O GOLPE DE 1964 E A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA NO DISCURSO DE PAULO FRANCIS

THE 1964 MILITARY COUP AND BRAZILIAN DICTATORSHIP THROUGH THE SPEECH OF PAULO FRANCIS

Alexandre Blankl Batista

Resumo: O objetivo do texto é apresentar Abstract: The aim of this work is to present uma reflexão sobre certos aspectos do a reflection about certain aspects of the discurso e das impressões do jornalista speech and the impressions of pressman Paulo Francis a respeito do Golpe Civil- Paulo Francis concerning the Civil-Military Militar de 1964 e do regime ditatorial que Coup in 1964 and the Dictatorship which vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Serão took place in Brazil from 1964 to 1985. utilizados textos deste jornalista vinculados There will be employed works of the named à grande imprensa, em especial ao jornal pressman which are linked to big media, Folha de São Paulo, além de seu livro de specially to Folha de São Paulo, as well as memórias acerca de 1964, Trinta Anos esta his book of memories from 1964, Trinta noite, escrito no jubileu de trinta anos do Anos esta noite (free translation: “Thirty Golpe, em 1994. Por meio da análise do Years tonight”), which was written by the discurso do autor, é possível listar pontos time of the thirtieth anniversary of the em comum com determinada interpretação military coup, in 1994. By analyzing the da história do Golpe e da Ditadura que tem speech of the author, it is possible to point sido disseminada recentemente na grande common issues with a certain interpretation imprensa. Tal reflexão também se mostra of the history of the Coup and the pertinente no sentido de avaliar questões Dictatorship which has been recently relacionadas à viragem ideológica de disseminated within the big media. Such Francis, ora trotskista no período pré-1964, reflection also presents its relevance when ora liberal-conservador a partir de meados analyzing questions related to the da década de 1970. ideological turnover Francis had, Trotskyist before 1964 and then Liberal-Conservative Palavras-chave: Paulo Francis, Golpe de from the 1970s on. 1964, Ditadura Civil-Militar no Brasil. Keywords: Paulo Francis, The 1964 Military Coup, Brazilian dictatorship.

 Este texto é uma versão ampliada, corrigida e atualizada de um pequeno esboço, originalmente apresentado no III Simpósio Trabalho, Cultura e Poder, realizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), em 2012, e publicado nos Anais deste evento.  Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Email: [email protected]

