de alguns estilos ainda disponíveis na praça, formaria uma espécie de bazar da música moderna". (Sonho 70. Revista Veja. 1971).

O pastiche de “estilos disponíveis no grande bazar da música brasileira” é entendido aqui como uma imitação de estilos particulares que não contém nenhum tipo de crítica ou posicionamento. O uso da palavra “pastiche” é central para que levantemos esta hipótese. Recorro aqui ao sentido dado por Frederic Jameson quando este, ao diferir o “pastiche” da “paródia”, aponta para a perda do primeiro da capacidade de assumir uma determinada posição e de se articular sobre determinadas normas, para poder se opor aos estilos para os quais se dirige:

O pastiche é, como a paródia, a imitação de um estilo singular ou exclusivo (...) mas a sua prática desse mimetismo é neutra, sem as motivações ocultas da paródia, sem o impulso satírico, sem a graça, sem aquele sentimento ainda latente de que existe uma norma, em comparação com a qual aquilo que está sendo imitado é, sobretudo, cômico. (JAMESON, 1985, p.2).

Paralelamente aos críticos mais ferrenhos da música brasileira, havia aqueles que acreditavam que a MPB se encontrava em um período “estático. Assim, seu “estilo” original chamava a atenção de críticos e de músicos. Marcos Valle defende, em 1969: “Depois de Milton Nascimento, Egberto Gismonti é a coisa mais importante que aconteceu no Festival, ele soube somar o que existia num estilo diferente”. (Egberto Gismonti o º LP, Revista Veja, 1969) Egberto acumulou um significativo capital cultural e conquistou grande prestígio fora do país nos primeiros anos de sua carreira. Além do tempo passado na França, realizou gravações e turnês com nos Estados Unidos, abrindo shows de Wayne Shorter e Herbie Hancock. O álbum Orfeo Novo de 1971 é fruto desta primeira ida a Europa, motivada pelo convite de Marie Laforêt e pelo êxito profissional obtido pelo músico em terras estrangeiras, tendo tido trabalhado como chefe de orquestra, instrumentista e arranjador. Foi então neste período que reuniu dois músicos franceses e gravou na Alemanha, sob direção musical do crítico de jazz Joachim Berendt, o LP supracitado. No mesmo ano, de volta ao Brasil, embora ainda um novato tanto no ambiente urbano

65 do Rio de Janeiro quanto no interior da indústria cultural, Gismonti parecia estar atento ao funcionamento das engrenagens do mercado e logo percebe o motivo pelo qual suas músicas foram pouco aceitas durante os Festivais : "No primeiro ano me chateei muito. Mas no segundo eu já sabia que Festival é um negócio extremamente popular e que minha música não poderia estar entre as 10, porque inclusive não teria sentido." (CABRAL, 1971, p.22). Sobre esta sua circulação no exterior, Gismonti afirma:

(...)Não dá para ficar muito tempo lá, pois o artista se vê envolvido por uma máquina que pode bloquear sua criatividade. Se uma música faz sucesso, tenta-se impor aquela mesma fórmula várias vezes, e o compositor acaba virando máquina de fazer música. (...)Mas o que é difícil para um brasileiro aceitar é a reação do músico europeu quando se sugere uma reunião de violão, num bate papo com um pouco de música. "por quê?" ou "Para quê?", eles perguntam logo(...)A máquina tolhe a criatividade e depois de algum tempo o artista seca. (Erudição no popular, Revista Veja, 1971)

Outra fala do músico revela em parte sua consciência a respeito do funcionamento da indústria do disco neste período:

“Até hoje eu me encontro com o Agnaldo Timóteo, que sempre me fala (...) “Oh Gismonti, me lembro muito de você. (...) Primeira vez que eu entrei naquela sala do João Carlos Muller, da Odeon” - naquela época o Agnaldo estourava disco, um atrás do outro – “você estava sentado, (...) você olhou e disse assim: “muito obrigado por você fazer seus discos que possibilitam que eu faça os meus”. Se não tivesse tido o Agnaldo, não teria tido o Milton Nascimento. O Milton Nascimento existiria como a pessoa Milton Nascimento, cheio de música e uma musicalidade estúpida, mas a realização da obra dele dependeu do financiamento, criado por aqueles que vendiam disco! Então, o que eu quero dizer é que todos nós devemos a alguém que tenha vendido! Se devemos a quem tenha vendido, porque que reclamamos de uma companhia que quer vender disco?”(GISMONTI, entrevista concedida a Arrigo Barnabé. 2011)

Neste comentário, Gismonti parece se referir a divisão dos departamentos das gravadoras entre artistas de prestígio e artistas comerciais, o que não deixava de ser uma estratégia de mercado visando à produção para um público cada vez mais segmentado. Esta oposição entre cultura e produção material se faz presente no estudo de Rita Morelli, sobre a indústria fonográfica dos anos 1970. A crescente racionalização dos trabalhos dentro do estúdio fazia com que o processo de produção fosse dividido em duas etapas: criação artística e trabalho material. Este processo

66 apontava para um novo tipo de relação e hierarquização simbólica dentro das gravadoras, que resultou na divisão entre os “artistas de prestígio” (ênfase na criatividade e na liberdade de produzir) e os “artistas comerciais” (regidos e comandados por equipes especializadas durante a produção e comercialização de seus trabalhos). (MORELLI, 1991. 2008). Mesmo tendo-se em vista que o trabalho de Morelli discute estas hipóteses apoiando-se na análise dos estúdios e das fábricas e não no material musical em si, o qual se consultado, poderia ajudar a esclarecer estas contradições e relativizar a divisão tão rígida e exata entre “artistas de prestígio” e “artistas comerciais”, sua constatação permite compreendermos melhor as posições estéticas dos artistas que estavam adentrando o mercado em fins da década de 1960 e início de 1970, atentos à significativa mudança dos parâmetros da indústria cultural e ao mercado de massa. Não é preciso se aprofundar no fato de que, quanto maior a consciência sobre estes processos, maior o grau de criticidade que o artista desenvolve em relação a ele. A hipótese que nos surge neste momento, é a de que o artista deste período criava outro tipo de postura crítica diante das contradições deste processo. Ciente das regras mercadológicas em jogo começava a aceitar a condição de suas obras como produto vendável. Passava assim, a visualizar seu trabalho como uma espécie de “manifestação isolada”, e não como parte de um todo cultural, assim como ressalta o participante do debate da Revista Civilização Brasileira, Flavio Macedo Soares. Flavio constata que os artistas da música popular brasileira, já em 1966, agiam e pesquisavam individualmente, se afastando de ideologias compartilhadas ou planos culturais como aqueles idealizados pelo ISEB, ou pelo CPC. Estamos diante de outra postura do artista dentro do mercado que influi diretamente no seu modo de produzir. Se distanciando da crítica nacionalista, que via a perpetuação da tradição possível apenas a partir do material folclórico original ou de conteúdos nacionalistas, Gismonti parecia não estar preocupado em manter uma tradição orgânica que representasse um comprometimento sério com algum projeto cultural de intenções ideológicas nacionalistas. Seu projeto é, a partir das observações do início de sua carreira, uma busca pessoal por um “estilo próprio”, que seria proporcionado pela oportunidade de estar inserido na indústria fonográfica compondo, arranjando e orquestrando. Esta hipótese é corroborada ainda pelo fato já mencionado de que Gismonti, após se destacar como concertista, rejeitou em 1968 uma bolsa de estudos em Viena, quando percebeu a possibilidade de poder compor e gravar seus próprios

67 discos no Brasil. Esta busca individual possibilita ao artista ações conscientes de seletividade do material a ser utilizado, escolhidos a partir de sua própria bagagem de conhecimento técnico-musical, garantindo-lhe assim, uma posição privilegiada dentro da indústria fonográfica. A posição do artista dentro deste novo panorama global será discutida com mais atenção no capítulo 4, amparada por um referencial teórico que nos dá indícios de que Gismonti estava realmente inserido num momento de profundas transformações socioeconômicas e que estas condições influenciaram diretamente a construção de sua carreira. Agora, trataremos de nos aprofundar em seu material musical, reflexo das transformações e das experiências criativas e tecnológicas nas quais o músico encontrava-se imerso. Começaremos com a análise de “O sonho” e as três versões que foram gravadas em 1969, 1970 e 1971.

2. Adormece canção acorda música instrumental – Os “sonhos” de Egberto Gismonti

As gravações de “O sonho”, canção que em sua primeira versão concorreu ao FIC de 1969, podem revelar algumas transformações sofridas pela canção popular brasileira no momento posterior ao abalo de sua forma e conteúdo no pós- tropicalismo, ajudando-nos a compreender as particularidades da presumida “abertura” da MPB. A primeira versão de “O sonho” se enquadra no template da forma canção AABA, acrescida de uma Introdução e uma Ponte. Sua Introdução condiz com o caráter “festivalesco” das grandes “chamadas” das canções apresentadas nestes eventos, servindo como uma espécie de refrão recorrente de fácil assimilação.

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Tabela 1: Forma da primeira versão de “O sonho” (canção) do álbum Egberto Gismonti (1969)

0:00 – Introdução – 10 compassos 0:19 – Seção A – 16 compassos 0:48 – Seção A – 16 compassos 1:16 – Seção B – 14 compassos 1:42 – Seção A – 16 compassos 2:11 – Coda – 6 compassos

2:22 – Introdução – 8 compassos 2:36 – Seção A (improviso) -16 compassos 3:05 – Seção B – 16 compassos 3:31 – Seção A - 16 compassos 3:59 - Coda – 6 compassos

4:10 - Introdução – 8 compassos

Nesta versão, podemos aferir que as resultantes sonoras são predominantemente advindas da coesão harmônica e o planejamento timbrístico orquestral, ambas relacionadas aos procedimentos ligados ao universo da música clássica transmutados ao universo da canção popular. Em relação à instrumentação, ouvimos um naipe de flautas realizando convenções rítmicas, backgrounds harmônicos e contrapontos melódicos; um naipe de cordas como apoio harmônico no qual se destaca o papel proeminente do violoncelo e um oboé que realiza contrapontos melódicos na Seção B e dobra o solo da voz durante a Seção A na segunda repetição da forma. Em relação aos procedimentos harmônicos, destaca-se em primeiro lugar a modulação de trítono entre as seções. A Introdução, aparentemente em lá maior, caminha para a tonalidade de mi bemol menor na Seção A. Em ambas as seções verificam-se que, pela ausência do acorde I no encadeamento harmônico, as tonalidades não se afirmam completamente. Assim, o compositor mantém durante boa parte da narrativa uma indefinição harmônica enquanto descreve na letra sentimentos, movimentos e cenas de sua aventura onírica.42

42 “Sinto que é hora, salto/Meu foguete some queimando espaço/Tudo vejo e abraço, a vaidade/ Estou morando em pleno céu, namorando o azul/Ando no espaço rouco/Meu foguete some, deixando traços/ Entre estrelas vejo, a liberdade/Fotografo todo céu e revelo paz/Busco cores e imagens/Faltam pássaros e flores/ Coração na mão, corpo solto estou, entre estrelas/Vou deitar neste luar/Indo de

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Consideramos a tonalidade de lá maior, no entanto, percebemos que existe um movimento cadencial nas duas frases iniciais da Introdução, sugerindo uma progressão do tipo eólio na tonalidade relativa de lá maior, fá sustenido menor (bVI – bVII – Im) Observa-se principalmente a ausência das terças nos acordes e o encaminhamento para a dominante da próxima tonalidade, mi bemol menor, através de um acorde frígio. 43

Exemplo 1: Introdução da canção “O sonho” (1969) - (0:00 - 0:18)

O tema melódico da Seção A se utiliza da ambientação da escala de tons inteiros harmonizados por dois acordes iniciais. O primeiro acorde (Ebm 7(11) /Ab), embora apareça com a fundamental da nota lá bemol é melhor reconhecido como um acorde de função tônica com a quarta no baixo, que se encaminha para um pólo oposto através de um salto de trítono para o acorde “dominante” de E 7(9,#11), com suas tensões características advindas da escala hexafônica. O tipo de acompanhamento do piano tem algumas características que notadamente vão se alterando no decorrer dos trabalhos de Gismonti, como poderemos atestar neste trabalho. A textura do acompanhamento de “O sonho” ainda é planificada e de grande densidade rítmica, composta por “acordes quebrados” numa estrutura planificada que preenche igualmente os quatro tempos do compasso.

encontro ao riso/Do quarto minguante e o sol queimando /A pele branca, despertando, vejo a cama e meu amor/acordado estou Choro, choro, choro” 43 A tendência a utilização da sonoridade frígia se fará presente em uma grande quantidade de exemplos deste trabalho.

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Exemplo 2: 8 primeiros compassos da Seção A da canção “O sonho” (1969) - (0:19- 0:34)

A utilização da escala hexafônica parece colaborar na construção de um significado poética maior entre letra e música. As observações de Wisnik sobre esta escala pode nos ajudar a compreender o jogo poético manejado nesta canção. O autor descreve a escala de tons inteiros como sendo o “contrário da diatônica, é uma escala que não comporta nenhuma diferenciação interna: tudo nela se equivale, não há possibilidade de hierarquia” (WISNIK, 1989, p. 79-80 apud FREITAS, 2010. p. 783). Esta escala não possui nenhuma afinidade atrativa entre seus intervalos “nenhuma quinta, nenhum semitom, enquanto proliferam trítonos. É uma escala onde não pode se dar nenhum tipo de resolução ou repouso, mas onde também não se tem como articular a tensão (não há solução, porque não chega a poder formular a evolução de um problema)”. O autor ainda elucida que “o sentido do modo, nesse caso, é a imagem ambígua do deserto utópico, versão moderna de um modalismo dessacralizado onde, na falta de fundamento mítico que ritualize a recorrência, e de perspectiva que projete desenvolvimento, cria-se um tempo onde não há nem futuro, nem eterno retorno a uma fundamental (pois não há fundamental).” (IDEM). Com estas observações, propomos a observações de que há um jogo semântico no inicio da Seção A, justificadamente escrito sobre a escala de tons inteiros. A ausência da, ou a “tônica” escondida no primeiro acorde, tanto pelo reforço de sua nota mais grave (lá bemol) e seu salto intervalar proeminente de trítono faz junção as sugestões poéticas da letra que descreve um tempo “onírico” não existente, sem futuro nem retorno. Rompendo com a sensação flutuante desta harmonização, aparece durante todo o arranjo, a nota si bemol realizada pelas cordas. Gismonti faz referência a esta nota em entrevista: “Tinha no arranjo lá, dois quintos do arranjo, no mínimo tinha um si bemol. Segundo espaço superior na clave de sol, que ficava sendo tocado pelas primeiras

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cordas o tempo inteiro. E o resto da orquestra se mexia como se aquilo fosse um varal sustentando coisas. Ou, como dizia a letra, era a descrição de um vôo interplanetário como se tivesse vendo uma linha do horizonte do céu”. (GISMONTI, Entrevista concedida à Charles Gavin, 2015)

Em nosso contexto de análise, podemos sugerir que o si bemol permanente propõe, ainda que timidamente, a permanência de um ambiente de “tensão” que independente da representação “figurativa” ou “alegórica” sugere a nota da dominante da tonalidade de mi bemol menor, enevoada pelos recursos da escala hexafônica, contribuindo na permanência de uma sonoridade coesa (e sem muitos contrastes) entre Introdução e Seção A. Na finalização da Seção A, temos uma tonicização para a região da subdominante menor (Abm 7) e o retorna a tonalidade original do V 7 de mi bemol menor, Bb 7. O círculo em vermelho do exemplo abaixo sinaliza um cromatismo de caráter bossanovista na construção melódica que contrasta com o tratamento melódico anterior; chega-se a terça do acorde de dominante através da quinta aumentada (si natural) ao invés da quinta justa (sib) que aparece em sequência como nota de passagem para a tônica do acorde de lá bemol menor.

Exemplo 3: 8 primeiros compassos da Seção A da canção “O sonho” (1969) - (0:34 – 0:47)

A Seção B, seção que contém um maior grau de contraste de sonoridade dentro do arranjo, parte de uma progressão harmônica pouco usual nas canções populares de harmonias mais complexas daquele período: o movimento entre IV – I (cadência plagal), que embora esteja presente no repertório da música de concerto há muitos séculos, foi amplamente utilizado e adquiriu outros significados no pós-1945, especialmente com o repertório da música popular anglo-americana, como o rock, o

72 folk, o country, etc. 44 (TAGG, 2009). Nesta seção, a letra parece recorrer à memória do sujeito, que busca no cenário onírico “coisas” do mundo real. Na instrumentação é adicionado um oboé para realizar um contraponto sobre a melodia principal, fornecendo um caráter mais contrapontístico à textura deste trecho. A cadência plagal da Introdução (bVI – bVII – Im) é reapresentada no final da Seção B.

Exemplo 4: Primeira parte da Seção B da canção “O sonho” (1969) - (1:16 – 1:29)

Na repetição da Seção A, o piano intensifica a densidade rítmica de seu acompanhamento, sugerindo uma levada funkeada subdivida nas 16 semicolcheias. Este também é um tipo de textura de acompanhamento que vai aparecer em outras composições de Gismonti:

Exemplo 5: Repetição da Seção A da canção “O sonho” (1969) – Intensificação da densidade rítmica do acompanhamento do piano (1:42 - 1:50)

A tonalidade de mi bemol menor se afirma no loop de acordes Ebm 7 – Abm 7 (Im-IVm), dentro da seção que chamo de “Coda”. Na letra, este momento coincide

44 Os procedimentos plagais (Cadencias, extensões, shuttles , etc) são amplamente discutidos no trabalho de Philip Tagg.

73 com despertar do sujeito: “(...) despertando, vejo a cama e meu amor, acordado estou. Choro, choro”. O piano permanece no tipo de acompanhamento da Seção A anterior. A Introdução é preparada pela dominante do acorde de ré, lá menor com sétima menor (A7).

Exemplo 6: Coda da canção “O sonho” (1969) - (2:11 – 2:21)

Após a Coda, uma espécie de improviso sobre a Seção A surge, realizada no inesperado dobramento de voz e oboé. Prosseguidas por Seção B, Seção A, Coda e Introdução, a composição conclui sobre a nota lá bemol e um arpejo prolongado de Mi bemol menor na mão direita do piano. Conclui-se que nesta primeira versão há em certa medida, uma relação entre música e letra; a harmonização da melodia, encorpada pela sonoridade hexafônica, frígia e plagal se amplia sobre um arranjo organizado, onde convenções e intervenções são enfatizadas por grupos instrumentais distintos. 45 Na segunda versão de “O Sonho”, o tema da Introdução demonstrado no “exemplo 1” é realocado para o final da canção, coerente com o aspecto “crescente” da sonoridade no arranjo, que, ao contrário da canção de festival, guarda o ápice para seu término. De sonoridade mais “estridente” esta versão evidencia as funções rítmicas e agregadoras da bateria/percussão e do contrabaixo elétrico e substituem oboé e as flautas pelos metais, especificamente os trompetes que, em uníssono com a

45 Em outras faixas do primeiro disco como “Computador”, “Lírica II”, “Um dia”, “Prum Espaço” e “Clama Claro” é possível perceber uma semelhança com o tipo de pensamento orquestral de “O sonho”. Em “Clama-claro”, por exemplo, uma canção em que a aliteração da letra (“clama, claro em céu aberto todo o seu amor”, “o riso solto ao vento, branco como o lenço branco acena”, “meia a mente a mente se liberta” . é combinada com sofisticada progressão harmônica, pode-se ouvir a utilização do naipe de metais em seções pontuais, bem como a utilização do oboé dobrando a melodia principal.

74 voz, realiza a melodia principal da Seção A. De maneira geral, diminui-se a duração de todo o fonograma, aumentando a densidade dos eventos ao mesmo tempo que são mantidos alguns aspectos da versão anterior, dando ênfase às rupturas sonoras mais contrastantes entre as seções.

Tabela 2: Forma da segunda versão de “O sonho” (instrumental) do álbum Sonho 70 (1970). 0:00 – Seção A – 16 compassos 0:26 – Seção A – 16 compassos 0:56 – Seção B – 14 compassos 1:27 – Seção A – 16 compassos (improviso) 1:54 – Coda – 6 compassos 2:04 - Introdução da primeira versão – 10 compassos

O naipe de cordas não mais se fixa em apenas uma nota na Seção A; acompanha as transformações harmônicas juntamente com os outros instrumentos da seção rítmica. A Seção B, embora mais contida ritmicamente, inverte os papéis dos instrumentos em relação à primeira versão. A melodia principal é tocada pelo violoncelo, enquanto o contrabaixo e o piano realizam a linha melódica contrapontística antes realizada pelo oboé. A partir de 1:27, melodia principal e solo da primeira versão, se sobrepõem no tempo, afetando assim a quantidade de seções da canção e por conseguinte sua forma. O arranjo se justifica por não estar mais preso às ambientações que a letra nos sugere, embora ainda se utilize da forma canção para se libertar. A letra é substituída por vocalizes e a música se aproxima cada vez mais de uma linguagem instrumental, conduzida por um andamento dobrado em que a figura rítmica nos remete ao funk norte-americano, com acentuação nos tempos 2 e 4. 46 Apesar das progressões harmônicas permanecerem as mesmas, a instrumentação e a utilização de diferentes “partes” da canção original no decorrer do arranjo revelam uma sonoridade mais estridente, menos contida, num crescente constante que culmina num tutti de cordas sobre um glissando final.

46 O funk é caracterizado por “ter uma pequena variação melódica, importando mais o ritmo (o “ groove” ) e “requer uma formação rítmica específica, percussão e baixo, e também acordes sustentados ou interpolações rítmicas de outros instrumentos (...) nas décadas de 1960 e 1970 o funk foi usado para variações “anárquicas e polirrítmicas” da música soul” (...) entre seus principais representantes, destacam-se James Brown, George Clinton, Kool & the Gang e Earth, Wind and Fire . (SHUKER, 1999. p.137)

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Exemplo 7: Células rítmicas da segunda versão de “O sonho” (1970)

Exemplo 6: Células rítmicas realizadas pela percussão (conga) e pela bateria, que nos remetem ao ritmo norte- americano do funk .

É importante destacar algumas características musicais do funk que mantêm bastante proximidade tanto com os elementos musicais descritos na análise desta segunda versão como de outros fonogramas de Gismonti deste período. Para isso, utilizaremos o trabalho de Robert Davis, em sua tese sobre o funk . Com base em um segundo pesquisador, Alexander Stewart, Davis faz uma listagem das principais características musicais do funk e entre elas algumas mantêm bastante proximidade aos elementos musicais descritos na análise da segunda versão de “O sonho”. São elas:

semicolheias como a unidade rítmica básica, levada linear da bateria altamente sincopada, jeito de tocar mais percussivo dos instrumentos de cordas, um papel proeminente do contrabaixo na textura geral, harmonias estáticas que modulam apenas em uma ponte e o abandonamento da progressão blues. (STEWART, 2000 p.310 tradução nossa)

Observamos o mesmo acompanhamento do exemplo 6, ao piano, na canção “Janela de ouro” (Sonho 70), “Parque laje” (Sonho 70), “Pr´um espaço” (Egberto Gismonti), “O gato” (Egberto Gismonti) e “Tributo a Wes Montgomery” (Egberto Gismonti)”. Desta última, exemplificamos o excerto abaixo:

Exemplo 8: “levada” de piano da composição “Tributo a Wes Montgomery” (1:32-1:37)

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Com instrumentação reduzida à flauta, piano, contrabaixo e voz, o arranjo da terceira versão de “O sonho” salienta a execução virtuosística e planejada dos instrumentistas. Entretanto e mais uma vez, não se abandona a forma AABA acrescida de Ponte e Introdução. A Introdução mantém os 10 compassos da forma original, na qual piano e flauta tocam a melodia em uníssono.

Tabela 3: Forma da terceira versão de “O sonho” (canção) do álbum Orfeo Novo (1971) 0:00 – Introdução – 10 compassos 0:21 – Seção A – 16 compassos (melodia, voz e flauta) 0:49 – Seção A - 16 compassos (melodia, voz e flauta) 1:18 – Seção B – 14 compassos (melodia, voz, contracanto e flauta) 1:43 – Seção A - 16 compassos (melodia, voz e flauta) 2:11 – Coda – 8 compassos

2:24 – Improviso de piano sobre AABA – 46 compassos 4:09 - Coda – 8 compassos 4:23 – Improviso de contrabaixo sobre AABA – 16 compassos 6:08 - Coda – 8 compassos

6:22 - Seção A – 16 compassos (melodia, voz e flauta) 6:49 - Coda – 8 compassos (fade-out)

Nesta versão, observamos modificações no acompanhamento pianístico de Gismonti. Pelo motivo de não haver bateria, o piano assume a condução rítmica além da coesão harmônica, motivo este que o faz estar presente em atividade contínua em todas as seções do arranjo. A estrutura dos acordes também se modifica: constituem- se agora em voicings semelhantes às chamadas “harmonias de apoio”, construídos a partir da terça do acorde na seguinte sequencia intervalar – 3ª, 7ª, 9ª – por vezes alterados de acordo com a especificidade de cada acorde (terça substituída pela quarta ou décima terceira adicionada, por exemplo). Ested acordes são executados numa região do instrumento que por vezes encobre a melodia principal da voz e da flauta. O contrabaixo, por sua vez, realiza uma linha de caráter mais melódico, permeada por cromatismos. Em termos gerais, a estrutura harmônica baseada em tétrades, a presença de acordes de função SubV 7, as alterações nos acordes dominantes e as seções de improviso, aproximam esta versão de “O sonho” da linguagem jazzística.

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A Introdução, na tonalidade de lá menor, segue a seguinte progressão de 7 7 7M 7M 7(b5) acordes: V – Im – bVI – IVm – bIII – IIm . O acorde IIm 7(b5) (que na primeira versão é caracterizado como o acorde de sonoridade frígia) funciona como preparação ao início da nova seção. Importante ressaltar que o primeiro acorde da Seção A é um E 7sus4(9) que também, pela sua qualidade, não exerce especificamente função tônica, portanto não há de fato, como na primeira versão da canção, uma “modulação” na seção. Enquanto na primeira versão os acordes separados pelo intervalo de trítono da voz do baixo (entre láb e mi) enfatizam a escala de tons inteiros que aparece na melodia, nesta versão o loop de acordes iniciais se mantêm sob os acorde I – E 7sus4(9,11) e seu SubV 7 – F 7(9,13).

Exemplo 9: Primeiros compassos Seção A da terceira versão de “O sonho” (1971) - ( (contrabaixo, piano e voz) - (0:20-0:33)

O acorde de E 7 permanece nos compassos seguintes como dominante de Lá menor.

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Exemplo 10. Primeiros compassos Seção A da terceira versão de “O sonho” (1971) (continuação) - (0:34-0:40)

Espera-se que, assim como na primeira versão, chegue ao acorde de dominante (B 7) para retornar a tonalidade de Mi menor. Este “si” dominante, entretanto, aparece sob a forma de duas estruturas sem a terça maior do acorde: Nos compassos 24 e 25 do exemplo abaixo, temos a quinta no baixo (fá#), com uma montagem no piano a partir da fundamental, quarta, quinta e a partir de b9 (dó) numa montagem quartal, com a própria nota “dó” presente na linha do baixo.

Exemplo 11: Finalização da Seção A da terceira versão de “O sonho” (1971) - (0:41 – 0:49)

A Seção B desta terceira versão possui a mesma harmonização da primeira versão: dois segmentos do tipo “plagal” IV- I, com a diferença de que os acordes agora, em suas construções em tétrades, possuem suas sétimas maiores e uma coloração “lídia” através da adição de suas extensões “9,#11” (fá# em Dó maior e lá

79 em Mi bemol). Observamos ainda a distribuição das harmonias do piano a partir da terceira inversão de suas tétrades (com as sétimas maiores no baixo). A melodia principal (segundo sistema) possui os apoios em fundamentais e quintas dos acordes enquanto o contracanto da flauta (primeiro sistema) trabalha os apoios em quintas que se transformam em sétimas dos acordes vizinhos.

Exemplo 12: Seção B da terceira versão de “O sonho” (1971) – (contrabaixo, piano, voz e flauta) - (1:18 – 1:30)

No exemplo abaixo, o final da Seção B de “O sonho”, observamos no compasso 36 a montagem de um acorde Eb 7M (no lugar do que seria o bVI e bVII do tom de fá# menor na versão original). Este Eb 7M perdura por dois compassos, formado por uma estrutura quartal na mão esquerda do piano (9-5-1). Os acordes dos compassos 38 e 39 possuem o mesmo tipo de estrutura. A seção termina com um acorde meio diminuto, que possui ao mesmo tempo função IIm 7(b5) em Lá menor (única tonicização presente na composição até agora) ou simula a dominante para o acorde seguinte da Seção A, o E 7sus4 .

Exemplo 13 – Final da Seção B da terceira versão de “O sonho” (1971) - (1:31 – 1: 43)

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Após a apresentação das seções A e B e de 2 chorus de improvisação de contrabaixo e piano, retornam voz e flauta na reexposição da Seção A finalizando o tema com a coda conclusiva.

A partir da averiguação dos elementos das três versões de “O sonho”, podemos concluir que há, em certa medida, uma relação entre letra e música primordial que se dissipa ao longo dos três fonogramas. No primeiro, o texto é priorizado; melodia, harmonia e conteúdo lírico se comentam de modo que outros parâmetros como instrumentação, ritmo, e harmonia se subordinam a esta relação. É possível perceber que neste primeiro momento, Gismonti age num ato de “recriação” principalmente no que concerne a concessão à canção de um registro erudito, marcado pela inclusão dos instrumentos de orquestra na sonoridade geral. No segundo arranjo, Gismonti não se atém a um ritmo “brasileiro” assim como o fariam alguns compositores da linguagem modernista na música popular. O foco central deste arranjo está sobre a sonoridade e o ritmo que absorvem elementos da música pop ( funk ) orientados por uma estética que busca numa espécie de “estridência” seu principal elemento de comunicação. No terceiro a instrumentação diminui, contudo, o foco recai sobre os improvisos e a virtuosidade de cada instrumentista; para isso a harmonia é readequada a padrões estilísticos jazzisticos, que contribuem para formar uma linguagem verticalizada da harmonia. No entanto, percebemos nos exemplos o estabelecimento de voicings que iniciam na terça ou sétima do acorde e também a priorização da sonoridade destes voicings em estruturas quartais. No âmbito relacionado à harmonia, pudemos observar que sutis transformações entre a primeira e a terceira versão podem modificar o modo como a escutamos e fazer-nos perceber os caminhos sonoros priorizados por cada uma delas. O primeiro deles aconteceu no momento em que, na terceira versão, observamos os acordes do início - E7 e F 7 - substituírem os acordes Eb 7(11)/ Ab e E 7 da primeira versão, que ajudavam a enfatizar a construção em tons inteiros da melodia principal. É importante destacar que a linha de contrabaixo é fundamental na construção destes caminhos harmônicos. Ainda mais porque sabemos que boa parte do material tocado por contrabaixo também era pré-definido por Gismonti. Num segundo momento, além das estruturas quartais, que contribuem no ganho de uma sonoridade mais modal, observamos a ausência tanto do acorde

81 definidor da suposta tonalidade (que seria Mi menor) como de uma dominante clara (que seria um acorde de B 7). Nos exemplos 11 e 13 estes acordes ou aparecem sem a terça ou como um acorde meio diminuto (Bm 7(b5) - que pode ser escutado também como o II grau da tonalidade de Lá menor, tonalidade presente tanto na Introdução como numa tonicização no exemplo 11) Estas mudanças ocorrem à luz de um contexto mais amplo: o momento histórico e cultural da transição entre as décadas de 1960 e 1970. Ao destacar as contradições das narrativas musicais das três versões de “O sonho” podemos compreender até que ponto o músico estabelece uma conexão com os procedimentos “modernistas” naturalizados dentro do campo da canção popular brasileira e como ele aplica recursos estilísticos de gêneros estrangeiros (funk e jazz) em suas composições. Estas primeiras experiências resultam em uma ainda pequena transformação na concepção sonora do músico, contidas no que diz respeito às conversões radicais de forma e conteúdo, de repetições e rupturas, enfim, na exploração dos “níveis secundários” das canções pós-1970.

3. Considerações sobre os resquícios do nacional popular nas faixas “Salvador”, “P´rum samba”, “Atento e alerta” e “P´rum espaço”.

Reafirmando o caráter contraditório e complexo da MPB, nos discos de Gismonti, especialmente no primeiro, podemos apontar a presença de alguns elementos associados à “nacional-popular” da música popular brasileira. Especificamente sobre sua relação com o violão, Egberto aponta a figura de Baden Powell como uma de suas grandes referências. Em entrevista dada ao Pasquim, o músico afirma a importância de Baden em sua formação:

“O melhor violonista é o Baden, tanto pelo que ele toca como pelo que ele é com o violão. Por que se não existisse o violão de Baden, não existiriam hoje seis ou sete ótimos violonistas que tocam de forma diferente, mas que vieram do Baden. Eu fui um, que estudava violão ouvindo o disco do Baden. Mais tarde, com mais conhecimento, eu fui me libertando.” (CABRAL, 1971, p. 22)

É sabido que durante a chamada 2ª fase da Bossa Nova os afro-sambas de Baden Powell e demonstraram uma orientação nacionalista que, embora não tenha rejeitado as transformações musicais ocorridas na Bossa Nova, se

82 voltaram às raízes folclóricas e às formas musicais regionais, formatando outro estilo capaz de veicular as idéias da corrente nacional popular. A marca destes afro-sambas são suas leituras particulares dos temas regionais (pescadores, luta, capoeira, práticas religiosas afro-descendentes) que divergem da idéia de um povo que se une solidariamente para combater as injustiças sociais; antes isso, propõem a figura mítica e sobrenatural destes personagens regionais, marcados pela força e resistência. (NAPOLITANO, 2001, p.88). O primeiro fonograma do álbum Egberto Gismonti, intitulado “Salvador” é uma peça para violão acompanhada apenas por percussão e contrabaixo (remetendo as gravações de Baden que têm exatamente esta formação) que aparenta estar pautada harmonicamente, percussivamente e melodicamente na maneira de Baden Powell tocar. Na Introdução, uma célula rítmica formada por duas notas de caráter percussivo remete-nos a sonoridade típica do violonista ao representar o som do berimbau no violão. Frases curtas de ataques vigorosos encadeadas entre dois acordes (Dm9 e Am9) permeiam a melodia, enquanto realiza-se um “bordão repetitivo do baixo como estrutura harmônica e de acompanhamento rítmico”. (SCHROEDER, 2006, p.99). Para o pesquisador Jorge Schroeder, Egberto estabelece um sentido muito próprio de tocar, que embora se baseie na sonoridade de Baden Powell, parece habitar “um mundo já praticamente beneficiado pelos borrões, pelas hachuras e pelas linhas indefinidas”. Em outras palavras, Egberto “toma a liberdade de montar um universo musical, uma proposta estética, que contém, ou pelo menos pressupõe, a possibilidade do excesso” (IDEM, p.88). As “grosserias” musicais de Egberto, sua maneira percussiva, agressiva, tracejada, sujeita a esbarros, cheias de bordaduras, repetições e frases curtas junto à retomada do estilo dos afro-sambas parece não mais estarem ligadas ao nacional popular no sentido de Baden mas sim a esta possível “estridência” específica da transição da década de 1960 para 1970. O que isto pode significar? Esta maneira de tocar, além de compactuar com uma concepção virtuosística trazida do universo da música erudita, ganha outra dimensão interpretativa, passando de uma “irreverência coletiva” - posicionamento em relação aos outros, ao povo, concepção de nacionalidade, presente na obra de Baden Powell - para uma “rebeldia individual”, nas palavras de Schroeder - onde a figura do instrumentista ganha peso na medida em que suas habilidades são enfatizadas sem necessariamente estarem ligadas a um projeto ideológico.

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O samba intitulado “Pr´um samba” recebeu duas versões distintas: uma presente no álbum Egberto Gismonti de 1969 e outra no Água e vinho de 1972. Nos deteremos na primeira versão de 1969. Esta gravação conta com contrabaixo acústico, piano, violão, bateria e flauta. Seu andamento, sempre constante, funciona como um fio condutor para piano, contrabaixo e bateria, enquanto a flauta realiza linhas melódicas em contraponto com a melodia principal da voz. É interessante notar que durante a primeira parte da canção o contrabaixo toca as fundamentais dos acordes com o arco, deixando apenas para a bateria e para o violão a função rítmica e as acentuações da levada de samba. O piano também se limita a fazer apenas um acorde por compasso, seguindo certa estabilidade rítmica. Esta textura “horizontal”, longa e permanente do piano e contrabaixo contrasta com a levada segmentada, seca, do violão e da bateria que assumem as células rítmicas típicas do samba. Na segunda parte da canção, durante o solo de violão e voz e na reapresentação das Seções A e B, todos os instrumentos passam a uma execução mais rítmica e segmentada, enfatizando a levada característica do samba. Desta forma, entre este jogo de horizontalidade e verticalidade, o arranjo parece dialogar com dois estilos diferentes; a bossa nova; através da contenção vocal de Egberto e da sutileza do contrabaixo, piano e flauta no arranjo e o samba mais “tradicional” do morro; através das levadas ritmicamente mais densas e fragmentadas. 47 Com a letra não poderia ser diferente: seu conteúdo revela através de um lirismo exacerbado a agonia do compositor ao “procurar uma canção” que possa traduzir sua posição em relação ao mundo e seus discursos pré-existentes. O espírito temático do “tempo da delicadeza” lhe ronda os pensamentos, por isso, o poeta considera a alternativa de procurar na “lua, na morena, no amor” o tema principal para seu canto. No entanto, num desabafo repentino, confessa que está descrente no “meu povo que já não entende” que para se expressar através de um samba, basta-lhe um “cavaquinho rouco, uma flautinha e um violão”, reduzindo suas ferramentas expressivas na formação de um grupo de choro-canção. Sua agonia parece residir justamente no fato de não se encontrar no discurso solar da bossa nova nem nas artimanhas políticas do nacional-popular. Sua volta ao cavaquinho, flauta e violão, representa não uma

47 “Só de documento/eu carrego um coração/que anda espiando/ procurando uma canção/ Seja de lua/ de morena ou de amor, meu amor/ Falando mesmo francamente/ eu já estou descrente/ deste meu povo que já não entende/ que basta um pouco de carinho/ um cavaquinho rouco/ uma flautinha e um violão/Prum samba”.

84 retomada da tradição no sentido de afirmar sua supremacia, mas sim uma tentativa de fuga de um contexto atribulado onde nenhum discurso ideológico parece fazer mais sentido.

A canção “Atento, Alerta” em parceria com o letrista Paulo Sérgio Valle, gravada também por Maysa em seu LP homônimo de 1969, parece conter alguns traços reconhecidos como parte do vocabulário “nacional-popular” e dos “ganchos” chamativos das canções de festival. Com uma modulação repentina logo após os oito primeiros compassos da canção (de Ré para Mi maior), sua melodia e harmonia de início causam surpresa no ouvinte. No entanto, em uma espécie de “refrão”, logo após uma preparação do arranjo para um momento de crescendo apoiado sobre uma sucessão de acordes do tipo “sus4”, retornamos a um loop de acordes característicos do modo mixolídio. A sonoridade deste modo naquele momento histórico esteve bastante ligado às representações regionais da musicalidade nordestina em canções como “Ponteio” de Edu Lobo e “Arrastão” (Edu Lobo e Vinicius de Moraes). A linha melódica é dobrada pelos trompetes:

Exemplo 14: Refrão de “Atento, alerta” - Loop de acordes característicos do modo mixolídio - (0:54 – 1:01)

Assim como em “Pr´um samba”, momentos de uma escrita mais lírica de acompanhamento mais regular são contrastados com momentos mais chamativos e fragmentados, representados na letra pela mesma dificuldade do poeta em se encontrar em meio a tantos discurso: “Nem sei quem sou nesta vida/pensei que fiz neste mundo?/Eu sou gente/um ser consciente/ou sou um andróide?/que trabalha?/ vota em branco/vai ao banco?/vida, amor/ quem sou eu?”. Para compreendermos o sentido desta letra, é importante lembrar que em 1967 o III Festival da Record marcava um momento de esvaziamento das fórmulas musicais impostas pelo mercado, ao mesmo tempo em que, no plano social, ocorria a radicalização política de setores de esquerda em oposição ao regime militar. (NAPOLITANO. 2001, p.143). Aos poucos, a perspectiva nacional popular, tanto a

85 perspectiva voltada para o “nacional” (samba) quanto aquela voltada para o popular (música folclórica, gêneros de raíz) começava a perder espaço para temas relacionados ao mundo urbano, a modernidade e às guerras (sobretudo com a influência das reações anti-guerra do Vietnã os Estados Unidos, e o despontar da contracultura). A estrutura musical das canções que participaram dos Festivais de 1968 começava a demonstrar uma influência pop mais intensa, enquanto os arranjos sofisticados enfatizavam o acompanhamento das orquestras destacando os naipes de cordas e de metais. Os temas das canções passavam a dar sinais de uma postura de resistência diante ao sistema, mas ainda não apontavam para qualquer proposta que não fosse a ação de cantar. (NAPOLITANO, 1968 apud GALVÃO, 2011, p. 230). Napolitano cita como principais temas destas letras a sensação de estranhamento em relação às paisagens urbanas, o desenraizamento, a ação e a luta. A letra de “Atento, alerta” demonstra justamente esta alternativa do poeta em resistir, porém, sem propor uma alternativa de ação concreta, valendo-se somente do “amor e da poesia”: “(...)Rompe com o mundo dos homens/forjo o meu próprio viver/faço do olhar um lugar amor, camará/ Lute você se quiser/eu fujo armado de amor/ armas de amante ansioso/brancas, polidas/ Eu sou desertor, desertei/Eu quero achar a poesia do mundo/ e o poeta que fez que a rosa rosasse/Fica em mim quem padece amando/ sobrepondo o amor(...)”. Vale a pena citar mais um exemplo deste tipo de discurso, presente no primeiro álbum de Gismonti, intitulada “Pr´um Espaço”, letra de sua própria autoria. A figura do “cantador” aparece nos seguintes versos: “Já saudoso do tempo, beija- flor/ estou pronto, violão sou cantador/ porque mais tempo?/ vamos só cantar pro alto”. Sua ação volta-se apenas para o ato de cantar: “Violão no olhar vamos voar/procurar e achar(...)Talvez no espaço sobre estrelas/ Seja o lugar/ Voz, violão, coração vamos cantar(...)

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4. A recriação em duas versões de “Janela de Ouro”

Com a comparação entre as duas versões de “Janela de Ouro”, composição presente nos álbuns Sonho 70 (1970) e Água e vinho (1972), poderemos constatar que o formato canção da segunda versão se apresenta numa forma reduzida e menos repetitiva no que tange a ordenação e recorrência das seções. No entanto, não se perde o fio condutor de sua ambientação sonora, amparada em primeiro plano por uma textura que utilizará de elementos rítmicos regionais e a sonoridade do modo mixolídio. Iniciemos observando a forma da primeira versão da composição na tabela abaixo.

