Especial HAROLDO HOJE GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

POIESIS INSTITUTO DE APOIO À CULTURA, À LÍNGUA E À LITERATURA Clovis Carvalho | Diretor Executivo Plinio Corrêa | Diretor Administrativo Maria Izabel Casanovas | Assessora da Direção Executiva Ivanei da Silva | Museólogo Giany Blanco | Design Carolina Ferreira | Diagramação

CASA DAS ROSAS ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA Marcelo Tápia | Diretor Especial HAROLDO HOJE CIRCULADÔ Revista de Estética e Literatura do Centro de Referência Haroldo de Campos – Casa das Rosas ISSN - 2446-6255 Diretor | Marcelo Tápia Editor | Julio Mendonça Assistente | Caio Nunes Comissão Editorial: Aurora Bernardini, Claus Clüver, Gonzalo Aguilar, Horácio Costa, Jerusa Pires Ferreira, Leda Tenório da Motta, Lucia Santaella, Luiz Costa Lima, Márcio Seligmann-Silva, Nelson Ascher, Susanna Kampff Lages Diagramação | Carolina Ferreira Revisão | Centro de Referência Haroldo de Campos

Revista CIRCULADÔ – Ano VI – Nº9 – janeiro 2019 Risco Editorial Edição anterior: Revista Circuladô Ano V – Nº 8 – junho 2018 São Paulo – Poiesis / Casa das Rosas

A revista CIRCULADÔ é publicada em frequência semestral.

A revista CIRCULADÔ aceita, para publicação, apenas artigos ainda inéditos em língua portuguesa e inglesa. A extensão dos artigos pode variar de acordo com o tema abordado, sendo que a Redação se reserva o direito de propor cortes ou sugerir ampliações. As notas devem ser reduzidas ao mínimo e colocadas no final do texto. Os autores devem fornecer informações biobibliográficas, até 400 caracteres (com espaços). Especial HAROLDO HOJE

6 Homenaje - poema de Andrés Sánchez Robayna

VIDA, OBRA E CONTATOS 10 Haroldo de Campos nos Estados Unidos: Trinta anos de correspondência - artigo de Kenneth David Jackson 9 36 Redes intelectuais e constelações textuais: A biblioteca de Haroldo de Campos como espaço de crítica e de criação - artigo de Max Hidalgo Nácher

CRÍTICA 55 O lugar da “Ruptura dos gêneros” nos diálogos de Haroldo de 54 Campos com os hispano-americanos - artigo de Gênese Andrade CRIAÇÃO 69 Haroldo de Campos y el paraíso reinventado - artigo de Gonzalo Aguilar 76 Big Bang e babelbarroco: cosmologias entre tradição e ruptura 68 na poesia latino-americana - artigo de Jasmin Wrobel 96 Signo, tradução e cultura em Haroldo de Campos: uma condição tupinizante - artigo de Amálio Pinheiro

Foto de Haroldo de Campos na capa: Omar Khouri HOMENAJE

Llegó un día una multi- facetada palabra: en cada faz una sílaba aurífera Una tarde, el poeta como suspensa en un pensador nos condujo hasta una ermita ofuscador celaje de oroluz, y una fiesta en el cielo pedrería estelar, de la pintura. Ovales ajedrez diamantino espejos altos, cielos de palabras pensantes abajo reflejados cayendo vivas en para la educación la celdilla del ojo de los cinco sentidos. pineal, un galáctico ¡Mira a las ángelas ritmo de astros verbales inmóviles danzar con un son- en su cielo de nubes marfileñas, oro sol interior que alumbra el mundo. las majas alongadas a la cúpula Un poeta celeste y balconada pensador lo llevaba entre sus manos. para ver la pradera de Isidro labrador! ¡En San Antonio Un rojo sol, un son de La Florida flotan que traduce la luz piedras y nubes, ángeles y gentes! hasta la lengua viva. El rojo sol que traducía: Y en aquel cielo oval vi reflejado Parece que te tiñe un ajedrez de estrellas. una palabra roja, como dijo (tradujo) su seguro (humildemente) servidor Scardanelli. Andrés Sánchez Robayna Em 2018, lembramos os 15 anos da morte de Haroldo de Campos, e em 2019 comemorare- mos os 90 anos de seu nascimento. Não houves- sem tantas outras, estas seriam razões suficien- tes para reunir alguns pesquisadores importantes com diferentes formas de afinidade com o autor de Xadrez de Estrelas numa edição especial da revista Circuladô a ele dedicada. Foi o que fizemos aqui. A maioria dos textos incluídos nesta edição tiveram origem em atividades que realizamos pelo Centro de Referência Haroldo de Campos, no museu Casa das Rosas, durante o ano de 2018 – notadamen- te, a Bolsa Haroldo de Campos, a programação do evento Hora H e a do Simpósio Haroldo de Campos 2018 (edição Haroldo Hoje). Organizamos os tex- tos considerando três chaves abrangentes: “vida, obra e contatos”; “crítica”; e “criação”. Felizmente chegou a tempo de abrir esta edição um poema de Andrés Sánchez Robayna em homenagem a Haroldo, a quem Robayna chama de “poeta pensa- dor”. Mas, para além dos encômios, o poema e os demais textos aqui reunidos lançam novos olhares sobre seu percurso e sua obra multifacetada.

Julio Mendonça

7 8 VIDA, OBRA E CONTATOS

9 HAROLDO DE CAMPOS NOS ESTADOS UNIDOS TRINTA ANOS DE CORRESPONDÊNCIA

KENNETH DAVID JACKSON

Yale University

10 1 interesse acontecendo na Pauliceia, títu- Entre as muitas viagens interna- los de leituras e livros, contatos interna- cionais de Haroldo de Campos, começando cionais, sugestão de personalidades para talvez pela conhecida visita a Max Bense simpósios, recomendação de livros, notí- em Stuttgart em 1959, as passagens pe- cias de outras viagens, assim como uma los Estados Unidos marcaram de maneira descrição detalhada e recorrente das obri- significativa a sua vida intelectual, peda- gações de trabalho que o impediam, mui- gógica e criativa, de 1968 a 1999. Tive tas vezes, de aceitar os múltiplos convites a oportunidade de organizar quatro con- que recebia. Testemunham a sua alta ca- ferências com a presença de Haroldo de pacidade de atuação em múltiplas áreas Campos nos Estados Unidos, cobrindo um – advocacia, ensino, poesia, crítica – e co- período de 21 anos. Para comemorar a mentam as muitas viagens que conseguiu sua memória, na “Hora H,” aos 15 anos do organizar para a Europa, Estados Unidos e seu falecimento, gostaria de examinar e outros países (entre os quais, o Canadá, o acompanhar algumas de suas viagens aos México, o Uruguai, o Japão) em virtude de Estados Unidos nas suas próprias palavras, suas atividades pedagógicas e literárias. como registradas na correspondência que A presente série de cartas abre consegui encontrar e reunir. Tratam essas perspectivas, de caráter pessoal, sobre a cartas, entre outros assuntos, de convites presença do Haroldo em duas universi- feitos e condições de trabalho, de conside- dades específicas dos Estados Unidos, a rações práticas e pedagógicas resultantes Universidade do Texas, em Austin (1968, da permanência no estrangeiro, de pedi- 1971, 1978, 1981), e Yale (1978, 1995 dos de livros necessários para a pesquisa e 1999). A história da correspondência ou criação, assim como de interesses in- começa em 1971 em Austin, para onde telectuais e literários ligados a essas via- viajo desde Madison, Wisconsin, de car- gens. Às vezes, repara-se numa ou noutra ro para conhecer o Haroldo, antes de expressão criativa, com o humor de uma passar um ano de pesquisa no Brasil. Do invenção ou observação. As cartas de- ano de 1971, à base do transcrito do en- monstram sempre algumas de suas mais contro entre Haroldo e Hélio Oiticica em conhecidas características: uma enorme Nova York, saiu a peça, ou “theater piece”, energia, uma atenção ao detalhe, uma H.O.N.Y., publicada na revista Circuladô dedicação ao mundo das artes e ideias, em 2015. No período de 1971-72, de vol- uma elaboração da sequência de projetos ta à Pauliceia, Haroldo atua quase como criativos que o entusiasmaram, a genero- orientador particular da minha tese sobre sidade pessoal e intelectual com colegas Oswald de Andrade, passando recomenda- e amigos e a dedicação especial à família. ções de leitura. É uma correspondência que começa em 1972 e continua até 1999. Estou lendo um livro que certamente Há nessa correspondência muito interessaria a V. no que diz respeito mais do que uma descrição de suas visi- ao problema do “fragmento”, do “es- tas ao país norte-americano, pois constitui tilo fragmentário”: Hugh Kenner THE necessariamente um retrato de época e do POUND ERA. Acho que o Prof. Greer autor. Entre outros assuntos, encontra-se Cohn poderia ser muito útil, com in- uma descrição de projetos criativos ou de dicações, no que se refere ao campo pesquisa, comentários sobre atividades de da literatura francesa, sobre o mes-

11 mo assunto. THE BANQUET YEARS, Indiana, um excelente estudo xero- de Roger Shattuck, é outra obra copiada (inédito): “The Intersemiotic que pode interessar. (21 ago. 72). Transpositions of Willy Corrêa de Oliveira: Concrete Poetry into Music”. Sou, mais tarde, muitas vezes o (7 abr. 79). beneficiário de sua generosidade, - mani festada no comentário a respeito do meu 2 YALE - TEXAS 1978 livro publicado pela Editora Perspectiva em 1978 sobre Oswald de Andrade: Depois de entrar como professor na Universidade do Texas, comecei a in- Seu livro já começa a repercutir no centivar os colegas a convidar o Haroldo ambiente brasileiro. Mando-lhe um novamente por um semestre como profes- recorte de uma crítica recente, sobre sor visitante. A correspondência a respeito uma peça baseada no Serafim, mon- começa quando Haroldo já está em Yale, tada com bastante entusiasmo por a convite de Emir Rodríguez Monegal, no um grupo jovem e promissor (inclu- período de janeiro-maio de 1978. O depar- sive um mestrando nosso da PUC); tamento de Austin o convida para uma con- a autora da crítica, especializada em ferência em abril, que Haroldo comenta: teatro, Ilka M. Zanotto, como V. verá, serve-se do seu livro para analisar Recebi com grande satisfação a carta a teatralidade de Serafim (o Albert, do nosso Cardona e, no mesmo dia, vindo de S. Paulo, poderá assistir a também a sua. peça; Sérgio Pizoli, o autor do projeto, prepara uma dissertação de mestrado Para mim, a data conveniente seria 13 sobre a origem e montagem do espe- de abril (uma 5ª feira) e eu poderia táculo). (7 abr. 79). ficar até domingo ou 2ª (voltando 2ª à tarde, pois tenho aula aqui 3as e Na correspondência dos anos 70, 4as). (Estou satisfeito com o trabalho Haroldo comenta o seu “work in progres- aqui: o curso de tradução é um su- s”,“”estou metido em vários projetos pes- cesso, com 25 estudantes inscritos, soais que me tomem todo o tempo (um de vários Departamentos). Propus deles, já começado, a tradução criativa ao Amigo Cardona, como tema, uma do PARADISO de Dante)” (20 maio 76), conferência sobre: PROBLEMAS DE e fica entusiasmado com uma composição TRADUÇÃO POETICA (a ser dada em de Willy Corrêa de Oliveira, sobre um dos inglês ou espanhol; ou uma confe- seus poemas, seguida por um estudo in- rência em inglês e um seminário em tersemiótico por Claus Clüver: espanhol, este último sobre a tradu- ção do MACUNAÍMA, por exemplo) O Willy acaba de me dar um belo ... Como teremos aqui um simpósio presente: uma nova composição ba- sobre tradução dia 1º de abril, sugeri seada num poema da minha série ao Monegal que convidasse você para LACUNAE, o poema final, exit. A par- participar, com algo sobre a dificulda- titura foi impressa pela Editora Novas de da tradução de Oswald para o in- Metas. A propósito do Willy, acabo de glês. Que tal? Carmen e Ivan voltam receber, do Claus Clüver, da Univ. de dia 17 para o Brasil. (11 fev. 78).

12 Já respondi à amabilíssima carta que recebi do Cardona. Escrevi também ao (Estou satisfeito com o trabalho aqui: Ellison, para comunicar-lhe minha es- o curso de tradução é um sucesso, tada nos EUA e dizer-lhe do prazer que com 25 estudantes inscritos, de vá- e dará poder rever os amigos texanos, rios Departamentos). Estou fazen- e recebi dele uma carta muito cordial. do uma revisão da história literária Meu caro David: espero-o dia 18 de brasileira do ponto de vista sincrô- março, como combinado. (18 fev. 78). nico (matéria do meu 2º curso aqui, do qual participam também – para Fui a New Haven pela primeira vez em meu prazer – alguns professores do março para o congresso sobre tradução Depto., que tomam parte da discus- poética, que contou com a presença de são do problema em âmbito hispa- Cabrera Infante, no mês antes da viagem no-americano, o que permite que de Haroldo a Austin. Chegou com poema tracemos juntos as convergências e novo, composto no avião da linha aérea divergências, por exemplo: eu falei Braniff, com o título “Visão do Paraíso”. O de Gregório de Matos, agora Monegal colega espanhol Pablo Beltrán de Heredia, falará de Sor Juana Ines de la Cruz, de Santander, teve o impulso generoso e assim por diante). Dia 13 de março de levar o texto, com a minha tradução, vou ao Canadá (Montreal) convidado para a Espanha, onde o fez imprimir em pelo Prof. Paul Zumthor, para 2 con- formato grande, em preto e vermelho, ferências. Também darei conferências numa tiragem de 25 exemplares numera- em N. York, Princeton e Providence. E dos, eventualmente assinados pelo poeta espero logo mais a Cambridge, visitar e pelo tradutor. Numa carta de novem- o Roman Jakobson. Isto sem ter tido bro de 1979 Haroldo comenta a edição: tempo de preparar com antecedên- cia o programa de aulas dos cursos Visão do Paraíso a desenvolver no exterior, o que me Gostei muitíssimo da impressão do obrigou a passar todo o período de meu poema de iniciativa do Pablo minha estada nos EUA organizando Beltrán. Recebi-a, juntamente com e redigindo aulas (sobretudo quando a sua tradução, como um especial em outro idioma que não o português, “token of friendship” nos meus cin- como em Yale), além da ministração quentanos brasilíricos [...] A palavra das mesmas aulas, dos compromissos Paradiso em italiano ficou bem. (17 com alunos e colegas, participação em nov. 79). simpósios, conferências, etc. (situa- ção, aliás, de que V. foi testemunho Essa bela impressão ainda não presencial, o que me tirou pratica- foi devidamente registrada na biblio- mente a possibilidade de dedicar-me grafia de obras poéticas, tratando-se de à criação poética e a atividades en- quase uma raridade. saísticas e de pesquisa não imedia- Os comentários que recebi depois do se- tamente vinculadas aos afazeres dos mestre em Yale abordam questões e cri- cursos a meu cargo). NÃO TENHO térios, à base das exigências do deslo- CONDIÇÕES, ANTES DE APOSENTAR- camento e do ensino, que se aplicarão a ME, DE REPETIR UMA EXPERIÊNCIA todos os futuros convites. PENOSA E ONEROSA COMO A DE YALE

13 (por mais gratificante que me tenha por um semestre. Se uma nova opor- sido do ponto de vista intelectual e tunidade surgir em futuro, quando não humano, por mais reconhecido que hajam impedimentos dessa ordem, eu seja a um querido amigo como o creia que a aceitarei com muito gos- Monegal pela colhida afetuosa e o es- to, pois tanto eu como minha Família timulante apoio que me deu durante somos muito felizes em Austin, Texas, todo o período do Spring Semester e eu nunca deixei de sentir-me um 78). Não o tenho, desde logo, porque pouco “member of the Family” depois minha saúde ficou afetada pelo esfor- daquela primavera de 71 e dos bons ço, estive à beira de um “stress”, com amigos que fiz na Universidade, entre o subsequente problema renal do qual professores e alunos. Dentro de al- só me recuperei plenamente (espero!) guns anos (3 ou 4 mais ou menos), em fins de agosto 78. (11 fev. 78; 31 por outro lado, estarei aposentado e dez. 78). em condições de me movimentar com mais facilidade (não se espante, não À ideia de um convite a sou tão velho assim: comecei a tra- Austin por um semestre ou um ano, balhar muito cedo, com 18 anos, e já ou mesmo em caráter permanen- tenho 48...). (18 fev. 78). te, esboçado numa carta minha de fe- vereiro de 78, Haroldo responde levan- Em dezembro do mesmo ano, tando o obstáculo de sua aposentadoria. volta a escrever mais detalhadamen- te sobre a situação, citando o qua- Muito grato por sua carta de 8 de fe- dro de trabalhos e exigências que tor- vereiro […]. Fiquei muito sensibilizado na onerosa sua ausência do Brasil. com as informações que V. me trans- mitiu sobre o interesse conjunto do Quanto ao convite para a Universidade Dpto. de Espanhol e Português na mi- do Texas, fico muitíssimo honra- nha pessoa. O gesto do Prof. Arocena do e lisonjeado, pois, como Você e a oferta por ele feita deixaram-me, sabe, tenho grande carinho pela em particular, muito honrado. [...] Universidade e pela cidade, pelos Desde logo, porém, deixo registra- amigos que aí tenho e pelos dias fe- da a minha gratidão pela lembrança lizes que passem em Austin, sozinho tão carinhosa de meu nome e a V. e ou com minha família, desde a mi- aos caros amigos do Texas retribuo nha primeira visita a Universidade de todo o coração com a amizade e o em 1968 (já lá vão 10 anos!). apreço intelectual de alguém que nun- Há, porém, um problema de ordem ca esqueceu os felizes momentos que prática, que é o seguinte, considera- passou como “member of the Faculty” dos todos os dados e elementos de em Austin. que disponho a presente altura. Minha Infelizmente, não poderei em 79 afas- situação funcional no Brasil está de- tar-me novamente do Brasil por um pendendo de uma decisão do Supremo período letivo. Devo permanecer no Tribunal Federal do país, da qual, se meu posto pelo menos por 1 ano e favorável, como espero, decorrerá o meio a 2 anos, no meu regresso, an- acréscimo de 3 (três) anos no meu tes de poder afastar-me novamente tempo de serviço para aposentadoria.

14 Isto significa que, com tal acréscimo, mim aceitar convites que envolvam estarei em condições de me aposentar desempenho de atividades docentes da USP em janeiro de 1981 (oitenta e muito onerosas, como no caso de mi- um). A decisão em questão, já pen- nha recente estada em Yale, na qua- dente há mais de um ano, ainda não lidade de Fulbright/Hays Lecturer e foi proferida. Recentemente, faleceu o Visiting Professor, junto ao Dept. de Ministro Relator (Rodrigues de Alkmin, Espanhol e Português e ao Literature parente da Maria Antonieta oswaldia- Major Program. Isto porque acabei fi- na...) e, com isto, a matéria voltou a cando literalmente sem férias (termi- estaca zero, pois, de acordo com o nando minhas atividades no Brasil em Regimento do Tribunal, os autos serão dezembro 77 (ou melhor, no começo distribuídos a novo Relator, ficando sem de janeiro do ano de 78) e começan- efeito o eventual pronunciamento do do outras, intensíssimas, nos EUA, por Ministro falecido (que, segundo ouço volta do dia 10 do mesmo mês de ja- dizer, teria sido favorável à tese que me neiro...) (31 dez. 78). ampara). Assim sendo, não posso, com certeza, saber como estará minha si- Na Universidade do Texas, o nome tuação em 1980, por mais desejoso que do Haroldo começa a ser ponderado pelo esteja de aceitar um convite do Texas. comitê de seleção do professorado visitan- Normalmente, como Você sabe, den- te, Edward Laroque Tinker, que noticia o tro da velha tradição latino-americana comunicado ao Haroldo, cuja resposta ain- do duplo emprego (decorrente da im- da deixa alguma esperança de solução: possibilidade de um escritor aqui viver do seu trabalho intelectual no campo não poderei dizer nada de definitivo literário), tenho 2 profissões e estou por enquanto, porque é muito cedo ligado a duas entidades: a USP, como para que eu sonde as possibilidades advogado especializado em direito de um novo afastamento que me administrativo (função da qual espe- permita sair da USP nos primeiros ro aposentar-me nas condições aci- meses de 80 (ou seja, antes da com- ma indicadas); a PUC/SP, como pro- pletação de 2 anos do meu anterior fessor doutor vinculado ao programa afastamento para Yale, que findou de pós-graduação em Comunicação em maio 78). Como estou em vés- e Semiótica (disciplina: Semiótica da peras de sair em férias (férias do Literatura), tempo parcial, período no- ano, 30 dias, e mais um saldo de turno, dando um seminário de 3 ho- férias não gozadas de outros exer- ras semanais por semestre, além de cícios), por um período de quase 2 orientar 3 doutorandos e 3 mestran- meses portanto, parece-me prema- dos) (“meu Kafka-cotidiano trabalho turo colocar junto a meus colegas e jurídico somado ao final do Curso da perante a Administração universitá- PUC, com a correção de 18 trabalhos ria o problema de outra solicitação de aproveitamento entre 10 de dez. e de afastamento, por cerca de 4 me- os primeiros dias de janeiro...). ses, a contar de janeiro de 80... Só a partir de março de 79, quando voltar Com essa pesada carga normal de da Europa, terei condições melhores trabalho duplo, fica muito difícil para para avaliar, durante o curso do pri-

15 meiro semestre, a minha situação. que as providências para o meu con- Assim, NÃO POSSO, INFELIZMENTE, vite sejam transferidas para o ano de com grande pena para meus próprios 1981 (oitenta e um), quando espero e mais íntimos desejos, comprome- estar aposentado da USP. ter-me com nada de definitivo para 1980 (só como simples hipótese, em princípio e sob condição dependen- Quanto a uma situação mais perma- te de terceiros, excluída, antes de nente, no futuro, na Univ. do Texas, minha aposentadoria, como disse, é hipótese que me seduz enorme- a repetição de uma experiência com mente, mas que também só poderei encargos nos termos de Yale). Peço examinar e equacionar adequadamen- a Você que previna o prezado Prof. te depois de aposentado na USP [...] Glade (a quem agradeço de coração Veja Você que, infelizmente, há ainda o interesse que tem demonstrado um purgatório a passar antes de che- por mim) nesse sentido, informando- gar ao paraíso. (31 dez. 78). -o do teor da presente carta, afim de

16 17 3 TEXAS 1981 preços estarão hoje, sem dúvida, mais elevados; não importa). ... Outra coi- Como Haroldo já tivera uma pri- sa que eu gostaria de saber: quais as meira visão aérea do paraíso texano em condições para um estudante estran- 1978, volta nova oportunidade com o geiro (o Ivan, no caso) matricular-se anúncio por telegrama em junho de 79 da no Curso de Química da Universidade concessão do professorado Tinker. em Austin? Que taxas deve pagar e que documentos deve providenciar? Recebi telegrama do Prof. Glade, anun- [...] Como V. sabe, sou péssimo para ciando que o Tinker Committee estava morar sozinho, já que fui educado no propondo o meu convite para o Spring obsoleto sistema “patriarcalista” bra- Semester 1981. Não o respondi des- sileiro e cheguei aos meus 50 anos sem de logo porque entendi que era uma sequer saber fazer um café! (SHAME!!!). simples notificação prévia, devendo Gostaria de lhe pedir que entrasse em eu aguardar o convite formal após as contacto com o Glade e lhe confirmas- tramitações burocráticas. Resolvi, no se que responderei afirmativamente ao entanto, escrever-lhe para manter o honroso convite, assim que o receba. que já lhe transmiti por carta: acei- (17 jun. 79). tarei o convite (nos termos dos en- cargos que V. me descreveu também Ao saber que no semestre anterior por carta e considerando que os 2 cur- ao dele, virá ao Texas o professor e ensaísta sos serão em português), ainda que , escreve logo elogiando-o: a minha aposentadoria aqui não saia até 1981 (por uma eventual decisão Quanto ao convite para o Benedito jurídica desfavorável à minha causa). Nunes, não poderia haver melhor esco- Não creio que terei problemas em ob- lha! O Benedito está entre os pouquís- ter afastamento para o ano de 1981. A simos críticos literários brasileiros real- única dúvida que me resta é quanto ao mente de primeira plana, aliando a uma período... Se se confirmar o convite grande sensibilidade para o fenômeno para janeiro 81, terei que ficar no mí- literário uma ampla e sólida cultura, nimo um mês sozinho (o Ivan estará de raiz filosófica. Fico particularmente fazendo vestibular na ocasião). Assim, satisfeito ainda, por uma coincidência: gostaria de saber [...] se haveria em a convite da PERSPECTIVA, o Benedito Austin algo como a solução do Hotel está contribuindo com um ensaio espe- Duncan em New Haven, onde fiz um cial sobre o meu XADREZ DE ESTRELAS arranjo “by the week”, pagando uma para o apêndice crítico de meu novo diária mais acessível. Prefiro hotel (e livro, SIGNANTIA; QUASI COELUM. perto do “campus” e dos restaurantes) (20 mai. 79). do que uma residência como a que fi- quei em Austin da última vez (hotel- -residência), pela maior liberdade de movimentos que um hotel oferece (com serviços de Portaria e limpeza, etc.). Lembro-me que no Duncan eu pagava 15 dólares por dia (mas os

18 Confirmado e aceito o convite, próprio Alencar de Iracema). Seria um Haroldo volta à questão dos cursos que quadro de correlações sincrônico-dia- pensa oferecer, exemplo de seus profun- crônico, em substituição à abordagem dos interesses pedagógicos: historiográfico-linear. Que lhe parece? Como ficou a programação dos cursos Quanto ao convite para a Universidade do Benedito? Gostaria de articular-me do Texas, fico muitíssimo honrado e li- com o trabalho dele, já que vou suce- sonjeado, pois, como Você sabe, te- dê-lo no tempo. (19 jan. 80). nho grande carinho pela Universidade e pela cidade, pelos amigos que aí Quanto aos cursos, penso em um so- tenho e pelos dias felizes que passei bre a poesia (“Modelos poéticos na em Austin, sozinho ou com minha fa- poesia brasileira: do barroco ao mo- mília, desde a minha primeira visita a dernismo”) e outro sobre a prosa: “Do Universidade em 1968 (já lá vão 10 texto à rarefação do texto: Alencar anos!). (31 dez. 78). (Iracema), M.A. Almeida (“Memórias de um Sargento de Milícias”), Machado De qualquer modo, gostaria de ter de Assis (os romances da fase final), uma noção mais clara sobre os cursos Pompéia (O Ateneu), o Modernismo a meu cargo. Quantos serão? Um ou (Oswald e Mário), dois? O Benedito Nunes esteve comi- (“Perto do Coração Selvagem”), Rosa go no fim do ano e falou-me em dois (“Meu tio, o Iauaretê; Tutaméia”) (ver, cursos. Em poesia, estou preparado a propósito, a nota 5, p. 18 do meu A para dar um curso sobre evolução de OPERAÇÃO DO TEXTO). (24 jul. 79). formas, do Barroco ao Modernismo; se for necessário um segundo cur- Recebo novamente a generosidade do so, fico com aquele sobre prosa, já Haroldo no julgamento do meu tenure, para mencionado, mas estabelecerei um o qual escreve uma carta de apoio: programa de correlações transtempo- rais (Iracema/Macunaíma; Memórias Aguardo com grande interesse e ex- de um Sargento de Milícias/Miramar- pectativa a decisão do seu tenure. A Serafim; Machado (Dom Casmurro)/ carta-recomendação que escrevi espe- Vidas Secas (Graciliano) / Os Ratos lha, tão-somente, o apreço que tenho (Dionélio Machado); Pompéia por V. e por suas atividades de profes- (Ateneu) / Clarice (Perto do Coração sor, tradutor e estudioso da literatura Selvagem). 1. A recuperação do epos de língua portuguesa. (17 nov. 79). via fábula (Iracema, Macunaíma, Meu tio, o Iauaretê (Rosa, faltou mencio- Haroldo se interessa na recém-pu- nar antes); 2. O romance “malan- blicada tradução para o inglês do roman- dro” – antropofágico (Manuel Ant. ce Serafim Ponte Grande, de Oswald de de Almeida, Oswald (e também, de Andrade, feita em parceria com Albert Bork, novo, Mário); 3. A magreza estética: ex- aluno do Haroldo em 1971, época em da metalinguagem ao epos descarna- que Albert e Ralph Niebhur traduziram as do (Machado, Graciliano, Dionélio); 4. Memórias Sentimentais de João Miramar. A poesia na prosa (Pompéia, Clarice; e de retorno, Mário, Oswald, Rosa; o

19 Vejo que está em movimento em nos últimos tempos e penso que será, Austin um verdadeiro laboratório de provavelmente, o embrião de um en- textos ... Tenho indicações a dar- saio mais largo (talvez em dimensão -lhe quanto ao SERAFIM: sugiro que de livro) sobre a nova proposta de mande uma cópia para: Gérard de historiografia literária brasileira que Cortanze ... para o meu amigo Jacques acalento (objeto, ainda, do curso – de Thiériot (que traduziu o Mac. E preten- um deles – que proferirei em Austin). de traduzir ao fr. Miramar/Serafim) ... (1 set. 80). para meu amigo Curt-Meyer Clason (tradutor de Rosa; pretende traduzir Ainda em novembro de 1980, Macunaíma). (19 jan. 80). anuncia o projeto de tradução a ser rea- lizado em Austin:“Outro plano que tenho: A aproximação do sojourn nor- a re-criação em português de BLANCO de te-americano universitário parecia abrir (para uma publicação bilín- mais as torneiras da criatividade haroldia- gue, Brasil / México).” (9 nov. 80). na. Em setembro de 1980, escreve anun- ciando novo ensaio inédito, que sairá em 4 SCRIBBLEVAGANZA português na Colóquio Letras em janeiro de 81 com o título “Da razão antropófaga”, Começáramos em 1979 a plane- jar um congresso sobre tradução poéti- Aqui lhe envio o ensaio que gostaria ca, para o semestre de 1981 em Austin, de ver traduzido para o inglês, para ao qual Haroldo dá o nome criativo de uma eventual conferência que eu SCRIBBLEVAGANZA. possa fazer aí, para um público mais amplo, durante minha estada no se- Eu havia mencionado a possibilidade mestre de primavera (e inclusive para (conversei com o Monegal a respei- conferência na universidade) [...] to) de um simpósio sobre tradução criativa; V. refere agora, a propósito Para facilitar o trabalho de tradução, de D. Hayman, a idéia de um sim- anexo um elenco de 5 alterações a se- pósio sobre “formas inovadoras de rem introduzidas no meu original, nos narrativa”. Qual seria o tema preferi- locais indicados em cada uma delas. do? Acho ótima a ideia de convidar o Ficaria muito contente se Você e o Jorge Schwartz. Ele defenderá o seu Albert pudessem se encarregar da ta- doutorado sobre Oswald e Girondo refa de traduzir (e coloco-me à dispo- dia 24 de nov. próximo. (17 nov. 79) sição de Vocês para qualquer consulta e revisão). Penso que, ulteriormente, Quanto ao seminário de tradução poé- o texto (ainda inédito em português tica: desde logo, peço-lhe que entre e ainda não publicado em alemão) em contato com o Monegal para co- poderia ser estampado em alguma laborar no projeto (inclusive com su- revista americana, ou na da própria gestão de nomes). Devo ministrar um Univ. do Texas, para assinalar a mi- curso em colaboração com o Monegal, nha passagem entre Vocês. Considero a partir de agosto próximo, sobre este trabalho uma das mais impor- Tradução e Paródia, aqui na PUC (está tantes reflexões críticas que produzi em tramitação o projeto e o convite).

