BLACK IS BEAUTIFUL: O ENSINO DE HISTÓRIA A PARTIR DA CULTURA SOUL COMO EXPRESSÃO DE RESISTÊNCIA DURANTE A DITADURA MILITAR NO BRASIL (1970-1980)

Regina Célia Daefiol Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Universidade Estadual de Maringá [email protected]

Resumo: O objetivo deste artigo é propor o uso da música, de imagens publicadas na mídia e de documentos do aparato repressor sobre a cultura soul e o movimento Black Rio (1970-1980) como fontes para o estudo, nas aulas de História para o 9º ano do Ensino Fundamental, de ações de resistência no período da ditadura militar instaurada no Brasil a partir de 1964. Adotando como sua uma cultura estrangeira, vinda dos Estados Unidos, a comunidade negra da periferia carioca constituiu um espaço de resistência à ideia de “harmonia racial”, instrumento ideológico usado pelo regime autoritário para garantir a ordem social vigente. Ao longo do artigo serão analisadas como fontes a serem trabalhadas em sala de aula a música Mandamentos Black, do cantor e compositor soul brasileiro ; fotografias publicadas pela imprensa na época, retratando bailes soul e pessoas identificadas com o estilo black; e documentos produzidos pelos órgãos de repressão sobre o movimento black. O recorte temporal situa-se entre a década de 1970 e início da década de 1980, por ter sido o período em que o movimento Black Rio decolou e se espalhou por outras capitais brasileiras. A análise tem como base teórica o conceito de infrapolítica de James Scott (2013), que aborda as estratégias de resistência possíveis dos grupos socialmente subordinados.

Introdução Os estudos historiográficos sobre a resistência durante a ditadura militar no Brasil multiplicaram-se nos últimos anos tanto pela diversidade de agentes que lutaram na oposição ao regime autoritário, como pela profusão de fontes sobre o período. Especialmente aquelas produzidas pela imprensa, característica comum a temas circunscritos na história do tempo presente. Esta multiplicidade de agentes de resistência e de fontes historiográficas coloca ao historiador, ao mesmo tempo, desafios e oportunidades. Os desafios se relacionam às dificuldades para o estabelecimento de recortes e para a seleção do corpus documental com o qual se pretende trabalhar. As oportunidades residem na facilidade de acesso aos documentos – uma vez que boa parte dos arquivos se encontra preservada e disponível, inclusive digitalmente – e nas múltiplas opções de

escolha, pelo historiador, do conjunto de fontes que melhor se adequa à pesquisa que pretende desenvolver. No campo do ensino de História, essa diversidade constitui-se em grande oportunidade para o professor. A disponibilidade de fontes diversificadas sobre a resistência durante a ditadura militar permite ao professor fugir das abordagens historiográficas tradicionais e trabalhar o tema a partir do ponto de vista de sujeitos sociais muitas vezes desconsiderados. Isso contribui, como coloca Albuquerque Júnior, para o exercício da crítica à narrativa do passado construída por meio da monumentalização, das noções consagradas, na medida em que possibilita um múltiplo olhar dos atores envolvidos no processo ensino/aprendizagem para ir além do que ficou cristalizado na memória coletiva (ALBUQUERQUE JR., 2012). Partindo desta perspectiva, o presente artigo tem o objetivo de propor o uso, nas aulas de História para o 9º Ano do Ensino Fundamental, de música, imagens divulgadas pela imprensa e de documentos do aparato repressor relacionados à cultura soul e ao movimento Black Rio (1970-1980) como fontes para abordar a resistência dos negros diante da ideia de “harmonia racial” que predominava no Brasil e que era utilizada pela ditadura militar para garantir a ordem vigente e vender no exterior a imagem de um país onde reinava a “democracia racial”. Por meio dessas fontes é possível pensar a resistência na ditadura a partir da ótica e das subjetividades inerentes a sujeitos sociais que nem sempre tiveram papel de destaque na historiografia do período. Ao mesmo tempo em que se vê diante de uma nova possibilidade de abordagem, o professor tem pela frente o desafio de tocar, sob uma perspectiva inusual, num tema que atualmente é alvo de discursos revisionistas e negacionistas que disputam a hegemonia das memórias e narrativas sobre o período. A cultura soul chegou ao Brasil na década de 1970, trazendo consigo os ecos da efervescência política e cultural que redundou na luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Era um momento em que a juventude negra brasileira, especialmente a periférica, tinha poucas oportunidades de ascensão social, a despeito do senso comum, constantemente reafirmado, de que no Brasil não existia preconceito racial. Neste contexto, os bailes soul realizados nos clubes da periferia do a partir de 1972 e que deram origem ao movimento Black Rio tornaram-se território de