Tabela 4 - Forma da primeira versão de “Janela de ouro” do álbum Sonho 70 (1970 )

0:00 – Introdução – 14 compassos (baixo pedal em dó) 0:27 – Introdução – 6 compassos (convenção que alterna ¾ e 4/4) 0:39 – Introdução – 10 compassos (groove – blues região de C)

0:58 – Seção A – 16 compassos 1:28 – Seção A – 16 compassos 2:00 – Interlúdio – 12 compassos (solo de piano) 2:24 – Seção A – 17 compassos (groove de funk – distribuição dos contracantos)

2:56 – Ponte – 16 compassos (groove baixo pedal em dó

3:27 – Seção A – 10 compassos (só elaboração e segmento cadencial) 3:47 – Seção A – 16 compassos 4:17 – Coda = Ponte – Fade out

A primeira versão de “Janela de Ouro” possui uma Introdução de quase 1 minuto que divido em três momentos distintos. Num primeiro momento, ouvimos um baixo pedal na nota dó junto a um crescendo de dinâmica numa ampliação da densidade textural através do acúmulo sequencial de diferentes timbres: contrabaixo e percussão primeiro, piano, violão e por último o naipe de cordas. É importante perceber a função que desempenham as cordas anexadas por último na seção, adensando a textura e enfatizando o clímax harmônico (junção de segundas maiores e menores) até os 28 segundos desta seção inicial.

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Em sequência, o trompete executa uma frase melódica harmonizada pelo piano em uma distribuição quartal. É importante reconhecer a polarização da sonoridade de dó maior no começo e a chegada em um acorde de mi maior. (movimento horário no ciclo das quintas). A pequena frase constituída de dois compassos, caracterizando assim uma métrica ímpar neste fragmento, se repete três vezes até o início do groove característico aos 39 segundos da gravação.

Exemplo 15: Fragmento da Introdução da primeira versão de “Janela de Ouro” (1970) – (piano e trompete) - (0:29-0:32)

A partir dos 39 segundos ocorre uma terceira “ruptura” mais brusca em relação aos dois outros momentos; estabelece-se a condução rítmica de contrabaixo e bateria no groove característico sobre o acorde de dó com sétima menor (C 7) sobre o qual são executadas as frases melódicas distribuídas em combinações instrumentais de piano + flautas ou piano + contrabaixo. Para explicarmos melhor os 16 compassos da Seção A, recorreremos aos modelos-padrões de construção de oito compassos presentes na tese de Sérgio Freitas, de forma a relacioná-lo com o modelo “formato híbrido” (início da sentença e consequente do período), apresentado no exemplo abaixo: (FREITAS, 2010, p. 618)

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Exemplo 16: “Formato híbrido”

Dentro deste período de 16 compassos chama-nos a atenção o caminho da harmonia, que parte de um acorde de C 7 no inciso 1 (a) até se transformar em uma cadência frigia sobre sol no segmento cadencial (d), finalizando em um acorde de sol que atua como dominante da tonalidade inicial. O segmento de contraste é construído sobre uma frase descendente formada pelas notas da escala de dó eólio. O shuttle entre os acordes de lá bemol (Ab) e si bemol (Bb) durante a elaboração e sequência (d) faz o intermédio entre a região de dó eólio e sol frígio: se visto através deste segundo modo temos um shuttle frígio entre seus bII e bIII (segundo e terceiro graus maiores). A partir de 1 minuto e 28 segundos repete-se esta Seção A, agora com a melodia a cargo da flauta e voz feminina.

Exemplo 17: Seção A da primeira versão de “Janela de Ouro” (1970) – (piano e melodia principal) a) Inciso I (0:58 – 1:07)

89 b)Segmento de contraste (1:07 – 1:12)

c) Elaboração e sequência (1:12 – 1:20)

d)Segmento Cadencial (1:20 – 1:29)

A partir dos 2:00 da gravação observamos uma seção contrastante em relação à densidade textural, a que dei o nome de “Interlúdio”. Nela, um solo de piano sobre intervalos de sextas paralelas sofre intervenções do violão em forma de ataques curtos em segundas menores. Toda a seção tem um sentido crescente, tanto no que concerne à dinâmica como na textura do arranjo. Observo que, novamente, as cordas atuam como expansoras da textura e do clímax das seções. A terceira exposição da Seção A pode ser explicada como uma redistribuição dos elementos já apresentados entre os instrumentos disponíveis, diferenciando a textura do arranjo pela alteração timbrística. Consideramos que na primeira exposição tínhamos:

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1-melodia principal (ora interpretada por voz masculina e trompete, ora por voz feminina e flauta) 2- linha do contrabaixo como contracanto desta linha. Na segunda exposição temos a modificação nos: Inciso 1 (a) a melodia se divide entre voz masculina e violinos + voz feminina e violão, enquanto contrabaixo, piano e percussão atuam com o groove característico do funk . Segmento de contraste (b) temos apenas a saída do contrabaixo do groove para retornar ao apoio com o contracanto, ainda realizado pela voz masculina e violinos. Elaboração ou sequencia (c, onde se encontram os shuttles entre bII e bIII) a divisão permanece até o segmento cadencial onde todos os instrumentos se encontram em textura homofônica. Na seção que denomino “Ponte” podemos ouvir o groove do contrabaixo servindo de base para a levada funkeada do piano e da bateria. A dinâmica crescente da seção contribui para o destaque do contrabaixo; seu riff é claramente construído sobre a escala blues de Dó.

Exemplo 18: Riff do contrabaixo da “Ponte” da primeira versão de “Janela de Ouro” (1970) - (2:59 – 3:07)

Ainda durante a “Ponte”, voz masculina e feminina executam em uníssono o início do Inciso I, que consiste na repetição da nota dó. No 11ª compasso, aos 3:16, ouvimos a exploração de quatro regiões diferentes com as cordas, que realizam um pequeno ataque de efeito crescente sobre as notas dó-mi-solb-sol, enfatizando a sonoridade da escala blues de dó. A partir dos 3:27 temos o retorno à Seção A, que parte do final do formato híbrido – do segmento de elaboração e sequência + segmento cadencial. Importante enfatizar que estes segmentos, os quais antes totalizavam 8 compassos, são estendidos para 10, resultando num prolongamento de seu efeito resolutivo. É importante notar também que, até agora, todas as “Seção A” tiveram um sentido decrescente de dinâmica.

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Na última apresentação da “Seção A”, a melodia principal é igualmente dividida entre voz masculina e voz feminina, atingindo novamente a textura homofônica (canto em terças) a partir do segmento de elaboração e sequência e também durante o segmento cadencial. O arranjo termina em fade-out com a reiteração da seção “Ponte” com uma única adição no 4º tempo de cada compassos; nele podemos ouvir um ataque curto do naipe de cordas sobre um acorde de C 7sus4 . Interessante notar, que mesmo se utilizando de uma sonoridade “monumental” que aproveita de um registro erudito para a construção de suas seções “Janela de ouro” (também por não estabelecer uma relação de seus parâmetros internos com uma letra, como sugerido em “O sonho”) aproveita mais das combinações timbrísticas, da densidade textural e da dinâmica de seu arranjo como recurso para a distinção dos “momentos” da composição. Passemos em seguida para a análise da segunda versão da composição.

Tabela 5 – Forma da segunda versão de “Janela de ouro” (canção) do álbum Água e vinho (1972)

0:00 – Introdução – efeito das cordas 0:17 – Introdução – 6 compassos 0:27 – Seção A – 17 compassos 0:59 – Seção A - 17 compassos (cordas efeitos) 1:21 – Seção A - - 17 compassos

2:00 – Ponte estendida – 23 compassos

2:41 – Coda Final – 23 compassos (solo de piano)

3:24 – Fim – efeito das cordas

Nesta segunda versão a composição se transforma em canção ao receber a letra de Geraldo Carneiro. 48

48 Não quero mais o cheiro de dor/ a confusão, os dias febris/descobrir um país na manhã/ ao som dos sinos de metal/ na vila do mar/ não sabia quanta chuva e sol/ eu trazia entre as minhas mãos/ Eu esperei a pedra gritar/ a espada e a cruz não sabem por que/ o suor, os dragões da manhã/ e o mistério do sertão/no país do sol/ acho o rastro da destruição/ e essas serras não me enganam mais/ Não quero mais o mofo e o pó/ a cicatriz perdendo suor/ traição e clarins na manhã/ ao som dos sinos de metal/ na vila do mar/ não sabia quanta chuva e sol/ eu trazia entre as minhas mãos/ Cheirando a mar/ a traição/ cheirando a mar/ a traição/cheirando a mar/ a traição.

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O primeiro aspecto para o qual chamo a atenção é a instrumentação desta gravação. Enquanto na primeira tínhamos o naipe de cordas, trompete, flauta, piano, contrabaixo, bateria, vozes (masculina e feminina) e violão, nesta observamos a redução dos instrumentos disponíveis, num conjunto de piano/sintetizador, bateria/percussão, contrabaixo e naipe de cordas.

A Introdução, que antes foi dividida em três momentos distintos é agora separada em duas partes bem distintas. Inicia com um baixo pedal em dó realizado pelas cordas mais graves enquanto as cordas mais agudas espalham notas aleatórias num trêmolo crescente, culminando num corte de sonoridade brusco em direção a segunda parte da Introdução. Nela, o groove característico que dará o “sotaque funkeado” à linguagem realizada por piano e contrabaixo assemelha-se à primeira gravação na sugestão do gênero, mas difere-se consideravelmente na distribuição das notas e na ênfase rítmica das figuras. O sintetizador executa uma descida melódica sobre as notas da escala de dó mixolídio e é na sonoridade deste modo que Gismonti abrigará quase todo o arranjo. A melodia da Seção A (seção que se repete consecutivamente três vezes) permanece igual à primeira versão, cantada pelo próprio Egberto Gismonti. O sintetizador executa um contracanto no segmento de contraste do tema, encaminhando-se para uma textura homofônica no “segmento de elaboração e sequência” e no “segmento cadencial”. É cada vez mais evidente que o piano de Gismonti, assumindo um papel proeminente na “levada” da composição, aumenta sua atividade rítmica. Seus ataques curtos e precisos passam a enfatizar cada vez mais a função percussiva deste instrumento. Observamos também a modificação da harmonia pela adição das sétimas nos acordes, bem como do acorde “sus4” dos primeiros compassos. Demonstrarei a distribuição da mesma forma que a versão anterior; distribuindo as 4 partes do modelo do formato híbrido:

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Exemplo 19: Seção A da segunda versão de “Janela de Ouro” (1970) - (contrabaixo, piano, sintetizador e voz) a) Inciso I (0:28 – 0:35)

b) Segmento de contraste (0:34 – 0:40)

94 c) Elaboração e sequência (0:38 – 0:47)

d)Segmento Cadencial (0:48 – 0:58)

Na segunda e terceira vez que a “Seção A” é executada ouvimos uma intervenção do naipe de cordas sobre o inciso 1 da melodia muito semelhante ao gesto musical que apareceu na primeira parte da Introdução. No entanto vale lembrar que as cordas se afastam de sua função de adensamento da textura e clímax harmônico que assumiram na primeira gravação. Ao invés da Seção “Ponte” da primeira versão, “Janela de Ouro” em sua forma canção propõe uma seção estendida deste trecho, que não se mostra nem como um improviso fechado sobre determinada quantidade de compassos, nem como uma

95 seção intermediária. Inicia com Egberto repetindo a nota dó em alturas diferentes sobre as palavras “cheirando a mar, a traição” até dar espaço à interferência dos instrumentos de percussão que ainda não haviam aparecido (como o apito, o caxixi e o triângulo). A transcrição e reutilização de alguns gestos musicais da Introdução da primeira versão de Janela de Ouro são inseridos aleatoriamente neste espaço experimental, como a descida cromática em segundas menores que nos remete à utilização das mesmas segundas na Introdução da primeira versão ou o padrão repentino do arpejo descente dos acordes C 7(9) e Bb 7(9) , semelhante ao padrão em quartas em semicolheia (que, se pensados em termos de notas de acorde são montado sobre fundamental, quarta e sétima menor de um acorde de C 7, por exemplo). A ambientação rítmica da bateria fornece um pano de fundo contínuo às “interações conflituosas” dos novos timbres e da reutilização dos elementos da versão anterior, revelando que Gismonti “abusa da integridade do texto inicial”, subvertendo a posição dos elementos no arranjo.

Exemplo 20: Introdução da primeira versão de “Janela de Ouro” (1970) - (contrabaixo, piano e violino) - (0:17 – 0:28)

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Exemplo 21: Introdução da segunda versão de “Janela de Ouro” (1972) – (voz, notas das cordas, piano e contrabaixo) - (2:09 – 2:19)

Exemplo 22: Arpejos na Introdução da primeira versão de “Janela de ouro” (1970) - (0:08-00:09)

Exemplo 23: Arpejos no Improviso da segunda versão de “Janela de ouro” (1972) - (3:16)

Ainda sobre a Ponte estendida, sobrepõem-se as figuras rítmicas da percussão (principalmente triângulo) realizando um ritmo do baião, junto ao groove mais “fechado” de piano e contrabaixo. Egberto parece não abrir mão do recurso de sextas paralelas no solo de piano, agora construído sobre uma melodia sincopada em dó mixolídio, que permanece nos remetendo ao universo da música nordestina.

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Exemplo 24: Primeiro momento do improviso da segunda versão de “Janela de Ouro” (1972) – (Sintetizador, piano e contrabaixo) - (2:23 – 2:31)

Em um segundo momento da seção “Improviso”, que tem início em 2:41, aparece uma melodia que aparenta ser uma espécie de improviso escrito, harmonizada sobre os acordes do modo mixolídio.

Exemplo 25: Segundo momento do improviso da segunda versão de “Janela de Ouro” (1972) – (Sintetizador, piano e contrabaixo) – (2:41 – 2:49)

Em suma, pudemos observar importantes transformações musicais entre as duas versões da canção, distantes no tempo por apenas dois anos. Na primeira versão temos uma narrativa musical conformada na junção de longas seções que parecem manter a idéia de contrastes sob a distribuição dos elementos temáticos entre os instrumentos num arranjo de caráter “erudito” (termo entendido aqui como sessões pré-concebidas e distribuições de funções instrumentais pré-determinadas).

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Por sua vez, a segunda versão se dilui numa sensação de repetição contínua de um groove , assumido apenas por contrabaixo e piano. Assim, mesmo que as seções sejam percebidas como distintas há um discurso unificado pela redundância da repetição de um determinado padrão, que gera o encadeamento de acontecimentos no arranjo. Elementos utilizados no arranjo anterior se apresentam de forma livre na improvisação, demonstrando que Gismonti vai construindo um vocabulário musical próprio a partir de um contato vivo e provocante do material pré-existente. Egberto parece também sedimentar procedimentos pianísticos que farão, num futuro, parte de sua linguagem como solista no piano (caso dos solos de piano sobre melodias abertas em sextas paralelas). O pensamento harmônico constrói-se na região de Dó mixolídio, excluindo de sua expressão boa parte das referências à escala blues da primeira versão. Observa-se com esta escolha que não se abandona a sugestão tonal da primeira versão, mas a amplia e subverte de acordo com o sentido empregado, que é a relação da composição com um universo mais próximo à linguagem musical “abrasileirada” resultando, em certa medida, num discurso que trabalha com uma dose de ambiguidade. Embora a harmonia da “Seção A” seja quase a mesma, observamos uma substituição sutil mas importante; o acorde de Eb 7M substitui o acorde de Bb no que chamei de shuttle frigio ou eólio (Ab – Bb em Dó eólio é bVI e bVII, em Sol frígio é bII e bIII) (Ab – Eb 7M em dó eólio é bVI e bIII e em Sol frígio é bII – bVI). Esta substituição reduz a sonoridade mais “pop” causada pelo bVI e bVII ao mesmo tempo que não deixa tão explícita a relação com a sonoridade do modo sol frígio. No mais, é bastante clara a intenção “mixolídia” que circunda todo o arranjo da segunda versão, aproximando-a harmonicamente de um caráter mais regionalista. Por último, é interessante notar que a presença do naipe de violoncelos (é importante citar que neste disco Gismonti teve a participação da Associação Nacional dos Violoncelistas, fundada pelo maestro Mario Tavares) deu um caráter bastante personalizado aos arranjos. Neste caso, as cordas assumiram uma função completamente distinta daquela que desempenharam na primeira versão, incluindo execução de tremolos, repetição sincopada de notas (nada comum para instrumentos de cordas) e exploração de harmônicos, abrindo-lhes as possibilidades sonoras experimentais. É possível dizer que há uma reorganização de uma ordem primária de códigos utilizados na primeira versão para a segunda versão, fazendo com que Gismonti

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“redefina a definitude do seu objeto artístico”, ampliando-lhe o campo de possibilidades interpretativas sem, no entanto, deixar o ouvinte à deriva de suas próprias impressões, o dirigindo, na segunda versão, para um universo poético em que se destacam a textura rítmica dos instrumentos (principalmente do piano) e a incitação de um ambiente mais regionalista.

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Capítulo IV

1. O Jazz-rock, o fusion e suas características

“Acima de tudo isso, paira algo como uma “teoria do conhecimento” do novo jazz, uma atitude fundamental típica de todos os seus representantes: o ecletismo.” (LIPPEGAUS, p.184)

No decorrer dos anos 1970 os discos de Gismonti foram se orientando para o gênero instrumental e adquirindo uma reputação de estarem se tornando cada vez mais complexos, fato que dificultou seu relacionamento com a gravadora Odeon. Pois, se as experiências sonoras de Gismonti, por um lado, apareciam como algo novo e irrotulável no campo da música popular brasileira, por outro pareciam dialogar com um universo que integrava grande parte da vanguarda da música improvisada internacional: o fusion ou jazz-rock de, por exemplo, John McLaughlin, Chick Corea e Wayne Shorter; e, entre os brasileiros, Airto Moreira e . Gismonti conta em entrevista que John McLaughlin identificou semelhanças de sua música com o gênero:

“Quando chegamos aqui e entraram os sintetizadores e eu ainda botei uma orquestra em cima que deu a dimensão mais apocalíptica, como dizia o Maclaughlin, ele dizia assim: “mas isso é rock puro, mas ao mesmo tempo não é rock”. Eu dizia: “olha, rock não é não porque eu não sei rock, como não?” “Você sabe jazz?”eu digo: “Jazz também, não(...)”.

No fim dos anos 1960 o jazz-rock anunciava a tentativa de unir a sonoridade visceral do rock com a complexidade improvisatória do jazz. Um dos álbuns considerados pioneiros deste tipo de crossing over é o disco Bitches Brew do trompetista Miles Davis. Gravado em 1969, o álbum apresenta composições que se distanciam da forma swingada de se tocar do jazz tradicional, explorando a sonoridade dos instrumentos elétricos e os grooves de contrabaixo, percussões, efeitos e pedais eletrônicos. Muitos dos músicos que participaram das gravações do Bitches Brew levaram a diante estas concepções sonoras em suas próprias carreiras. Entre eles podemos citar o pianista Chick Corea (com o grupo Return to forever ), o guitarrista John McLaughlin (com sua The Mahavishnu Orchestra ), o percussionista Airto Moreira e o saxofonista Wayne Shorter (com o grupo Weather Report ).

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O jazz-rock passou a ser reconhecido também através de um termo sinônimo: jazz-fusion. Numa compilação de artigos encontrados na internet intitulado “Jazzpedia” 49 encontramos a seguinte definição do gênero:

funk e R&B, amplificação e efeitos eletrônicos do rock, fórmulas de compasso complexas derivadas de tradições musicais não ocidentais, composições basicamente instrumentais com abordagens improvisatórias que usam frequentemente instrumentos de madeira ou metal e apresentam um alto nível técnico- instrumental.

Jarno Kukkonen, autor de uma tese sobre o Jazz-Rock de Miles Davis, descreve esta fusão como: mistura elementos do rock, funk e das tradições musicais étnicas - principalmente indianas, sul-americanas e africanas - e outras fontes musicais com o jazz contemporâneo. (...) desenvolvida por músicos familiarizados com as tradições comunicativas, interativas e improvisatórias do jazz. (KUKKONEN, 2005, p. 4)

No livro “História do Jazz”, organizado por Joachim Berendt e lançado no Brasil pela Editora Abril Cultural encontramos um artigo sobre jazz-rock , contemporâneo ao apogeu do estilo, datado de 1975.50 Escrito por Karl Lippegaus, o artigo menciona o Bitches Brew como um disco decisivo na inauguração deste estilo no mundo “pós-free-jazz”, salientando sua grande importância também por ter lançado ao universo musical um “número crescente de músicos que evoluíram individualmente a partir de então(...)” (LIPPEGAUS, 1975, p. 170) O autor é categórico ao afirmar que antes da década de 1970, os antecessores deste estilo como os grupos Blood, Sweet and Tears e Chicago já haviam “preenchido com sucesso um espaço que se achava disponível no mercado da música”. O tipo de jazz-rock praticado por estas bandas se caracterizava por improvisações de:

frases de jazz convencional em cima das músicas pop consagradas (...) arranjos para instrumentos de sopro que já haviam sido

49 Compilação de artigos, com licença creative comoons encontrados na internet no link: https://www.scribd.com/document/202634514/Jazzapedia-1-In-the-Mood-for-Love . Acessado dia 24/06/2015 50 É muito interessante notar o fascículo em forma de “carta ao leitor” que veio adicionado ao livro, onde Egberto |Gismonti, junto a Hermeto Pascoal são considerados músicos da escola do jazz , atribuindo a ele o ingrediente necessário a própria “evolução da música brasileira”. Nele: “ Apesar de alguns de seus adeptos pretenderem resguarda o que consideram sua “pureza” original, é exatamente por se tornar “impuro” – em mutações e mesclas incessantes – que o jazz mostra sua vitalidade e expande sua influência, marcando inclusive o território da música erudita, como atestam Gershwin, Hindemith, Debussy ou Stravinsky. E é pelo mesmo motivo que sua presença se faz sentir até me momentos importantes da própria evolução da música popular brasileira – como atestam , a bossa nova e, mais recentemente, o trabalho de Hermeto Paschoal ou Egberto Gismonti. Nesse sentido, penetrar no universo do jazz significa conhecer melhor a música de nosso tempo ”. (Fascículo presente no livro História do Jazz)

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executados de maneira semelhante – porém incomparavelmente mais complexa e com exigências bem maiores – (...) e uma seção rítmica – igualmente convencional – composta com base em músicos de rock”. (IDEM, p. 172)

Miles Davis e John Coltrane são citados como influências importantes para os rockeiros daquela época, principalmente por que:

Miles e Coltrane, sobretudo, esforçaram-se progressivamente, em suas composições e em seus arranjos para assegurar a maior liberdade de expressão possível ao que produziam - não a liberdade “total” do free jazz , mas uma liberdade controlada e dirigida. (IDEM, p.173).

A maneira de tocar de Miles Davis, descrita como “modal”, procurou sempre garantir: um máximo de liberdade de expressão musical a partir de um mínimo de restrições formais. O que ligava os executantes era apenas uma única base geral, o mais das vezes sob a forma de um único acorde, de uma única escala ou de um único tom fundamental – portanto, de um único “centro tonal”. (IDEM. p. 174)

Lippegaus também ressalta o uso do termo “elétrico” no jazz-rock . Os grupos se formam a partir da união de instrumentos acústicos convencionais amplificados e pela adição de aparelhos inteiramente eletrônicos advindos sobretudo dos estúdios de vanguarda experimental. O tom anunciativo da sentença abaixo nos faz perceber o impacto que a utilização destes recursos provocou naquele período.

“a eletrônica é um novo medium cujas possibilidades sonoras estão longe de já haverem sido delimitadas ou sequer entrevistas; (...) os músicos pop transformaram a música eletrônica em fenômeno de massa: um instrumento cujas sonoridades distinguem e definem musicalmente nossa época em relação às outras” (IDEM. p. 179).

Jimmi Hendrix, citado como personagem dissidente do rock que mais influenciará o jazz-rock , ganha esta importância pela sua capacidade de “mais do que dominar a técnica da guitarra” de “chegar a volumes sonoros que se avizinhassem do limiar da dor, recurso graças ao qual os sons mais habituais assumiam dimensões e nuanças além do que seria imaginável.” (IDEM. p.179) Volume sonoro e instrumentos amplificados passaram a ser também dois elementos indispensáveis ao jazz-rock . A pesquisa sonora se deu através da exploração dos tipos de sons possíveis entre instrumento e amplificador:

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cada instrumento, cada parte da cadeia instrumento-amplificador possui um som diferente em função de sua origem e de seu modo de fabricação, e esse som é objeto de experiências sérias e meticulosas por parte dos músicos, da mesma forma que outrora os saxofonistas pesquisavam as possibilidades das palhetas de instrumentos. A amplificação deu um novo lugar ao contrabaixo na orquestra de jazz, os sintetizadores passaram a ser, junto a pianos elétricos, órgãos e outros keyboards os instrumentos preferidos dos pianistas, a bateria se formulou rítmica e metricamente participando cada vez mais da criação melódica, junto a uma cada vez maior infinidade de instrumentos de percussão de outras culturas (especialmente sul-americana, africana e oriental).” (IDEM. p. 182)

É interessante notar a associação entre a necessidade do jazz de se “re- popularizar” e do papel proeminente que o jazz-rock teve neste intento no início da década de 1970. Para isso o jazz-rock passou a ser “eclético” – termo que define, por assim dizer - o próprio estilo de música. “Tanto o jazz como o rock são as partes mais em evidência de conjuntos bem maiores, e só designam, por assim dizer, aspectos formais. É do jazz e do rock, do jazz-rock , que procede o ecletismo.” (IDEM. p.185) A conclusão a que chega Lippegaus é de que não basta transformar o público para que uma música seja aceita e sim transformar a própria música: “O novo jazz nada sacrificou de sua qualidade para ter acesso a um público mais vasto; o que precisava fazer era apenas mudar, tornar-se mais amplo, mais abrangente – em outras palavras: tornar-se mais eclético.” (IDEM) Embora muitos livros com enfoque linear histórico ou descritivo sobre o gênero (sobretudo norte-americanos) já foram escritos, são escassos os trabalhos que nos demonstram especificamente tratos e procedimentos musicais utilizados neste estilo. Cumprindo esta demanda, um artigo que aborda a fusão entre jazz e rock, alinhavado a um pensamento sobre “hibridismo” intitula-se “ Jazz-Rock? Rock-Jazz? Stylistic Crossover in late-1970 American Progressive Rock” escrito por John Covach. Covach discute o problema da hibridação de gêneros e utiliza o termo “crossing over ”, muito comum no campo da música popular pós-década de 1950. A proposta de análise musical realizada neste artigo também nos sugere novas formas de observação deste tipo de composição. Covach destaca que o termo “crossing over” se referia às músicas que apareciam em duas “listas” da Billboard ao mesmo tempo. Estas listas tinham o papel de facilitar os futuros trabalhos de gravadoras, estações de rádio e lojas de discos, informando as características dos consumidores de cada tipo

104 de música, segmentando-os em linhas econômicas, geográficas e raciais. Entretanto, os elementos de uma música que despontava em duas “paradas” simultaneamente (caracterizada assim por crossover ) nem sempre fazia referência a dois estilos distintos. Desta maneira é possível perceber uma distinção entre “ chart crossover ” e “style crossover ”. Covach opta assim por definir o termo como referente a uma composição que estilisticamente contém características de gêneros diferentes, priorizando o “ style crossover ”. (COVACH, 2000) Durante a década de 1970, o rock progressivo e o jazz-rock eram gêneros que se assemelhavam tanto por compartilharem ouvintes em comum como pelos tipos de críticas a que foram submetidos. O rock progressivo criado por grupos como Yes, Genesis, King Crimson, Emerson, Lake & Palmer, Jethro Tull e Gentle Giant, se caracterizava pela insistência na mescla da música erudita européia com o rock, guiada pela lógica da complexidade e da virtuosidade musical associada à canções de teor filosófico, místico e espiritual. Estes grupos eram criticados por terem aberto mão da experiência mais crua e visceral do “bom e velho” rock n´roll . Da mesma forma, os músicos do jazz-rock eram acusados de não swingarem assim como mandava a tradição do jazz, confundindo o ouvinte com suas métricas ímpares e colcheias straight. A primeira proposta de Covach é descrever e comparar aspectos musicais do grupo liderado por Chick Corea, Return to forever ; do The Mahavishnu Orchestra de John McLaughlin e da banda inglesa de rock progressivo Yes . Começa por analisar o fonograma “ Medieval Overture ” do álbum Romantic warrior (1976) do grupo Return to forever. A música é constituída de diversas seções contrastantes que configuram uma espécie de “forma estrutural episódica”. Nas primeiras seções, estabiliza-se uma tonalidade (lá menor) através de ostinatos de compassos ímpares executados pelo sintetizador e riffs ritmicamente alinhados entre guitarra e contrabaixo que contrastam melodicamente com o ostinato referido. A sessão chamada de “transição” realiza um padrão em terças sobre a escala de tons inteiros, seguindo uma seção B que apresenta um “diálogo” (chamado pelo autor de “call-and-response ”) com riffs melódicos realizados por teclado, guitarra e contrabaixo, respondidos pelas viradas de bateria. Atentamos para o aspecto arranjado das seções, bem como pela aplicação de um patch de órgão sintético por Corea, que recorre aos efeitos a fim de criar um ambiente que aparenta fazer referência à caricatura dos sons de órgãos ao estilo de “o fantasma da ópera”. O solo de guitarra de

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Di Meola com efeito distorção ( fuzz Box ) promove uma sonoridade modal, enquanto na seção seguinte, o solo de contrabaixo ocorre sobre a repetição de um tema melódico introduzido em andamento lento e segue até o retorno do tema inicial acrescido de uma pequena coda. Seções compostas, complexidade rítmica e partes fixas arranjadas fazem parte do estilo jazz-rock e são também compartilhadas pelo rock progressivo. A Tabela abaixo demonstra como Covach descreve a forma de “ Medieval Overture ” divindindo-a em seções episódicas e assinalando o “ambiente tonal” de cada uma das seções. Com este procedimento, podemos perceber que qualquer tentativa de segmentá-la em estruturas formais tradicionais ou encontrar progressões harmônicas, além de se configurar numa tarefa extremamente árdua, não fornece uma concepção musical que dê conta do universo sonoro deste gênero.

Exemplo 26: Tabela de apresentação da Forma de “Medieval Overture”, presente no artigo de Covach.

Table 4.1 Return to Forever, "Medieval Overture" (Chick Corea), Romantic Warrior(1976): formal design.

0:00-0:49 A section ostinato in keyboard; riffs in guitar/bass A minor 0:50-1:12 transition whole-tone keyboard then drums Bb whole-tone 1:12-1:36 B section keyboard, guitar, bass riffs vs. drums A minor 1:36-2:01 transition "church organ" and synthesizer Am to E minor 2:02-2:30 C section chromatic guitar and bass in counterpoint E, chromatic 2:30-4:16 D section theme and bass solo A Mixolydian 4:17-4:49 A' section ostinato in keyboard; riffs in guitar/bass A minor 4:49-5:10 Codetta features reprise of first transition A minor/major

Outra música analisada pelo autor é “ Dance of Maya ” do grupo The Mahavishnu Orchestra presente no disco The inner mounting flame de 1971. Covach descreve a música como uma “longa sucessão de acordes arpejados formados sobre dois trítonos com um semitom de distância”. Na visão do autor, os trítonos presentes na sequência formariam o caminho de acordes V 7 em quintas (E-A-G-D). No songbook dedicado às transcrições das músicas da Mahavishnu Orchestra 51 ,

51 No artigo já mencionado acima sobre Jazz-rock de Karl Lippegaus, a Mahavishnu Orchestra e o Return to forever são citados como os grupos que alcançaram mais sucesso naquele momento. O disco The inner mouting flame é também considerado, depois de Bitches Brew , o segundo passo decisivo na

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McLaughlin assinala a utilização de duas escalas sobre E: super lócria e simétrica 52 . Além do típico uso destes modos no jazz-rock , a composição também utiliza a métrica de 10/8 e os efeitos de distorção e wah-wah na guitarra. Para exemplificar semelhanças estilísticas entre o jazz-rock e o rock progressivo Covach cita a faixa “ Sound Chaser ” do discor Relayer da banda inglesa Yes, lançado em 1974. O autor ressalta o improviso de Steve Howe em 3:01, que ao utilizar a sonoridade da escala octatônica cria um ambiente não-tonal muito parecido com “ Dance of maya” ou ainda a faixa “ Meeting of the spirits ” 53 . A utilização destas escalas tidas como “exóticas” é um procedimento comum nos solos de Howe. Uma sonoridade mais jazzística também pode ser verificada nos solos do tecladista Patrick Moraz, na mesma faixa. Seu estilo se assemelha muito mais a Chick Corea ou a Jan Hammer 54 do que a Rick Wakeman, principalmente pela utilização do minimoog e do fender Rhodes , instrumentos não muito comuns no universo rock progressivo. Para Covach, um estilo crossover se define pela impossibilidade, mesmo havendo uma quantidade razoável de repertório afeitos as mesmas práticas musicais, de originar uma nova vertente concisa. Porém, é o cruzamento destas duas categorias que pode nos revelar a rica potencialidade de estilos musicais que misturam o clássico com o popular, o ocidental com o oriental e até mesmo de repertórios passados e contemporâneos. Ao analisar estes estilos é de grande interesse investigar como ambos se equilibram e o que faz com que eles não possam ser encaixados numa mesma categoria. Muito mais do que resolver tais conflitos, ressalta o autor, é importante celebrar esta tensão.

evolução do gênero. De acordo com Lippegaus, “sua música é mais densa, tanto no plano rítmico como no plano melódico” (LIPPEGAUS. 1975. p.175) O autor também chama a atenção para o fundo filosófico e religioso expresso pela Mahavishnu Orchestra . Naquela época pareciam crescer as preocupações com as doutrinas espirituais provindas do oriente, reflexos da onda de interesse pela cultura oriental despertada pelo movimento contracultural da década de 1960. John McLaughlin tinha um guru indiano, que por sinal também era o mestre espiritual do guitarrista Carlos Santana. Chick Corea era um adepto da cientologia, Herbie Hancock e Wayne Shorter se diziam budistas. Miles Davis por sua vez, parecia não estar preocupado “não creio em Deus nem no Diabo” (IDEM. p.176). Lippegaus cita a crítica pertinente de Michael Watts que distingue o fato de que, naquele momento, o real interesse dos negros era a busca pela construção de uma identidade cultural enquanto os brancos estariam à procura de uma “liberdade individual, de uma calma e de um equilíbrio interior, após as arrasadoras experiências com as drogas da década passada.” (IDEM) 52 A escala super lócrio é descrita como o VII grau da escala menor melódica, também denominada alterada. Escalas simétricas são aquelas que tem formação de semitom e tom, conhecida na linguagem informal por “dominante-diminuta” ou apenas “dom-dim”. 53 Faixa de abertura do álbum The inner mounting flame . LP. CBS.1971 54 Tecladista da Mahavishnu Orchestra.

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Esta visão mais ampla sobre este gênero tão comentado e lido como um objeto híbrido nos dá a possibilidade de, além de conseguirmos reconhecer muitas semelhanças musicais entre ele e a música de Gismonti (como a forma episódica, ostinatos de compassos ímpares, seções que se caracterizam como “transições’, riffs melódicos, seções que aparentam estar improvisadas mas que estão arranjadas, aplicação de timbres eletrônicos, efeitos) nos questionarmos a respeito do crossing over, como o resultado de duas linguagens que não se compatibilizam e não são capazes de formar um terceiro gênero, mas que celebram a todo o momento da narrativa esta tensão. Retomaremos estas indagações mais tarde, elas se tornarão ainda mais interessantes quando mergulharmos mais a fundo na trama da narrativa musical de Gismonti em duas de suas composições: “Dança das cabeças” e “Trem Noturno”.

2. Os discos Academia de Danças de 1974 e Corações Futuristas 1976

Uma “nova fase” é inaugurada na carreira de Egberto Gismonti com o LP lançado em 1974 Academia de Danças , no qual podemos também reconhecer este flerte com o jazz-rock. O álbum foi dividido em duas “seções”. De um lado os fonogramas de música instrumental que se apresentavam sem interrupções, com os finais emendados uns aos outros e de outro, duas canções acompanhadas apenas por piano; uma regravação de “Vila Rica” em versão instrumental (gravação original presente no disco Água e Vinho ), uma composição intitulada “Continuidade dos parques” e duas faixas que trabalham com sonoridade e temas musicais indígenas. Diferente da estética “monumental” presente nas composições dos discos anteriores, a partir de Academia de Danças Gismonti parece não estabelecer mais uma ligação com os cânones de uma arte mais “erudita”. Isto quer dizer - dentre outras modificações - que os arranjos não acrescentam um naipe de cordas para aumentar a massa sonora da execução, para costurar frases contrapontísticas que enriqueçam a narrativa do ponto de vista melódico nem para servir como sustento harmônico para a melodia da canção. 55 Em Academia de Danças o naipe de cordas é arranjado de forma a criar “ambientações” e “sonoridades” para as faixas. Na seção de A de “A porta encantada”, por exemplo, no primeiro lado do disco, as cordas aparecem em

55 Exemplo: “Lírica I”, presente no álbum Egberto Gismonti (1969).

108 momentos específicos do arranjo, apoiando convenções ou realizando pizzicato em polirritmia com um ostinato. É a partir deste disco que a música feita por Gismonti passa a ser avaliada de “difícil fruição”. O jornal Folha de São Paulo publicava, em 1976:

“Academia de Danças" tem lugar importante no coração de Egberto Gismonti. Foi o disco que lhe permitiu parar de esquentar a cuca. É o que convenceu sua gravadora de que ele poderia ser vendável, dentro dos seus limites: o LP vendeu 15 mil exemplares, o que para Egberto, é muito” 56 (CAMBARÁ, 1976)

Egberto, em 1975, expõe este impasse, comparando a postura da indústria fonográfica brasileira e a americana diante seus trabalhos:

“Quando saí daqui, falaram que o meu disco (Academia de Danças) era muito enrolado. Saí triste. Mas quando eu cheguei lá, os diretores das gravadoras dos EUA acharam ótimo!!! A “Academia de Danças” tem um som técnico que eu acho anormal do Brasil. Mas eu não posso culpar quem não entende. Pois se eu mesmo, só comecei a entender a direção da minha música sete anos depois. A gravadora dá a entender a gente que no Brasil só existem pessoas muito burras e que no seu espetáculo não vai ninguém.” (PENTEADO, 1975)

A constante referência à expressão “música de qualidade”, tornava cada vez mais distante qualquer possibilidade de categorização da música feita por Gismonti naquele período. Dizia o jornal Última Hora: “Ninguém, absolutamente ninguém conseguiu definir, rotular ou explicar sua música de sons estranhos e belos, nascidos, sobretudo, da sua emoção". (GUIMARÃES: 1976) Estes indícios nos levam a crer que as produções culturais criadas pelo músico não mais são constitutivamente oposicionistas em sua essência, não se tratando de uma cultura do antagonismo, predisposição das obras de artes modernistas e porque não dizer, do sentimento que pairava sobre a Música Popular Brasileira na década anterior, em que os debates aconteciam em torno das polaridades entre “nacional”- “internacional”, “arcaico”- “moderno”, “alienado”-“ingênuo”. O jornal Última Hora destaca esta característica híbrida, apontando para um cenário cultural mais

56 Atento que o assunto principal desta reportagem era o fato de Gismonti ter sido convidado a compor uma trilha sonora para novela da Globo, acontecimento que gerou espanto na crítica especializada. Gismonti, naquele momento, já havia sido convidado algumas vezes para fazer parte de algumas produções da rede, mas nunca tinha aceitado. O aceite para realizar a trilha foi então uma surpresa para todos.