20 Terei também tempo de combinar com se vir, poderia ser convidado o Paulo ele a participação que poderá dar ao Valésio, de Yale (do Dept. de Italiano, simpósio de Austin, em março de 81. autor da “The Virtues of Traducement: Sketch of a Theory of Translation”) ... Outros nomes: Paolo Valesio, Roman o simpósio (do qual eu lhe havia fala- Jakobson, Claus Clüver, D.S. Carne- do, em princípio), assim que houves- Ross, Octavio Paz (se puder vir no se notícias mais definidas a respeito, período), Miss Jean R. Longland, uma vez que poderia, inclusive obter Hugh Kenner. Dependerá de saber o apoio para a sua (dela) participação se estarão no período nos EUA inte- através da HSA ... [Jean Longland] ... lectuais europeus que costumam vi- A excelente tradução que ela fez do sitar os States como Butor, Jacques 1.0 de meus ESBOÇOS PARA UMA Roubaud, Todorov, Derrida, Eco, NÉKUIA integrará uma nova antologia para outras possíveis considerações. da poesia brasileira, aos cuidados de Naturalmente Julio Ortega, Ellison, Emanuel Brasil, em parte financiada Christopher (Middleton), (Sidney) pela Gulbenkian. – Se houver alguma Monas.(19 jan. 80). verba a mais poderíamos convidar o Também por essa razão parece-me Severo Sarduy (que poderia falar so- que o mês de abril seria realmente bre as traduções de sua prosa para o mais próprio e propício pra o simpósio francês e o inglês). – Por tudo isto, e de teoria da tradução poética. Monegal também porque acredito que em abril estaria então, em Austin, como meu estarei com os meus “motores” mais hóspede. Caso Jakobson não pudes- aquecidos para o pleno vôo, não me

21 parece tão indicada a última sema- irremissível de devedor insolvente...). na de janeiro, quase em seguida à minha chegada, ainda às voltas com Fiz uma pauta de 19 itens de coisas as primeiras semanas do meu curso: a fazer (entre as quais, preparar um lamento, apenas, a perda da oportu- livro de ensaios para ser editado no nidade de contar com o Benedito no México, reunindo os meus trabalhos simpósio, mas, em compensação, es- sobre a tradução; até agora só con- taremos todos mais livres para con- segui riscar 3 itens dessa agenda... versar e curtir o trânsito dele e da Creio que só vou me livrar desse círcu- querida Maria Sylvia por Austin antes lo vicioso em março de 84, quando me do retorno a Belém. (19 nov. 80). aposentar. Por enquanto, não posso fazer outra coisa senão deixar o navio O programa da SCRIBBLEVAGANZA, ao vento, e tentar segurar a barra, tão disponível no arquivo da Casa das Rosas, firme quanto possível... atesta a capacidade do Haroldo de reunir um elenco de especialistas, como nessa ocasião Também queria pedir-lhe um ou- inclui Monegal, David Hayman, Hans Tem tro favor: preciso do texto alemão Berge, Christopher Middleton, Claus Clüver, de um ensaio de Heidegger, do livro Jean Longland, Julio Ortega, Frantisek Galan, UNTERWEGS ZUR SPRACHE, Günther Itamar Even-Zohar, Gonzalo Díaz-Migoyo e Neske Verlag, Pfullingen, 1959 (títu- outros professores de Austin. Existe também lo traduzido para o inglês como ON uma gravação de leituras, de 1981, conten- THE WAY TO LANGUAGE). Trata-se do do a “tradução brasileira” de um poema de ensaio que em inglês tem o título: “A Christopher Middleton por Haroldo, e, dos Dialogue on Language” (Between a dois, a tradução de um poema de Goethe, Japanese and an Inquirer). Necessito do alemão para o inglês e português. do texto alemão, que não consigo en- contrar por aqui nas Bibliotecas dispo- 5 VOLTA AO BRASIL (1981) níveis (já tenho o texto em inglês e francês). Quero fazer uma surpresa ao Na volta ao Brasil, escrevendo em Benedito, acompanhando o meu poe- junho de 1981, Haroldo confessa sentir o ma sobre Heidegger (que escrevi em efeito da lassitude que o afeta depois dos Austin e dediquei a ele) de um peque- meses de intensa vida intelectual e criati- no ensaio sobre Heidegger e o ideo- va em Austin: grama. Para isto, preciso consultar o original de Heid. em alemão, já que o Foram cerca de 15 dias mais ou me- meu trabalho depende de determina- nos “sonados”, mais ou menos “abú- dos efeitos de linguagem. licos”, de arrumação e rearrumação de coisas e papéis, alguns encontros E a ideia da publicação bilíngue do com amigos, cartas atrasadas a ler e AUSTINÉIA DESVAIRADA? ... Fico responder (sem muito “pique” e com imaginando como seria gratificante grande lassitude, pois os débitos epis- poder registrar minha passagem por tolográficos já são bem maiores do Austin através desse jornal epifano- que a minha possibilidade prática de poético. (14 jun. 81). pô-los em dia: resigno-me à condição

22 Desde 1983, eu, Bete e Sophia A questão da aposentadoria finalmente se viajávamos duas vezes ou mais por ano ao resolve em abril de 1983, como anuncia Brasil, para encontros na r. Monte Alegre Haroldo numa carta: com Haroldo e Carmen, e às vezes o Ivan. AGORA A BOA NOTÍCIA DE MINHA Eram sempre ocasiões para vivas lem- PARTE: estarei aposentado a partir do branças do semestre passado em Austin. dia 18 de maio próximo. Tive ganho Um ano mais tarde, Haroldo revisita a tra- de causa na contagem trabalhista que dução do poema BLANCO, feita em Austin suscitei, e embora com a perda de um numa noite passada em claro, notando um pequeno acréscimo salarial que eu erro e uma alteração, numa das raras oca- teria se esperasse até março do ano siões em que comenta o processo criativo: que vem, preferi ganhar em acrésci- mo de vida (goetheanamente...). Já Verifiquei, retomando a minha cópia estou em férias e, quando estas ter- datiloscrita da tradução, que havia nela minarem, me “jubilarei” sem solução um erro, logo numa das linhas da parte de continuidade.(20 abr. 83). inicial, quando passei o texto do meu caderno de anotações para a cópia Fica enfim livre para se dedicar escrita a máquina. Trata-se das linhas tempo integral a novos projetos que anun- (versetos ou fragmentos seccionados cia, em dezembro de 1983: de versos) n.os 27 e 28. Onde está: Aproveitarei para trabalhar nos 2 o adormecido projetos de que lhe falei na carta o extinto, ... de 5 fev (DANTE/CAVALCANTI & O. PAZ/BLANCO). (reelabora a minha deve ler-se: tradução da famosa e “abstrusa” CANZONE D’AMORE) Quero concluí- Ou adormedico -los em um mês de dedicação integral. Ou extinto, Para o meu trabalho em curso so- bre Guido Cavalcante (reelabora a Além deste ponto (lapso de transcrição), minha tradução da famosa e “abs- fiz uma pequena alteração no final: trusa” CANZONE D’AMORE) gosta- Onde se lê: ria de lhe pedir um favor: um xerox do ensaio de Georg M. Gugelberger: O mundo “The Secularization of “Love” to a Feixe de tuas imagens Poetic Metaphor: Cavalcanti, Center Inundadas em música of Pound’s Medievalism”, revista PAIDEUMA, II, n. 2, pp. 159-173. Leia-se: Também G. N.G. Orsini, “Poound afogadas em música and Italian Literature,” The Sewanee (Curioso que na palavra portugue- Review, vol. LXVIII (1957). O no. de sa afogar, equivalente – tanto como PAIDEUMA é de 1973. Pedir-lhe-ia tam- inundar – ao esp., o fogo esteja bém que verificasse se há na Biblioteca dentro da água que subjaz à ideia o livro de Bruno NARDI, Dante e la cul- de afogamento...). (9 mai. 82). tura medievale, Bari, Laterza, 1949, do qual me interessaria em especial o en-

23 saio: “L’averroismo del primo amico di original; o autor, ao que me recor- Dante”; se possível, um xerox do livro do, é um engenheiro apaixonado inteiro. (28 mar. 83). pelo texto joyceano) (20 abr. 83). Outro pedido: , FINNEGANS WRITINGS OF CHARLES SANDERS WAKE, Coll. Du Monde Entier, GALLIMARD PEIRCE. Vol. correspondência a (NRF), Trad: Philippe Lavergne. 1857/1866 Conheço já fragmentos dessa tra- Hans Robert JAUSS, TOWARDS AN dução (que não é particularmente AESTHETIC OF RECEPTION, 1982 criativa, mas sempre será bastan- LYRA GRAECA, J.M. Edmonds, 3 vols te útil para esclarecimento do texto Harvard UP.

24 Eu necessitaria, ainda, de um novo (eu havia recusado a encomenda, pois Xerox: do estudo de ANNE PAOLUCCI, não imaginava que pudesse escrever “ and D.G. Rossetti trans- um poema de um dia para outro; mas, lators of Guido Cavalcanti, ROMANTIC de repente, a surpresa do convite pro- REVIEW, 51 (1960) pp. 256-267. (23 vocou o vôo dessa minha borboleta set. 83). anti-corrida-nuclear...). Ventos novos estão soprando em favor de todo o tra- Necessito com urgência de um livro: balho que viemos fazendo ao longo dos trata-se de ELEMENTS OF HEBREW BY últimos 30 anos na poesia brasileira. AN INDUCTIVE METHOD, por William Os jovens poetas -- os melhores deles Reiney Harper, U Chicago. Seria possí- – já não nos veem mais como algozes, vel encomendá-lo pela Garner e man- mas como mestres. (31-12-83) dar por avião? Estive no Rio, rapidamente, para ver o Acaba de sair – e ficou belíssimo, ti- Severo Sarduy e o João Cabral (levei o pograficamente! – a nossa edição da Sarduy à casa do Caetano: foi uma noi- POESIA de E. Pound (Mando-lhe cópia te memorável; o Augusto estava tam- à parte; o “lay-out” é do Augusto ... bém presente). O último livro do Cabral Até 15 de janeiro próximo, sai uma – AGRESTES – é dedicado (poema de edição em livro autônomo das minhas abertura) ao Augusto. (11 jan. 86). GALAXIAS. Trabalho, também, inten- samente, na conclusão do livro sobre Depois do semestre tão bem-suce- BLANCO de O. Paz. (31 dez. 83). dido de 1981, volta a ideia no departamento de Austin de convidar o Haroldo para ocu- par um posto permanente, na mesa desde Haroldo fica animado de novo por causa 1979, sugestão à qual responde com sim- de vários acontecimentos no cenário artís- patia, na mesma data em que sai a aposen- tico brasileiro, que comenta com o entu- tadoria, manifestando a sua preferência siasmo que o caracterizava. de se dedicar totalmente à obra criativa.

O ambiente aqui está-se abrindo bas- Fiquei muito sensibilizado com as in- tante: um exemplo, é o programa de TV formações que V. me transmitiu so- sobre Augusto e a música; outro, o fato bre o interesse conjunto do Dpto de de A FOLHA ter-me encomendado um Espanhol e Português na minha pes- poema com o qual vai abrir sua edição soa. O gesto do Prof. Arocena e a ofer- de ANO NOVO, e que ficou assim: ta por ele feita deixaram-me, em parti- cular, muito honrado. [...] Desde logo, 1984: ANO I, ERA DE ORWELL porém, deixo registrada a minha gra- tidão pela lembrança tão carinhosa de enquanto os mortais meu nome e a V. e aos caros amigos do aceleram urânio Texas retribuo de todo o coração com a borboleta a amizade e o apreço intelectual de al- por um dia imortal guém que nunca esqueceu os felizes elabora seu vôo ciclâmen momentos que passou como “member of the Faculty” em Austin. (20-05-79)

25 Brasiliense, meu A EDUCAÇÃO DOS Quanto ao honroso convite que Vocês, CINCO SENTIDOS (no qual figura amigos do Texas, me reiteram para a a seção AUSTINEIA DESVAIRADA); vaga do nosso bom amigo Arocena, mas antes de tudo, dia 27 de agosto não é preciso que eu lhes diga o quan- próximo, a reedição, ampliada de 40 to a ideia me desvanece. Não desejo, poemas, a POESIA RUSSA MODERNA porém, assumir encargos ou com- (A.C., H.C. & B. Schnaiderman), edi- promissos permanentes. Me deduz, ção Brasiliense. (12 ago. 85). mais, a ideia de permanecer um “free lancer”, fazendo, cada ano e meio ou Sempre atento às publicações cada 2 anos, visitas a Universidades internacionais, encontra um caso que estrangeiras. Destas, na linha de mi- nos lembra a questão da “obra aber- nha preferência afetiva, está, desde ta”, ideia compartida com . logo a UT, coração cordial da Austinéia Haroldo pede para entrar em contato Desvairada onde, com minha família, com o autor do livro IDEOGRAM: History passei momentos inesquecíveis, e de of a Poetic Method, por Lazlo K. Gefin, cuja Faculty considero-me um mem- posterior ao livro dele, IDEOGRAMA: bro virtual ainda que no exterior. A Lógica Poesia Linguagem, de 1977. cátedra Tinker será sempre, acredi- to, uma possibilidade em aberto para A propósito: Meu livro homôni- isso. Mas teremos agora muito tempo mo, IDEOGRAMA (Lógica Poesia para falar do assunto. (20 abr. 83). Linguagem), publicado aqui em 1977 (!) pela Culturx/Edit. USP, parece que E em agosto de 1985, Haroldo é totalmente desconhecido do autor relata um renovado ciclo de atividades e de IDEOGRAM (History of a poetic me- trabalhos intensos: thod), Prof. Lazlo K. Gefin, lecturer in English at Concordia Univ. in Montreal. Teremos, também, de 2 a 9 de setem- Você poderia obter-me o endereço bro, o II Congresso Brasileiro (com dele junto a UT PRESS? O trabalho presença de especialistas estrangei- dele é bem posterior ao meu, pois se ros convidados) de Semiótica, para trata da revised edition de uma docto- o qual tive que preparar in a hurry ral dissertation de 1979 (McGill Univ., meu comunicado sobre a “Semiótica Montreal). Um bom trecho do meu en- da Operação Tradutora”; devo ain- saio introdutório de 76 consta agora da concluir até o final de agosto o em versão inglesa (é verdade que com TRANSBLANCO (com e sobre O. Paz) alguns erros de impressão e outros – para a Editora Guanabara-Koogan do não fatais – deslizes de tradução) do R. Janeiro e o prefácio para a reedição n.o especial sobre SEMIÓTICA NO do IDEOGRAMA (Cultrix, S. Paulo); BRASIL da DISPOSITIO (vo. VI n. 17- em setembro sai a 2ª. ed do POUND 18, p. 9-39). (05 mar.84). e a edição de ANATOMIA DO GOL (de- senhos de A. Lizárraga prefaciados por um longo poema recém-escrito por mim, edição Massao-Ohno/Marcelo Tápia); em outubro, finalmente, pela

26 Mas o ritmo dos trabalhos é in- Recebe convite do prof. Julio terrompido de uma maneira radical pela Ortega para passar mais um semestre no morte nesse ano do amigo Monegal, que Texas, aceito, mas que não chega a acon- Haroldo relata em dezembro: tecer, por motivos de saúde.

Devo confessar-lhe que não estou, Recebi carta do caríssimo Julio Ortega no momento, em minha melhor for- ... Peço-lhe que lhe diga, desde já, de ma. Fiquei muito abalado e deprimido minha parte, o seguinte: aceito, em com a morte do Monegal, pouco mais princípio, o convite para Prof. Visitante de 10 dias após eu ter assistido em em Austin no Fall Term 86. Darei os 2 Montevidéo às últimas aparições dele (dois) cursos, um em espanhol (taller em público! Foi algo muito comovente, de traducción) e o Graduate Course inesquecível mesmo. Todas essas emo- (este em português, versando sobre ções, somadas ao cansaço cumulativo o tema seguinte: POESIA BRASILEIRA desses 2 anos de atividades e viagens DE VANGUARDA: Da Poesia Concreta (estas, sempre, por motivo de trabalho: à Poesia Pós-Utópica). (16 dez. 85). simpósios, conferências, etc.) produzi- ram-me um violento stress. Estou se- E vai no seu lugar o prof João guindo um tratamento com meu médico Alexandre Barbosa, na primavera texana clínico, à base de anti-depressivos, mas de 1986. é algo lento, que se pode prolongar por alguns meses. [...] Minha capacidade Vou pedir ao João Alexandre que seja de trabalho e correspondência, como é portador (se ele não estiver sobre- óbvio, ficou afetada, e assim também o carregado, de exemplares do meu A meu pique para assumir novos encar- EDUCAÇÃO DOS CINCO SENTIDOS gos. Não creio que terei condições de para Você & Família, para Ad a & Fred e comparecer ao Simpósio de Austin em para o Ortega: homenagem minha aos 28/fev. 1.o março. Não tenho nenhum amigos da Austineia). (11 jan. 86). texto novo sobre a vanguarda (o último que escrevi POESIA E MODERNIDADE É só em 1988 que Haroldo nos / O POEMA PÓS-UTÓPICO, já saiu anuncia a volta de seu entusiasmo, que publicada aqui, no ano passado, no inicia novo ciclo de trabalhos e de viagens. FOLHETIM, e em espanhol em VUELTA). Não tenho intenção de voltar ao assun- uma nova e multiplicada energia para to tão cedo. Prefiro dedicar-me à poe- o meu trabalho. Devo, em breve, entre sia, à tradução e ao estudo do hebraico fins de maio e meados de junho, fazer (que age para mim como uma terapia uma rápida viagem à Europa, por 15 de distração lúdica). Não me anima via- ou 20 dias, a convite do cineasta Julio jar para Austin, sozinho por uns poucos Bressane, que vai fazer um filme sobre dias, e menos ainda fazer um tour de o barroco e o neobarroco, tendo como conferências pelos States nestas cir- ponto de partida o Pe. Vieira (vou ser cunstâncias. Agradeço-lhe de coração assessor literário do roteiro e já “bo- o empenho, mas fica para outra vez, lei” um título para o filme: GRANDE quando eu puder viajar por mais tem- SERMÃO: VIEIRA; vou também par- po, com a família. (16-12-85). ticipar como figurante, lendo um

27 texto das GALAXIAS em contrapon- Anuncia uma viagem ao Japão e to com o SERMÃO DA SEXAGÉSIMA, mais uma série de projetos e de publicações: este dito por Othon Bastos [...] Estou numa grande produtividade Mais adiante, em fins de setembro, neste primeiro semestre, depois de estarei em Washington DC para um ter passado (com a Carmen) 15 dias Simpósio no Wilson Center, a convite maravilhosos no Japão, a convite da do Morse (já aceitei, em princípio). Japan Foundation, na 2.a quinzena de Se for possível, voltarei via México, outubro de 91. Entreguei 4 livros (no- onde, no final do ano passado, foi lan- vos e reedições, a diferentes editores) çada uma antologia poética bilíngue e gravei um CD com 16 fragmentos de minha (TRANSIDERACIONES) e onde GALAXIAS, oralizados por mim, que tenho muitos e queridos amigos. (01 será lançado dia 15 de junho próximo mai.88). pela Editora “34 Letras” (do Rio) no MIS de S. Paulo Em 1990, ainda de olho em Austin, Haroldo comenta o congresso que Estou necessitado de um livro sobre comemora o centenário de nascimento de o teatro NÔ que vi em Tóquio mas Oswald de Andrade: que, infelizmente, em razão da cor- reria da viagem, não pude adquirir Muito obrigado por sua carta de 1 então. Trata-se de KENNETH YASUDA, de fevereiro, com as notícias sobre o Masterworks of the NÔ THEATER, êxito do Simpósio Comemorativo do Indiana UP, 1991. (30 mar. 92). Centenário de Oswald de Andrade. Congratulo-me em especial com E ainda continua fazendo peque- Você e agradeço-lhe a atenção de nas viagens para a Europa: “Agora, dia 20 me ter dedicado uma das sessões do de abril, estarei (com Carmen) em Madrid, Simpósio. (26 fev. 90). para fazer uma leitura de meus poemas, convidado pela Residencia de Estudiantes Começo em 1992 a minha separação (dos EUA, comparecerá John Ashbery).” da Universidade do Texas e a mudança para (30 mar. 92). Yale. Haroldo novamente oferece o seu apoio: 6 SYMPHOSOPHIA, YALE 1995 Estou certo de que, a esta altura, V. terá recebido a indicação da Univ. de Yale Desde 1993 começamos a planejar o para o posto de Professor Titular junto ao maior congresso que organizei em Yale, A Dpto de Espanhol e Português (espero YALE SYMPHOSOPHIA, de abril 1995, so- que meu pronunciamento a respeito de bre poesia experimental, visual e concreta, sua candidatura, -- um pronunciamento com uma ampla participação de poetas e que pude enriquecer com a cópia de mi- estudiosos, umas 45 pessoas, da Europa, nhas duas manifestações anteriores, re- do Canadá e do Japão, incluindo autores e lativas ao seu processo de “tenure” e ao editores ligados à poesia concreta e à poe- posto de Full Professor em Austin, Texas, sia experimental, tais como Ana Hatherly, -- tenha chegado no devido tempo e lhe E.M. de Melo e Castro, Dick Higgins, tenha sido útil). (30 mar. 92). Mary Ellen Solt, Lello Voce, e muitos ou-

28 tros. O livro saiu em 1996 na Holanda, Mas Haroldo não estará em Experimental, Visual, Concrete: Avant- plena forma para o evento, apesar garde Poetry Since 1960, editado com Eric de uma participação muito bem su- Vos e Johanna Drucker. Contei sempre com cedida na SYMPHOSOPHIA de Yale, o apoio do Haroldo para montar o evento. com explica numa carta de janeiro.

Fico muito contente com a ideia e terei A verdade é que, desde a minha vol- prazer em participar do evento. ta de uma breve viagem à França e Quanto aos nomes para o evento de 95, à Alemanha (onde – em Stuttgart além de minha pessoa, do Augusto e do – estive com Carmen a convite da Décio, sugiro: , Lenora Prefeitura local para assistir uma de Barros, Omar Khouri, Paulo Miranda. apresentação em teatro da oraliza- (12 ago. 93). ção de 4. Fragmentos das GALAXIAS traduzidos para o alemão, no quadro Vejo que V. já está a todo vapor quanto de uma homenagem a MAX BENSE), à organização do Simpósio de Yale, na comecei a sentir-me mal. Foi diagnos- 1ª. semana de abril 95. Fiquei contente ticada uma diabetes. Passei a subme- em saber que Fujitomi Yasuo – poeta ter-me a uma dieta rigorosa e à dia- de vanguarda e tradutor de e.e. cum- betes juntou-se uma depressão. Só mings para o japonês, -- a quem co- agora, nesta primeira quinzena de 95, nheci pessoalmente em Tóquio, estará com a regressão da diabetes (compro- participando do evento. Espero que, até vada em exame de sangue), estou-me abril, já esteja em plena forma e em sentindo melhor, embora não inteira- condições de estar presente em Yale. mente. Claro que parei de trabalhar e Não sei se terei condições de preparar fiquei por conta de remédios, dieta e muita coisa, mas creio que, com a sua repouso, nesses meses de outubro e colaboração, poderia fazer a apresen- dezembro. Uma inércia apoderou-se tação de fragmentos das Galáxias em de mim e parei de comunicar-me com inglês e português. (16 jan. 95). os amigos. Assim, desde logo, devo, em meu nome, no de Carmen e no de Estou reservando passagens na VARIG Ivan, enviar a Beth e a Você nossos para Mim * para Carmen no voo de 4 parabéns pelo nascimento do jovem abril / chegada a N Haven 5 abril São Kenneth Gregory, que irá abrilhantar Paulo/N.York. (16 fev. 95). o círculo familiar já composto pela Sophia e pela Katharina. (16 jan.95). Espero que você tenha recebido os textos do poema RE MAX BENSE e Escreve, mesmo assim, um belo GALÁXIAS (versões para ...) de modo tributo a Elisabeth Walter-Bense e Mary legível. No dia 6, 5ª em New Haven, Ellen Solt, apresentado no congres- teremos oportunidade de fazer um so, antes de uma leitura de fragmen- breve ensaio de leitura (o que me pa- tos das Galáxias, segundo combinado. rece necessário, para isso peco-lhe que reserve algum tempo além. (02 REPLY TO ELISABETH WALTER-BENSE abr.95). AND TO MARY ELLEN SOLT ... “I made acquaintance with Max

29 Bense and Elisabeth Walther since um deles. Ambos (o poema re Bense e 1959, when, with my wife Carmen, um desses 2 fragmentos) serão apre- I paid a visit to both of them at the sentados após a breve introdução aci- Technische Hochschule, afterwards ma. (07 abr. 95). Universität Stuttgart. Since that date, we have developed a warm friend- Após a SYMPHOSOPHIA, co- ship and a continuous collaboration, menta a sua satisfação com o even- as Dr. Walther-Bense has reported to. Como não havia tempo no congres- with detail in her exposition. After so para a mesa redonda, chamada de Max Bense’s death in 1990, I wrote a “SYMPHOSYMPOSIUM,” foi preciso pedir poem in which, through the juxtapo- respostas por escrito às perguntas, que sition of some epiphanic, biographical depois reuni por tema, com se tivessem flashes of Bense’s life and work, I tried sido apresentados ao vivo. to portray his mind, as the mind of a philosopher-poet capable of a mar- Foi uma beleza o simposófico encon- velous synthesis between abstract tro em Yale e, depois, a estada em NY. thought and concrete imagination. I Carmen e eu voltamos encantados a will read first my memorial poem in S. Paulo e sua presença à testa dos Portuguese and my friend prof. David estudos luso-brasileiros em Yale co- Jackson will be kind enough to read meçou em pé direito. it in English translation (in eine und zwai und, journal for art and creation, Recebi a sua carta e acho que a solu- 1994… On the other hand, also as a ção encontrada para a entrevista foi kind of poetical token of friendship, muito boa. (data ilegível) now in reply to Mary Ellen Solt, my friend since the 1960s, Mary Ellen Vêm anos de outras viagens e ati- whose important contribution to vi- vidades, no ritmo intenso já característico: sual poetry, as a poet as well as an essayist and the editor of the pioneer- Estou com uma agenda muito ing and well documented international sobrecarregada. Dia 26 vou para anthology of Concrete Poetry (1968), Portugal com Ivan para um encontro I would like to acknowledge here – I internacional de poetas em Salamanca will present a fragment of my book (a convite do Itamaraty) participar de Galaxies, in the original, and in its mesa-redonda sobre João Cabral. Em English translation, by Norman Potter seguida vamos para Milão/Veneza and Christopher Middleton. Prof. D. ... desenvolvo trabalho junto a prof. Jackson will read the English version.” Luciana Univ. Veneza. Dia 12/06 vol- tamos a S. Paulo Meu caro David, Este seria, basica- Preciso que me mande a fita com a mente (com acréscimos improvisados leitura do Christopher... Pretendo usá- na hora), meu texto para a minha in- -la dia 27.05 em Coimbra. Antes, dia tervenção, na sessão do dia 7. Mando- 11.05, tenho uma leitura bilíngue, na lhe a versão para o inglês do poema re “Hebraica”, dos cap. I-II-III da Bíblia em Max Bense. Vão também 2 textos das minha transcriação na FOLHA – MAIS! Galáxias em inglês, para você escolher -- De 7.05 deve sair essa tradução, pre-

30 cedida de uma introdução na qual, en- Haroldo e Carmen ainda voltam a tre outras coisas, discuto The Book of J Nova York em 1996, época em que recebe de meu xará Haroldo Flor (digo: Harold um doutorado honorário da Universidade Bloom) Dia 19.05. (data ilegível) de Montréal e o prémio Octavio Paz, mas não é possível organizar nova atividade em Yale como Haroldo propõe.

31 Gostaria de receber, tão pronto en- Fico contente em saber de sua próxi- quanto possível, um convite especial ma viagem a Macau. Fui convidado de Yale, o que me facilitaria nos trâ- pela Embaixada do Brasil em Pequim mites do visa americano (escaparia da a fazer conferência sobre lit. bras em rotina e trataria do assunto diretamen- Universidades chinesas... te com a pessoa encarregada do setor Estou interessado em adquirir tradu- cultural no consulado em S. Paulo. ções de poesia chinesa e livros sobre Dia 24 maio próximo 6ª feira, es- cultura chinesa (e japonesa) que, taremos, Carmem e eu chegando a segundo sei, se publicam em Macau. NY. Estaremos no Lexington Hotel at Necessitaria do endereço (e sobretudo 48th Street ente 24.05 e 30.05 caso do fax) de alguma livraria que se dis- seja possível (e desejável praticável pusesse a aceitar encomendas). (31 no período) poderei ir a New Haven dez. 95). para “uma charla” no dia 27 ou no 29 (no 28 tenho encontro com Charles Haroldo publica um ensaio na Bernstein, no ... vamos pa/ Montréal. Revista de Cultura, do Instituto Cultural de Poderia também ao invés da palestra Macau, mas nunca conseguiu aceitar con- mais formal sobre o Golpe de Dados vites para lecionar em universidades chine- ... sas, que eu saiba. A Inês Oséke-Depré concluiu uma Ainda responde negativamente a um convi- trad. integral das Galáxias, a ser pu- te para participar em um congresso em Yale blicada no 1º semestre 97 em Franca). dedicado ao Pe. Antônio Vieira, em 1997: Os comentários em princípio eu os fa- ria em espanhol, mas poderemos al- Recebi sua careta de 3.02, a propósito ternar inglês/espanhol. Esta 2ª suges- do Pe. Vieira. Não tenho podido dedi- tão seria para um papo informal, com car-me ao estudo da obra do grande prof. E alunos do Depto. de Espanhol prosador barroco luso-brasileiro (con- (caso disponível no período). centrei minha atenção, como sabe, em Gregório de Matos). Isto posto, e dados De qualquer modo, não sendo prati- os meus outros trabalhos em curso, não cável organizar algo, espero que você me sinto em condições de contribuir possa vira até N. York, para que nos para o colóquio internacional na forma vejamos e conversemos. (19 maio 96). do amável convite que me foi enviada, e que muito agradeço. (25 abr. 97) .

Nesse período, depois da SYMPHOSOPHIA, Haroldo é convida- do a fazer conferências na China, pelo Itamaraty, e me pergunta sobre as mi- nhas viagens a Macau, que começam em dezembro de 1995, para a publicação do álbum fotográfico Uma presença oculta:

32 7 OXFORD - YALE 1999 com a literatura hispano-americana e ou- tras literaturas, de reconstituir modelos O último grande evento que conse- poéticos na poesia brasileira, do barroco gui organizar, para comemorar os 70 anos ao modernismo, e de especificar linhas do Haroldo, foi o congresso transatlânti- críticas de interpretação, como exemplifi- co Oxford – Yale, “ON TRANSCREATION: cado pelo curso “Do texto à rarefação do LITERARY INVENTION, TRANSLATION, texto”. Nos seminários organizados com a AND POETICS”, iniciativa que teve as suas sua participação, da SCRIBBLEVAGANZA primeiras sessões no “ Centre” da de 1981 ao EXPERIMENTAL, VISUAL, Universidade de Oxford, e contou com CONCRETE de 1995 e ao congresso tran- o apoio do historiador e professor Leslie satlântico “ON TRANSCREATION” de 1999, Bethell, diretor do importante Centro de reuniram-se teóricos da tradução poética estudos brasileiros na UK durante uma e da modernidade literária, com ênfase década. As atividades passaram depois na criação brasileira na figura do Haroldo. para Yale, com muitos dos mesmos parti- Quem comandou essas festas foi o escritor cipantes, mais alguns que não puderam ir e poeta brasileiro. À base da sua presen- a Oxford e menos outros que participaram ça nos papéis de professor, conferencista apenas na UK. Conseguimos reunir muitos e poeta, teve um impacto duradouro, na dos amigos e estudiosos do Haroldo de am- primeira instância sobre uma geração de bos os lados do Atlântico – Marjorie Perloff, alunos interessados na literatura brasileira Piero Boitani, Vladimir Krysinski, Inês (incluindo o tradutor de Sousândrade para Oseki-Dépre, Walter Mosher, entre outros. o inglês, os tradutores de Miramar, futu- Ao chegar em Yale, Haroldo partici- ros professores no início das suas carrei- pa na primeira sessão, com comentários e ras), e na segunda instância sobre os ou- perguntas, mas logo é hospitalizado e não vintes e leitores. Como conferencista deu volta mais às sessões. Depois de uns dias destaque à criatividade brasileira (ainda de repouso consegue embarcar para São recomendou para outros congressos so- Paulo, sentindo-se muito melhor, para en- bre poesia brasileira figuras como Paulo frentar mais exames e consultas médicas. Leminski e Waly Salomão) e teve influên- cia importante sobre o pensamento crítico 8 CICLO DE VIAGENS AOS EUA norte-americano em figuras de destaque como Marjorie Perloff. Como poeta, en- Em vista das visitas à Universidade controu em Austin as condições e o ma- do Texas, começando em 1968, até a volta terial que instigaram a série AUSTINEIA a Yale em 1995 e 1999, num espaço de DESVAIRADA, ligada intimamente às suas trinta anos, com as intensas atividades pe- andanças pela cidade em 1981, e a inspira- dagógicas e intelectuais e a exposição do ção para a tradução de BLANCO, de Octávio seu trabalho e das suas ideias em congres- Paz, para as traduções que elaborou com sos, é certo que as viagens aos Estados Christopher Middleton e para os trabalhos Unidos e a permanência nas duas univer- que apresentou na SCRIBBLEVAGANZA, sidades tiveram um impacto significativo “The Iconic Translation: Transcreation sobre o Haroldo. No âmbito da pedagogia, as Paramorphism”, e “Mephistofaustian teve a oportunidade de repensar a histo- Transluciferation”. E ainda produziu o belo riografia literária brasileira, de colocar e texto em homenagem a Elisabeth Walther- desenvolver convergências e divergências Bense e Mary Ellen Solt, lido no congres-

33 so de Yale de 1995, e o polêmico ensaio O resto da nossa correspondência sobre o autor como “ex-cêntrico”, lido em se ocupa das contas do hospital em New Oxford (“Tradition, Transcreation, Haven e dos médicos que o atenderam, Transculturation: the point of view of the tentando acionar o seguro brasileiro, para ex-centric”), traduzido por Stella Tagnin e o qual esse hospital não constava na lis- Haroldo e publicado em inglês, na Tradterm ta prioritária. A correspondência ficou com 4, no segundo semestre de 1997. Às múl- o “veremos”. Haroldo nunca chegou a ver tiplas áreas de sua atuação – professor, o livro que saiu desse encontro, publicado conferencista, poeta, teórico, tradutor pelo Centro de Oxford, Haroldo de Campos: – deveríamos acrescentar também “em- A Dialogue with the Brazilian Concrete Poet presário”, equivalente de um Diaghalev (2005), com o polêmico ensaio inédito. no ballet, ou de um Villa-Lobos no canto Recebi O Arco-Iris Branco e o primeiro vo- orfeônico. Sem nos esquecer também da lume da tradução da Ilíada, com dedicató- qualidade de colega amigo, fiel correspon- rias, e, depois, os outros, mas faltando as dente e incansável organizador e apoia- linhas escritas a mão tão familiares: dor de trabalhos, congressos e viagens. Certamente Haroldo queria ser lembrado Aceitem, Você, Beth e Família, um primeiro como poeta, mas sobretudo nos grande e afetuoso abraço do velho momentos de voo, em que espontanea- amigo, Haroldo. mente conseguiu ligar pontos muito diver- sos ou distantes dos seus interesses, Bashô com Pound, com o teatro Nô, com poesia clássica chinesa, com cummings ou John Cage. Nessas invenções, e em certos mo- mentos de transcriação, Haroldo chegou ao Paradiso dos seus talentos criativos. Depois do congresso ON TRANSCREATION, de 1999, recebo um úl- timo “boletim” em novembro.

Estou em franco reestabelecimento e já voltei aos meus trabalhos em curso. Só falta fazer, agora, a nova endos- copia que o meu médico... entendeu que eu deva realizar na 1ª semana de dezembro próximo após o término dos medicamentos, que ainda estou toan- do... ele acredita também que se trata de sangramento de ulceração causada por stress ... e que, a esta altura, já deve estar, inclusive, plenamente ci- catrizada. Veremos. (15 nov. 99).

34 35 REDES INTELECTUAIS E CONSTELAÇÕES TEXTUAIS: A BIBLIOTECA DE HAROLDO DE CAMPOS COMO ESPAÇO DE CRÍTICA E DE CRIAÇÃO1

MAX HIDALGO NÁCHER

Universitat de Barcelona

O que contou para mim – além desta Paulucinéia Tresvariado-poluída que é a cidade que mais amo no mundo, Sampa – foram as viagens [...]. Todo um ror de livros na bagagem – malamágica de vagamundo (CAMPOS, 1985, p. 113-114).

