Haroldo De Campos, Tradição E Paralelismos Com a Poética Borgiana Jorgelina Rivera1

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Haroldo De Campos, Tradição E Paralelismos Com a Poética Borgiana Jorgelina Rivera1 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/10.1590/2316-40185420 Haroldo de Campos, tradição e paralelismos com a poética borgiana Jorgelina Rivera1 Breve contextualização2 No Brasil, segundo Schwartz (1993), a figura reinante no campo da literatura na segunda década do século XX era Oswald de Andrade, principal agitador do Modernismo brasileiro. Em 1928, publica-se o “Manifesto Antropófago”, que basicamente trata da metáfora do canibalismo como um modo de inserir o homem em determinada cultura, absorvida através de “devoração crítica” (Bitarães Netto, 2004, p. 55). Nesse sentido, a personagem borgiana Pierre Menard poderia ser um exemplo de antropófago, ao pretender transcrever o Quijote borgeano “palabra por palabra” (Borges, 1939). Porém, uma vez que Menard copia em sua totalidade Cervantes, podemos argumentar que a antropofagia é um possível desdobramento de Pierre Menard: trata-se de retomar sem copiar: Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos (Andrade, O., 1976, s.p.). Nessa descrição, Oswald de Andrade prega uma língua literária não catequizada, quer dizer, sem nenhum tipo de domínio estrangeirizante. A proposição central, então, é a deglutição do legado europeu de um modo caracteristicamente brasileiro. Assim, não é possível negar a 1 Doutoranda em letras na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Araraquara, SP, Brasil. orcid.org/0000-0003-4038-9455. E-mail: [email protected] 2 Este artigo reproduz partes da dissertação da autora (Rivera, 2015). Haroldo de Campos, tradição e paralelismos com a poética borgiana –––––––––––– influência estrangeira em matéria de literatura; a antropofagia rejeitava todo tipo de cópia ou imitação, portanto, o mecanismo de funcionamento consiste em apropriar-se, deglutir e a partir disso criar algo novo: aparentemente é um passo além do proposto por Pierre Menard, que pretendia copiar de forma íntegra uma série de fragmentos da obra de Cervantes. No entanto, se consideramos a ironia presente no conto borgiano, é possível assumir que Borges, em realidade, estava fazendo uma crítica ao conceito de obra acabada assumido pela crítica espanhola. No decorrer da construção do manifesto antropofágico, Oswald utiliza os conhecimentos de muitos pensadores de renome, tais como Freud, Breton, Rousseau, Montaigne, Marx, entre outros. Nessa encruzilhada de ideias estrangeiras e da própria ideologia impulsionada pelo manifesto oswaldiano, a proposta fundamental consiste em voltar às origens da formação da literatura brasileira; a meta é corrigir um grande erro: considerar as culturas primitivas – africana e indígena – como selvagens e agressivas, preconceito surgido no processo de colonização. Desse modo, o objetivo essencial é subverter a cultura reinante, europeia, e criar uma âncora que resgate as duas culturas vindas do outro lado do mundo. Até a segunda década do século XX, o problema da brasilidade foi pensado por vários autores, porém, quem dedicou toda sua vida a esses estudos foi Mario de Andrade. Grande parte de sua obra está voltada, de forma exaustiva, à compreensão da cultura brasileira: conteúdo experimental versus conteúdo social na arte; gosto e apoio aristocrático versus a paixão de Mario pelo povo; necessidade de pesquisa estética versus valores artísticos universais e atemporais; compromisso com esses valores versus responsabilidade política; e busca da identidade nacional versus importação de formas europeias. Se essas aposições foram centrais na vida intelectual de Mário, elas estruturam também o modernismo como um todo (Dassin, 1978, p. 83). Tais elementos, sem dúvida, estão presentes em sua obra de máximo reconhecimento: Macunaíma, de 1928. Uma série de aspectos históricos determinaram a criação dessa obra: são de suma importância o folclore brasileiro e a linguagem oral que representaram a primeira fase modernista. Nessa época, os escritores tinham uma preocupação central: o descobrimento da identidade brasileira e suas características principais (Dassin, 1978). Formalmente, os autores daquela época 394 estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 54, p. 393-407, maio/ago. 2018. –––––––––––– Jorgelina Rivera ignoram o português das raízes, o lusitano, e dá-se prioridade à linguagem falada no Brasil. Assim, para esse propósito, o conteúdo baseia-se no folclore, que é a matéria-prima dessa procura. Certamente, tanto