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DOSSIÊ DITADURAS DE SEGURANÇA NACIONAL E TERRORISMO DE ESTADO

O 1964 FEZ DE MIM, DA MINHA entendimento sobre a participação dos GERAÇÃO, HOMENS ADULTOS. Estados Unidos no processo que culminou 4 VIVÍAMOS DE ILUSÕES, NOS nos vinte e um anos de Ditadura no Brasil . IMAGINANDO SENHORES DO BRASIL Cabe ressaltar, ainda, outro leque de DE QUE GRADUALMENTE discussões, no qual certos historiadores se TOMÁVAMOS POSSE (…). debruçam, de modo a não deixar de analisar PAULO FRANCIS, TRINTA ANOS ESTA o caso brasileiro como fenômeno isolado. NOITE Trata-se da história da Ditadura brasileira como parte de uma lógica mais ampla que O Golpe de 31 de março de 1964, engloba as chamadas “Ditaduras de que derrubou o presidente João Goulart no Segurança Nacional”, específicas da Brasil, vem suscitando um acalorado debate América Latina5. historiográfico. Recentemente, boa parte dos Os casos acima são apenas uma historiadores tem adotado a ideia de um pequena amostra dos tópicos paralelos que “Golpe Civil-Militar”, lembrando que não instigam os pesquisadores e geram foram apenas os militares que conspiraram controvérsias ao tema do Golpe de 1964. na derrubada de João Goulart (Jango) e Junto a estes debates, também há algumas deram sustentação à Ditadura. No rol de versões que têm dado ênfase aos interpretações sobre o Golpe encontram-se acontecimentos que levaram ao Golpe, pesquisas sobre a acentuada articulação dos essencialmente, na ação providencial de civis1 e, de outro lado, trabalhos que certos protagonistas, cujo papel de destaque reafirmam a ação preponderante dos teria sido fundamental não apenas no militares no episódio2. Há quem não andamento do processo golpista, mas esqueça de reafirmar o papel dos também no caráter que teve a Ditatura Civil- movimentos sociais, que não teriam ficado Militar no Brasil. Recentemente, os passivos frente à agitação pré-golpe3. Em trabalhos do jornalista Elio Gaspari são um meio a esses estudos, é controverso o exemplo nesse sentido. As séries Ilusões Armadas e O Sacerdote e o Feiticeiro, publicadas pelo autor entre 2002 e 2004, 1 René Dreifuss, em um excelente trabalho sobre o complexo IPES/IBAD, mapeou extensivamente a constituem-se na pretensão de escrever uma atividade destes institutos, mostrando a verdadeira “História da Ditadura”, impressionante organização do empresariado considerando a extensão da narrativa e os brasileiro que apoiou o golpe civil-militar: DREIFUSS, René Armand. 1964, A conquista do temas apresentados. Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981. 2 Gláucio Ary Dillon Soares reafirma a 4 Uma tentativa interessante de balanço preponderância dos militares no golpe, no máximo, historiográfico sobre algumas das diferentes admitindo os civis como importantes coadjuvantes interpretações acerca do golpe encontra-se na obra de em tal processo, mas não como os “atores” Carlos Fico, Além do Golpe: FICO, Carlos. Além do principais. Nesse sentido, critica certos trabalhos que Golpe: Versões e controvérsias sobre 1964 e a teriam “subestimado o papel dos militares”: Ditadura Militar. São Paulo: Record, 2004. SOARES, Gláucio Ary Dillon . O Golpe de 64. In: 5 Destacam-se os trabalhos de Enrique Serra Padrós: 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. PADRÓS, Enrique (Org.). As Ditaduras de : Editora da Fundação Getúlio Vargas, Segurança Nacional: Brasil e Cone Sul. Porto 1994. Alegre: Corag/ Comissão do Acervo da Luta contra a 3 Um bom exemplo desta posição pode ser Ditadura, 2006; PADRÓS, Enrique. América Latina: encontrado no trabalho de Jacob Gorender: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: História & Luta de Classes, Marechal Cândido Ática, 1999. Rondon, julho 2007, p. 43-49. Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 111-125 • ISSN 1518-4196 O GOLPE DE 1964 E A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA NO DISCURSO DE PAULO FRANCIS