109 segmentado a partir do momento em que cita a existência de “qualquer tipo de sensibilidade”:

"O mais surpreendente na música de Egberto, é que os sons criados por ele atingem qualquer tipo de sensibilidade. De repente, Miles Davis procura Egberto para produzir um disco, do mesmo jeito que a Som livre estabelece contatos com os músico para um LP infantil, e Jean Pierre combina a trilha sonora de um filme sobre a demarcação de terras no Alto Xingu e Turíbio Santos grava em Paris, suas composições. O que é isso? Uma música que serve pra absolutamente tudo? (GUIMARÃES, 1976)

Esta “sensibilidade” nos leva a reflexão da escritora Susan Sontag, sobre as modificações da sociedade pós-1970, que podem nos ajudar a esclarecer a atuação de Gismonti neste período. De acordo com Sontag, por conta da mobilidade social e física, do abarrotamento do cenário humano (pessoas e mercadorias multiplicando-se, novas sensações como a velocidade física, uma viagem de avião, velocidade das imagens do cinema, reprodução em massa dos objetos de arte) a arte se tornou um instrumento para modificar a consciência e organizar novos modos de sensibilidade. Os artistas, se tornando “estetas” mais conscientes, desafiam seus próprios recursos, seus materiais e seus métodos, obtendo-os a partir também do mundo da “não arte”, tecnologia, imagens comerciais, sonhos consumistas, etc. Assim, as artes acabam possuindo um conteúdo menor e um tipo de julgamento moral mais frio. (SONTAG, 1987, p. 341) Sobre o álbum “Corações Futuristas” (considerado uma extensão de seu predecessor) e as turnês que o sucederam, Gismonti passa a afirmar sua preocupação com um novo modo de expressar sua música. Através da criação coletiva e da improvisação, apresenta uma nova maneira de pensar a organização dos sons, que não exclui a exploração das inovações tecnológicas denotando uma preocupação maior com a “forma” e menos com um conteúdo associado a algum tipo de “edificação”. Da mesma forma, Gismonti começa a questionar o papel do artista naquele contexto, reavaliando toda a sua obra anterior: “Para citar um exemplo: para que ficar pondo cordas numa música que não pede cordas, apenas para soar sinfônico, falsamente sinfônico, pois sinfônico mesmo é outra coisa, outros músicos, outra estrutura de música? Por que fazer isto só porque eu tinha decidido que essa era a minha forma de música? Porque não tocar simplesmente, do jeito como eu tinha composto? (...) Porque ficar horas e horas intelectualizando, discutindo nossa posição na sociedade brasileira, nosso papel, e tal, tudo com copo de uísque na mão e o ar condicionado ligado? Quer dizer, falso, irreal.” (BAHIANA, 2006, p.157)

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Em entrevista, Gismonti explica: “Voltado para o “como” e não “o que” tocar, Gismonti reuniu-se a um selecionado grupo de músicos, "pessoas acrescentando, me permitindo parar para ouvir minha própria música" (Um músico, enfim, entendido, Folha de São Paulo, 1976). No Jornal do Brasil, o crítico musical Tárik de Souza enfatiza novamente o fato de Gismonti estar se dirigindo especialmente para o “como” e não “o que” sendo respondido pelo músico com uma declaração a respeito da dinâmica de seus shows. Fica claro o direcionamento a improvisação, a criação de uma atmosfera específica sob as possibilidades criadas pelos aparelhos tecnológicos:

"O show tem uma parte só, não tem intervalo, porque quebra a atmosfera. Em São Paulo nós fomos tocando, quando sentimos tinham passado duas horas.(...)Nós tocamos mais meia hora. Eu entro e faço uma meia hora sozinho, na abertura. (...) Fica difícil detalhar o que acontece, porque é um violão preparado para ter o mesmo volume de guitarra, com microfone embutidos, o som passa por space echoes, phasis, pedais. Então é um volume sonoro que vai girando, de repente aparece um buraco uma idéia puxando para outro caminho, e nós vamos por ali". (SOUZA, 1976)

Retornando aos aspectos desta “nova sensibilidade” descrita por Sontag, observa-se então o objetivo da criação se desviando e se abrindo aos “prazeres da forma e do estilo”, com a exigência de menos “conteúdo edificante, menos esnobe ou moralista” (SONTAG, 1987, p.349): “A nova sensibilidade é provocadoramente pluralista; voltada ao mesmo tempo para uma torturante seriedade e para o divertimento, a ironia e a nostalgia. E também extremamente consciente do ponto de vista da história; e a voracidade de seus entusiasmos (e da substituição desses entusiasmos) é tremendamente rápida e excitante.” (IDEM, p.350) Ao mesmo tempo em que figura-se em sua música a relação com a tecnologia, com o mundo da fragmentação, com a perda da articulação de noções antagônicas como uma herança do modernismo, abre-se espaço para a desarticulação de identidades do passado e criação de novas possibilidades entre articulações entre as culturas. Transpondo estas noções à prática “improvisada” da nova fase de Gismonti, podemos perceber que a configuração de suas apresentações ao vivo e o surgimento desta nova concepção de criação se deve também a uma desvirtualização da individualidade do artista dos moldes modernistas. Esta característica improvisada e esta “articulação entre as culturas” presentes nos trabalhos de música instrumental brasileira a partir da década de 1970, pode representar, no plano artístico, esta

111 modificação na figura do artista, novas proposições em sua forma de atuar, que passa a priorizar mais a performance e o estilo do que o próprio conteúdo musical. Tabla, flauta, caxixi e flautas da Tailândia representam este cruzamento de informações globais. Descrevendo um dos shows do álbum Corações Futuristas Gismonti diz: "Houve um momento no show de São Paulo que estava um free pesado (quando falo free é uma coisa brasileira calcada numa harmonia ou num ritmo, nada a ver com Nova Iorque), uma zoeira que você nem imagina. De repente, o Robertinho saiu da bateria e começou a fazer um som na tabla. Ninguém ouvindo. O som foi morrendo, o Nivaldo largou o sax-soprano, pegou uma flauta, o Luis largou o baixo, pegou um caxixi e eu umas flautas estranhas, que eu trouxe da Tailândia. Ficou aquele clima diferente fui para o piano e cantei Bodas de Prata". (SOUZA, 1976)

Os jornais pareciam estar atentos a estas modificações da sensibilidade do novo momento. Em matéria não assinada, a Folha de São Paulo publica a seguinte descrição:

"Aliando o indígena e o popular, o ocidental e o oriental, a erudição tradicional e as técnicas recentíssimas de composição, estruturação e execução, ele e seu grupo (Luis Alves no baixo, Robertinho na bateria, Nelson Ângelo na guitarra e Nivaldo Ornellas no sax) parecem perseguir a abertura em relação a todos os conceitos melódicos e uma criação propositadamente desarrumada (no sentido do não pré-estabelecido), bem a gosto do seu líder". (Um músico,enfim, entendido, Folha de São Paulo, 1976)

Da mesma forma, Gismonti começa a questionar o papel do artista naquele contexto, reavaliando toda a sua obra anterior. Ao mesmo tempo em que se afasta do fazer dicotômico do músico popular, procura também se afastar das prerrogativas políticas da década anterior. Recuperando aqui Andreas Huyssen, relembro sua assertiva de que, em sua visão, o “vale tudo” típico dos anos 70 pode ser a “versão cínica do capitalismo consumista do “nada adianta”, mas reconhece a inutilidade das velhas dicotomias. (HUYSSEN, 1991, p. 53) Este afastamento das prerrogativas do passado recente não significará, contudo que sua música perderá conexões críticas com o contexto a qual está atrelada. "Eu poderia teorizar infinitamente sobre música. Mas não estou querendo isso agora. Não há que teorizar nada. Não estou querendo entender nada. Estou pensando depois. Agora é que eu entendi Academia de Danças. Não estou nem sequer entendendo este show no Teresa Raquel, Os corações futuristas. Estou preocupado com as pessoas, e a relação entre elas. A coisa mais importante que me aconteceu, é que eu perdi a gravidade". (GUIMARÃES, 1976)

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Todos estes elementos retomam a discussão sobre o voltar-se ao “estilo” e a “perfomance” do artista e menos ao conteúdo. Em Gismonti, além dos exemplos citados acima, podemos também conectar a mudança do teor literário em suas canções. Os discos anteriores possuíam outro tipo de narrativa mais linear, que pode traduzir os reflexos dos anseios da década de 1960, onde o sujeito se colocava sempre à procura de uma alternativa às questões que o afligiam, ou no amor, ou no “cantar” como expressão de luta contra a repressão, ou ainda expressava sua fragilidade em meio a um ambiente de transformações rápidas e inconstantes, tratando de temas como estranhamento em relação às paisagens urbanas, o desenraizamento, a ação e a luta. Outro fator determinante para a configuração sonora destes discos de Gismonti está na utilização dos recursos instrumentais-tecnólogicos; contato este mantido principalmente na temporada que o músico passou em 1975, nos Estados Unidos, gravando com Airto Moreira. Dentre este novo instrumental disponível apresento alguns bastante significativos na construção da sonoridade dos álbuns desta fase: - Arp Odyssey - O sintetizador analógico foi lançado em 1972 pela Moog Music , possui capacidade duofônica e possibilidade de controle dos parâmetros de onda através de botões localizados no painel. Foi um sintetizador analógico que competiu com o Minimoog, portátil e mais acessível. É um dos primeiros sintetizadores com capacidade duofônica (habilidade para se tocar duas notas ao mesmo tempo). É notável dizer que este sintetizador foi também o primeiro sintetizador tocado por Herbie Hancock em seu disco de 1973 Head Hunters. 57 - Arp String Ensemble - O sintetizador, produzido pela Eminent NV (Solina) e lançado em 1974 reproduzia o som de 6 instrumentos (violino, viola, trumpete, trompa, violoncello e contrabaixo) junto a um efeito chorus que lhe dava o som polifônico característico.

57 Curioso notar que o interesse por estes instrumentos têm crescido ao longo destes últimos anos. Recentemente, mais precisamente no final de 2015, o Arp Odyssey foi relançado, numa parceria entre a Korg e o co-fundador da ARP`s David Friend. Neste vídeo recente, para promover este relançamento, Herbie Hancock fala um pouco sobre este instrumento: https://www.youtube.com/watch?v=5uIvFhEiuS8 . Acessado em 26/05/2016.

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- Space Echo - O aparelho de efeito, também conhecido como Roland RE-201 e lançado em 1974, é uma unidade que produz delay analogicamente através da manipulação de fita magnética. - Mutron biphase - é um equipamento que proporciona ao instrumento o efeito de “phaser”. Foi criado por Mike Beigei e Aaron Newman na empresa norte- americana Musitronics entre os anos de 1973 e 1974. Basicamente o equipamento possui dois tipos de phaser que podem funcionar individualmente ou em série (mono ou stereo), permitindo que se controle os parâmetros (tipos de onda, profundidade e feedback) analogicamente pelo pedal de controle. Da parceria com Airto Moreira surgiu um álbum pouco conhecido mas de extrema importância simbólica para esta fase de expansão e consolidação da música instrumental brasileira e de suas relações com o jazz e o fusion da época. O nome do disco, oportunamente intitulado de Identity , não poderia ser melhor escolhido; nele, Airto reúne importante nomes da música brasileira e norte-americana e promove uma verdadeira celebração entre ritmos regionais brasileiros, improvisações e harmônicas jazzísticas. Herbie Hancock assina a produção (e também toca no disco), junto a nomes como Novelli (autor de uma das composições), Robertinho Silva (bateria e percussão), Flora Purim (voz), John Heard (contrabaixo), Louis Johnson (contrabaixo), Wayne Shorter (sax soprano), David Amaro (violão), John Willians (contrabaixo), Ted Lo (órgão). Nada menos que 4 faixas das 7 que compõem o disco são de autoria de Gismonti: 1- “The magicians”, que possui muitas semelhanças tanto estruturais quanto sonoras com “Salvador” e até “dança das cabeças”; 2- “Tales from home”, uma versão da música “Lendas” que apareceu nos discos Sonho 70 e Orfeo Novo tocada por Herbie Hancock no fender rhodes; 3- “Encounter”, versão da composição “Encontro no bar” do disco Egberto Gismonti (árvore) ; 4- “Wake up song”, que futuramente aparecerá no disco Carmo de 1977 como duas faixas – “Baião do acordar/Café”. Sobre, Academia de danças , Corações Futuristas e curta temporada nos Estados Unidos, Gismonti comenta:

“Eu vou botar tudo que me ensinaram junto. E por isso tem eletrônica. A eletrônica é por conta do Herbie Hancock. Que eu morei em Nova Iorque em 1975, 1976 pra fazer o disco do Airto Moreira, Identity. E o Herbie Hancock topou participar do disco e a gente tocou

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muito junto. E eu ia pra garagem dele, que tinha um estúdio e trouxe essas coisas pra mim, pra casa e estava tocando”

3. Dança das cabeças

A faixa de abertura do disco Corações Futuristas intitulada “Dança das cabeças” representa uma das composições deste período que mais contém semelhanças com o jazz-rock ou fusion . É também a composição de maior duração dentre as analisadas; esta versão, que se estende por 8 minutos e meio, é construída por uma sequência de seções contrastantes estruturadas ao redor de dois temas principais. É importante lembrar que a composição “Dança das cabeças” dará nome ao álbum que Gismonti gravou junto a Naná Vasconcelos em 1977. No mesmo ano, também foi registrada no álbum gravado junto ao músico norte-americano Paul Horn, chamado Altitude of the Sun , no qual estão também presentes regravações de “Bodas de prata”, “Altura do Sol”, “Carmo” e “Parque lage”. No arranjo da versão deste LP, Gismonti conserva uma estrutura muito semelhante à gravação que aqui analisaremos, com a diferença de que as seções “Tema C”, “Interlúdio” e “Interlúdio II” não ficam evidentes e claramente segmentadas como nesta versão. 58

58 Para mais informações sobre o disco Dança das Cabeças consultar a dissertação de mestrado de PINTO, Renato de Barros. Egberto Gismonti e a poética da Semi-erudição. Universidade Estadual de São Paulo. 2015. p.57-71.

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Tabela 6 - Forma de “Dança das Cabeças” do álbum Corações Futuristas (1976) 0:00 – Introdução – 18 compassos – de A e F/A 0:40 - Tema A - 32 Compassos - Tema em lá mixolídio 1:04 – Tema B – 18 compassos (frases sintetizador) 1:16 – Tema A – 32 compassos – Tema em lá mixolídio 1:38 - Tema B – 18 compassos (frases sintetizador) 1:50 - Tema A – 16 compassos (flautas)

2:11 – Ponte – 16 compassos 2:23 – Improviso de sax – 44 compassos ternários 3:44 - Convenção 3:55 – Improviso de sintetizador – 42 compassos 5:00 – Convenção

5:10 – Tema C – Ápice (sobreposição de andamentos) 5:35 – Interlúdio I – com os pífanos 6:00 – Interlúdio II – solo de imitação viola caipira 6:30 – Interlúdio III – volta dos instrumentos

6:46 - Tema A – 32 compassos 7:10 -Tema B – 18 compassos 7:22 – Tema A – 16 compassos (com pífanos) 7:30 – Coda

Logo na Introdução percebemos que a composição não estabelecerá uma pulsação rítmica ou uma coerência harmônica clara e concisa. O timbre do violão alterado pelo efeito do pedal mutron biphase executa um loop de dois acordes, que configuram uma ambientação harmônica aproximada aos acordes de Am e F/A. O contrabaixo evidencia esta ambiência harmônica caminhando entre as notas lá, mi e sol, confirmando a centricidade na região de lá. A bateria corrobora para a criação do ambiente sonoro experimental com a exploração timbrística de suas peças, com especial atenção aos pratos. Os efeitos do pedal e os timbres do sintetizador, que tem suas posições constantemente alteradas dentro do espectro estereofônico da gravação, deixam contrabaixo, violão e bateria num plano sonoro mais distante, alterando a espacialidade relativa da instrumentação e, por conseqüência, sua textura no âmbito desta unidade sonora. A passagem da Introdução ao Tema A transcorre através da progressiva aparição dos instrumentos que estavam em segundo plano e do término da aplicação dos efeitos do pedal ao violão. A atividade do sintetizador diminui mas não perde sua posição de destaque dentro da unidade, assumindo o papel de “pivô” entre estas duas unidades sonoras, Introdução e Tema A.

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Optei por nomear esta seção como “Tema A” a partir da compreensão de que a forma de “Dança das Cabeças” não mais se adequará aos padrões do template AABA, tanto pela ausência de um modelo melódico principal que poderia ser relacionado às estruturas de período, sentença ou seus híbridos, como pela inexistência de uma coesão harmônica que nos dê material para compreendermos começo, meio e fim da narrativa musical. No “Tema A”, o idiomatismo nordestino é engendrado a partir da utilização do modo mixolídio na construção do padrão principal realizado pelo violão; um padrão em terças que nos remete a uma espécie de galope nordestino. O grupo executa este tema em compasso binário com especial atenção ao contrabaixo e bateria. O primeiro realiza a figura característica formada por colcheia pontuada semicolcheia, enquanto a bateria acentua as semicolcheias na condução, semelhante ao triângulo num contexto do ritmo de baião.

Exemplo 27: Tema A de “Dança das cabeças” (1976) – (violão e contrabaixo) - (0:40 – 0:45)

Exemplo 28: Célula rítmica do baião, semelhante ao ritmo executado no “Tema A” de “Danças das cabeças” (1976)

Ainda dentro do Tema A aparece uma convenção rítmica que apresenta reminiscências do ritmo do funk norte-americano, concebidas sobre as tríades maiores G, G# e A. São oito repetições da convenção abaixo, que somadas aos compassos do exemplo acima totalizam 32 compassos.

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Exemplo 29: Convenção do final do Tema A de “Dança das cabeças” (1976) – (violão e contrabaixo) - (0:51-0:52)

Na seção nomeada como “Tema B” o contrabaixo permanece executando as notas lá e mi, persistindo na sugestão da centricidade nesta região. As frases melódicas de andamento acelerado e caráter virtuosístico realizadas pelo sintetizador e pelo violão também se constroem predominante em lá mixolídio e pentatônica menor de lá (compassos 42e 43), conjurando uma textura mais homofônica e melódica a esta seção.

Exemplo 30: Frases melódicas executadas pelo sintetizador no “Tema B” de “Danças das Cabeças” (1976) a-) frases sobre o modo lá mixolídio (1:04 – 1:09)

b-) frases sobre pentatônica menor de lá (1:09 – 1:16)

Na terceira repetição do Tema A, aos 1:50 da gravação, ganha destaque a adição das flautas transversais numa escrita em “blocos” sobre a sugestão do tema inicial. Na disposição desta melodia prioriza-se o movimento paralelo e as aberturas em intervalos de terça e sexta, assemelhando-se às práticas das bandas de pífano da região nordeste do Brasil. Tais características das práticas das bandas de pífano são atestadas pelo pesquisar Carlos Eduardo Bressani:

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“(...) Se baseia em contraponto, (na maioria das vezes paralelo) a construção das músicas se estrutura em uma abordagem preponderantemente melódica. A despeito das harmonias (...) percebemos que a condução e desenvolvimento da melodia são os objetivos principais dos músicos. Esta perspectiva melódica, somada às características ao uso dos intervalos não racionalizados, é feita com uma abordagem onde se misturam modos gregos, escalas diatônicas e não diatônicas e intervalos menores do que meio-tom criando um ambiente onde as tonalidades podem ser classificadas como relativas.” 59 (BRESSANI, 2002, p. 190)

Exemplo 31: Terceira repetição do Tema A de “Dança das cabeças” (1976) – (Flautas e violão) - (1:50 – 1:56)

Darei o nome de “Ponte” à seção que, aos 2:12, divide todo o processo de apresentação de Tema A e B, com suas específicas conformações rítmico-melódicas, de outro “episódio” do fonograma, dedicado aos improvisos de saxofone e sintetizador. Nesta seção, de textura mais homofônica, se evidenciam a sonoridade construída por uma harmonia centrada na escala simétrica de lá conhecida como “dom-dim” 60 tocada pelo contrabaixo.

Exemplo 32: Excerto da Seção “Ponte” de “Dança das cabeças” (1976) - (flautas, violão, e contrabaixo) - (2:11 – 2:15)

59 BRESSANI, Carlos E. Bandas de Pífanos de Caruaru – uma análise musical. Dissertação de Mestrado. Unicamp. 2002. 60 Escala que tem formação de semitons e tons sucessivos. Ex: Lá “dom-dim”: lá- sib – dó – réb – ré# - mi – fá# - sol – lá.

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Ao final da seção “Ponte” podemos observar, do compasso 136 até 140 do exemplo abaixo, cadências perfeitas que prenunciam o início da seção de improviso do saxofone soprano. O acorde F7 no compasso 140 funciona como dominante do próximo acorde de Bb, que através de uma cadência do tipo bII – I, retorna a ambiência de lá que se estende ao longo de toda seção do improviso como uma nota pedal.

Exemplo 33: Transição da Ponte para o Improviso de Sax em “Dança das cabeças” (1976) – (sintetizador, violão e contrabaixo) - (2:19 – 2:29)

A transição entre ponte e seção de improviso expõe um contraste de sonoridades mais contundente. Muito distante daquilo que se esperaria de uma seção de improviso “tradicional”, onde um instrumentista improvisaria sobre progressões pré-existentes de tamanhos definidos, o trecho propõe a mudança da pulsação dentro de um tempo mais estendido (o improviso dura aproximadamente 44 compassos). O violão realiza uma espécie de acompanhamento sobre arpejos, a harmonia “vagante” não pressupõe uma chegada a um repouso, enquanto as quintas paralelas apoiadas pelo arp string parecem caminhar sobre a sonoridade do modo lá frígio, justificado tanto pela nota pedal do contrabaixo (lá) e as diversas aparições do si bemol. Os efeitos do mutron biphase estão presentes durante o improviso e acompanham o aumento da densidade rítmica proposta pelo improvisador, que no fim do improviso expande a sonoridade de seu solo através da exploração de outros efeitos de seu instrumento. Embora seja possível identificar esta pré-estrutura dos elementos musicais, a textura desta seção se desenvolve num caráter mais próximo a noção de “camadas” pela independência ritmo/melódica que cada instrumento cria ao longo da seção e pelos sons diferenciados justapostos, que se centram mais em suas possibilidades timbrísticas do que nas sequências de alturas definidas.

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A partir de 3:32 cada instrumento gradativamente diminui sua atividade ocasionando uma modificação na densidade da textura criada. Figuram o contrabaixo mais à frente dentro da reverberação do espaço acústico, enquanto violão e sintetizador permanecem realizando apenas uma nota repetidamente. Desenvolve-se a partir do estabelecimento desta pulsação marcada pelas notas do violão uma convenção que se assemelha bastante as características estilísticas do jazz-rock dos anos 1970. Construída numa textura homofônica (assim como boa parte das “convenções” que aparecem nas análises deste trabalho), este trecho possui uma alteração da métrica (compassos simples para composto) e faz uso da sonoridade da pentatônica menor de lá e dos acordes formados por quintas paralelas.

Exemplo 34: Convenção característica de “Dança das Cabeças” (1976) – (melodia principal e linha do contrabaixo) - (3:44 – 3:54)

A seção de improviso do sintetizador decorre da sonoridade sugerida na convenção anterior. De duração menor, esta improvisação apresenta outra proposta harmônica, tendo novamente como centro a nota lá, circundada de diversas maneiras por contrabaixo. Sobre esta espécie de sonoridade “pedal” centralizando-se em lá, ouvimos, num pequeno trecho da seção, a utilização dos acordes perfeitos maiores Fá e Sol. Esta sequencia de acordes, que podem ser descritos como as funções bVI (F) e bVII (G) sobre o pedal de lá, fornecem ao excerto uma progressão modal relativa ao modo eólio. No restante da seção, ouvimos um padrão com a seguinte sequencia de acordes: A – A – Bb – A, novamente modal, enfatizando sugestão sonora frígia através da alteração b2 sobre lá.

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Exemplo 35: Trecho do improviso de sintetizador com a sequência de acordes A – G – F – A em “Dança das Cabeças” (1976) - (4:10 – 4:23)

Exemplo 36: Trecho do improviso do sintetizador com a sequência dos acordes A – A – Bb – A em “Dança das cabeças” (1976) - (4:35 – 4:48)

Como demonstrado, as duas seções de improviso se diferem bastante em estilo e caráter. Enquanto o saxofone se comporta de maneira mais estendida, num estilo de improviso que nos remete ao free jazz , com frases longas e exploração dos efeitos do timbre de seu instrumento, Gismonti realiza um improviso caracterizado por motivos curtos e densos, explorando principalmente as notas e a sonoridade da escala blues de lá e de sua pentatônica maior. Aos 5 minutos da composição, temos um contraste dentro desta unidade sonora causado por uma “oposição simultânea” onde se fundem toda a estrutura da convenção característica com a continuação da atividade do improvisador levando- nos, logo em seguida, ao que chamei de “Tema C”. Este tema, além de funcionar como uma seção em que todos os instrumentistas participam, se manifesta como o ápice do arranjo, culminando na intensificação de padrões melódicos de andamento rápido e de sobreposição de pulsações diferentes numa seção claramente convencionada. Trata-se também de um trecho musical extremamente curto e de grande atividade rítmica e melódica.

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É possível observar três diferentes momentos deste excerto, demonstrados no exemplo 37. O primeiro grupo melódico (Ex.37-a) executado por sintetizador e violão sugere acentuação de “3-3-2”, contrastando com o padrão realizado pelo contrabaixo, que se apoia, primeiramente, nos contratempos do quaternário. A nota “mi” evocada pelo sintetizador no fim da seção anterior perdura durante este primeiro exemplo, através do sutil crescendo que ocorre na dinâmica. No segundo grupo (Ex.37-b) modifica-se a textura preponderantemente homofônica da sessão anterior para uma textura contrapontística, através da continuidade da acentuação das frases do exemplo 37-a tocadas agora sob uma frase melódica do contrabaixo dividida em grupos de três fusas. A sobreposição de métricas diferentes gera uma polirritmia que é ajustada, no exemplo 37-c (por este motivo, preferi transcrevê-lo no compasso 6/8) pela sugestão ternária da melodia principal.

Exemplo 37: Três momentos distintos na seção “Tema C” de “Dança das cabeças” (1976) – (melodia principal e linha do contrabaixo). a-) (5:14 – 5:16)

b-) (5:23 – 5:28)

c-) (5:28 – 5:33) Dm 7(11) C#m 7(11) Cm 7(11) Bm 7(11) Bbm 7(9) D7(11,13)

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No final deste Tema C, localizado aos 5:35 da gravação até 6:46, se formará um “episódio” de volta para o Tema A, no qual reconheço três momentos diferentes, nomeados de “Interlúdio” I, II e III. No primeiro momento (5:35 até 6:00) percebemos o contraste da textura causado pelo cessar dos elementos musicais anteriores. A condução da bateria executando um ritmo de baião fornece o sustento das inserções melódicas dos outros instrumentos. Adicionam-se primeiramente as flautas (Ex.36-a), restabelecendo a alusão à sonoridade dos pífanos, na execução de uma melodia ascendente apoiada na escala de lá mixolídio com a quarta nota aumentada. Em seguida, como numa resposta, violão executa um padrão de quatro notas sobre a estrutura de uma escala de tons inteiros (Ex.39-b) partindo das notas de um acorde diminuto. É importante frisar que novamente temos a recorrência ao pedal em lá, marcado pontualmente pelo contrabaixo.

Exemplo 38: Interlúdio I de “Dança das cabeças” (1976) a-) – Frase das flautas – lá mixolídio. (5:38 – 5:41)

b-) Frase do violão – escala de tons inteiros (5:47 – 5:51)

Aos 6:03 aproximadamente, temos novamente um “corte” entre uma sessão e outra. Em seu início, ouvimos somente o pontilhado do violão aludindo à sonoridade da viola caipira enriquecida pelo efeito de um reverb . Algumas convenções rítmicas de contrabaixo e bateria intercalam-se durante estes 30 segundos, centralizando-se na marcação insistente da nota “lá”. Esta melodia (Ex.40) se configura numa sequência de notas repetidas e rítmica constante, mais uma vez sobre a escala de lá mixolídio com a quarta nota aumentada.

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Exemplo 39 - Solo de imitação de viola caipira sobre a escala de lá mixolídio com #4 em “Dança das Cabeças” (1976) - (6:10 – 6:16)

O terceiro momento deste “Interlúdio III”, a partir de 6:30, consiste numa chamada para o retorno ao “Tema A”; o contrabaixo repete os padrões em ritmo de baião tocando as notas fundamental e sétima menor da escala de lá, enquanto os outros instrumentos interagem numa improvisação livre, gerando uma sonoridade disposta numa textura de camadas, num crescente de dinâmica e ampliação de seu espectro sonoro. Em seguida temos um retorno a sequência formal ABA e uma finalização através de uma espécie de “coda” construída fundamentalmente com acordes maiores. Por encontrarmos novamente os acordes bVII, bVI e bII, podemos entender esta sequencia de acordes como um misto entre as sonoridades do modo eólio e mixolídio. No exemplo abaixo, as funções em vermelho se relacionam ao modo mixolídio e as em azul ao modo eólio.

Exemplo 40: Coda Final de “Dança das cabeças” (1976) - (7:31 – 7:39)

Embora a estrutura da composição pareça se aproximar de uma forma episódica, a partir de uma perspectiva geral, é possível sugerir a divisão deste fonograma em três momentos distintos. O primeiro deles consiste na apresentação dos Temas A e B em uma pulsação rítmica regular, que persiste no caráter sonoro

125 proporcionado pela escala mixolídia, ambiência que nos transporta para uma sonoridade regionalista. O segundo momento tem início na seção “Ponte”, no qual toda a definitude rítmica e harmônica presente nos temas anteriores começa a se desfazer a partir da proposição de um padrão construído pela escala simétrica. Neste segundo momento temos como elemento principal a convenção “matemática” característica, costurada entre os improvisos de sax e teclado. Chamo a atenção para o aspecto crescente do background harmônico do improviso de sax que nos proporciona uma idéia de tempo afluente que parece se encaminhar para uma resolução que nunca se efetiva. Esta sensação é enfatizada pelo aspecto reiterante do padrão realizado pelo violão no improviso de sax, reforçado pelo movimento de quintas paralelas. O background do improviso de sintetizador, de frases curtas e pontuais se desenrolam sobre a nota pedal lá (que parece ser a região tonal mais importante da composição), contrapondo o aspecto crescente que não se resolve do improviso anterior. Este segundo momento se finda a partir do ápice no “Tema C”, no qual retoma-se uma estrutura rítmica mais “medida”, em que bruscas rupturas acontecem em um curto espaço de tempo. Estas seções preparam a entrada dos pífanos e a seção do solo de violão. Por fim, o terceiro momento, de retorno as proposições A e B iniciais.

“Dança das cabeças” é um exemplo bastante expressivo do tipo de composição e fazer musical coletivo que aparecerá nos discos de Gismonti a partir de 1974. Neste novo tipo de poética musical o jogo entre “abertura” e “fechamento” se desenvolve dentro de uma narrativa complexa que não opera mais com o binômio “tensão”, “resolução”. O desenvolvimento das seções não se conforma na horizontalidade de “O sonho” ou de “Ano Zero”, mas também não chegam a propor sugestões musicais completamente fragmentadas e imagéticas, como acontece na estrutura formal da instigante canção “Trem Noturno”, que analisaremos em seguida. 61 A narrativa musical também nos sugere a transposição dos elementos regionais (ritmo de baião, linguagem do solo de violão imitando a viola caipira) para

61 (lembrar que o improviso de teclado em “Trem noturno” acontece antes da abertura da seção “B”, divididas em “cenas” por conta de suas alusões a acontecimentos “extra-musicais”, como coros de crianças e sons de torcida de futebol).

126 um cenário futurista e experimental, movendo-os para um momento e um lugar no tempo deslocado de suas raízes e origem. Sua forma “episódica”, sua complexidade rítmica e seus momentos arranjados em “convenções” confirmam uma aproximação e convergência com a sonoridade do jazz- rock ou fusion. Observamos o parâmetro harmônico como elemento geral sobre o qual se constrói toda a atividade experimental dos músicos, mas este parâmetro está associado agora à “centricidade”, observada na ambiência da tonalidade de lá sob suas múltiplas derivações – lá mixolídio, pentatônicas de lá menor, lá eólio, lá frígio, etc. Em relação aos contrastes entre as seções observamos que há uma limitação na aplicação de oposições simultâneas, que aparecem mais claramente apenas no retorno ao Tema A na seção “Interlúdio III”. Em geral, no restante da composição pudemos ver que elementos são utilizados como condutores entre uma seção e outra ou se fundem passageiramente a novos elementos. Importante destacar que a mixagem e o estabelecimento da proporção de espaço e volume que cada instrumento ocupa e adquire no espectro sonoro do fonograma tem total influência na elaboração destes contrastes. Estas características fazem com que esta composição retome em outros termos, uma noção de “estabilidade” e “previsibilidade” que não geram uma “imobilidade”, nos termos de uma construção narrativa tradicional, corroborando a idéia da transformação do artista neste período e a expansão das dimensões da “perfomance” da música popular brasileira.

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4. A viagem no “Trem Noturno” de Egberto Gismonti

A faixa “Trem Noturno”, presente no álbum Corações Futuristas é outro exemplo das semelhanças da música de Gismonti desta época com o gênero musical jazz rock/fusion. É também um dos poucos exemplos de canção que se utiliza destes tipos de recursos, o que a torna uma amostra instigante da transformação da forma canção tradicional AABA. A letra, escrita por Geraldo Carneiro, suscita um jogo de palavras de estímulos visuais, onde se destacam as contraposições entre os termos “luz” e “negro”, “claro” e “noite”.62 A faixa também possui longa duração: são quase 8 minutos de distintas seções instrumentais. No início, voz e piano executam a seção cantada; em seguida abre-se espaço tanto para seções de construções melódicas sobre ostinatos em ritmos complexos como para a improvisação de piano sob uma levada que nos remete ao frevo, reforçadas novamente pela adição das flautas na execução de uma melodia bastante característica ao gênero. Sobrepõem-se à sonoridade “regional” da flauta a sonoridade dos sintetizadores costurando outros ostinatos “matemáticos”, amparados pelos efeitos das cordas e por colagens sobrepostas de sons gravados de estádio de futebol e crianças brincando. 63 Na tabela abaixo apresentamos o nosso entendimento da forma de “Trem Noturno”. As seções denominadas como “convenções” são assim chamadas por possuírem materiais semelhantes aqueles encontrados em “Dança das cabeças”; padrões rítmicos ou ostinatos que se repetem, muitas vezes tocados por todos os instrumentos, gerando um “momento” unificado de textura homofônica com métrica ou padrões rítmicos considerados mais “complexos”.

62 Você sabe que a luz/é irreal/ na escuridão/desse trem/e procura decifrar impérios no centro da noite/quando o silêncio enegrece a nudez/ ao luar/Você quer chegar/como a manhã/ no primeiro trem/ do verão/ o seu sono cego sem estrelas é de novo negro/ e a solidão é uma forma de sair ao luar/ Você vai provar/ a escuridão/Pelo fim da noite no cais/ a não ser que alguém apareça/pra falar de sonhos/ e revire as estrelas como Galileu/ ao luar. 63 Sobre a relação com estas experiências canção no âmbito da canção o músico comenta: “muito texto, cheio de poesia, literatura, pouca música...Em Corações Futuristas há apenas duas letras, uma do baixista Novelli, o “Baião do acordar” e outra de seu parceiro Geraldo Carneiro, “Trem noturno”. A música, segundo Egberto, combinava com o tipo de atitude das letras, sempre sugerindo as coisas, nunca chegando lá. (SOUZA, 1976). Na mesma reportagem, Tárik de Souza, corrobora a inclusão destes novos elementos na música de Gismonti afirmando que o uso de instrumentos de orquestras não são tão essenciais neste disco: “Da mesma forma, a ampla experiência erudita é apenas "um dos dados" da nova música do compositor”, (IDEM)

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Tabela 7 - Forma de “Trem noturno” do álbum Corações Futuristas (1976)

0:00 – Introdução – 8 compassos (piano) 0:30 – Seção A – 16 compassos (piano e voz) 1:42 – Seção A – 18 compassos (grupo inteiro)

3:00 – Ponte - 20 compassos (grupo inteiro)

3:25 – Improviso - 70 compassos (trio + flautas)

4:20 – Convenção I – Ostinato na região de mi

4:56 – Interlúdio I – Efeitos entre lá e fá no contrabaixo

5:28 – Interlúdio II – Vozes de crianças (piano)

5:45 – Convenção II – Politonalidade

6:12 – Seção A – 16 compassos (piano e voz)

Trarei aqui alguns apontamentos sobre as sugestões harmônicas que se constroem na “Introdução” e nas “Seções A” da canção. Na primeira, a relação de terça entre tônica menor e submediante maior (Em e C) prenuncia a trama harmônica que se desenrolará ao longo da Seção A. Nas estruturas dos acordes tocados por Gismonti destacam-se intervalos de segunda maior e distribuições quartais de acordes. Destaco a cadência do tipo eólio (bVII – bVI 7M – Im) para a entrada na Seção A, que aparecerá ao longo da música.

Exemplo 41: Introdução de “Trem Noturno” (1976) - (00:00 – 0:31)

Esta pequena Introdução é executada ad libitum 64 pelo pianista, tipo de recurso interpretativo que fará parte também da matriz de acompanhamento durante a Seção

64 como "a piacere", "senza tempo", "a capriccio", significa "à vontade", livremente, conferindo ao intérprete certa liberdade no andamento de uma passagem ou cadência.

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A. Para caracterizar com mais profundidade este tipo de acompanhamento realizado por Gismonti e diferenciá-lo de um acompanhamento harmônico baseado na verticalidade dos acordes, recorro às definições dadas por Schoenberg em seu livro “Fundamentos da composição musical”. O tipo de figuração "arpejada" do estilo romântico foi uma técnica muito utilizada no século XIX. Além desta característica de espaçamento que utiliza uma extensa região do piano em disposições acordais variadas (não seguindo uma alteração de espaçamentos abertos e fechados) Gismonti parece se valer também do "ritmo complementar 65 (...) dado pela relação entre as vozes, uma preenchendo os vazios da outra, e mantendo, assim, o movimento (isto é, a subdivisão regular do compasso). (SCHOENBERG, 1996. p.110) Assim, no início da Seção A, o pianista sublinha as mudanças harmônicas com pequenas pausas e preenche o vazio da voz principal com um acompanhamento que não perde de vista a figura rítmica baseada em semicolcheias. Lembrando novamente que a interferência do recurso ad libitum em seu modo de interpretar contribui com o caráter “volátil” e “fluído” da melodia principal. Para exemplificarmos os acontecimentos dos 16 compassos da Seção A, utilizaremos novamente a referência de Freitas sobre período, sentença e formatos híbridos. Desta vez, a estrutura da Seção A de “Trem noturno” parece se aproximar do modelo da sentença:

Exemplo 42 – Estrutura de uma sentença

A já apresentada relação de terceira entre os acordes de Em e C é, durante a Seção A, ligeiramente modificada pela alteração do acorde de C para menor, no compasso 10 do exemplo abaixo, sobre a palavra “irreal”:

65 Bons exemplos deste tipo de acompanhamento aparecem na op. 31 nº2 III movimento de Beethoven, bem como nas “Canções sem palavras” de Mendelssohn, op. 53 nº1 e op. 85 nº4

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Exemplo 43 – Divisão do “Formato Híbrido” dos 16 compassos da Seção A de “Trem noturno” (1976)

a) Inciso I (0:29 – 0:44)

b) Inciso I 1 (0:46 – 1:00)

Atinge-se, no compasso 16, o acorde de Eb 7M através de uma cadência de engano, onde se encontra também a nota mais aguda da melodia sob a palavra “procura”. Este acorde de Eb 7M acaba por possuir uma sonoridade ambígua, se relacionando ao mesmo tempo com o modo menor e maior sugerido pelos acordes de C e Cm. Se visto como pertencente ao modo maior, caracteriza-se por um empréstimo modal; se visto em modo menor se torna o repouso da função tônica do acorde bIII 7M . Este acorde caminha novamente ao centro tonal de C (ou dó menor?) através do acorde da supertônica D, enfatizando a cor da alteração entre as terças maiores e menores de C sobre a palavra “noite”. A nota “mi bemol”, não coincidentemente a terça menor de C, aparece no acompanhamento inferindo uma sonoridade “frígia” para o acorde de Ré. O acorde B 7(b5, b9) aparece como dominante da tonalidade inicial simulando uma possível cadência perfeita que não chega a se realizar.

131 c) Segmento de contraste (1:01 – 1:13)

O acorde Im é preparado finalmente e novamente por uma cadência do tipo eólia bVI – bVII – Im. d) Segmento Cadencial (1:13 – 1:33)

A partir de 1:42 a Seção A é reapresentada com a entrada da bateria e do contrabaixo, que modifica o tipo de acompanhamento pianístico “ad libitum” anterior e executa uma linhas melódica junto à mão esquerda do piano, funcionando como um elemento “pivô” entre as duas unidades sonoras. Assim, o piano apresenta uma textura mais vertical, utilizando basicamente a divisão de colcheias como figura rítmica deste novo motivo de acompanhamento. O principal elemento diferenciador dos momentos apresentados é a transformação da compressão do tempo e da pulsação, que em um primeiro momento se baseia num acompanhamento de caráter livre e num segundo momento se encaixa numa métrica constante, se alinhavando aos outros instrumentos. No entanto, se o parâmetro do presente contínuo da pulsação permanece fixo, a adição de alguns

132 elementos e compassos de ruptura dentro deste ciclo de 16 compassos contribui para romper com a noção de continuidade do discurso musical. No item “a” do exemplo 44, observamos novamente a utilização do acorde de Cm (a homônima da submediante maior). A duração do acorde de Eb 7M em sua disposição ternária nos compassos 32 e 33, junto ao compasso destacado de vermelho no qual aparecem dois acordes de caráter dissonante inseridos na trama harmônica (aos 2:13), resultam num alargamento do inciso I, criando uma sensação súbita de ruptura com a pulsação quaternária estabelecida anteriormente. Os acordes aumentados que aparecem no compasso 34 têm como principal característica o potencial de agir como intermediação e correspondência “entre várias vizinhanças sem afinidades diatônicas evidentes (...) destacam-se as vizinhanças de mediante e submediante” (FREITAS, 2012, p.224). Coincidentemente, as possibilidades de resolução dos dois acordes escolhidos pelo compositor não incluem nem a região de Mi menor, nem a de Dó maior, intensificando assim a sensação de fragmentação e de suspensão das sugestões sonoras. 66

Exemplo 44 - Divisão e adições ao “Formato Híbrido” dos 16 compassos da reapresentação da Seção A de “Trem Noturno” (1976) - (1:55 – 2:18) a) Inciso I

No exemplo abaixo, no lugar da cadência de engano do exemplo anterior (no momento em que tínhamos um Am7-D7; “IIm7 – V7” de Sol maior caminhando para Eb7M) temos uma tonicização sobre a tonalidade de Ré Maior que se conclui sobre

66 O acorde de Ab(#) pode encaminhar-se para Db (M ou m), F (M ou m) e A (M ou m); o acorde de Gb(#5) para B (M ou m), Ebm (M ou m) e G (M ou m).

133 após a palavra “verão”. Interessante notar que a tonicização nesta região recai sobre a única palavra de caráter “solar” da poesia. b-) Inciso I 1 (2:19 – 2:31)

Com a resolução em Ré maior, o acorde de Eb7M do compasso 39 tem sua função estratégica na trama harmônica modificada: de um “acorde de chegada” pós- cadência de engano, transforma-se em um acorde de “passagem”, funcionando como III grau de Dó menor. Na letra, a ênfase no “é de novo negro” ajuda a enfatizar esta possível relação. c) Segmento de contraste (2:31 – 2:43)

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A sequência da progressão segue novamente concluindo numa cadência eólia bVI – bVII. d) Segmento Cadencial (2:44 – 2:57)

Dei o nome à seção seguinte de “Ponte 1” por se tratar de um momento que divide claramente a composição em duas partes distintas; a canção e a seção instrumental. Enfatizo o caráter estrutural rítmico contraposto à construção melódico-harmônica da seção anterior, que manifesta novamente semelhança com os elementos da estética do jazz rock/fusion. A utilização dos padrões construídos sobre intervalos de quintas a partir das notas da escala de mi menor natural e a consequente ausência das terças leva estas estruturas a uma tendência modal que se aproxima ainda mais a tipo de sonoridade. 67 O contraste entre Seção A e Ponte acontece através de uma ruptura textural e timbrística elaborada de forma sutil; é na ressonância das cordas do fim da Seção A que surge precisamente a convenção executada apenas pela região grava do piano. No decorrer dos 20 compassos, que se configuram num total de

67 Aqui cabe lembrar Philip Tagg, autor que dedica boa parte de seu livro “Everyday Tonality” para o estudo da harmonia do rock e pop pós-1960, nas quais incluem-se as progressões de acordes maiores do tipo bVI, bVII, Im. Tagg argumenta que as progressões eólias são frequentemente usadas como um ostinato harmônico repetido e substituem as cadências do tipo V- I, sendo facilmente tocadas na técnica barré de guitarra (ou seja, tocar com as famosas “pestanas”) (TAGG, 2009). Alf Bjonemberg faz um apontamento sobre o caráter subjetivo das canções dos anos 1960/1970 que utilizaram deste modo que pode nos interessar particularmente: “Um notável número de suas letras lida com temas como fascinação e medo da civilização moderna e tecnológica, desconforto com o futuro e ameaça de guerra, alienação em geral ou a situações particulares, humores estáticos de espera e premonição, eventos históricos e místicos. No geral, as letras circunscrevem um campo relativamente uniforme de associações que podem ser caracterizadas como tais conceitos: modernidade, frio, espera, incerteza, tristeza, êxtase, infinitude de tempo e de espaço”. (Bjornberg, 1984, p.382)

135 cinco repetições do exemplo abaixo, a entrada dos outros instrumentos amplia a massa sonora numa textura homofônica:

Exemplo 45: Estrutura da Ponte de “Trem noturno” (1976) (2:59 – 3:05)

Até aqui, o contrabaixo e a bateria interferiram programaticamente sobre a estrutura das seções. As linhas de contrabaixo acompanharam, rítmica ou melodicamente, a mão esquerda do piano ou funcionaram como apoio harmônico para a estrutura da ponte realizada pelo piano, caminhando sobre as notas da escala de mi eólio em terças. Aos 3:25 deflagra-se uma contraste mais evidente na transição para o improviso de piano. Este solo, realizado sobre a progressão harmônica V7/IIm 7 – IIm 7 – V 7 – I, na tonalidade de Sol Maior, sugere, assim como em “Dança das cabeças”, o ritmo de um frevo. Tal semelhança é verificada no tipo de preenchimento da levada pela bateria com a caixa e pelo comping que o piano realiza, que segue aproximadamente as acentuações das semicolcheias exemplificadas abaixo:

Exemplo 46: levada de frevo na caixa-clara (CORTES, 2012, p.146)

Exemplo 47: Primeiros 8 compassos da seção de improvisação de “Trem Noturno”. (3:25 – 3:30)

Egberto parece recorrer às fórmulas específicas de acompanhamento oriundas do jazz, semelhantes às estruturas que apareceram na terceira versão de “O sonho”.