36 A biblioteca de Haroldo de Sánchez Robayna, dois dos principais con- Campos, conservada na Casa das Rosas, tatos de Haroldo na Espanha. na Avenida Paulista em São Paulo, é cons- A fita de Möbius é uma figura tituída por mais de 21.000 volumes, em igualmente adequada para falar do movi- mais de trinta línguas, em que há repre- mento íntimo da biblioteca, no qual o inte- sentação de mais de setenta literaturas rior e o exterior, que nunca são o mesmo, nacionais. Esse acervo é, entre muitas ou- confundem-se intimamente em um movi- tras coisas, um valioso arquivo da teoria mento de inversão infinito. Se isso acon- e da crítica literária da segunda metade tece é porque a biblioteca de Haroldo não do século XX publicada, fundamentalmen- é uma biblioteca de antiquário (Nietzsche, te, em português, espanhol, francês, in- Segunda Consideração Intempestiva: da glês e alemão. Porém, a sua descrição não utilidade e desvantagem da história para a pode ser simplesmente material, pois para vida), mas está a serviço de um projeto de apreender o seu valor específico é preciso crítica e de criação. O seu estudo permi- entender que se trata de um espaço de te reconstruir parcialmente tanto a oficina criação no qual Haroldo mobiliza o arquivo de criação do autor quanto a sua inserção da cultura e insere nele a sua obra de um nas redes intelectuais internacionais. Esse modo original e produtivo. O dispositivo de duplo movimento é fundamental, porque leitura de Haroldo de Campos – que tem o diálogo textual é alimentado pela cons- na sua biblioteca uma condição de possi- trução de uma rede material de produção bilidade fundamental – constrói galáxias cultural – e vice-versa. textuais a partir da combinação de textos que, justapostos, produzem, como em um Os livros, as viagens curto-circuito, a novidade (NACHER, 2018, p. 216-231). Esses circuitos textuais se A obra de Haroldo não se explica sem apoiam na existência material de redes in- as redes intelectuais que promoveu. São telectuais internacionais que abrem novos múltiplos os testemunhos orais e escritos horizontes para a criação; redes das quais da paixão de Haroldo por viagens. Escrevia os agentes extraem a sua legitimidade. há pouco tempo Julián Ríos: A biblioteca está atravessada por fluxos e forças de transformação. Não por En la era digital y de la instantanei- acaso, e em uma sorte de movimento he- dad de nuestros días, no resulta a licoidal, a estrutura da biblioteca me levou veces evidente que las peregrinacio- a empreender uma viagem – São Paulo, nes de Haroldo a Europa no eran en Cambridge (Boston), São Paulo, Paris, el fondo muy diferentes de las de los Ilhas Canárias, São Paulo... – que, quanto monjes y eruditos en siglos anteriores mais longe me levava da biblioteca, mais en busca de manuscritos y contactos me aproxima ao seu centro, e que quan- con otros sabios desperdigados por el to mais ao centro me dirigia, me lança- mundo. Haroldo llegaba a Europa para va mais para o exterior. Em Cambridge difundir libros brasileños, que llena- consultei, no Massachusetts Institute ban sus maletas, además de regalos of Technology (MIT), a correspondência como, por ejemplo, pesados ceniceros de Haroldo com Roman Jakobson; e em hechos de trozos de árboles fosiliza- Paris e nas Ilhas Canárias me encontrei, dos, y se volvía a Brasil con las ma- respetivamente, com Julián Ríos e Andrés letas aún más atiborradas de libros

37 regalados y comprados. El Amazonas As testemunhas anteriores dão reposado y repasado de Haroldo no conta de uma política literária e intelec- era el Amazon a un click de ahora2 . tual. Essas redes de sociabilidade foram fundamentais para a projeção internacio- Leyla Perrone, que em 1970 mo- nal da obra de Haroldo. A própria biblio- rava em Paris, lembra da viagem de duas teca – que aparentemente repousaria, in semanas que os dois fizeram à Itália e a sæcula sæculorum, nela mesma – teste- Londres no começo daquele ano. Haroldo munha um percurso que é, sem dúvida, de chegou a Paris, escreve ela, “cheio de exceção. A excepcionalidade da biblioteca livros, novidades, planos e risadas” tem relação, portanto, com uma política (PERRONE-MOISÉS, 2010, p. 51),. O seu literária antropofágica e militantemente testemunho dá conta do valor das via- cosmopolita. Os livros e as viagens fazem gens para Haroldo: viagens pautadas pela parte de uma mesma estrutura. Até o pon- compra de livros e pelos encontros. “Era to em que as Galáxias – “isto não é um ele”, escreve a principal introdutora de livro de viagens” – podem ser lidas como Barthes no Brasil, “quem marcava os en- uma translação desse percurso de viagens contros, escolhia as exposições, os faces, e sociabilidade de tal modo que, por sua restaurantes e lojas. Estas eram exclusi- vez, permitiriam (re)pensar esse processo vamente livrarias, onde passávamos horas de constituição da biblioteca. (sobretudo na Librairie Internationale do O próprio Haroldo (1985, p. 113- Boulevard Saint-Germain, hoje desapare- 115), em uma breve “Biografia”, afirma- cida)” (Ibid,, p. 56). Ela morava na Place de va: “O que contou para mim –além desta Jussieu, em um quarto que tinha consegui- Paulucinéia Tresvariado-poluída que é a do pela mediação de Tzvetan Todorov (Ibid., cidade que mais amo no mundo, Sampa p. 49), que conhecera por intermédio de – foram as viagens”. Viagens que se con- Haroldo. A própria crítica declarou em uma fundem com a escrita – escrita que é sem- entrevista: pre reescrita, leito-escritura – e a criação: “Todo um ror de livros na bagagem – ma- O Haroldo esteve sempre em toda lamágica de vagamundo”. parte, antes de todo mundo – eu digo Tanto essas viagens quanto a cor- antes dos universitários porque ele respondência que as precedem e as su- não era universitário na época. Ele cedem tinham uma finalidade criativa: tinha conhecimento do formalismo visavam à promoção de um circuito de russo, tinha contatos antes de mim comunicação, um circuito de produção de com o grupo Tel quel, com o grupo deslocamentos e transformações a serviço Change. Aliás, ele ficou mais próximo da novidade e do que muda – do que, du- do Change, do Jean-Pierre Faye, do rante um certo período, se chamou “mo- que do Sollers. Foi o primeiro que en- derno”. Haroldo pensava a sua atuação no trou em contato com o Todorov, com horizonte geral da contemporaneidade em a Kristeva, com todo mundo (WOLFF, um duplo registro local e internacional. Ele 2016, p. 151). se apropriava dos textos, mas ao mesmo

38 tempo estabelecia, na maioria das vezes, um diálogo vivo com os autores3 . Essa du- pla relação constitui uma das especificida- des do lugar liminar que ocupa Haroldo. Por outro lado, e isso é também fundamental, Haroldo não se coloca no lugar do discípulo de nenhum desses au- tores que ele introduz no Brasil e com os quais dialoga em mesmo nível: Max Bense, Roman Jakobson, Jacques Derrida ou Umberto Eco. E autores dos quais, pra- ticando o jogo das antecipações, Haroldo pretendia – em um gesto paradoxal – ser às vezes o precursor, amparando-se em uma coincidência textual, pois a Opera aberta (1962) de Eco foi precedida de um texto – de menos de uma página – intitu- lado “A Obra de Arte Aberta” (1955), no qual também usava pioneiramente a pa- lavra “neobarroco”4. O fundamental aí não 1966 e as redes da teoria literária é o reconhecimento de uma antecedência simplesmente imaginária, mas a ativação A prática crítica e criativa de dos textos no presente. A dedicatória que Haroldo é impensável sem um contex- inscreve Eco no exemplar de Haroldo de to material em que são fundamentais os Lo strano caso della Hanau 1609 (ECO, jornais, as revistas, as universidades e as 1989) prolonga esse jogo: “A Haroldo pla- editoras. A estratégia de Haroldo consistiu giario profetico Umberto Milan 20.3.91”. em criar redes e alianças internacionais para renovar as práticas críticas e lite- Dedicatórias rárias e valorizar o seu próprio trabalho. 1.1 JAKOBSON, Roman. Roman Jakobson: a bibliography Essa estratégia já aparece nos tempos da of his writings, The Hague: Mouton, 1971. 60 p. (Acervo poesia concreta, mas aqui me centrarei na Haroldo de Campos, tombo 8366). época que começa no ano 1966, momento 1.2 KRISTEVA, Julia. Polylogue. Paris: Seuil (“Tel quel”), fundamental para o meu relato. 1977 (Acervo Haroldo de Campos, tombo 10882). 1966 é considerado, no plano in- 1.3 DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot, Paris: ternacional, o ano do “estruturalismo” Galilée, 1998 (Acervo Haroldo de Campos, tombo 10563). (DOSSE, 1992, p. 384-420). São publi- 1.4 ECO, Umberto. Lo strano caso della Hanau 1609. cados, entre outros, Critique et vérité, Milano: Bompiani, 1989 (Acervo Haroldo de Campos, tom- de Barthes; Les mots et les choses, de bo 11026). Foucault, e os Écrits, de Lacan, livros que geram crises e polêmicas em seus res- pectivos campos. Nesse mesmo ano se celebra, nos Estados Unidos, o Simpósio de Baltimore, do qual participam, entre outros, Barthes, Derrida e Lacan. Esse evento constitui o desembarque oficial

39 do “estruturalismo” nos Estados Unidos e , com a aparição do conceito de leitura o começo do chamado “pós-estruturalis- “sincrônico-retrospectiva”, que é o obje- mo”. Não por acaso, pois, além da “French to privilegiado de dois ensaios de 1967: Theory” – que é um produto made in USA “Poética sincrônica” e “Texto e História”. A –, 1966 é o momento em que, na própria formação desse conceito central pode se França, o estruturalismo transborda as relacionar, por outras vias, com T.S. Eliot, suas pretensões científicas e entra em um Borges ou com o paideuma de Ezra Pound, contato íntimo com a política, a subjetivi- que serviu de referência aos concretistas dade e a criação literária (MILNER, 2008). desde a segunda metade dos anos cin- Na própria biografia intelectual de quenta6 ; porém, nesse caso, é resultado Haroldo, a segunda metade dos anos ses- direto da sua leitura e relação com Roman senta é o momento de abandono, trans- Jakobson. Além disso, 1966 é também formação ou generalização do projeto da importante por ser o ano em que Haroldo poesia concreta, que coincide cronologica- conhece pessoalmente o linguista russo7 mente, como já indicou Gonzalo Aguilar5 , contato privilegiado com quem estabe-

ESTADOS UNIDOS FRANÇA

Julia Kristeva Jean-Pierre Faye, Jacques Roubaud, Maurice Roche (França, 1925) (França, 1922) (França, 1924-1997 Roman Jakobson (Bulgária, 1941) Chance (Rússia, 1896 - 1982) Tel Quel e AIS Associação Internacional de Semiótica (AIS)

Philippe Sollars (França, 1936) Tel Quel BRASIL

Haroldo de Campos François Wahl (Brasil, 1929 - 2003) (França, 1925-2014) Perspectiva Seull

MÉXICO Severo Sarduy (Cuba, 1937 - 1993) Octávio Paz Tel Quel / Seull (México, 1914 - 1998) Plural (1971 -1976) Vuelta (1976-1998) ESPANHA

Julián Rios Andrés Sánchez Robayana (Espanha, 1941) (Espanha, 1952) Espiral ( 1976 - 1980) Syntaxis (1983 - 1993)

40 lecerá uma relação intelectual produtiva Julián Ríos, que morou em Londres e vive que lhe permitirá inserir-se nas redes em Paris; e de Andrés Sánchez Robayna, teóricas em formação da segunda metade que, desde as Ilhas Canárias, reivindica a dos anos sessenta. sua condição insular e transatlântica. Em O esquema reproduzido a se- segundo lugar, compartilham uma certa guir apresenta alguns dos principais au- ideia de modernidade ou de vanguarda tores que participam na rede de Haroldo como tradição da ruptura (Paz), poética posterior a 1966 nos Estados Unidos, sincrônica (Haroldo), leito-escritura (Ríos) França,México e Espanha. A maioria des- ou reinvenção da tradição desde o presen- tes autores compartilham uma série de ca- te (Robayna)8. Em terceiro lugar, para to- raterísticas gerais que facilitam o seu agru- dos eles é fundamental a conexão íntima pamento. E todos eles têm em comum dois entre pensamento e literatura, entre crí- elementos: por um lado, produzem obras tica e criação (a poesia da gramática e a originais que desafiam os gêneros literá- gramática da poesia em Jakobson, o poe- rios ou disciplinares tradicionais, por outro, ma crítico em Paz, a crítica a serviço da participam de plataformas de produção e criação em Haroldo (1997, -p. 252)). Além difusão destacadas internacionalmente. disso, todos eles são escritores e críticos É possível estabelecer algumas – também o próprio Jakobson, que foi um características comuns aos principais au- jovem poeta futurista. Em quarto lugar, tores dessa rede apontada neste estudo. eles se definem, dentro dos seus campos Em primeiro lugar, são autores que se nacionais, por oposição a outros setores movem entre línguas e literaturas. Muitos ou forças mais conservadoras desde o deles são nômades ou exilados e, mes- ponto de vista crítico ou literário, apresen- mo não sendo, se apoiam nesse imaginá- tando-se como cosmopolitas9. Finalmente, rio para se auto apresentar. É o caso de participam de redes e instituições que os

41 42 convertem, no mais estrito sentido da pa- Roman Jakobson e as lavra, em mediadores culturais que fazem redes da semiótica parte de redes de sociabilidade alimenta- das pela correspondência e pelas viagens. A conexão de Haroldo com Roman Desse modo, pertencem a redes concomi- Jakobson é fundamental para ambos au- tantes e a maioria deles publicaram nas tores. A documentação do Massachusetts mesmas revistas: Plural (1971-1976) e Institute of Technology (MIT), em Vuelta (1976-1998), as revistas de Paz, Cambridge, permite reconstruir uma rela- no México; Espiral (1976-1980), dirigida ção pessoal, editorial e intelectual. Haroldo por Ríos, e Syntaxis (1983-1993 )10, diri- e Jakobson se conheceram na Califórnia, gida por Sánchez Robayna, na Espanha; em 1966 (DICK, 2010, p. 286). O próprio e, na França, Tel quel (1960-1982), com Haroldo se referiu, no poema “meninos eu Sollers no centro, e, desde a sua funda- vi” (1998, p. 89-90), a essa relação com o ção, Change (1968-1983), dirigida por linguista russo: Faye, Roubaud e Roche. Embora todos tenham interes- vi roman jakobson em la jolla se na crítica e na criação, Jakobson e califórnia ano 66 Kristeva estão claramente voltados para o (a seu lado krystyna pomorska loura polo acadêmico (poderíamos incluir aqui a / cabeça altiva) Umberto Eco e a Cesare Segre), enquanto passei rápido pelo teste das palavras os outros têm o seu centro no polo literá- / trocadas: rio. Haroldo teve relações com Kristeva e v zviózdi vriézivaias / “entremeado às Sollers (as dedicatórias conservadas na bi- / estrelas” blioteca dão conta disso), mas foi se afas- buraco negro na primeira estrofe tando de Tel quel por motivo da cisão in- do poema de maiakóvski a sierguêi terna da revista que se produziu em 1968, / iessiênin e a partir da qual surgiu um novo núcleo, (venha ouvir krystyna um poeta bra a revista Change11 . As marcas da sua bi- / sileiro blioteca permitem ver que Haroldo deixa que resolveu o problema da rima às de anotar os textos de Kristeva pouco de- / avessas pois da batalha com Change. Os livros que na tradução dos versos de vladimir) desde esse momento ele recebe, dedica- dos, de Kristeva e de Sollers estão intactos convidou-me então a comer comida – à exceção de Paradis, que para Haroldo / árabe apresentava inquietantes concomitâncias e foram muitas as vezes e os lugares com as suas Galáxias. / em que nos revimos Essa descrição, parcial, não es- encontros marcados por luminosas gota a questão, mas delimita uma região /doses de vodca inteligível do circuito de produção crítica e (albo lapide notari – diziam os roma literária em que estiveram envolvidos es- / nos) ses autores. Nesse sentido, autores como e até mesmo me destinou uma carta Michel Butor e Ángel Crespo não são incluí- / aberta dos nesse estudo porque lhes correspon- depois de ter lido as coplas de martin dem outras cronologias e outros circuitos / codax de sociabilidade. sobre o mar de vigo

43 Desde esse momento, estabelece- de 1968, que poderia ser qualificada como ram uma colaboração que vai em múlti- diplomática, quanto na preparação do vo- plas direções e além dos Estados Unidos lume de 1970, se aprofundam as relações e do Brasil. No arquivo de Jakobson, con- que resultaram na participação do Brasil servam-se intercâmbios com Haroldo, que na Associação Internacional de Semiótica, começam em 1966 e vão até pouco antes fundada em 1969, da qual Décio Pignatari da morte de Jakobson, em 198212. O valor foi vice-secretário. da sua obra para os projetos de Haroldo Jakobson é a conexão princi- não precisa de esclarecimentos13. Porém, pal que permite a introdução desse país além do valor estritamente teórico da sua no mapa da semiótica mundial pela me- obra, Jakobson coloca Haroldo em contato diação de Haroldo e de Décio Pignatari. com as redes de sociabilidade da semiótica Segundo Haroldo, Jakobson chegou a afir- que estavam se construindo nessa época. mar textualmente: “Gosto muito de scho- No ano de 1968, Haroldo publi- lars temperamentais, vou indicar o Décio cou, com e Boris Pignatari para ser um dos fundadores e Schnaiderman, Poesia russa moderna Vice-Presidente da Associação!”(CAMPOS, (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro; São 2002, p. 72). O caráter temperamental de Paulo, Perspectiva, 2001). Em setem- Pignatari pode ser percebido em uma car- bro desse mesmo ano, Jakobson visitou ta que ele mandou a Jakobson, no dia 23 o Brasil, onde ministrou uma conferên- de março de 1971, e que se conserva tan- cia na Aliança Francesa e viajou pelo país to no arquivo de Jakobson, no MIT, quanto realizando palestras. Resultado imediato no acervo pessoal de Décio Pignatari: dessa visita foi a publicação, em 1970, de Linguística. Poética. Cinema. Jakobson no s paulo, 23 mars 1971 Brasil (São Paulo, Perspectiva), uma co- cher jakobson, letânea de textos do linguista14. Esse vo- pour la troisiè- lume supõe, em primeiro lugar, uma in- me fois, j’essaie de lire quelque chose corporação pioneira no Brasil dos estudos dans cette chose appellee [signo de linguísticos de Jakobson com relação ao número]semiotica[signo de numé- estudo dos artefatos artísticos da cultura. ro], pour la troisième fois je deviens Em segundo lugar, a confecção do volume furieux et veux vous écrire comme é original, pois se trata de uma coletânea un fou qui croit avoir quelque cho- que não existe em outras línguas. Longe se à dire… semiotica, I can’t stand de serem “simples” traduções, alguns dos it… je croyais qu’on avait fondé quel- textos – como é o caso de “Os oximoros que chose ouverte destinée à l’étude dialéticos de Fernando Pessoa” – aparece veritable de la sémiotique, mais ce em português em uma versão melhora- qu’on voit c’est une sorte d’académis- da, como indica a assistente de Jakobson me up-to-date vis à vis de certaines a Tomás Segovia15. Os textos são assim informations plus ou moins scienti- incorporados mediante um duplo trabalho fiques et dédié exclusivement à un de apropriação e de contextualização16, seul signe du monde sémiotique, le pois inclui quatro artigos sobre o autor, o signe verbal écrit, ou mieux enco- que contrasta com grande parte das edi- re, le signe verbal écrit occidental17. ções de Jakobson publicadas em outros países. Finalmente, tanto nessa viagem

44 45 Nesta carta, que é uma mistura de campo da crítica literária. E, provavelmen- francês e inglês, Pignatari ataca violenta- te, o seu principal ativador crítico. Desse mente as publicações da revista Semiotica, modo, contribuiu à introdução do pensa- na qual se privilegia a parte, segundo ele, mento de Jakobson na análise dos artefa- mais fraca da semiótica: Saussure; esque- tos artísticos no Brasil e à introdução do cendo a principal: Peirce. Brasil no mapa mundial da semiótica. Décio foi um dos cinco vice-se- Haroldo não é só responsável pela cretários da International Association for introdução de Jakobson no Brasil, mas Semiotic Studies (AIS), fundada em 21 também, em parte, por sua recepção no de janeiro de 1969, em Paris. A associa- mundo hispânico, pois é ele quem estabe- ção era presidida por Emile Benveniste; lece o contato entre Paz19 e Jakobson. No a secretária geral era Julia Kristeva; e final de 1968, Haroldo escreve a Jakobson os seus vice-presidentes foram C. Segre, e a Paz para estabelecerem um primeiro R. Jakobson, J. Lotman, A. Ludskanov e contato. Haroldo sugere a Paz que envie a o próprio D. Pignatari. Jakobson ocupou Jakobson o seu ensaio “El desconocido de temporariamente a presidência em 1970 sí mismo/Fernando Pessoa”. Paz escreve a depois do acidente cardiovascular sofrido Haroldo no dia 9 de outubro: “Ya envié los por Benveniste. libros y escribí a Jakobson” (PAZ; CAMPOS, A fundação da AIS e a rede inter- 1986, p.106). E Jakobson, no dia 12 de no- nacional que será instituída é um momen- vembro, escreve a Haroldo confirmando a to importante no processo de socialização recepção da carta e das publicações de Paz. internacional de Haroldo, que conhece- É evidente que Jakobson é um au- rá, graças a essa rede, a Julia Kristeva, tor importante no projeto intelectual de Tzvetan Todorov, Cesare Segre, dentre Haroldo. Porém, isso não tem que nos fa- outros. As dedicatórias dos livros que se zer esquecer o seu valor fundamental tam- conservam na biblioteca registram esses bém em termos institucionais. Jakobson é intercâmbios. um grande mediador nesse contexto. E, Esse contato permite a introdução como escreve Umberto Eco em uma dedi- de Haroldo nos círculos da semiótica e no catória a Haroldo, Jakobson é o “Pai”. novo ciclo de renovação da teoria literária que, desde 1966, tem em Paris um nú- cleo destacado de irradiação. A tese de doutorado de Haroldo pode ser lida nessa chave. Morfologia do Macunaíma, com- pletada com uma bolsa da John Simon Guggenheim Memorial Foundation e publi- cada como livro em 1973, foi escrita gra- ças a esse contato, como ele faz constar na “Nota Introdutória”, na qual se refere aos “subsídios bibliográficos” que recebeu dos professores Roman Jakobson, Krystyna Pomorska (mulher de Jakobson), Tzvetan Todorov (França) e Cesare Segre (Itália)18. Haroldo foi, assim, um dos prin- cipais difusores de Jakobson no Brasil no

46 A consulta da correspondência de Jakobson comanda contra ele permitem Jakobson, no MIT, permite confirmar isso. ver a centralidade do linguista russo22. Toda vez que os “filhos” discordavam en- Essa rede jakobsobiana é fundamental tre eles, escreviam a Jakobson para so- para a obra e a sociabilidade de Haroldo licitar a sua proteção e reconhecimento. posterior a 1966. A carta de 17 de no- Um caso evidente disto, que não é alheio vembro de 1968 que Haroldo envia a ao percurso de Haroldo, é a cisão de Tel Jakobson, depois da sua visita ao Brasil quel que desemboca na criação da revista dá conta da multiplicidade de interesses Change em 1968. Jean-Pierre Faye, um que os unem23. Em menos de duas pági- dos principais impulsores da revista, es- nas, Haroldo se refere a Max Bense e a creve a Jakobson criticando amargamen- Octavio Paz, a quem coloca em contato te Tel quel20. Nessa carta, Faye pede a com Jakobson; informa-lhe de assuntos Jakobson que não associe o seu prestigio editoriais (os seus ensaios linguísticos se- científico a uma publicação que conside- rão publicados na editora Cultrix; o volume ra desacreditada, caluniosa e injuriosa. “Roman Jakobson in Brazil” (Linguística. Jakobson – de quem tinha sido publicada Poética. Cinema) está em andamento; em Tel Quel recentemente uma tradução Boris Schnaiderman está trabalhando nas muito deficiente do seu artigo “Un exem- traduções de Xlebnikov e será publicado ple de termes migratoires” (n. 38, verão o livro de Krystyna Pomorska sobre poe- de 1969) – tomará partido em favor de sia e formalismo); explica-lhe que, no ano Change e não voltará a publicar nunca seguinte, tanto ele quanto Décio Pignatari mais em Tel Quel. passarão uma temporada em Paris e que A centralidade de Jakobson é às Haroldo gostaria de lhe fazer uma visita vezes surpreendente. Até o ponto em que em Cambridge; e, finalmente, referindo-se ele é, por momentos, sujeito e objeto da à criação, comenta que precisa viajar para crítica, fazendo comunicar os espaços e os escrever as suas Galáxias. tempos. Ele é o principal assessor da an- tologia do formalismo russo publicada por Uma política literária e intelectual Todorov em Tel Quel em 1965 e o media- dor fundamental na incorporação do es- Essas práticas de Haroldo consti- truturalismo de Praga em Change. Antes tuem toda uma política literária e intelec- disso, ele foi o principal responsável da vi- tual. Esta reconstrução, que não aspira rada estruturalista de Lévi-Strauss duran- à exaustividade, basta para dar conta da te a Segunda Guerra Mundial (JAKOBSON; estratégia de Haroldo. O autor brasileiro LÉVI-STRAUSS, 2018)21 e, portanto, da apoia-se nos setores mais inovadores dos introdução do estruturalismo científico diferentes campos e espaços nacionais como paradigma das ciências humanas na para produzir transformações paralelas que França. E foi, finalmente, um dos grandes fecundem os próprios projetos e possam promotores da Associação Internacional introduzir e legitimar a diferença no Brasil. de Semiótica. Por tudo isso, Jakobson Não por acaso, conferindo os fragmentos constitui um nó privilegiado de relações anotados em sua biblioteca, é possível ver que se espalham em múltiplas direções. O como Haroldo se interessa nas referên- conflito com Greimas por causa da promo- cias às “voces solitarias y libres” (marco ção de uma outra associação de semiótica os sublinhados em cursiva) que abrem, na em 1970 e a campanha diplomática que página cinco, o primeiro número da revista

47 Vuelta. Quando lê, nessa mesma revista, ocasiões isso ocorra. Porém, são autores a Octavio Paz, sublinha na lateral as últi- fundamentais para ele porque contribuem mas palavras, que dizem assim: “A veces para produção material dessa nova crítica sueño con una historia de la literatura his- e dessa nova literatura que Haroldo perse- panoamericana que nos contase esa vasta gue infatigavelmente. y múltiple aventura, casi siempre clandesti- Essas conexões se coagulam de modo na, de unos cuantos espíritus en el espacio exemplar no trabalho de edição que realiza móvil del lenguaje” (PAZ, 1977, p. 21-24). na editora Perspectiva (ANDRADE, 2010, p. E, enfim, lendo a José Maria Castellet, res- 116-146). Com o seu trabalho de media- salta “la búsqueda de modelos extranjeros” ção, foram publicados no Brasil, entre mui- (CASTELLET, 1973, p. 4). tos outros, Octavio Paz, Tzvetan Todorov, O pertencimento a essas redes não sig- Julia Kristeva, Christian Metz, Umberto nifica que Haroldo esteja sempre inte- Eco, Cesare Segre, Gérard Genette, Jean ressado no projeto concreto de cada um Starobinski, Krystyna Pomorska, Roman desses autores, mesmo que em algumas Jakobson e Jacques Derrida. Esse traba-

Imagem –“ai fideli dei Pai Jakobson”, lê-se na dedicatória. Umberto Eco, Apocalittici e Integrati: comunicazioni di massa e teorie della cultura di massa (2ª ed.),

Milano, Bompiani, 1965. | Fonte: Acervo Haroldo de Campos, tombo 11519.

48 lho de importação não é um serviço menor da criação. Assim – e sem descartar que prestado por Haroldo à cultura brasileira. Haroldo lesse alguns desses textos em ou- Como mostram alguns dos casos dos que tras edições não conservadas –, se alguns mencionei, esses livros são, muitas vezes, livros são a testemunha muda de um in- o resultado de um trato prolongado com tercâmbio mundano, outros, como os Hijos as obras traduzidas e, sempre, o resulta- del limo, de Octavio Paz, testemunham um do do trabalho de escolha e edição reali- vivo diálogo. Não é preciso atribuir sim- zado por Haroldo. A obra de Haroldo faz plesmente ao narcisismo o fato de que parte de um tecido que, infatigavelmente, Haroldo não só anote as referências que procurou estender, transformar, deslocar; os autores fazem dele e da sua trajetória, e ele foi um importante mediador cultural mas também que ele mesmo se inclui no que se colocou sempre no espaço inters- diálogo crítico de outros autores como in- ticial das línguas e das culturas. Por isso, tertexto (ver Julia Kristeva, Semiotiké). O não posso não trazer à tona a dedicatória “gordo cósmico” (Cortázar) que foi Haroldo de Eco no I sistemi di segni e lo struttura- não poderia ter realizado essa prática an- lismo soviético (FACCANI; ECO, 1969)24: tropofágica – não desse modo, não com tanta extensão, nem com tanta intensida- Ad Haroldo de – sem as redes, as viagens e o tecido perché introduca in Brasile material que constituem o espaço escrevi- questa traduzione italiana vido de uma verdadeira linguaviagem. di un adattamento russo della divulgazione francese dell’interpretazione praghese del pensiero leibniziano tedesco ispirato ala semiotica greca che Kristeva (bulgara) disse di origine indiana (ma forse é cinese per via del binarismo universale dello Yin e dello Yang). Umberto.

