Nelson Cavaquinho, De Leon Hirszman (1969)
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1 História e documentário no Brasil: Nelson Cavaquinho, de Leon Hirszman (1969). ARTUR SINAQUE BEZ* Neste artigo pretendemos refletir acerca das representações sobre o popular e o nacional produzidas no documentário Nelson Cavaquinho (1969), do brasileiro Leon Hirszman. O filme é rodado um dia após a promulgação do AI-5, e mostra o sambista carioca Nelson Cavaquinho em companhia de amigos e familiares. Em meio a canções e depoimentos, o documentário traz a tona um homem triste pela perda recente de um sobrinho, e também um cineasta preocupado com a situação política de seu país. Por meio da análise fílmica, e de declarações dos realizadores incitaremos o debate a respeito da montagem no documentário brasileiro, num momento de readaptação do documentário direto no Brasil. Leon Hirszman teve o início de sua trajetória marcado pelo engajamento no CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes), no Rio de Janeiro, onde deu seus primeiros passos como cineasta, na virada nos anos 1950/60. A vontade de fazer cinema aglutinou, nesse contexto, jovens marxistas de classe média que pretendiam fazer uma arte revolucionária sobre e para o povo.1 Os filmes que resultaram desse processo, tradicionalmente incorporados pela historiografia no conjunto do Cinema Novo brasileiro, se pretendiam conscientizadores das massas ao mostrar a situação precária das mesmas no país, e muitas vezes apontavam saídas por meio da catequese do povo. Esse foi o tom de Pedreira de São Diogo (1962), que incorporou o conhecido projeto Cinco vezes favela, o primeiro filme de Hirszman, no qual operários de uma pedreira se unem na tentativa de evitar o desabamento de seus barracos, os quais se encontravam na área a ser implodida pelos mesmos. Hirszman também se destacou na produção de documentários, começando por Maioria Absoluta (1964). Incorporando a chamada Une volante (caravana do movimento que * Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista (FCL UNESP/Assis). Mestre pelo programa de pós- graduação História e Sociedade pela FCL UNESP/Assis. Doutorando vinculado ao mesmo programa desde 08/2014, Bolsista CAPES desde 10/2014. 1 Sobre o CPC, ver: GARCIA: 2007; e MATTOS, 2014. A respeito do conceito de cultura popular em voga nas teses do CPC, ver: ORTIZ, 1994. 2 rodava os sertões do Nordeste brasileiro), o cineasta visitou as Ligas Camponesas no sertão da Paraíba captando a fala do povo, amparando-se em Paulo Freire e defendendo o direito de voto aos analfabetos. Contrapõem-se entrevistas em som direto contendo a fala dos populares e de cidadãos da classe média carioca que, no geral, reprovam o direito de voto aos analfabetos. Maioria está carregado das concepções nacionais desenvolvimentistas nas quais setores da esquerda brasileira se apegaram naquele momento, concepções estas que supunham um pacto entre a burguesia nacional e as classes médias e populares para o bem comum da nação. O filme termina por incitar o espectador a lutar por um país mais justo, em nome da melhoria de vida daqueles que são exibidos, camponeses pobres e analfabetos. Ainda sobre Maioria, é interessante frisarmos que este filme foi citado por um dos críticos expoentes do cinema brasileiro, Jean Claude Bernardet, como exemplo da tendência dos filmes engajados do Cinema Novo brasileiro: o modelo sociológico. Bernardet elabora esta categoria analisando a formas pelas quais alguns documentários brasileiros da primeira metade da década de 1960 produziram suas representações do povo. 2 Segundo o autor, o documentário de modelo sociológico estrutura-se a partir de uma tese, emitida pela “voz do dono” que faz comentários com uma voz over de caráter totalizante, baseada numa análise pretensamente científica, sociológica. Estes comentários são emitidos em meio a imagens e entrevistas, nas quais tanto o conteúdo visual, enquanto a “voz do outro” – no caso das entrevistas – servem como “amostragem”, ou seja, dados do “real vivido” que comprovam o “real” proveniente do saber. Segundo Bernardet, nos filmes atrelados ao modelo sociológico: O que informa o expectador sobre o “real” é o locutor, pois dos entrevistados só obtemos uma história individual e fragmentada – pelo menos quando se concebe o real como uma construção abstrata e abrangente. Estabelece-se então uma relação entre os entrevistados e o locutor: eles são a experiência sobre a qual fornecem informações imediatas; o sentido geral, social, profundo da experiência, a isso eles não tem acesso (no filme); o locutor elabora, de fora da experiência, a partir dos dados da superfície da experiência, e nos fornece o significado do profundo. De 2 O autor analisa uma série de documentários brasileiros da década de 1960 pelo prisma do modelo sociológico e sua crise. Contudo, Viramundo (1965, Geraldo Sarno), Maioria Absoluta (1964, Leon Hirszman), e Subterrâneos do futebol (1965, Maurice Capovilla) são os filmes com os quais irá desenvolver sua categoria. Bernardet afirma que este modelo teve seu auge “por volta de 1964 e 1965, foi questionado e destronado, e várias tendências ideológicas e estéticas despontaram.” Em: BERNARDET, 2003: p.12. O que interessa a Bernardet é a “crise” deste “modelo sociológico” no documentário brasileiro. 