florescimento de uma identidade negra ancorada na cultura black/soul e de uma consciência das diferenças sociais que separavam negros e brancos no Brasil. Esse espaço de identidade e consciência incomodou os militares a ponto de movimentarem o aparato repressivo do regime, que, por meio de seus agentes, acompanhava de perto os bailes. Um olhar sobre a cultura soul abre ao professor possibilidades de trabalhar com os alunos o período da ditadura sob a perspectiva de uma ação de resistência silenciosa, mas efetiva, a ideias vigentes durante o regime autoritário.

A soul music no Brasil Em meados da década de 1950 e nos anos 1960, os movimentos de luta pelos direitos civis dos negros ganharam corpo nos EUA e a música ocupou um papel central neste cenário como expressão de resistência e de luta por mudanças nas leis. Esse fenômeno teve ressonância em outras partes do mundo. A soul music esteve no centro desta efervescência política, “dando voz às movimentações culturais e políticas do período, incentivando a conscientização política e racial da população negra norte- americana e chegando também a outros contextos sociais em diferentes países.” (OLIVEIRA, 2018, p. 243). Os ecos da efervescência cultural e política em torno da afirmação de uma identidade afro-americana e de luta pelos direitos civis dos negros chegaram ao Brasil em meados da década de 1970, em pleno período da ditadura militar e da repressão política. Era também um momento de poucas chances de ascensão social para os jovens pobres, em especial os negros; e de uma idealização reafirmada pelo regime autoritário de que no Brasil não existia preconceito e sim uma “harmonia racial”. (OLIVEIRA, 2016). Foi neste contexto que cultura soul começou a ganhar espaço, inicialmente na cidade do Rio de Janeiro. Em 1972 tiveram início, no Renascença Clube, os bailes de soul music que deram origem ao movimento Black Rio, articulado mais tarde por diversas personalidades artísticas. Esses eventos eram frequentados por milhares de jovens negros.

Eram anos de grande mobilização suburbana em torno da estética negra, com o surgimento de diversos nomes do movimento black nacional, como Toni Tornado, Gerson King Combo, , Tony Frankie, grupo Senzala (embrião da banda Black Rio), Cassiano, Hildon e equipes de som como a Paulista, Chic Show e a carioca Soul Grand Prix.” ( (NACKED, 2012, p. 4)

Em muitos desses eventos, Asfilófio de Oliveira Filho, conhecido como Filó Filho, precursor dos bailes soul, encarnava o papel de MC (Mestre de Cerimônias) e dialogava com o público, divulgando entre os jovens presentes mensagens sobre a importância do crescimento intelectual.

[...] no decorrer da festa eram projetadas nas paredes frases do tipo: “Eu estudo, e você?”, indicando que, além do visual black power, o estudo também fazia parte do ideal de orgulho negro que a festa promovia e propugnava. Assim, outras características positivas são associadas aos líderes, como a valorização do estudo e, através deste, de uma perspectiva de ascensão social que se encontra fortemente associada ao chamado orgulho negro (ALVES e PELEGRINI, 2014, p. 5)

Nos bailes soul, a música, a dança, as roupas, o estilo dos cabelos formaram um caldo de cultura para o surgimento de uma identidade negra que forjava uma consciência das diferenças sociais que separavam negros e brancos. Para os jovens negros periféricos, os bailes representavam a possibilidade de existir num espaço novo, onde podiam exercer de forma livre sua identidade, com a valorização de sua beleza para além dos estereótipos da sociedade branca, de seus gostos musicais e estéticos, de suas performances na dança. Um local em que o orgulho de ser negro podia ser exercido em sua plenitude. Eram também um novo espaço de sociabilização e de politização, uma vez que, por meio dos bailes, muitos jovens tiveram os primeiros contatos com organizações ativistas e passaram a militar pela causa negra.