Os livros que se conservam na bi- blioteca de Haroldo dão conta de redes li- terárias, críticas e intelectuais que são fun- damentais para seu projeto e o da maioria dos seus colegas. Isso não quer dizer que todos os livros que se conservam na bi- blioteca tenham o mesmo valor, pois esse é diretamente proporcional à função que as obras cumprem ou poderiam cumprir para o projeto crítico e criativo de Haroldo – um projeto, aliás, em constante trans- formação. Por isso, o valor dos livros está subordinado funcionalmente ao presente

49 Notas: e africanista cubano Fernando Ortiz (Los factores huma- 1 Esta pesquisa é resultado de uma bolsa do Programa Haroldo nos de la cubanidad, 1940), já havia sido por mim desen- de Campos de Incentivo à Pesquisa e à Tradução, do Centro volvido na “Nota Prévia” a meu livro A operação de texto de Referência Haroldo de Campos. Agradeço a toda a equipe (1976), onde estava ligado à ideia de “tradução criativa” do Centro de Referência, e especialmente a Júlio Mendonça, ou “transcriação” (CAMPOS,, 2018, p. 94-95). pela ajuda durante todo este tempo. Por outro lado, esta 5 “En 1968 comenzaron los gestos retrospectivos y los poe- pesquisa não teria sido possível sem a inestimável ajuda tas se dispusieron a determinar el lugar que ellos mismos que recebi de Leyla Perrone-Moisés, Julián Ríos e Andrés ocupaban en el archivo y cual de esos elementos progra- Sánchez Robayna. Agradeço também a Dante Pignatari pelas máticos era todavía vigente (es decir, parte de la práctica facilidades para consultar o acervo de Décio Pignatari e à y no mero anacronismo)” (AGUILAR, 2003, p. 177). Nesse autorização para publicar a carta a Roman Jakobson, aqui novo contexto, o conceito de “tradição” ganha uma nova parcialmente reproduzida, e também a Armando Prazeres centralidade. Uma mostra disso é a publicação de Traduzir pelas suas respostas em relação à biblioteca de Haroldo de & trovar (poetas dos séculos XII a XVII), onde os irmãos De Campos, na qual trabalhou entre 2001 e 2003. Campos voltam sobre os poetas provençais, Dante Guido 2 Comunicação eletrônica pessoal de Julián Ríos (29 de Cavalcanti e os ingleses barrocos (ibid., p. 178). Este livro junho de 2018). é importante porque é o seu primeiro livro de traduções 3 Nora Catelli caracteriza aos “cosmopolitas periféricos” no que não tem como corpus a poetas do século XX. seguinte fragmento: “Esforzados cosmopolitas (es decir, 6 “Hacia mediados de la década del 50, el concepto de pai- lectores naturalmente habituados a no justificar nacional- deuma, de raigambre poundiana, les permitió establecer mente nuestros dobles o triples usos literarios y teóricos), a los integrantes de Noigandres un repertorio distintivo los latinoamericanos estamos también habituados a pen- que mostraba una serie de preferencias y elecciones que sar en dos o tres mundos a la vez y a intervenir sobre el los diferenciaba del gusto imperante. Con este concepto nuestro, el específico, de nuestras lenguas y de sus jerar- (paideuma = aquellos de los que se puede aprender), ar- quías, atrayendo hacia él los términos del otro, el univer- maron un repertorio que, sin recurrir al ‘canon’ vanguar- sal” (CATELLI, 2015, p. 33-34) A especificidade de Haroldo dista, difería claramente del elenco de autores habituales.” é que – a diferença, por exemplo, de Nicolás Rosa, quem (AGUILAR, 2003, p. 194). dizia: “Somos lectores de lo universal, pero escritores de 7 Nesse mesmo ano, Haroldo conhece a Severo Sarduy e lo particular” – ele também tentou intervir nos centros in- a Emir Rodríguez Monegal em Nova York, numa mesa-re- telectuais contemporâneos. donda do Pen Club sobre “El papel del escritor en América

4 Nesse breve artigo, Haroldo referia-se a Mallarmé, Joyce, Latina”. (ANDRADE, 2006, p. 46-47). Pound, Cummings e os comparava a Webern e a Calder. 8 “La idea – y la práctica – de la universalidad, el diálogo Em “Semiótica como prática e não como escolástica” (um con otras lenguas y otras culturas, lo que cabría llamar la fragmento dos seus Depoimentos de oficina, São Paulo, despragmatización del signo, la transgresión, la invención, Dobradura, 2018, p. 71-99), onde enumera algumas la conciencia de sí misma de la literatura como lenguaje “antecipações”, lê-se: “No artigo de 1955, em que me (“la literatura habla del lenguaje hablando de otra cosa, ocupei da questão da “obra de arte aberta”, não apenas no habla de otra cosa más que hablando del lenguaje”, ha prefiguro em vários anos a Opera aperta de Umberto Eco escrito el poeta Jacques Roubaud)” é, para Robayna, “uno (ele expressa e generosamente o reconhece no prólogo de los rasgos constitutivos de la modernidad literaria, la à edição brasileira do seu livro [São Paulo, Perspectiva, lectura crítica, “sincrónica”, de la tradición, la singularidad” 1968]), como termino por falar de um “barroco moderno” (ROBAYNA, 1986, p. 29-34, p. 33). ou “neobarroco”, antecipando-me ao querido amigo e ad- 9 Na revista Plural, Haroldo e Augusto apresentam a poesia mirável escritor (prosador, poeta, ensaísta) Severo Sarduy. concreta (n. 8, maio de 1972) e Julián Ríos, Pere Gimferrer Até mesmo o conceito de transculturação, que Angel Rama e José María Castellet a “Nueva literatura española” (Plural,, retoma em 1983 (Transculturación narrativa em América nº 25, outubro de 1973). Ao mesmo tempo, na Espanha se Latina) e 1984 (La ciudad letrada), a partir do antropólogo dá visibilidade à obra de Paz na coleção “Espiral”, da edi-

50 tora Fundamentos, e na revista do mesmo nome (1976- Haroldo de Campos. Em uma carta do 31 de janeiro de 1968 1980), ambas dirigidas por Julián Ríos, e na revista Syntaxis lê-se: “j’ai vu la transcription d’un extrait de votre livre sur (1983-1993), dirigida por Sánchez Robayna. Ríos publicou ponge dans la revue TEL QUEL et j’en suis heureux. à mon na sua editora Solo a dos vocês (1973) e Teatro de signos/ avis, TEL QUEL est la plus intéressante revue d’avant-garde transparências (1974) e Pere Gimferrer, quem recebeu o en france. son niveau critique est immensement supérieur reconhecimento poético do poeta consagrado, facilitou a au d’autres publications, comme p. exemple « les lettres » publicação dos seus livros em Seix Barral (Ver Octavio Paz, de garnier (qui, à mon avis, quoique un brave type, est un Memorias y palabras. Cartas a Pere Gimferrer (1966-1997), faible poète et un critique encore pire, avec un mysticisme Barcelona, Seix Barral, 1999). Por outro lado, o volume crí- cosmique qui me semble très confus et fort peu concret. il tico Palavras para Larva (Barcelona, Llibres del Mall, 1985) faut avoir un forum pour la poésie concrète près TEL QUEL – operação crítica para dar visibilidade e valorizar Larva (je sais que les poètes de TEL QUEL sont, par regard à la p. (Barcelona, Llibres del Mall, 1984), de Julián Ríos (da qual concrète, un peu traditionnels – je préfère ses prosateurs, já foram publicados alguns fragmentos com antecedência comme philippe sollers – mais, quand même, ce sera l’uni- em Plural, Espiral, Vuelta e Syntaxis) – abre-se com um que façon de faire émerger le problème de la p. concrète texto de Haroldo (“Larvario barroquista”, p. 9-18). Escrevia près l’auditoire français qui compte, c’est-à-dire, des cri- Sánchez Robayna em Syntaxis com relação ao problema do tiques comme barthes, genette, todorov, etc.) » (Carta de nacional: “La idea de lo “nacional” considerado en sí mismo Haroldo a Elisabeth Walther, São Paulo, 31-1-68). Em uma es idea combatida en el interior mismo de la modernidad. La outra carta, do 15 de março do mesmo ano, lê-se: “parfai- universalidad –el diálogo con otras lenguas y otras culturas– tement d’accord avec votre opinion sur tel quel, surtout en es un principio moderno […]. Se ha producido en España, en ce qui regarde la poésie: du modernisme un peu faisandé… efecto –y a pesar de algunas excepciones que vienen a con- mais, quand même, c’est là que des gens comme ponge, firmar la regla–, una suerte de gestualidad de lo moderno, butor, sarraute publient des inédits ; c’est là qu’on traduit una penosa caricatura cuyo síntoma más grave es, en mi pound et ungaretti, le joyce de finnegans wake, etc. ; c’est opinión, la programación historicista de un supuesto cambio là finalement qu’on peut lire des textes critiques de jakob- (de una supuesta ruptura moderna) en torno a 1970 […]. son et de roland barthes ou des traductions du formalisme La inercia mental, la ausencia de crítica, el conformismo, russe. pour cela je suis heureux de voir un extrait de votre y lo peor de todo: un lamentable gregarismo, están, me très importante monographie sur ponge publié dans T.Q., et parece, entre las causas determinantes de esta situación. j’aimerais voir la poésie concrète introduite dans cette revue

En la novela, por lo demás, todavía se oyen risibles ataques au moins comme thème de débat. malheureusement les je- a Joyce o se habla de las páginas que sobran (casi todas, unes de T.Q. forment un groupe (ou « chapelle ») très peu se dice) en las grandes novelas hispanoamericanas de este ouvert au dialogue et pour cela d’une curieuse (et en même siglo… […]. Soy partidario de las excepciones… Creo que temps dégoûtante…) « sophistication » paroissiale… » ha correspondido sobre todo a algunos escritores españoles (Carta de Haroldo a Elisabeth Walther, São Paulo, 15.3.68). ausentes de España durante los últimos años el papel de A mudança definitiva se manifesta na carta do 4 de julho de artífices de aquel diálogo, de la comunicación que define a 1969, na qual escreve: “à paris j’ai eu un très bon contact la modernidade.” (ROBAYNA, 1986, pp. 32-33). avec le groupe de la nouvelle revue CHANGE [éditions du 10 “Ver Rut Domínguez Ferrer, “Traducción y traductores SEUIL] (maurice roche, auteur de compact, un texte bien en la revista Syntaxis: una interpretación crítica” (263- intéressant ; jean pierre faye). faye connaît vos travaux et 301), Estudios canarios. Anuario del Instituto de Estudios vous admire, à vous et à bense (c’est lui qui a fait publier Canarios, LVIII, 2014 e Alejandro Krawietz, “Syntaxis”: una dans TEL QUEL – quand il était lié à cette revue – l’extrait aventura creadora. 30 años del nacimiento de una revista, de votre travail sur ponge) » (Carta de Haroldo a Elisabeth Santa Cruz de Tenerife, Tenerife Espacio de las Artes, 2014.” Walther, São Paulo, 4.7.69).” 11 “Durante o ano 1968, Haroldo se afasta de Tel quel para 12 O estudo dessa correspondência que achei no MIT e da se aproximar a Change. Esta mudança se percebe na cor- relação entre Haroldo e Jakobson é objeto de uma pes- respondência com Elisabeth Walther, conservada no Acervo quisa em andamento.

51 13 “Será na descoberta do trabalho do linguista russo sos foram, nesse sentido, os subsídios bibliográficos que Roman Jakobson, no entanto, que Haroldo terá uma das recebi dos Profs. Roman Jakobson e Krystyna Pomorska principais sustentações de seu pensamento sobre poesia e (EUA), Tzvetan Todorov (França) e Cesare Segre (Itália)” sobre tradução poética. As proposições desse autor irão ao (CAMPOS, 2008 (1973), p. 1). encontro das ideias que acompanhavam o grupo concretis- 19 A relação de Haroldo com Paz já foi estudada, especial- ta paulistano desde sua origem, permitindo uma referên- mente por Gênese Andrade. Em 1968 inicia-se a sua cor- cia desenvolvida e precisa sobre aspectos não verbais da respondência e em 1969 se conhecem pessoalmente. (Ver linguagem; a ‘materialidade’ do signo linguístico, tal como ANDRADE, 2006, p. 52-57). Temos um testemunho dessa pode ser vista na linguagem poética, ideia que encontra relação na correspondência publicada em Octavio Paz e respaldo em Jakobson, será um ponto essencial na concep- Haroldo de Campos, Transblanco, São Paulo, Siciliano, 1986. ção de Haroldo” (TÁPIA, 2010, p. 180-181). 20 26 de novembro de 1969 (Roman Jakobson Papers, Box 14 “O presente volume”, escrevem os editores, “reúne os 49, Folder 7. Massachusetts Institute of Technology, Institute textos que serviram de base às conferências pronuncia- Archives and Special Collections, Cambridge, Massachusetts). das por Roman Jakobson durante sua visita ao Brasil, em 21 A correspondência entre os dois pensadores foi publica- setembro de 1968” (7). O volume, que também apresenta da recentemente “textos que foram objeto de debates e referências quando 22 Ver a carta de Jakobson a Greimas do 14 de dezem- da estada de Jakobson entre nós” (7), é acompanhado de bro de 1970 e Roman Jakobson Papers, MC 72, box 6, quatro artigos sobre o autor: “Roman Jakobson e a linguís- folder 7 (e os folders 5-11), Massachusetts Institute of tica”, de J. Mattoso Câmara Jr., “Uma visão dialética e radi- Technology, Institute Archives and Special Collections, cal da literatura”, de Boris Schnaiderman, e dois textos de Cambridge, Massachusetts. Haroldo de Campos: “O poeta da linguística” (p. 183-194) e 23 Roman Jakobson Papers, MC 72. Massachusetts Institute “Notas à margem de uma análise de Pessoa” (p. 195-204). of Technology, Institute Archives and Special Collections, É importante destacar que é nesse livro que é publicada por Cambridge, Massachusetts. primeira vez a “Carta a Haroldo de Campos sobre a textura 24 O livro tem anotações sobre Propp ligadas à época do poética de Martin Codax” (p. 119-126), de Jakobson. estudo sobre Macunaíma. 15 1 de setembro de 1971 (Roman Jakobson Papers, Box 49, Folder 57. Massachusetts Institute of Technology, Institute Archives and Special Collections, Cambridge, Massachusetts).

16 Os três momentos fundamentais para Pierre Bourdieu são “la sélection”, “le marquage” e “la lecture” (BOURDIEU, 2002, n. 145, pp. 3-8). 17 Carta conservada no acervo de Décio Pignatari. Agradeço a Dante Pignatari e a Maria Adelaide Pontes a disponibiliza- ção da documentação. Há uma cópia também no arquivo Jakobson do MIT (Roman Jakobson Papers, MC 72, box 6, folder 8. Massachusetts Institute of Technology, Institute Archives and Special Collections, Cambridge, Massachusetts). 18 “Este trabalho só pôde ser desenvolvido e concluído graças à Fellowship que me foi concedida pela John Guggenheim Memorial Foundation (ano de 1972), a qual me permitiu integral dedicação, em uma fase decisiva, aos estudos que venho empreendendo sobre a prosa brasileira moderna. Possibilitou-me, também viagens de pesquisas e contatos à Europa e aos Estados Unidos, extremamente proveitosas para o meu projeto em andamento. Particularmente valio-

52 REFERÊNCIAS Correspondance (1942-1982). Paris: Seuil, 2018. AGUILAR, Gonzalo. Poesía concreta brasileña: las van- MILNER, Jean-Claude. Le paradigme: programme de re- guardias en la encrucijada modernista. Rosario: Beatriz cherches et mouvement d’opinion, Le périple structural. Viterbo, 2003. Figures et paradigme, Paris: Verdier, 2008. ANDRADE, Gênese de. Afinidades eletivas. Haroldo de NÁCHER, Max Hidalgo, O dispositivo de leitura de Haroldo Campos traduz os hispano-americanos, Caracol, n. 1, São de Campos e os usos da biblioteca, 452ºF, n. 19, jul. 2018, Paulo: DLM, FFLCH-USP, 2006, p. 36-63. p. 216-231. Disponível em: . tion internationale des idées , Actes de la Recherche en PAZ, Octavio. Alrededores de la literatura hispano-ameri- Sciences Sociales, n. 145, 2002. cana. Vuelta, n. 5, abr. 1977, p. 21-24. CAMPOS, Haroldo de. Biografia, A educação dos cinco sen- PAZ, Octavio; CAMPOS, Haroldo de, Transblanco. São tidos, São Paulo: Brasiliense, 1985. Paulo: Siciliano, 1986. ______. A Obra de Arte Aberta, Diário de São Paulo, 3 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Viajando com Haroldo. In: jul. 1955. DICK, André (org.). Signâncias: reflexões sobre Haroldo ______. Depoimentos de oficina. São Paulo: Dobradura, de Campos. São Paulo: Poiesis / Risco Editorial, 2010. 2018, p. 94-95. ROBAYNA, Andrés Sánchez. La modernidad literaria: una ______. Poesia e modernidade: da morte do verso à cons- literatura de las excepciones, Syntaxis, n. 10, invierno telação. O poema pós-utópico (1984). In: O arco-íris bran- 1986, p. 29-34. co. Rio de Janeiro: Imago, 1997. ROIG-SANZ, Diana; MEYLAERTS, Reine. General ______. meninos eu vi. In: Cristantempo no espaço curvo Introduction. Literary Translation and Cultural Mediators. nasce um. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 89-90. Toward an Agent and Process-Oriented Approach. In: ______. Semiótica como prática e não como escolástica Literary Translation and Cultural Mediators in ‘Peripheral’ [2001] In: Depoimentos de oficina. São Paulo: UNIMARCO, Cultures. Customs Officers or Smugglers?, Palgrave 2002, p. 71-99. Macmillan, 2018. ______. Nota Introdutória. In: Morfologia do Macunaíma. TÁPIA, Marcelo. Haroldo de Campos: o foco extensivo da São Paulo: Perspectiva, 2008 (1973). passagem. In: DICK, André (org.). Signâncias: reflexões so- CASTELLET, J. M. In: CASTELLET, J.M; GIMFERRER, Pere; bre Haroldo de Campos. São Paulo: Risco, 2010, p. 174-189. RIOS, Julián. Encuesta: nueva literatura española, Plural, WOLFF, Jorge. Telquelismos latino-americanos: a teoria crítica n. 25, out. 1973, p. 4-6. francesa no entre-lugar dos trópicos. 2001. Tese (Doutorado) CATELLI, Nora, Academias: los equívocos del comparatis- – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de mo en el mundo (hispánico), Chuy. Revista de Estudios Comunicação e Expressão. Florianópolis, 2001, 82 p. Há edi- Literarios Latinoamericanos, [S.l.], n. 2, p. 34-44, jul. ção em livro: Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2016, 151 p. 2015, p. 34. Disponível em: . DICK, André (org.). Breve cronologia da vida e obra de Haroldo de Campos. In: Signâncias: reflexões sobre Haroldo de Campos. São Paulo: Risco, 2010. DOSSE, François. Histoire du structuralisme (vol. I, Le champ du signe). Paris: Le Livre de Poche, 1992, p. 384-420. ECO, Umberto. Lo strano caso della Hanau 1609. Milano: Bompiani, 1989 (Acervo Haroldo de Campos, tombo 11026). FACANNI, Remo; ECO, Umberto. I sistemi di signi e lo strutturalismo soviético. Milano: Bompiani, 1969 (Acervo Haroldo de Campos, tombo 11326). JAKOBSON, Roman; LÉVI-STRAUSS, Claude.

53 CRÍTICA

54 O LUGAR DA RUPTURA DOS GÊNEROS..... NOS DIÁLOGOS DE HAROLDO DE CAMPOS COM OS HISPANO-AMERICANOS

GÊNESE ANDRADE

Fundação Armando Álvares Penteado

55 Publicado, pela Editora Perspectiva. res — juntamente com Margaret Randall em um pequeno volume individual em e Harve Wollin —, responsável pela parte 1977, o ensaio Ruptura dos gêneros na em espanhol. Graças aempenho destes, literatura latino-americana tem sua ori- foi distribuída em várias cidades e, como gem cerca de dez anos antes, aproxima- a anterior, era encontrada em livrarias damente. Ao abordá-lo da perspectiva das de São Paulo. Segundo Mondragón, HC relações do autor com a literatura hispa- esteve entre os primeiros poetas a en- no-americana e das relações pessoais com trar em contato com a revista (Ibid.). Em alguns de seus autores, é importante res- suas páginas, despontaram Lezama Lima, saltar as leituras e diálogos estabelecidos Julio Cortázar, Octavio Paz, Nicanor Parra, por Haroldo de Campos (HC) nesse âmbito Nicolás Guillén, José Emilio Pacheco e desde os anos 1960. outros. No número 10, de abril de 1964, Tendo estudado a língua espanhola publica-se o dossiê “Poesía concreta de e suas literaturas no colégio, pode-se afir- Brasil” — de acordo com a pesquisa reali- mar que seu interesse vem de longa data. zada até o momento, a primeira antologia Na década de 1960, já estava em contato de poesia concreta publicada em espanhol com alguns periódicos mexicanos e argen- —, que conta com uma apresentação es- tinos, os quais haviam publicado textos de crita por HC e dois poemas de sua autoria, sua autoria e veiculavam também obras publicados em espanhol: “servidumbre de de autores dos quais virá a ser leitor e/ pasaje” (fragmento) e “topogramas”, di- ou amigo. Em 1963, HC aparece em Eco vulgados como inéditos na antologia noi- Contemporáneo. Revista Interamericana.1 gandres 5, de novembro de 1962. Figuram Editada em Buenos Aires, é considerada a também poemas de Augusto de Campos, primeira revista underground da América Décio Pignatari, Pedro Xisto e outros. HC do Sul; vinculada à geração beat, contou afirma, em “Da Poesia Concreta aGaláxias com apenas dez números, publicados de e Finismundo” (2002, p. 40), que ele pró- 1961 a 1967, e estampou em suas pági- prio organizou e traduziu o dossiê. nas textos de Allen Ginsberg, Gombrowicz Em 1965, é a revista argentina e William Carlos Williams, entre outros Cormorán y Delfín que publica um dossiê (cf. WILLER, 2003). No número 6-7, de sobre poesia brasileira. Trata-se de uma 1963, o nome de HC figura na lista dos das publicações mais inovadoras do perío- correspondentes, juntamente com Sergio do. Seu diretor, Ariel Canzani, era poeta e Mondragón (México), Pablo A. Cuadra capitão de um navio mercante, batizado (Manágua), Klaus Völker (Berlim), Ernesto com o mesmo nome da revista. Durante Cardenal (Nicarágua) e outros hispano-a- suas viagens, entrava em contato com mericanos, norte-americanos e europeus. poetas de várias nacionalidades, e cada Em 1964, HC aparece na revis- regresso resultava em um número da re- ta mexicana El Corno Emplumado / The vista, que saía da prensa que funcionava Plumed Horn, que circulou de 1961 a na casa das máquinas. Publicada de janei- 1969, contando com 31 números publica- ro de 1964 a dezembro de 1972, totali- dos. Bilíngue, espanhol-inglês, tinha como zou dezenove “viajes” (números), indica- objetivo principal divulgar a moderna poe- ção não metafórica tanto quanto a de sua sia hispano-americana e norte-america- procedência: “Mar/ Poesía/ Buenos Aires/ na. Sergio Mondragón, correspondente de Mundo” (ESCOBAR, s.d.). Seu subtítulo Eco Contemporáneo, é um de seus edito- “Revista Internacional de Poesía” passa a

56 ser “Revista Planetaria de Poesía” a partir Em 1966, Haroldo e Augusto de do número 13. Dedicou dossiês à poesia Campos, Décio Pignatari, Pedro Xisto e irlandesa, catalã, iugoslava, israelita, por- José Lino Grünewald participam da ex- tuguesa e dos países hispano-americanos. posição “Poesía Concreta Internacional”, Após uma viagem pela costa brasileira, organizada por Matías Goeritz na Galería como informa o diretor na apresentação, Universitaria Aristos, na Universidade o dossiê “Brasil”, publicado na viagem 7, Nacional Autônoma do México (UNAM), de novembro de 1965, traz um panorama de março a maio. No catálogo da mostra, da poesia daquele momento: geração de reproduz-se o poema “nascemorre”, de 1945, Concretismo, poesia práxis, grupos HC, e há textos críticos de Ida Rodríguez e Tendência e Sul, e poetas independentes, Jasia Reichard. como ele os nomeia, evidenciando estar Ao comparecer à reunião do Pen mais preocupado em apresentar indivi- Club realizada em Nova York em 1966, HC dualidades do que grupos, e em “hacer conhece Severo Sarduy, Emir Rodríguez algo para conocernos mejor” ao divulgar Monegal e Nicanor Parra. Participa, com os poetas praticamente desconhecidos na dois últimos, da mesa-redonda “Papel del Argentina e na América do Sul. De Haroldo escritor en América Latina”, cujo conteúdo é de Campos, publica-se um fragmento de reproduzido no número 5 da revista Mundo “servidão de passagem” e o ensaio “El Nuevo, publicado em novembro desse ano. geómetra comprometido”,2 ambos tradu- Nessa ocasião, o poeta brasileiro afirma: zidos por Ariel Canzani. Encontramos, em sua biblioteca, Por razões que agora não posso pre- algumas obras dos anos 1950 e 1960, cisar, as comunicações entre o Brasil anteriores a essas primeiras publicações, e os outros países latino-americanos que integram o repertório do ensaio. De não são boas. Nossas respectivas li- Huidobro, a primeira edição de Altazor, de teraturas se ignoram. Somente alguns 1931, e a Antología. Poesía. Prosa, publi- intelectuais brasileiros conhecem, por cada em 1957, pela editora Aguilar, que exemplo, a obra de um escritor tão ele afirma ter adquirido em Madri, no fim importante como Borges; um grupo dos anos 1950 (CAMPOS, 1997, p. 10). De ainda menos extenso conhece Julio Borges, a edição bilíngue L’auteur et autres Cortázar, e para falar de um autor texts / El hacedor, em tradução de Roger de grande transcendência nas pri- Callois, publicada pela Gallimard, em 1960; meiras décadas deste século, prati- Ficciones, edição de 1963; Discusión, pu- camente só alguns poetas brasileiros blicada em 1964; Historia de la eternidad, de vanguarda conhecem a existên- de 1966. De Cortázar, apenas Los pre- cia de Vicente Huidobro. O mesmo mios, edição de 1965, adquirida naquele ocorre no restante da América Latina ano, como atesta a data que ele inscreve com as letras brasileiras. (CAMPOS, no exemplar. Não sabemos se ele já havia 1966, p. 31. Tradução minha). lido todas elas, especialmente as primei- ras, que não trazem nenhuma indicação da A partir do encontro em Nova York, data de aquisição, e podem ter sido obti- HC manterá uma longa amizade com Parra das posteriormente. Mas, se não lera esses e Monegal. Porém, não há registros des- exemplares, talvez conhecesse esses auto- sa relação nos anos 1960. Em 1967, volta res pelas publicações em revistas. às páginas de El Corno Emplumado / The

57 Plumed Horn: no número 21, de janeiro, de dezembro de 1967, Rama sintetiza a com poemas publicados em inglês (“ser- concepção do projeto: vidão de passagem” e “álea”, traduzidos por Edwin Morgan). Mas o fato mais im- Em Lima, estive em uma reunião de portante do ano, no âmbito de suas rela- especialistas da Unesco destinada a ções hispano-americanas, ocorrerá meses organizar um plano, realmente atraen- depois, quando HC, após a leitura de obras te, de estudo das culturas latino-ame- de escritores hispano-americanos, toma a ricanas. Transformamos a proposta iniciativa de se aproximar de alguns deles. em uma História social da literatura, Assim, entra em contato com o das artes plásticas e da música na escritor argentino Julio Cortázar em 1967, América Latina, concentrando-a em com o mexicano Octavio Paz em 1968, uma primeira instância no século XX. com o escritor cubano Severo Sarduy em Dividimos a América Latina em regiões, 1969, e com o também cubano Guillermo designando assessores para cada uma Cabrera Infante ao iniciar-se a década de delas, e pensei de imediato no senhor 1970. Em meados dos anos 1970, passa para o Brasil. Conheci em Lima Sérgio a ter em Ángel Rama e Emir Rodríguez Buarque de Holanda, que me disse Monegal importantes interlocutores. que o conhecia e estimava e também Publicado inicialmente com o títu- propôs o seu nome. Por fim, o deixa- lo “Superación de los lenguajes exclusivos”, mos como assessor pensando que ao em 1972, o ensaio Ruptura dos gêneros na senhor haveria de corresponder o pla- literatura latino-americana é reescrito e no de literatura (apud ROCCA, 2006, p publicado com esse título em 1977 e 1979. .353, nota 310. Tradução minha). As publicações de 1972 e 1979 corres- pondem à participação em América Latina Não há dados sobre quem in- em sua literatura, volume organizado por dicou o nome de HC para a publicação. César Fernández Moreno, nas edições em Tanto pode ter sido Candido, seu orienta- espanhol e em português. A edição de dor de doutorado, quanto Sérgio Buarque 1977 corresponde à publicação do ensaio de Holanda, que já havia escrito sobre mais desenvolvido, em volume individual, sua poesia (1951), e que talvez também versão utilizada neste texto.3 conhecesse seus ensaios pelas publica- Em 1967, pouco depois do even- ções em livros e revistas. Emir Rodríguez to sobre literatura latino-americana em Monegal, que participou da reunião da co- Nova York em 1966, do qual HC participa missão literária do projeto realizada em com Monegal, Rama já está envolvido no 1968, em São José da Costa Rica, é outra projeto da Unesco que culminará na publi- possibilidade para a indicação do nome de cação dos volumes América Latina en su HC, uma vez que foi a partir das recomen- literatura, América Latina en su cultura e dações realizadas pelos críticos aí presen- outros, que serão editados em espanhol, tes que se constituiu a lista dos colabo- português, francês e inglês. No primeiro, radores — como informa César Fernández colaboram HC, Monegal, Sarduy — todos Moreno (1979, p. xxv-xxvi) na Introdução presentes no evento de Nova York — e ao volume, do qual foi o coordenador. ainda Antonio Candido, Juan José Saer, A aproximação entre Rama e Roberto Fernández Retamar, entre outros. Campos parece ter sido posterior. Em Em carta a Antonio Candido, datada de 11 carta a Candido datada de abril de 1973,

58 Ángel Rama o menciona. Em dezembro desse ano, vem a São Paulo e ministra pa- O papel de Huidobro para a poesia lestras na USP. Provavelmente conhece HC de expressão espanhola deste século pessoalmente nessa ocasião. Em carta da- parece semelhante ao de Rubén Darío tada de 17 de abril de 1974, comenta com para a do fim do Oitocentos. Candido as questões para publicar um [...] texto de HC em uma revista venezuelana: Huidobro incorpora a seus poemas o “Propus a uma revista juvenil de poetas espaço em branco da página mallar- daqui, que publicassem um dos ensaios de meana, os recursos tipográficos do Haroldo de Campos, o que dá título ao vo- futurismo italiano, manipula livremen- lume A arte no horizonte do provável. Não te os elementos da realidade numa tenho o endereço de Haroldo. Penso que sintaxe interrupta e fragmentada, ele não terá inconveniente em sua publi- pontilhada de imagens “polipétalas”, cação” (apud ROCCA, 2006, p. 259).4 às quais não faltam sugestões do co- Focalizando especificamente o en- tidiano e do mundo mecânico, bem saio Ruptura dos gêneros na literatura lati- como do jargão técnico-científico, de no-americana, podemos afirmar que o nor- que o poeta se vale em seu intento teiam quatro questões, em torno das quais de humanizar las cosas (“algo vasto, o autor aborda a literatura latino-america- enorme, como el horizonte se huma- na, tratando abrasileira emcomparação com niza, se hace íntimo, filial, gracias al a hispano-americana. São elas: a dissolução adjetivo cuadrado”). [p. 26]. do estatuto dos gêneros; a mistura dos gê- neros, ou seja, a superação das linguagens No Brasil, destaca a produção exclusivas, como o título em espanhol expli- de Mário e Oswald de Andrade nos anos citava; a influência dos meios de comunica- 1920: os manifestos; os romances-inven- ção de massa em obras que exemplificam a ção; a síntese nos poemas; a incorporação ruptura dos gêneros; a leitura dessas obras da oralidade; a abolição dos limites entre em abordagem sincrônica. prosa e poesia; a Antropofagia. A obra de Sousândrade, O Guesa, é HC propõe que o Barroco e o o ponto de partida. Segundo Campos, o au- Neobarroco na literatura contemporânea tor “se deixa inspirar pelo mosaico telegráfico se desenham como o apagamento dos li- dos jornais” [p. 22], realiza uma montagem mites entre poesia e prosa, “com a intro- de eventos, extraídos de fontes diversas, e dução, no romance, de técnicas de cons- assim “consuma-se de maneira flagrante a trução do poema” [p. 32]. dissolução dos gêneros” e a obra “escapa às Partindo de dois ensaios de Julio classificações habituais” [p. 24]. Afirma que Cortázar (“Situación de la novela”, 1950, o próprio autor achava que ela não se encai- e “Notas sobre la novela contemporánea”, xava em nenhum dos gêneros e se aproxi- 1948) e apoiado em Roman Jakobson, HC mava da narrativa. Considera ainda que ela aponta para o “voltar-se incessante do antecipa o Canto general, de Pablo Neruda. escritor para a materialidade mesma da Já o segundo momento da ruptura linguagem” [p. 33], mesmo quando se de- dos gêneros na América Hispânica é apon- dica à convencionalmente chamada prosa. tado na obra de Huidobro— o primeiro Apresenta como exemplos disso Grande seria o Modernismo de Rubén Darío. Diz sertão: veredas (1956), de Guimarães sobre o poeta chileno: Rosa, e Paradiso (1966), de Lezama Lima,

59 considerando-os barrocos ou “neobarro- por Cintio Vitier na obra do poeta cuba- cos, melhor dizendo”: no Silvestre de Balboa, citada por Sarduy para caracterizar a obra de Lezama Lima, O de Rosa, por suas constantes in- é estendida por HC a Gregório de Matos, venções vocabulares; por seus rasgos levada à “textura mesma da sua lingua- sintáticos inovadores; pelo hibridismo gem, entremeando nela, para efeitos de léxico (que vai do arcaísmo ao neo- contraste e de grotesco, vocábulos tupis logismo e à montagem de palavras); (indígenas) e africanos, numa jocunda pelo confronto oximoresco de barbárie operação de caldeamento linguístico-satí- e refinamento (o Sertão metafísico, rico” [p. 35]. E a expressão de Octavio Paz palco das andanças ontológicas do para caracterizar a linguagem de Lezama Jagunço-Fausto, debatendo-se entre Lima — “caldo criollo, temperado no tró- Deus e o Demo); pelo topos do “amor pico” [p. 35] — também é estendida a proibido”, “perverso” (Diadorim, a Gregório de Matos. mulher travestida de homem, que Refere-se ainda à importância de desperta no protagonista, Riobaldo, Mallarmé e seu poema Un coup de dés uma paixão que este não pode confes- para a ruptura do estatuto dos gêneros: sar). O de Lezama, pela metaforização gongorina do cotidiano; pelo prodígio Mallarmé introduziu a dimensão me- de uma linguagem que é um escân- talinguística do exercício da lingua- dalo romanesco, na medida em que gem, uma dimensão reservada antes substitui, às convenções de “tipo” do à estética e à ciência da literatura do romance realista, com seus requisitos que à literatura propriamente dita. de verossimilhança, a unidade pluri- Mallarmé “inventa el poema crítico”, facetada do discurso poético do autor anota Octavio Paz. Trata-se de um [...]; enfim, pelo misticismo sincréti- poema que se questiona a si mesmo co; pela fusão também de sofisticação sobre a essência do poetar, num senti- e naïveté (a um ponto que, por vezes, do muito diferente, porém, das “artes roça o kitsch) e, ainda, por um tema poéticas” versificadas da preceptística amoroso que se inscreve igualmente tradicional: o que está em causa não no topos do Eros interdito (a paixão in- é um receituário de como fazer poe- feliz de Froción por Fronesis, que cul- sia, mas uma indagação mais pro- mina na loucura do primeiro) [p. 34]. funda da própria razão do poema, uma experiência de limites [p. 36]. Aponta no Barroco ibero-ameri- cano o embrião da atitude de não-confor- No âmbito hispano-americano, midade à partilha clássica dos gêneros e HC aponta essa problematização metalin- suas convenções literárias. guística na obra de Macedonio Fernández, O livro de Severo Sarduy, De don- Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e de son los cantantes (1967), é conside- Cabrera Infante. rado “uma das mais significativas mani- Refere-se a Borges como suces- festações desse ‘neobarroquismo’ que vê sor de Macedonio Fernández e acrescenta: na plasticidad del signo e seu caráter de inscripción o destino da escritura” [p. 35]. mestre consumado da literatura como A miscigenação de elementos, apontada metalinguagem e a figura de maior

60 destaque das letras latino-americanas precisão e elegância quase impessoais atuais, pela sua projeção e influência [...]. Um estilo, justamente, que eli- universais [...]. Para Borges, o “biblio- mina as fronteiras entre a literatura tecário de Babel”, não há praticamente como obra de arte verbal e a críti- diferença entre ensaio e literatura de ca como metalinguagem mediadora imaginação, entre suas inquisiciones e dessa linguagem-objeto. [pp. 38-39] suas ficciones. Temas como o do livro único e anônimo, intemporal, que re- Haroldo de Campos destaca sume todos os livros e é obra de um Rayuela (1966), de Julio Cortázar, e afir- só autor, refigurado através das ida- ma que Octavio Paz inclui com acerto a des — um tema por excelência mallar- obra de Cortázar na família moderna das meano —, são centrais em sua prosa, “obras abertas”. Aponta no personagem de ensaísta ou de ficcionista. É uma Morelli elementos de Poe, Mallarmé e obra deliberadamente tautológica, Joyce. Afirma que o autor tece uma teoria perseguida por Leitmotive: o labirin- revolucionária do romance, ressalta a eli- to; o jardim de caminhos bifurcados; minação das fronteiras entre ensaio e fic- as ruínas circulares; a redescoberta ção, como em Borges, em La vuelta al día de precursores por um expediente de en ochenta mundos (1967) e em Último anacronia retrospectiva; a decifração round (1969) [pp. 40-41], destacando a da sigla divina inscrita nas manchas inovação na forma dos dois livros. Enfatiza de um leopardo; o vislumbre da face também o seu aspecto paródico. momentânea de Deus em um poeta- Em Tres tristes tigres, de Cabrera -tradutor (Fitzgerald) cuja suprema Infante, HC aponta uma “féerie ver- perícia só se explica por ser ele uma bal” que “parece desmentir a descrença hipóstase do poeta-traduzido (Omar borgeana nos pendores lúdicos do idioma Khayyam) etc. Tais motivos podem ser castelhano” [p. 42]. Aí ressalta a paródia interpretados como uma única e vasta e a carnavalização e afirma que a metalin- metáfora (é o que Eliot diz da Divina guagem apaga os limites entre prosa de Comédia): metáfora sobre a escritura ficção e ensaio. e sobre o escritor o qual, a um cer- Na poesia, Haroldo destaca to momento, é escrito quando pensa na obra de Oswald de Andrade, Carlos estar escrevendo. Paradigmal nesse Drummond de Andrade, João Cabral de sentido é um relato como “Examen Melo Neto, Vicente Huidobro, Octavio Paz de la obra de Herbert Quain” (de e Nicanor Parra, “o poema sobre ou con- Ficciones). Conduzido ironicamente tra o poema” [p. 42]. Em relação à obra em tom de estudo crítico (in memo- do poeta chileno Parra: “O polo do humor riam), consiste na análise, repassada prevalece nos ‘antipoemas’ (1954) [...], de argúcia e erudição — com esque- com seu antilirismo, seu antidecorativis- mas estruturais e notas de rodapé, mo, sua crítica dos expedientes retóricos, inclusive — da obra de um escritor seu despojamento cada vez mais acentua- experimental que jamais existiu (mas do” [p. 43]. Destaca também o aspecto que poderia ser o próprio Borges...). É metalinguístico da obra de Paz, vinculan- um exemplo, também, do amor bor- do-o diretamente a Mallarmé: geano pelo texto breve e de sua busca de um estilo neutro, hialino, de uma