3 modo que a relação que acaba se estabelecendo entre o locutor e os entrevistados é que estes funcionam como uma amostragem que exemplifica a fala do locutor e que atesta que seu discurso é baseado no real. (BERNARDET, 2003:pp.17-18) Esse modelo conformou determinada postura intelectual dos cineastas de esquerda que os impelia a falar sobre o povo como se detivessem um “mandato popular”. Como afirma Ismail Xavier: “o cineasta se via como portador de um mandato que, no caso brasileiro, se concebia como vindo do próprio tecido da nação, suposto muito mais coeso e já constituído do que, em seguida, a realidade veio mostrar” (XAVIER, 2009: p.112). Com o golpe civil- militar de 1964 e a repressão as perspectivas mudam. O cinema viveu, naquela década, as várias facetas do nacional-popular, desde a mais eufórica (em torno de 1962) até a mais crítica (a partir de 1967), de modo que o deslocamento de que falo nesta questão do mandato popular do artista em verdade começou a muito tempo. A partir de Terra em transe [Glauber Rocha,1967] não era mais possível reiterar uma estética afinada a um didatismo correlato ao populismo e, a partir de 1968, 69, diferentes cineastas, seja do próprio Cinema Novo, seja do Cinema Marginal, contestaram a tese do mandato. Radicalizaram a atitude de agressão ao espectador, afastando-se de vez da pedagogia política que supunha uma comunhão de propósitos a se construir entre filme e plateia. (XAVIER, 2009: pp.112-113) A tradição que tomava corpo no documentário brasileiro da década de 1960 ligava os filmes à militância política, e tratava dos temas de maneira engajada. O uso dos oprimidos como exemplo, a busca da interação por meio de entrevistas, tudo isso passava pelo cunho do falar em nome do povo. Na virada dos anos 1960 para 1970 os “passam a ter culpas e desconfiam de seu mandato, eles deixam de falar “em nome de”. Começa-se então a problematizar a figura do cineasta enquanto representante dos oprimidos.” (XAVIER, 2009, p.102) É nesse processo, de reflexão dos cineastas em torno de seu papel auto-proclamado em meio ao autoritarismo crescente no pós 64 que Nelson Cavaquinho é realizado. Hirszman encontrava-se desiludido com o contexto do AI-5 brasileiro, e produz o filme, que representa uma ruptura no modo de conceber a ação do intelectual artista na trajetória do diretor. Esta mudança corresponde intelectualmente aos acontecimentos políticos dá época, mas também corresponde formalmente à adaptação do cineasta brasileiro ao estilo do cinema direto. Antes 4 de nos aprofundarmos nesse debate circunscrito à obra de Hirszman, passemos a uma breve reflexão sobre o direto no cinema brasileiro. A década de 1960 foi o momento de chegada das propostas do cinema direto no Brasil. Esse estilo de documentário foi teorizado pelos norte-americanos Federick Wiseman e Albert Maysles, e surge no final dos anos 1950. A emergência do cinema direto representa um momento de reviravolta na história do documentário, uma “revolução estilística” que busca abandonar os preceitos do documentário clássico (de caráter educativo, preso ao uso totalizante da voz over), o pensamento de John Grierson, e marcar distancia do cinema realista do pós-guerra. A principal característica desta modalidade narrativa só começa a surgir com a “revolução tecnológica” de finais dos anos 1950, com o surgimento de aparelhos portáteis de gravação de som e imagem. Ramos (2008) aponta para uma crença no recuo do cineasta no corpo-a-corpo com o mundo, uma ilusão de que pode apresentar assim, diferentemente da modalidade clássica, o mundo como ele é: A voz que enuncia o documentário direto pode dizer, sem má consciência: “a validade da posição subjetiva, a partir da qual enuncio, baseia-se no fato de que não estou interferindo no mundo ao representá-lo. (...) para que o espectador exerça a liberdade de sua interpretação. O cinema direto tem por trás de si o horizonte ideológico do bazinismo e seus preceitos éticos na elegia do cinema realista. (RAMOS, 2008: p.267) A princípio esta corrente cinematográfica se pretende como imparcial, se baseia na crença de que o documentarista não intervinha no mundo representado, como nos primeiros documentários do final do século XIX. Fernão Ramos (2008) destaca em tom crítico o não uso da categoria de cinema direto em Cineastas e imagens do povo, de Bernardet. Para o primeiro, passar ao largo desse debate foi uma falha marcante na obra do segundo. Se ao mesmo tempo podemos valorizar a crítica de Ramos à atitude de Bernardet – já que há fontes suficientes que comprovam o conhecimento dos cineastas do Cinema Novo acerca do debate em torno do cinema direto3 –, também podemos valorizar o conceito de modelo sociológico, que particulariza o caso brasileiro.