A cena Black Rio, dessa forma, se definiu como um território político do qual emergiu uma identidade negra corporificada que rejeitava a “tropicalidade”, a mestiçagem e a pretensa democracia racial. Os blacks, apesar de ambiguidades e tensões, não aceitavam uma negritude mediada pela brasilidade, se apropriando em momentos estratégicos e convenientes de um radicalismo pautado na experiência afro-americana. (OLIVEIRA, 2018, p. 273)

O surgimento de uma consciência da diferença, que levava a pensar na desigualdade social, e de uma identidade própria confrontava os ideais defendidos pelas elites conservadoras e pelo regime autoritário, cujo discurso oficial glorificava o convívio harmonioso e igualitário entre as raças no Brasil.

A resistência pelo “não dito”

A ideia de que o Brasil é o país da convivência pacífica entre as raças serviu, em diversos momentos da história, como mecanismo ideológico de controle e garantia da ordem vigente. Mais ainda durante a ditadura militar. Naquele contexto, ações ou movimentos que de alguma forma contestassem esse ideal em vistos, sob a perspectiva da Doutrina de Segurança Nacional que regia as ações da repressão, como ameaças a serem combatidas. Com esse o olhar a repressão passou a vigiar de perto os bailes soul nos subúrbios cariocas. Especialmente depois de uma reportagem publicada em julho de 1976, no suplemento cultural de sábado do Jornal do Brasil, de autoria da jornalista Lena Frias. Frias afirmava que uma parte do Rio de Janeiro estava se tornando black, pois estaria ocorrendo, na periferia carioca, uma verdadeira “onda” de bailes em que se tocava soul e importados dos Estados Unidos. E nesta periferia, segundo a jornalista, estaria nascendo “um espaço cultural à parte”, uma cidade totalmente desconhecida pela maioria, cidade essa que Frias chamou de Black Rio. Outros veículos de comunicação, depois do JB, também publicaram artigos sobre o tema, despertando na polícia secreta carioca, bem como nos “observadores da direita aliados da ditadura militar” (ALBERTO, 2015, p. 44), a desconfiança que levou os órgãos de repressão a observarem mais de perto os bailes em busca de elementos compatíveis com um movimento subversivo. Ocorriam batidas policiais na entrada dos bailes, muitos jovens e até artistas da black music tornaram-se alvo da repressão. O simples fato de estar vestido com roupas ou ter um corte de cabelo identificado com a cultura black era o que bastava para ser parado pela polícia na rua. Os blacks também chamaram a atenção da segurança nacional, mobilizando setores de investigação do Exército, da Aeronáutica e da Marinha, além das polícias federal e estadual. Agentes dessas instituições não só vigiaram bailes, como também “se infiltraram em reuniões, fizeram buscas, apreensões e prisões.” (OLIVEIRA, 2016, p. 52- 53). Diante dos aspectos acima considerados, a cultura black e o movimento Black Rio podem, a partir da perspectiva do conceito de infrapolítica elaborado por James Scott (2013), ser analisados como ações de resistência. A infrapolítica, segundo o autor, compreende as ações desenvolvidas por grupos subordinados socialmente como formas

de resistência possíveis num cotidiano em que o embate direto é impraticável. É uma luta política sutil, muitas vezes encoberta, que se desenvolve por meio do que ele denomina de discurso oculto.