61 Mas é em Octavio Paz que a postura Por ocasião da tradução do poe- metalinguística vai atingir o seu clí- ma “La prueba del jade”, HC já conhecia max: primeiro numa breve composi- a obra monumental Paradiso, menciona- ção como “Las palabras” (de Puerta da por ele no trecho destacado do ensaio. condenada, 1938-1948), toda feita Encontramos, em sua biblioteca, o exem- de ambiguidade irônica e ferocidade plar da edição de 1969, exaustivamen- vivencial, naquela “hora de la ver- te anotado, com uma dedicatória datada dad” em que poeta e poema parecem desse mesmo ano, cujo autor não pude- medir-se reciprocamente as forças. mos identificar. Mas HC não demonstra in- Depois em Blanco (1967), poema- teresse em traduzir Paradiso, embora res- -desdobrável, visual, de múltipla lei- salte seu aspecto barroco, ou neobarroco, tura, onde, a nosso ver, o poeta me- e a “metaforização gongorina do cotidia- xicano chega à culminação de seu no” [p. 34]. itinerário, procurando responder, em Quanto a Cortázar, após a leitura termos de sua própria prática poéti- de Los premios e Rayuela, HC escreve o ca, à acurada meditação teórica que ensaio “O jogo da amarelinha”, publica- vinha desenvolvendo em torno do Un do no Correio da Manhã, em 30 de julho coup de dés de Mallarmé e do futu- de 1967, estudo pioneiro sobre a obra no ro da poesia (testemunhada pelo belo Brasil. Ao enviar o texto a Cortázar, jun- ensaio Los signos en rotación, 1965) tamente com alguns números da revista [pp. 43-44]. Invenção, dá início ao diálogo que mante- rão até a morte daquele, em 1984. No ano Conclui incluindo a poesia concre- seguinte, adquire 62 modelo para armar, ta nessa linhagem, apontando a impor- que traz a inscrição “dez. 68”. Encontram- tância da releitura da obra de Oswald de se pela primeira vez em Paris, em 1969, Andrade, da montagem de O Rei da Vela e e este lhe dedica Último round: “Para a relação da poesia concreta com a músi- Haroldo de Campos, este Último round, ca, a Tropicália etc. con el afecto de Julio/ París 69”. Destacamos agora a aproximação Em 1972, Haroldo de Campos tra- de Haroldo com os autores citados Julio duz dois poemas de Cortázar: “Tombeau Cortázar, Octavio Paz e Severo Sarduy, e de Mallarmé” e “Éventail pour Stéphane”, sua leitura da obra de Jorge Luis Borges. que serão incluídos, sob o título geral HC foi um grande leitor e admirador do es- “Quase-colofón. Uma invenção de Morelli: critor cubano José Lezama Lima. Embora Mallarmé selon Cortázar”, em Valise não tenham tido contato pessoal, reuniu de cronópio, de 1974, reunião de en- mais de trinta títulos dele e sobre o autor. saios de Cortázar publicada pela Editora A tradução do poema “La prueba del jade” Perspectiva, por indicação de HC, orga- — incluída no ensaio “Barroco em trânsi- nizada por este e Davi Arrigucci Jr., com to”, estampado no Suplemento Literário tradução dos ensaios a cargo de João de O Estado de S. Paulo, de 28 de mar- Alexandre Barbosa e Arrigucci. Constituiu- ço de 1971, depois recolhido, com o título se na primeira publicação da obra ensaís- “Uma arquitextura do Barroco”, no livro tica desse autor no Brasil. A operação do texto (1976, p. 139-150) Também por indicação de HC, em — constitui a primeira tradução de poesia 1974, a Editora Perspectiva publica — na hispano-americana por ele publicada. Coleção Signos, dirigida por ele —, Prosa

62 do observatório, de Julio Cortázar, com fo- Assim, a reversibilidade se estende tam- tos tiradas pelo autor e tradução de Davi bém para as posições de autor/tradutor, e Arrigucci Jr., nome também sugerido por a apropriação do soneto por HC tem como HC. Dentro do exemplar que integra sua contrapartida a apropriação dos comentá- biblioteca, encontra-se uma carta de Ugné rios sobre o processo de transcriação por Karvelis — então companheira de Cortázar Cortázar. Outros títulos presentes na bi- — dirigida à Editora Perspectiva, datada de blioteca comprovam que HC nunca deixou Paris, 24 de maio de 1974, na qual agra- de acompanhar a obra do escritor argen- dece o envio do contrato e informa o en- tino. Cortázar faleceu em Paris, em 12 de cantamento do casal com a edição. fevereiro de 1984. Em 1973 e em 1975, Cortázar Em 1991, publica-se a edição crí- vem ao Brasil. Logo após, em 1978, a tica de Rayuela (CORTÁZAR, 1991), com revista Através, número 2, publica “Álibi a “Liminar: Para llegar a Julio Cortázar”, para uma contraversão”, de HC, comentá- de autoria de Haroldo de Campos. O tex- rio sobre a tradução de “Zipper Sonnet” de to é parcialmente publicado, com o título Julio Cortázar, acompanhado pelo poema “Para chegar a Julio Cortázar e Rayuela”, em formato bilíngue. Aí apresenta esclare- no caderno Letras da Folha de S. Paulo, cimentos sobre algumas opções feitas na de 31 de agosto. Não é um dado menor transcriação, em benefício da medida, da que Campos tenha sido o escolhido para sonoridade e da reversibilidade do texto, redigir o texto que abre esse volume de que pode ser lido de cima para baixo ou de caráter internacional. baixo para cima, mimetizando o movimen- Paralelamente à amizade com to do zíper. Na última estrofe, ao traduzir Cortázar, Haroldo de Campos também se “obstinado hacedor de la poesía” por “re- aproxima do escritor mexicano Octavio fator contumaz desta poesia”, transfere a Paz. Em 1968, Celso Lafer solicita a HC metalinguagem para o âmbito da tradução. que traduza poemas de Paz para ilustrar Tendo recebido a tradução e seus um artigo seu. Assim, o autor de Galáxias comentários, Cortázar transforma HC em entra em contato com a obra do poeta me- personagem de Un tal Lucas — publica- xicano e lhe envia uma carta, datada de 24 do em Madri, pela Editora Alfaguara, em de fevereiro, dando início ao diálogo entre 1979 — no episódio “Lucas, sus sone- ambos. Nessa carta, além de pedir escla- tos”. Aí conta a história de um sonetista recimentos sobre o significado de alguns que escreve um soneto reversível, o qual vocábulos nos poemas “Las palabras” e é traduzido por seu amigo Haroldo de “Animación”, HC faz uma breve aprecia- Campos, “a quem toda combinatória se- ção da obra de Paz a partir da leitura, que mântica exalta a níveis tumultuosos, ra- havia acabado de realizar, dos poemas de zão pela qual poucos dias depois Lucas viu Libertad bajo palabra e da edição francesa com maravilhada estupefação seu soneto de El arco y la lira, especialmente de seu vertido ao português e consideravelmente epílogo, “Los signos en rotación”. melhorado”. Além de reproduzir o poema Na resposta a essa primeira carta, e sua tradução, traz ainda os comentários Paz afirma já ter conhecimento da poesia de HC sobre a operação tradutora vertidos concreta brasileira, da qual se inteirou por para o espanhol, por Lucas/Cortázar, con- meio de publicações em inglês e de e.e. siderando que “parafraseavam suas pró- cummings. Ainda em 1968, Octavio Paz prias dificuldades na hora de escrevê-lo”. publica — em separata da Revista de la

63 Universidad de México, volume XXII, núme- Paz, do México. Durante a cerimônia de ro 10, referente a junho — Topoemas, obra entrega da láurea, em 2000, profere um inspirada na poesia concreta. Eles se encon- discurso no qual rememora sua relação tram pela primeira vez em Paris, em 1969. com o poeta mexicano, exaltando o valor Há vários livros de Paz com dedi- simbólico que a premiação adquire para catória a HC em sua biblioteca. Os poemas um poeta brasileiro que teve o privilégio traduzidos foram publicados inicialmente de ser amigo e interlocutor de um dos em Constelação. Pequena antologia, edi- maiores poetas e intelectuais mexicanos. ção artesanal com introdução e tradução Já Severo Sarduy, Haroldo de de HC, e xilogravuras de João Pinheiro, Campos conheceu na reunião do Pen Club e posteriormente incluídos em Signos realizada em Nova York, em 1966. Porém, em rotação, edição organizada por Celso afirma ter entrado em contato com ele Lafer e Haroldo de Campos, com tradução devido ao interesse por seu romance De de Sebastião Uchoa Leite, publicada pela donde son los cantantes, de 1967. Há vá- Editora Perspectiva, ambas em 1972. rios livros de Sarduy dedicados a HC em Ainda em 1972, a revista mexicana sua biblioteca. E foi dele, de HC, a inicia- Plural publica o suplemento “Poesía con- tiva de publicar, em português, os ensaios creta: configuración/textos”, fruto do con- de Sarduy, reunidos sob o título Escrito tato de Haroldo de Campos com Octavio sobre um corpo e lançados pela Editora Paz. HC será colaborador frequente dessa Perspectiva em 1979. O exemplar que revista e de sua sucessora, Vuelta, funda- pertenceu a ele da edição em espanhol, da por Paz, e terá também textos sobre publicada na Argentina em 1969 (a pri- sua obra aí publicados. meira edição é de 1968), encontra-se ra- Foi apenas em 1978 que HC co- zoavelmente anotado. A edição brasileira, municou a Paz seu projeto de traduzir organizada por HC, teve tradução de Lígia Blanco, obra de 1966. Essa tradução será Chiappini Moraes Leite e Lúcia Teixeira concluída somente em 1981. Em 1986, a Wisnik. Conta não só com uma versão re- Editora Guanabara publica Transblanco, vista pelo autor do ensaio “Por uma ética que inclui a tradução do poema Blanco do desperdício”, mas também com dois de Octavio Paz, por HC, a correspondên- textos novos, como HC informa em nota. cia dos poetas sobre essa tradução, pre- Em seu texto introdutório ao volume, “No fácio de Emir Rodríguez Monegal, ensaio limiar do Opus Sarduy”, destaca a filiação de Julio Ortega e outros poemas de Paz do escritor cubano a Lezama Lima, sua re- traduzidos por HC. Todos os poemas são lação com o Barroco e seu interesse pela publicados em formato bilíngue. Pouco pintura, elementos que os aproximam e antes, em maio de 1985, em um even- que esses ensaios contemplam. Ressalta to realizado no Anfiteatro de Convenções ainda em sua obra a “noção da escritura da USP, Paz — em visita a São Paulo — e como ‘travestimento’” e “um empenho ra- HC fazem uma leitura pública do poema dical em assumir a literatura como teatro e sua tradução, precedida de comentários barroco do significante, como plástica me- do poeta mexicano sobre a concepção e a tamórfica do signo em sua materialidade”. estrutura de Blanco.5 Essa tradução de Sarduy intermediada por Em 1999, Haroldo de Campos re- HC, embora não seja a primeira da obra cebe o Premio Octavio Paz de Poesía y do escritor cubano entre nós, é a única de- Ensayo, concedido pela Fundación Octavio seus ensaios até hoje.6

64 Na próxima década, em 1986, O fato de que HC se volte para a quando Sarduy vem ao Brasil, HC pu- obra de Borges muito mais em torno de blica traduções dos sonetos “Morandi” questões de tradução do que de outros te- e “Rothko”, do poeta cubano, na Folha mas apenas evidencia que esse é também de S. Paulo, ambos extraídos da coletâ- o cerne do pensamento de HC, muitas ve- nea Un testigo fugaz y disfrazado, de zes norteador ou disparador de sua ativi- 1985. Sarduy, por sua vez, escreveu o dade de crítica e criação, mesmo quando ensaio “Rumo à concretude”, uma certeira voltada para outras temáticas. Ao conside- apreciação da produção poética de HC das rar a tradução como uma forma de atuali- origens até aquele momento, incluído em zação da poética sincrônica (Ibid., p. 184), Signância: quase céu (1979). conceito em torno do qual também dialoga O diálogo entre os dois autores fi- com o escritor argentino, revela-se que a cou documentado em uma numerosa cor- afinidade entre ambos é muito mais inten- respondência, ainda inédita, mantida até sa do que a falta de textos específicos de a morte do escritor cubano, em 1993. HC HC sobre Borges faz supor. despede-se do amigo com o poema-ho- Destaca-se o fato de que o ensaio menagem “para um tombeau de severo Ruptura dos gêneros na literatura latino- sarduy”, no qual rememora encontros em -americana condensa algumas das ideias Paris e passagens da obra do escritor cuba- centrais do pensamento haroldiano: a no, constituindo o texto como um mosaico. obra aberta; a metalinguagem; a poética Já em relação a Jorge Luis Borges, sincrônica; o neobarroco; a ruptura dos embora não tenha publicado nenhum en- gêneros. E menciona vários dos autores saio dedicado exclusivamente a sua obra, que estiveram em sua mira durante toda não o tenha traduzido nem tenha estado a sua trajetória, tanto os integrantes do com ele pessoalmente, esse autor tem um paideuma quanto outros. grande espaço na biblioteca de Haroldo de O amplo repertório que o texto Campos. HC possuiu cerca de cinquenta li- cobre põe ênfase em sua habilidade para vros de e sobre ele. Embora seja um assí- construir pontes e em sua perspectiva in- duo leitor de Borges e compartilhe de suas tegradora, assim como em sua leitura pio- ideias, não se dedicou a traduzi-lo devido neira da literatura hispano-americana e da às características de sua linguagem, ab- abordagem também precoce da literatura solutamente clássica. Ele sempre revelou latino-americana em seu conjunto. interesse em fazer “tradução de poesia ou, por extensão, de textos literários aná- logos em complexidade pelo alto teor de informação estética de sua linguagem” (CAMPOS, 1994, p. 181). Lamentavelmente, HC nunca este- ve pessoalmente com Borges. Tudo indica que não estava no Brasil quando o escritor argentino visitou este país. Em 1984 — ano da segunda passagem de Borges por São Paulo —, porém, deixou, a pedido de Jorge Schwartz, duas perguntas endereça- odas polvo a (vieira)ele. (3 e 1)

65 NOTAS

1 As publicações aqui mencionadas integram a Biblioteca de Haroldo de Campos, Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura. Foram consultadas durante a pesquisa – da qual este ensaio é um desdobramento – do pós-doutorado, desenvolvido no IEL-Unicamp, de 2006 a 2010, com financiamento da Fapesp, que teve como tema “Haroldo de Campos e os hispano-americanos” 2 Não se trata do texto sobre João Cabral, “O geômetra engajado”, publicado em Metalinguagem, de 1967, e nas reedições de Metalinguagem e outras metas, mas sim, como HC informa, da tradução do posfácio que escreveu para a edição alemã de O cão sem plumas: Der Hund ohne Federn, cadernos Rot, n. 14, Stuttgart, 1964. Cf. Haroldo de Campos. “O geômetra engajado”. In: Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2004, nota 7, p. 84. 3 Após as citações ou menções a essa obra, será indicado ape- nas o número da página correspondente, entre parênteses. 4 Apud Pablo Rocca, op. cit., p. 259 (tradução mi- nha). O ensaio de HC foi publicado com apresenta- ção (“Haroldo de Campos teórico”) e tradução (“Poética del aleatorio”) do próprio Rama na revista venezue- lana Poesía, n. 19-20, Valencia (Venezuela), Dept. de Literatura, U.C. de Valencia, jul.-out. 1974, pp. 1-18. 5 O evento foi transmitido pela Rádio USP no programa Vamos Ler, produzido por Marcello Bittencourt, cuja edi- ção se encontra disponível no endereço eletrônico: http:// www.radio.usp.br/programa.php?id=2&edicao=051107.

6 O professor Jacó Guinsburg informou-nos, em um de- poimento, que havia planos de publicar, pela Editora Perspectiva, e também por intermédio de HC, o livro Barroco, de Sarduy; porém, como o escritor cubano adoe- ceu e veio a falecer, a publicação acabou não se concreti- zando. Cf. ANDRADE,, , 2010, p. 139.

66 REFERÊNCIAS

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67 CRIAÇÃO

68 HAROLDO DE CAMPOS Y EL PARAÍSO REINVENTADO

GONZALO AGUILAR

Universidad de Buenos Aires

69 En “Poesia e paraíso perdido”, pri- ría de la traducción a partir de la idea de mer texto de autoría de Haroldo de Campos “lengua pura” de Benjamin. También en incluido en Teoría da poesia concreta, se sus rescates poéticos (por oposición, la lee que la poesía se apoya tanto en un denominación del Canto de Sousândrade “continuum meta-histórico” (Homero es como “Inferno de Wall Street”), en sus contemporáneo de Pound) como en una transcreaciones (fragmentos del Paradiso “metamorfose vetoriada” que “implica a de Dante y pasajes de La Biblia) y en su idéia de progresso” (Pound representa el poesía política. Ya en el siglo XXI, en el non plus ultra de la innovación poética poema “circum-lóquio (pur troppo non contemporánea) (CAMPOS, 2006, p. 43). allegro) sobre o neoliberalismo terceiro- El texto configura una crítica lapidaria a los -mundista”, se lee poetas de la generación del 45 que querían recuperar el poesía en sus versos y en sus no céu neon formas convencionales. Si pensamos que do neoliberal este es el primer texto crítico haroldiano, anjos-yuppies es decir un verdadero beginnig (según el bochechas cor-de-bife concepto de Edward Said), redactado en privatizam 1955, y que se titula “Poesía y paraíso per- a rosácea do paraíso dido” y si pensamos que uno de sus libros de dante póstumos pero que dejó casi terminado enquanto lancham (publicado en 2004, un año después de su fast-food muerte) se llama Éden. Un tríptico bíbli- e super co, veremos que el motivo de lo paradi- (visionários) visam síaco domina su trayectoria como un bajo com olho magnânimo continuo o, para decirlo con las palabras as bandas de su primer texto, un “continuum me- (flutuantes) ta-histórico”, del paraíso perdido al éden do câmbio: reinventado. Esta presencia está tanto en su producción poética (en Signantia qua- ¿Pero qué es lo que sucede entre se coelum, libro de poemas de 1979, o en su crítica feroz al “paraíso perdido” de su las Galáxias, por ejemplo, donde expresa texto inaugural y la “escrita paradisíaca” que “si primero las concebí como una serie que comienza a ser cada vez más pode- de insinuaciones épicas, hoy, retrospecti- rosa a partir de los años 70? ¿Se trata de vamente, yo tendería a verlas como una un “continuum” o más bien hay que verlo insinuación épica que se resolvió en una como un “vector de progreso”? Mi idea es epifanía” y que termina jugando con los que lo paradisíaco va a ser una articulación verso de Dante: “assim o fizeste assim o y a la vez una superación de ambas con- teceste assim o deste e avrà quasi l’ombra ceptualizaciones para arribar a una nue- della vera costellazione enquanto a men- va instancia crítica, creativa y conceptual. te quase-íris se emparadisa neste multi- A lo largo de su trayectoria, el paraíso o livro e della doppia danza”), como en su edén va transformándose y abandonando lectura de poetas y artistas (como cuando la oposición que supone entre dos tempo- considera a los parangolés de Hélio Oicitica ralidades (el “continuum meta-histórico” y como “paramentos laicos que celebram o el make it new poundiano). Si en el primer paradisíaco no instante-vida”) y en su teo- texto el paraíso era una ficción inaccesible,

70 con el paso del tiempo se convertirá en la con su consolación tonal y su tranquili- categoría estratégica para resolver proble- dad métrica. mas de temporalidad histórica, escritura Como “culturmorfología”, hay otro poética y transcreación (deja de signifi- término que viene de Frobenius que los car un retorno o la recuperación de algo concretos toman de Pound (es decir en perdido). La dimensión paradisíaca en la un camino muy diferente que hicieron los obra de Haroldo de Campos surge como conceptos de Frobenius hacia otros es- uma construcción teórica postulada hacia critores latinoamericanos como Lezama el futuro, hacia la práctica en una “meta- Lima, quien lo toma de Ortega y Gasset y morfose vetoriada” que, por una serie de la Revista de Occidente o Aimé Cesaire y operaciones, será una de las posibles pe- Alejo Carpentier con el concepto de “ne- queñas puertas de entrada por la que el gritud”). Este concepto es “paideuma”: la Mesías poético asuma para transfigurar no selección de lo vivo en una cultura, aquel- sólo la poesía sino también la temporali- los de los que hay que aprender, el ahor- dad, la historia, la espacialidad y la lectura ro de trabajo para futuras generaciones. El principio vanguardista de la “The Paideuma –escribe Pound– is not the “higienização dos mitos” que menciona Zeitgest” (POUND, 1952, p. 58). El paideu- en el texto de 1955 (la palabra “higieni- ma de los concretos está formado -como zação” resuena macabramente porque en es sabido- principalmente por el Joyce de el manifiesto futurista se la asociaba con Finnegans Wake, el Mallarmé de Un coup la guerra) llevó a Haroldo en este texto de dés, Ezra Pound, e.e.cummings, y los a una consideración negativa de todo in- brasileños João Cabral de Melo Neto y tento de retornar al paraíso. Hay que leer Oswald de Andrade. El paideuma entonces ese ataque en el contexto del retorno a las es la operación que realiza una división formas regulares y convencionales poéti- en el presente, estableciendo en éste un cas de la generación del 45 y de un huma- vector temporal. El paideuma, entonces, nismo que tendía a igualar vanguardia y marca el corte en el tiempo presente que destrucción bélica. En esos años (los años tiene como criterio fundamental el vector de la Posguerra) muchos artistas –en la de progreso al que se refería en el texto lúcida expresión de John Berger– se hicie- “Poesia e paraiso perdido”. ron clásicos, como para olvidar la barba- Mi hipótesis entonces une los dos rie de los ocho millones de muertos de la hilos que expuse hasta ahora: el signifi- guerra (BERGER, 1990, p. 171). La crítica cante paraíso, vinculado a la inmanencia de Haroldo de Campos al “humanismo eu- de la escritura poética (y de su pensa- nuco”, a las nostalgias compensatorias lo miento sensible), le sirvió a Haroldo de llevan a una consideración de la “cultur- Campos a crear una serie de conceptos y morfología” (término que toma del etnólo- desarrollar una serie de teorías que tuvie- go Leo Frobenius vía Pound) en términos ron efectos, como ya lo dije, en los modos evolutivos y en el que los retornos se ha- de concebir la temporalidad, la historia, cen imposibles. Si uno de los postulados la espacialidad y la lectura. El paradiso de la poesía concreta de esos años será el ya no pensado desde una noción de pro- “fin de la era del verso”, eso hará que el greso propia del concretismo de los años uso del verso sea una práctica retrógrada cincuenta, sino desde una noción de ago- y conservadora. El “verso”, en este con- ridade que viene de Walter Benjamin y de texto, funcionaría como un falso paraíso, otros artistas y pensadores con los que se

71 irá cruzando Haroldo a lo largo de su vida nica que viene de Mallarmé, Joyce y Pound y debe rehacerse en el espacio del poema pero también de Serguei Eisenstein, Kurt una vez que el verso (distintivo de lo poé- Schwitters y Hélio Oiticica: poner una cosa tico) entra en su fase crepuscular. al lado de la otra para provocar el vértigo de lo impensable (o de lo que todavía no Vectores del instante ha sido pensado o sentido). No pensar en encadenamientos identitarios articulados El surgimiento de la poesía con- alrededor del verbo “ser” sino por conti- creta a mediados de los años cincuenta, güidades, analogías y montajes en el es- en Brasil, supone un movimiento desco- pacio siempre a partir de la materialidad lonizador. No porque puedan emparentar- de la lengua. se con alguna teoría poscolonial o porque “El ideograma - escribe Haroldo sus temas hayan sido los de la liberación - enquanto processo relacional, enquan- nacional o las vindicaciones tercermundis- to metáfora estructural” (CAMPOS, 1986, tas. Es “descolonizador” en la medida en p.58). Todos estos temas critican tanto un que no se subordina a un universal sino mecanismo analítico del pensamiento que que lo produce. No se trata solamente tiende a separar y a discriminar sus obje- de acelerar los componentes modernos tos como a una concepción identitaria que de las culturas periféricas – aunque eso pone en el centro de las relaciones lingüís- haga parte del programa – sino de pro- ticas y cognoscitivas el verbo ser. La pala- ducir un conjunto de conceptos que es- bra “metamorfosis” (sin necesidad de que tablezcan un paradigma universal para la sea vectoriada, como quería el Haroldo de producción poética En un gesto práctico y los años cincuenta) puede ser otra clave teórico muy original, los poetas brasileños de un pensamiento y una sensibilidad que, anuncian el fin de la era del verso y desde a partir de la materialidad de la lengua, ese momento inauguran un pensamiento avanza por contigüidades y transformacio- que podría definirse en términos de len- nes. Fueron sin duda las Galáxias donde guaje como la preeminencia de lo paratác- este núcleo se desarrolló con más poten- tico sobre lo hipotáctico, del eje paradig- cia, tanto por la extensión del proyecto mático sobre el sintagmático. Esa nueva escriturario como por la condensación de relación que se establecía sobre la página la composición. adquirió diversos nombres: ideograma, Si durante el momento polémi- montaje, espacialidad, poema visual, dia- co y más ortodoxo del concretismo, el grama. Ampliada y diseminada hacia los make it new poundiano había desplazado más diversos ámbitos del pensamientos y al “continuum meta-histórico” y, de algu- de las prácticas, teniendo como platafor- na manera, la “metamorfosis vectoriada” ma la materialidad del lenguaje, Haroldo había sido subordinada a la “idéia de pro- de Campos continúa en esta línea hasta gresso”, a principios de los años sesenta sus últimos escritos. Cuando convierte la con la reformulación y el cuestionamiento prosa de Hegel en poesía, cuando propone del programa de vanguardia, Haroldo de que el escritor es un devorador serial que Campos realiza una serie de movimientos desconoce o impugna las jerarquías, cuan- que transformarán totalmente esta rela- do propone al barroco como “excéntrico” ción. Son varios acontecimientos no nece- al mismo tiempo “bárbaro” y “alejandrino”, sariamente relacionados pero que marcan, en el centro de su operación está una téc- en su conjunto, un cambio profundo en

72 su obra. Enumeremos: politización de la el archivo para producir, en el pasado, lo poética con Servidão de passagem a partir nuevo. Comienzan así las traducciones de del dictum de Maiakóvski, “sin forma re- poetas del pasado y de los textos del canon. volucionaria no hay arte revolucionario”; La traducción (que Haroldo rebau- descubrimiento del poeta decimonónico tizará transcreación) es un dispositivo de Joaquim Pedro de Sousândrade; inicio de actuación y actualización de la poética sin- la redacción de las Galáxias en la que se crónica. “A reinstituição do corpo na tra- practica la prosa y el poema largo y, final- dução é o que eu denomino transcriação” mente, lectura exhaustiva de la obra de (CAMPOS, 2013, p.107). La transcreación Oswald de Andrade en el aniversario de tiene en Haroldo tres etapas. La primera los diez años de su muerte en 1964. Son está constituida por la traducción de tex- todos cuestionamientos o suspensiones tos radicales, de vanguardia como modo de los vectores temporales que quiebran de operar en la literatura de llegada. Más la autonomía poética (como sucede con el allá de la originalidad de las elecciones, el poema Servidão de passagem en el pasaje esquema es claramente evolutivo y tiende de la “poesia-pura” a la “poesia-para”) o a presentar esas traducciones como una vulneran el principio evolutivo que había experimentación límite que es necesario regido la argumentación del fin del verso, emular. La palabra para definir ese elenco tanto en la prosa de las Galáxias como fue paideuma, aquellos de los que hay que en la exhumación del poema O Guesa de aprender. La traducción de Pound, Joyce o Sousândrade que comparan con los halla- Mallarmé es el señalamiento de un estado zgos poéticos de Ezra Pound. del arte y de la escritura que instaura un Con Sousandrade, Augusto y nuevo punto de partida. Haroldo de Campos utilizan el concepto de La segunda etapa comienza con “ReVisão” y descubren que un autor pue- Traduzir e trovar de 1968 e inicia, en pa- de no ser contemporáneo de sí mismo. No ralelo con la producción poética (aunque hay que olvidar que en 1877, el poeta ma- la diferencia entre creación y traducción ranhense había escrito: “Ouvi dizer já por nunca es tajante), un retorno al verso. duas vezes que o Guesa Errante será lido Traduzir e trovar contiene traducciones de 50 anos depois; entristeci - decepção de los poetas provenzales, Guido Cavalcanti, quem escreve 50 anos antes”. El vector, Dante Alighieri y John Donne, entre otros. entonces, hacia un giro hacia el pasado y Comienza a partir de aquí una ter- el montaje se hace entre pasado y presen- cer etapa que consiste en un camino ha- te adquiriendo un dejo benjaminino: “no cia la médula del canon literario que en se trata de presentar las obras literarias Haroldo será cada vez más arriesgada en en el contexto de su tiempo, sino, más la medida en que se trata de hacer una bien, de representar, en el tiempo en el lectura contracanónica del canon: Goethe, que surgieron, el tiempo que las conoce, Dante Alighieri, la Biblia, los textos homé- es decir, el nuestro” (BENJAMIN, 1991). ricos. La estrategia consiste en tomar es- Además del concepto de ReVisión, Haroldo tos textos de creencia en su materialidad incorpora otra que va a ser fundamental poética. Mostrar que La Biblia antes que en sus lecturas posteriores: el de “lectura nada es un poema y que su eficacia (aún sincrónico-retrospectiva”. Ya el paideuma en términos religiosos) proviene de su no es un corte que se hace en el presente ritmo, su musicalidad y su encantamien- hacia el futuro sino que se trata de ir hacia to fónico. La traducción de pasajes de La

73 Biblia que lo ocupará durante los últimos zo, lo que pasa entre, barra de disyunción y años de su vida (con la traducción de La unión: entre la luz y la oscuridad, el edén y Ilíada y de poemas del nahuatl) lo lleva no el infierno, Helios y el hades. “O purgatório solo a la cuestión del paraíso sino también é isso: / entre/inter-”, escribió Haroldo en de la lengua pura. un poema “A educação dos cinco sentidos”. Para Haroldo de Campos, la lengua Porque la cuestión es, más que el Edén, pura es el universal: y alguna motivación instalarlo o escribirlo – desde el purgatorio hay, la dispersión post-Babel confundió las de la modernidad. Ya el poeta Auden ha- lenguas pero no al punto de que hombres bía hablado de la importancia de imaginar y mujeres pudieran al menos traducirse y, cómo sería el paraíso y Ezra Pound había eventualmente, hablar más de una lengua. terminado sus Cantos con estos versos: La construcción de Babel era la de una “ciu- dad comunitaria donde la humanidad se He intentado escribir el Paraíso. congregaría, vinculada por una ’língua-lá- bio ’ma’” (CAMPOS, 2013a, p. 159). No os mováis Es un Benjamin metafísico al que Dejad hablar al viento Haroldo trata de dotar de una física de la ése es el Paraíso traducción y para eso se apoya en los es- tudios de Roman Jakobson. Con la física “Escribir el Paraíso”: ¿pero es eso de Jakobson, la lengua pura es interpreta- posible? En Haroldo y en Hélio, se trata da no en términos mesiánicos, cabalísticos de trabajar con la “arquimemória assom- o bíblicos sino en tanto función poética, brada desse exílio pós-edénico” (CAMPOS, es decir la materialidad, autorreferencia- 2004, p. 58). Inscribir un trazo, pero más lidad y “palpabilidad” del signo (CAMPOS, que nada un trazo que deje aflorar esa ar- 2013b, p. 110). Si en “Poesia e paraíso chimemoria (arquimemória), ese origen perdido” ambos gestos se separan entre que, como quería Walter Benjamin, está pasado (paraíso perdido) y presente-fu- localizado “en el flujo del devenir como un turo (poesía de vanguardia), a partir de remolino que engulle el material relativo a los sesenta se trata de buscar el punto de la génesis” (BENJAMIN, 1990, p. 28). La intersección pero no como una neutraliza- diferencia del paraíso del principio hacia el ción del problema sino como intento deno- final: en el principio, era el rechazo de un dado de inventar o fazer el paraíso desde olvido, de un trabajo de negacion y de una una lectura de vanguardia. falsa armonía. En los sesenta, es el pro- Como observó Haroldo a propósito ducto de una divergencia: la poesía-para de Éden, hay entonces un retorno del “pa- no podía ahogar la poesía-pura. A partir de raíso” pero en condiciones absolutamente allí, hay una incandescencia de la materia modernas: sin nostalgias ni retrocesos, (sea lenguaje, color, cuerpo) que median- el paraíso es una consecuencia del hacer te una serie de operaciones entrega mo- humano, un trascendental que produce la mentos paradisíacos. Si nos encontramos inmanencia.1 En la poesía de Haroldo, este en un momento pos-utópico, el paraíso retorno reactualiza el esquema triparti- solo puede tener la dimensión temporal de to medieval (paraíso, infierno, purgatorio) momentos, o para decirlo con otro escritor en el que el purgatorio hace de pasaje o, de su generación (Octavio Paz) de instan- para decirlo con un término teorizado por tes, ya no hay un retorno hacia atrás, sino Derrida, de himen. El purgatorio es el tra- un retorno del origen como salto. En su

74 primer texto, Haroldo critica violentamen- te la idea de un retorno al paraíso perdi- do. En su trayectoria posterior, Haroldo se propone una tarea de mayor: cómo cons- truir y celebrar - en la escritura poética, en la transcreación, en la lectura - lo paradi- síaco en el instante-vida.

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NOTA Benjamin. In: TÁPIA, Marcelo; NÓBREGA, Thelma Medici (eds.). Transcriação, São Paulo: Perspectiva, 2013a.