No entanto, Gaspari não foi o ideológica de Francis, ora trotskista no pioneiro, na área do jornalismo, ao tentar período pré-1964, ora liberal-conservador a registrar impressões sobre a Ditadura Civil- partir do final da década de 1970. Militar. Outros jornalistas antes dele já Paulo Francis se dizia trotskista. Deu haviam escrito memórias sobre o período. uma guinada conservadora, adotando Entre eles, o conhecido polemista Paulo postura em defesa do liberalismo, expressa Francis, que publicou um livro de memórias sensivelmente a partir da década de 1980. a respeito do Golpe de 1964, do qual as Como intelectual de esquerda, Francis teve interpretações e o estilo narrativo lembram participação marcante no jornal Última significativamente os trabalhos de Elio Hora, de Samuel Wainer, entre 1963 e 1964, Gaspari. Ao longo do texto, apontaremos quando atacava com veemência algumas dessas semelhanças. No momento, personalidades da União Democrática cabe dizer que o livro de Francis não tinha a Nacional (UDN), em especial Carlos mesma pretensão das séries publicadas por Lacerda, oligarquias políticas e Elio Gaspari, tanto em relação à extensão de organizações empresariais, além do informações, quanto ao volume documental imperialismo dos EUA. Foi marcante apresentados pelo último. Mesmo assim, os também a sua atuação no semanário O pontos de aproximação são significativos, Pasquim, entre 1969 e 1976, quando não apenas para traçar um paralelo entre os escrevia já sob a vigilância da censura. Sua dois, como também apontar as relações dos virada ideológica se consolidou em território trabalhos desses autores com a grande estadunidense, em tempos que já era imprensa. correspondente estrangeiro da Folha de São Sendo assim, o objetivo deste texto é Paulo, jornal onde foi colunista entre 1975 e apresentar uma breve reflexão sobre certos 1990. aspectos do discurso e das impressões do A Folha de São Paulo (FSP) jornalista Paulo Francis a respeito do Golpe também passou por uma fase de transição, a Civil-Militar de 1964 e do regime ditatorial qual acompanhou a virada ideológica de que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Paulo Francis. Nos tempos iniciais de FSP, Tentaremos reforçar a hipótese de que há Francis tinha como diretor de redação um vínculo importante entre o discurso Cláudio Abramo, que saiu do jornal em deste jornalista com determinada 1977. Após a saída de Abramo, a Folha interpretação acerca das causas que mudou sensivelmente a sua linha de atuação suscitaram a ascensão da Ditadura, a qual editorial. Mas tal guinada ideológica de vem sendo enfaticamente reproduzida na Francis provavelmente não foi provocada grande imprensa nos últimos anos, em unicamente pela mudança no formato do especial por meio dos trabalhos de Elio jornal. Teve maior relação com o Gaspari. Serão utilizados textos de Paulo deslumbramento pelos EUA, pelo trauma do Francis vinculados à grande imprensa, em sofrimento com o Golpe de 1964 e decepção especial ao jornal Folha de São Paulo, além com as formas pelas quais as tentativas de de seu livro de memórias acerca de 1964, implantar e gerir modelos de socialismo Trinta Anos esta noite, escrito no jubileu de foram adotados em diferentes países. Com o trinta anos do Golpe, em 1994. Tal reflexão passar do tempo, seu conformismo pelo que também se mostra pertinente no sentido de entendia por “mal menor”, materializado avaliar questões relacionadas à viragem especialmente no liberalismo econômico à