O discurso oculto não é um mero rol de queixumes e imprecações sussurrados fora de cena; é também a concretização de um sem-número de estratagemas pragmáticos e discretos destinados a minimizar a apropriação material. [...] podemos conceber o discurso oculto como um domínio político em que se procura impor, num ambiente fortemente adverso, certas formas de conduta e resistência nas relações com os grupos dominantes. Em suma, seria mais exato conceber o discurso oculto como uma condição, mais do que um substituto, da resistência prática”. (SCOTT, 2013, p. 259-263)

Diferentemente das ações políticas tradicionais, que se utilizam de meios rumorosos como protestos, manifestações e rebeliões, as ações de infrapolítica se constituem através da luta cotidiana dos grupos socialmente subordinados. O termo infrapolítica, segundo Scott, transmite a ideia de “uma dimensão discreta da luta política” (SCOTT, 2013, p. 253). A essa luta o autor atribui um caráter de invisibilidade comparável à dos raios infravermelhos para os olhos humanos, que, apesar de não serem vistos, têm ação e resultados que se pode auferir no concreto.

O fato de ser invisível resulta em grande parte [...] de uma atitude deliberada – uma opção tática resultante de uma consciência prudente do equilíbrio de poder. [Os grupos socialmente subordinados] têm amplos motivos para temer comunicar as suas opiniões de modo desprotegido.” (SCOTT, 2013, p. 253- 254)

O fenômeno soul pode ser analisado sob a lente do conceito de infrapolítica porque deu as bases para a formação, entre um grupo socialmente subalterno, de um tipo de consciência que punha em xeque o mito nacionalista de um Brasil onde reinavam a harmonia e a democracia raciais. Segundo Alberto (2015), o caráter velado do racismo brasileiro não só tinha um potencial de desmobilizar contestações à ordem vigente, como era também tão ou mais perverso do que o racismo existente nos EUA, pois ajudou a neutralizar a formação de uma consciência negra e mesmo organização de ações semelhantes ao movimento por direitos civis dos negros dos Estados Unidos.

As identidades negras contestatórias que emergiram dos bailes soul representaram um breve momento de consciência racial — uma consciência longamente prejudicada por mitos da democracia racial e fracos movimentos raciais no Brasil.” (ALBERTO, 2015, p. 46)

Os bailes soul e o movimento Black Rio foram um espaço de resistência cultural e ao mesmo tempo política. Nos bailes, os jovens podiam manifestar, pelo seu modo de ser e agir, o orgulho black, representação de uma estratégia de socialização, de consumo cultural e de abertura de um espaço político de resistência entre as instâncias hegemônicas da sociedade branca por meio de um discurso velado que contestava a ideologia que colocava o Brasil como modelo de “harmonia racial”. A resistência dos blacks se dava por meio de um discurso velado, uma vez que não se articulava por palavras de ordem ou atitudes diretas de confronto ao status quo, e sim por um jeito de ser, de existir, de se comportar. O jeito de ser black “era culturalmente e politicamente diferente de ser preto ou pardo, termos historicamente usados para designar a cor da pele mais escura ou mais clara de brasileiros afrodescendentes” (ALBERTO, 2015, p. 44-45). Diferia também de ser negro, termo usado para designar um grupo racial unificado e pacificado, a “harmonia racial” tão cara à ordem vigente e, em especial, ao governo autoritário. Vivendo a cultura black, que ia muito além dos bailes e da soul music para se revelar nos comportamentos cotidianos, os jovens negros periféricos, por meio de um discurso oculto, articularam uma resistência que incomodou o regime autoritário e as elites a ele aliadas e que pode ser entendida como uma ação infrapolítica. Essas identidades contestatórias despertaram, nos setores conservadores e entre os militares, um olhar de reprovação e preocupação, que levou a uma reação – por meio da repressão – para combater o que era visto como um movimento subversivo da ordem vigente. Na perspectiva da “harmonia racial”, de um “Brasil fraternalmente moreno”, o era visto por esta elite como a representação da “harmoniosa incorporação pela nação dos povos e das culturas africanas através da mestiçagem, em contraste com a consciência racial separatista e estrangeira do soul.” (ALBERTO, 2015, p. 70). O soul, enquanto manifestação estrangeira e estranha à cultura e às tradições brasileira, contribuiria, na visão das elites e do regime autoritário, para disseminar uma ideia distorcida e equivocada de um racismo que não existiria no Brasil e sim nos Estados Unidos.