1 Recordemos que esta operación ya estaba en ______. Tradução e reconfiguração. In: TÁPIA, Marcelo; Sousândrade, que decidió ubicar su infierno nada menos NÓBREGA, Thelma Medici (eds.). Transcriação, São Paulo: que en Wall Street. Para la noción de “campo trascenden- Perspectiva, 2013b. tal” (no trascendencia) y su relación con el plano de inma- DELEUZE, Gilles. La inmanencia: una vida. In: GIORGI, nencia, ver Gilles Deleuze: “La inmanencia: una vida” en Gabriel; RODRIGUEZ, Fermín (comp.). Ensayos sobre bio- Gabriel Giorgi y Fermín Rodríguez (comp.): Ensayos sobre política. Excesos de vida, Buenos Aires: Paidós, 2007. biopolítica. Excesos de vida, Buenos Aires, Paidós, 2007. POUND, Ezra. Guide to Kulchur, Londres: Peter Owen, 1952.

75 BIG BANG E BABELBARROCO: COSMOLOGIAS ENTRE TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA LATINO-AMERICANA

1 JASMIN WROBEL

Freie Universität Berlin

76 “Es posible que ante la Ciencia un Considerações prévias sobre escritor no sea siempre más que un as relações literárias entre o Brasil e aspirante. Hay, sin embargo, cierta ló- a Hispano-América gica en el hecho de que su atención se focalice particularmente en el modo Há pouco mais de 50 anos, em de convencer y en lo imaginario de la 1966, realizou-se a reunião do PEN Club ciencia. No es que el escritor, como lo em Nova York, ocasião em que foi orga- postula el pensamiento común, sea nizada uma mesa-redonda com o tema más imaginativo que los demás; sino “El papel del escritor en América Latina”. que las formas de los imaginarios se Um dos participantes dessa mesa, entre encuentran entre los universales –o outros como Emir Rodríguez Monegal, axiomas intuitivos‒ de una época, y Nicanor Parra ou Mario Vargas Llosa, foi pertenecen sin duda a su episteme. Haroldo de Campos, e gostaria de come- Los encontramos, con todas las tran- çar as minhas reflexões com uma afirma- siciones que se imponen, tanto en la ção do poeta naquela ocasião: ciencia y en la ficción como en la mú- sica y la pintura, en la cosmología y, Por razones que ahora no puedo preci- al mismo tiempo, en la arquitectura.” sar, las comunicaciones entre el Brasil (Severo Sarduy, Nueva inestabi- y los otros países latinoamericanos lidad, 1987) no son buenas. Nuestras respectivas literaturas se ignoran. Sólo algunos “En el principio no había nada intelectuales brasileños conocen, por ni espacio ejemplo, la obra de un escritor tan ni tiempo. importante como Borges; un grupo El universo entero aún menos extenso conoce a Julio concentrado Cortázar, y para hablar de un autor en el espacio del núcleo de un átomo, de gran trascendencia en las prime- y antes aun menos, mucho menor que ras décadas de este siglo, práctica- un protón, mente sólo algunos poetas brasileños y aun menos todavía, un infinitamente de vanguardia conocen la existencia denso punto matemático. de Vicente Huidobro. Lo mismo pasa Y fue el Big Bang.” en el resto de América Latina con las (Ernesto Cardenal, Cántico Cósmico, letras brasileñas. (apud ANDRADE, 1989) 2010, p. 151-152).

“O nexo o nexo o nexo o nexo o nex” O uruguaio Emir Rodríguez (Haroldo de Campos, A Máquina do Monegal, por sua vez, comentou, em Mundo Repensada, 2000) seu estudo comparativo sobre Mario de Andrade e Jorge Luis Borges, de 1978, so- bre o desequilíbrio no intercâmbio cultural entre as Américas

77 os brasileiros cultos frequentam mais João Carlos Teixeira Gomes refutou essa assiduamente e com maior proveito a tese, apoiado por Haroldo de Campos, literatura hispano-americana que seus vendo “a real vinculação de nossos escri- colegas hispânicos a brasileira, devido tores [...] com a Espanha barroca e não à preguiça (ou incapacidade) de veri- com Portugal, [...] com a exuberante lite- ficar se realmente o português é tão ratura do segundo ‘Siglo de Oro’ castelha- difícil de se ler. (Rodríguez Monegal no” (apud CAMPOS, 1999, p. 110). 1978: 12). A chilena Ana Pizarro, pesquisa- dora conceituada e muito atenta às re- O desconhecimento recíproco en- lações culturais e literárias entre as dife- tre os intelectuais e escritores hispano-a- rentes Américas, identifica e evidencia, mericanos e brasileiros nutre-se de uma em seu ensaio “Hispanoamérica y Brasil: longa tradição e perdura, em certos aspec- encuentros, desencuentros, vacíos” (em tos, até hoje – e também ocorre entre os El Sur y los Trópicos, 2004), fases con- estudiosos das literaturas hispano-ame- vergentes entre as duas áreas que podem ricana e brasileira. Entretanto, a história e devem ser trabalhadas a partir de uma literária tanto do Brasil como dos países perspectiva comparativa: a formação de hispano-americanos, com todas suas par- uma entidade alternativa à cultura eu- ticularidades, só pode ser compreendida ropeia no tempo colonial; a construção sob um ângulo comparativo que considere estética da homogeneidade (ou seja, a os intercâmbios, diálogos, paralelos e dife- constituição de um projeto nacional nos renças entre as Américas. imaginários) no século XIX; e a tensão Evidentemente, já a história das entre regionalismo e cosmopolitismo du- metrópoles ibéricas é nitidamente en- rante o modernismo (cf. PIZARRO, 2004, trelaçada desde a ocupação romana de p. 204-205). A essas fases de convergên- Hispania. O galego-português, antepas- cia como objetos de estudo (Pizarro fala sado linguístico do português moderno, também de “núcleos de produtividade foi uma língua de prestígio na lírica ibéri- simbólica”), podem-se acrescentar, além ca da Idade Média e no começo da Idade de muitos diálogos concretos interameri- Moderna. Durante a União Ibérica, que canos (podemos pensar, por exemplo, no durou de 1580 a 1640, o castelhano, por caso das poetas Gabriela Mistral e Cecília sua vez, transformou-se na língua mais Meireles), os espaços culturais comuns: o empregada nas classes dominantes de Pantanal, a Amazônia, o espaço fronteiri- Portugal e também entre os autores que ço entre o Brasil, a Argentina e Uruguai procuravam uma audiência mais ampla. (ou Paraguai, respectivamente) e, nesse A literatura do Siglo de Oro espanhol in- contexto, também o portunhol que, entre- fluenciou decisivamente a produção lite- tanto, já se transformou em uma língua rária em Portugal. É nesse contexto que literária - como em Mar Paraguayo (1992), podemos localizar a conhecida afirmação do paranaense Wilson Bueno, ou na Karta- de Antonio Candido sobre a formação da Manifesto-del-Amor-Amor-en-Portunhol- literatura brasileira: Selvagem (2008), assinada por 17 poetas “A nossa literatura é galho secun- e artistas que pedem aos (ex-) presiden- dário da portuguesa, por sua vez arbusto tes brasileiro e paraguaio, Lula da Silva e de segunda ordem no jardim das Musas” Fernando Lugo, para queimar o contrato (2013, p. 11). O poeta e professor baiano de Itaipú:

78 Después de QUEMAR com fuego Tordesilhas!”, coincidindo com a crítica de guaranítiko, fuego incorruptible, fue- Emir Rodríguez Monegal antes citada: go del amor amor, fuego divino, fuego humano, fuego inumano, el menciona- Pela primeira vez, um projeto trouxe do contrato mau de Itaipu Binacional, proposta coerente para a queda do pedimos a Lugo y a Lula y a Itamaraty muro de Tordesilhas [...]. Como resul- que inventem um nuebo contrato que tado dessa proposta unificadora e in- de hecho seja justo y beneficie de fato terativa, os quatro brasileiros [Antonio a ambos países em la mesma medida Houaiss, Haroldo de Campos, Antonio y si possível escrito em portunhol sel- Candido, José Guilherme Merquior] vagem, la lengua mais hermoza de la lançaram olhar abrangente sobre as triple frontera, pues que nel portunhol literaturas e linguagens americanas. selvagem cabem todas las lenguas del Salvo algumas exceções, o mesmo Brasil y del Paraguay (incluso las ame- não se pode dizer de seus colegas his- ríndias) y todas las lenguas del mun- pano-americanos com relação às bra- do. (KARTA-MANIFESTO, 2008).2 sileiras. (SCHWARTZ, 1993, p. 197).

Nesse sentido, não é possível su- Uma dessas exceções menciona- perestimar a importância e relevância de das no comentário de Schwartz, além de eventos como o simpósio “Transpor as Emir Rodríguez Monegal, foi o escritor e fronteiras na literatura latino-americana”, crítico cubano Severo Sarduy, que publi- organizado na Casa das Rosas nos dias 23 cou, na mesma coletânea, seu importante e 24 de junho de 2017, que faz parte do estudo “El barroco y el neobarroco”, onde projeto que Jorge Schwartz chamou a “eli- discute, entre outros, o romance Grande minação da linha de Tordesilhas”, em seu Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, a artigo paradigmático “Abaixo Tordesilhas!”, obra de e as Galáxias de de 1993 (p. 195). Haroldo de Campos. Este último, por sua vez, já aplicou o conceito do neobarroco Introdução em seu texto breve “A obra de arte aberta” Uma primeira versão do ensaio (em que também antecipa Umberto Eco), que motivou o simpósio mencionado an- de 1955, e o retoma no ensaio em ques- teriormente, “Ruptura dos Gêneros na tão, “A Ruptura dos Gêneros na Literatura Literatura Latino-Americana”, de Haroldo Latino-Americana”, referindo-se às obras de Campos, foi publicada pela primeira vez de Guimarães Rosa e Lezama Lima como em espanhol na coletânea América Latina “livros barrocos: neobarrocos, melhor di- en su literatura, em 1972, com o título zendo” (CAMPOS, 2013, p. 183) e de- “Superación de los lenguajes exclusivos”3. nominando o romance De donde son los O livro organizado pelo argentino César cantantes, de 1967, do próprio Sarduy, Fernández Moreno pode ser concebido como “uma das mais significativas mani- como um projeto precursor no intento de festações desse neobarroquismo” (ibid., p. estabelecer pontes entre a crítica literá- 184). O papel do barroco nas Américas, ria no Brasil e na América Hispânica. Com naquele momento, já tinha sido tematiza- razão, a coletânea foi bastante elogiada, do pelos cubanos Alejo Carpentier e José mas também evidenciou alguns vazios, Lezama Lima, como também pelo mexica- como destaca Jorge Schwartz em “Abaixo no Octavio Paz, entre outros. Mas é a cole-

79 tânea América Latina en su literatura que obra. Ao mesmo tempo, Sarduy estabele- se transforma, com as colaborações do ce contato com outros escritores latino-a- cubano Sarduy e do brasileiro de Campos, mericanos emigrados e exilados em Paris. em um dos primeiros espaços de discus- Como assessor literário da editora Éditions são e intercâmbio interamericanos sobre du Seuil, ele fomentou a tradução e pu- a tendência neobarroca nas literaturas la- blicação na França de autores como José tino-americanas na segunda metade do Lezama Lima, Reinaldo Arenas, Virgilio século XX.4 Piñera, Gabriel García Márquez e Manuel Além de teorizar o barroco como Puig, entre muitos outros. Especialmente ponto de partida para (re)pensar a lite- a obra de Lezama Lima pode ser conside- ratura latino-americana, os dois autores rada, como se sabe, um ponto de partida compartilhavam outro interesse, que se essencial para a própria obra de Sarduy, manifestou tanto em sua obra teórica, tanto criativa como teórica. Essa dupla especialmente no caso de Sarduy, como participação na França e no mundo lite- na obra poética: a cosmologia. Severo rário latino-americano, como ressalta Sarduy, em seus estudos teóricos sobre o Valentín Díaz, é uma das chaves da sua barroco, parte da ideia de uma “solidarie- obra (DÍAZ, 2011, p. 37). dade epistemológica” entre a cosmologia e A base das considerações teóricas a arte. Pretendo mostrar como essa ideia sobre o neobarroco de Sarduy5, como foi já foi antecipada na obra crítica e poéti- mencionado anteriormente, é a suposição ca de Haroldo de Campos nos anos 50 e de uma solidariedade epistemológica entre 60. Nesse contexto, procuro oferecer, em a figura geométrica e a figura retórica, que um primeiro passo, uma visão geral sobre o autor aplica à cosmologia e à arte. Fala, os aspectos mais importantes da poéti- nesse contexto, de uma retombée (uma re- ca neobarroca proposta por Sarduy, para percussão ou ressonância) que os modelos analisar, em seguida, o seu poemário Big astronômicos ou cosmológicos, concebidos Bang (1973). Depois, gostaria de focar na como modelos do saber de uma época, te- obra de Haroldo de Campos e questio- riam sobre a produção simbólica não cien- nar em que medida as Galáxias (1963- tífica (cf. SARDUY, 1987, p. 147). A retom- 1976/1984) espelham, num nível estéti- bée, nesse caso, não implica uma ordem co, as ideias de Sarduy.5 cronológica entre causa e consequência:

Um olhar sinóptico à poética Llamé retombée, a falta de un mejor neobarroca de Severo Sarduy término en castellano, a toda causali- Em 1972, quando “El barroco y dad acrónica: la causa y la consecuen- el neobarroco” foi publicado em América cia de un fenómeno dado pueden no Latina en su literatura, Severo Sarduy já sucederse en el tiempo, sino coexistir; vivia e trabalhava em Paris há doze anos. la “consecuencia” incluso, puede pre- Ele saiu de Cuba em 1960, pouco depois ceder a la “causa”; ambas pueden ba- da Revolução, com uma bolsa do Governo rajarse, como en un juego de naipes. cubano para estudar pintura na École du Retombée es también una similaridad Louvre. Em Paris, Sarduy entra em con- o un parecido en lo discontinuo: dos tato com membros do movimento inte- objetos distantes y sin comunicación lectual Tel Quel, cujas ideias pós-estru- o interferencia pueden revelarse aná- turalistas terão grande influência em sua logos; uno puede funcionar como el

80 doble […] del otro: no hay ninguna je- arte.6 A literatura do barroco histórico ca- rarquía de valores entre el modelo y la racteriza-se, nesse contexto, por um cen- copia. (ibid., p. 35). tro escondido ou um significado oculto, o que resulta numa literatura hermética e Em seu ensaio “Nueva inestabili- altamente artificial. Sarduy destaca: dad”, de 1987, Sarduy especifica também a relevância dos modelos científicos da astro- El hombre del primer barroco […] era nomia e cosmologia, respectivamente, e di- un hombre que se sentía deslizar: el ferencia o conhecimento ilustrado pelos dois: mundo de certezas que le había garan- tizado la imagen de un universo cen- Si la referencia central del primer bar- trado en la Tierra, o aun –Copérnico‒ roco fue la astronomía, como la del ordenado alrededor del Sol, de pronto actual, suponemos, es la cosmología basculaba. Terminaban las órbitas pla- […], es porque en esa ciencia, aun tónicas perfectas alrededor del Sol, se marcada como lo estuvo al comienzo deshacían los círculos: todo se alarga- por el imaginario astrológico, encon- ba, se deformaba como siguiendo la tramos una manifiesta vocación tota- elasticidad de una anamorfosis, para lizante, una pulsión de síntesis: sus conformarse con el trazado monstruo- postulados y procedimientos son como so de la elipse ‒o con su doble retóri- el modelo del saber de una época, su co, la elipsis, que engendraba poemas reflejo puntual, exhaustivo. Con una ilegibles, alambicados, como esos en- diferencia esencial: astronomía remitía cabalgamientos de líneas en que las a movimientos regulares, era, por de- figuras no aparecían más que de lado, finición, un saber sobre el espacio; la vistas desde el margen, casi al revés. cosmología supone toda una historia: (SARDUY, 1987, p. 36). un origen del universo, un desequili- brio, una expansión, quizás un apagón Além da elipse, Sarduy denomina final o una nueva contracción para vol- também a parábola e a hipérbole como fi- ver a un estado puntual. Se trata de guras retóricas que dominam “la gramática un saber sobre el tiempo, o sobre el del barroco” (ibid. 179). Agora, a descen- espacio-tiempo. (ibid.. p. 36). tralização, ou antes duplicação do centro no barroco histórico significa uma perda Comecemos, então, pelo barro- da ordem, mas ainda não uma dissolução co histórico, onde a retombée se define, completa da visão do mundo harmônica e no campo simbólico, como oposição entre equilibrada pelos dois “ejes epistémicos o círculo de Galileu (1564-1641/42) e a del siglo barroco: el dios – el verbo de po- elipse do astrônomo e matemático alemão tencia infinita – jesuíta, y su metáfora ter- Johannes Kepler (1571-1630). O desco- restre, el rey”. (SARDUY, 2011, p. 35). brimento desse último, de que os plane- O neobarroco, entretanto, reflete, tas não se movem em órbitas circulares, segundo Sarduy, a dissolução dessa har- mas em órbitas elípticas à volta de não monia, a ruptura da homogeneidade e a somente um, mas de dois centros (o sol perda de logos como principal ponto de e um centro escuro), reflete-se, segundo referência (cf. ibid.), relacionadas por ele, Sarduy, na visão do mundo dos séculos no seu estudo Barroco, de 1974, à teo- XVI e XVII e, portanto, também em sua ria do Big Bang, proposta pelo físico belga

81 Georges Lemaître em 1927. A teoria expli- origen a partir de nada, ni siquiera ca, como se sabe, o desenvolvimento inicial como producto de una diferencia cuya do universo como consequência da expan- marca, no por imponerse en tanto são de um átomo primordial. A expansão que pura entropía acrónica sería me- consequente da matéria, a fragmentação nos fundadora. El Universo textual así de uma unidade prévia e a ausência de obtenido, sin hiatos ni aglutinaciones, um centro espelham-se, segundo Sarduy, es producción uniforme y permanente como a primeira lei de Kepler na literatura de materia: surge en todas partes y barroca, na arte neobarroca do século XX. según el mismo ritmo, sin emisor cen- A obra literária seria, então, uma trado o privilegiado, sin principio, ni fin. Materia no teológica cuya presen- [o]bra no centrada: de todas partes, sin cia es puramente atómica, soplo inal- emisor identificable ni privilegiado, nos terable y sin rupturas –sin puntuación, llega su irradiación material, el vesti- forzosamente, sin marca anímica del gio arqueológico de su estallido inicial, “fiato”, tara tipográfica del pneuma‒, comienzo de la expansión de signos, sin separación de estrofas o párrafos, vibración fonética constante e isotrópi- sin mayúsculas. (ibid., p. 207). ca, rumor de la lengua de fondo: frote uniforme de consonantes, ondulación O autor cubano considera esses dois abierta de vocales. Obra sin “motivo”: modelos cosmológicos, a teoria Big Bang e en expansión, ampliable al infinito, se- a teoria Steady State, como sistemas que rie del gesto puro en su repetición o espelham, em certos aspectos, a episteme marca de cero: colores sobre un fondo do século XX e que se refletem, portanto, gris sordo –la mezcla uniforme de todos nos sistemas de produção simbólicos: los colores, saturación y anulación del prisma‒, vestigio atenuado de la com- Así como la elipse –en sus dos ver- pacidad inicial; fósil del ylem cromático. siones, geométrica y retórica, la elip- (SARDUY, 1987, p. 204). sis- constituye la retombée y la marca maestra del primer barroco […], asi- Além da teoria do Big Bang, mismo la materia fonética y gráfica en Sarduy discute também a hoje já refutada expansión accidentada constituiría la teoria do Steady State, elaborada em 1948 firma del segundo. Una expansión ir- por Fred Hoyle, Thomas Gold e Hermann regular cuyo principio se ha perdido y Bondi, que parte da ideia de que a maté- cuya ley es informulable. No sólo una ria é criada constantemente e a partir de representación de la expansión […]. nada, ou seja, a expansão do universo não Sino un neobarroco en estallido en teria começo nem fim. Os textos literários el que los signos giran y se escapan se caracterizariam, portanto, por uma hacia los límites del soporte sin que ninguna fórmula permita trazar sus lí- creación continua de materia fonéti- neas o seguir los mecanismos de su ca a partir de nada –ni sustentación producción. Hacia los límites del pen- semántica ni “fundamento”‒, mate- samiento, imagen de un universo que ria cuyo sentido sería justamente la estalla hasta quedar extenuado, hasta exhibición de su estar en el presente, las cenizas. Y que, quizás, vuelve a sin marca de origen, o marcada de un cerrarse sobre sí mismo. (ibid., p. 41).

82 Um dos objetivos de Sarduy em El Fala também, nesse contexto, de barroco y el neobarroco é reduzir o concei- uma erotização da literatura neobarroca to do barroco a um “esquema operatorio que, como o erotismo, perdeu sua função preciso [...] que codificara [...] la perti- original: a função original do sexo seria a nencia de su aplicación al arte latinoame- transmissão de informação biológica, en- ricano actual” (SARDUY, 2011, p. 7). Um quanto o erotismo é um fim em si mesmo aspecto central, nesse contexto, seria o (cf. ibid., p. 33-34). Assim, Sarduy caracte- da “artificialização”,7 no sentido de uma riza a literatura neobarroca como obra sem extrema elaboração do texto, para a qual motivo que não faz referência à realidade Sarduy distingue três mecanismos (cf. exterior do texto. Além de categorias inter- ibid., p. 9-18): textuais como a paródia, o pastiche, a co- 1. Com “sustitución”, refere-se à lagem, reminiscências e citações, ele inclui substituição de um significante correspon- também as técnicas da intratextualidade na dente a certo significado por outro signifi- estrutura fonética, semântica e sintagmáti- cante mais distante semanticamente; ca do texto nos procedimentos literários que 2. Com “proliferación”, denomina a levam a uma neobarroquização do texto. substituição de um significante por uma Por último, Sarduy considera a ausência do cadeia de significantes que “progresa meto- autor, a falta de um argumento e de uma nímicamente y que termina circunscribiendo estrutura temporal clara e a renúncia a um al significante ausente” (ibid., p. 11);8 planejamento coerente das figuras literárias 3. O último mecanismo mencionado é como caraterísticas da literatura neobarroca a “condensación”. Com sua forma menor, a (cf. PAULY, 1993, p. 181). “permutación”, Sarduy refere-se ao inter- câmbio de elementos de dois significantes; A teoria poetizada: Big Bang (1973), com “condensación”, denomina a fusão de de Severo Sarduy dois significantes a um terceiro que resume semanticamente os dois primeiros. O poemário sarduyano Big Bang, O escritor cubano concebe o texto publicado primeiro pela editora francesa neobarroco, recorrendo a Bakhtin, como Fata Morgana em 1973,9 ou seja, um ano “espacio del dialoguismo, de la polifonía, depois da publicação de “El barroco y el de la carnavalización, de la parodia y la neobarroco” e um ano antes da publica- intertextualidad” (ibid., p. 20), em que se ção do estudo Barroco, pode ser conce- misturam os gêneros literários e onde a bido como uma representação poetizada linguagem só refere a si mesma: da própria teoria do autor.10 No ensaio de 1972, “El barroco y el neobarroco”, o lenguaje que, por demasiado abun- poeta-pintor Sarduy exemplifica suas con- dante, no designa ya cosas, sino otros siderações teóricas não somente na lite- designantes de cosas, significantes ratura (ainda que os exemplos literários que envuelven otros significantes en dominem), mas também na arte plástica un mecanismo de significación que (René Portocarrero, Mario Abreu, Carlos termina designándose a sí mismo, Cruz-Díez, Julio Le Parc, Antonio Seguí, mostrando su propia gramática, los Humberto Peña, Alejandro Marcos), na modelos de esa gramática y su gene- arquitetura (Ricardo Porro), no cinema ración en el universo de las palabras. (Leopoldo Torre-Nilsson, Glauber Rocha), (ibid., p. 21). na música (Natalio Galán) e no teatro

83 (Alfredo Rodríguez Arias, Javier Arroyuelo) O caráter mais intermedial e in- latino-americanos. As referências à cos- terdisciplinar de Barroco já é antecipado mologia ainda se limitam a um breve tre- no poemário publicado um ano antes: Big cho que apenas antecipa o papel que a Bang. A obra constitui-se de 17 secções, ciência vai ter na teorização do neobarroco numeradas em algarismos romanos, que por Sarduy: incluem, além de textos científicos e poe- mas, dois diagramas de fenômenos cos- No seguiremos el desplazamiento de mológicos (nas secções X e XI): um dia- cada uno de los elementos que resul- grama de Hertzsprung-Russel, que mostra taron de este estallido que provoca a distribuição de estrelas no aglomerado una verdadera falla en el pensamien- M-13, e outro do astrônomo Avram Hayli to, un corte epistémico cuyas manifes- (Observatoire de Lyon), que ilustra a dis- taciones son simultáneas y explícitas: tância das galáxias elípticas Maffei 1 e 2, la Iglesia complica o fragmenta su eje descobertas por Paolo Maffei em 1968 por y renuncia a un recorrido preestableci- emissões de infravermelho. O livro termi- do […]; la ciudad se descentra, pierde na com cinco gravuras do artista cubano su estructura ortogonal, sus indicios José Ramón Díaz Alejandro, que mostram naturales de inteligibilidad –fosos, variações de parafusos atarraxados em ríos, murallas-; la literatura renuncia a diferentes constelações, aparentemente su nivel denotativo, a su enunciado li- soltas no espaço interestelar. O subtítulo neal; desaparece el centro único en el do poemário contextualiza as gravuras de trayecto, que hasta entonces se supo- Ramón Alejandro na obra, o que já leva nía circular, de los astros, para hacer- a uma descentralização na mesma: Big se doble cuando Kepler propone como Bang. Para situar en órbita cinco máquinas figura de ese desplazamiento la elip- de Ramon Alejandro / Pour situer en orbi- se; Harvey postula el movimiento de te cinq machines de Ramón Alejandro. Os la circulación sanguínea y, finalmente, textos de Sarduy serviriam, nesse contex- Dios no será ya una evidencia cen- to, apenas como meio de integração das tral, única, exterior, sino la infinidad imagens no corpo do livro. Outro aspecto de certidumbres del cogito personal, formal que chama a atenção à primeira dispersión, pulverización que anuncia vista é a duplicação dos textos, que apa- el mundo galáctico de las mónadas. recem sempre numa versão em castelha- (SARDUY, 2011, p. 6-7). no e outra em francês, ocupando, simetri- camente, as páginas opostas: o texto em Dois anos depois, no estudo mais castelhano na página esquerda, o texto amplo intitulado Barroco, que inclui a em francês na página direita (na edição conclusão do ensaio anterior como suple- da Fata Morgana). Esse paralelismo, que mento, Sarduy já apresenta os modelos espelha também a condição do próprio astronômicos e cosmológicos, respecti- Sarduy como escritor cubano radicado na vamente, de uma forma mais específica França, ou seja, a própria descentraliza- e estruturada, e recorre especialmente a ção (linguística), ainda é salientado pelo obras de arte plástica para ilustrar a ideia tipo de letra: os textos em castelhano le- da retombée, exceto por Góngora e algu- vam títulos em itálico e, quando se trata mas referências a Joyce e Lezama Lima. de reflexões científicas, são escritos com fonte normal;11 quando se trata de poe-

84 mas, aparecem em itálico. No caso dos de la explosión inicial que, según la textos em francês, é exatamente o oposto. teoría del profesor Sandage, dio naci- Assim se marca não apenas a duplicação miento al universo12. linguística, mas também uma aparente di- ferenciação entre o discurso científico e o A “mais gigantesca das explosões” discurso poético ou, antes, cosmopoético, do corpo celeste é transmitida, depois, ao pois o discurso científico e teórico (que, por corpo humano (cf. PÉREZ, 2011, p. 114) sua vez, faz uso de metáforas e imagens quando, no poema que segue o texto para denominar fenômenos cosmológicos) científico, um jovem toma um banho num é refletido nos poemas que adaptam for- quarto de um hotel em Marrocos: mas muito heterogêneas, possibilitando, assim, também uma leitura não linear e De la lucerna manchada, alta – contra anulando a fronteira entre prosa e poesia. los cristales el golpe de la A simetria visual e semântica entre as ver- arena ‒, la luz cae, cono mostaza. sões em castelhano e francês, porém, é La sombra del tubo de la ducha en la quebrada em alguns dos textos poéticos. pared rosada. Um conceito essencial para a En los baños del Hotel de la Confianza concepção de Big Bang é o da isomor- apareces, aguador desnudo. fia. Na secção III, intitulada justamente “ISOMORFIA”, podemos observar a trans- […] missão da imagem cosmológica ao micro- cosmo do homem. No texto científico da Rompes contra el suelo los cantarillos “page scientifique” de Le Monde, como de agua podrida, te sacas el Sarduy revela numa indicação das fon- sexo, hueles a oliva, te aprietas el tes no final do livro (“Con la participación glande, lo marcan tus dedos mancha- de”), podemos ler: dos de azafrán, de tintura púrpura. El astrónomo americano Allan R. La leche en la pared: punto denso, Sandage reveló, en el congreso de as- signo blanco que se dilata. trofísica que se desarrolla actualmen- Un silencio. te en Texas, que en junio de 1966 los Una risa. astrónomos de Monte Palomar habían (SARDUY, 1973, sp.). sido testigos de la más gigantesca de las explosiones de un objeto celeste A analogia entre a explosão do jamás observada por el hombre. El quasar e a ejaculação do homem é evi- objeto celeste de que se trata es un dente.13 O sêmen, como leite cósmico quasar que lleva el número 3C 446. (ou como pintura), expande-se na pare- Los quasars, descubiertos en 1963, de rosada do banheiro. Outro exemplo da pueden ser astros jóvenes, extrema- criação de analogias entre imagens ou de damente lejanos – varios billones de metáforas usadas pela ciência e a imagem años-luz – y muy luminosos. La explo- artística é a secção VII, “ENANA BLANCA”, sión observada, que multiplicó por ve- onde Sarduy retoma Fred Hoyle: inte la luminosidad del quasar 3C 446 pudo haberse producido hace algunos Las enanas blancas se caracterizan billones de años, tal vez poco después por tener una débil luminosidad y un

85 radio muy pequeño; el radio, en rea- A “anã branca” cosmológica é lidad, es comparable al de uno de los substituída pelo seu par no mundo artís- mayores planetas, Saturno. A causa tico: a figura Pup no romance sarduyano, de ese radio tan pequeño, la densidad Maribárbola, uma menina anã hidrocéfala, a que se aglomera la materia en el in- que servia na corte da também menciona- terior de una enana blanca es extre- da infanta da Espanha Margarita Teresa de madamente elevada, tan elevada que Áustria, retratada no famoso quadro “Las no puede compararse a nada conocido meninas” (1656), de Velázquez; a menina sobre la Tierra. Una enana blanca cé- albina do quadro “A Ronda Noturna” (1642), lebre es Pup, el compañero de Sirius.14 de Rembrandt; e a menina Eugenia Martínez La materia en su centro es tan densa Vallejo, retratada como “La monstrua vesti- que una simple caja de fósforos pesa- da”/”La monstrua desnuda” (as duas obras- ría varias toneladas. Es evidente que de aproximadamente 1680), pelo pintor las enanas blancas son estrellas que espanhol Juan Carreño de Miranda. Em rela- han alcanzado el final de su evolución. ção a essa última, é importante lembrar que a estética neobarroca aplicada pelo exiliado Uma analogia entre a anã branca Sarduy protagoniza figuras descentralizadas “Pup”, ou bem Sirius B, que acompanha e polissemânticas (como também o travesti, a estrela Sirius A, e uma figura literária, a figura mais corrente na obra sarduyana). já aparece em Cobra, de 1972. De fato, Aqui, ele brinca com a ideia do “monstruo- Sarduy usa a mesma citação como lema so” e o “degenerado”, o que podemos rela- para o capítulo também intitulado “Enana cionar à rejeição e perseguição de homosse- blanca”. No romance, “Pup” é a versão xuais, em Cuba. miniaturizada do protagonista Cobra,15 e O poemário termina com um assim começa o poema que acompanha o poema que resume, de certa manei- texto científico antes citado com uma re- ra, os temas tratados. Em “ORIENTE / ferência direta a esse último: OCCIDENTE”, lemos:

Donde dice «el compañero de Sirius», poner el doble miniaturizado gigantes rojas bailas : huella de tus pies de Cobra, enanas blancas en la nieve carbónica donde dice «Pup», poner la menina Maribárbola, o la María viajeras azules gestos reflejados Sarmiento, o la propia infanta doña huecos negros en aristas de fuego Margarita girando helicoidal ante el espejo, y luego su metáfora, la máqui- huyendo cobras escupen llamas na prognática de Alejandro, hacia los bordes se anudan: o la raquítica albina, con un pato del espacio tu lecho amarrado a la cintura, que atraviesa la Ronda de la Noche, el tiempo ha terminado o la Monstrua Vestida de Carreño, con vuelve a dormirte su «pendant», la Desnuda – atributos de sileno o de fauno, (SARDUY, 1973, sp.)