Oswald como Mario funcionaram como uma dupla muito produtiva no movimento modernista e na criação de uma identidade nacional – do mesmo modo que Jorge Luis Borges na Argentina. Por sua parte, anos depois, Haroldo de Campos avalia a obra de Mario de Andrade em seu Morfologia de Macunaíma, que “enxerga a constelação mallarmeana na Ursa Maior que se transforma o personagem sem caráter de Mario de Andrade” (Dick, 2010, p. 22). Retomando, Oswald delimita o vínculo entre tradição e modernidade a partir de sua viagem para a França e da antropofagia. Todavia, apesar da proximidade entre Borges e Andrade, e a despeito das aproximações entre as vanguardas argentina e brasileira do início do século XX, o escritor brasileiro que mais se aproxima, em termos de perspectivas de construção de projeto literário de Borges, é o poeta paulista Haroldo de Campos, que desponta no cenário da literatura brasileira em 1950, herdeiro de uma tradição modernista, sobretudo a oriunda de Oswald de Andrade. Para ambos, Borges e Haroldo, é crucial a construção da literatura a partir da revisão crítica do cânone que passa, necessariamente, pela leitura e ressignificação desse mesmo cânone, a partir de um trabalho árduo de criação de precursores, tal como define Borges no ensaio “Kafka y sus precursores” (1952). Na década de 1950, surge, no Brasil, um movimento de vanguarda marcado basicamente pela formação da poesia concreta, traduzida na intenção de criar um poema que fosse um objeto/mensagem, inserido no contexto das vivências e transformações da época. Daí podermos mencionar três jovens poetas, estudantes de direito do Largo de São Francisco, interessados em renovar as ideias de poesia vigentes e pretendendo acabar com a “inércia da geração de 45” (Coutinho, 2010). São eles: Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. Esses escritores se autoproclamaram contra a chamada Geração de 45, para retomar as propostas dos modernistas de 22, que foram prolongadas até a década de 30 por meio de escritores como Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, entre outros. O objetivo final era recolocar a poesia brasileira na rota da criação em um ciclo de práticas de vanguarda iniciado com a sintaxe revolucionária de Mallarmé, que depois inspirou os futuristas russos, entre eles James Joyce e os modernistas brasileiros. estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 54, p. 393-407, maio/ago. 2018. 395 Haroldo de Campos, tradição e paralelismos com a poética borgiana –––––––––––– Os concretistas tiveram que “recorrer à figura mediadora do repertório, que denominaram – segundo o conceito poundiano – paideuma, definindo-o como o elenco de autores cujas ideias servem para renovar a tradição” (Aguilar, 2005, p. 65) e, ainda: Os poetas concretos alteraram as diretrizes básicas pelas quais se organizavam as vanguardas no arquivo: destruição de um critério cronológico, recusa a um ordenamento por “ismos” ou autores (o poema de Mallarmé pode ser considerado de vanguarda, mas não sua pessoa) e ênfase nas linhas confrontadas ou opostas no próprio cerne das vanguardas históricas. [...] “A poesia concreta – escreveu Décio Pignatari – é exatamente o oposto de todo surrealismo e expressionismo” (Aguilar, 2005, p. 65). Em 1952, os três poetas fundaram o Grupo Noigandres, expressão provençal que, provavelmente, significa “a flor cujo perfume afasta o tédio”.3 Por cofundar a poesia concreta com intensa atividade, o grupo chega a ser confundido com a própria, dominando a área da poética brasileira identificada por eles como vanguarda (Coutinho, 2010). Os poetas concretos tiveram diversas preocupações, entre as mais importantes, destaca-se a tentativa de revisão da identidade nacional – tarefa herdada dos modernistas Oswald e Mario de Andrade, a partir de um paideuma que fizesse dialogar a nossa cultura e a estrangeira, mesclando universalismo e localismo (em especial pelo resgate de autores como Odorico Mendes, Pedro Kilkerry, Sousândrade, e novas leituras de Rosa, Euclides, entre outros). Esse movimento é semelhante àquele proposto pela literatura borgiana, cujo objetivo era estabelecer uma identidade nacional no árido terreno da literatura argentina dos anos 1920 (Aguilar, 2005). Para conseguir uma autoafirmação nacional, do outro lado da fronteira, os poetas concretos tiveram de “recuperar figuras modernistas em uma nova constelação e empreender a busca de escritores brasileiros que cumprissem com o postulado de um nacionalismo crítico” (Aguilar, 2005, p. 107). Portanto, utilizaram como conceito-guia
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