O trabalho com as fontes: metodologia Na atual conjuntura de negacionismo e revisionismo do passado, ganharam espaço discursos que tentam relativizar as ações de regimes autoritários que ascenderam ao poder no Brasil. Ao se deparar com a ressonância desses discursos no cotidiano da sala de aula, o professor de História se vê diante do grande desafio de encontrar a abordagem adequada que permita aos alunos construir um raciocínio crítico acerca da temática desviando de discussões que suscitem a polarização política. O caminho para a superação deste obstáculo passa pela metodologia historiográfica. O trabalho com fontes, associado ao apoio de uma bibliografia consistente, permite ao professor abordar o tema com o rigor e estimular, entre os alunos, o exercício da crítica a narrativas do passado construídas por meio da monumentalização e das noções consagradas, na medida em que possibilita um múltiplo olhar dos atores envolvidos no processo de ensino/aprendizagem, olhar este que vai além do que ficou cristalizado na memória coletiva (ALBUQUERQUE JR., 2012). A análise e a observação da fonte, a formulação de hipóteses, a busca por respostas, processos tão inerentes ao trabalho do historiador, são ações que, dentro da sala de aula, permitem aos estudantes construir o conhecimento histórico de maneira crítica e questionadora, provocando “defeitos nas memórias” (ALBUQUERQUE JR., 2012). Partindo desta perspectiva, utilizando fontes textuais e imagéticas referentes à cultura soul no Brasil dos anos 1970, é possível problematizar com alunos do 9º ano do Ensino Fundamental o autoritarismo dos governos da ditadura e os seus reflexos na sociedade, como a perda das liberdades e os processos de repressão, muitos deles violentos, que foram legitimados e praticados em nome do Estado. É possível também abordar as diversas formas de resistência a esse autoritarismo que se manifestaram no período, muitas delas, como é o caso do movimento black, diferentes dos tradicionais movimentos de oposição política tanto pela forma de operacionalização quanto pelo aspecto simbólico envolvido nas ações. O tema da ditadura consta da relação de conteúdos sugeridos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que tem como uma das Unidades Temáticas “Modernização, ditadura civil-militar e redemocratização: o Brasil após 1946” (BRASIL, 2017). Para o

trabalho com os alunos, a metodologia sugerida é a aula-oficina, em que a turma pode ser dividida em grupos de no máximo cinco pessoas para analisar e discutir as fontes apresentadas pelo professor, por meio do data show: uma música, fotografias publicadas na imprensa da época e documentos do aparato repressor. O professor deve estimular a observação dos detalhes em cada um dos documentos apresentados, de acordo com o tipo de fonte. Em cada grupo os alunos devem realizar uma discussão sobre a fonte escolhida, com acompanhamento do professor, e produzir um texto coletivo para entrega, como forma de avaliação da atividade.

Fonte 1 - Música Reprodução da canção Mandamentos Black (1977), do cantor e compositor soul brasileiro Gerson King Combo, com a letra exibida em data show para que os alunos possam acompanhar. A análise da letra permitirá reconhecer uma série de códigos identitários e frases que denotam um desejo de “irmandade” e de solidariedade entre os negros; e também uma busca pela paz, apesar do entendimento da polícia política de que os adeptos do movimento black representavam uma ameaça à ordem e à segurança. A canção reafirma a ideia de não-violência, de uma convivência respeitosa entre blacks e brancos, no trecho final, em que há uma valorização também dos aspectos simbólicos da cor branca, citando a “bandeira da paz”. A canção traz como mote a valorização da cultura black, que tem como marca a consciência do que é ser negro e o orgulho desta condição.