86 Os últimos versos podem ser lidos expressão artística contemporânea, como uma inversão dos versos finais do atemorize, por sua simples evocação, protótipo do cosmopoema latino-ameri- os espíritos remansosos, que amam a cano barroco, Primero Sueño (1692), da fixidez das soluções convencionadas. mexicana Sor Juana Inés de la Cruz: (CAMPOS, 2006, p. 53).

y restituyendo A ideia de uma “solidariedade entera a los sentidos exteriores epistemológica” entre a arte e a visão do su operación, quedando a luz más mundo contemporânea já é inerente nesse cierta curto trecho do ensaio em que Haroldo de el mundo iluminado, y yo despierta Campos também antecipa o conceito da “obra aberta” de Umberto Eco, que, por (SOR JUANA, 2007, p. 300). sua vez, já discute a poética do barroco como reação a um novo saber cosmoló- A antecipação da poética gico em Opera Aperta, de 1962 (cf. ECO, neobarroca sarduyana na obra de 1973, p. 160-168). De Campos reutiliza Haroldo de Campos o conceito do “neobarroco” em relação à ruptura dos gêneros nas obras de certos Como se sabe, o barroco é um tema es- autores latino-americanos no ensaio que sencial e extenso também na obra crítica motivou o simpósio “Transpor as frontei- e criativa de Haroldo de Campos, que o ras na literatura latino-americana” e cuja acompanha já desde o começo da sua tra- primeira versão data de 1972, como o já jetória poética, se pensarmos, por exem- discutido texto de Sarduy sobre o barroco plo, no poema “Ciropédia ou A Educação e o neobarroco. do Príncipe” (1952). A seguir, gostaria de Ainda mais interessante é a re- me concentrar apenas na pergunta sobre tombée (neo)barroca nas Galáxias de em que medida a poética neobarroca defi- Haroldo de Campos, que parecem, por sua nida por Sarduy já foi antecipada na obra vez, antecipar as considerações teóricas teórica e, sobretudo, criativa do poeta bra- de Sarduy de forma poética (ou proética, sileiro. Como já mencionado anteriormen- para falar com Caetano) já nos anos 60. Na te, foi Haroldo de Campos quem usou o sua work in progress, escrita entre 1963 e termo “neobarroco” pela primeira vez para 1976, de Campos apresenta 50 fragmen- designar um novo tipo de “barroco moder- tos multilíngues, cada um deles esbatendo no”.16 Em seu ensaio “a obra de arte aber- a fronteira entre prosa e poesia. O sujei- ta”, de 1955, Haroldo de Campos afirma: to lírico, que podemos identificar com um alter ego do poeta, viaja entre diferen- Pierre Boulez, em conversa com Décio tes cidades enquanto várias línguas, as- Pignatari, manifestou o seu desin- sim como diferentes influências culturais teresse pela obra de arte “perfeita”, e eventos históricos, entram em diálogo. “clássica”, do “tipo diamante”, e enun- Aparentemente, não existem limites tem- ciou a sua concepção da obra de arte porais ou espaciais, o velho e o novo inte- aberta, como um “barroco moderno”. ragem permanentemente. As cidades do Talvez esse neobarroco, que pode- mundo transformam-se nas cenas privile- rá corresponder intrinsecamente às giadas como lugares onde várias culturas necessidades culturmorfológicas da e linguagens, como também diferentes

87 manifestações de arte e memória cultural, __ encontram-se e interagem. Ambiguidade é um livro de ensaio de ensaios do livro e polifonia refletem-se também em moti- /por isso o fim- vos e topoi metonimicamente relacionados comêço começa e fina recomeça e re como o labirinto ou Babel. No fragmento /fina se afina o fim no funil do “esta é uma álealenda”17 (que, de fato, já comêço afunila o comêço no fuzil do seria um exemplo para a fusão de dois sig- /fim no fim do fim recomeça o nificantes, denominada por Sarduy como recomêço refina o refino do fim e onde “condensação”), escrito em setembro de /fina começa e se apressa e 1964, por exemplo, o poeta destaca a regressa e retece há milumestórias na mestiçagem cultural de Paris, chamando /mínima unha de estória por a cidade de “babelbarroca” e retomando, isso não conto por isso não canto por nesse contexto, também Umberto Eco (e /isso a nãoestória me desconta com isso, a ele mesmo): ou me descanta o avesso da estória /que pode ser escória que pode a loiríssima abraçada a seu gigante ser cárie que pode ser estória tudo de /negro o /pende da hora tudo depende negríssimo enganchado a sua ninfeta da glória tudo depende de embora e /loira saudável discordia concors /nada e néris e reles e nemnada recolonização biológica por isto esta de nada e nures de néris de reles de /cidade é babelbarroca por isto /ralo de raro e nacos de necas esta cidade é uma opera aperta e nanjas de nullus e nures de nenhu /res e nesgas de nulla res e Espaço é criado por meio de inúmeras nenhumzinho de nemnada nunca pode referências intertextuais e intermediais, /ser tudo pode ser todo pode ser total entrelaçadas nitidamente. História e lite- ratura mundiais transformam-se em hi- Uma sintaxe coerente não exis- potextos para as galáxias haroldianas que te, as cadeias de significantes coorde- parecem expandir-se infinitamente, como nadas artisticamente parecem obedecer seus modelos cosmológicos. A aparente unicamente ao jogo de som e ritmo do expansão do texto deve-se, por um lado, poeta. Nesse contexto, Sarduy comenta, ao arranjo visual e linguístico dos frag- em “El barroco y el neobarroco”, sobre as mentos. Além da multilingualidade lite- Galáxias: rária (encontramos expressões e curtos trechos em alemão, árabe, checo, chinês, El cromatismo, el cortante juego de espanhol, francês, grego, hebraico, inglês, texturas del portugués, que exploró italiano, japonês, latim, náhuatl, russo, el poeta gongorino Gregório de Matos, sânscrito e yoruba), os fragmentos são han servido de base para los mosaicos retoricamente muito elaborados e carac- fonéticos de Livro de ensaios-Galáxias terizados por neologismos, calembures de Haroldo de Campos, aliteraciones interlinguais ou paronomásias, anagra- que se extienden en páginas móviles y mas, aliterações e repetições, ou seja, que no remiten más que a sí mismas, por uma linguagem erotizada no sentido tan endeble es la “vértebra semántica” sarduyano, como já podemos observar que las une. (SARDUY, 2011, p; 27). no primeiro fragmento, “e começo aqui”:

88 A materialidade do texto intensifi- “fimcomeço” do livro), os demais são inter- ca a impressão de expansão: todos os frag- cambiáveis e legíveis em qualquer ordem: mentos são alinhados à esquerda, com o as Galáxias, aparentemente, não têm cen- verso branco, escritos exclusivamente em tro,18 e exigem um leitor ativo e participan- minúsculas e letras latinas, sem pontua- te. A obra pode ser entendida, portanto, ção - lembremos o trecho de Sarduy sobre como um modelo exemplar do que Haroldo a manifestação literária da teoria Steady chamou de “obra de arte aberta” em seu State. E, de fato, o cubano aproxima as ensaio de 1955. Cada um dos fragmentos Galáxias explicitamente a essa teoria num galácticos é autônomo e, ao mesmo tem- comentário dirigido a Haroldo de Campos: po, um espelho do livro completo. A estru- tura mise-en-abyme é refletida, metonimi- La otra teoría cosmológica actual, camente, em vários dos textos: mucho más derridiana, considera que no hubo big bang, que no hay origen, milumanoites miluma- / páginas ou simplemente que a partir de nada se uma página em uma noite que é o crea continuamente en el espacio el mesmo [...] hidrógeno y a partir de allí todo sigue um umbigodomundolivro / um umbi- sucediendo. La única retombée textual godolivromundo posible de esto [...] es tu libro de en- (“e começo aqui”) sayos: galaxia en que no hay centro, ni siquiera por su ausencia, sino a cada ostra crescendo dentro da ostra línea una creación fonética autónoma crosta fechando dentro da crosta / ovo a partir de nada. No se trata pues de gorando dentro do ovo un universo en expansión a partir de (“no jornalário”) un big bang inicial, [...] sino de un uni- verso en estabilidad a creación autó- um arco de outro / arco de outro arco noma constante, sin origen y a partir de outro arco de nada, cuyo soporte funcional es la (“mire usted”) diferencia y cuyo motor la repetición. (CAMPOS, 2004, capa do livro). Galáxias, na sua condição de “um- bigodomundolivro”, pode-se comparar ao Os fragmentos apresentam-se, Aleph borgiano (“El Aleph”, 1945) ou ao assim, como um fluxo de consciência per- “Libro de arena” (1975) do mesmo autor, manente onde conexões causais são difí- a que é recorrido explicitamente no frag- ceis de estabelecer. Quanto à forma do mento “nudez”: livro, gostaria de lembrar que o plano de Haroldo de Campos era, no começo, reali- um livro-areia / escorrendo entre os zar um livro-objeto de páginas soltas, um dedos e fazendo-se da figura desfeita “multilivro manipulável como uma escultu- onde / há pouco era o rugitar da areia ra cinética” (CAMPOS, 2010, p. 273). Foi constelada um livro perime o sujeito Guimarães Rosa quem convenceu o poeta / e propõe o leitor como um ponto de de “não dificultar o difícil” (cf. ibid.). O que fuga este livro-agora travessia / de sobrou dessa ideia é a renúncia de núme- significantes que cintilam como asas ros de páginas, ou seja, salvo o primeiro e migratórias o último fragmento (os dois formantes, o

89 No último fragmento, o final per- formativo do livro, “fecho encerro”, em As constelações da Ursa Maior e que o poeta dialoga com Camões, Goethe da Ursa Menor circulam o peregrino Dante e Dante, o jogo luso-ludo-linguístico, ou quando lhe é concedida uma visão do seja, a artificialização de que fala Sarduy, Paraíso. As Galáxias haroldianas, também é levado ao extremo, revelando a mons- constelações, parecem circular o próprio truosidade (ou bem o diabólico) da lingua- poeta como eixo central do livro, se bem gem e a tentativa fracassada de escrever que em órbitas elípticas. o livro absoluto mallarmaico (cf. CAMPOS, 2004, p. 122): Considerações finais – também aqui acabas aqui / desabas aqui abra- elípticas – e a pergunta pelo nexo cadabracabas ou abres sésamotea- bres [...] colapsas aqui neste fim-de- No caso dos autores discutidos e -livro onde a fala / coalha a mão treme seu “cosmobarroco”, não há como não ter- a nave encalha [...] mastigador de minar esse texto com uma, ou antes, mui- palavras malgastas malagaxas laxas tas “elipses”, ou seja, vazios inevitáveis acabas aquiacabas / [...] sonegador decorrentes da extensão dessa temática de fábulas / contraversor de fadas lo- na obra de ambos autores. Para a conclu- quilouco snobishomem [...] e enquan- são, gostaria de analisar brevemente uma to somes ele te consome enquanto o obra haroldiana que também mereceria fechas a chave ele se multiabre en- ser discutida no contexto do “cosmobar- quanto o finas ele translumina essa roco”: A Máquina do Mundo Repensada linguamorta essa / moura torta esse (2000) - que se difere, porém, dos outros umbilifio que te prega a porta pois o textos já trabalhados pelo seu caráter filo- livro é teu / porto velho faustinfaus- sófico.19 to mabuse da linguagem persecutado Na obra multifacetada de Haroldo por teus / credores mefistofamélicos e de Campos, encontramos, na verdade, vá- assim o fizeste assim o teceste assim rios diálogos entre a poesia e a cosmologia, / o deste e avrà quase l’ombra della diálogos que já se revelam nos títulos dos vera costellazione enquanto a / mente seus livros: Xadrez de estrelas (1976; ter- quase-íris se emparadisa neste multi- mo retomado do Sermão da Sexagésima, livro e della doppia danza do Padre António Vieira), Signantia: Quasi Coelum/Signantia: Quase céu (1979), ou Essa última referência à Divina as já discutidas Galáxias. Um dos primei- Commedia não é completa, falta o últi- ros pontos de aproximação de Haroldo mo verso da terza rima correspondente. de Campos à ciência criou-se, como se As Galáxias, portanto, terminam com uma sabe, pela langage mathématique e a fi- elipse significativa que revela o lugar do gura da constelação em Un coup de Dés poeta no livro: (1897/1914), de Stéphane Mallarmé. Além do seu interesse na cibernética e seus res- e avrà quase l’ombra della vera pectivos diálogos com o filósofo e semióti- costellazione e della doppia danza co alemão Max Bense, há que se destacar que circulava il punto dov’io era. a relevância da obra científica do físico e (ALIGHIERI, Par. XIII, 19- 22). crítico de arte Mário Schenberg para a poe-

90 sia de Haroldo de Campos. Grande parte cançabilidade do “saber total”. A recepção das referências científicas em A Máquina criativa de Dante, Camões e Drummond, do Mundo Repensada baseiam-se, de fato, o jogo com a tradição literária, é o ponto nos estudos de Schenberg. de partida dessa reflexão do poeta senex No caso do poema, publicado no Haroldo de Campos. No último verso, que ano 2000, não se trata somente de um fica isolado dos tercetos, repete-se quatro millenium poem, mas também do último vezes a palavra “nexo”. Recorre ao signi- texto criativo publicado em vida e na fase ficado último, à última instância que une mais filosófica do poeta. Nele, segue pa- todas as coisas. A pergunta por esse sig- tente a tradição designada como “cosmo- nificado último fica sem resposta também poética” por Haroldo de Campos (Campos no umbral do terceiro milênio. Na quinta CAMPOS, 2002, p.: 59), tanto que se per- repetição da palavra elimina-se a termina- gunta pela ordem e a natureza do univer- ção em –o. O que sobra é “nex”, “morte” so. No contexto da poesia latino-ameri- (ou antes “assassino”) em latim. A per- cana, o poema se aproxima, portanto, de gunta pela origem e a natureza do univer- textos como o Primero Sueño (1692), de so precisa ficar sem resposta para o poeta Sor Juana Inés de la Cruz, ou, no século que se encontra ao final de sua vida. De XX, do Cántico Cósmico (1989), de Ernesto qualquer modo, podemos ver A Máquina Cardenal. No primeiro canto de A Máquina do Mundo Repensada como uma reafirma- do Mundo Repensada, que abarca as 40 ção de sua própria poética, caraterizada estrofes iniciais, o poeta tematiza, por por um jogo constante com a tradição lite- meio de uma recepção criativa de Dante rária e a onipresença do tema da viagem. (Divina Commedia, 1321), Camões (Os Ao mesmo tempo, caracteriza-se por uma Lusíadas, 1572) e Drummond (“A Máquina dimensão mais filosófica do que as obras do Mundo”, Claro enigma, 1951), a visão anteriormente discutidas. A pergunta pela do mundo geocêntrica ou ptolomaica. No origem, o bere’shith, presente em toda a segundo canto, que consiste em 39 ter- obra haroldiana, mas nunca formulada tão cetos, de Campos retrabalha de forma claramente como na Máquina do Mundo poética o progresso e os avanços da física, Repensada, converte esse último poema passando por Galilei a Newton, até chegar em seu testamento literário, um “poema a Einstein. Na última parte, que, com 73 tombeau” de um dos grandes poetas do estrofes, é a mais longa do poema, dedi- século XX. ca-se às teorias e modelos cosmológicos mais recentes, como a teoria do Big Bang ou dos buracos negros. Em A Máquina do Mundo Repensada entrelaçam-se, portanto, dife- rentes discursos: um discurso poético-lite- rário, um discurso físico-cosmológico, um discurso místico-cabalístico e um discurso autobiográfico. A alegoria da “máquina do mundo” inicia um diálogo entre os diferen- tes discursos mencionados que termina numa “reflexão sem cura” (MMR III, 105.3 .) sobre o enigma do universo e a inal-

91 REFERÊNCIAS do Mundo”., Iin: Claro Enigma. São Paulo: Companhia de Letras, 2021, p. 105-108. ALIGHIERI, Dante (1957): . Divina Commedia. A cura ECO, Umberto (1973): . Das offene Kunstwerk. Übersetzt di Natalino Sapegno. Milano/Napoli: Riccardo Ricciardi v. Günter Memmert. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1973. Editore, 1957. FERNÁNDEZ MORENO, César (org.). (1978): América ANDRADE, Gênese. (2010): “‘Escrituras que brilham em Latino en su literatura. Coord. e introd. de César Fernández plena noite’: Haroldo de Campos e a literatura hispano- Moreno. 5. Ed. México: Siglo Veintiuno Ed., 1978. -americana”., Iin: DICKick, André (org.): Signâncias: JUNKES, Diana. (2013): As razões da máquina antropofá- Reflexões sobre Haroldo de Campos. São Paulo: Risco gica. Poesia e sincronia em Haroldo de Campos. São Paulo: Editorial, 2010, p. 148-173. Ed. Unesp, 2013. CAMÕES, Luís de (1978): . Os Lusíadas. Edição organiza- KARTA-MANIFESTO-del-Amor-Amor-en-Portunhol- da. por António José Saraiva. Porto: Figueirinhas, 1978. Selvagem. (2008);. Disponível em: http://portunholsel- CAMPOS, Haroldo de (1999): . “A literatura brasileira: uma vagem.blogspot.de/2008/08/karta-manifesto-del-amor-a- literatura menor?”., Iin: Actas do Congresso Internacional mor-en.html Acesso em: 9 de junho de 2017. organizado por motivo dos vinte anos do português no ORS, Eugenio d‘: . Lo barroco. Prólogo de Alfonso E. Pérez ensino superior. Departamento de Língua e Literatura Sánchez. Ed. preparada por Ángel d’Ors y Alicia García Portuguesas da Faculdade de Letras da Universidade Navarro de d’Ors. Madrid: Editorial Tecnos, 2002. Eötvös Loránd de Budapeste, 1999, p. 107-115. PAUL, Arabella.: Neobarroco. Zur Wesensbestimmung Campos, Haroldo de (2000):______. A Máquina do Mundo Lateinamerikas und seiner Literatur. Frankfurt a. Main: Repensada. São Paulo: Ateliê, 2010. Peter Lang, 1993. ______. Campos, Haroldo de (2002): Depoimentos de ofi- PÉREZ, Rolando,: Severo Sarduy and the neo-baroque cina. São Paulo: Unimarco Editora, 2002. image of thought in the visual arts. West Lafayette, Ind.: ______. Campos, Haroldo de (2004): Galáxias. 2ª edição Purdue Univ. Press, 2012. revista. Org. de Trajano Vieira. Inclui o CD isto não é um PIZARRO, Ana.: El Sur y los Trópicos: ensayos de cultura livro de viagem. São Paulo: Editora. 34, 2004. latinoamericana. Alicante: Universidad de Alicante, 2004. ______. Campos, Haroldo de (2006): “a obra de arte RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir.: Mário de Andrade / Borges. aberta”., Iin: CamposCAMPOS, A. de; /PIGNATARI, D.; / Um diálogo dos anos 20. São Paulo: Perspectiva, 1978. CamposCAMPOS, H. de.: Teoria da poesia concreta: textos SARDUY, Severo.: Big Bang. Para situar en órbita cinco má- críticos e manifestos 1950-1960. Cotia, SP: Ateliê Editora., quinas. Pour situer en orbite cinq machines. Montpellier: 2006, p. 49-53. Fata Morgana, 1973. ______. Campos, Haroldo de (2010): Metalinguagem ______. Ensayos generales sobre el barroco. Buenos & outras metas. Ensaios de teoria e crítica literária. São Aires: Fondo de Cultura Económica, 1987. Paulo: Perspectiva, 2010. ______. Obra completa. 1. Ed. Crítica Gustavo Guerrero. ______. Campos, Haroldo de (2013): A ReOperação do Madrid [et al.]: Ed. UNESCO, 1999. Texto. Obra revista e ampliada. São Paulo: Perspectiva, 2013. ______. El barroco y el neobarroco. Dirigido por Daniel CANDIDO, Antonio. (2013): Formação da literatura bra- Link. Con apostillas de Valentín Díaz. Buenos Aires: El sileira: momentos decisivos 1750-1880. 14. ed. Rio de Cuenco de Plata, 2011. Janeiro: Ouro sobre Azul, 2013 SCHWARTZ, Jorge: “Abaixo Tordesilhas!”., Iin: Estudos CRUZ, Sor Juana Inés de la (2007): . Poesía lírica. Ed. de Avançados. São Paulo, vol. 7, no. 17, abril 1993, p. 185-200. José Carlos González Boixo. Madrid: Cátedra, 2007. WROBEL, Jasmin: “‘Partenogênese sem ovo ontológico’. A DÍAS, Valentín. (2011): “Apostillas a El barroco y el neobarro- função catalisadora da discussão sobre o (neo)barroco nos co”., Iin: SARDUYarduy, Severo. (2011): El barroco y el neo- intercâmbios interamericanos”., Iin: Revista Remate de barroco. Dirigido por Daniel Link. Con apostillas de Valentín Males. Dossiê Literatura latino-americana,. Volv. 36, n.1., Díaz. Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2011, p. 37-72. 2016, p. 85-103. DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. (2012): “A Máquina ______. “Dialogando com Dante, Camões e Drummond:

92 Zum Motiv der ‘Weltmaschine’ in Haroldo de Campos’ ‘cos- mopoema’ A Máquina do Mundo Repensada”., Iin: Dietrich BRIESEMEISTER, Dietrich; / Axel SCHÖNBERGER, Axel (org.).: Die Wanderung von Themen und Motiven in die und in den Literaturen der portugiesischsprachigen Welt. Frankfurt am Main: Domus Editoria Europaea /Valentia, 2016a, p. 223-236. ______. “Diálogos cosmopoéticos en la obra de Haroldo de Campos”., Iin: BERNAT, Pasqual Bernat [et al.]: Ciència i Ficció. L’exploració creativa dels mons reals i dels irreals. Barcelona: Ed. Talaitos, 2017, p. 121-130.

93 NOTAS d’Ors. Este último concebe o barroco como uma volta ao primitivo enquanto natureza: “El barroco contiene siempre 1 O presente artigo baseia-se numa comunicação com o en su esencia algo de rural, de pagano, de campesino. Pan, mesmo título, apresentada no marco do “Simpósio Haroldo dios de los campos, dios de la naturaleza, preside cual- de Campos 2017: Transpor as fronteiras na literatura la- quier creación barroca auténtica” (D’ORS, 2002, p. 82). tino-americana”, organizado pelo Centro de Referência Essa crítica de Eugenio d’Ors, porém, pode ser relativiza- Haroldo de Campos e realizado nos dias 23 e 24 de junho da, considerando que Sarduy chama a obra do catalão (Lo de 2017 na Casa das Rosas, São Paulo. Agradeço a todos barroco, 1944) a “mejor gramática en español” do barroco os responsáveis o convite ao simpósio e à colaboração na (SARDUY, 2011, p. 7). Além disso, há de se considerar presente coletânea. Pela revisão do meu texto, agradeço que o próprio Sarduy recorre também a analogias entre a cordialmente à Dra. Adriana Gurgel. natureza e os fenômenos literários que caracterizam, se- 2 Disponível em: http://portunholselvagem.blogspot. gundo ele, o neobarroco. A oposição entre o “natural” e o de/2008/08/karta-manifesto-del-amor-amor-en.html “artificial” estabelecido por Sarduy se explica antes, como (09.06.2017). observa Arabella Pauly, pela recusa da idealização aristo- 3 Uma edição brasileira de América en su Literatura foi pu- télica do “natural” por Galilei, que via o barroco como uma blicada em 1979, pela editora Perspectiva (América Latina perversão da ordem natural e harmônica. Nesse contexto, em sua Literatura, traduzido por Luiz João Gaio). O en- Sarduy opõe-se também à ideia de que o barroco seria um saio haroldiano, com o título atualizado e em português, estilo procedente do esgotamento do classicismo, ou seja, já foi publicado num pequeno livro de mesmo título dois de uma decadência (cf. PAULY, 1993, p. 126-130). anos antes, em 1977, também pela editora Perspectiva. 8 Para ilustrar os primeiros dois mecanismos, Sarduy re- Foi integrado, além disso, na segunda edição da coletânea fere-se, entre outros, ao romance rosiano Grande Sertão: crítica A operação do texto, publicada em 2013 com o título Veredas (1956): “En la exuberancia barroca de Gran ser- A ReOperação do Texto. Usamos essa última edição para tón: veredas [...] son detectables, como sostenes ora- as nossas considerações (cf. CAMPOS, 2013, p. 161-198). torios, los dos procedimientos antes mencionados, pero 4 Sobre o papel do (neo)barroco no intercâmbio literário fundidos en una misma operación retórica: el significado na América Latina, veja meu artigo “‘Partenogênese sem ‘Diablo’ ha excluido del texto toda denominación directa – ovo ontológico. A função catalizadora da discussão so- sustitución-; la cadena onomástica que lo designa a lo lar- bre o (neo)barroco nos intercâmbios interamericanos”. go de la novela –proliferación- permite y suscita una lectu- (WROBEL, 2016). ra radical de atributos, y esta variedad de atribuciones que

5 Recorremos, para a presente texto, principalmente aos lo señala va enriqueciendo, a medida que lo adivinamos, textos sarduyanos “El barroco y el neobarroco” (1972), nuestra percepción del mismo. Llamarlo de otro modo es Barroco (1974) y Nueva inestabilidad (1987), os dois úl- ya abundar en su penoplia satánica, ampliar el registro de timos recompilados na coletânea Ensayos generales sobre su poder”. (ibid., p. 14). el barroco (SARDUY, 1987). No caso de “El barroco y el 9 Em 1974, publicou-se a edição organizada por Gustavo neobarroco”, usamos a edição dirigida por Daniel Link de Guerrero e François Wahl na editora Tusquets, que inclui 2011 (SARDUY, 2011). também os poemários Flamenco (1969) e Mood Indigo 6 Nesse contexto, deve-se ressaltar novamente a condição (1970) e uma secção de “Otros poemas”. No nosso contex- acrônica da retombée: a Contrarreforma a partir de 1545 to, vamos trabalhar com a primeira edição de Big Bang de levou, sobretudo na Espanha, a um retrocesso na ciência. 1973 pela Fata Morgana, que inclui também as gravuras do A ideia do heliocentrismo foi reprovada pela Igreja Católica artista cubano Ramón Alejandro e a versão duplicada dos e a visão do mundo kepleriana, portanto, não deve ter en- textos em francês. trado na consciência dos científicos e artistas do Siglo de 10 Nesse contexto, há de mencionar que Sarduy já formula Oro espanhol (cf. PAULY, 1993, p. 121-122). algumas das considerações teóricas que se relacionam à 7 Sarduy contrapõe o conceito do “artificial” às considera- poética neobarroca em Escrito sobre un cuerpo, de 1969. ções teóricas sobre o barroco do crítico catalão Eugenio 11 Os textos científicos incluem citações de obras referen-

94 ciais sobre teorias cosmológicas do século XX, traduzidas quien plantea esta idea (en relación con la confirmación ao espanhol (e francês), sem estar necessariamente mar- de la literatura brasileña), que sintetiza el modo en que cadas como tal. el Barroco fue sancionado, borrado de la historia del arte 12 Como várias das citações, ela já é usada no romance y el pensamiento, desde su surgimiento y también a lo Cobra, de 1972, com que o poemário Big Bang dialoga largo del siglo XX. Es este secuestro el que hace que toda nitidamente. historia del Barroco sea la historia de una recuperación. 13 Nesse contexto, Rolando Pérez já observa, sobre o termo En el marco de esa historia del barroco, en 1972, Sarduy “Big Bang”: “The scientific name given to accepted cosmo- lanza el Neobarroco (sin saber, aparentemente, que es- logical theory [sic] bears all the traces of linguistic ‘pluto- taba retomando a Haroldo de Campos) y “El barroco y el nismo’ as well as the obvious suggestion of sex – the great neobarroco” adquiere así un carácter de manifiesto defini- cosmic orgasm: a big bang, as it were. After all, in English tivo.” (DÍAZ, 2011, p. 50-51). slang, to “bang” is to have sex.” (PÉREZ, 2012, p. 117). 17 Como nas “Galáxias” não existem números de páginas 14 Sirius A é a principal estrela da constelação “Cão Maior”, para os fragmentos, vamos indicar apenas as primeiras a estrela mais brilhante no céu noturno (sirius, em latim, palavras do fragmento correspondente, conforme o índice significa “brilhante”). Sirius B, a anã branca que acompa- na edição de 2004 pela Editora 34. nha Sirius A, também é chamada de “The Pup”. 18 No meu projeto de doutorado, com o título provisório 15 Cf. Sarduy SARDUY, 1999: 456-457: Cartografias poéticas do século XX: itinerários (textuais) e “Podríamos, formalizándola hasta lo matemático, repre- a relação entre espaço e trauma nas Galáxias de Haroldo sentar como sigue la relación entre ambos personajes: de Campos, pretendo mostrar que as Galáxias dispõem Cobra = Pup2 sim de alguns pontos fixos no tecido estelar e que estes o bien pontos se relacionam a acontecimentos históricos do sécu- Pup = √Cobra” lo XX, ou seja, existe uma dimensão relevante da obra que Rolando Pérez resume a relação entre Cobra e Pup (e as faz referência à realidade exterior do texto. anãs brancas) nos seguintes termos: “Pup is a ‘star’, ‘una 19 Nota-se aqui que, com o estudo cuidadoso de Diana estrella’ in the Lyrical Theatre of Dolls. In the surgical Junkes, As razões da máquina antropofágica. Poesia e sin- operation that is to transform Cobra into a woman, Pup, cronia em Haroldo de Campos (2013), o poema longo ha- the micro-version of Cobra, serves as the transfer recei- roldiano (o “poema-pensamento”, nas palavras da autora, ver of the painful procedure employed to remove Cobra’s p. 267) recebeu o olhar profundo e detalhado que merece. penis. […] Cobra/Pup with his/her penis removed is a white dwarf that has reached the end of his/her evolution. And thus, if he has collapsed as white dwarfs tend to do (Hoyle), he/she has done so by becoming a doll, fixed, cut up.” (PÉREZ, 2012, p. 115-116).

16 Valentín Díaz, nas suas “Apostillas a El barroco y el neobarroco”, de Sarduy, aponta: “Ahora bien, el ciclo del Neobarroco –en el que “El barroco y el neobarroco” ocupa un lugar central- se abre (en 1955) y se cierra (en 2002) [sic] con otro autor: Haroldo de Campos. Si bien la noción comienza a aparecer de un modo disperso desde fines del siglo XIX, 1955 puede considerarse un momento inaugural, con la publicación de un texto breve, “A obra de arte aberta”, en el que el autor brasileño, de un modo más bien indirecto, le otorga nueva validez […]. De to- dos modos, no debe perderse de vista que esta historia es la de un “secuestro”. Es también Haroldo de Campos

95 SIGNO, TRADUÇÃO E CULTURA EM HAROLDO DE CAMPOS: UMA CONDIÇÃO TUPINIZANTE

AMÁLIO PINHEIRO

Pontifícia Universidade Católica - SP

96 É cada vez mais necessário fazer condição de recurso constitutivo da indagações a partir dos fundamentos do sequência”), que é, assim, transferido pensamento poético-tradutório de Haroldo para o campo operacional do dispositi- de Campos, para atualizá-lo num presente vo translatício, sempre que se trate de contínuo ao arrepio da sequência linear da poesia, ou, por extensão, de “informa- história. Isso implica aprofundar os nexos ção estética”. entre o seu conhecimento sobre o signo poético, a tradução poética e o contexto Temos até aqui uma necessária fí- da cultura/natureza do continente latino- sica material do texto poético, que consti- -americano. Com isso se poderão ressaltar tui o intracódigo. Este contém e redistribui, deslizamentos e deslocamentos, no curso em cada idioma, o código universal possí- de sua vasta produção, que mostram os vel e a diferença específica de cada cultura desdobramentos tupinizantes de suas teo- linguística. Haroldo, em muitas situações, rias e práticas de criação. Este texto pre- esclarece (2013, p. 135): “Essa forma tende mostrar um Haroldo vinculado à sua semiótica (o “intracódigo” antes men- condição e circunstância tempo-espacial cionado) não se confunde com o singelo de cultura e natureza, o que expande sua conteúdo superficial, definindo-se, não atuação internacional, e preocupado em obstante, como uma forma significante, elaborar uma espécie de poética da cultura. porque imantada de relevância semântica em suas mínimas articulações”. É justa- 1 mente a recusa do conteudismo simplório Haroldo adota a função poética, que permite a entrada no reino das signifi- via Roman Jakobson, como o lugar de cações incrustadas nas “mínimas articula- projeção do princípio de equivalência do ções”. Haroldo opta sempre por uma física eixo de seleção sobre o da combinação. da “alegria construtiva” (Oswald) inscrita Ou seja, o eixo da substituição metafórica na matéria artesanal do poema, em zigue- recai sobre aquele da contiguidade meto- zague rotatório dos menores elementos nímica: no primeiro, escolhem-se umas sonoros, gráficos, visuais e gestuais até os palavras (ou quaisquer outros signos) em grandes sintagmas. A partir daí, mesmo vez de outras; no segundo, as mesmas pa- reiterando sempre a importância da “fun- lavras são arranjadas (combinadas, mon- ção poética”, o poeta paulistano introduz tadas, encaixadas), por ciência sintática, uma relevante deriva: se em Jakobson nas frases ou versos etc. Haroldo formula- se acentua a separação, via Husserl, en- -o de muitos modos ao longo de sua obra, tre signo e coisa, signo e “realidade” ou sempre a serviço das tarefas poético-tra- signo e referente, em Haroldo, descar- dutórias. Escolhemos uma passagem de tado “o singelo conteúdo superficial”, o “Da transcriação: poética e semiótica da que interessa é uma prolífica e complexa operação tradutora” (2013, p. 89) em que, trama icônico-relacional em vários níveis depois de citar o Jakobson de “Linguística de aproximação entre textos de fora e de e Poética”, diz: dentro, desdobrada justamente pelo intra- código, com suas “mínimas articulações”, É o conhecido teorema jakobsoniano em tessitura, de “forma significante”. da “função poética” vista como “pro- No livro Ideograma (1977), de- jeção do paradigma sobre o sintag- dicado aos estudos de Ernest Fenollosa ma” (“a equivalência é promovida à sobre os caracteres da escrita chinesa e