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Estes tipos de “acordes de apoio” são voicings que partem das 7ªs ou 3ªs dos acordes, descritos por Mark Levine no livro “The jazz piano book”: “voicings que dão liberdade para a mão direita improvisar (...) sua mão esquerda dá apoio harmônico para a mão direita tocar uma linha sobre, mesmo com a falta da fundamental do acorde. Art Tatum, Errol Garner e Ahmad Jamal ocasionalmente tocam estes voicings sem fundamental e no meio da década de 1950 Red Garland os tocou frequentemente. Bill Evans e Wynton Kelly desenvolveram a técnica anos mais tarde”. (LEVINE, 1989, p.41) Os motivos melódicos da improvisação misturam a sonoridade blues e mixolídia, alternando os momentos onde as notas blues b3 e b5 (sib e réb) ou a b7 (fá natural) ganham maior destaque. Em um dado momento da improvisação um motivo melódico toma forma e é executado junto aos contracantos de linhas melódicas sobrepostas da flauta. O caráter “regionalista” é logo contrastado com a seção seguinte, aos 4:20, na chamada “Convenção 1”. Esta seção, de caráter bastante semelhante à “ponte”, se constrói sobre um padrão de colcheias em torno da região de Mi, transitando em dois de seus modos: maior e frígio. A região grave do piano no início do padrão sustenta a entrada dos outros instrumentos numa ampliação da massa sonora da textura homofônica que é perturbada pela incidência de motivos improvisados na flauta, efeitos do arp odissey e pelo som gravado de uma torcida de futebol, resultando numa textura de camadas pela sobreposição de diversos acontecimentos musicais. 68

68 O disco Corações Futuristas é realmente uma extensão do Academia de danças; em entrevista, Gismonti fala sobre o fato de terem utilizado a gravação de uma torcida no futebol como material para o disco, mas confunde a ocorrência citando como resultado desta experiência uma das composições do Academia de Danças, quando de fato aparece nesta canção “Trem Noturno” que estamos analisando. Aqui, parte da entrevista: “(Gismonti): No Academia de Dança a gente foi gravar o Maracanã. Porque tem dois momentos que tem que ter a gritaria da torcida. Tem duas vezes. Está gravado duas vezes, Canal Cem. O povo ali a gente acabou conseguindo, no Canal Cem, reação verdadeira, porque eles sabiam gravar. Porque nós fomos. Eu com a equipe da Odeon. Fomos num Fla x Flu, já fiquei danado da vida porque o Fluminense perdeu. E eu digo: “esses gols aí comemorando o gol do Flamengo no meu disco vai pegar péssimo”. “O cara, que péssimo? É o som que interessa”. Mas a gravação ficou uma porcaria. Porque isso tem que saber fazer, gravar… Aí acabou que a gente conseguiu com o pessoal do Canal Cem. Mas aquilo ali é torcida. (Charles Gavin) Que música? (Egberto Gismonti): Seria “Núpcias”. Ou seria o “Porta Encantada”, eu não me lembro direito. Uma dessas duas aqui, ó, ou é a celebração de Núpcias… Eu acho que é “Celebração de Núpcias”, viu. Acho que é, não estou lembrando muito bem, não. É uma que Robertinho toca, que nós chamávamos de rock na época.

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Exemplo 48: Convenção da Seção B de “Trem Noturno” (1976) - (4:20 – 4:24)

Em seguida, aos 4:56 do fonograma, surge uma seção a que dei o nome de Interlúdio. De andamento mais lento esta seção consiste basicamente numa improvisação livre, sendo que a única linha estável se dá com o contrabaixo que toca repetidamente duas notas em sequencia: lá e fá. Elementos da seção anterior permanecem e outros são adicionados à trama sonora, resultando numa oposição simultânea entre duas camadas sonoras dissociadas, numa fusão timbrística contrastante. Destaco as escalas executadas pelo arp odyssey que aparentemente têm suas alturas modificadas em tempo real com os recursos de pitch bend , que consistia apenas em um botão giratório sem qualquer indicação precisa da alteração da nota tocada. No Interlúdio II, aos 5:28, observamos um contraste de sonoridade através de um corte repentino. O piano executa alguns improvisos sobre dois acordes. Desta vez os ruídos de vozes de crianças sobrepõem-se aos desenhos rítmicos do piano resultando novamente em oposições simultâneas que desta vez, parecem não se fundir. Aos 5:45 da composição, a última parte desta sequencia de seções instrumentais. A última parte desta sequencia destas seções instrumentais aparece numa convenção que tem o que podemos arriscar chamar de uma estrutura “politonal”: executam-se arpejos descendentes de acordes maiores dentro da fórmula de compasso “5/4” na seguinte ordem: fá, mi, ré, dó, si, lá, sol, fá#. Mão esquerda do piano e contrabaixo tocam os arpejos maiores sem a terça partindo de um semitom abaixo na ordem fá#-fá-mib-réb- dó- sib-láb-sol.

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Exemplo 49: Convenção II de “Trem noturno” (1976) - (5:44 – 5:48)

Um dado comum verificável em “Trem Noturno” e também em “Danças das cabeças” é o estabelecimento de uma espécie de “centro” tonal independentemente da ausência de uma coerência harmônica. Enquanto “Dança das cabeças” se orientou pela atração à tonalidade de lá, “Trem Noturno” parece ter propensão à região de Mi. A indicação deste tipo tratamento “harmônico” se aproxima ao conceito de “música cêntrica” – que utiliza notas ou classes de notas como centro - de Joseph Straus, no livro Introdução a teoria pós-tonal . Uma peça cêntrica pode não ser tonal, mas toda peça tonal é também, cêntrica: “Na ausência da harmonia funcional e do encadeamento tradicional, os compositores usam uma variedade de meios contextuais de reforço. No sentido mais geral, notas que são usadas freqüentemente, sustentadas em duração, colocadas em um registro extremo, tocadas ruidosamente, e acentuadas rítmica ou metricamente tendem a ter prioridade sobre notas que não tem aqueles atributos”. (STRAUS, 2000, p.105) De um modo geral, duas concepções ficam bastante evidentes nesta análise. Primeiramente a concepção e a utilização do encadeamento harmônico ambíguo, sugerindo um trânsito das regiões da mediante incorporado em grande medida sobre a incerteza do mesmo, pela troca entre os acordes de C 7M e Cm. Este encadeamento harmônico é construindo sobre parâmetros de sonoridades mais do que um caminho lógico de encaminhamento de vozes. As sugestões sonoras centradas na região de Mi ora se utilizam de acordes sem terças, se aproximando da linguagem do jazz rock, como demonstrado na seção chamada “ponte”, ora se situa em um das linhas melódicas que constroem o politonalismo da última cena. Em segundo lugar, temos aqui mais uma vez a concepção da modernidade versus tradição, na combinação de recursos da tecnologia (com o uso do Arp odyssey, Arp String e Space echo ) com a retomada de uma melodia de caráter regionalista e das improvisações de flauta num mesmo tecido sonoro.

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A fragmentação do arranjo em seções distintas que não se encaixam em uma sequencia linear, através da maior quantidade de oposições simultâneas e cortes mais significativos entre as sonoridades das unidades, evidencia uma certa “incapacidade” da linguagem de se articular a uma experiência instalada no tempo, o que, de certa forma parece coincidir com o tipo de construção formal característica do pós-1970. 69 O moderno e a tradição são referências que se sobrepõem, sem passado ou memória. A perda do sentido unívoco de certos elementos musicais dentro do arranjo permite que ele transcenda sua subjetividade sonora para imagens projetadas na imaginação do ouvinte. Não se trata de uma narrativa linear, mas de uma narrativa que enfatiza o presente de cada momento, intensamente. Sobre estas imagens, Tárik de Souza e Gismonti dialogam: “(...)Vicejam, alternados, os climas. “Por exemplo, para compensar o fechamento da letra de Trem Noturno, usei um corinho de festa de crianças". Desses humores contrastantes, nasce o espírito sonoro da nova gravação” (SOUZA, 1976)

5. A recriação no “pianismo de Gismonti”: O exemplo de “Ano Zero”

“Ano Zero” é a faixa de abertura do disco Água e Vinho de 1972. Trata-se de uma canção bastante distinta esteticamente das que foram apresentadas até agora, pois se contrapõe tanto à sonoridade “monumental” de “O sonho” ou de “Janela de Ouro” como à experiência desconstrutiva de “Trem Noturno”. Sua forma consiste numa alternância entre “A-B”, na qual “B” compartilha a estrutura da seção nomeada “Interlúdio”. A sonoridade resultante desta versão é conseqüência da junção timbrística e textural de piano e cordas. Daremos especial atenção ao que, ao meu ver, é a principal contribuição na construção da sonoridade de “Ano Zero”: o tratamento pianístico que Gismonti confere à cada uma de suas versões.

69 “transformação da realidade em imagens e a fragmentação do tempo em uma série de presentes perpétuos são traços presentes na pós-modernidade”. (JAMESON, 1982, p.4)

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Tabela 8 - Forma da primeira versão de “Ano zero” (canção) do álbum Água e Vinho (1972)

0:00 – Introdução – 8 compassos (instrumental) 0:18 – Seção A - 18 compassos (letra) 0:51 – Interlúdio = Introdução – 8 compassos (instrumental) 1:05 – Seção B = Interlúdio – 8 compassos (com letra)

1:20 – Seção A – 18 compassos (letra) 1:54 – Interlúdio – 8 compassos (instrumental) 2:08 – Seção B = Interlúdio – 8 compassos (com letra)

2:23 – Seção A – 18 compassos (instrumental - modulação) 2:56 – Coda Final = Interlúdio – 8 compassos (instrumental)

Na Introdução de oito compassos, após uma chamada do piano na região da dominante da tonalidade de Ré Maior (lá), dá-se início a uma sequência rítmico- harmônica realizada por piano e contrabaixo, seguida da entrada das cordas, construída sobre os acordes do modo de ré mixolídio. Abaixo os oito compassos da seção onde estão exemplificados contrabaixo, linha melódica principal das cordas e piano. 70

Exemplo 50: Introdução da primeira versão de “Ano Zero” (1972) a-) (0:02 – 0:09)

70 No compasso 7 do exemplo, no terceiro pentagrama, a frase executada pelas cordas é igual a melodia da Introdução da composição de “Asa Branca”.

141 b-) (0:10 – 0:16)

A transição entre Introdução e Seção A ocorre sem grandes variações da textura apresentada. Nota-se somente a troca de instrumentação nos oito primeiros compassos e a entrada de percussão e voz feminina, junto ao contrabaixo, piano e voz masculina. Pode-se dizer que a melodia da Seção A se aproxima do formato de “sentença”, dividindo os oitos primeiros compassos (demonstrados no exemplo seguinte) em “inciso” e “inciso 1 ”. Ambas resoluções (nas palavras “com” e “nada”) estão na terça da dominante, que sofre sutis alterações no acompanhamento do piano, variando entre terça maior e terça menor. A sonoridade resultante da harmonia desta seção nos chama atenção por dois motivos. Primeiramente, podemos observar que todos os acordes dispostos são maiores, sem alterações ou adições de notas. Em segundo lugar, os movimentos paralelos entre eles, bem como o emprego de um acorde “bIII” faz com que o ouvido se desprenda da intenção mixolídia da Introdução, nos levando a um universo harmônico mais próximo, ao meu ver, da harmonia do modo dórico. Neste sentido, trago novamente o trabalho de Philip Tagg a fim de reforçar a aproximação deste tipo de sonoridade com este modo, único em que os acordes dos graus bIII e IV são maiores. Não obstante, o bVII e o V (com sua ambiguidade entre maior e menor, revelada, por acaso ou não na própria estrutura pianística de Gismonti); a terça de picardia no acorde I, faz com que este procedimento se assemelhe ainda mais as trocas de “harmonias dóricas” por harmonias da pentatônica menor (I, bIII, IV, V, bVII): “Com a tríade do quinto grau também alterada, a tríade maior passa a existir no quinto graus da pentatônica menor, mas a harmonia continua relembrando a dórica,

142 porque como nós notamos, é o único modo que tem tríades maiores no bIII e IV”. 71 (TAGG, p. 118)

Exemplo 50: Primeiros 8 compassos da sentença da Seção A da primeira versão de “Ano zero” (1972) a-) Inciso (0:17 – 0:24)

b-) Inciso 1 (0:25 – 0:32)

71 Tagg adiciona importantes informações sobre as terças de picardia: “A substituição da terça menor pela maior foi difundida no blues e em algumas músicas do country music onde as terças menores eram cantadas ou tocadas como acompanhamento dos acordes maiores” (IDEM, p.118) O autor assegura que estas alterações do quinto grau menor para quinto grau maior “ocorrem também em estilos relacionados ao blues, especialmente quando são usadas as técnicas de guitarra "barre”, “slide” ou “bottleneck”. Neste caso as alterações acontecem devido à prática do instrumento e não uma predileção do modo jônio a procura da cadência perfeita” (IDEM, p.119)

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Nos dez compassos seguintes de continuação da sentença, o acompanhamento do piano se torna mais homogêneo e de menor densidade transformando em uma estrutura de oitavas na mão esquerda e poucas notas de ritmo regular na mão direita. Observamos um recurso harmônico expressivo no início desta continuação (compasso 21 do exemplo 51-a) com o acorde de Sol e sua subseqüente alteração, que mesmo sem conter a sétima menor pode ser percebido como uma dominante da dominante do acorde de função tônica “Si menor” que não aparecerá na progressão. Este acorde funciona como uma dominante com a quinta alterada no baixo, recurso muito usado na harmonia do repertório da MPB e também na harmonia jazzística. (ZIVIANI, 2007, p.16 apud FREITAS, 2010, p.164). Freitas destaca a tendência à instabilidade desta alteração “b5” que surge no baixo como “um atributo harmônico especialmente retorcido, intenso e expressivo, mas também uma caprichosa imperfeição que ocorre na própria natureza (isso por ser o acorde G 7(#11) o mesmo que o C#m 7(b5), acorde II de um tom menor, que no caso do nosso exemplo é a tonalidade de Si menor) (IDEM, p. 169). Esta alteração descendente na quinta do acorde logo no início desta continuação da sentença pode ser compreendida como uma “qualidade expressiva” que age para “confundir, escurecer, deslocar, subjetificar, etc...” a perfeição indesejada de “relações demasiadamente normais e conclusivas” e ainda “tais relações de quintas justas podem então sofrer ‘substituições” dando lugar a relações incomuns, alteradas (cromáticas), menos conclusivas, etc..”. (IDEM) Temos assim uma breve tonicização na região da submediante (si menor) e seu retorno para a tonalidade original no final desta continuação da sentença. A interrogação da letra “o que fazer José?” estrategicamente localizada sobre a dominante desta nova tonalidade, (que nos remete ao poema de Carlos Drummond de Andrade 72 ) pode demonstrar um ponto de entrelaçamento entre letra e música. É importante frisar que o contrabaixo repousa nas mesmas notas da mão esquerda do

72 Carlos Drummond de Andrade, referência maior de Geraldo Carneiro, autor da letra de Ano Zero, escreve este poema em plena segunda guerra e ditadura Vargas. Não é de se espantar que façamos aqui uma relação direta com o sentido desta canção, escrita em 1972 (auge do período militar do Brasil), que já na primeira estrofe nos leva a imaginar um sujeito escondido e que se vê, no meio da noite, obrigada a fugir “como um rato”, por algum motivo oculto. A letra: “José despertou com/ a noite e o nada/ apenas uma mulher/junto à mesa de jantar/ o que fazer, José?/ É hora de partir na escuridão/ é o hora de fugir como os ratos fogem no chão/ Como um cigano dentro da escuridão/ Como um marinheiro torto sem rumo no mar/ O vinho lhe subia à cabeça e no sonho/ queimava o coração junto a mesa de jantar/ o que fazer José/ sentar pra esquecer e esperar que ela num sorriso vá servir a mesa de dor/ Que ela faça o prato e não se esqueça do pão/ afogar as mágoas com muito arroz e feijão”.

144 piano, enquanto as cordas retornam à textura e a voz feminina executa um contracanto à melodia principal, especialmente nos seis últimos compassos da continuação desta sentença.

Exemplo 51 – 9 primeiros compassos do consequente da sentença da Seção A da primeira versão de “Ano Zero” (1972) - (piano e vozes) a-) Segmento de contraste (0:33 – 0:41)

- b-) Segmento cadencial (0:42 – 0:50)

Protagonizada novamente por piano e cordas, a seção a que darei o nome de “Interlúdio” segue o mesmo padrão harmônico da Introdução. Desta vez, o piano assume um papel mais relevante no estabelecimento da levada, embora ainda observemos, neste momento - me refiro ao ano de 1972 e a elaboração e execução de acompanhamentos mais “tradicionais” de Gismonti - figuras rítmicas menos sincopadas e maior previsibilidade rítmica.

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A frase melódica principal, executa intervalos de sextas sobre os acordes de D7, G 7 e C (I 7, IV7, bVII), retomando a sonoridade “mixolídia” da Introdução.

Exemplo 52: Interlúdio da primeira versão de “Ano zero” (1972) – (Piano, cordas e contrabaixo) – (0:51 – 0:58)

A melodia do exemplo acima executada pelas cordas, servirá de base aos dois próximos versos da canção que optei por chamar de “Seção B”. Nota-se maior atividade rítmica do acompanhamento do piano, no acréscimo de pequenos comentários característicos nos finais de compasso concomitante às interrupções da melodia principal e novamente um término em lá menor (acorde de quinto grau do referido modo mixolídio).

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Exemplo 53: Seção B da primeira versão de “Ano zero” (1972) – Melodia do interlúdio com letra a-) (1:05 – 1:12)

b-) (1:13 – 1:19)

Após o retorno à Seção A e a repetição do Interlúdio e da Seção B, chegamos à modulação da Seção A para a tonalidade de Sol Maior. Nela, o contraste da sonoridade revela-se através da atribuição da melodia principal ao piano, solo durante todo o trecho. Diferentemente do recurso da alteração do intervalo de quinta diminuída no segundo acorde da mesma seção anterior (Ex. 53-1), temos agora, ao invés da alteração realizada num acorde de função Sub V7 , um acorde de função

147 subdominante primária, quarto grau menor (IVm) da tonalidade de Mi menor (Exemplo 54-b). Observemos no exemplo abaixo a transcrição deste trecho solo de piano:

Exemplo 54: Sentença executada por piano solo da primeira versão de “Ano zero” (1972) a-) Inciso e Inciso 1 (2:23 – 2:38)

b-) Segmento de contraste (2:39 – 2:47)

c-) Segmento Cadencial (2:48 - 2:57)

A canção finaliza com mais uma seção do “Interlúdio” e a mesma frase melódica executada em intervalos de sexta realizado desta vez, pelo piano. “Ano Zero” é recriada numa versão totalmente instrumental no disco Corações Futuristas de 1976. Esta versão parece prenunciar a maturação de uma linguagem pianística própria de Gismonti, que se consolidará nos discos posteriores.

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A forma da composição se expande e é dividida basicamente em dois momentos distintos: No primeiro, a alternância entre as três seções (Introdução, Seção A e Interlúdio) recria todo o material melódico da versão original para piano solo. Este instrumento assume por completo uma função harmônica e rítmica, contando em alguns momentos com um background harmônico das cordas e os efeitos dos sintetizadores Arp odyssey e Arp Strings. Este material é trabalhado até a seção “Ponte”, onde abre-se espaço à entrada dos outros instrumentos (bateria e contrabaixo). Interessante notar que não há criação de um espaço de improviso individual durante esta segunda parte; o interesse criativo reside na interação dos instrumentistas no groove coletivo e nas variações de dinâmica, que assumem um papel fundamental na criação das texturas das seções.

Tabela 9 - Forma da segunda versão de “Ano zero” (instrumental) do álbum Corações Futuristas (1976)

0:00 – Introdução – 16 compassos 0:30 – Seção A – 22 compassos 1:12 – Interlúdio – 4 compassos

1:20 – Introdução – 4 compassos 1:28 - Seção A – 22 compassos (improvisação) 2:08 – Interlúdio – 8 compassos

2:24 – Introdução – 8 compassos 2:40 - Seção A 30 compassos (8 compassos a mais) 3:36 – Interlúdio - 4 compassos

3:47 – Ponte – 8 compassos - Tema do Interlúdio (modulação)

3:59 – Interlúdio – 8 compassos 4:14 – Introdução - 24 compassos - Com groove e grupo inteiro 5:00 – Introdução – 16 compassos – ritmo regional 5:29 – Introdução - 8 compassos – retorno ao groove anterior 5:43 – Interlúdio - 8 compassos 5:58 – Introdução – 23 compassos

Como já dito, toda a primeira parte da composição se centra na atividade do piano na recriação das estruturas da canção. Embora a mão direita reelabore as melodias originais através de alterações na estrutura rítmica e melódica, proponho aqui um olhar que coloca em perspectiva a atividade da mão esquerda de Gismonti, na

149 hipótese de que ela assume papel de “motor” gerador de toda a textura pianística característica desta composição. Na Introdução, a progressão harmônica é formada por três acordes: G – C/G – D7. Os recursos estruturais utilizados pela mão esquerda são: padrão de tônica e sétima dos acordes (compasso 1), inversão com dobramento de oitava (compasso 2) e estrutura de acordes em intervalos de quarta (compasso 4). Na mão direita, unidades intervalares de terças, quintas e sextas se aproximam da sonoridade bluesística das pentatônicas maiores.

Exemplo 55: Primeiros quatro compassos do início da Introdução da segunda versão de “Ano zero” (1976) – (0:00 – 0:07)

O padrão 1-5-7 é recorrente e aparece em diversas combinações de intervalos ascendentes e descendentes (como no primeiro compasso do exemplo abaixo). Aparecem também blue notes no terceiro compasso (circuladas em vermelho) reforçando a sonoridade bluesística mencionada.

Exemplo 56: Compassos 4-8 da Introdução da segunda versão de “Ano zero” (1976) – (0:08 – 0:15)

A sentença da “Seção A” da versão original de “Ano Zero” é ampliada em mais quatro compassos, resultando assim, numa seção de 22 compassos. Os oito

150 primeiros são iguais (inciso e inciso 1) e os 12 seguintes (segmento de contraste e segmento cadencial) estendidos. No exemplo abaixo, para fins de comparação, dispomos o início da sentença da versão original com a que estamos a analisar aqui. Podemos observar um contraste na textura do acompanhamento da mão esquerda, que na segunda versão se ativa ritmicamente através de pausas, ligaduras, contratempo e antecipações:

Exemplo 57: Comparação entre início da sentença (inciso e inciso 1) das duas versões de “Ano Zero”.

a-) Primeira versão de “Ano Zero” - (2:23 – 2:38)

b-) Segunda versão de “Ano Zero” - (0:30 – 0:45)

No segmento de contraste e segmento cadencial é que observaremos a maior quantidade de transformações. Primeiro na forma como o piano interpreta a melodia; na primeira versão observamos uma regularidade maior do tempo, disposto em colcheias em sua maior parte do tempo, com um tipo de toque legato. Na segunda, as semicolheias aparecem levemente destacadas, numa articulação jazzística , enquanto alguns pequenos trechos que antes foram tocados em colcheias legato são transformados em síncopas ou em figuras mais irregulares, como colcheia pontuada e semicolcheia (compassos dois e nove dos dois exemplos abaixo). Na primeira versão, o acompanhamento da mão esquerda se constrói a partir de uma linha de baixo resultante da progressão harmônica de acordes em sua posição fundamental ou com terça no baixo, numa preferência pelos acordes com décimas (1- 7-10; tônica, sétima e décima). O padrão direcional (contorno) das notas de cada acorde também se mantém, caracterizados por um movimento de repetição ascendente-descente no final de cada um deles (ex.60-a). Na segunda versão, o

151 acompanhamento se torna mais assimétrico; nos quatro primeiros compassos (Ex. 60- b) os acordes construídos não obedecem nem a um ritmo ou direcionalidade padrão. Nos terceiro e quarto compassos a fundamental do acorde em questão (B 7) se repete nos contratempos construindo um diálogo mais complexo com a melodia (Ex. 60-b). A partir do quinto compasso (Ex. 60-b) até o oitavo (Ex.60-c) também observamos a permanência da nota (si) como eixo da construção dos acordes em questão (B 7(b13), B7(b9), Em (b6), G/D). No segmento cadencial (Ex. 60 c e d) a harmonia delineada na segunda versão apresenta uma transformação em sua condução de vozes, gerando outros acordes na sequencia harmônica. A sequencia Em – G/D – C 6 – D7 sofre uma alteração para: Em – G/D - C 6-A/C# - D – Ebº. Observa-se ainda uma pequena extensão de quatro compassos a este segmento cadencial (Ex. 60 e). Através destas modificações, a versão instrumental de “Ano Zero” parece obter um discurso musical menos homogêneo, mais interativo e contrapontístico no que concerne às vozes (melodia e acompanhamento), bem como uma articulação rítmica mais variada.

Exemplo 58: Comparação dos segmentos de contraste e segmento cadencial da Seção A das duas versões de “Ano Zero”.

a-) Segmento de contraste da primeira versão de “Ano Zero” (1972) - (2:39 – 2:47)

152 b-) Segmento de contraste da segunda versão de “Ano Zero” (1976) – (0:46 – 0:54)

c-) Segmento cadencial da versão da primeira versão de “Ano Zero” (1972) - (2:48 - 2:57)

d-) Segmento cadencial da segunda versão de “Ano Zero” (1976) – (0:55 – 1:04)

e-) Extensão de 4 compassos do segmento cadencial da segunda versão de “Ano Zero” (1976) – (1:05- 1:12)

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A seção “Interlúdio” desta versão é bastante semelhante à primeira. A idéia melódica segue a mesma estrutura em intervalos de sextas executadas por piano e cordas. Dispondo novamente os recortes dos trechos das duas versões para fins de comparação, observamos no exemplo 59 mais alterações no acompanhamento do piano: movimento de maior densidade rítmica e adição das vozes soprano e contralto na textura da melodia intercalada pela insistente repetição da fundamental.

Exemplo 59: Comparação dos Interlúdios das duas versões de “Ano Zero”. a) Início do Tema B (Interlúdio) da primeira versão de “Ano zero” (1972) (1:05 – 1:12)

b-) Interlúdio da segunda versão “Ano Zero” (1976) (1:13 – 1:19)

Após um retorno à Introdução, aos 1:28 do fonograma, Gismonti incorpora à Seção A um “improviso” que inicia a partir do segmento de contraste da sentença. Este improviso pode ser compreendido como um segundo tema principal, tanto pela sua clara construção melódica - definida e desenvolvida - como pela sua situação dentro do contexto da Seção A. Partindo dos elementos musicais trabalhados neste trecho, divido este improviso em três momentos diferentes. O primeiro deles consiste em curtos motivos

154 construídos que chegam à nota alvo através de escapadas por saltos (circulados em vermelho). No compasso 58 do exemplo abaixo, ao invés de uma esperada nota pertencente ao acorde ouve-se uma tensão (#11) do acorde de Si dominante. A mão esquerda acompanha os motivos a partir de uma base rítmica que marca o primeiro tempo e o contratempo do segundo tempo. Exemplo 60: Primeira parte do improviso sobre consequente estendido da segunda versão de “Ano zero” (1976) – (1:42 – 1:49)

Num segundo momento do improviso a mão esquerda executa apenas duas notas por acorde e a mão direita uma construção melódica em tercinas. A habilidade com que as duas mãos interagem ritmicamente é uma das características pianísticas marcantes de Gismonti. Neste trecho, esta característica é identificada na forma como as “tercinas” (que foram transcritas desta maneira para efeito de compreensão, mas que não retratam exatamente a forma como Gismonti “fala” suas melodias) são executadas, numa independência rítmica que somente é possível de ser notada por conta da marcação bem definida dos acordes da mão esquerda. Os motivos iniciais da mão direita são construídos a partir de uma bordadura sobre a nota sol e sucessivos saltos intervalares de quarta justa (sol-dó), quinta justa (sol-ré) sexta menor (sol – mib) e sétima maior.

Exemplo 61: Segunda parte do improviso sobre consequente estendido da segunda versão de “Ano Zero” (1976) (1:50 – 1:57)

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A terceira parte do improviso anuncia o ápice da atividade rítmica e harmônica no desenrolar das idéias musicais. Observa-se que sobre a escala de Mi menor (tonalidade da seção de contraste) temos notas de aproximação (que soam bastante como blue notes ) sobre a quinta (sib-si) e sobre a fundamental (mib-mi) (Ex.58-a). A partir do dó natural do terceiro compasso (segunda nota do último grupo) podemos observar uma intenção de criação sobre um padrão diminuto de Cº.

Exemplo 62: Terceira parte do improviso sobre consequente estendido da segunda versão de “Ano Zero” (1976)

a-) (1:58 – 2:01)

b-) (2:02 – 2:04)

Nos dois compassos finais a sonoridade aproxima-se da escala pentatônica maior de Dó. Tocadas sobre o acorde dominante do final (D 7) destacam-se a 7ª menor, 9ª e 11ª, respectivamente “dó”, “mi” e “sol”.

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Exemplo 63: Quarta parte do improviso sobre consequente estendido da segunda versão de “Ano Zero” (1976) – (2:05-2:08)

No exemplo 57 fiz uma comparação entre o acompanhamento da versão canção e da versão instrumental de “Ano Zero”, afirmando o caráter menos “homogêneo”, interativo e a maior articulação rítmica desta segunda. O tratamento das aberturas em décimas dos acordes e a evidente atividade da mão esquerda nos remetem, numa primeira audição, aos acompanhamentos das peças para piano da música de concerto, principalmente as obras românticas passíveis de serem identificadas em compositores como Chopin e Schumman. É evidente, num primeiro momento, que Egberto se utiliza de seu conhecimento prévio deste tipo de repertório. Ao mesmo tempo, comparar a ele ou a suas composições deste período diretamente a um material oriundo da música clássica parece não ser uma tarefa que resultará numa resposta convincente que possa clarear e estrutura destes “desenhos” melódicos. Desta forma, nesta análise, escolhi partir do pressuposto de que aquilo que nos chama a atenção no acompanhamento de Gismonti seria esta “resultante de acompanhamento” (nos termos de Schoenberg) que originam contornos melódicos variados e pouco previsíveis . Nestes contornos estão presentes alguns elementos importantes que foram identificados com a análise da transcrição: a maneira específica de conectar as linhas do baixo e as mudanças harmônicas localizadas fora dos tempos fortes. Exemplifiquemos cada uma destas características. Em alguns compassos da primeira execução da Seção A, podemos observar o encaminhamento das vozes do baixo através do menor movimento possível, dando à mão esquerda um caráter independente e bem marcado.

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Exemplo 64: Aproximações do baixo por menor movimento na primeira apresentação da Seção A da segunda versão de “Ano Zero” (1976) a-) (0:46 -0:49)

b-) (0:59 – 1:11)

Na segunda repetição da Seção A, onde aparece a incorporação do “improviso”, a mão esquerda toca apenas duas notas dos acordes, numa estrutura mínima que confirma e encandeia os caminhos da progressão harmônica. Não obstante, estas ligações entre diferentes acordes da harmonia através de intervalos de 2ªs permanecem:

Exemplo 65: Aproximações do baixo por menor movimento na segunda apresentação da Seção A da segunda versão de “Ano Zero” (1976) – (1:54 – 2:01)

Os retardos ou antecipações em contratempo das notas que afirmam a mudança harmônica aparecem em alguns momentos:

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Exemplo 66: Mudanças harmônicas fora de tempo forte da segunda versão de “Ano Zero” (1976) a-) No segmento cadencial da primeira repetição da Seção A da segunda versão de “Ano Zero” (1976) – (0:55) e (1:01)

b-) No segmento de contraste da terceira repetição da Seção A da segunda versão de “Ano Zero” (1976) – (2:57 – 3:02)

A transcrição detalhada também nos permite visualizar os contornos melódicos do acompanhamento com mais clareza, sendo possível assim, identificar variações sutis na distribuição das notas e nos movimentos ascendentes e descendentes destes contornos. Neste primeiro exemplo, podemos ver o único salto intervalar descendente em início de compasso.

Exemplo 67: Salto descendente em início de compasso – segmento de contraste A da segunda versão de “Ano Zero” (1976) – (0:47 – 0:49)

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Na terceira seção, alguns contornos melódicos assumem uma forma ainda mais variada em relação a esta mistura de movimentos ascendentes e descendentes. No exemplo 68, os padrões de inversão de contorno dentro de um mesmo acorde se repetem, mas não criam uma sensação de estabilidade, pelo contrário; se distanciam da continuidade homogênea que se esperaria de um acompanhamento em moldes tradicionais.

Exemplo 68: Contornos melódicos variados na terceira repetição da Seção A (segmento cadencial) da segunda versão de “Ano zero” (1976) – (3:06 – 3:15)

Abaixo, a exemplificação do que seria o contorno mais esperado: movimentação que alterna saltos descendentes e ascendentes (Ex. 69-a). Em seguida, observamos a quebra desta previsibilidade melódica com a inversão dos saltos intervalares do final do padrão (Ex. 69-b). Por último, a mesma parte do segmento cadencial do exemplo 69-b aparece realizada com um padrão de inversão de saltos intervalares logo em seu início, alterando novamente a previsibilidade do contorno melódico. (Ex. 69-c)

Exemplo 69: Comparações entre finais e inícios de padrões de acompanhamento da segunda versão de “Ano zero” (1976)

a-) (0:55) b-) (1:01)

160 c-) (2:05 – 2:06)

Em seguida, podemos observar um tipo de padrão mais comum, que parte sempre do contorno ascendente de um acorde (Ex.70-a). No exemplo 70-b e 70-c podemos observar, além da inversão do contorno, a construção deste sobre a repetição de uma das notas já exposta na montagem do primeiro acorde (assinaladas no retângulo vermelho).

Exemplo 70: Contornos ascendentes da segunda versão de “Ano zero” (1976) a-) (0:49 – 0:53) b-) (1:04 – 1:07)

c-) (1:54 – 1:57)

161

No próximo exemplo observamos, na ligação entre um compasso e outro, o menor caminho entre as notas dos acordes (entre as notas láb e sol), o salto intervalar descendente em início de compasso e a repetição do padrão já citado no exemplo 70.

Exemplo 71 – Mistura dos contornos melódicos da segunda versão de “Ano zero” (1976) – (3:21 – 3:24)

Chegando ao final do fonograma, precisamente aos 3:36, verifica-se um retorno ao “Interlúdio”, desta vez executado na tonalidade de Mi bemol maior. A primeira parte do tema desta seção é repetida através de uma modulação diatônica descendente no círculo das quintas, nas quais o acorde caracterizado como IV 7 passa a ser dominante da próxima tonalidade. Segue-se deste modo até chegar ao acorde dominante da tonalidade inicial de Sol Maior.

Exemplo 72: “Interlúdio” em Mi bemol maior da segunda versão de “Ano zero” (1976) – (3:44 – 3:59)

O restante do arranjo é marcado pela entrada de todo o grupo instrumental na construção do clímax final, pois já não se apresentam seções ou materiais musicais novos. A partir dos 4:14, segue a reapresentação da Introdução, com intervenções pontuais de improvisos do violoncelo, sob um contraste de dinâmica forte-piano. Dá- se especial destaque à bateria, que no momento “forte” deste trecho acentua as notas

162 fortes da melodia e, na declinação de volume dos demais instrumentos, sobressai com um improviso sobre o groove da seção. Em exatos 5:00 da gravação, o piano “puxa” inesperadamente uma outra sugestão rítmica sob marcação na mão esquerda. Em um curto espaço de tempo (aproximadamente dois segundos) os demais instrumentos unem-se na mesma intenção rítmica num andamento mais acelerado. Resultam assim os únicos 16 compassos em que o arranjo sinaliza uma propensão musical “abrasileirada”, trazendo à narrativa elementos musicais mais regionalistas. Abaixo, a exemplificação da fórmula rítmica realizada pelo piano, com a síncopa característica que nos remete ao toque de zabumba de baião.

Exemplo 73: Reapresentação da Introdução da segunda versão de “Ano zero” (1976) - (5:00 – 5:07)

A música termina com a intercalação de “Introdução – Interlúdio – Introdução” num total de aproximadamente 39 compassos.

Esta análise possibilitou a visualização de um tipo de processo de recriação presente na obra de Gismonti. “Ano Zero”, em sua versão instrumental, traz à superfície e potencializa as estruturas pianísticas apresentadas na versão canção. Estas estruturas, contidas no “cerne” do material original, dotadas de um lirismo melódico e de padrões de acompanhamento que são característicos a tradição da escrita do piano, favoreceram a reescritura de todo o restante do material para este instrumento. No caso desta análise, sugeri que o elemento de maior destaque e força motor na criação das diferenças sonoras e texturais é o tipo de acompanhamento da mão esquerda que Gismonti recria em “Ano Zero” instrumental. A harmonia da primeira versão já nos apresentou um misto entre “modalismo”, através dos acordes maiores dos incisos e do ethos romântico, que se

163 fez visto no acompanhamento arpejado e conciso e na textura homogênea, num movimento ordenado de preenchimento de todos os tempos do compasso. Na segunda versão, mesmo que não se furtando em prosseguir com semelhantes idéias harmônicas, a interação rítmica da mão esquerda com a melodia da mão direita, que também sofreu alterações e variações, trazem à tona a enorme habilidade do músico na realização de contornos melódicos criativos e inesperados, que se formam independentemente da criação de uma textura homogênea e coerente do ponto de vista de um acompanhamento mais tradicional.

6. A recriação nos sambas soltos de “Café”

A primeira versão da composição “Café” que iremos analisar está presente no álbum Corações Futuristas . A formação é composta por voz, sintetizador, violão, sax soprano, bateria e contrabaixo. Nesta versão instrumental, a voz de Gismonti atua também como um instrumento solista junto ao sax soprano. Assim como “Dança das cabeças”, “Café” possui uma extensa narrativa dividida em numerosas seções, geradas a partir das variações de suas Seções A e B e das convenções que permeiam estes segmentos.

Tabela 10: Forma da primeira versão de “Café” (instrumental) do álbum Corações Futuristas (1976)

0:00 – Introdução – 8 compassos 0:34 – Seção A – 6 compassos 0:58 – Seção A – 6 compassos 1:22 – Seção B – 7 compassos 1:47 – Convenção 1 - 5 compassos (2 últimos sobrepõem ao tema) 1:51 – Seção A - 7 compassos (2 últimos sobrepõem a convenção 1) 2:13 – Convenção 2 – 8 compassos

2:25 – Improviso sax sobre A – 6 compassos 2:48 – 2º Improviso de sax sobre A – 8 compassos

3:11 - Seção B – 7 compassos 3:36 - Convenção 1 - 5 compassos - (2 últimos sobrepõem o tema) 3:41 - Seção A - 7 compassos (2 últimos sobrepõem a convenção 1) 4:02 - Convenção 2 – 8 compassos

4:13 - Seção A – 6 compassos (com rallentando no final)

164

A música começa subitamente com a chamada do sax soprano levando-nos ao acorde de ré menor – a tonalidade da composição - no violão. Podemos ouvir que há uma sobreposição de acontecimentos musicais realizados pelo violão ( overdubbing), que em uma das camadas assume a condução rítmico-harmônica e na outra realiza alguns comentários aparentemente envoltos pelos efeitos da aplicação do pedal mutron bi-phase . É possível compreender a textura desta seção como “camadas” que se sobrepõem numa continuidade homogênea. Esta textura sofre alterações de dinâmicas a partir da aplicação do efeito do pedal e da inserção do timbre de saxofone, que por sua vez, executa frases melódicas dentro de uma extensão de registro bastante ampla. O ambiente harmônico e rítmico da composição nos remete ao toque característico do berimbau , conhecido pelas gravações dos afro-sambas de Baden Powell (especificamente a canção de mesmo nome registrada em 1963 no disco Baden Powell à vontade 73 ). Baden foi mencionado anteriormente como importante influência violonística para Gismonti. A Introdução de oito compassos apresenta a figura rítmica do violão na seguinte sequência de acordes; Dm 7 – Ebm 7 e Dbm7.

Exemplo 74: Levada “berimbau” da Introdução da primeira versão de “Café” (1976) – (0:11 – 0:34)

Observamos pouco contraste na transição entre Introdução e Seção A, na qual o violão funciona como uma espécie de elemento pivô entre uma e outra, na manutenção da levada já apresentada. A partir da Seção A, por conta das funções atribuídas a cada instrumento, a textura volta-se a um contexto polifônico de efeito contrapontístico, no qual contrabaixo violão e voz se concatenam rítmica e harmonicamente.

73 Baden Powell. LP. Baden Powell à vontade. Elenco.1963

165

Optei por dividir o tema de seis compassos da Seção A em três momentos (a, a1 e b). Associando esta construção temática a algum dos formatos propostos por Sérgio Freitas (FREITAS, 2010, p.618) podemos levantar a hipótese de que se trata de uma sentença incompleta, ou seja, uma sentença que contém “inciso”, “inciso1” e “segmento de contraste”, mas não possui o segmento cadencial característico. Inicialmente temos a sequencia de acordes do modo dórico (Dm 7 e Gm 7). Paulo Tiné, em sua tese de doutorado, aponta o universo deste modo como característico da produção da música popular. Menciona também o vamp Im – IVm – também na região de Ré menor – do toque de berimbau da canção homônima de Baden Powell. (TINÉ, 2008, p.114 e 154). O acorde de Mi menor seguinte pode ter correspondência com o modo da menor melódica, bem como o acorde de Dbm 7 (C#m 7) sétimo grau da mesma escala. Mais do que compreender os procedimentos dentro da tonalidade, é interessante notar que as notas meio tom abaixo e meio tom acima de ré (Db e Eb) são utilizadas como recursos melódicos tanto na Introdução como nesta Seção A inicial.

Exemplo 75: Divisão dos três momentos da “sentença incompleta” da Seção A da primeira versão de “Café” (1976) – (0:34 – 0:55)

No sexto compasso, onde a melodia repousa sobre a quinta de ré, aparece um acontecimento musical realizado por contrabaixo e violão que aparenta simular uma “dominante” de retorno à tonalidade de ré menor. Nela, o contrabaixo executa as

166 notas das tríades maior e menor de lá, enquanto o violão toca a sétima maior de lá e sua quarta aumentada (ré#), conferindo a este trecho uma sonoridade de suspensão bastante característica. Pela sua configuração, atribuo a este acontecimento a função de uma “convenção” que estabelece um corte, no sentido de um contraste dentro da própria “unidade sonora” (por estar conectado harmonicamente com a sensação de dominante) que subitamente modifica a textura desta para uma homofonia, característica das convenções do jazz fusion ou do rock progressivo.

Exemplo 76: Convenção rítmico-melódica do final da Seção A da primeira versão de “Café” (1976) – (contrabaixo e violão) – (0:53 – 0:57)

Na reapresentação da Seção A somam-se à formação instrumental o sax soprano; que executa em uníssono junto à voz a melodia principal, e o sintetizador, que se une ao contrabaixo numa espécie de contracanto. Da ampliação da quantidade de instrumentos presentes procede-se uma consequente ampliação da densidade acrônica desta repetição, sem, no entanto, fazer- se sentir grandes alterações em relação à textura de “efeitos contrapontísticos” referida na seção anterior. Abaixo estão transcritos contrabaixo, sintetizador, sax soprano e voz, e a cifra correspondente dos acordes executados pelo violão.