Brother!!! Assuma sua mente, brother! E chegue a uma poderosa conclusão. De que os blacks não querem ofender a ninguém, brother! O que nós queremos é dançar! Dançar, dançar e curtir muito som. Não sei se estou me fazendo entender. O certo é seguir os mandamentos black, que são, baby: dançar, como dança um black! Amar, como ama um black! Andar, como anda um black! Usar sempre o cumprimento black! Falar, como fala um black! E eu te amo, brother!! Viver, sempre na onda black! Ter orgulho de ser black! Curtir o amor de outro black! Saber, saber que a cor branca, brother é a cor da bandeira da paz, da pureza. E esses são os pontos de partida para toda a coisa boa, brother! Divina razão pela qual amo você também, brother! Eu te amo brother!! E eu te amo brother!! (COMBO, 1977)

Fontes 2 - Fotografias de manifestações da cultura black

Exibição de fotos sobre o movimento black e os bailes soul publicadas na imprensa na época para que os alunos analisem aspectos que possam fornecer informações sobre questões como: os elementos que o fotógrafo privilegiou na cena, símbolos identitários (roupas, cortes de cabelo), comportamentos (modo de dançar, de se cumprimentar), locais de manifestação da cultura black (clubes, bailes, a rua), gênero dos adeptos do movimento (mais homens, mais mulheres), faixa etária dos personagens, postura e ações de determinados personagens. Com base nesta análise, os alunos serão estimulados a refletir sobre as características da cultura black, por que motivos era desaprovada pelos setores conservadores; por que os bailes soul e o movimento black incomodaram o regime autoritário a ponto de os órgãos de repressão serem convocados para vigiar e mesmo reprimir as manifestações. Esta reflexão pode conduzir à discussão da temática da questão racial no Brasil e da interdição que um regime autoritário impõe à livre expressão na sociedade. Especialmente quando o que é expresso coloca em xeque ideologias que questionam e que têm o potencial de alterar a ordem social vigente.

Foto 1: Disponível em

Foto 2: Disponível em Registro do fotojornalista Almir Veiga, do Jornal do Brasil, reproduzido no livro “1976 Movimento Black Rio”.

Foto 3: Disponível em

Fonte 3 - Documentos do aparato repressor

Exibição e análise com os alunos de relatórios e informes emitidos pelos órgãos de segurança que demonstram que os militares viam no movimento black uma ameaça. O Exército, o Serviço Nacional de Informações (SNI), a Polícia Federal e as Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS) emitiram diversos documentos relatando informações obtidas por “espiões da repressão” sobre os grupos que, na visão do regime, tinham por objetivo criar no país um clima de luta racial entre brancos e negros como existia nos Estados Unidos (documento 1).

Esses movimentos revelam o incremento das tentativas subversivas de exploração de antagonismos raciais em nosso país, merecendo uma observação acurada das infiltrações no movimento 'black', tendo em vista que, se porventura houver incitação de ódio ou racismo entre o povo, caberá a Lei de Segurança Nacional. (Fragmento de informe confidencial da Polícia Federal do Rio Grande do Sul, datado de 28 de agosto de 1978)

Documento 1: Fragmento de informe confidencial da Polícia Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em

Além de vigiarem os bailes soul e integrantes do movimento black, os órgãos de repressão também observavam de perto grupos e movimentos de consciência negra que

estavam surgindo naquele contexto, como o Movimento Negro Unificado, utilizando a infiltração de espiões nesses espaços (documento 2).