97 sua relação com a poesia, Haroldo expõe Superam-se então duas tendências: a da as variações, em múltiplos graus de ico- coincidência ou “cópia”, e a da não coin- nicidade (via Peirce), desses estados ou cidência ou “separação”, entre palavra situações de quase-signo (de hipo-icôni- poética e “realidade”. Embora Haroldo cas a simbolóides), em formação conjunta denomine a série poética como forma se- com a natureza/cultura, como espécies de miótica, as bordas da mesma adquirem traduções não referenciais entre textos e molejo em vaivém, e dissipam, por obra texturas cotidianas (o que existe na condi- dos fluidos constitutivos e genealógicos ção de textura viva não serve mais como mútuos e das relações de força, as fron- apenas um simples “referente” do signo). teiras que separariam os extratos sígnicos Ele insiste nos vários graus de comple- daqueles não-sígnicos. A “função estética” xidade entre o signo poético e a multipli- aqui funciona também para fora, ou me- cidade relacional da natureza, dentro de lhor, no âmbito dentro-fora e fora-dentro. um quadro móvel e mutante de proces- Desse modo, a partir desse Haroldo de sos que podemos chamar de iconicizantes. Campos, temos de rever frases como esta Haroldo, entre muitas outras citações so- de Roman Jakobson (1978, p. 177): “Mas bre o tema, destaca: “A natureza é uma como se manifesta a poeticidade? A pala- trama de multíplices tensões dinâmicas” vra é então experimentada como palavra e (1977, p. 44). Tecem-se aí (pois trata-se não como simples substituto do objeto no- de um tecido reticular e minuciosamente meado, nem como explosão de emoção”. entrelaçado) relações de homologia estru- A necessidade de dizer “o que a poesia turais e analógicas entre língua e forças não é” isola-a na autonomia. naturais, entre sistemas digitais e analó- O Prefácio oportunamente incluído gicos, cuja percepção escapa à dualidade na terceira edição do Ideograma, de 1994, signo e referente. intitulado “Fenollosa Revisitado”, traz uma Percebe-se assim um importan- bela amostra dessa tendência crescente, te desvio frente às noções de signo de em Haroldo, de, evitadas as facilidades de Jakobson (mesmo que nunca o tivesse conteúdo e as emotividades melífluas, va- mencionado), hauridas em Husserl: ao lorizar a trama entre poesia, cultura e na- invés do acento na “intencionalidade” da tureza. Haroldo cita aí o professor e poeta autoria que coloca, através de uma “redu- japonês Shutaro Mukai, que ressalta tam- ção eidética”, o mundo “entre parênteses”, bém, a partir dos kanji, por sua resolução para separar, via procedimentos de desau- gráfico-pictórica, “a contribuição pioneira” tomatização, a linguagem poética da ordi- de Fenollosa: “Enquanto as línguas oci- nária, Haroldo parece cada vez mais ir op- dentais tenderiam à anemia, o kanji, em tando por um caminho em que a palavra contraste, continua até hoje capaz de ab- poética (e todos os demais processos cria- sorver a energia poética da natureza, ra- tivos de elaboração dos “intracódigos”) diando exuberantemente com brilho-sen- desdobra intertraduções complexíssimas tido”. Ou então: “os gestos originais ainda entre poesia e natureza/cultura (Não é o permanecem em sua forma original ou caso aqui de mostrar como esse viés apro- num eco dessa forma”. Mais ainda: nes- xima-o muito mais da potência de alegria sa “reconsideração das bases e da signifi- nas composições de relação de um filósofo cação da linguagem analógica”, ocorreria materialista como Espinosa e da noção ra- uma reavaliação das “formas rítmicas de dical de “série cultural” em Tinianov). vida, inclusive os gestos e a percepção vi-

98 sual” (1994, p. 18-19). Vemos aí o realce Stegagno Piicchio, quando a mesma louva, posto sobre as comissuras (linhas de jun- por exemplo, a obra de Manuel Botelho de ção) entre os signos e as coisas (fatos e Oliveira, “contemporâneo de Gregório [...] acontecimentos da paisagem da cultura), constantemente depreciada pela renitência sobre as dobradiças de linguagem (em do preconceito contra essa propensão lúdi- seus vários graus móveis em ziguezague ca da estética barroca”: de iconicidade), como eixos que represam, nas formas poéticas, as formas da cultu- Luciana fala de uma ‘exasperação sen- ra/natureza. O dito intracódigo materializa sorial barroca’, fixada, ‘com delibera- gestos de relação viva entre o mundo dos da ingenuidade sobre o paladar’, num sujeitos e da natureza. poema enumerativo, que faz o elogio de iguarias, peixes, plantas e frutas da 2 terra, e onde [...] têm ingresso nomes indígenas cujo acesso à poesia fora até Isto nos leva um pouco para além da crí- então interdito pela ‘musa aristocráti- tica de Jakobson, de extração husserliana, ca’. Interdito é a palavra certa, pois se às funções emotiva e referencial. Haroldo tratava de impedir o amotinamento (1989) tinha-se servido muito bem desta possível a partir do gesto de gozo eró- para liberar Gregório de Mattos do enqua- tico-frutal e alimentar (“barroquismo dramento “linear-ascencional”, “orgânico- culinário [...] que um “Lezama subs- -evolutivo”, do pretenso “espírito nacional”, creveria gostosamente”); uma relação qual “morada auroral do logos” trans- entre boca e paisagem feita de enxer- posta do Ocidente centro-europeu para a tos por entre as letras e sílabas, ao América Latina. O poeta baiano não cabia modo de ritmo e escansão labiopala- em tal tentativa de essencialização do na- tal. (1989, p. 98-100). cional, visto que trazia à tona uma rebelião pelo lúdico-erótico (Afonso Ávila) a muitas Esse tema seria desenvolvido por Lezama vozes, vozes pluri-históricas, a-históricas e Lima a partir das primeiras crônicas frutais a contrapelo da história. “O ‘ludismo’ e seu no continente. “O barroco, no americano repertório de invenções formais é consti- nosso, é o festejo da algazarra excessiva tutivo do Barroco, inarredável dele” (1989, da fruta” (1981, p. 134). Haroldo (1971, p. 98), diz Haroldo. Isto se acentua quan- p. xxxi) vê aproveitamento semelhante do os poetas, como Gregório, aumentam o em Oswald de Andrade, com seus “verda- uso de palavras tupis, tupinizantes e afri- deiros desvendamentos da espontaneida- canizantes, caboclo-imigrantes, desenca- de inventiva da linguagem dos primeiros deando gradações de iconicidade relacio- cronistas e relatores das terras e gentes nal com as séries extratextuais. Gregório, do Brasil”, “em cápsulas de poesia viva” para Haroldo, aproveita-se de um grande sobre o contexto e a nova paisagem à épo- Projeto barroquizante inscrito de partida ca da descoberta: “A esta fruita chamam nas séries da cultura (iguarias, afrotupi- Ananazes / Depois que sam maduras têm nismos etc.), e transferido para os poe- um cheiro muy suave”. Esses elementos mas, que se constitui como uma rebelião de deglutição tradutória através da pai- pelo riso, pelo lúdico e pelo erótico, fora sagem explodem nos Manifestos poéticos da história oficial. Daí o apreço haroldia- oswaldianos (1971, p. 15): “Bárbaros, pi- no por estudiosos como a italiana Luciana torescos e crédulos. Pau-Brasil. A floresta

99 e a escola. A cozinha, o minério e a dança. Mattos procede igualmente de ma- A vegetação. Pau-Brasil”; “Contra o gabi- neira comparável à Sor Juana Inés de netismo, a palmilhação de climas”. la Cruz (1651-1695), que empregava Pode-se ir constatando de modo vocábulos extraídos do léxico náuatle crescente, ao longo da produção haroldia- em algumas de suas composições na, que, se nos kanji chineses os pictogra- mas captam a energia e o brilho da natu- O termo tupi vale como uma ba- reza, nas aglutinações caboclas do tupi, o teria incorporativa das possibilidades as- que represa a paisagem de fora, em som similativas do código. Por isso mesmo não e imagem, é o fonograma. Esses fonogra- dispensa a tradição clássica nem as contri- mas são sinais gráficos que trazem colada, buições vanguardistas, mas as readapta e como um fóssil em pesa-papeis, a imagem insere na tessitura de antemão mestiça. A sonora e o movimento da série extratex- presença da voz indígena, junto a todas as tual que designam; esta passa a intratex- demais oralidades afro-indígena-imigran- tual ao mesmo tempo, ao primeiro olhar tes em rotação e contágio, modifica a con- do leitor, de chofre e reciprocamente. As dição do signo, que passa a embeber-se vozes de sujeitos falantes tupi-caboclizan- do que está em formação e morfose fora tes, afro-caboclizantes, caboclo-imigran- dele. Noutro lugar, Haroldo já relacionava tes, invadem com seu excesso lúdico de mestiçagem e quebra dos gêneros como gozo e subversão as instâncias simboloi- um fenômeno já estabelecido nas primei- des da habitualidade digital normativa que ras províncias: “Gregório [...] leva a mis- sustentam as estruturas do Uno no signo. cigenação própria do período até a textura Isto quer dizer que forças analógicas de mesma da linguagem, entremeando nela, fora-do-sujeito invadem, pelo fonograma, para efeitos de contraste e de grotesco, o texto poético. Gregório não está sozinho: vocábulos tupis (indígenas) e africanos, valeria aproximadamente o mesmo para numa jocunda operação de caldeamento poetas como Juan del Valle y Caviedes, linguístico-satírico” (1979, p. 296). Era Hernando Domínguez Camargo, Rosas de própria do período porque o mesmo suce- Oquendo e muitos outros, em que o ele- dia com os barroquismos nas igrejas, na mento afro-indígena, seja tupi, incaico ou culinária, na ourivesaria etc. Quer dizer, azteca (junto a todas as interespecíficas quanto mais o signo poético, radicalizando mesclas e transferências situacionais e en- o artesanato do intracódigo, parece afas- dêmicas), com sua capacidade deglutidora tar-se da chamada “realidade”, mais se e aglutinante, incorpora alimentarmente a embute de camadas de séries naturais/ paisagem. Conforme vai dizendo Haroldo culturais da mesma, aí agindo e fermen- (2001, p. 96): tando todo o caldeirão/crisol em ebulição negro-índia. Estavam dadas as bases, O caso do brasileiro mazombo Gregório portanto, não só para a incorporação ca- de Mattos não é isolado. [...] Fazendo nibalesca dos gêneros tradicionais e clás- de sua língua uma mestiçagem de sicos, mas para a montagem de gêneros português, de espanhol, de jargão múltiplos, a partir da relação, trazida para latino-jurídico e – no caso de vários a textura das linguagens, entre culturas sonetos particularmente impressio- primitivas ainda muito vivas e processos nantes – do vocabulário tupi-guarani tecnológicos vindos de fora (CAMPOS, e de palavras africanas, Gregório de 1971, p. xxxiv). Não seria esta a maior

100 insurreição, como um ato de “contra-con- que contém os ritmos e respiros plurais da quista” (Lezama Lima), pouco legível por- natureza/cultura feita paisagem. Ou, con- que constelar, palimpséstico e calidoscó- forme o mesmo Lezama: “Sentado dentro pico (contendo oxímoros, palíndromos e de mi boca asisto al paisaje”. Não há mais paronomásias de todo tipo), ao arrepio separação entre palavra e paisagem; não das formas de comunicação dominante em há como falar e escrever sem essa onça. qualquer época? A presença desse sujeito César Vallejo: “Quiero escribir, pero me falante múltiplo vindo de fora (das coisas siento puma, / quiero laurearme, pero me da natureza e da cultura) invade progres- encebollo”. Os estudos do peruano Pedro sivamente as falas de Haroldo de Campos, Granados sobre Vallejo, Húmeros para sem nenhum prejuízo do artesanato inter- bailar (2014), são uma bela amostragem no do poema, mas sim motivado por este de como, junto a tantos outros procedi- próprio artesanato em marchetaria móvel. mentos, a tradição musical e dançante Uma citação de Lezama Lima (1988, p. da Lima das primeiras décadas do século 135) dá conta desse som-imagem enxer- XIX invade as sílabas e entressílabas dos tado de paisagem, que diferencia, inclu- radicais poemas do livro Trilce (a come- sive, o barroco latino-americano, como çar deste próprio título, espécie de, entre construção da alegria e salto vertiginoso outras coisas, grito de ave na costa do no desconhecido, das práticas gongorinas Pacífico). A mestiçagem dos materiais de do barroco espanhol: base da cultura, impregnada de natureza, apresenta-se nas falas e nas escrituras, o americano não recebe uma tradição via fonopictogramas. Basta, a um olho-ou- verbal, mas a coloca em atividade, vido atento, escandir palavras aliterantes com desconfiança, com encantamen- e paronomásticas como pororoca, jururu, to, com atraente puerícia. Martí, Darío quimbombô, em que ondas coloquiais de e Vallejo lançam seu ato nascente imagem e som circulam, dançantes, nos verbal, rodeado de ineficácia e de melismas vocais intersilábicos. Veja-se palavras mortas. O sentencioso pode um exemplo simples em Jorge de Lima: tornar-se taciturno, o reflexivo pode “Comer efó, / pimenta, jiló! / Iaiá me adormecer no fiel da balança. Mas o coma, sou quimbombô!”. Não há por que americano, Martí, Darío ou Vallejo, que insistir mais na separação entre linguagem foi reunindo suas palavras, concentra- poética e ordinária. Pois a separação é de -se nas exigências da nova paisagem, segunda ordem diante da relação inclusiva trocando-as em corpúsculos coloridos. e intrínseca. Em todo americano há um gongorino manso, que explode seu verbo quando 3 passa o vinho, confortável, não trágico Nessa direção, é marcante o texto, como o espanhol, no batizado ingênuo já citado, de 2001, “Le baroque: la non- ou no dia que naufraga deliciosamente -enfance des littératures ibéro-americai- em afetos aljofarados. nes – une constante et une perdurance”, cujas noções fundantes, da não-origem e A palavra já como tecido sarapin- da permanência do barroco ibero-ameri- tado de paisagem. A fala/paisagem incrus- cano, por si só, desviam-se do título ge- tada nos espaços intersticiais da palavra. ral da coletânea, Résurgences baroques. A fala que interessa só pode ser aquela Menos do que uma produção linear-pro-

101 gressiva de sujeitos humanos na história, destoam do título da seção que seu arti- produção que, por epocal, desapareceria go abre, chamada apequenadamente de e reapareceria contingencialmente após “Transferts des Amériques”): seu ponto culminante, este barroco é visto como uma constante atividade pro- A permanência do barroco ibero-a- dutiva das linguagens imersas de modo mericano é um dispositivo operatório complexíssimo na natureza e na cultura, capaz de diferenciação modal no ma- fornecendo-nos um código especialíssi- nejo desse código estilístico univer- mo para o manuseio específico do modelo sal. Esta diferenciação se manifesta universal. Daí que esta espécie cafuza de em muitos níveis; por exemplo, no transbarroco sirva de combate contra toda nível da mescla linguística, no nível tentativa de leitura “orgânico-ascencio- dos dados da natureza exuberante e nal“: “Ao modelo descritivo de um percur- ornamental dos trópicos e no nível do so teleológico e ontofânico que atingiria contexto específico da vida colonial. a parusia do “Espírito” ou da “Alma” (do Esta permanência, a partir do panora- logos) brasileiro, pode-se opor um outro ma histórico do século XVII, assume a modelo de leitura de nossa história lite- condição de uma verdadeira constan- rária, nem substancialista, nem orgâni- te formadora da sensibilidade artís- co-evolutivo ou linear-positivista” (2001, tica latino-americana. (2001, p. 96). p. 94). E, depois de percorrer inúmeras formatos e procedimentos das artes indí- Ora, não são simplesmente genas, em que destaca o refinamento no “transferências das Américas”, porém có- tratamento dos corpos, materiais e mitos digos de saída barroquíssimos (neobarro- (veja-se a arte plumária), esclarece: “De cos, transbarrocos...) colados a um proto- fato, parece-me justo dizer que, para nos- -barroco da natureza/cultura (Aleijadinho, sas culturas ibero-americanas, o barroco é Churriguera, Kondori etc.) que incorpora de chofre uma não-origem” (2001, p. 94). devorativamente os outros e os foras he- Trata-se, na verdade, da vertigem tradu- terogêneos (mesmo os centro-ocidentais) tória do salto incorporativo de inúmeras dentro do seu espaço/tempo alteridades situadas na abertura criativa da cultura e da natureza. Não são apenas Daí a mestiçagem, o fusionismo – por temas indígenas, mas uma “bateria tupi”, vezes híper-barroquizante, como quer conforme veio a denominar Oswald de Lezama Lima – entre os elementos Andrade (ou quíchua, náuatle etc), que se europeus e os elementos indígenas e interna por dentro dos corpos e materiais, africanos no contexto ibero-america- fornecendo-lhes campos de composição no, onde atua nosso manejo diferen- festiva de relações em todos os níveis. cial do código de possíveis dessa esti- Muito importante um trecho do mesmo ar- lística universal. (2001, p. 95). tigo (2001, p. 96), em que Haroldo espe- cifica a complexidade operatória diferen- A prática poética desse “disposi- ciadora dessa bateria (conjunto de fatores tivo operatório” do barroco latino-ameri- conexos) caboclo-imigrante (que devora cano, que fermenta “nosso manejo dife- “plagiotropicamente” as linguagens im- rencial do código de possíveis”, age, ao portadas) a partir dos expandidos códigos mesmo tempo, ab initio, de golpe, nos barrocos (de quebra, os grifos do autor já três níveis: da mescla de repertórios, da

102 natureza exuberante e do contexto cultu- impensável ocidentalmente.[...] Tais ral. Interessa agora muito mais mostrar elementos existem há séculos, e são a interação de todos os níveis do que in- aceitos inclusive pela língua acadêmi- sistir na separação entre linguagem poé- ca na forma de nomes (Anhangabaú, tica e ordinária. As teorias de Jakobson/ Pindamonhangaba). Os elementos Husserl já não funcionam a contento nos bantu igualmente multidimensionais lugares e situações em que fala cotidia- foram manipulados, tomando-se o na, paisagem cultural e linguagem poética “-o” final por masculino e o “-a” final impregnam-se em gradações relacionais por feminino (mocambo, umbanda). de iconicidade. Isto porque não cabe mais [...] O pensamento ocidental, em sua aqui “a redução eidética, que coloca entre tentativa de romper a unidimensiona- parênteses todos os fenômenos e proces- lidade, recorreu aos porte-manteaux sos particulares com a finalidade de se al- sugeridos pelo grego e alemão [...] e cançar a essência” (MORA, 1965, p. 542, aos ideogramas japoneses (em Ezra tomo II). Pound), por exemplo). A burguesia brasileira, alienada e voltada para 4 o Ocidente, tomava conhecimento Falando-se da mescla de línguas destes esforços. Pois repentinamen- que alimenta, desde as Províncias colo- te descobria que, para buscar porte- niais, o falado e o escrito, é preciso acres- -manteaux, não precisava viajar até a centar, ademais, que, ao nível fonogrâmi- Grécia, e, para buscar ideogramas, não co, que respeita ao som/grafia, junta-se o precisava viajar até Pound, mas nível aglutinante, que respeita à sintaxe e que, em ambos os casos, bastava to- quebra a unidimensionalidade linearizan- mar um ônibus municipal de São Paulo. te da frase. Vilém Flusser (1998, p. 156- 160) chama a atenção para essa base de Digamos que Haroldo ia e vinha pensamento e criação multidimensional da de Pound (Fenollosa, Mallarmé, Joyce “língua brasileira”: etc), porém sempre na companhia das palavras-ônibus de São Paulo e do Brasil. Elementos tupi (e de outras línguas E na companhia do que se fazia de mais indígenas) e bantu (e outras lín- instigante poeticamente na América Latina guas africanas) penetravam a língua. desde a Colônia. O paideuma internacio- Embora não exista o mínimo paren- nalizante se deixava traduzir pela bateria tesco entre os dois tipos de língua tupi-imigrante multidimensional. Desse (indígenas e africanas) [...] essas modo expande a importância poética dos línguas têm estrutura inteiramente elementos mestiço-imigrantes, em crisol e diversa da indogermânica e semítica, ebulição no continente, pela tradução in- a saber: aglutinante. A rigor não for- terna mútua do macro no microestético. mam sentenças, mas blocos de pala- Assim o poeta-tradutor inscreve os planos vras aglutinadas por sufixos, prefixos temático-semânticos dentro dos microin- e infixos. As situações que dão senti- tersticiais (fonogrâmico-sintáticos) e daí do a tais blocos podem ser captadas no conjunto dos elementos ou linhas de por línguas ocidentais apenas aproxi- força extratextuais contidos nas séries madamente e de maneira deturpada, culturais do cotidiano (Tinianov), em que e o universo de tais línguas é a rigor se elabora, com a participação rotatória

103 das multidões anônimas, o “grande livro da palíndromo, por suas rimas internas pro- vida” ou a “féerie populaire” (Mallarmé), gressivo-regressivas em paronomásia, por sempre contra a ordem oficial do discurso suas sílabas como encaixes de bordado e e da história. Flusser (1989, p. 161) pode, canto melismático, traz para a boca que a a partir do jogo da língua, entrever: soletra o encontro estrondoso das águas do rio e do mar. As melopeias poundianas A revolução linguística brasileira ates- de Homero já estavam presentes nas es- ta, no seu aspecto mais profundo, o truturas léxico-sonoras e imagético-sintá- surgir do novo homem, a saber, de ticas dos fonogramas aglutinantes usados um homem não-histórico (multidi- fartamente na linguagem coloquial e ca- mensional), para o qual a história bocla de todos os dias. Os poetas as em- (o discurso), não passa de uma das butem e reacomodam dentro dos poemas, dimensões em que se pensa e vive mantendo sua energia vital, vocal e festei- – portanto, um homem que sinte- ra de rua. Mais do que apenas “reproduzir tiza história e não-história em sín- o ímpeto das ondas”, a chave musical po- tese que não é tese de um processo roroca, qual linha de junção fonogramáti- seguinte. [...] Ser brasileiro é tarefa ca, faz explodir eletricamente a paisagem de poiesis, do engajamento criativo. de fora, ao modo dos pictogramas kanji, dentro da palavra-poema. Trata-se de um 5 salto vindo do mundo analógico, em meta- A interação entre os níveis te- morfose, que rompe a estrutura digital da mático-semânticos e as iconicidades mi- palavra como autônoma, estável e abstra- croestéticas se aprofundam em análises ta. Serve de modo contundente para todo como aquelas feitas, junto com Augusto esse repertório lexical aglutinante e mes- de Campos, em ReVisão de Sousândrade: tiço ligado aos sons da natureza (sem falar a “insurreição sonora”, via “mosaico idio- na permutabilidade de sufixos, prefixos e mático” barroco-jornalístico do poeta ma- infixos como rana, oca e tantos outros), ranhense (1982, p. 86-7), valia-se, para o elogio dos Campos (1982, p. 96-7) às os irmãos Campos, de toda uma orques- montagens, a partir de “compostos híbri- tração sintático-onomatopaica de extração dos”, em Sousândrade: lusohispanotupiquíchua, que refunde os anglicismos, grecismos, neologismos, tec- Acionam a linguagem, substituindo- nicismos etc. dentro de um almoxarifado -lhe as partes fracas ou gastas, no- comprimido de signos com alta voltagem minalizando adjetivos, introjetando poética. Não por acaso uma das seções substantivos no bojo de ações verbais, de O Guesa, de Sousândrade, intitula- rompendo enfim a morosa expectativa -se “Tatuturema”, contendo um “Pequeno do fluxo de signos, regido pela con- glossário de termos indígenas” (1982, p. venção preestabelecida do discurso, 275-8). A respeito de sonoridades gregas, com verdadeiros blocos autônomos: os Campos mencionam (1982. P. 93-4), palavras-ilhas, palavras-coisas, carre- citando Pound, a “magnífica onomato- gadas de eletricidade. peia” de Homero “que reproduziria ‘o ím- peto das ondas da praia e seu refluxo’”. São, como muito bem esclare- A propósito, a nossa pororoca, por suas ce Julia Kristeva (1978, p. XI-XVI), “ex- aliterações explosivas de vocalidade em periências simbólicas limites, o desejo, o

104 gozo”, não “afetadas pelo que, na socie- ma significante) e a natureza encharcada dade e na significância, é da ordem da es- de cultura, em contínua troca e morfose. tabilidade, do status quo, da permanência Há aí, em verdade, uma tradução de baixo (mito, parentesco, etiqueta, narração)”. pra cima, que revira os signos de cabeça E, em seguida, criticando a influência da pra baixo como um xaxim, onde os reinos fenomenologia husserliana na maioria dos ou séries do vegetal e do mineral se en- chamados formalistas russos e no Círculo redam; em que não só os sujeitos atuam, Linguístico de Praga: “A fenomenologia e a mas todos os processos constitutivos de visão dos sistemas significantes que lhe é formação do idioma. O momento do vol- tributária estão esgotadas. Uma nova teo- tar-se para a materialidade do signo se ria da atividade simbólica do sujeito falan- perfaz, sem antítese, simultâneo ao vol- te só pode estar além da fenomenologia”. tar-se para a materialidade das coisas da No caso latino-americano e deste Haroldo natureza/cultura. Lezama (1985, p. 180) de Campos, ou de um Lezama Lima, só sempre insiste nesses fonogramas musi- pode estar aquém, pois se trata de onças/ cais e alimentares pré-silábicos, forneci- frutas/sujeitos falantes. Ou, como diria dos pela relação entre fala e paisagem: César Vallejo: “Índio antes del hombre y “Masticar um cangrejo y exhalarlo por la después de él!”. Isto é, índio entre, como punta de los dedos al tocar el piano”. O tessitura, no cerne vocal antes da palavra. que interessa muito mais, desde a chega- da de Colombo, são as “substâncias ade- 6 rentes”, aquilo que, em outro lugar, ao fa- É importantíssima a insistência nos lar das frutas, o poeta cubano denomina intracódigos, para que, na tradução trans- como “las muscíneas de los comienzos”, criativa haroldiana, nos liberemos, confor- visgo frutal e cantante agarrado às entres- me Benjamin, “da transmissão inexata de sílabas. um conteúdo inessencial”. Haroldo (1987, Daí o teor do diálogo crítico com p. 147) reitera sempre como a tradução Benjamin, que privilegiava, ainda que “iro- nicamente”, um retorno auroral/adâmico à aponta para o resgate e para a recon- “língua pura” como “língua verdadeira” ou figuração do ‘intracódigo’ que opera “língua da verdade”, esta que na poesia de todas línguas como um ‘universal poético’[...]esse intracódigo absorve e absolve todas as inten- seria o espaço operatório da função ções das línguas individuais desocul- poética de Jakobson, a função que se tadas dos originais, e nesse sentido volta para a materialidade do signo arruína a tradução como um proces- linguístico. so que contribui fragmentariamen- te para esse desvelamento [...], Já vimos como, tratando-se de já que inscreve a tradução na sua pictogramas e de fonogramas, o que há transparência, na sua plenitude de é uma relação de tradução icônica da na- significado último, operando -a re tureza/cultura em vários graus de aproxi- conciliação do imanente com o trans- mação/diferenciação, um movimento pla- cendente. (CAMPOS, 2013, p. 152). giotrópico (Haroldo) que se dá não só de texto a texto, mas entre texto e língua e entre texto (sempre o intracódigo, a for-

105 Haroldo responde com um devir prática dialógica e capacidade de dizer luciferino que contesta a “função angeli- o outro e dizer a si próprio através do cal”, a partir de uma posição cultural de outro, sob a espécie da diferença. devoração antropofágica, contra “essa substancialização idealizante do original”. Tal derivação tradutória posicional Haroldo pontua a sua posição política de se acentua, a partir dos fonogramas e do transcriador (2013, p. 153): excesso repertorial de vozes dissonantes, que traduzem, por montagem paronomás- então teremos transformado a “função tica e aliterante, a coisa, o outro, a tra- angélica” do tradutor de poesia numa dição e a própria tradução, através, repi- empresa “luciferina”, apresentando-a ta-se com Haroldo de Campos, do nosso diante do original não como mensa- “manejo diferencial do código universal de geira do significado transcendental da possíveis”. Nesse “manejo diferencial”, pro- “língua pura”, mas luciferinamente, cesso lúdico-erótico “eversivo”, atua, por como différance , como presença dife- dentro e por fora, o conjunto de fatores e rida e diferença em devir. [...] ao invés repertórios mestiço-tupinizantes. Situa-se de render-se à ameaça da danação, aqui o que Oswald de Andrade (1970, p. do silêncio que pesa sobre o tradutor 5-19) chamava de “inocência construtiva”: como um interdito, mas do que jupite- “o instinto caraíba”. “O contrapeso da ori- rino, jeovaico. ginalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.” “Tupi or not tupi, that is the Para transformar o pretenso original na sua question.” Esta substituição fonogrâmica tradução, é fundamental essa mudança de (“to be” por “tupi”) do famoso verso sha- posição categorial, do original para a tradu- kespeareano implica uma deglutição tradu- ção situada na cultura, repropondo segui- tória miúda e gozosa, uma reversão, em damente, sob a forma de um arquipélago termos antropofágicos, da lógica binária, de variantes barrocas, qualquer tradição linear e digital da história centro-ocidental (CAMPOS, 2013, p. 135 e 199-200): (CAMPOS, 2013, p. 200-1):

A tradução pode ser vista como um ca- Todo passado que nos é “outro” me- pítulo por excelência de toda a teoria li- rece ser negado. Merece ser comido, terária, na medida em que a literatura é devorado – diria Oswald. É uma atitu- um imenso “canto paralelo”, desenvol- de não reverencial perante a tradição: vendo-se no espaço e no tempo por um implica expropriação, reversão, desie- movimento “plagiotrópico” de derivação rarquização. Não por mera coincidência não linear, mas oblíqua e muitas vezes pode aqui ser lembrado mais uma vez eversiva. É esse movimento incessante Lezama Lima, que procurou ler o passa- e sempre outro que explica como uma do (a História) também de certo modo tradição é reproposta e reformulada “devorativamente”, como uma “suces- via tradução. [...] Barroco, na literatu- são de eras imaginárias”, repensáveis ra brasileira e em várias literaturas la- por uma “memória espermática”, apta tino-americanas, significa, ao mesmo a substituir os nexos lógicos por sur- tempo, hibridismo e tradução criativa. preendentes conexões analógicas. Tradução como apropriação transgressi- va e hibridismo (ou mestiçagem) como

106 Daí a marca diferencial e alterada lacional, como inúmeras linhas d’água que do barroco na cena do continente: a radi- represam as séries culturais. Barroco de calização dos códigos múltiplos externos partida e tradutório de partida, “irredutí- dentro dos intracódigos em marchetaria já vel a seu modelo europeu”, “essa prática desloca, por provisoriamente desnecessá- diferencial articulada a um código univer- rio, aquele problema da separação entre sal é também, por definição, uma práti- função cognitivo-referencial e função poé- ca tradutória” (CAMPOS, 2013, p. 199). A tica. Por isso mesmo, Haroldo retoma, em prática tradutória particular e laboratorial 1997 (2013, p. 208-9), “a partir da óp- “in vitro” é um viés da prática tradutória tica de um país periférico”, o que já dis- transcultural “in vivo”. Tal iconicidade rela- sera no Prefácio de A operação do texto, cional, de vários graus, repercute sempre em 1975 (2013, p. 12): “Tradução como nas falas que retratam os fundamentos transcriação e transculturação, já que não barroquizantes da cultura/natureza, como, só o texto, mas a série cultural (o ‘extra- entre tantas, a de Jorge Enrique Adoum: texto’ de Lótman) se transtextualizam no “nossa selva é churriqueresca vegetal”; ou imbricar-se subitâneo de tempos e espa- em Lezama, quando menciona “a grande ços literários diversos”. Sarduy mostrara, lepra criadora de Aleijadinho” e os mosai- na série da linguagem cotidiana (Tinianov) cos incaicos do índio Kondori etc. a relação entre múltiplas vozes e descen- tramento marginal (“perda do algures 7 único”): “Quando o falar cubano se agita, Um ponto alto de todo esse ro- há várias línguas, várias civilizações que teiro haroldiano está na análise do con- se expõem, e o centro não está em par- to de Guimarães Rosa “A Linguagem do te alguma”. A maleabilidade da linguagem Iauaretê” (1976, p. 47-53), em que a popular, já mesmo na Espanha, separa- metamorfose do onceiro em onça se faz ra então a Geração de 27 (García Lorca, acompanhar de uma fala “mosqueada de Jorge Guillén, Rafael Alberti etc) das cha- nheengatu” que é, ela mesma, um alinha- madas vanguardas históricas (preocupa- vo implícito da fala/escritura de uma onça: das estas muito mais com o rompimento frente à tradição). Na América Latina, a Para ver como funciona o processo, profusão mestiça de repertórios aprofun- basta atentar para o fato de que o ti- da o processo de traduções interculturais greiro, em seu rancho encravado em em meio à grandiosidade superabundante plena “jaguaretama” (terra de onças), da paisagem. Lezama (1988, p. 221) dá a enquanto conta, para seu hóspede pista: “O único que cria cultura é a paisa- desconfiado e que reluta em dormir, gem e isso o temos com monstruosidade histórias de onça, está também falando magistral, sem que nos percorra o cansaço uma linguagem de onça. Interjeições e dos crepúsculos críticos”. É o que o poe- expletivos, resmungos onomatopaicos, ta cubano chama de “forma em devir” na interpolam-se desde o começo de sua paisagem. A potência analógica da paisa- fala (“Hum? Eh-eh”... “Ã-hã”... “Hum, gem atua como um “sujeito metafórico” hum”... “”n’t, n’t”... “ixe!”... “Axi”... que se intromete por entre os dígitos se- “Hã-hã”...) e se confundem com (ou quenciais discretos do sujeito digital (“Que se resolvem em) monossílabos tupis día a día el escriba amaneciese palmera”). incorporados ao discurso Tal processo adensa aquela iconicidade re-

107 Haroldo levanta uma diferença síveis”, ninguém pode pronunciar, soletrar fundante entre as vanguardas europeias e ou escrever palavras-coisa como “jagua- latino-americanas. Se a revolução joycea- nhenhém” impunemente: Ela “toma conta na da palavra se dá (Haroldo cita Sartre) do onceiro”, de Haroldo de Campos e de “pela contestação da linguagem comum”, a todos nós, quase-índios, ou seja, curibo- rosiana se dá pelo aproveitamento radical cas, caboclos em tradução coletiva. de uma linguagem já incomum, tupinizada, primitivo-atual, encravada como vastíssi- ma marchetaria de fonogramas no vozerio da paisagem:

Assim, o nheengatu – de que Guimarães Rosa se vale certamente pela sua carga telúrica e pela sua enig- mática familiaridade para os ouvidos brasileiros acostumados com tupinis- mos [...], intervém no texto para mar- car o tema da onça e, quando o texto é por ele corroído, a ponto de ser lido como um quase-tupi ou um grau de aproximação estocástica ao tupi ver- dadeiro, então esse tema da onça en- contra também sua resolução natural, ao nível da fabulação, na metamorfose (vista por dentro, do ponto de vista linguístico, intrínseco) do onceiro em onça. (Ibid., p. 47-53).

Haroldo insiste tanto e de tal modo nas variantes, micro e macroestéticas, tu- pi-onceiras (recorre a dicionários, propõe glossário, investiga terminologias, escara- funcha significados e significantes, consul- ta o próprio Rosa), reproduzindo e inter- calando, “transcriando” a seu modo longos trechos galacticamente tupi-rosianos, na verdade haroldo-tupi-rosianos, que termi- na por participar ele próprio da transfigu- ração: “estas partículas são como que o fungar e o resbunar da onça, são o ‘jagua- nhenhém’ que toma conta do onceiro”. Diz, na nota 4: “Um levantamento completo do glossário tupi usado direta ou veladamente nesta ‘estória’ seria bastante revelador”. Na nossa “prática diferencial do código de pos-

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109 Gestão Realização