167

Exemplo 77: Reapresentação da Seção A da primeira versão de “Café” (1976) – (0:58 – 1:21)

Na transição para a Seção B podemos perceber novamente a atribuição de uma função específica para cada instrumento, que faz com que esta seção se aproxime mais a um tipo de distribuição, e consequentemente de textura, mais “comum”: melodia sendo realizada pelo sax soprano, sintetizador apoiando as harmonias e violão na condução harmônico rítmica junto à bateria. Atentamos novamente para o tipo de linha melódica elaborada tocada pelo contrabaixo, que mantém de certa forma o tipo de diálogo contrapontístico proposto nas seções anteriores. Esta elaboração é enfatizada pela mixagem da faixa, na qual se atribuiu ao violão um volume menor no resultado sonoro e um maior destaque de intensidade para contrabaixo e sintetizador. Este último toca uma progressão harmônica constituída de sucessivos “IIm7 – V 7” de tonalidades distantes por semitons (G-F#-F-E) que é estendida a partir do oitavo compasso, onde reside o acorde diminuto-dominante da tonalidade original. No exemplo abaixo, estão exemplificados os quatro primeiros compassos desta seção.

Exemplo 78: 4 primeiros compassos da Seção B da primeira versão de “Café” (1976) (Voz, Sintetizador e contrabaixo) – (1:21 – 1:37)

Nos compassos seguintes, espera-se um acorde dominante do tipo C 7 no lugar do acorde “C# 7M ”. As notas que aparecem na voz, sintetizador e violão parecem

168 endossar o aparecimento deste acorde. No entanto, no segundo tempo do compasso 25 do exemplo abaixo, a linha do contrabaixo executa o “b9” de Dó (dó#), fornecendo a este trecho harmônico traços de uma sonoridade frígia:

Exemplo 79 : Compasso 5-8 da Seção B da primeira versão de “Café” (1976) – (1:37 – 1:47)

No final da Seção B ocorre uma mudança de compasso, passando de uma pulsação binária para ternária. O cruzamento das intenções rítmicas na passagem de uma seção a outra em 1:51, como assinalado na partitura, gera um contraste entre estas unidades sonoras que podem ser abstraídas como um processo de “telhagem”, ou seja, um “cruzamento” entre materiais da seção anterior sobrepostos, durante a transição, com os novos elementos da seção seguinte. Este cruzamento rítmico gera, a partir do compasso 33 do exemplo abaixo, o padrão no qual se estabelecem as linhas de sintetizador e contrabaixo. É a partir do compasso 31 do mesmo exemplo que observamos a consequente geração de uma polirritmia binária + ternária que rege toda a terceira apresentação da Seção A.

169

Exemplo 80: Cruzamento de Seção B e Seção A da primeira versão de “Café” (1976) – Oposição adjacente através do processo de “telhagem” gerando a polirritmia – (1:47 – 2:02)

A terceira repetição da Seção A retorna aos pressupostos texturais de efeitos “contrapontísticos”. Na transição entre esta seção e o trecho seguinte, escutamos novamente a convenção demonstrada no exemplo 76, que parece “descolada” da unidade sonora anterior, gerando uma nova seção, que denomino “Convenção 2 Optei por transcrevê-lo disposto em oito compassos e em uma métrica ternária (6/8). Este trecho, executado por contrabaixo, violão e bateria sofre algumas alterações em sua textura homofônica através de algumas inserções do sax soprano e sintetizador. Em relação a suas alturas, este padrão é formado pelas notas de lá maior e menor tocadas e pelos intervalos de 4ª e 5ª destacados pelo violão. Nos dois últimos compassos o padrão se estende num movimento ascendente por segundas menores.

Exemplo 81: Convenção 2 da primeira versão de “Café” (1976) – (2:13 – 2:24)

170

A transição desta convenção para a seção seguinte, abre-se espaço ao improviso do sax soprano, marcado por um corte na sonoridade e pelo retorno ao tipo de textura das seções anteriores. O timbre do sintetizador utilizado na Seção B reaparece neste trecho. Sintetizador e contrabaixo executam a mesma linha melódica realizada pela voz feminina no exemplo 77. Desta forma, é gerado um ambiente sem muitos acontecimentos musicais diferenciados, propício para o tipo de improviso realizado pelo sax soprano, bastante melódico. A improvisação acontece sobre a harmonia da Seção A. Novamente, situada no último compasso do exemplo abaixo (compasso 47) reaparece a convenção que proporciona o “corte” entre as unidades sonoras:

Exemplo 82: Seção de improviso do sax com contracanto de sintetizador e contrabaixo da primeira versão de “Café” (1976) – (2:24 – 2:47)

No segundo chorus de improviso do sax soprano retoma-se novamente a forma da Seção A. Intensifica-se a textura de efeitos contrapontísticos na diferenciação das linhas melódicas executadas por sintetizador e contrabaixo, assim como no exemplo 77.

Exemplo 83: 2 chorus de improviso do sax da primeira versão de “Café” (1976) (contrabaixo, sintetizador e sax) – (2:48 – 3:03)

171

De 3:11 até 4:02, seguem-se as repetições das seções apresentadas entre 1:22 e 2:13, com instrumentação e texturas semelhantes. A única diferença notada consiste nas inserções improvisadas, até o fim da gravação, do sax sobre a melodia principal.

Tabela 11: Forma da segunda versão de “Café” (canção) do álbum Carmo (1977)

0:00 - Introdução – 8 compassos 0:14 – Seção A – 16 compassos (12+4) 0:52 – Seção A – 12 compassos 1:20 – Seção B – 15 compassos 2:04 – Seção A – 12 compassos 2:32 – Seção B – 17 compassos (15+2) 3:11 – Seção A = 16 compassos 3:47 – Coda – 24 compassos

“Café” é recriada em versão canção no álbum Carmo de 1977. Transformada em um estilizado samba lento, a composição reinventa toda a estrutura rítmica da versão anterior, reelaborando-a no interior de uma condução rítmico-harmônica de caráter fragmentado, conduzida principalmente por piano e violão. Sua Introdução de oito compassos é formada por duas partes contrastantes; na primeira, piano e violão apresentam o gérmen da intenção rítmica que comandará a maior parte da canção. Na segunda parte, acrescenta-se bateria (que utiliza apenas os efeitos dos pratos) e contrabaixo; este último parece se aproveitar (assim como o violão da primeira versão) da possibilidade de overdubbing. Tal motivo é percebido através da existência de duas linhas de contrabaixo sobrepostas, uma que sustenta as notas graves e “estacionadas” e outra que executa curtos comentários melódicos numa região mais aguda do instrumento. Destaca-se novamente o resultado da maior intensidade do contrabaixo em relação aos outros instrumentos proporcionando um destaque timbrístico ao instrumento. Dois acordes aparecem sobre a nota pedal “fá”, executada pelo contrabaixo, exemplificados a seguir. Em relação ao segundo acorde, consideramos duas explicações possíveis: a primeira considera a formação deste como um Bb 7(9,b13) de função subdominante “IV 7”. Na segunda, acatada no exemplo, este acorde é compreendido como uma extensão do próprio Im, com a característica do b2 (solb),

172 tratando-se assim de uma alteração possível do modo “Fá dórico b2”, uma “estratégia dos acordes retirados da escala menor melódica”. 74

Exemplo 84: Introdução da versão segunda versão de “Café” (1977) – (0:05 – 0:14)

Na transição entre Introdução e Seção A não há qualquer transformação nas características texturais da composição. O tipo de textura de que estamos a tratar faz proveito de uma estrutura mais “pontilhista” dos instrumentos, dispostos novamente em camadas distintas que agem independentemente, tendo como foco a interação rítmica dos instrumentos. O piano parece seguir sempre uma proposta rítmica de ataques em semicolcheias curtas que se deslocam entre as subdivisões do compasso binário enquanto violão apresenta uma maior atividade rítmica, conjugando estas semicolcheias em padrões variados que ora se modificam em curtos espaços de tempo e ora mantêm-se regularmente repetidos. O contrabaixo, que ainda se destaca em volume em relação aos outros instrumentos, permanece executando a nota longa “fá” como pedal. Em todas as suas apresentações, a melodia principal da Seção A, assim como na primeira versão de “Café”, ordena-se através de uma frase que se repete duas vezes sobre a região da tônica (fá menor) e duas vezes sobre a região da subdominante menor (si bemol menor). No entanto, ao invés dos seis compassos que formaram a Seção A da versão anterior, temos agora – por conta da pulsação binária - a

74 Em diversos momentos (páginas 63, 145-163, 175-176, 209, 211, 214, 216-218, 374-376, 630, 631, 634, 638, 769de sua tese de Doutorado, Sérgio Freitas menciona e aprofunda as chamadas “estratégias da menor melódica”: “Está estratégia “maior com inflexão menor melódica” (parafraseando RIEMANN, 1945, p. 97) será tratada aqui, de modo geral, como “ambiente menor melódico” ou “estratégia menor melódica” (parafraseando LIMA, 2000). Tal estratégia , extrapolando os limites diatônicos regulares (dórico, mixolídio, jônico, etc.) se alastrou pelas subdominantes , dominantes e tônicas de uma tonalidade que, assim, reinventada como um tipo de dialeto ou gíria harmônica local , adotou os deslocamentos do acorde ‐tipo “meio ‐diminuto” (a célebre configuração intervalar do “acorde de Tristão”, ou do histórico “acorde menor com sexta”) como uma espécie de ideal de sonoridade para tocar quaisquer acordes . (FREITAS, 2010, p. 63)

173 duplicação destes, num total de 12 compassos igualmente distribuídos em três partes diferentes. Interessante notar, que esta divisão em três partes se transforma numa métrica de quatro versos na letra. 75 Nos exemplos abaixo podemos ver tanto a disposição textural a que me refiro no parágrafo anterior como a distribuição do plano harmônico em que são construídas as idéias poéticas na primeira estrofe de quatro versos. No exemplo abaixo (Ex.85-1) está exemplificado o início desta seção através dos acordes da tonalidade da canção, Fá menor. No compasso 12, tendo em vista que em seguida haverá uma tonicização para a região de Si bemol menor, podemos considerar o acorde formado pela cisão rítmica convencionada como um acorde de função dominante, se o considerarmos como um Fá maior com a sétima menor, quinta aumentada e terça no baixo. Desta forma, a variação da qualidade da dominante com quinta aumentada adviria do modo “mixolídio b6”, derivado do campo harmônico de Si bemol menor melódico e portanto, outra “estratégia menor melódica”.

75 1ª Seção A “Cada vez que te vierem falar/ de afeto, de amor, de paixão/ dê a volta por cima ou não/ mas não esqueça que a marca é a marca no fim./ 2ª Seção A - Cada vez que te vierem prensar/ num abismo, na rua ou num gol/ transe um papo malandro ou não/ mas não esqueça que o tempo revela o fim. Seção B: Sabe Deus por quantas vezes puseram a mão na ferida e falaram/ meu caro, relaxe porque isso vai melhorar/ é só deixar rolar num samba solto. 3ª Seção A: Cada vez que te vierem propor/ personagens pra vida real/ jogue as máscaras fora ou não/ mas não esqueça que é triste o flagrante no fim./ Seção B: Bote o pé numa estrada qualquer e carregue no medo a paixão/ que vai dominar a loucura do seu não ser/ a toa pra rolar num samba solto./ 4ª Seção A: E por fim, se sua maneira de ser é só/ aquela quem sabe de mim sou eu/ beba uma pro santo também ou não/ Mas não esqueça que um dia a casa cai”.

174

Exemplo 85: Seção A - disposta em a, a1 e b - da versão segunda versão de “Café” (1977) a-) Seção A – “a” – (0:14 – 0:23)

Partindo da idéia de que há uma tonicização para a região de Si bemol menor, o acorde meio diminuto seguinte (Gm 7(b5,9) ) pode ser relacionado novamente a um recurso próprio da escala menor do tipo melódica por conta da adição da nona, numa montagem “9-3-5-7’ Este acorde, de função tônica na região menor melódica (VIm 7(b5) ) atua ao mesmo tempo como o acorde IIm 7(b5) da tonalidade de Fá menor. Este leva a dominante “C7” em sua versão “frigia” C 7sus4(b9,13) que mais uma vez está prevista no campo harmônico do modo de Si bemol menor melódico, funcionando também como V 7 de Fá menor. b-) Seção A: “a 1” (0:24 – 0:33)

175

c-) Seção A: “b” – (0:33 – 0:42)

Os quatro compassos são considerados como pertencentes ao final da Seção A. Podemos arriscar dizer que trata de uma espécie de “segmento cadencial” da forma, construído sobre um loop de dois acordes, que preparam o retorno à seção. Neles, no segundo compasso do exemplo abaixo, sobrepõem-se sobre Fá maior a triade maior do segundo grau desta tonalidade abaixado, Sol bemol maior. Temos assim novamente, uma recorrência à sonoridade do modo frígio. Esta pequena seção de quatro compassos também aparecerá no final da Seção B que explicaremos em seguida.

Exemplo 86: compassos finais da Seção A da versão segunda versão de “Café” (1977) – (0:42 – 0:51)

Desde o início do trabalho de transcrição, mais precisamente aos 5 segundos do fonograma, percebemos que o tempo forte do compasso coincidia com a marcação grave do contrabaixo no tempo “um”, se contrapondo à característica fundamental de uma levada de samba de acentuação no tempo “dois”, onde normalmente se localiza a

176 nota mais “grave” do contrabaixo. Transcrevi o acorde “Fm” e a nota tocada no contrabaixo demonstrado no exemplo 85 no primeiro tempo da pulsação binária. Seguindo esta contagem até o início da Seção B, veremos que esta marcação será transformada, alterando o acento característico do samba para o tempo “dois”, no qual o timbre do “surdo” junto aos comentários da cuíca enfatiza o restabelecimento de uma levada mais tradicional. Assim como na versão instrumental, esta seção se baseia no ciclo harmônico composto pelos acordes de função “IIm 7 – V 7” . Os oito primeiros compassos, descritos no exemplo abaixo, mostram como a composição é construída em torno de um padrão rítmico comum aos instrumentos (piano, violão e contrabaixo). Sobre a palavra “porque” atinge-se a nota mais aguda da canção, correspondente a quarta do acorde de si. No final do oitavo compasso, no final da palavra “melhorar” observamos o cromatismo que inicia o ciclo por tonalidades distantes por semitons até retornar novamente ao IIm 7 – V7 cadencial da tonalidade original:

Exemplo 87: Divisões da Seção B da segunda versão de “Café” (1977)

1-) Primeira parte da Seção B – (1:20 – 1:29)

177 b-) Segunda parte da Seção B – (1:30 – 1:38)

Na continuação da Seção B podemos observar o alargamento das figuras rítmicas da melodia e uma modificação significativa na levada do samba, menos contida e fragmentada. Até este momento, mesmo com a sugestão das figuras sincopadas que permeavam o ambiente rítmico, o samba ainda não havia se consolidado. Este samba que não se “desenrola” de forma natural, por conta do controle rítmico preciso dos golpes do piano e contrabaixo vai tomando forma com os acentos mais graves no tempo e, num sentido poético mais amplo, religa-se ao significado da letra na concretização do “samba mais solto”. c-) Terceira parte da Seção B – (1:39 – 1:48)

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d-) Quarta parte da Seção B – (1:49 – 1:54)

É na última apresentação da Seção A, aos 3:11, que a composição chega ao ápice de tensão retomando um recurso presente na versão instrumental anterior. A sugestão de uma polirritmia aparece na divisão rítmica do piano que executa a primeira dentro de um padrão de três semicolcheias seguidas, resultando numa intenção ternária sobre uma marcação que permanece binária. A recriação deste recurso rítmico, a aplicação de uma longa notal pedal “dó” repetitiva e a intensificação da densidade diacrônica dentro desta unidade sonora contribui para modificar ligeiramente a textura da composição. Contribui também para este efeito a permanência dos acordes Im 7, IVm e V 7..

179

Exemplo 88: Primeiros compassos da última apresentação da Seção A da segunda versão de “Café” (1977) – (3:11 – 3:21)

Intensifica-se o efeito da palavra “cai” através de sua repetição num prolongamento desta seção por mais quatro compassos.

Exemplo 89: Compassos Finais da última repetição da Seção A da segunda versão de “Café” (1977) – (3:33 – 3:47)

A composição termina numa coda constituída por um loop de quatro acordes de aspecto textural menos “fragmentado”. Piano e violão executam semicolcheias ininterruptas e contrabaixo passa a agir com pouca atividade rítmica. O contraste também fica por conta da simultaneidade de acontecimentos musicais, resultando agora numa textura de camadas na qual o sintetizador aparece apoiando a harmonia

180 com acordes estacionados no agudo, a cuíca mantendo maior atividade rítmico melódica sobre a levada e o saxofone improvisando numa extensão bastante ampla. A partir dos comentários das duas versões de “Café” podemos concluir que a principal característica que difere uma a outra é a quantidade de contrastes entre as seções. Na primeira, os instrumentos interagem num contínuo mais “melódico” que converte-se numa textura de “efeitos contrapontísticos”, entendido aqui como uma delimitação da função que cada instrumento irá exercer durante a seção, sendo que estas são atribuídas de modo a contribuir com as outras, revertendo-se num todo coerente e dialógico. Esta atitude mais “tradicional” (deliberar qual instrumento se responsabilizará pelos contracantos e quais ajudarão no apoio harmônico) se confronta com o contraste de sonoridades que ocorre entre as seções, consideradas aqui como “unidades sonoras” independentes. Estas transições apresentam-se bastante fragmentadas, e fazem uso dos recursos de “corte, pivô ou telhagem”, através da diminuição súbita da instrumentação, da mudança repentina de textura (nas convenções) e na superposição de métricas diferentes, se aproximando novamente, do universo do jazz-rock ou fusion. Na segunda versão acontece exatamente o oposto: não encontramos contrastes sonoros de grande força; podemos notar uma alteração mais significativa na textura apenas entre Introdução e Seção A a partir do aumento da quantidade de instrumentos e na última apresentação da Seção A seguida da Coda - nas quais percebemos o recurso da polirritmia - e da sobreposição de outros acontecimentos musicais incluídos numa mesma unidade sonora. O caráter melódico da primeira versão é contraposto na segunda pela apresentação de um tipo de textura mais “pontilhista” que enfatiza a atividade rítmica dos instrumentos, submetendo a sugestão da levada de samba a um processo desconstrutivo que dialoga em certos momentos com a letra, coincidindo com a resolução enfática da última sugestão “um dia a casa cai”. Podemos concluir que a recriação de “Café” não se trata apenas de uma reescritura do material num contexto instrumental outro, mas de uma elaboração provocativa que altera a própria estrutura formativa do trabalho. Uma transcrição de idéias e não apenas de sons.

181

Capítulo V

1. Discursos de permanência em meio às transitoriedades

“Apesar do seu sucesso se ter prolongado e se desenvolvido desde o festival do ano passado (Gravou um LP e agora os cantores o tem procurado com frequência para aprender as suas músicas) ele prefere ir embora: completar os seus estudos de música, aprender para evoluir (o mesmo sentido da fuga de Edu lobo para Los Angeles)” (HUNGRIA, 1969)

A relação de Egberto Gismonti com outras culturas está presente em toda sua biografia, seja nas suas origens familiares, nos elementos musicais de suas composições, ou em suas estratégias de inserção no mercado. O trecho acima demonstra que desde 1969 a discussão sobre sua atuação no exterior e o acúmulo deste capital cultura simbólico ganhava destaque veículos de comunicação. A pesquisa que fizemos em arquivos de jornais e revistas sobre o período estudado neste trabalho possibilitou que encontrássemos nestes textos um denominador comum: Gismonti transparece em suas falas a contradição de um artista que se mostra consciente da sua integração à indústria cultural moderna em constante crescimento, mas retoma em alguns momentos a crença na “pureza do terceiro mundo”. O “atraso moderno” do Brasil em relação aos países mais desenvolvidos é considerado por ele o diferencial dos artistas deste hemisfério. Sua crítica parece conter, de certa forma, uma crença em um Brasil que ainda mantém resquícios de um mundo pré-moderno:

“Eles conhecem tudo, porém, não sabem encontrar novas organizações harmônicas e melódicas. Nesse ponto os terceiros e quartos mundos da vida, sua pureza e artesania criativa são a solução”. (Um músico, enfim, compreendido, Folha de São Paulo, 1976).

Estas reflexões necessariamente nos trazem à questão da identidade e linguagem do artista dentro de um contexto de terceiro mundo. Em outro trecho, estes questionamentos ficam mais evidentes:

Veja - sejamos claros ao nível da palavra, então. Que linguagem própria é essa? Gismonti - Essa linguagem envolve a situação do Terceiro Mundo em que o Brasil se inclui, envolve a cultura que a gente faz os

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níveis econômicos, sociais e políticos de nosso país. (SOUZA, Enfim, popular. 1976)

Neste ponto da pesquisa já podemos nos certificar de que esta linguagem “própria” de Gismonti nasce ainda com alguma pretensão de legitimar-se através de laços mantidos com uma proposta de “identidade nacional”. No entanto, todas as transformações sociais e culturais na transição das décadas fazem com que esta identidade não esteja mais ligada a um “nacionalismo” de raízes modernas. Pudemos observar que o artista deste período integrado a um ambiente globalizado de trocas de informações culturais assumia outro tipo de postura crítica diante das contradições do processo de criação e de sua própria identidade. Ciente das regras mercadológicas em jogo começava a aceitar a condição de suas obras como produto vendável. No plano ideológico, Egberto parece cada vez mais se desvencilhar das correntes intelectuais dos anos 1960, agindo e pesquisando individualmente. Esta postura diante às novas condições de produção reflete em seu trabalho criativo. Faço aqui a ressalva de que isto não significa que o artista se descole do plano social e aja apenas por impulsos próprios ou não se ordene por regras e exigências externas. Sua atuação e posição dentro do campo da música popular serão determinadas por diversos fatores, dentre eles, a acumulação de diversos capitais culturais. Relembremos o depoimento já citado anteriormente neste trabalho, no qual fica evidente esta pretensão de emancipação na resposta ao ataque da turma da pesada da crítica musical brasileira:

“De fato. São os meus preferidos" (Baden Powell, Burt Bacharach, Edu Lobo). Discorda entretanto, quanto ao "pastiche": "Influência todo artista sofre. Passei por todas as fases da evolução da música brasileira. Acredito ter agora um estilo próprio”. (Egberto Gismonti o º LP, Revista Veja, 1969)

Em 1976, após inúmeras experiências como músico no exterior (viagem à França com Marie Laforêt, gravação de Orfeo Novo na Noruega, trabalhos com Airto Moreira nos Estados Unidos, etc.) Gismonti passa cada vez mais a se posicionar criticamente a forma com que os países capitalistas lidam com suas culturas, trazendo à tona choques e conflitos simbólicos de identidade. Sobre sua experiência nos Estados Unidos:

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"Eles tem, inclusive, o poder para trazer matéria-prima. Mas estão esgotados. Gastos. Eu vi um músico como Herbie Hancock com quem convivi uns dois meses, saber absolutamente tudo sobre todos os acordes harmonias, escalas, o diabo. Mas não sabe mais ordená-las. Eles sabem tudo, mas esqueceram como juntar tudo e criar. E depois tem a transa do "free", que você joga em tudo, analisando as transas sociais ou políticas. E é assim mesmo. A música reflete esta sociedade louca que é Nova Iorque. Em Nova Iorque, se você não der pelo menos vinte gritos no meio da rua, não é considerado normal. Ou pelo menos, um louco normal, ninguém entende nada." (GUIMARÃES, 1976)

Para compreendermos e emitirmos focos de luz sobre esta hipótese de “emancipação” do artista num contexto de modernidade-mundo, onde as grandes narrativas perdem um pouco de sua atuação (mas não se extinguem!) trago à discussão os conceitos de Michel Nicolau Netto presentes em seu trabalho “Música brasileira e identidade nacional na mundialização”. A partir do que já desenvolvemos até aqui acataremos a premissa desenvolvida por Michel Nicolau de que o músico se situa num momento histórico no qual as grandes narrativas - principalmente aquela ligada às concepções de uma identidade nacional-popular homogênea, combatentes dos fenômenos do mundo moderno como o mercado, o estrangeirismo, a perda da identidade nacional pura, etc.- estão atuando de forma diferente, rodeadas de “outras narrativas que se propõem particularistas”. Neste contexto, o artista se vê inserido em outro cenário de pluralidade de idéias, de circulação de informações pelas mídias e deve se posicionar em meio “a uma diversidade de opções e possibilidades” (NICOLAU, 2009, p.13). Minha intenção é reforçar a idéia de que Gismonti revela traços de uma “crise de identidade” que mesmo atrelada a sugestões de um passado modernista parece trabalhar numa espécie de “desconstrução-construtiva” da identidade brasileira, que possui em certa medida conexões com um cenário “pós-moderno”, compreendido aqui como a nova condição “globalizada” do artista. Numa primeira assertiva que corrobora para estas transformações, o autor afirma que o sujeito não encontra suporte nas grandes narrativas nacionais, pois sua posição determinada no mundo não é mais adquirida no nascimento. Trazendo esta reflexão ao nosso objeto, em diversos discursos Egberto retoma o local de seu nascimento, a cidade do Carmo, com uma espécie de “orgulho” pela sua localidade natal. Não obstante, o músico parece não querer prender-se às suas raízes, assumindo o fato de que para se lançar às novas descobertas é necessária a saída de seu território

184 de conforto, numa ação aparentemente consciente de que este seria o melhor caminho para um crescimento profissional: "Nasci ouvindo a banda de minha cidade, Carmo, no interiorzão do Estado do Rio. A partir daí sempre me lancei em direção a descoberta. Eu me sinto como um compositor que tem ouvido e estudado muito, sem preconceitos" (Sem fronteiras. Revista Veja, 1975).

Complementando a idéia anterior, Michel Nicolau atesta que num contexto de modernidade-mundo, o sujeito necessita ter a capacidade de compreender a melhor maneira de empreender em si este caminho rumo ao “crescimento” através de planejamento e espírito crítico. Mais uma vez Gismonti não parece estar isento desta consciência mesmo que a imagem de sua cidade natal não deixe de ser um pano de fundo para suas digressões.

"Eu como pessoa sou uma coisa enrolada. Fui criado num ambiente muito saudável, em Carmo, estado do Rio, cidade que tem uns oito mil habitantes. Uma cidade que, como toda a cidade do interior, te ensina a acreditar em todo o mundo e que também tudo é muito simples na vida(...)..Infelizmente agora eu sou uma pessoa mais desconfiada. Uma bomba é perigosa, um avião é perigoso." (PENTEADO, 1975)

Michel Nicolau afirma também, que a posição do sujeito neste contexto não se desloca a partir de suas próprias ações, sua atuação é movida pelo acúmulo de capitais diferentes que lhe garantem certas vantagens. Suas opções são controladas externamente. Podemos fazer uma correlação desta afirmativa com a citação abaixo, na qual Gismonti revela que sua ida aos EUA trouxe-lhe benefícios justamente pela necessidade que havia do mercado de jazz norte-americano de integrar-se a estes “outros” estilos.

"Ou nós (Egberto e Airto) vamos fazer shows para mil, mil e quinhentas pessoas, ou abriremos concertos de Miles Davis e do Herbie Hancock (super concerto, para cem mil pessoas) Eles lá estão necessitando de um novo estilo, e o novo estilo é o brasileiro. (...). Eles estão chamando de jazz tudo o que tiver criatividade e se você tiver criatividade eles te dão todo o aparelhamento que a gente pedir. A produção dos concertos é que é de quebrar". (IDEM)

No trecho abaixo, observamos traços que podem se relacionar ao princípio da construção de uma nova identidade formada pelo acúmulo de capitais aliados a outras nacionalidades:

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Veja – O mercado externo não seria mais promissor para o que você faz? Gismonti – Infelizmente sim. Mesmo este relativo sucesso que agora me envolve é conseqüência do que vem do exterior. Principalmente porque, para me manter e manter viva a minha música preciso viajar sempre . (Sem fronteiras. Revista Veja, 1975)

Michel Nicolau identifica três tipos de identidade e discute como elas se relacionam neste novo contexto de mundialização da cultura. Primeiramente, a identidade nacional - ligada a uma idéia de brasilidade – em seguida identidade mundial – ligada a expressões que perdem sua territorialidade sendo assumidas de maneiras diferentes em cada lugar como uma cultura comum a todo mundo e por último, identidade restrita - aquela de uma territorialidade fixa associadas a questões étnicas, de gênero, classe social, etc. Para o autor, o Brasil pós-1970 não se sustenta mais a partir da premissa de que o "samba é uma identidade nacional” e tende a valorizar de forma específica sua diversidade cultural. Índios (identidade restrita), europeus e norte-americanos (identidade internacional) fazem parte desta conformação cultural diversa. A idéia passa a ser de uma autenticidade deslocada para um espaço global, mesmo que o discurso seja sobre uma raíz local. No depoimento abaixo, Gismonti associa a construção de sua linguagem musical com a diversidade cultural da música brasileira, mas se isenta de uma apologia a um único elemento ou gênero que possa sintetizar esta cultura nacional:

“Veja - A música brasileira então seria muito mais ampla do que se supõe. Gismonti - Sim, mais do que claro. Samba, baião, xaxado são as formas conhecidas e até gastas de nossa criatividade. Por isso tem crítico que quer obrigar a gente a fazer samba, chorinho, baião, para eles poderem rotular - tal músico é brasileiro, aquele outro, não. O Brasil é amplo e eu gostaria que a minha linguagem fosse tão ampla, sem preconceitos, abrangente e criativa, que pudesse conter uma parte dessa amplitude. Um dia, quem sabe, ainda posso chegar lá.” (SOUZA, 1976, p.120)

A linguagem de Gismonti deste período, afeita às construções musicais fragmentadas, ainda se utiliza de elementos “nacionais” ou “regionais” mas os coloca em outro plano de significados. Associados aos códigos culturais provenientes de outros territórios, estes elementos se reestruturam passando de “dominantes” a “secundários”. Desta forma a produção de identidade passa a ser fragmentada por

186 códigos culturais. As produções artísticas passam a sintetizar estas modificações históricas a partir da ênfase no efêmero, no flutuante, no impermanente, nas diferenças e no pluralismo cultural (HALL, 2005, p.74). Além das faixas “Dança das cabeças” e “Trem noturno”, exemplos que mais se aproximam da visão gerada a partir desta perspectiva de “fragmentação”, vale a pena citar aqui a faixa “Conforme a altura do sol”, presente no disco Academia de Danças (1974). A composição parece traduzir esta fragmentação do discurso através da retomada de uma tradição completamente transfigurada. A frase melódica que nos remete à música indígena perpassa toda a música, se deslocando em diversos territórios do arranjo de uma forma flutuante e impermanente. As polirritmias apresentam um tempo instável, dialogando com padrões rítmicos dos estilos brasileiros baião e maracatu. As explosões instrumentais e os improvisos são circundados por uma estética performática que nos aproximam do frenesi jazzístico. A sonoridade veste uma roupagem ao som dos sintetizadores sintonizados com o experimentalismo tecnológico de uma época. O conflito do sujeito que atua num contexto de rápidas modificações tecnológicas e circulação de informações globais, mas que se coloca diante às formas “pré-modernas” de existência, parece estar bem exemplificado nesta fala de Gismonti, que descreve seu contato com os índios do Alto-Xingú. Gismonti fala de consciência política e social, consciência possível de existir somente no homem moderno. Parece buscar nos índios a idéia de um sujeito anterior à natureza social, um sujeito biológico intocável. Sua fala possui esta contradição: de olhar-se como sujeito sociológico (que não se conforma com as coisas ao seu redor por possuir uma consciência política) e imaginar-se aproximado ao sujeito biológico, aquele que encontra a resposta em sua própria formação como indivíduo parte de uma natureza.

“Uma cerimônia de índios do alto Xingu onde três ou quatro mil deles ficam sentados no chão de pernas cruzadas batendo no solo ao mesmo tempo com as palmas das mãos e exclamando "annn, annnn "só isto o tempo todo. As civilizações primitivas são a coisa em que eu mais acredito em termos humanos - pois se você tem um mínimo de consciência política e social não pode achar que nada está bom - acredito que toda pessoa tem um ponto dentro dessa loucura que roda por aí e os primitivos têm esse ponto, eles estão ali onde eles estão, até que a gente os destrua". (PENTEADO, 1975)

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Embora – como pudemos ver nas análises - sua linguagem artística seja imbuída de uma concreta interação com os materiais que utiliza, os quais procura sempre conhecer profundamente, Gismonti em diversas entrevistas realça a importância da intuição para sua criação artística, se afastando das premissas racionalizantes do mundo material que o cerca. Ao mesmo tempo, reconhece que o “aperfeiçoamento” de sua intuição é requisito necessário para poder se expor artisticamente ao mundo, estabelecendo uma conexão com os pressupostos modernistas de apuramento do conhecimento e do gosto.

“Com certeza do gosto pra intuição. É claro que sou um intuitivo. Mas só a intuição não é suficiente. Eu tenho que estar certo que esta intuição tem um gosto, uma apuração. Hoje eu estou certo deste gosto, deste refinamento da minha intuição. Parece egoísta, ou auto-suficiente dizer isso. Mas é verdade. Eu tenho que ter certeza disso, ao contrário não ia poder me expor”. (GUIMARÃES, 1976)

Não obstante, em mais uma contradição, o personagem gismontiano da década de 1970 parece ainda não ter selecionado os elementos daquilo que passará a considerar como “clássico”, “apurado” ou de “bom gosto”. Esta proposição nos faz acreditar que há novamente certo afastamento de um projeto modernista que não abre mão das referências do passado. Ao contrário disso, se encontra em um momento de desracionalização e tenta retomar, em certos aspectos, a crença na experiência do choque e da surpresa, o que o faz se aproximar de um pensamento de vanguarda modernista e enfatiza a teoria de que se trata agora de um projeto atualizado de “descontrução-construtiva”. Com estes argumentos, podemos nos afastar definitivamente de uma possível retomada de um projeto “romântico” por parte de Gismonti, de seus ouvintes e de sua crítica, que o avaliam na maioria das vezes como um detentor dos “conhecimentos da música erudita” e um propagador da fusão entre erudito e popular. Seu trabalho revela muito mais que esta simples dicotomia, aliás, dicotomias não estão mais em questão dentro da lógica de nosso pensamento. A linguagem e a postura musical de Gismonti foram motivos de ataques e desacordos por parte de alguns críticos daquela época. Mais uma vez, o que estava em jogo nas discussões era a necessidade de legitimação de um “projeto musical” do músico e a averiguação da autenticidade de sua linguagem musical como denunciadora de uma realidade brasileira. Sabemos que o conceito de autenticidade,

188 valor construído no século XVIII a partir das idéias de Rousseau, pregava uma “verdade interna”, oposta aos condicionamentos sociais, conformando um tipo de sujeito que age por si próprio e não através dos padrões, relegando à “autenticidade” uma noção de valor. Para os românticos e folcloristas do século XIX, o “autêntico” passa a ser visto em oposição ao moderno, relativo a uma cultura tradicional, que tem suas origens no pensamento de Herder e sua idéia de “povo”. Na pós-modernidade esta idéia de “pureza” e “autenticidade” se mantém, porém articulada como uma novidade, se referindo ao sujeito que necessariamente se liga a sua cultura. O novo elemento da autenticidade é a “autorepresentação” ou o “signo de si próprio” valores presentes somente naquele sujeito que está ligado àquela expressão. Junto a estes valores de autorepresentação esta a incorporação dos elementos vindos de “fora” que resultam no tão discutido “hibridismo”. No entanto, em inícios da década de 1970, este valor “híbrido”, ao contrário da autenticidade, está ligado a uma idéia negativa – presentes desde o século XVIII e XIX - de que o que se deixa hibridizar se degenera e se corrompe. No trecho abaixo, podemos ver um exemplo do pensamento conservador em sua versão “nacionalista-romântica”, na voz do crítico e jornalista Sérgio Cabral:

"Sergio Cabral - Eu não julguei você, eu não julgo ninguém. Eu apenas discordei de coisas que você disse. Para encurtar a discussão, vamos dizer o seguinte: você é o técnico em música, podemos dizer até o tecnocrata, e eu sou o admirador de música. Nós dois gostamos de música boa, mas a gente discorda quanto ao que deve ser música brasileira. Quando você faz música, você não tem nenhum compromisso, você mesmo declarou que quer fazer música inteiramente livre. Mas eu discordo. Acho que a nossa música deve ter alguma coisa a ver com a realidade brasileira. Gismonti - "Se você é uma pessoa inteligente, que lê jornal e participa do que está acontecendo então o que você cria vai refletir isso tudo. Desde o momento que eu dediquei minha vida a música e dentro de mim só sinto música não posso aceitar ser chamado de técnico". (CABRAL, 1971)

Em oposição, Michel Nicolau afirma que no pós-1970 existe um contrassenso que valoriza tanto o hibridismo quanto a autenticidade presente, por exemplo, na chamada “World music” , mesmo que estes termos, se vistos historicamente, se contraponham. Ainda segundo o autor, é só a partir de 1987 que se passa a positivizar a noção de “diferença”. Desta maneira, a “identidade nacional” no mundo globalizado passa a ser tratada como diversidade cultural, ganha valor e amplidão e homologa a convivência entre autenticidade e hibridismo. O híbrido passa a ser a numeração dos elementos diversos e não mais a síntese deles.

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Considerações Finais

Desde o início da pesquisa buscou-se ultrapassar os julgamentos de senso comum sobre a produção musical de Gismonti, partindo do pressuposto da dicotomia presente em sua produção, permeada tanto de canções como de música instrumental. Ademais, um dos propósitos deste trabalho consiste em procurar revelar as conexões entre os aspectos de sua produção e as transformações sociais e culturais da transição das décadas de 1960 e 1970. Primeiramente, podemos afirmar que as noções antagonistas não são suficientes para dar conta da complexidade artística das criações de Gismonti. Desta forma, não são convincentes as assertivas formuladas em torno da idéia de que o músico “misturava” elementos eruditos com populares. Foi necessária uma perspectiva musical ampla que fosse capaz de reconhecer estes elementos na superfície do material musical, mas que pudesse dirigir o olhar para a forma como eles são dispostos no fonograma, seus desvios, rupturas e conflitos, tendo cautela para não enquadrá-los definitivamente no “molde do fazer” de determinada tradição ou repertório. Em segundo lugar, apesar das semelhanças do pensamento de Egberto Gismonti com Mario de Andrade 76 , podemos certificar que durante a década de 1970 sua concepção criativa não se ligava nem a um projeto de nação que compreende a idéia do artista que se vale das técnicas composicionais de tradição européia, transportadas para um material “popular” – na missão de potencializar este material, ou dito melhor, de “civilizar” as manifestações primitivas – nem tampouco a qualquer tentativa de reinterpretação ou ressignificação deste ideário nacional, efeito que parece despontar apenas em seus trabalhos pós-1970. À vista disso, propusemos a noção de que o tipo de narrativa musical encontrada em Gismonti está conectada a uma visão de mundo outra, que valoriza a idéia de que “é possível ser moderno sem sermos nacionais”, sempre em sintonia com um mundo globalizado. Na particularidade da personalidade musical de Gismonti, que dialoga com um universo expandido de informações culturais provenientes de diversos lugares do

76 Grande parte dos trabalhos acadêmicos sobre Egberto Gismonti encontrados até agora citam de alguma forma esta ligação com Mário de Andrade. Ver, MAGALHÃES, 2013; TINÉ e PATREZE, 2015, CORRENTINO, 2013, BARROS, 2015.

190 mundo, pode residir pistas para compreendermos as propriedades da música instrumental brasileira que se desenvolveu no pós-1970 e sua posição relativamente “isolada” de outras instâncias artísticas, sempre provida de uma certa “aura” que aparentemente lhe garantiu liberdade estética diante às ideologias políticas. No caso de Gismonti, descobrimos que o modo com que este passa a priorizar a performance e o estilo ao próprio conteúdo musical, num sentido próprio de “improvisação” e “experimentação” que se volta ao “como” e não ao “o que” tocar, representa também uma modificação na persona do artista e retrata novas proposições em sua forma de atuar na indústria cultural. Gismonti pesquisa e explora materiais diversos, não se compromete a um único segmento mercadológico, está atento às condições econômicas da indústria fonográfica e as adversidades da gravadora, sabendo aproveitar também a rede de relações internacionais e as oportunidades surgidas através desta. Na perspectiva da identidade, Gismonti passa a representar um sujeito de personalidade meândrica, que não possui um sentimento coerente e integral de sua conformação. Sua situação no mundo é confrontada pela intensidade que ocorrem as relações globais a que está submetido. Não pode mais se confortar nas amarras de uma identidade “tradicional” ou “nacional”. Este sujeito necessita buscar uma nova auto-interpretação, se relacionando com outras identidades culturais que não são fixas, que atravessam fronteiras naturais. Os vínculos com o seu lugar de origem permanecem, mas não há uma ilusão de retorno ao passado. Olhamos novamente para trás para se dar um passo à frente: é possível defender a assertiva de que a música de Gismonti resulta num tipo de linguagem que se apropria do estatuto do popular como uma “tensão não resolvida”, assim como citado no trabalho de Rurion Soares. Contudo, foi possível expandir esta afirmação, relatando os processos pelos quais certos elementos são recriados e realocados na forma musical, na observação detalhada de suas aproximações e de seus distanciamentos a partir das ferramentas metodológicas teóricas que nos serviram de amparo, engendradas nos conceitos estéticos de “recriação, inclusão, transcrição, experimentação e sonoridade”. Observou-se ao longo das análises dos fonogramas uma tendência à articulação cada vez maior de contrastes e rupturas de sonoridades nas narrativas musicais dos discos deste período. A dialética entre “fechamento” e “abertura” se faz presente em cada um dos exemplos analisados, num jogo performático que leva em

191 conta a recriação e as condições dos materiais disponíveis, provocados numa atitude “experimental”. Os movimentos são paradoxais: forma e conteúdo são transfigurados a partir desta provocação do material contido no cerne das “idéias” musicais que, por sua vez, se mostram bem planejadas e organizadas. Esta atitude experimental impulsiona as canções a uma independência poética das letras, transformando-as em verdadeiros ambientes imagéticos que não se prendem à artesania “letra e melodia”, comum à tradição da canção popular brasileira. A sonoridade orquestral, as melodias longas e bem construídas em modelos formais por vezes identificáveis e a horizontalidade do acompanhamento de piano à moda da tradição pianística são recursos passíveis de serem compreendidos como um legado da tradição “culta” da música de concerto. No entanto, é na proposição cada vez mais variada de diferentes “texturas”, nos resultados “sonoros” dos fonogramas, na exploração dos novos aparatos tecnológicos que se enreda o impulso criativo em direção ao experimentalismo e a possibilidade de “misturar”, “hibridar” elementos advindos de distintos gêneros e estilos diferentes. As “tensões” do discurso musical são invocadas nas misturas destes elementos. Estes discursos se denunciam pouco dependentes de determinações harmônicas que conjurem esquemas formais específicos. Todavia, não perdem a afeição pelas linhas de contracantos bem trabalhadas, que proporcionam à percepção do ouvinte uma textura quase que contrapontística. De modo geral, pode-se compreender que em relação à “forma” estas narrativas se propõem cada vez mais “episódicas” enquanto que o vocabulário harmônico perpassa pelas construções triádicas, tetrádicas ou modais, utilizando-se principalmente do recurso da “centricidade” como ferramenta de exploração de terminada ambiência. Não obstante, estes elementos fazem com que a música de Gismonti deste período se sintonize com as formas musicais do mercado do jazz internacional, mais precisamente do fusion ou jazz-rock, tratados no capítulo 4. Destacam-se nesta linguagem, além da forma episódica e da centricidade, a utilização das “convenções”, trechos de construção métrica ou melódica complexa e repetitiva que conformam finais de seções ou seções inteiras. De maneira semelhante à percepção da mudança formal das composições de Gismonti, pudemos observar transformações consideráveis na sua forma de tocar

192 piano. Da proposição de texturas mais homogêneas que dialogavam com uma sonoridade afeita aos acompanhamentos “eruditos”, seu piano gradativamente passou a assumir uma função bastante rítmica, com especial destaque para as variações e resoluções da mão esquerda em “Ano Zero”. Os discos de Egberto Gismonti parecem ser uma fonte inesgotável de particularidades musicais, difíceis de serem apreendidos numa única escuta ou numa fruição desatenta. Neste trabalho foi possível levantar suposições e fazer um pequeno inventário de uma parte da carreira deste músico tão importante para a história da música brasileira que além de borrar as fronteiras entre os gêneros faz brotar do próprio material musical uma postura crítica e atenta às transformações do mundo do pós-1970.