A partir de 1978 apareceu um novo ponto de interesse da subversão no País, particularmente nos Estados do RJ e, com mais ênfase, na BAHIA: a exploração do tema racismo, procurando demonstrar a sua existência e colocar o negro brasileiro como motivo de discriminação. O método utilizado foi a infiltração em entidades dedicadas ao estudo da cultura negra, por meio de palestras em reuniões e simpósio. [...] Em Salvador, até o momento, foram levantados os seguintes elementos que participam do MNUCDR: José Lino Alves de Almeida – Asthon José Reis D’Alcântara – Jorge de Souza Conceição – Durval Souza Carvalhal – Leib Carteado Crescêncio dos Santos – Valmir Santos Araujo – Carlos Henrique da Silva Santos. (Fragmento de relatório do IV Exército, ligado ao Ministério do Exército, de 24 de outubro de 1979)

Documento 2: Fragmento de relatório do IV Exército, ligado ao Ministério do Exército, de 24 de outubro de 1979. Disponível em:

Considerações finais

Buscamos fazer uma análise sobre a pertinência do uso, nas aulas de História para o 9º ano do Ensino Fundamental, de fontes musical, imagéticas e textuais para o estudo da ditadura militar sob a ótica da resistência representada pela cultura black/soul. Como espaço de afirmação de uma identidade própria, os bailes soul e o movimento Black Rio constituíram ações de resistência à ideologia de “harmonia racial” vigente no Brasil da ditadura. O conceito de infrapolítica elaborado por James Scott (2013) fornece uma base teórica possível para analisar os processos de resistência desenvolvidos pelos jovens negros da periferia carioca por meio do repertório da cultura black e do universo da soul music, fazendo emergir uma identidade própria baseada na afirmação do orgulho de ser negro. A cultura black, aos olhos do regime autoritário e das elites a ele associadas, era algo estranho às tradições de “convivência harmônica entre as raças” do Brasil, um elemento importado de um país – Estados Unidos – em que o racismo era explícito. O samba, ao contrário, era, na visão dos conservadores, o autêntico representante da cultura brasileira, retrato da integração racial pacífica entre brancos e negros. Abordar a resistência operada por meio do soul e da cultura black permite ao professor tratar da temática da repressão durante a ditadura militar sob uma nova perspectiva: a partir de um campo simbólico de sujeitos que, a despeito do ideal de democracia racial vigente, se encontravam subalternizados na sociedade. Levar os alunos a refletir sobre repressão e resistência contribui para uma visão crítica sobre as mazelas que um regime autoritário impõe a uma sociedade. A construção de uma consciência crítica entre os jovens sobre o período da ditadura militar é a melhor forma de confrontar os discursos revisionistas que buscam alterar o passado em função dos interesses políticos do presente.

Referências

ALBERTO, P. Quando o Rio era black: soul music no Brasil dos anos 70. História: Questões & Debates, v. 63, p. 41-89, jul.-dez. 2015.

ALBUQUERQUE JR., D. M. Fazer Defeitos nas Memórias: para que servem a escrita e o ensino da história? In: GOLÇALVES, M. A., et al. Qual o valor da História hoje? Rio de Janeiro: FGV, 2012. p. 21-39. ALVES, A. P.; PELEGRINI, S. C. A. “Eu sei que a sombra das mãos joga no chão a mesma cor": a força e a mensagem da musicalidade de Tony Tornado. Fenix, v. 11, Junho 2014. Disponivel em: . BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Educação Infantil e Ensino Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2017. COMBO, G. K. Mandamentos Black. Rio de Janeiro: Polydor, 1977. JUNIOR, A. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história. In: GONÇALVES, M. D. A. E. A. (. ). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: FGC, 2012. p. 21-39. NACKED, R. C. Identidades em diáspora: o movimento Black no Brasil. Desenredos, p. 1-11, jan./fev./mar. 2012. OLIVEIRA, I. A. Black Rio 40 anos: o movimento negro na ditadura militar. Morpheus, Rio de Janeiro, v. 9, n. 16, p. 44-59, dezembro 2016. OLIVEIRA, L. X. D. A cena musical da Black Rio: estilos e mediações nos bailes soul dos anos 1970. Salvador: EDUFBA, 2018. Disponivel em: . Acesso em: 15 junho 2020. SCOTT, J. C. A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos. Lisboa : Letra Livre, 2013.