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Discos

Egberto Gismonti. Egberto Gismonti. LP. Elenco. 1969; Egberto Gismonti. Orfeu novo. LP.Corona music jazz. 1971. Egberto Gismonti. Sonho 70. LP. Polydor. 1970; Egberto Gismonti. Água e vinho. LP. Odeon. 1972. Egberto Gismonti. Egberto Gismonti. LP. Odeon. 1973 Egberto Gismonti. Academia de danças. LP. EMI-Odeon. 1974 Egberto Gismonti. Corações Futuristas. LP. EMI-Odeon. 1976 Egberto Gismonti. Carmo. LP. EMI-Odeon. 1977

Egberto Gismonti & Hermeto Paschoal. História da Música Popular Brasileira. LP. Fascículos. Editora Abril.

200

ANEXO I

Entrevista com Egberto Gismonti dia 25/06/2014 Gravado na cidade do Rio de Janeiro, na residência do músico.

Você provavelmente nunca viu um gravador K7 que tinha exatamente esta cara aí. Play Records meio vermelho. Eu olhei pra isso e lembrei de um carro, um fusca que tinha nos anos 1970, que antigamente não tinha nada evidente, não tinha nada que prestasse neste sentido comparado com agora. E pra quem quisesse ouvir música em carro, K7, tinha que ter um adaptador, não era uma coisa eletrônica, uma coisa física pra sustentar aquele K7. E evidente que com estas estradas que já continuam uma porcaria você tinha que andar uns dez quilômetros pra não cair num precipício. Então a música era “sshshhshs”, então parava, desenroscava, usava um lápis. Eu olhei isso ai me lembrei de eu na estrada, vinha com a minha amiga Dulce, parava, ela tirava e enroscava num lápis assim.

E no meio das coleções que eu tenho. Eu sou um guardador de coisas, né. Eu tinha um apartamento na rua Maria angélica, que tinha ume Studio, mantive, mas o apartamento ficou lotado, o estúdio ficou lotado. Aqui hoje é um grupo de apartamentos que eu fui derrubando pra fazer uma cobertura depois tem um pedaço no quarto andar, um pedaço no terceiro, e eu vou juntando coisas. Só por prazer, não tem outra coisa, quer dizer, as vezes tem objetos que são muito bons e tal, mas a maioria deles é porque eu gosto de ter uma memória sonora e material da minha vida. E os meus amigos se traduzem através disso, amigos pintores, escritos, marceneiros, médicos, artesão. Tudo se traduz através disso e musica eu coleciono música, eu tenho um retrato sonoro da minha vida em fita K7, que chega talvez a duas ou três mil de K7. Vou te dar exemplos, eu uso um instrumentos de mais cordas, um violão, fui botando mais cordas e talz. Eu tenho um filho Alexandre que é violonista e uma filha, Bibi, Bianca que é pianista. E há dez anos atrás o Alexandre me disse assim: poxa pai, queria tanto saber como é que você tocava quando você não tinha unha na mão direita. Eu disse: queria mesmo? Ta tudo bem. Peguei uma k7, decodifiquei fiz um CD e dei pra ele. Que eu tenho isso. Queria tanto saber, quando é que foi, quando é que você resolveu tocar 8 cordas, você saiu de 6 cordas e foi pra 8. Eu disse, não só vou te explicar mais eu tenho o primeiro dia em que eu coloquei as 8 cordas, passei horas e eu tenho tudo gravado. Como eu tenho tudo filmado, porque eu sempre ganhei câmeras, uma que eu comprei foi uma câmera de vídeo, se não era profissional era quase, porque desde final dos anos 1970 eu gravo com a ECM Records na Alemanha e o grande patrocinador da ECM Records chama-se Elektro market, que é um grande mercado que tem na Alemanha de coisas eletrônicas, e na Alemanha eles tinham o genérico autorizado da Sony, então eles reproduziam tudo que a Sony fazia, vendia um Sony custava x marcos, e o genérico que chamava Saba, que era a copia exata custava 1/5 da Sony. Então eu comprei uma câmera chamada portátil, precisava de um moleque pra carregar a bateria, bateria 15 quilos, Poe uma alça virou portátil. Eu sou de uma época

201 em que bota uma alça virou portátil. Tem uma televisão portátil, um negócio imenso com uma alça em cima virou portátil. Compra uma alça Poe, virou portátil. Então eu tenho os meus filhos que hoje tem trinta anos, quando eles tinham...primeira vez a minha filha andou, eu tenho este filme. Eu tenho um museu da vida deles que é uma maravilha pra eles. Tenho o meu filho Alexandre dançando quando ele tinha dois, três anos de idade, uma das brincadeiras que ele gostava, e que eu adorava é que ao invés de eu impor música pra eles dois eu propunha coisas como: “Vamos dançar uma música muito maluca”, ai eu colocava a sagração da primavera do Stravinsky e eles sabiam de cor. “Vamos dançar”...aí ia colocando tudo quanto era música. Eu o tenho com três, quatro anos, dançando e depois repetiu-se 6 meses depois, 1 ano depois Bianca que entrou na roda com 2 anos também dançando e tal. Tenho os dois tocando piano, Bianca com dois anos ele com três e pouco, sentados no piano. E como eu sempre gostei de equipamento, eu escrevo aplicativo pra computador, tanto que eu gosto deste troço. Eu só não gosto de rede social, site, nada disso, isso eu não tenho e não gosto. Mais o aplicativo eu gosto, então eu escrevo aplicativos, são infinitamente inferiores àqueles que custam 10 reais na esquina, mas eu prefiro o meu que eu faço. E por conta disso eu sempre tive editor de imagens, também por causa de cinema que eu trabalho muito com filmes e talz. Então cada filmeco que eu fiz dos meus filhos, eles com 2, 3, 4 anos, depois eu fiz uma pequena edição, digitalizei dei pra cada um. Então eu sou colecionador de coisas, mas não pelo valor seja afetivo ou comercial, isso também conta, mas...eu tenho um álbum sonoro da minha vida, eu tenho um álbum sonoro dos meus filhos da vida deles. Cada coisa que aconteceu na minha vida tem um objeto, tem uma carta. Quando você disse assim, “escrever é muito melhor”, eu tenho 9 interlocutores, morando dois no Rio de Janeiro aqui no Jd. Botânico, uma das interlocutoras aqui do Rio é uma editora de cinema maravilhosa que é a Diana, grande amiga e tal, que mora 15 cm daqui andando. Só conversamos através de carta escrita. Só. Ai de vez em quando encontramos quando escrito, a caligrafia, porque a caligrafia é muito reveladora, né? Quando, as palavras, já se perdem no sentido de dirigem-se para outros cantos: quando são cantos poéticos, interpretativos ou subjetivos, ou que tenha alguma relação ficcional a gente mantêm as cartas. Quando distorce, porque a palavra escrita pode distorcer, o que é muito positivo para o desconhecido, pro conhecido às vezes e ingrato. Você escreveu uma frase e a pessoa entende o contrário disso, e você escreve ao contrário do que ela entendeu, e a tradução fica mais difícil porque o ponto de vista dela é ao contrário. Se você não segura, abraça, olha, você não traduz direito, tem coisas que a palavra não substitui. Pro desconhecido é bacana porque ele tem um universo que independe de você. Diretamente pessoa física, né? Então pro desconhecido é bom, a palavra escrita, a palavra gravada, o canto gravado, piano gravado. Pro desconhecido que é quem é na realidade o patrocinador do ato criativo: o desconhecido, não é o conhecido; muito menos a indústria, disso daquilo e daquilo outro. Pra ele é genial ai você faz uma coisa, anos depois você olha pro sujeito encontra com ele e ele te conta uma história que te qualifica como pessoa sempre, do que que aquilo representou na vida dele, pro bem e para o mal. E qualifica sempre porque tenho como principio que eu não sou absolutamente responsável pelo que faço, porque é interpretativo o que eu faço. Sendo interpretativo eu não tenho responsabilidade pelo bem e pelo mal. “Ah, este disco é péssimo” - não tenho nada com isso. “Ah este disco é uma maravilha, vendeu” – também não tenho nada com isso. É a minha resposta ha anos, pra todos os produtores disso, daquilo, daquilo outro que dizem assim: “Mas como uma pessoa que grava tanto, faz tanto cinema, teatro, ballet, não sei o que, roda o mundo não tem um site?” Eu não preciso. Como que não

202 tem um...eu digo: eu não preciso disso. “Ah, você não precisa porque você acha que você é muito superior ou inferior?” eu digo, “não, eu sou partidário do Millor Fernandes que tem uma frase linda que diz que computador foi inventado para resolver problemas que a gente não tinha antes”. Eu não preciso destes problemas. “Você viu o facebook”, eu digo não, não vi nada. Minha filha agora ta na Europa, eu sei que ela ta no Japão porque ela me escreve, as vezes ela me escreve emails. “Ah, mas porque que não fala por skype”? eu digo “não, eu ligo por telefone, prefiro, eu não preciso ficar vendo a Bianca o dia inteiro, eu acho uma chatura este troço”. Então a minha relação de colecionador.

Bom, então...a respeito dos trabalhos que eu escrevi, de um trabalho especificamente que eu escrevi sobre você que você até comentou que ficou com a sensação de “opostos”. Você poderia me dizer mais sobre o que você pensou sobre a primeira impressão do meu texto, que também é um exercício de escrita na verdade, né? Porque eu estudei música, faço doutorado em fundamentos teóricos em música. Nosso grupo de pesquisa é de música popular brasileira e a gente tenta fazer um canal assim com a sociologia, com a filosofia, mas é a partir da música. Não é bem a partir da história e da biografia do compositor. A gente faz análise musical e a partir da música a gente quer...

O que é abstrato como decisão, você tem filosofia, texto musical interpretativo ou não, você ta falando de uma questão que é puramente abstrata e pessoal.

È, mas é mais no sentido de pensar como é que a música pode revelar os conflitos e as contradições históricas, como o próprio discurso musical às vezes pode.

Deixa eu fazer uma observação sobre isso: esta matéria que nós estamos entrando é o que me fez seguir a decisão de ser músico depois de 5 10 anos de exercício de profissão, eu descobri a contradição que é a música. Aí quando você diz assim o quanto que a música revela isso aquilo ou aquilo outro. Isto também é questionável. “Ah não, mas os períodos” – os períodos são determinados mas nunca pré-determinados, são pós-determinados. Isso significa que...

A História é construída depois...

É evidente. Quer dizer, nenhum compositor que antecedeu Haydn, pretendia fazer formatos A, B ou C, de música ou muito menos orquestração e composição. Ninguém perguntou pra Vivaldi ou Mozart se o formato era assado, cozido ou frito. Sobretudo para Carlo Gesualdo, príncipe de Venoza. E a minha dedicação é tanta a Carlo Gesualdo que hoje eu sou membro da comunidade Carlo Gesualdo em Nápole. Por ter usado um poema de Rimbaud que é um nó existencial absoluto, um poema muito curto e feito uma música para 6 7 vozes que foi gravada por um grupo chamado (?) 77 que é um grupo dinamarquês totalmente dedicado a musica vocal, coral e sobretudo aos madrigais de Gesualdo. Então eu fiz esta música com poema de Rimbaud e escrevi um texto muito longo sobre as conclusões da audição da música de Gesualdo que eu levei dez, quinze anos pra concluir o que eu escrevi. Eu não sabia nunca qualificar o que é que aquela música tinha significado desde o momento que eu

77 Neste momento não consegui identificar o nome citado pelo compositor. Ainda estou a procura de qual grupo ele está citando.

203 ouvi e pude imaginar como é que musica se refletia lá no século “x” (xis) quando ele começou a escrever. A conclusão mais próxima em que eu acredito é que existe sempre um primeiro momento pra tudo. Historicamente, a primeira vez que um compositor usa, consonâncias e dissonâncias sem nenhum preconceito, a primeira e única, foi quando ele inventa e pratica o cromatismo que antes não existia a possibilidade de consonância ou dissonância, falava-se de modos, bom você sabe isso aí. Então quando eu escrevi este troço que custei muito a conseguir e pra escrever isso eu tive que estudar muito os sete livros e tive que transcrever muita música do Gesualdo pra piano e tocar em público pra ver a reação e sem dizer o que era. E comecei a perceber que o fato de não dizer o que era, era maravilhoso porque era uma música que tinha uma relação intemporal com o ser humano e isto determina a qualidade do ser humano, que é um negócio muito bonito. Quando eu entreguei isso à comunidade Carlo Gesualdo, que na verdade não é exatamente Nápole, é uma cidade próxima onde ele tinha um castelo. E castelo esse que ele tinha passado uma boa temporada da vida dele depois de ter matado a mulher dele e o amante. Porque o seu irmão que era um bispo - nós estamos falando do início da inquisição, quer dizer, um sujeito que tinha um poder absoluto dentro da religião, aquela sujeito cardinale , um cardeal - abafou as coisas como é hábito da religião católica desde sempre, vai abafando aquilo que é...e o colocou neste tal local, uma casa maravilhosa, chamada de palácio e ele ficou lá trancando vivendo dias absolutos de solidão que foram muito bem filmados pelo menos por sete diretores. Eu tenho estes filmes, negócio de colecionador leva a isso. Não o melhor, mais o mais curioso foi feito pelo Herzog. É curioso porque o Herzog fala das amizades de Carlos Gesualdo. A gente sabe que ele nunca teve amigo nenhum. Não podia ter. Quer dizer, um sujeito que vive com um grande questionamento do porque do que o que eu faço, nem pela força e nem pelo poder, provoca sorriso nenhum, o sujeito que passa uma vida fazendo algo que jamais fez ninguém se sentir bem, ele com todo o poder, e quanto o maior poder que o sujeito tem ou tinha naquele momento maior é o precipício em que ele se encontra, o negócio do poder deixa de ser um elevador sem limites que eleva o cara numa altura que ele acha que existe. E o fato de ele não ter resposta, recepção...na medida que ele passa uma vida inteira e a única expressão verdadeira que ele consegue ter em relação a impossibilidade, é matando duas pessoas. Romanticamente, eu acho que ele não pretendia matar. Pra quem escreve os madrigais não tem morte, fala de solidão, mas não fala de morte. E, sobretudo a volúpia que o cara compôs...Imaginar que o cara está escrevendo e anotando uma linguagem que não existia, porque o cromatismo não existia, pelo menos não tinha divulgação nenhuma de existência e muito menos uma notação. O trabalho não é anotar as idéias é inventar como anotar as idéias e também que elas foram reconhecidas 450 anos depois através do Stravinsky e do regente que o acompanhou a vida toda. Já lembro daqui a pouco. Então a solidão que esse cara vivia era muito grande, então quer dizer, se a única expressão foi matar duas pessoas, o irmão achou que a melhor coisa a fazer era trancá-lo dentro desta casa maravilhosa, que é um grande palácio e tal, pra que ele vivesse até seus últimos dias solitariamente. E é curioso porque ele como compositor torna-se assunto nosso hoje aqui, porque os poetas todos, sobretudo italianos alimentaram a existência daquele maluco que era o príncipe de Venosa, que fazia uma música insuportável, a ponto de enlouquecer até os cantores palacianos. Isso leva 450 anos, o que prova que ser guardião de alguma coisa não é necessariamente aquilo que

204 a gente acha que é, né. O guardião pode ser tão contrário a coisa que ele também está guardando a coisa.

Esta é a contradição...

É claro! Claro, Todos os poetas o cantam, Gesualdo, como príncipe de Venosa, maluco e evidente que é aquela coisa que nós herdamos da Europa, da Itália muito. Se eu disser procê que a sua blusa é colorida, mais tarde, alguém vai dizer que me ouviu dizendo que ela tem uma blusa que é um negócio, uma riqueza de cores, e o quarto vai dizer que estas cores foram feitas com plantas naturais da Amazônia e assim por diante. Eles tinham isso, na Europa, sobretudo na Itália, os países latinos então. Então esta defesa da idéia de que tinha um maluco que era um assassino, preserva o Gesualdo, com a força necessária que nós, do século XX, pra cá, precisamos, ou melhor, preservam-no com o nível de violência que nós do século XX pra cá, por todas as guerras que passamos, precisamos pra que a nossa crença seja despertada. Porque a fé dos dias atuais depende do nível de importância que a verdade traz.

É como se a gente resignificasse também. Resignificasse tudo aquilo que pra ele tinha outro sentido. E é isso que é o mais interessante da coisa ser atemporal.

A coisa atemporal e contraditória. E quando isso foi feito e eu escrevi longamente, porque eu queria entender exatamente o que eu estava pensando, então eu ia escrevendo, ia escrevendo, escrevendo. E no final das contas, você quer saber de uma coisa? Eu não vou fazer só uma introdução, pra falar do poema de Rimbaud e da peça que eu escrevi, eu vou falar o que é que eu acho do Gesualdo, até porque a música que eu fiz que eu compus é uma música que pretendeu ter a contradição da convivência consonância e dissonância. Em bons termos, não é nem a nível social não, é em bons termos. Porque se você consegue eliminar um preconceito, que pode ser aliás muito positivo às vezes, quer dizer, se você tem preconceito contra certos intervalos, certos propósitos e métodos musicais de composição...isto a gente pode esmiuçar talvez mais tarde um pouco. . Eu estudei com um discípulo de Anton Webern, Jean Barraqué e eu hoje em dia, felizmente eu tenho uma leitura muito boa e eu prefiro ler a música de Anton Webern ao invés de escutá-la executada por terceiros. Porque eu sei que é uma música que não proporciona nenhum nível de prazer interpretativo. Exige um nível de competência e distinção de ordens diretas, inversas, retrógrados diretos e inversos para a compreensão de onde está a melodia que eu prefiro a leitura. E eu não aguento ouvir, e eu tenho a obra completa do Webern desde K7. Que nos anos 1970 quando eu estudava em paris, eu tomei conhecimento deste sujeito chamado Jean Barraqué, que também tem um grupo, uma comunidade que eu prestei favores a eles. Porque o Jean Barraqué, por uma razão inexplicável resolveu que eu com os meus 19, 20 anos que era o que eu tinha que ele poderia confiar o suficiente para ceder, e me cedeu, os acetatos das gravações dos concertos das músicas dele feitos na Inglaterra. Não era fita. K7 tinha sido lançado. Pelo menos lá na Europa tinha. Mono. E ele tinha acetatos. E ele me emprestou os acetatos e disse você pode ir à rua tal, falou o nome da rua, perto da Champs Élysée no estúdio tal e eles fazem a cópia. E eu fui a um lugar que fez cópia, de um lado um toca disco, imenso pesadíssimo que era a máquina de corte, onde colocava o acetato dele doutro lado tocava um virgem. Tocava, pum! Estava escrevendo no outro. Eu devolvi pra ele e eu fiquei com dois acetatos de dois

205 concertos. Evidentemente estes acetatos dele, que eu devolvi, se perderam. Até porque ele deve ter tentando ouvir em vitrolas que tinha um prego na agulha. Ouviu três vezes acabou a música. E ele também me emprestou partituras de peças dele. Não tinha fotocópia. Eu copiei. Treino de música era copiar. Pra se copiar uma peça complexa desta você tinha que ter uma prática de ditado musical muito grande. Você vai copiar: “dó-dó, ré-ré”, to falando de 650 compassos, 20 pentagramas isso vai levar 143 anos, acabei! Pum. Aí morre. (risos).

Então esta coisa do Anton Webern, Jean Barraqué, e tal, me ensinou este fragmento da...Nós estávamos falando de preconceitos...Desta interpretação errada que a nossa sociedade dos últimos 30, 40, 50 anos criou e criou valores que são muito duvidosos, que é que ser. Por exemplo o que que é um guardião: “aquele que guarda”, não necessariamente, guardar como? Guardar é sempre positivo: “Sujeito é guardião de não sei o que”, sujeito é guardião da interpretação errada que ele fez a respeito do sujeito isso é uma coisa horrorosa, mas isto também é ser guardião e é tão bom quanto. Coisa que não vale muito dentro da sociedade da gente. Pelo contrário, hoje em dia a coisa tá tão elevada a uma potência tão maluca, tão dispersa, tão impessoal, que qualquer jornalista, de qualquer rádio, de qualquer televisão, televisão menos, mas de qualquer rádio, só tem uma participação mesmo que seja pra dizer que hoje vai chover se ele depois, ele só diz se ele tiver o direito de falar o nome e o sobrenome dele depois. Não sei se você já reparou isso: “Hoje no Rio de Janeiro vamos ouvir um helicóptero as dez horas e trinta e cinco. Fulano de tal, para rádio não sei de que”. Você diz assim, mas porque é que uma notícia desprezível feito essa precisa de nome e sobrenome do cara? E o segundo de rádio e televisão é muito caro. Porque que perdem, se somados todos os fulanos Dias Souza Almeida, se somados todos nós vamos chegar a 10 minutos no final do dia. E gastou tanto dinheiro pra nada. Estas contradições me levam a continuar pretendendo uma percepção melhor da expressão musical, ou da expressão literária, ou da expressão qualquer que seja aquela que já não existe como cotidiano. As expressões que revelam atos que não são cotidianos, mas são muito singulares me sustentam a expectativa de que a vida vale a pena. O resto não. Daí a coisa do Gesualdo lá, quando eu levei para os caboclos lá. E é uma comunidade muito complicada, porque você dedicar a vida à Carlo Gesualdo já é uma coisa completamente contraditória. Imagina, só 450 anos depois, quase 500 anos depois, Robert Craft, é o regente que dedicou a vida ao Stravinsky, 400 e tantos anos depois eles descobrem, Stravinsky, lendo, descobrem que tinha um compositor maluco, que fazia madrigais, o que que é isso? E os dois vão buscando aqui, acolá, e acabam depois de um período não sei de que tamanho, conseguem descobrir resíduos dos sete livros de madrigais. Ou seja, 400 e tantos anos depois, essa coisa não acontece por acaso, tem um dado histórico neste acontecimento que é o que mais me chama a atenção. Como é que isso foi preservado? Isso foi preservado porque o ser humano é tão contraditório que até no ódio ele é guardião e quanto maior o ódio maior e melhor é o ato de ser guardião. Isto foi uma coisa que me deixou muito encafifado durante anos, eu dizia...mas isso é contrário a tudo. Mozart foi enterrado como indigente, isso é mais importante do que qualquer outra coisa. Não da vida dele, mas, como é que um sujeito que termina a vida escrevendo clarinete e orquestra é enterrado como indigente? Esta contradição na nossa sociedade que qualifica as coisas sempre de maneira exageradésima, faz com que isso nos desperte uma tensão muito grande. Mas a vida de Mozart é muito

206 contraditória, a vida de Mahler é muito contraditória. Pouca gente tem interesse em olhar o lado negro da força. Mahler viveu os últimos anos, revigorado pela sua imensa decepção de não ser mais o diretor da ópera de Viena e dos músicos que se revoltaram, que não queriam mais tocar a música dele, que era muito difícil, muito longa, muito prolixa, muito o diabo que o valha. E pra que ele ficasse feliz, , pai do dodecafonismo, compra todos os quadros que ele desenha e diz que estava revendendo para fulano e beltrano. E ele acreditou e ficou maravilhado. Até um dia que Schoenberg mudou-se para São Francisco e não pode levar tudo o que tinha e ele descobre que os quadros estavam todos na casa de Schoenberg. Ai cai em profunda depressão e morre. Pronto. A vida é feita é disso. A nona sinfonia de Mahler - eu tô falando de forma pessoal. Não estou estabelecendo parâmetro outro que não o meu ponto de vista pessoal - passou a existir na minha vida de forma definitiva numa versão, que infelizmente não é fácil de se comprar, na internet não existe. Que é a versão regida pelo Claudio Abbado pela orquestra de Lucerna, da Suíça. O dia que eu vi isso eu entendi a razão da nona sinfonia de Mahler que eu não tinha entendido até então. Gostava, acho bonito e talz. Mas eu tenho todos os vícios, Bia, que um compositor, um músico, viciado em música tem. Se eu estou numa sala de concerto e o segundo fagote está desafinado. Danou-se. O vício é maior que outra coisa. E se permaneço nesta postura pior ainda. Porque eu sei quando vem o segundo fagote. Ai danou-se. Existem estes vícios. Eu tive um grande amigo, Bráulio Pedroso, duma geração que hoje teria 80 anos, escritor, teatrólogo. E foi um dos inventores disso que a gente chama de novela. Ele é que escreveu as primeiras novelas brasileiras. Tem uma muito famosa, da história da novela brasileira que se chama Beto Rockfeller. Uma novela, enfim. Mas o Bráulio era um teatrólogo por excelência e ele andava com a turma do não sei quem, etc, etc, e junto a reboque vinha os filhotes, o Geraldinho Carneiro, eu e outro e tal. A gente andava com eles para tudo quanto era canto. E um dia fomos a uma peça qualquer. Não me lembro qual. Num teatro lá na cidade. Sentamos, teatro na época tinha 500 lugares. Não estava cheio mas tinha muito gente. E nós lá sentados meio assim e a cena, pá... “você isso, você aquilo!” Tem uma personagem mulher e um homem perto de uma mesa, e inicia-se uma discussão entre os dois. E ele ou ela, não sei porque faz um gesto de um tapa e bate num jarro de flores que cai no chão. E o Bráulio Pedroso que estava do lado soltou um grande palavrão daqueles. De bom tamanho. E disse assim: “Eu como teatrólogo a partir daquele vaso que caiu, e agora como é que eles vão continuar esta peça com este vaso no chão?”. Eles sabem que o vaso não pode ficar lá no chão porque o palco não possibilita isso. São os vícios.

Ele estava olhando pra uma questão técnica...

Não, ele não estava olhando! Mas ele era viciado. Viciado em teatro é isso. Aí caiu o vaso e quebrou. Porque não era um vaso de plástico! Que quica e vai parar na ribalta. Porque não estava previsto. Pronto. Estes vícios vão acompanhando a gente a vida inteira e tal e se por um lado prejudicam por outro lado despertam uma alegria muito grande que você mede o quanto que você ainda tem de pré-conceitos. Se você vai começar a estudar uma

207 matéria x, nos primeiros seis meses, um ano, dois, três… você se acha o melhor do mundo. Eu já passei desta fase da vida. Não tinha ninguém melhor do que eu quando eu tinha 18 anos. Impossível de imaginar uma coisa melhor. “Ah, mas tem o super homem que voa” – “Eu também! Pronto!”. E depois você aprende um pouco e você fica deprimido porque você vê o quanto você não sabe. Ai você estuda mais um pouco e acha que já sabe tudo. Depois você descobre outra vez que não sabe. Ai você estuda, estuda, estuda, estuda, estuda, estuda, estuda, toca, toca, toca, toca, toca, toca, e dá sorte de dar certo, ai grava como o diabo, filme, cinema, o cacete na vida. Aí você diz: “Puta, agora, tô legal demais”. Aí você descobre que está cheio de preconceito e cai outra vez no buraco. Se você não tem esta consciência você não cai no buraco. Se não cair no buraco danou-se, né. Porque daí sentou e sentou errado. O resumo é este.

Aí você conhece o Gesualdo, né?

Aí conhece Gesualdo, e danou-se. Você conhece a música do Gesualdo? Acho que deve ouvir. Tem quinhentas maneiras, ou mil ou dez mil, sei lá, mas tem uma que eu acho uma das melhores, e que aqui eu estou repetindo o que Madame Boulanger me orientou. Bom, a Madame Boulanger que já era uma senhora dos seus sessenta e tal, e eu lá com os meus 18, 19. Ela quando me chamava de “vous” vós sois, não sei o que, isso pra um carmense, da fronteira do rio com minas isso daí é um negócio....Cacete, esta mulher ta me chamando de senhor, não estou entendendo, bom. Ela disse pra mim assim: “a melhor maneira do senhor escutar Carlo Gesualdo é...” eu tô tentando fazer a melhor tradução, porque os franceses usariam aqui o verbo redimir-se que no Brasil tem outro sentido, né. “Apagar, limpar, eliminar, transfigurar numa pessoa sem preconceito”. Se você consegue. Não é que Gesualdo sirva como referência para você ligar o seu medidor de preconceito, não. Mas se você consegue retirar o tamanho do preconceito que a gente adquire vivendo, e não interessa com quem ou de que jeito... a sociedade em que a gente vive é muito ingrata no quesito desimportância. Todos são muito importantes. E a desimportância é o que qualifica as pessoas.

Manoel de Barros...

Recentemente um amigo comum, Adalberto Muller, da marta, filha do Manoel e do próprio Manoel, teve em Cuiabá e voltou, e trouxe uma carta que Manoel escreveu tres quatro anos atrás, mas que não mandou nem pro Adalberto,e também não mandou pra mim. Não mandou pro Adalberto porque Adalberto tinha mudado. E eu porque ele tinha escrito, quando eu mandei pra ele a coleção fac-similada das cartas de padre Antonio vieira, que são as cartas editadas em 1920 e tal em Coimbra. Eu consegui o original disso, como eu tenho uma amiga livreira da melhor qualidade, que também tem um centro de recuperação de livros e tal. E a partir dali, volta e meia eu encontro uma pessoa e eu digo assim: “Esta pessoa merece as cartas fac- similadas”. E entro na estante virtual...a estante virtual foi a minha amiga que fez, a Lilian esta tal livreira. Não fez tecnicamente mas ela que sugeriu porque ela conhece todos os sebos, todo mundo. Aliás a Lilian, chama-se Lilian Dias, há cinco ou seis meses atrás, a gente é muito amigo, ela me ligou e disse assim: “Vou passar na sua casa tantas horas hoje”. E eu disse: “porque este horário?” e ela: “porque as 20h30 tem um leilão. E neste leilão serão apresentadas as três folhas que me foram entregues

208 há cinco dias atrás que eu passei quatro dias examinando. E como isso vai em pasta fechada, lacrada e tal. Porque é um documento muito importante eu vou passar aí pra te mostrar antes de ir pro leilão. Eu disse: “E que páginas são essas?”, ela disse assim: “São três, uma não é nada é uma coisa falsa. Que eu identifiquei e é falso as outras duas tem conteúdo e caligrafia de Padre Antonio Vieira.” Ela é deste tipo. Esta é de lascar a perua, esta Lilian. São os amigos que eu tenho. Tudo colecionador também. Ela não coleciona fisicamente.

Você coleciona amigos colecionadores…

Claro! A Lilian é do tipo assim que você pega um livro qualquer. Eu quando encontro livros que ela não conhece, eu me nego a mostrar o livro, me nego a falar do livro, me nego não sei o quê e cobro um pedágio que é ela aceitar um almoço e depois do almoço, se ela me agradar eu dou o livro. Claro, senão a vida também perde a graça, né?

Mas enfim, o resumo da ópera é que essas funções que a vida nos possibilita, seja no pré-conceito, na dúvida, medidor de preconceito, não sei o quê..isto tudo o que eu tô te falando é a resposta do que eu achei do texto que você me mandou. O fato do texto ser questionativo, intrigante e não é definitivo, o fato de não ser uma coisa definitiva, cabe até por agrado, cabe dentro de um dos estágios que leva a esta descrição que eu fiz da minha amiga Lilian. “Rara, eu tenho uma coisa que você...” – “O que, como? Vê qual é a data pra mim”, eu digo: “não vou ver nada!” – “Como?” – “Não. Não vejo nada”. E desligo e tchau. Que leva desde o primeiro degrau desta coisa de amizade assim. Ou seja, as dúvidas que o seu texto, dúvidas não, as questões que passam por passam por coisas que são contraditórias por excelência, se dá pra você pensar em , se dá pra você pensar em Giles Deleuze, se dá pra você pensar em Uspensky, é porque tem alguma coisa estranha neste negócio. E isso cabe, pro inicio de uma boa conversa, não é? Eu não gosto de site, não gosto de rede social e não gosto de conhecer quem eu não conheço também, viu? Só pra te colocar dentro da minha lista. Não gosto de conhecer gente que eu não conheço também.

Enquanto você estava falando eu pensei, nesta questão da contradição, você falou da vida do Mahler, ou do Gesualdo. Hoje em dia, o que eu mais vejo, acho que a razão técnica é tão forte na nossa sociedade a gente vê menos, e isso que a gente tem que buscar, como artistas ou pesquisadores são estas contradições proque hoje é menos visível do que era naquela época….Uma vida mais técnica agora.

É, você ta dizendo que hoje a vida é mais técnica? Eu não concordo não. Também não concordo aparentemente. Eu tô dizendo que a compreensão das cores da sua blusa dependem de uma vivência pra relacionar simplesmente ou pra extrair prazeres que percebe formatos, intenções, cores, pinceladas, o que seja. Isto é a parte técnica, a percepção através disso. Se não tendo isso, fica um mergulho raso naquilo que nós aqui no estado RJ chamamos a lagoa de Araruama. Que tem meio metro de fundura, depois de um quilometro e meio continua no joelho e tem gente dizendo: “Estou me afogando!”. Pronto. Não mais é verdade, ué?

Eu vou ser mais objetiva, vou ter que fazer umas perguntas. Eu gosto muito de conversar assim desta maneira. Eu queria perguntar na verdade, porque assim, o intuito do meu trabalho, o foco do meu trabalho são os seus primeiros discos que

209 quando eu escutei eu fiquei muito surpresa. A gente só conhecia, quer dizer, a maior parte dos músicos conhecem o trabalho seu que é um pouco posterior a estes primeiros discos. Quando eu conheci achei incrível, por exemplo o Água e Vinho e todos os discos que trabalham muito com canção. Queria que você contasse pra mim um pouco deste começo em relação a este seu contato com a canção.

Esta resposta pode ser simplésima, que vai ser verdadeira, ou pode não ser tão simples que também será verdadeira. A versão mais simples e que é verdadeira é assim: Eu fui criado por uma mãe italiana e um pai árabe. Árabe do Líbano e mãe de Catânia sul da Itália. Ouvi durante a minha vida inteira, a família contando que os dois quando se conheceram nesta cidade do interior, chamada Carmo, que na época tinha dois mil habitantes, e que falavam um português bem mais ou menos - são imigrantes - pra mim era muito longe de quanto falavam mais ou menos, eu fui chamado pelo meu pai minha vida inteira de “minha filho”. Os árabes e os libaneses que trazem do francês os artigos. Então, isso já era muito instigante. Onde eu quero chegar é que, o comentário da família, é sempre assim: o Camilo meu pai, e a Ruth minha mãe, fizeram uma coisa mesmo impressionante, se conheceram na cidade, eram namorados e a família árabe e italiana não aceitavam muito que um machista casasse com uma mama, mas os dois queriam estar juntos. Arranjaram uma maneira de irem numa cidade próxima, já Minas Gerais, descendo passando por porto novo do cunha, chegaram em além Paraíba, 15 vinte minutos andando, é a distância do Carmo até a fronteira de minas. E eles foram ao cartório, porque alguém orientou e no cartório, falando qualquer língua, sei lá eu, e o cara do cartório disse: “Ah, querem ser brasileiros? Facílimo”. Pegou um papel: “Como se chamam? Ruth?” – “Ruth” – “Camilo?” – “Camilo”. – “São brasileiros”. Carimbou dez vezes e eles acharam que eram brasileiros. Por isso romperam o não de cada tribo, italianos e árabes são tribos, né? Que são violentésimos até o momento em que tem uma razão desta importantíssima que é o fato de serem brasileiros e então podem ficar juntos. E por conta disso eu toco piano porque vem do lado do meu pai. Os libaneses sempre tiveram uma formação muito européia no sentido mais amplo da palavra e tal. E queriam, sempre gostaram de instrumentos, meu pai dizia que tinha que estudar um instrumento aristocrático. Era o piano. Meu pai era coletor federal, além de vender piano, além de vender armarinho, vende tudo como um bom libanês e viajava também porque era coletor federal, profissão que hoje não existe mais, coletar impostos, não existe isso. E minha mãe ficava em casa neste período todo aí com os filhos e me dizia: “Va benne piano forte”, “tá muito bom este piano, mas onde está a sereneta?”. Onde está esta serenata que era uma guitarra? E eu passei a estudar. O fato de estudar piano, um instrumento aristocrático e tocar violão que é um instrumento da rua liberou dentro de casa que eu escutaria todo tipo de música até porque meu pai nas viagens queria dar para o filhos sempre o melhor possível. Mas aí ele comprava e chegava em casa e eu com 15 anos, 14 anos, 13 anos, chegava em casa com discos assim. Me recordo sempre que chegou em casa com um disco de um pianista norte-americano chamado Thelonious Monk. Um disco que tem um cachorro basset na capa que é o disco mais intrincado que tem, e tem uma música chamada “Rhythm and blues”, Rhythm não sei o que.” (canta). E meu pai chegou e disse: “Este disco meu amigo disse que é uma beleza! E este aqui também!”– o segundo era Dilermando Reis, o terceiro era de não sei quem. E trazia também serenatas italianas. Então tinha, Thelonious Monk tocando, tinha Dilermando Reis tinha gente cantando “O sole mio”. Então de forma que, todas as músicas...e eu estudava no Conservatório Brasileiro de música, que era uma sucursal do conservatório de música de Paris.

210

Tinha aqui no Rio de Janeiro, continua tendo, na Graça Aranha, e em Nova Friburgo, a cidade em que eu morava, por sorte, meu pai foi pra lá com a coletoria federal dele, tinha a única filial do Conservatório Brasileiro de Música do Rio que era francês na realidade, estava instalado em Friburgo porque era uma cidade que tinha muitos alemães. Freiburg, de Friburgo, tinha a festa da cerveja lá e tal. E por conta disso eu estudava neste conservatório, tocava piano e ao mesmo tempo estudava num colégio jesuíta. Colégio Anchieta. E como era semi-internato. Entrávamos às 7, 8 horas da manhã e chegávamos em casa as 5 da tarde. E eu consegui porque eu era um estudante de música também, tinha que ter uma possibilidade de estudar piano além das horas de estudo da própria escola e eu precisava de algum horário. E foi feito uma negociata com os padres, quer dizer, eu poderia ficar uma hora e meia numa sala de apresentações que eles tinham um piano, poderia estudar naquele piano uma hora se eu tocasse nas missas na parte da manhã, ao invés de chegar as sete e meia eu chegava as sete, eu tocava todo dia na missa. E como eles tinham um órgão chamado Hammond B, que foi a primeira vez na vida que eu sentei e me senti dentro de uma catedral, me imaginei na catedral de Colônia, onde eu tive agora, aquela coisa. Eu levava meu cravo bem temperado que eu tocava todos, e os padres chegavam durante a missa e diziam: ‘Agora não! Pode parar! Está na hora de não sei o quê” – “Mas deixa eu tocar mais um pouco” – “Não está na hora de parar!”. Então eu tocava isso, ouvia a minha mãe cantando serenatas e meu avô Antonio Gismonti era compositor de valsas, lindas! E meu tio Edgar era um compositor de canções maravilhosas. E os primeiro discos, você falou em “Água e vinho”, antes do água e vinho tem um da Odeon que tem uma árvore na capa e antes desse tem mais três discos. No disco que tem uma árvore, tem música dedicada a Anton Weber. Chama-se “Dança das sombras” com escrita de música dodecafônica e tem canções. E as canções que foram para o disco água e vinho eu disse: “Como é que eu vou fazer estas canções eu tinha que ter uma estrutura”. Eu tinha uma formação muito rígida de conservatório apesar das canções e eu disse: “Isso tem que ser feito...”, e eu era uma pessoa dedicada a Villa Lobos e eu disse assim: “tem que ter a associação brasileira dos cellos” que foi a que acompanhou Villa Lobos a vida inteira e é esta associação que toca no disco. E este disco eu tinha 22 anos, 23...quando gravei. Então de forma que com 23 anos como já tinha passado pela mão de Jean Barraqué, Nadia Boulanger e Marie Laforet que é uma atriz francesa. A noite com a Marie tocando can-can e de dia estudando com Nadia Boulanger – a minha vida sempre foi assim. E Geraldinho Carneiro me perturbando a cabeça dizendo: “Temos que gravar este disco de canções, maravilhosas canções”. Eu disse: “O Geraldinho, eu não sei cantar” ele disse: “Não, sabe”. E eu morria de medo de cantar, e não cantava direito e me sentia mal. E eu digo: “Associação brasileira de cellos vai me dar uma competência, vai me dar um lastro maior de qualidade do disco. E o grande, o cabeça da associação brasileira dos cellos era o Peter Dauelsberg um dos grandes cellistas que o Brasil já conheceu que era um alemão que veio e trouxe toda a competência alemã pra botar na OSB. E o regente era o grande Mário Tavares, um sujeito que eu admirei a vida inteira e foi grande amigo meu. Negócio da coleção de amigos é antigo, você está vendo? Bom, e aí, eu não tinha uma música definida o que é que eu queria fazer na vida. Eu achava que a música podia ser cantada ou tocada. Na época eu não sabia que a música podia ser tocada de cento e oitenta maneiras diferentes e cantadas de não sei quantas, o que eu não sei até hoje. Cantada eu não sei, mas tocada eu sei que tem uma meia dúzia de cem aí no meio. Então o fato de ter aquelas canções era porque eu

211 gostava e gosto de canções. E cada vez gravei menos canções cantadas. Porque a aproximação com... Dois ou três parâmetros que são importantes: primeiro, eu sou um apontador de música, não sou exatamente um compositor. É um tripé isso aí: Eu aponto, anoto, acho alguém que executa, que torna isso mais verdadeiro, e felizmente tem alguém que escuta e confirma a necessidade da existência disso, aí fecha o diálogo. O fato de eu escrever música e achar que a música é ótima, não significa nada até porque ela não existe, só eu é que sei que existo. Só eu é que minto ou não, coisas inventadas de Manoel de barros, de que aquilo existe ou não. Você vai acreditar ou não. Só eu que escutei e anotei. Como a maioria das pessoas não lê partitura, eu posso dizer que ali tem uma nona de Beethoven. Aí consigo os músicos que tocam. Quando eles acabam de tocar, se não tiver uma audiência, 5 pessoas, 10, mil, não interessa, que justifique a existência daquilo, não através do reconhecimento sob a ótica do capitalismo, mas o reconhecimento da única função que a música tem que é o entretenimento de dar ao outro a expectativa de que a vida vale a pena. Cabo. Não vale a pena? “Ah, interessante, muito interessante esta música”- “Ah é, interessante? Então vai praquele lugar”, porque o sujeito escreve um troço louco, sai, toca e o outro ouve e diz “interessante” é porque tenha a santa paciência, né? Negócio tem que jogar no lixo ontem, né? Porque não dá mais tempo pra não ser possível. Este século, acho eu, XXI, só tem uma vantagem: o que eu não sei que resultado terá: a vantagem é que vale tudo. Vale tudo. E o tudo aqui quer dizer que... Anton Webern, nos dias atuais, não seria Anton Webern do pré segunda guerra mundial. Mas se aparecer um sujeito que tem uma idéia tão complexa, feito fazer do dodecafonismo uma coisa sintética, como ele fez. O estudo dele é muito síntese, Webern cabe em dois k7 a obra inteira de 60 minutos, não tem nada tão. Hoje como cabe tudo não dá pro gênio incompreendido, porque não tem como não ser compreendido. Não é? Enquanto Jean Barraqué, Jean Barraqué foi o sujeito que estava com Anton Webern nos festejos do final da segunda guerra na Áustria quando os dois, estavam no Tirol na Áustria, estavam numa daquelas casas, sei lá o que quer dizer isso, aquelas varandinhas com florzinha não sei o que, e as pessoas comemorando e tal não sei o que....A morte do Webern foi assim, se você não sabe estou te contando, eu conheci estudei com ele com o cara que estava com ele neste dia. Aí ouviram muitos festejos, e apareceram na janela, foram numa janela olhar eram soldados americanos que estavam festejando. Um dos soldados achou que eram dois nazistas e matou o Webern. Pronto. Foi assim a morte dele. Tem este lado negro da coisa, a vida tem que ter isso aí. Isso daí torna a história dele a vida dele muito mais dramática e torna a vida do Jean Barraqué que eu estudei um inferno, a vida deste sujeito era um inferno e sempre foi. Me encontrei muitas vezes durante meses e ele nunca olhou pra mim mas de três segundos ou quatro. Ele falando, sabe aquelas pessoas que falam com você assim (imita) é um horror este troço. E muito azedo o tempo inteiro. Quando ele me emprestou os acetatos e as partituras, anos depois eu entendi que era por necessidade de se comunicar com alguém, porque ninguém ia a casa dele, ninguém gostava deste cara, nenhum músico tocava até hoje não tocam, uma coisa horrorosa. E como eu estava lá e devo ter aparentado ser um latino americano completamente vendido a cultura européia, o que é verdade, ele deve ter prestado um favor autoritário me xingando de ignorante e de tudo mas me deixou levar o discos que eu sequer pedi. Eu não sabia que existia estes acetatos. Já me perguntaram na comunidade, não na comunidade mas no grupo, né: “Como que você pediu?” eu disse: “Eu não pedi ele que me ofereceu” – “Oh! Você é um compositor

212 extraordinário” – eu disse: “Não, ele era uma solitário de marca maior, quer dizer, ninguém era mais solitário que este cara Vivia numa solidão extraordinária”. O único sorriso que este sujeito me deu, o único sorriso: Ele tinha uma parede oposta a isso que você está vendo aqui que é cheia de lembrança de quadro, de cores, zero, nada. E num ponto, que não era nem um ponto de referência, de nada, um lugar assim, tinha um prego na parede, um prego, um prego meio torto, meio estranho, com uma rosa de prata com um cabinho, não sei o que meio pendurada, naquele prego. Sabe uma rosinha assim, meio de prata. E eu sentava num lugar e aquele troço ficava bem na minha frente, e digo: “que que é este troço esquisito, esta rosa, nesta parede”. Não sei nem se a parede era branca era um troço meio estranho, ela tinha uma cor meio pátina do tempo, tudo meio fechado, pouca luz, aquela coisa. Um dia eu digo: “Senhor me desculpe, senhor Barraqué, pardon me, jê me recevoir, est-ce que jeux peux vous faites une question. Ele disse: “Oui!.” Eu disse: “Estou muito curioso a respeito daquela rosa” ele sorriu e disse assim: “Roubei do túmulo do Beethoven”. J´ai voulait du cemitière de Beethoven”. Eu pensei, será que eu entendi direito, mas não podia perguntar, que era uma, meia palavra, acabou, tchau. Era genial este troço. A rosa ta na dela, o Barraqué ta na dele, onde eu quero chegar é que esta formação que eu tive, onde tudo sempre morou misturado, continua. E o fato de morar misturado na prática, e eu to falando na prática porque eu tenho a prova da minha vida sonora. O que não foi feito com esta intenção mas me ajuda a sobreviver. Quando eu olho eu digo assim: “Que beleza que a vida me deu uma dúvida em relação ao violão”...que veio parar nas minhas mãos ocasionalmente, um violão de sete pra oito cordas. Oito cordas. Que eu tinha comprado em Paris, eu queria um violão de sete cordas mas não tinha, tinha um violão de oito cordas, e eu trouxe de oito cordas. E eu disse: “que beleza! Pela falta de informação do que é que isto faz, porque eu jamais pensei que aquilo era feito pra substituir alaúde. O violão de 10 cordas que eu uso, não o meu, mas violão de dez cordas, existem, nas mãos de tantos violonistas de 30, 40, anos pra cá pra substituir alaúde porque é mais prático pra carregar, não tem aquele bojo, impossível do sujeito carregar, avião nenhum entra aquele troço, enfim. E eu não sabia disso. E eu simplesmente não tinha as cordas graves e comecei a experimentar e descobri que uma corda aguda poderia ajudar o meu raciocínio pianístico e não violonístico. Tudo isso eu sei e tenho certeza de que aconteceu porque eu tenho o registro disto acontecendo. Então a vida sempre foi muito benevolente. E quando eu gravei as canções mas pra ter uma base concreta, bacana, sólida pra sustentar as canções, eu digo: “eu quero a associação brasileira dos violoncelos”. Sorte a minha porque eu já estudava violoncelo com o Peter Dauelsberg e o Mário Tavares eu já conhecia. Eu já tinha feito um ou dois discos antes e já tinha gravado o tal disco que tinha uma árvore que é o disco que quando os músicos entraram no estúdio, foi por conta de quem regeu e de quem era o diretor musical, etc, que eles aceitaram aquela empreitada. A primeira vez que eu fiz arranjo na vida, Bia, profissionalmente falando, foi no festival da canção que eu participei com uma música chamada “O Sonho”, que quando eu cheguei com o arranjo...este festival acontecia no Maracanãzinho e maracanãzinho vazio era um local de reverberação absoluta, concreto puro, não sei o quê, redondo, e tinha uma orquestra que era a OSB que tocava pro Festival que, nestes anos aí, final dos 1960 e 1970, orquestra tava em todo canto. Orquestra era o instrumento da hora, de se usar. Isto e trios, piano, bateria e baixo tinha em todo canto e orquestra. E eu fui pro maracanãzinho informado de que os arranjadores levariam os seus arranjos. No dia tal, não me lembro, 20 ou 30 pessoas selecionadas, mas eu não me lembro quantas, iriam 10 por dia, eu fui em um dos dias. Só sei que eu cheguei e

213 ficava sentado com os arranjos, os arranjos significam que tinha grade manuscrita e tinha as cópias feitas que eu tinha feito também. Pros músicos, claro, tinha que fazer as cópias. E não era faz uma cópia e fotocópia a duplicação dos primeiros, segundos, quartos violinos, não. Faz as partes. Não tem este negócio de foto cópia. Até porque o papel que se usava era um papel, era o A3. Porque as orquestras eram grandes e os maestros precisam de, quanto maior a orquestra mais distante eles tem que ficar da partitura pra poder enxergar a orquestra, maior tem que ser a partitura pra eles poderem enxergarem. Hoje eu escrevo versão A3 para regentes de grandes orquestras. E não precisa ser A3 pros músicos hoje em dia, não precisa porque você pode imprimir a laser e a qualidade de hoje é tão boa que você pode fazer em A4 e tal. Pode paginar, né. Virada, tudo fica mais confortável. E quando eu cheguei com este arranjo, tinha um regente lá que eu esqueci o nome que estava passando os arranjos. Até que anunciaram meu nome. Eles anunciaram: “Fulano, de tal, música tal”. Ai o sujeito ia, levava as partes. O sujeito ia com arranjador com quem quer que seja. Eu no meu caso fui sozinho porque eu era sozinho mesmo eu tinha chegado de Nova Friburgo, não conhecia ninguém era sozinho. Aí eu fui e levei. O regente olhou a música, distribuiu as partituras... e essa música “O sonho”, tinha no arranjo lá, dois quintos do arranjo, no mínimo tinha um si bemol. Segundo espaço superior na clave de sol, que ficava sendo tocado pelas primeiras cordas o tempo inteiro. E o resto da orquestra se mexia como se aquilo fosse um varal sustentando coisas. Ou, como dizia a letra, era a descrição de um vôo interplanetário como se tivesse vendo uma linha do horizonte do céu. E os músicos da orquestra, que nunca tinham tocado nada meu e não tinha porque conhecer que eu não tinha feito nada mesmo começaram a tocar aquele si bemol..té, té, té, té, té, té....depois começaram a mexer com o instrumento. Claro: “Que é este cara que não sabe outra nota?”. E nisto, o tal regente que eu não me lembro quem era. Tinha todo o tipo de músico lá, regendo. E eu sentado apavorado que eu estava vendo que aquilo estava virando uma bagunça absoluta. Totalmente bagunça! Todo mundo se divertindo, rindo. Até porque tinha um menino ali que entregou a partitura. Falaram, aquele menino ali era o carregador. E você vai entender o porquê. Neste momento eu olho e ouço uma voz: “Espera um pouco, espera um pouco”, e eu olho e reconheço Radamés Gnatalli levantando de uma das cadeiras, que ele um dos regentes, vindo em direção da orquestra e disse pro tal regente: “Fulano, com licença orquestra, deixa que eu vou tomar conta desta música”. Você como é que a sorte me persegue a vida inteira. Ai ele sentou e disse assim: “Todos agora, relaxem, que eu tenho que conversar cinco minutos com este menino aqui pra saber umas coisas e olhar um pouquinho a partitura antes”. Ai ele perguntou: “Oh, menino, quem fez este arranjo?” Eu disse: “Fui eu”. Ele disse: “Não, você trouxe o arranjo. Quem escreveu?” Porque alguém de 21, 22 anos não podia escrever pra uma orquestra...Eu disse assim: “ Fui eu” – “Ah, foi você que escreveu o arranjo?” – “Escrevi”. Ele pegou a partitura e disse assim: “O que que é isso?”. Eu disse assim: “Isto é segundo clarinete fazendo uníssono com segundos violinos, muito usado por Debussy, que a orquestração cria uma sonoridade muito quente.” – “E isso daqui” Eu digo: “Isso daqui é não sei o que...eu tinha teoria musical pronta porque eu tinha estudado, tinha estudado na França, tinha chegado de Madame Boulanger eu tinha analisado Sagração da Primavera. Ele disse assim: “Mas, como é que você sabe isso?” Eu disse: “Ué, porque eu estudei aqui no conservatório e fui pra Paris e fiquei lá em Paris e estudei com Jean Barraqué e Madame Nadia Boulanger. Ele disse assim: “Orquestra, parem um pouco. Você é o compositor da música?” Digo: “Sou”. – “Ele é o compositor da música. Você é o arranjador?” Digo: “Sou” – “Você é o copista também?” – “Sim, o copista.”

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– “Pra todos que estavam brincando com a música eu quero avisar que acabou a brincadeira, talvez eles não tenham um compositor tão novo”. Foi a primeira vez que eu ouvi a palavra “cabedal” – ele disse assim: “Com tanto cabedal. Porque é que você colocou esta nota parada lá em cima, lá em cima, que os músicos estão brincando de fazer assim não sei o que...” eu disse: “Eu botei aquela nota porque é uma música que tem uma espécie de harmonia de bitonalidade, acordes superpostos como Stravinsky usou na Sagração”. Ele disse assim: “Vocês estão ouvindo isso aqui ou não? Vocês estão brincando por ignorância ou estão brincando por que razão? Como é que você quer que esta nota soe? Você quer com muito vibrato, pouco vibrato” Eu disse: “Eu não sei...” – “Não tem problema que você não sabe. Toquem com vibrato. Só os primeiros violinos os outros calados não dêem uma palavra”. Ele disse assim: “Gostou?” – “Não sei direto” – “Com menos vibrato! Gostou?” Eu disse: “Tem mais uma possibilidade?” Ele disse: “Tem. Sem vibrato. Qual você prefere?” Eu disse: “Com mais ou menos vibrato”. – “Médio vibrato. Escrevam. Médio vibrato. Você quer vibrato com dedo mexendo ou com dedo tremulando?” A diferença é (imita os dois sons, um mais largo e outro mais rápido). Eu digo: “Prefiro assim este”. – “Bota, rápido, dê um corte acima do “tr”.” E pra orquestra ele disse sim:“Muito bem, desencostem dos encostos todo mundo na ponta da cadeira que é pra tocar direito esta porcaria aqui. Só quem tem o si bemol, o resto calado”. E passou o si bemol durante dois ou três minutos. E assim, afinando: “Nem toquem o si bemol agora”. Aí ele olhou a partitura, ele lia muito bem, Radamés, ele disse assim: “ Instrumentos a, b, c, d, vocês vão tocar acordes perfeitos maiores”. Ré maior, Mi bemol, Lá Maior, Fá maior, etc. - “Parem estes. Os outros, vocês vão tocar também acordes maiores. Repararam que as tonalidades são superpostas? Qual é a bitonalidade que você está se referindo na Sagração?” Eu disse assim: “Sol, sib, réb, mib, com mi maior na mão esquerda. Ele disse assim: “Lembram disso? Na Sagração da Primavera? Nós estamos com um menino que eu pensei que fosse o carregador que está fazendo Stravinsky durante o Festival da Canção Brasileira. Ou seja, no Brasil cabe isso, um menino vêm aqui pra nos calar todos...”. Não tô querendo falar de mim tô querendo falar...o Radamés que possibilita que, a partir deste momento, todos os músicos brasileiros, a partir desta semente da OSB e depois das orquestras brasileiras, etc., foram expandindo e chegou a muitos lugares do mundo, passaram a ter um respeito absoluto pelo que eu escrevia. Porque eu tive a aprovação do Radamés e de outros regentes a ponto de Mario Tavares ter vindo reger o disco Academia de Danças que é aquela orquestra, você pensar que aquilo é gravado em dois canais. Ali tem que tocar. Então porque que hoje, de dez, quinze anos pra cá, eu só gravo em dois canais. Não gravo em 40, 100, 200... Porque o único legado que eu posso deixar hoje...talvez...não sei se você sabe, são 68 discos já gravados. Bom, o legado que posso deixar é lembrar aqueles que pretendem tocar de forma tradicional que deve-se tocar do início ao fim. E se não tiver nenhum erro surpreendente, negativamente, deixe-o que ele faz parte de você mesmo, porque a vida é assim. Não corrija. Se depois de um, dois, três anos você descobre que o erro é muito grande, e eu estou respondendo a canção, viu? Como eu descobri passados muitos anos que cantar me deixava muito mal dentro do estúdio, passava mal, me sentia...Eu entro em palco pra tocar com qualquer orquestra do mundo, só não durmo porque pegaria mal, porque o relaxamento é tanto...e se eu tiver que cantar três notas....Falar é diferente, eu posso parar em qualquer lugar e falar em qualquer língua horas sem problema nenhum. Cantar não. Que eu sei que eu não estou afinado. Eu sei que eu não estou seguro. Eu sei que eu não consigo interpretar a coisa como eu acho que tem que ser. Quando eu gravei a música x e descobri três, quatro

215 anos depois que estava ruim eu refiz, por isso tem um monte de música que eu repeti na minha vida destes discos aí. Porque eu vou descobrindo que está mal feito. Eu digo: “Cacete, eu achei que isto estava lindo e está uma porcaria, tá cheio de erro isso aqui”. – “Ah, mas ninguém achou!” Eu digo: “Eu achei!” Então me deram a chance, que eu também não entendi até hoje porque que produtores continuam patrocinando quem já gravou tanto e não para de gravar nunca! Hoje em dia eu já não dou mais satisfação de nada. Eu digo assim: “Ah, o disco ...está arriscado a ter uma música só de 70 minutos...” – “Não tem problema” – “Então está ótimo!” Pronto, é isso. Depois de uns anos, eu tive pessoas assim no disco, tipo a minha mãe que cantou uma das valsas que meu avô fez. Tive Zezé Mota que entrou no disco e cantou uma canção da espera que é uma coisa teatral que eu fiz com Geraldinho pra uma peça de teatro. Tive Nora Winston, inglesa dedicando um disco inteiro a musicas minhas. Tive gravação de Sarah Vaughan. Tive gravação de Jane Duboc, tive gravação de tanta gente! Eu disse assim, mas eu não tenho que cantar, eu não sei fazer isso direito. – “Ah, mas você não gosta?” – “Gosto! Mas eu faço mal! Aí eu faço em casa. Ou então aqueles shows que tinham na década de 80, 90, vamos levantar fundos pro Macalé e Macalé chegava e dizia: “Pois é, eu preciso acabar de pagar meu apartamento...” A gente fazia show pra ele ganhar dinheiro e tal. Ai todo mundo cantava e tal. Na brincadeira vale a pena. Mas eu não tenho direito de fazer mal feito. Então aqueles discos, felizmente apareceram aqueles malucos que produziram! E eu posso ter a lembrança de como era bom o meu francês. Pronto. E não canto mais por esta razão. Tem uma vez que eu cantei por insistência. Isso eu nunca escrevi no disco e não escreveria. Tem uma música chamada, que eu fiz com Paulinho Pinheiro, chamada “Saudações”, que eu dediquei pro João Gilberto. Tem várias gravações. Tem uma gravação do Gilberto Gil. A gente tocou muito, eu e Gil, a gente rodou muito ai, tocando junto e tal, e ele queria, por que queria, porque queria, e gravou várias coisas. E ai uma vez eu liguei pro João, que minha conversa com o João era sobre meu tio Edgar. Porque eu mostrei pro João o Hino do Carmo, que é uma maravilha, você não tem idéia do que que é o hino do Carmo. Quando acabou o João disse assim: “O Egberto, você tem certeza que esta música é do Tio Edgar?” Eu disse assim: “Tenho” – “não é possível, esta música não é possível”. Porque é o hino da cidade. O hino da cidade por melhor que seja o hino, tem um parâmetro de entusiasmo isso determina o hino, porque você não vai fazer um hino pro sujeito ficar todo introspectivo. O hino não era isso. Bom. Exaltar. E o hino do Carmo, feito pelo tio Edgar, não só é em tom menor o que já é uma beleza; ele tem coisas harmônicas que contradizem tem coisas cromáticas na harmonia que são muito impressionantes, tem melodias, tem uma melodia muito fora do tradicional. A segunda parte do hino (canta), é uma encrenca danada. E quando eu mostrei isso pro João e o João disse: “O tio Edgar é uma beleza”. Ai um belo dia eu liguei pro João e disse assim: “João, fiz uma música e quero te mostrar”. – “Mostra”. Aliás, quando eu liguei pro João não, quando o João me ligou. Ninguém liga pro João, João é que liga de volta, né. De volta porque ninguém ligou e ele liga. (risos). Ele ligou e ai eu cantei pra ele no telefone: “Que prazer, rever- te, gozando paz...” quando acabei ele disse assim: “Você canta esta música que é uma beleza”. E eu acreditei. Por isso gravei isso. Claro que gravei no disco Nó caipira, mas botando um violão que é o violão mais torto que já foi tocado por aí. O cara bêbado, absolutamente bêbado tocando aquilo. Ai ficou uma beleza. E nunca cantei isso ai em lugar nenhum no mundo. Todo mundo diz: “Ah, e aquela música linda...” eu digo: “pois é, tá ótima, tá lá no disco, bota o disco lá e tchau”.

216

E o Tom Jobim?

O Tom eu o conheci por conta do Geraldo Carneiro. Geraldão, pai de Geraldinho. Geraldão carneiro foi o assessor de Juscelino Kubistchek, então de forma que na casa do Geraldão, que eu pude freqüentar a vida inteira – quando eu cheguei no Rio de Janeiro conheci o Geraldão quinze dias depois. De forma que, ali tinha a porta do paraíso, era ali. Na casa dele, todos que depois eu entrelacei-me de amizades, na engenharia, na medicina, na pintura, na literatura e na música. Todos eram residentes freqüentes companheiros do Geraldo. A turma da poesia, por exemplo, quer dizer, eu conhecia todos os mineiros todos os cronista, Carlinhos Oliveira, Rubens Braga, não sei o que, todos poetas de maneira geral, Paulinho Mendes Campos, a turma da medicina ia deste Pitangui até não sei onde, todo mundo. A turma da música tinha desde os mais recentes Milton Nascimento, Gonzaguinha, Caymmi, Dori Caymmi, que freqüentavam a casa dele o tempo todo. E que eu ia conhecendo todo mundo. Ferreira Gullar... João Cabral de Melo Neto eu conheci na casa dele. E passam-se os anos uma amiga em comum a todos, incluindo Geraldão, Marilda. Faz uma série de antologias poéticas. Do Ferreira, do João Cabral você não tem? E do Dorival... não, do Dorival não! como é que chama...do ! Porque Dorival e Jorge Amado é parecido, quase a mesma pessoa! (risos) Você também não conhece essa. A do João Cabral eu pude usar tudo o que o Jean Barraqué me ensinou e fez de cara feia, porque ele só gostava de Anton Webern. João Cabral de melo neto só gostava de Anton Webern. Ocasionalmente eu conhecia Anton Webern razoavelmente bem, por causa dos estudos. E tem sempre uma história relacionada. Quando eu fiz muita coisa com Drummond, Carlos Drummond de Andrade, só consegui aprovação mesmo do Drummond, quando me preparei pra um encontro com ele assim, de maneira substancial, porque eu sabia do que é que ele gostava. Curiosamente, do mesmo jeito que João Cabral gostava de Webern, o Drummond gostava de um compositor chamado Paulo e Silva, que criou um manual de harmonia usado em escolas tradicionais, que é uma das pessoas mais anti-musicais do mundo. Paulo e Silva é um daqueles compositores que compõem que você diz: “Agora vai ficar bom!”, aí acaba. Não tem muitos sentido, os encadeamentos não funcionam. Estreitou uma amizade tão grande com o Drummond. Era um período que os discos, nos discos que eu fazia, ia encartado, tamanho tablóide, um jornal chamado jornal caipira. Não sei se você chegou a ver o jornal caipira. Foram quatro ou cinco jornais deste. Não sei qual que você tem mais os jornais normalmente tinham 16 a 20 páginas. O que é normalmente um absurdo, você pensar que, você pega um disco que já tem capas duplas, encarte, fotos, o cacete, aí bota um papel “caiovac” pra segurar o jornal porque ele não pode dobrar...ai caber dentro do disco senão empena o disco. E depois de quatro anos eu já sabia desde o segundo ano, eu sabia, não que eu tivesse tido a intenção inicial, mas isso provocou, uma consciência que muita gente adorou e eu adorei também. De que o fato da companhia lacrar o disco pra segurar o jornal, o lacre de cada disco feito com este papel “caiovac”, papel filme, que a gente usa em cozinha, cada um era contado por cada um, como era contato por cada um você sabia quantos discos tinham saído da companhia. O que de certa forma era esclarecedor pra qualquer questionamento de imprimiram mais discos do que deveriam. É evidente que passado três, quatro anos a companhia não só percebeu que tinha isso, o que não era, enfim, não era por ai que eles iam deixar de fazer, mas eles também descobriram que o jornal, do jeito que ele progrediu, estava tão caro feito a produção do disco inteiro. E ali também não era possível. Mas o Drummond chegou a escrever um texto

217 chamado: Aos mortos do Carmo. Que é dedicado a minha família. Que é um negócio maravilhoso. Quer dizer, ter amizade com esta gente...Ferreira Gullar...Ferreira agora, não sei você sabe vai ter a reedição do poema sujo e é evidente que eu sou convidado a participar. Eu disse: “Mas Ferreira, mas uma vez? Nós não fizémos nada bom juntos?” Ele disse: “Vamos continuar juntos, nós dois, que ta uma beleza”. Não vou compor! Não tem que compor mais nada pro Gullar. Gullar não tem que escrever mais nada e eu não tenho que compor mais nada, eu vou me encontrar e dizer: “Lê uma coisa aí”. Aí eu sento e toco, toco uma bobagem qualquer aí vai ficar ótimo sempre porque a gente gosta. Pronto.

ANEXO II

Entrevista com Geraldo Carneiro dia 20/11/2013 Gravado na cidade do Rio de Janeiro, Jardim Botânico.

Arte tem que ser amadora, este negócio de arte profissional é muito estranho. Eles me dão dinheiro por arte? Sim, eles me dão. Vivo disso a vida inteira. Mas eu acho tão estranho. Porque, tem alguma coisa errada. Ou então sei lá, tem uns mecenas interessantes que estão administrando os centros culturais mas não é muito normal. Quando você faz alguma coisa dissonante o mais comum é não te darem. Por exemplo este livro a biblioteca nacional publicou, eu achei tão estranho! Tem até Lula aqui: você abre tem assim: Lula, não sei quem...dinheiro do estado. Quando o estado brasileiro resolveu me publicar eu disse: Opa! Tem alguma coisa errada aqui! O diretor da biblioteca era meu fã e tal, ele achava que tinha que premiar três poetas brasileiros durante três anos, então não teve nem...tinha lá o conselho editorial formado por pessoas de altíssimo nível, o conselho aprovou unanimemente. Mas eu to bolado que, sempre dá uma sensação de estranheza...a gente se desaprovado é desagradável e ser aprovado também é esquisito...

É muito gostos também, ser aprovado, a gente fica feliz né, quando gostam do que a gente faz mas você fica também com uma estranheza. Será que eu virei passado? Ou que eu to fazendo uma coisa tão adequada? É bom quando rola uma dissonânciazinha, né? Aliás o Egberto é bom nisso. Sempre tem uma dissonância. Nunca foi totalmente consonante. Estas primeiras canções, por exemplo, que a gente fez, eram exercícios para piano. Super consonantes. Porque eram exercícios para piano.

Geraldo Carneiro em entrevista dada a autora associa as canções de Gismonti em sua parceria como “exercícios para piano”, “consonantes”, embora coloque Gismonti no hall dos artistas que cultivam “uma dissonânciazinha”. Este seu argumento está intrinsecamente ligado ao início de nossa conversa, quando falávamos sobre arte e mercado. Geraldo apresenta sua desconfiança em relação ao mercado, tecendo um argumento que beira o romantismo mas que revigora a

218 misteriosa força criadora e subversiva da arte; “quando você faz alguma coisa dissonante o mais comum é não te darem”.

Você estudou piano também, né? Estudei piano, é. Toquei piano quase que profissionalmente...profissionalmente não, eu tinha uma banda de quinta até os 18 anos. Aí meus amigos começaram a me empurrar para a literatura. Aí eu fui coagido. E eles tocavam melhor do que eu, quer dizer, sobretudo o Egberto tocava melhor do que todo mundo. Talvez ele tenha sido o meu grande incentivo de largar a música e começou a me encomendar letras. Aí eu já tinha uma afinidade imensa com o campo da literatura, que eu procurava ignorar e foi se tornando cada vez mais...

(Sobre canção e poesia)

Única coisa preciosa na minha vida: o amor em alguns momentos, o afeto, as amizades, muitas coisa preciosas. Os objetos...olha, se você tirar minha camisa e se você me der uma camiseta Hering furada, aliás, se deixar eu ando com uma camiseta Hering furada. Mas isso aqui é minha mulher que me bota no estilo, porque se depender de mim eu to ferrado. To ferrado não! To felicíssimo de camiseta furada. (risos) Mas quando você faz um poema ou quando você faz uma canção... Por exemplo: quando fizemos Egberto e eu, ele musicou aquela música o Palhaço. Ele musicou aquele texto. Era um texto feito por, (...) com coração. Era uma situação amorosa, estava me separando, tava triste, eu fiz um texto, notei o texto. Não tinha nem pretensões literárias com o texto, foi só uma anotação. Aí ele musicou tão bonito. E nós ficamos ali, ele me mostrou no piano. Sentamos num piano de cauda na casa dele, ele morava ali na rua (Turarapipe?) ali na gávea, e aí ficamos sentados lado a lado. Quando ele terminou de tocar ficamos os dois sem nos olhar, não pudemos nos encarar nos olhos que estávamos tão emocionados, com aquele episódio, e tão felizes. Felizes e ao mesmo tempo emocionados. Ele tinha conseguido fazer um objeto que nos tocava. E quando a gente faz uma canção ou faz um poema é a maior felicidade que existe. Em casa eu tenho um bauzinho cheio de poemas, alguns que eu vou jogar fora, inclusive queimar alguns deles que são...porque não são bons! Depois publicam! Depois você morre...Uma das espertezas do autor vivo é queimar o material que ele não quer que seja publicado..

Eu já tive crises muito loucas assim de, até de personalidade. Tripla personalidade. Uma vez eu tive um surto de criatividade e eu tinha três identidades: Uma era eu mesmo, outra era um negão que chamado...como era mesmo o nome dele? Esqueci o nome dele! Ele era péssimo, só fazia poemas assim, políticos, esculhambando o governo, esculhambando as autoridades, só isso...E uma mulher, que era chamada Caroline Gebara. Escrevia uns poemas assim, erótico, satírico. Debochava de tudo. E ela ficou tão forte, tão forte que as vezes eu estava no bar e ela começava a escrever, não tinha jeito, ela escrevia. Então, ai eu escrevi um livro com nome dela, publiquei. Depois eu publiquei, não este livro, quando eu fiz 50 anos eu publiquei um livro, numa mesa e a mesa ao lado tava ela. Uma amiga minha sentou e assinou os livros. Ela era tão assim, nitidamente constituída do ponto de vista psíquico que ela merecia uma pessoa. Então tem isso também, eu não quero que a Caroline Gebara se reúna ali,

219 porque ela é tão avacalhada, ela é muito avacalhada. Então quer dizer, desmoraliza tudo. Eu já sou um pouco avacalhado. Agora ela é avacalhadíssima. Sabe aquela O outro então, o coitado do Francis Hime, esse poema do negão, eu fiz e dei pro Francis Hime. Ai consegui o teatro municipal do Rio de Janeiro, no dia 7 de setembro, pra fazer o poema. Ai o Francis ia botar música e ai ia ter 4 cantores: Lenine, Zélia Dunkan, ...é...meu deus, esqueci o nome dos outros dois. Iam fazer o poema, era um crime, era um poema que cada verso suscitava 32 versos, falando mal de cada verso. Era um crime porque você não pode desrespeitar o hino nacional. Então tinha uma junta de advogados que iam lá e diziam: Olha isto aqui é um crime. No Brasil se você cometer crimes leves ninguém nem se dá conta! Pra mostrar que aquele hino é horrível, que o Brasil é uma porcaria, era uma porcaria naquele tempo antes de ontem melhorou um pouquinho... Isso tem 11 anos. Estava bem ruinzinho. Fernando Henrique vendendo tudo. O Lula vendendo tudo também pra entrar. Aquela coisa feia. Mas ele não tinha qualidade, então eu quero queimar este cara também! Eu vou queimar, senão publicam comigo, fica aquele troço lastimável.

Este livro mesmo tem um efeito gravíssimo: minha mulher me ajudou a editar. Então eu queria cortar mais uns 40 poemas. Mas ela não deixou. Minha mulher é poeta e editou o livro, então eu ficava brigando: “Corta esse, por favor, corta esse!” e ela dizia: “Não, este é muito interessante, que isso, que aquilo”. Eu consegui cortar uns 20.

Quer dizer, tem um antecedente histórico tão importante que daí a gente fica meio mixuruca: Fernando Pessoa, tinha aquelas personalidades todas aqueles heterônimos. Você ser apenas um negão, uma maluquete e um poeta do Rio de Janeiro é pouco né. Talvez uma peça fosse interessante.

Olha, quando eu o conheci ele já era um monstro. Um monstro pronto. Já tocava violão tão bem quanto baden powell, tocava piano tão bem quanto Luizinho Eça, era um monstro, um craque. Era um compositor já originalíssimo, com caminhos muito peculiares. Então eu me tornei, instantaneamente um admirador total dele. Isso foi em 1968. Conheci-o na casa do meu pai, ele esteve na casa do meu pai algumas vezes, e ai criou-se entre nós uma relação forte, grande amizade, e fomos nos tornando cada vez mais amigos. Houve uma época em que nos tornamos irmãos mesmo, havia uma fraternidade enorme entre nós. E em 1971 ele me convidou pra escrever uma letra, ele viu umas letras minhas feitas pra outros compositores, gostou muito e me convidou para escrever uma letra. Um destes estudos pra piano, que era o “Água e vinho” que foi a primeira música que nós fizemos. A segunda foi o “Ano zero”. E aí fizemos talvez umas 50 ou 70 canções, sem muita continuidade, quer dizer, de início fizemos umas 30, 35 canções, depois descontinuamente continuamos a fazer uma série de canções. Mas aí houve um divórcio, houve esta aproximação dele que era natural, com o imenso talento dele que era instrumental, e ele foi se bandeando para a música instrumental e foi cada vez menos fazendo canções. Nós continuamos às vezes, de vez em quando fazendo uma cançãozinha, só pra matar a saudade.

Nestas palavras observamos Geraldo descrevendo um pouco de sua atuação junto a Gismonti como cancionista. Observamos também que o autor continua se referindo

220 as canções como “exercícios para piano”, aparentemente num intuito de encaminhar o real talento de Gismonti para a música instrumental.

Mas ele escreve alguma coisa?

Olha, ele escreveu duas ou três. Ele diz que escreve, quer dizer, ele adora as letras que ele escreve, a gente sempre discute. Ele tem uma letra chamada “Café” que ele acha uma obra prima e eu não acho lá estas coisas. Mas ele deve ter umas três letras. Nunca escreveu continuamente, constantemente. Até escreve cartas ele é um belo epistológrafo, morou fora do Brasil a gente se correspondia muito. Ele poderia escrever se quisesse, mas quando você tem assim um talento extraordinário é uma pena. Até me lembro de uma historia da Gertrud Stein, grande escritora americana que tinha um amigão em Paris que era o Picasso. E um dia o Picasso, telefonou pra ela, nem sei se telefonou porque não tinha telefone, é, 1912, talvez já tivesse telefone. Ela era rica. Ou ele ligou, ou mandou um recado ou falou com ela num bar que tinha escrito uma peça. Ela ficou em pânico achando que talvez Picasso pudesse ser como escritor tão maravilhoso quanto era como pintor. Aí ele foi ler na casa dela e ela ficou felicíssima porque a peça dele era horrível. Eu não digo que as letras do Egberto chegassem a tanto, mas, quando nós nos reunimos – eu costumo dizer que foi um momento muito importante pra música popular brasileira – não pelo que nós tenhamos feito mas pelo que nós deixamos de fazer: Porque eu deixei de fazer as minhas músicas que eram medíocres e ele deixou de fazer as letras dele que eram piores ainda.

Antes do Egberto, como foi, o que você fazia?

Eu tinha desde menino assim, 16 anos, eu tinha um parceiro chamado Eduardo Souto Neto, com quem fiz umas 20 30 músicas. E tinha um negócio estranhíssimo, eu fazia irresponsavelmente. Ele não ele já era um maestro, compositor, até hoje é um maestro conceituado. Jovem, ele era muito jovem. Ele é neto do Eduardo Souto o famoso maestro dos anos 1930, fez a música o despertar da montanha que anotava músicas numa casa editorial no centro do Rio de Janeiro, os compositores que não sabiam música iam lá, cantavam e ele anotava, uma figura importante da música brasileira. Eduardo Souto neto também é uma figura importante, maestro e autor de várias músicas importantes. A última coisa mais famosa que ele compôs é o tema da vitória que é tocada pela TV globo toda vez que algum piloto brasileiro ganha a corrida ou qualquer acontecimento. Então ele tem várias músicas famosas, canções e temas, tal. E aí nós fizemos umas 20 ou 30 canções e o estranho é que toda canção que nó fazíamos era gravada e tocava no rádio , era uma coisa assim, estranhíssima. Primeira canção que nós fizemos tocou muito no rádio, era gravada por um cantor que até já morreu, Jorginho Telles. Depois a segunda gravada por uma cantora chamada Evinha, depois Peri Ribeiro. Todas as canções tocavam muito no rádio, era muito estranho. E algumas eram gravadas assim por cantores sinistros, estranhos, sinistro num sentindo antigo da palavra. Eu chegava em casa as vezes um pouquinho envergonhado com as interpretações, com as próprias letras que eu fazia, então eu não tinha muito apreço pelas minhas letras. Não tinha. Mas tinha algumas canções bonitinhas. Uma delas muito bonitinha, que a gente fez assim, muito novinhos, talvez eu tivesse 17 e ele 18 anos, chamada “Choro de Nada”, depois foi gravada pelo Vinicius, Toquinho, em 75

221 e foi gravada pelo Tom em 79. Então uma canção que acabou ganhando um pedigree histórico incrível porque foi gravada por estes dois músicos.

Como estas canções chegavam para ser gravadas

Até quando eu quis gravar eu dei uma de mineiro, sou mineiro de nascimento que é um atraso de vida terrível, todo mineiro nasce com trinta anos de atraso é horrível. Aí o tom falou assim: Vou gravar aquela música sua, com o Eduardinho Souto. Mas daí eu falei assim: Mas o Vinícius já gravou! Aí o Tom falou assim: Tudo o que eu faço o Vinicius já fez! Com um ar bonitinho. Aí gravou mesmo assim. Mas então tinha um outro parceiro também, Peri Reis, com quem eu tinha feito vária canções. Estas canções com o Peri Reis é que encantaram o Egberto muito e fizeram com que ele me chamasse para fazermos canções juntos. Fizemos muitas canções juntos. Nem sei dizer quantas. Contando tudo umas 50 canções. Só de filmes fizemos umas 15 canções. Pra discos fizemos pelo menos 30, então, são muitas canções.

Fazíamos pra filmes, éramos chamados. Nesta época usava-se muito fazer músicas temas pra filmes e tinha sempre uma musiquinha com letra. Outros filmes queriam muitas canções...cinema brasileiro estava imitando um pouco cinema americano, que estava com esta mania no início dos anos 1970. Eu acho que o estouro foi naquele filme Butch Cassidy and the Sundance Kid , aquela “ raindrops keep falling on my head” . Então todo filme queria ter uma canção tema. Assim que nós fizemos uns 6 filmes, assim. E um deles 10 canções. Fizemos muita canção pra teatro, pra peças de teatro. cantou coisa nossa, a Camila Mago, muitas atrizes cantaram coisas escritas pra teatro (Zezé Motta). E muitas canções também pra discos mesmo.

Muito jovens... Quando eu o conheci ele tinha 19 para 20 anos. E já era um craque assim, já estava prontinho. Porque tinha estudado num conservatório de música, a sério, e tocava este piano ai que eu te contei, tocava violão, tocava muito. Então ele já era um músico pronto. E a gente tinha que ficar pronto muito cedo. Claro que ficava pronto cheio de buracos, hoje as pessoas estudam mais, se preparam mais. Mas a gente se virava, estudava muito. O problema é que bebia muito também, então não sei como havia esta conjugação entre o alcoolismo e arte, mas o fato é que produzíamos coisas, nos arrependíamos de algumas, enfim, produzíamos muita coisa.

Sobre o primeiro disco – vários estilos

O segundo já era muito variado. Era um pouco americano. O terceiro já era mais....Teve um que eu produzi que rolou um rock mesmo. Que era o “Corações futuristas”. Eu até tinha a vaidade de ter, quer dizer, tinha Robertinho Silva e luiz alvez, o que já era meio caminho andado. Mas eu ajudei um pouquinho a empurrar (?) porque já era assim: “pó, mas a gente ta fazendo rock?” e eu dizia: “Faz rock aí, rapaz, tudo bem!”. Tinha umas canções super tristes também, em contraponto. Mas tinha uma abertura que era um rock progressivo grande que era tão bonito. Adorava aquele disco. Adoro.

No academia de danças ainda não tinha nada eletrônico! Só um piano fender. Aliás eu toquei um piano fender neste disco, engraçado. Faltou o Tenório Junior que era um

222 craque e ele disse: Toca aí! E eu disse: Pó, mas não sei mais tocar. E eu fiquei ali fazendo harmonia de jazz num piano herbie hancock muito mal e porcamente mas deu certo, ficou lá bonitinho. Fiquei orgulhosíssimo, eu já não era mais músico.

Estilo de escrita neste período

Ah, não tenho a menor idéia. Olha, eu comecei lendo Monteiro Lobato quando era criança. Aí tinha um amigo do meu pai, eu era exportado, era uma criança muito problemática, inquieta, rebelde, daí quando surgia uns visitantes ilustres na minha casa eu era exportado pra casa de um amigo. E este amigo era um velhinho que lia pra mim. Ai eu comecei a ler os caras que ele gostava que eram Cruz e Souza, sei várias decor, desde criança e Augusto dos Anjos. Aqueles poetas da virada do século XIX para o século XX no Brasil. Cruz e Souza é simbolista. Augusto dos Anjos eu nem sei o que ele é, nunca descobri o que ele é, porque ele é tão...não sei o que ele é. E mais engraçado: ele é considerado um poeta soturno, é muito triste e tal. Agora o Augusto dos Anjos pra mim é alegre pra cacete. Então ele carnavaliza a morte o tempo todo. Eu sou fã. Ele tem uma concepção assim da carne, a carne sendo consumida pela vida e pela matéria, eu acho tão lindo. Mas aí, lá em casa o velho testamento era Carlos Drummond de Andrade. A gente lia, falava, usava todas as expressões dele, como Shakespeare assim pra inglês, sabe, que você fala assim: “Você é grego pra mim”! A gente usava Drummond: “Cuidado, fulano, a vida é isto que você está vendo, hoje beija, depois não beija, amanhã é domingo e segunda feira ninguém sabe o que será!” Então Drummond era o nosso velho testamento. E o novo testamento era Vinicius, que minha mãe adorava, meu pai também. Então eu tinha livros, discos, gente falando Vinicius, de uma gravadora que gravou dois discos de poemas de Vinicius. Eram poemas tão fascinantes, que Nelsinho Motta escreveu aquela letra: a vida vem em ondas como o mar. É um verso do Vinicius, do poema Genesis: “porque hoje é sábado, todos os maridos funcionam regularmente”. Então as pessoas daquele tempo conhecem um pouco decor, mesmo as que não tiveram estes saraus em casa. Lá em casa havia saraus, mais de música do que de poesia, então eu fui me formando com este velho testamento Carlos Drummond e novo testamento Vinicius. Fui lendo todos. Fui lendo avidamente desde os 7 anos de idade, fui lendo tudo que me caia nas mãos, mitologia grega eu era apaixonado, romance de todas as eras. Li muito. Ai quando comecei a ler poesia mais determinadamente, ai adorei os poetas das vanguardas européias, era fascinado por Apollinaire, Eliot, Mallarmé nunca fui apaixonado mas li muito, pra aprender, ai comecei a me apaixonar pelos ingleses. Ai hoje em dia eu sou freguês dos ingleses. Acabei de publicar um livro também pela Nova fronteira com traduções do Shakespeare, que a vida inteira eu traduzi. A vida me encarregaram de, um carma. Meu grande amigo mais velho quando eu era menino, tinha 19 anos, fiquei amigo do Millor Fernandes. Ficamos amigos durante 40 anos, ele morreu ano passado. E o Millor me falava muito de Shakespeare, eu não entendia o porque ele dava tanta importância pra Shakespeare, eu só tinha lido umas edições da editora Aguilar horríveis. Ou em espanhol, ou em português, achava Shakespeare esquisito, achava que ele era jeitoso, tinha umas situações boas, mas a escrita dele era tão rococó, sabe. Aí, quando eu li de fato Shakespeare, ai fui ler profissionalmente, com 29 anos me encomendaram minha primeira tradução, foi da peça a tempestade, um grupo de teatro jovens, imagina, naquele tempo eu era um velhinho de 29 anos. Os jovens de 24, 25, tinha um grupo espetacular de teatro no Rio de Janeiro chamado o despertar, que montaram o “despertar da primavera”, ganhou este nome por causa disso. Aí queria fazer uma segunda montagem. Aí montou o Happy End do Brecht,

223 estourou também. Que tinha Maria Padilha, Miguel Falabella, Daniel Dantas, era um grupo bárbaro, de jovens cultos, jovens bacanas. Aí eles queriam montar o primeiro Shakespeare deles, ai chamara o velho poeta, sou velho desde os 20 anos, velhíssimo. Mas era velhíssimo porque quando você andava com as pessoas mais velhas, tinha uma atitude velha, então era velhinho. Depois que eu melhorei um pouco, mas neste tempo eu era detonado, acabado, um cara decadente, velho. Ai chamaram pra traduzir Shakespeare, pra eu dar um jeitinho no Shakespeare que não fosse daquele jeito daqueles tradutores insuportáveis. (...) Traduzi 6 peças dele sempre por encomenda de grupo relativamente jovens, aliás engraçado, nunca de grupo velho, sempre de gente jovem, curioso. Teatro é uma coisa tão jovem sempre, né. Os velhos nunca me encomendaram.

Então comecei a ler muito os ingleses. Pela poesia de língua inglesa. T. S. Eliot., poetas irlandeses, americanos, E. E. Cummings. É de uma simplicidade uma beleza. Fiquei apaixonado pelos poetas de língua inglesa do século XX. Aí fiquei apaixonado pelos poetas de língua inglesa do século XIX. Aí fiquei apaixonado pelos poetas de língua inglesa do século XVI e hoje. E hoje o William é minha paixão, não ando sem ele, não passo sem ele. Ele é minha paixão. Acabei de produzir e publicar sobre ele, fiquei tão feliz, deu um trabalho! Passei estes dois anos sem pensar em mim, o que é ótimo, só pensando nele. Ai eu li a coisa de todas as eras, só poemas de amor dele. Aí fiquei fã dos ingleses. Resumo: Drummond (velho testamento), o Augusto dos anjos, Vinicius (novo testamento), os franceses, depois ingleses. Aí não sei, conheço pouco dos espanhóis, não conheço muito dos italianos, conheço pouquíssimo. Brasileiros eu conheço bastante, quase todos são meus amigos, os vivos, e alguns mortos também. Já trabalhei com eles fizemos coisas juntos assim, debates, palestras, recitais, mas sou apaixonado pelos ingleses.

Como é pra você sentar e escrever? O processo? Nunca foi esquisito, sempre foi naturalíssimo porque me encomendavam coisas. Eu nunca escrevi porque eu quis, quase nunca. Eu escrevo assim, quando estou explodindo, ai eu escrevo. Escrevo assim quando a vida me constrange a ponto de não haver alternativas, se não o desespero ou o suicídio. Aí eu sou levado pra mesa e escrevo, ou então insultos maravilhosos de lirismo, aqueles que quando a vida me arrebata assim, maravilhosamente, tristeza não me dá muito animo pra escrever não. Escrevo uns poemas que até sempre acho horríveis, depois vou ler até gosto, acho bonito e tal. Acho horríveis. Agora a alegria me arrebata e me põe assim em estado de êxtase, excitação, uma vez durou sete meses. Fiquei completamente louco. E a minha mão escrevia a minha revelia, quer dizer, eu queria parar de escrever e a mão dizia não, tem mais um poema, aí escrevia mais um. Este surto maior foi quando? Tenho vários surtinhos. Este surto maior foi a tal da Caroline Gebara. Estes que não cabiam na minha moldura psíquica, então eu tive que lançar mão de outras identidades. Não tenho mais nada com Caroline Gebara, não tenho mais relações com esta senhora, nem com o MV Tião. Nunca mais escrevi uma frase do MV Tião nem da Caroline Gebara, as vezes surge assim, de contrabando, um poema deles, faz um versinho, que a gente é todo fraturado psiquicamente, né. Não tem o psiquismo muito continuo. Mas então pra mim poesia sempre foi uma coisa muito natural, eu nunca fui assim de....agora que eu to começando, depois de velho, a reescrever poema, nunca tinha reescrito poema na

224 minha vida. Porque o poema saia prontinho. Eu lembro que uma vez o Millor trocou uma palavra num poema meu. São duas pessoas que já trocaram palavras em poema meu: Uma foi o Millor e uma foi o poeta Chico Alvim, que achou uma palavra lá horrível. A poeta , trocou uma. Eu tinha escrito o poema, horrível, que estava no meu bolso. E eu estava com ela neste dia, ela era amiga e ex-namorada de um grande amigo meu mais velho do que eu 20 anos. Aí almoçamos os três, ela não era uma pessoa muito conhecida, também muito reconhecida, ela tinha até muita mágoa disso. Aí eu li o meu poema, eu nunca escrevo palavras de baixo calão, eu não acredito em palavra de baixo calão, pra mim todas são de alto calão. Mas eu não escrevo palavras consideradas de baixo calão. Aí eu tinha escrito a palavra xoxota. Que cabia no poema, era boa. Ai a Hilda falou assim: corta esta palavra aqui e melhora o poema. Eu disse tá bom. Cortei a palavra, publiquei o poema e tal. Ai uns três ou quatro anos depois ela publicou um livro erótico chamado caderno rosa de lory lambi. Eu falei: Pô, ela roubou minha xoxota, quero a minha xoxota de volta. E outro foi o Millor que um dia eu li um poema pra ele recém feito. (Recita o elogio dos soníferos) Trocou a frase do “aliás juízo sempre me falou e há de faltar, suponho, até a morte”. Ele disse assim, suponho não, espero!” Foram as vezes que mexeram em um poema meu. Claro que aas vezes eu dou um cortezinho, não gosto muito de um verso, não é que venha prontíssimo, não é assim aquela coisa João Cabral que vai quebra daqui, quebra dali, nunca tive isso, quer dizer. De certa maneira eu sou um pouco escravo da linguagem. Eu não domino a linguagem, ela que me domina. Ela que me sopra coisas, que me sugere coisas, que me propõe coisas.

Você pensa na sonoridade? Ah, desesperadamente. Não tem outra maneira. A fonética, é mais do que a fonética. EU sou escravo da sonoridade. Eu sonho em escrever alguma coisa muito cacofônica. O poema mais cacofônico escrito em língua portuguesa foi um poema escrito por Gregório de Matos. Tem uns versos assim, todos em epa, pa, upa. A coisa mais feia. Tem o verso mais feio que já li na minha vida: Busco uma freira que me desentupa. É muito feio. Então eu gostaria de escrever, já escrevi poemas cacofônicos, mas a calofonia que é uma palavra que não existe mas que os gregos endossariam, quer dizer, o som bonito, pra mim é uma escravidão. Não consigo imaginar uma frase sem som. Não consigo imaginar uma frase que não seja eufônica. Já escrevi alguns poemas que não são tão eufônicos quanto a gente pretende que sejam as canções e entreguei para pessoas musicarem. Poemas. As vezes a gente ta numa sintonia semelhante do que são poemas e canções, as vezes não, são mundos muito apartados. Eu entreguei uma vez um poema pro Francis Hime. Ele musicou e gravou. A musa da TV. Aí dizia assim (canta). Quando eu vi aquilo musicado eu disse: “Francis, eu vou trocar tudo isso que ta horrível, vou trocar estas palavras todas, elas não são eufônicas, não são musicais”. Aí ele sorriu e falou assim: “Não, parceiro, espera um dia parceiro”. Eu disse: “Vou trocar só o inicio, só os primeiros quatro versos”. Ele disse: “Não espera um pouquinho”. Aí no fim de uma semana eu já tinha me acostumado. Mas é difícil este jogo. E a Adriana Calcanhoto, fez uma vez uma letra pro Francis que era completamente cacofonica. Era dura, era imprópria, sabe, e era linda nesta bruteza. Chama “Um seqüestrador”. Muito bonita, exatamente por ser imprópria. Interessante este jogo de coisas adequadas e inadequadas. Funciona em arte. As vezes você faz uma coisa adequada e fica bacana, as vezes você faz uma coisa super inadequada e fica bacanérrimo. Ou mais bacana, muitas vezes.

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No caso do Egberto você recebia estas músicas primeira e fazia a letra depois? Quase todas. Ele só musicou o palhaço. Mas as outras todas eu pus a letra. Sou escravo mesmo da melodia. Tem este discurso mesmo de adequação ao som. O som é miraculoso, Você vê, eu não consigo ficar imune ao som. Toca uma coisa bonita ou uma coisa desagradável. .

Chet Baker é meu desodorante. Meu sabonete. Chet Baker é meu tudo, meu produto de uso diário. Então, tudo o que ele canta ou o que ele toca eu sei que é ele. Miles Davis também, eu ouço menos, mas tudo o que ele toca eu sei que é ele. Quem aprendeu tudo com Chet Baker, a cantar como ele, é o Caetano Veloso. Ele aprendeu a emissão, todas aquelas palavras da técnica vocal, como fazer com que a nota tenha uma determinada trajetória, como arrematar um som. Quando você ouvir o Caetano Veloso da próxima vez você vai dizer: Pó! Este cara é o Chet Baker. O que é um espetáculo. Eu gostaria de cantar igual ao Chet Baker.

João Gilberto também, né? Mas o João Gilberto é um pouco diferente, engraçado. João Gilberto odeia que fale em Chet Baker. Como ele pegou muito do Chet Baker ele fica. Ele deliberadamente se distanciou Ele diz que pegou muito do Orlando Silva. O que é um cão, como se diz em carioquês, significa falsidade. É um cão total. É uma expressão do candomblé que no rio de janeiro é corrente.

Mas então foi um encontro delicioso este com o Egberto e fundamental pra mim. Porque eu comecei a gostar mais da atividade de letrista e me dedicar mais a isto. Depois até fui transviado, fui levado até a atividade teatral por razões mercadológicas, comecei a não ganhar mais dinheiro, ai precisei, virei jornalista, virei dramaturgo, fui virando coisas sempre, enfim, pra ganhar a vida, mas durante muito tempo me dediquei a isto, quase que exclusivamente, isso e jornalismo um pouco, e, foi muito gostos ter passado esta fase. Até hoje tem uns surtos assim me chama pra fazer coisas e eu volto a este prazer de lidar com a canção.

Olha eu fiz muita canção com Francis Hime ultimamente, fizemos umas 30 canções nos últimos 4 anos, ele gravou umas 20 delas. Tem um CD sobretudo que eu adoro que é o “Arquitetura da flor”. Fizemos canções ali bem legais. E depois tem um que chama “O tempo das palavras”. Fizemos umas canções bacanas. Agora o engraçado é que a canção, várias pessoas já escreveram sobre isso, a canção não tem mais muito prestigio. Aquela história da morte da canção que eu acho que é papo furado. Sempre acho que é papo furado porque a canção sempre regressa. Ela morre, já morreu várias vezes. Ele é meio fênix, né. Vai morrendo e renascendo. Mas é curioso. Eu me lembro que o Lenine uma vez fez uma canção espetacular, num showzinho que ele lançou, antes de fazer a turnê mundial dele, a primeira. Ele fez um showzinho aqui no mistura fina que era um bar que tinha na lagoa e chamou os amigos. Entre ele era eu, e lançou uma canção, sensacional com a letra do Carlos Reno, que tinha oito páginas. Aí ele diz que reduziu pra três, que falava de todas as musas das canções, de todos os poemas. Ele ia desde a Beatriz de Dante, até a nega de . Uma canção espetacular. Aí quando terminou o show dele, isso foi há uns 8 anos, eu fui lá abraçá- lo, e disse: “Pó, que canção maravilhosa, esta canção vai estourar”. E ele disse: “Bicho, vai estourar onde?” (risos). Porque não há lugar de estouro de canção. Até agora existe de novo, existe a internet. Pra você ver como as coisas mudam rápido. Há

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8 anos pra mim não existia o lugar do estouro da canção. hoje eu já posso dizer: na internet. Bota no youtube. Se aquela canção estivesse na internet há 8 anos, seria um estouro, não digo mundial, mas na língua portuguesa certeza absoluta. Os 200 milhões de falantes da língua portuguesa iam ficar loucos com a canção. Tem uma jovem amiga minha, muito jovem, Clarice Falcão, que faz umas canções com umas letras muito criativas, ela já tem na internet um pouco de fama. Então quer dizer, a canção já renasceu. Este papo de morreu, se você esperar dois anos ela morre e remorre e renasce.

Sempre existem espaços. Por exemplo, acabou de morrer um compositor brasileiro, há um mês eu acho, Oscar Castro neves. Ele fez pouquíssimas canções, feitas nos anos 1960, mas ele tem duas ou três canções sensacionais, definitivas. Então quer dizer é engraçado. O Rei Henrique VIII na Inglaterra que tinha muito prestígio, rompeu com o vaticano, era um personagem histórico fantástico. Compôs uma canção, talvez tenha composto uma canção. Que é aquela Greensleeves. Claro que ele tinha um poder de divulgação muito grande, arrancava algumas cabeças, tinha a Inglaterra como caixa de ressonância. Mas, as vezes uma canção é tão importante na vida da gente. Como um poema, um poema pode ser tão importante quanto. Mas a canção ainda tem uma coisa encantatória mais, esta possibilidade de ser cantarolada.

Tem uns historiadores da arte que dizem que se alternam sempre períodos clássico e períodos românticos, e nos períodos clássicos o bacana é você repetir. Então, por exemplo, Petrarca escreveu as coisas dele lá no século XV, no século XVI o Camões queria repetir, o Shakespeare queria repetir, eles repetiam deliberadamente. As mesmas imagens, a mesma idéia, tudo igual. Depois no século XVIII o bacana era repetir de novo. A idéia de originalidade...a gente pode até brincar de originalidade. Você sabe que eu tive uma experiência curiosa: eu estava fazendo um poema e tava pensando em dar pro Francis Hime musicar. Mas já era um poema difícil tinha até a palavra cão e rimava com agogô. Duas palavras africanas. Aí tinha assim: “Quem é a minha adaga minha foice(...) (recita o poema)”. Ai terminei de escrever me toca o diretor do afroreggae. Querendo uma letra: “bicho, você tem uma letra?” Eu disse: “tenho” – “então manda pra mim”. Mandei. Aí chegou a letra lá, eles tinham uma batucada já pronta, uma embolada, que era igual a música. Coisa de 30 segundos, casou tudo. Eles foram gravar, ao invés de usar James Joyce da letra puseram Janis Joplin! Ai ia passando um cara, João Madeira, diretor deles e ouviu e disse é James Joyce. Os caras perguntaram: “Quem é James joyce?” É um escritor irlandês aí, ele existe. A canção tem esta maluquice de você misturar coisas que jamais entrariam em determinado contexto.

Depois do tropicalismo... A mistura de gêneros, de registros, certamente, o tropicalismo foi muito importante nisso. O tropicalismo talvez tenha deliberadamente empobrecido um pouco a parte musical do Brasil, mas significou, do ponto de vista literário, uma grande a letra chave talvez seja tropicália, que é...Mas eu acho que o tropicalismo intensificou este jogo de trocas. Eu tenho a mesma impressão que o Egberto. Eu acho o Gil incrível, adoro os sambas do Gil. Outro dia, aliás, participei de uma noitada de sambas com o Gil, mas pra surpresa geral, ao invés de ele tocar os hits, ele tocou as coisas que ele acha que são profundamente dele, Porque é evidente, quando você toca músicas até simpáticas pra quem gosta de dançar, nada contra quem gosta de ir a

227 show dançar, mas uma música como palco, a principio qualquer um pode fazer aquilo. Mas uma música como (canta “Roda” de 1967), aquilo é de uma originalidade! Mas ele sabe, quer dizer. Então o tropicalismo tomou este caminho deliberadamente, a revelia de uma inteligência musical que os tropicalistas tinham. É um jogo que foi muito fomentado talvez pelo Guilherme Araujo, pelo Andre Midani, sabe. Se você disser como eu tenho que escrever o pó ema, eu diria: “Olha, eu adoraria escrever um poema como você quer mas eu não sei”. Quando as canções, por exemplo, começaram a ser reféns do mercado, eu disse um dia pro Francis Hime: “Eu não quero mais saber de fazer canção”. Ele ficou chocadíssimo, ele é apaixonado por canções, ele faz obsessivamente canções o tempo todo”. Ele até entrou pra música erudita, já está na terceira sinfonia, fez umas três peças pra Raphael Rabello e orquestra, linda, que agora foi gravada pela osesp, fez uma pra harpa que vai ser gravada agora pela Cristina. Não queria fazer mais canção não porque eu não quisesse mas porque eu não tinha interesse, este interesse foi se tornando tão absoluto do ponto de vista mercadológico, eu passei a achar ótimo. Sobre este álbum, “Arquitetura da flor”, cagando pro mercado. Eu tenho discos meus, pena eu não ter trazido, um falando um poemão, maluco, música do Lenine, uma tolice, a biscoito fino lançou; e outro que o SESC fez que a Biscoito quis lançar também, que no lançamento eu debochei que o mercado estava tão acabado que o meu disco de canções era uma experiência de redenção do mercado. As pessoas morreram de rir porque o mercado tinha acabado. Então o que é bacana é que quando acaba o mercado entra o primado da arte. Não interessa mais, só interessa a arte. Não tem negócio: “Vamos fazer aquilo pra agradar o mercado”, não tem mercado! É muito bom, mesmo os caras que fazem sucesso no mercado hoje são pessoas que tem uma vocação legitima, não é uma falsificação. Não é gente que finge. Eu não agüento ouvir por exemplo música sertaneja. Não agüento. Mas, os caras que fazem hoje são os caras autênticos não são vigaristas que fingem fazer música, ou os caras que fazem axé, são autênticos! É uma autenticidade do seu mau gosto ou do seu gosto. Chamar de mal gosto é um pouco uma atitude elitista, ou assim, classista. Coitados, é uma ignorância total, falta de informação. Engraçado, muitas vezes também eu vi pessoas pouco instruídas encantadas quando se deparam com a instrução. Aliás, o Millor Fernandes tem uma história maravilhosa, ele fez uma reforma na casa dele e ficaram os livros muitos livros no corredor, para o escritório ser pintado. Aí, o mestre de obras, viu aquele montão de livros e disse assim: “Quanta ignorância!”. Quer dizer, tem esta atitude diante da monumentalidade do saber, mas tem também uma atitude de encantamento, o cara percebe: “Olha, quer dizer que pode isso?”. Meu filho mesmo, adolescente, estava em casa ontem, e eu tava ensinando ele. Eu estava fazendo um romance, para uma novela, já está no terceiro capítulo assim, meio machadiana. Ai eu peguei as duas primeiras páginas e fui ensinar pra ele como a gente fazia o acabamento. Ficamos três horas trabalhando no acabamento. Ele disse: “Isso dá um trabalho!” Ele ficou chocado. A Sandy, eu falei mal dela uma vez, mas hoje eu sou fa dela. Uma vez alguém me perguntou o que eu achava da Sandy e eu disse que ela devia começar a cometer sandices, parar de ser careta. Mas hoje eu percebo que é uma pessoa curiosa, que estuda, mas uma pessoa como Jorge Ben Jor, que é um gênio, um gênio primitivo, e não aprendeu nada com o passar dos anos ele faz as mesmas coisas, e são maravilhosas! Existem gênios com um conjunto muito restrito de informações. Até quando ele foi lançar, um cronista carioca que é o Sérgio Porto parecido com Stanislaw Ponte preta, respondeu ao jornal que escreveu sobre Jorge Ben (na época

228 ainda não era Benjor era Bem) que disse que o ele tinha pesquisado o folclore africano para escrever as canções dele. Aí o Sérgio Porto respondeu assim: “Pena que tenha pesquisado uma música só”; É uma delícia aquilo. Uma vez eu fui num show dele, deprimido, há uns dez anos atrás, estava tristissimo, aí daqui a pouco estava eu lá assim (dançando). Quer dizer, não estou fazendo aqui também um elitismo, uma apologia da superinformação. Tem aquele compositor erudito chato pra cacete, que tem um monte de informação e tem o Jorge bem Jor que com três informações. Então a quantidade de informação não é necessariamente a regra pra você produzir coisas interessantes.

E o Gismonti em relação a isso?

Eu acho que o Gismonti alterna um cerebralismo muito grande com muita emoção também. Ele é muito tocado pelas coisas do afeto. Tocado pelas relações familiares, pelas relações afetivas. Então é engraçado que a música tem esta dualidade. Às vezes ela se refugia na torre de marfim do cerebralismo e de repente mergulha no lago dos afetos. E alterna esses, ela tem uma ciclotimia, muito interessante, muito peculiar, isso me agrada muito na música dele. Estas alternâncias.

Toda biografia é louca. Outro que tem uma biografia louquíssima, que foi meu parceiro, é o Astor Piazzola. Ele nasceu na Argentina mas foi levado pra Nova York. Durante a lei seca, proibição. E o pai dele falsificava whisky na banheira de casa. E levava o menino, segurando o barrilzinho de whisky agarrado na motocicleta pra levar o barril pra vender. Então são assim, lances biográficos louquíssimos. Qualquer biografia que você olhar de perto não faz sentido. É o que os biógrafos depois, tentam dar uma estruturada. Nada faz sentido. Depois de um tempo as coisas começam a fazer muito sentido. O mercado dá muito sentido as coisas. No mercado das encomendas também. O Egberto vive muito no mercado das encomendas. Então tem, meia dúzia de orquestras, dez orquestras no mundo que encomendam peças a ele. Alguns diretores de cinema, então isso vai se configurando. As vezes o publico se forma de maneira acidental, o cara poderia ter ido um pouquinho pra cá um pouquinho pra lá, ou muito pra cá ou muito pra lá. A vida só faz sentido depois que o tempo passa. Eles abririam, com a Maria Laforet, na turnê mundial, eles abriam pro Ray Charles. Eles faziam a primeira parte do show e o Ray Charles fazia a segunda. Mas o Ray Charles não era o Ray Charles. Eu vi o Ray Charles neste show aqui no Rio de Janeiro no canecão, por acaso uma amiga minha me mando. E o Ray Charles era uma droga. O show dele era só um pouquinho de Ray Charles rolando e depois entravam aquelas cantoras que cantavam “I can´t stop loving you”. Achei uma droga. E eu amava Ray Charles, cantando aquelas músicas de negão assim. Mas nada faz muito sentido não. Começa a fazer sentido quando você faz uma leitura e esta leitura empresta sentidos.

É uma coisa meio interiorana assim que ele curte, né. Curte muito a cidade natal dele, o Carmo, e o Manoel pra ele ficou sendo o símbolo deste Brasil interiorano. Este Brasil de dentro. Este Brasil não cosmopolita, anterior ao cosmopolitismo. Embora ele seja altamente cosmopolita, é engraçado isso, né. Ele é um compositor muito cosmopolita que preza esta sua origem interiorana.

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Uma vez eu participei de um debate. Eu sou tão velho que todos que estavam neste debate já morreram. O mais velho que estava no debate era o Francisco Mignone. Na minha infância, ele morava no apartamento ao lado, era colado, então eu tinha o prazer de ouvir o maestro Francisco Mignone compondo as valsinhas dele, supostamente eruditas, quer dizer, são músicas semi-eruditas mas não deixava de ser erudita para os padrões brasileiros. Como o Villa Lobos, quer dizer, o Villa é um pouquinho mais complexo, Mignone também tinha uma certa complexidade. Então eu om 5 anos ouvia o maestro Mignone com 55 na parede ao lado. Então eu fui fazer um debate com ele na escola nacional de música aqui no rio, ele e um cara que era simpaticíssimo, que era candidato a senador, Arthur da Távola. Aí Mignone começou a defender o nacionalismo, mas um nacionalismo dos anos 1940. Não era nem um nacionalismo hoje, uma defesa de uma raíz, da cultura relativamente preservada na sua identidade. Eu não podia brigar com Francisco Mignone que era um velhinho, eu tive que dar uma volta pra não brigar com ele. Porque não dá pra brigar. Você vai ter que ter esta esperteza de “deixa o cara falar”. Não vai brigar com seu objeto. Deixa o objeto falar!

Poesia Marginal – contracultura

Olha, pra mim foi muito. Me puseram neste saco aí e eu nunca pertenci. Sempre achei que o problema é o seguinte. Quem inventou este saco foi uma amiga querida, professora, que tem hoje uns 76 anos, é uma mulher maravilhosa que me botou neste saco. Eu não era isso. Quando a poesia é poesia marginal? Quando a poesia está a margem do discurso do poder, das falas do senso comum, então toda a poesia é marginal. Agora, eu não me considerava marginal, eu sempre estudei na PUC, pertenci a uma família de classe média, tive uma boa formação literária então marginal em que? Branco, tenho trabalho a vida inteira, sempre usufrui das benesses do mundo. Nunca fui marginal. Reclamei disso diversas vezes, mas a imagem fica. E engraçado, e vários amigos meus, a Ana Cristina César, nunca, nunca foi marginal, ela tinha problemas de identidade, tinha esquizofrenia, era “marginalíssima”, mas não era marginal. Naquele tempo eu dizia que marginais eram os caras lá de Vigário Geral. Nem havia na época a expressão excluídos. Pra mim, marginal, eram estes caras, os que estavam fora do centro, os que não tinham a possibilidade de usufruto das benessses do mundo. Ficavam ali alijados a periferia praticamente. Mas aí você entra no meio. Fizeram uma exposição no Instituto Moreira Salles, e tinham quatro totens, reproduções de tamanho natural de quatro pessoas, e eu era uma das quatro pessoas. Então, quer dizer, como é que eu vou dizer que eu não sou aquilo? Se eu to lá em pé, fazendo assim, durante quatro meses. Nem falei mal da exposição porque eu escondi, mostrei pro meu filho que achou engraçadíssimo. Agora eu já disse várias vezes me público que eu não me considero um poeta marginal. Eu acho até que a marginalidade, a suposta marginalidade imaginária, que toda a geração, ou é classicista, que quer imitar os modelos, ou é marginal, porque quer de certa maneira promover a iconoclastia, destruir os modelos, inventar novos modelos, é uma tarefa muito ambiciosa, mas, as gerações costumam se arborar em iconoclastas e lutar pela formulação de ovos modelos. Mas ai a gente cai nisso, a gente cai é...e é difícil sair. Você fica ali. Tem uns aí que dizem que eu sou o marginal dos marginais, na antropologia eu fui chamado de marginal dos marginais.

A nossa turma dentro da poesia marginal, pra começar que era muito heterogêneo. Tinha gente que nem era poeta, tinha gente que era só divertida. E as figuras mais

230 interessantes realmente não tem nada a ver com marginalidade. Ou eram marginais por outros motivos. Quem era homossexual assumido era marginal, você ser negro era marginal. Eu me lembro que os filhos da Heloisa Buarque diziam assim: “Ah mamãe, a gente ta ferrado porque a gente não é mulher, não é negro e não é homossexual”. Chorando. Eles achavam que a mãe fazia sempre este tipo de apologia. Uma apologia que fazia sentido. Naquele momento por exemplo as mulheres estavam consolidando a conquista dos direitos igualitários que até hoje não foram inteiramente conquistados, mas em grande parte foram conquistados nos anos 1960, né. Mesmo nos anos 1910, uma batalha terrível e maravilhosa, batalha pelo voto depois a batalha pelo trabalho, enfim, todas as batalhas femininas. Mas isso se você puder fazer uma antologia de mulheres. Até eu tive o prazer de participar de uma antologia de mulheres, eu era o único homem, fiquei muito honrado com isso. Aí sim, naquele momento nos anos 1960. Nós mulheres que éramos um grupo, não digo marginal, mas um grupo que queria uma afirmação diferente. Meu lado feminino, que nunca foi tão grande como eu desejaria...

Você escreve com um eu-lírico feminino? Não, não. Só a Caroline Gebara, esta maluca.

Mas assim, eu me orgulho muito assim de ter participado das batalhas das mulheres da minha geração e de mulheres mais velhas também. Foi uma batalha importante. Daí a você se considerar marginal...eu me lembro que um poeta de São Paulo fez, por exemplo, o “Nitropoema”, assim sobre a mulher, diz assim: “Servil, ser vil”, na luta contra esta dominação masculina, isto sim, a luta contra a discriminação racial. Se você pegar um monte de menino da zona sul, famílias relativamente postas, acesso a todos os instrumentos de afirmação social e dizer que é marginal...nunca me considerei marginal.

Em relação a contracultura

A contracultura na verdade é uma importação de um modelo social que talvez não fosse também muito adequado a nossa realidade. Roberto Scharwz tem aquele ensaio, e talvez a contracultura no Brasil fosse um arremedo da contracultura americana. Porque nos não tínhamos aqui aquelas sobras do pós-capitalismo que havia nos Estados Unidos, onde a contracultura surgiu. Sobretudo Estados Unidos e Inglaterra. Nós vivíamos ainda um momento de ebulição do capitalismo. Então nós criamos uma farsa, uma farsa contracultural, e eu acreditei, não acreditei inteiramente, mas acreditei em parte, que nós iríamos dominar o mundo, que todo mundo ia andar vestidinho, ter cabelo grande, que o mundo ia ser democrático que todo mundo ia viver em regime de igualdade...eu acredito até hoje. Ainda não me divorciei desta utopia, mas hoje percebo que era um sonho remotíssimo. A gente eles viveram um pouco isso (Som Imaginário). Fredera levou a sério isso. Eu confesso a você por sorte nasci um pouquinho depois e fui poupado da militância política barra pesada, quando eu tentei entrar fui considerado muito jovem, eu tava louco pra jogar umas bombinhas, fazer uns seqüestros e tal. Felizmente, eu tinha dois anos a menos do que o necessário. E também não entrei tão a sério no negócio da contracultura. Senão eu ia ter ido morar na Bahia. Cara, eu ia me dar mal, porque eu detesto mosquito, Enfim, são estas sortes históricas, felizmente nasci um pouquinho depois.

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Mas é engraçado, a contracultura brasileira, se você fizer um balanço hoje, a única figura que encarnou com grandeza a contracultura, grandeza e tragédia foi Paulo Leminsky. Única pessoa de quem eu me lembro. Tinha um outro cara também de São Paulo, Roberto Piva, um grande amigo meu. Roberto Piva era comunista então ele apanhava da direita, era anarquista então apanhava dos comunistas, era gay, apanhava dos heteros. Este sim era um marginal. Roberto Piva,, poeta paulistano que imitava os beatniks americanos, teve uma vida que merecia uma biografia, que era um ser experimental mesmo. Sofreu todas essas restrições de um cara que, procura a liberdade. E o Paulo Leminsky, este encarnou a dor e a grandeza da contracultura. Duas figuras muito emblemáticas. De resto era uma farsa, era gente fingindo, entendeu, eles importavam figurinos, andavam com bolsão, meu amigo Cacaso andava com sapato de sola de pneu, eu não, eu andava com aqueles botinhas do interior paulistano. Então a gente tinha uma farsa que era uma mistura de Londres com o interior do Brasil, era meio hippie de boutique. Éramos hippies de boutique. Porque não havia este capitalismo pós-industrial, semelhante ao que criou o excesso econômico necessário para que houvesse gente que desacreditasse. Bukowski, não temos um Bukowski. Nosso único projeto de Bukowski era o Leminski. Aquela turminha lá, Bukowski, Ginsberg, Ferlinghetti. Aliás eu sou apaixonado por Lawrence Felinghetti. Acho o grande poeta da geração beatniks. Este me servia muito de exemplo assim, porque ele ao mesmo tempo que cultivava uma vida diferente das gerações anteriores, uma vida mais livre, ele tinha uma qualidade literária e um apuro literário, e um apreço pelos grandes ícones da literatura. Ele era apaixonado, por Dante por exemplo. Então pra mim ele era perfeito como ícone. Sou apaixonado. Eu quis conhecê-lo, ele tem uma livraria e uma editora lá em São Francisco, chamada City light, ganhei uma bolsa de publicação do governo brasileiro, e eu procurei a city light, mas pó, o cara tão velhinho, nem me respondeu. Editora de poesia uma coisa tão precária. Eu já publiquei 9 livros de poesia. Eu digo: “Não faça isso!”. Porque o cara vai, não vai dar dinheiro, vai falir. Vai publicar outro e outro e vai falir. Sempre fico com muita pena dos editores de poesia. E muito triste. E ao mesmo tempo é ótimo, com o passar do tempo aquelas coisas se tornam talismãs e mobilizam outras pessoas, que vão se dedicando aquilo.

Voltando

A primeira música minha e do Egberto me marcou muito. Água e Vinho. Tem uma que as pessoas gostam muito, é tão estranho! De vez em quando vem falar de algumas que eu nem me lembro. Quer dizer, eu não me lembro assim, em detalhes. Tinha uma que eu nem sei o título, que diz assim “Você sabe que a luz...na escuridão deste trem...e procura decifrar impérios no centro da noite” (trem noturno). Me falaram dela outro dia eu não lembrava da letra me deu uma aflição. Tem umas canções também grandes, com a letra enorme que as pessoas sabem decor, eu fico chocado assim, eu não lembro mais decor. Elas ficam cantando pra mim e eu fico fingindo que sei. Errando um verso, errando outro, aí vou por ali e a pessoa “po, você não sabe?”

Também, são quantas canções pra decorar?

Ah, eu fiz assim umas 400, 300 talvez. Não me lembro muito bem. Não tenho uma memória muito precisa pra canções. Há uns 5 anos eu até tinha uma memória, mas acho que hoje, eu tomo muito remédio pra dormir.

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Você trabalha muito a noite?

Muito. Pra desligar a máquina. Uma vez eu entrei na casa do Jards Macalé, fui com uma amiga, cantora jovem, Rafa Rocha, aí eu vi um remedinho...iamos lá encontrar o Macalé pra fazer alguma coisa de trabalho. Íamos fazer um disco dela e o Macalé ia ser o diretor musical. Aí eu vi um remedinho tarja preta assim e eu disse: “ah, você também toma tarja preta?” Ele falou: “Claro, como é que eu vou fazer para desligar o radinho?”. Então eu sempre trabalhei assim de tarde e de noite.

E música, toca ainda? Pouquíssimo. Um violãozinho eu toco direitinho. Tiro as músicas muito rapidamente, fica todo mundo embasbacado achando que eu sou músico. Voltei a ter um violão, eu passo anos sem ter um violão, mas me casei muitas vezes. Então quando eu me caso com uma mulher que tem violão eu tenho violão. E agora meu filho mais velho me deu um violão, comprou um violão pra si e disse assim: “Vou dar pro meu pai este violão”. Então me deu. Agora eu tenho um violão. Eu pratiquei um pouco nos últimos anos, muito esporadicamente, duas vezes por mês. Mas então eu tenho uma facilidade pra tirar harmonia, tiro muito rápido; não tiro de primeira mas tiro de segunda. Tiro até assim “Beijo partido”. A minha irmã diz: “Mas você tira tudo!” Eu digo: “Não tiro tudo, não tiro beijo partido”. Ela disse: “Tira, tenta ai”. Ai comecei a tentar e de terceira assim tirei “Beijo partido”. Tenho uma boa percepção harmônica. Piano eu tenho lá em casa mas não toco mais, não sei mais. Então fica para os amigos tocarem. Agora violãozinho eu toco.

Compõe? Nunca gostei de compor. Mas já fiz. Não gosto muito. Tenho parceiro tão bons. E tenho parceiros bons especificamente no que fazem, parceiro bom nisso, parceiro bom naquilo. Tem muito parceiro bom então. Os mais constantes são. Atualmente o Francis. O Egberto foi o mais constante da vida inteira. Piazzolla, fiz umas 15 músicas com ele. Meu irmão, tinha uma banda a Barca do Sol, fizemos umas 30 músicas, John Neschiling, fiz com ele umas 30 músicas também pra musicais e pra disco. E Eduardo Souto neto. E outros esporádicos, compositores de samba, de rock.

Como é que é o rock pra você?

Não sei te dizer o que é hoje o rock. Eu gosto do rock. É bom que tem sempre um filho pequeno que fica ouvindo rock ao meu lado. No meu carro toca muito Police. Gosto dos Stones muito e dos Beatles, aquelas coisas normais. Adoro Beatles. Gosto do Led Zeppelin. De vez em quando tem uma banda inglesa nova que eu gosto. Quer dizer, nova velhíssima.

Sobre a história do Tom Jobim como arranjador do primeiro disco de Gismonti. O tom não era muito de fazer arranjos para os outros a não ser quando trabalhou com isto, foi profissional disso até o estouro americano, em 1964, 1963...Então eu acho esta história um pouco implausível por isso. Até mesmo porque o Tom era muito preguiçoso. Não gostava de fazer arranjo nem pra música dele, chamava o Claus Ogerman. O sonho dele era arranjar um arranjador americano o Claus Ogerman não era o alvo dele, mas ele não conseguiu o outro, não lembro o nome de quem ele

233 queria. Acabou conhecendo o alemão e ficou com o alemão pra sempre. O alemão era ótimo. Nunca mais trocou de alemão.

Relação com Egberto

Havia conflitos. Mas sempre resolvíamos assim. No dia seguinte prevalecia o bom- senso. É que o produtor musical é o primeiro crítico, né. Você faz e o produtor diz: “Isso aqui não está bom, pode diminuir ali, colocar isso aqui”. Papel chato. Era muito legal estar em estúdio para gravar. A estrutura era ótima. O diretor artístico era muito inteligente, liberal. Tinha o Milton Miranda e abaixo dele haviam três diretores. O da classe A que era o Mariozinho Rocha; o da classe B que era o Renato Teixeira e o da classe U que era o Miguel Plopschi. A classe A eram os compositores chiques. A classe B eram os popularescos, e a classe C era deste Miguel que foi uma praga, foi o que prevaleceu tomou conta do mercado e destruiu o mercado brasileiro. Inclusive um cara corrupto. Uma pessoa horrorosa. Uma das piores pessoas da música brasileira. Foi um dos responsáveis pela degradação da música brasileira. Miguel Plopschi. Não sei como se escreve, nunca cumprimentei. Ele era um monstro. Mariozinho ta vivo. Trabalha na rede globo. Continua fazendo trilhas boas é um cara que gosta de boa música, tenta melhorar o nível da música brasileira. Porque estas figuras são muito importantes. Nestes cargos chaves se você não tiver pessoas que tem boas intenções. Este Miguel era um corrupto, dizem. Ele regimentava os músicos e cobrava uma taxa pra regimentar os músicos. Tirava um percentual do músico, uma coisa horrorosa. Foi muito nocivo. Mariozinho era ótimo, fazia o meio de campo, interpelia e conversava sobre os discos dos artistas de classe A, mas eles davam muita liberdade, compravam todas as idéias, era muito bacana. O Gismonti se encaixava na classe A. Ele, Francis, Som Imaginário. Estas coisas mais bacanas assim eram muito bem tratadas na gravadora, não eram tutelados até porque não precisavam né, tinham suas próprias idéias. E também eu peguei um período muito próspero...ah! Foi a época do milagre brasileiro, eles tinham dinheiro. Vendia- se disco. Foi um período próspero. O segundo seria nas vacas magras, eu achava muito chato ficar no estúdio trancado produzindo disco. Achava muito chato. Só produzi 4 discos na vida.

Produzia disco que tinha muita letra minha, pra visar minhas letras, para elas serem interpretadas de uma maneira que eu julgasse assim compatível com elas. Mas produção é muito chata, não gosto de ficar trancado no estúdio 12 horas, aturando músico maluco assim.

Egberto chegava no estúdio com os arranjos bem amadurecidos, escritos em grande parte. Escritos, ensaiados. Ele sabia muito o que queria. Expor as músicas, passar pra...acho que todo mundo tem um pouco isso. Você vê no inicio, este disco ai que você falou, que tinha tudo quanto é espécie de música, tinha muita coisa pra mostrar. Depois você começa a ter um recorte mais homogêneo. A escolha do repertório ficava a critério dele. Eu dava uns palpites, mas basicamente a critério dele.

Política

Talvez eu estivesse hoje no presídio da papuda. Se tivesse uns 6 anos a mais, ou 7, estaria no presídio da papuda no lugar do Zé Dirceu. Eram governos todos stalinistas.

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68. Festival internacional da canção. Aí nos resolvemos sabotar o Festival da canção. Pra denunciar a ditadura militar brasileira. Eu, Aldir Blanc e Vitor Martins saíram a obrigar as pessoas a assinarem um manifesto e a retirar a música do festival. E ai fomos a um casamento, tinha os convidados era Antonio Carlos Jobim, Chico, Egberto, Edu lobo. Tinham convidados que, classificados, dos quais estavam João Bosco, Aldir, Macalé, várias pessoas. Ai saímos pra obrigar as pessoas a assinar o manifesto e retirar as músicas. Stalinistazinho. Chegamos no casamento do Ivan Lins, que morava na Tijuca e veio morar na zona sul. Entramos todos no casamento, todo mundo de terno e a gente de hippie de boutique. Ai pro Ivan Lins: “Assina aqui!”. Ele disse: “Claro”. Assinou. Assinou numa boa, alienado, mas assinou. Zé Rodrix. Eu disse: “Zé assina aqui”. E o Zé: “Não! Eu tenho medo!”. Coitado do Zé, assinou trêmulo assim. Mas dava medo. Ditadura pesada. Estava na casa do Egberto, quando chegou um camburão do DOPS para prendê-lo.

Tinham uns 12 convidados dos classificados. Dos 12 convidados uns 8 queriam se entregar. Se reuniram num bar em Ipanema, e tinha um que não foi convidado, não tinha música mas que eles entregaram que era o diretor de cinema português. Parceiro do Edu Lobo, Francis Hime, eles resolveram se entregar juntos, foram pro DOPS. Agora, uns não sabiam, eram meio alienados, não gostavam de política, Egberto Gismonti, Tom Jobim, Marcos Valle. Ai chegou o camburão na casa dele. Dois caras de terno preto, entraram e disseram: “Egberto Gismonti? Queira nos acompanhar”. O outro camburão tinha pegado Tom Jobim, pertinho, Marcos Valle. Todos foram pro DOPS. Tom Jobim, coitado, um camburão só pra ele. Ele era uma figura tão angelical. Resolveu levar uma arma. Sabe qual era a arma dele? Uma flauta em Sol. Ai ele chegou lá uma hora antes dos outros não tinha o que falar com aqueles caras do DOPS, ficou tocando flauta. Um dos maiores compositores de canção do mundo, preso pela ditadura militar, tocando flauta, no DOPS, o lugar mais sinistro do mundo, onde prenderam Luis Carlos Prestes, entregaram Olga Benário aos nazistas, uma melhor locação de tortura da história da republica brasileira de 1910 até 1976. Melhor locação de tortura do Brasil. Tom Jobim tocando flauta pros caras.