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Da mesma maneira décadas de 1980 e 1990. como o Correio da Manhã, O Pasquim pode Somado a isso, há uma problemática ser considerado de resistência ao regime interessante a ser considerada, em especial político imposto naquele momento, embora no que diz respeito à aproximação entre a formal e estilisticamente diferente do linha editorial da Folha de São Paulo, Paulo primeiro. Ali, Paulo Francis deixou o estilo Francis e outros jornalistas ligados aos que adotava no Última Hora, e mesmo no grandes jornais, especialmente à FSP e ao O Correio da Manhã, de combate às “forças Globo, como é o caso de Elio Gaspari. Um reacionárias” que, antes do Golpe, se tema plausível de aferição para tal colocavam contra Jango e, após o 31 de problemática é justamente o que gira em março, governavam o país. O próprio torno do Golpe de 1964, porque não há Francis reconhecia sua mudança e a propriamente um consenso entre os informava aos seus leitores, mas não historiadores sobre a “natureza” do Golpe, mencionando a política nacional, referindo- como comentamos brevemente no início do se sempre à política externa: texto. Por outro lado, dentro da grande Outros leitores me comparam muito imprensa, parece estar em movimento um desfavoravelmente ao Paulo Francis que processo de consenso forjado, cujo escrevia sobre política na Última Hora. parâmetro de interpretação acerca do Golpe, Deus, também conhecido por Ivan Lessa e da própria Ditadura, aproxima-se em na sua nova jornada na terra, já me chama até pelo meu nome verdadeiro, Franz alguns eixos analíticos comuns, dos quais se Heilborn (…), querendo com isso (…) permite emitir certas conclusões daquele distinguir entre um e outro, na passagem processo contextual que culminou em 1964 do tempo (…). Crianças, o Paulo Francis e nos vinte e um anos de regime ditatorial. de Última Hora foi em outro país e a moça morreu. Naquele tempo, eu ripava os EUA sem contra-argumentos. (…) Sou Paulo Francis escreve sobre o Golpe e a forçado a reconhecer que as imperfeitas Ditadura instituições democráticas dos EUA, apesar dos Mitchells e Agnews, resistiram ao teste da contestação política maciça, O livro de Paulo Francis sobre 1964 fato impensável nos meus tempos de tem enfoque memorialístico, como foi dito Última Hora, o fato da resistência e o da 6 anteriormente, publicado justamente no contestação . jubileu de trinta anos da deposição de João Goulart. Nos anos imediatamente vindouros, N’O Pasquim, o jornalista carioca se após os episódios que culminaram na queda viu obrigado a adotar um discurso desfocado de Jango, Francis só escreveu sobre o da política nacional, tratando essencialmente Golpe, criticando a Ditadura, no jornal da política externa e escrevendo críticas carioca Correio da Manhã, entre 1967 e 1968, além de dedicar um subcapítulo 6 FRANCIS, Paulo. Opiniões Pessoais. In: O Pasquim, Rio de Janeiro, n. 98, 20 a 26/5/1971. Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 111-125 • ISSN 1518-4196 O GOLPE DE 1964 E A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA NO DISCURSO DE PAULO FRANCIS culturais, especialmente referentes a cinema Washington e da agenda neoliberal e literatura. É evidente que há um cuidado hegemonizada na década de 1990. com a repressão e com a censura, mas É produtivo comparar o discurso também é um indício de conformidade com disperso neste livro com o do mesmo autor a nova postura assumida, deixando no contexto imediatamente anterior a 1964 – subentendido que teria “morrido um lado antes da guinada ao conservadorismo seu” e que, então, amadurecera. Essa liberal. Um primeiro ponto que pode ser tendência mais “amena” também se levantado, confrontando o Francis que apresentava em textos seus publicados em escrevia para Última Hora com aquele que outros periódicos de imprensa, na primeira escreveu Trinta Anos esta Noite, é a metade da década de 1970, como aqueles ausência, no livro de 1994, da referência ao integrantes do semanário Opinião, também IBAD. reconhecido como jornal de oposição ao É importante sublinhar que o IBAD regime político brasileiro de então. (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e Foi somente na Folha de São Paulo o IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos que, novamente, Francis escreveria sobre o Sociais), criados, respectivamente, em 1959 Golpe como tema a ser “examinado”. As e 1961, foram organizações constituídas por primeiras vezes, no intervalo de poucos dias, empresários e intelectuais, de caráter ao final do ano de 1976 e início de 1977, anticomunista, que atuaram sobretudo quando datava já cerca de cinco anos e meio contra o Governo João Goulart. Nos dias de exílio voluntário, em território dos EUA, que precederam o Golpe Civil-Militar, e um ano da chamada abertura “lenta, Francis atacava verbalmente o que chamava gradual e segura”, como dizia o ditador de “imprensa ibadiana”, a UDN e, General Ernesto Geisel. Naquele momento, principalmente, Carlos Lacerda, comentou algo com referência a novos adjetivando-o a todo o momento de documentos e testemunhos surgidos a “fascista”. respeito do Golpe de 1964, oriundos de As referências ao IBAD e ao fontes estadunidenses. Porém, adotava imperialismo estadunidense eram muito atitude jornalística de distanciamento, presentes em suas notas políticas no Última apenas focando os agentes externos ao tratar Hora, entre 1963 e 1964. As suas memórias do assunto. de 1994 não apenas silenciam sobre a Portanto, não temos uma descrição atuação do IBAD, tema sempre presente em pormenorizada das impressões de Francis suas colunas da época, como também sobre o Golpe naquele interregno. Francis isentam categoricamente os EUA de falaria de forma mais aberta sobre o assunto, responsabilidade sobre o Golpe. Os trechos na FSP, somente no princípio da década de abaixo, de Paulo Francis, para o jornal 1980, quando assumidamente dizia ter Última Hora, evidenciam a perspectiva abandonado as convicções acerca de descrita acima para a defesa do governo qualquer alternativa socialista. No livro de Jango, além da denúncia e ataque aos seus 1994, Trinta Anos esta Noite, o jornalista já adversários: tinha consolidado, por meio de outras O líder político do movimento [do golpe publicações e pela própria imprensa, as que se desenhava contra Jango] é Carlos posições conservadoras que o aproximava Lacerda; (…) o líder militar é o Gal das diretrizes incentivadas pelo Consenso de Castello Branco. (…) O mandato do

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presidente (…) será defendido pelas Lyndon Johnson”, cujo nome não podia armas, pela greve geral. Não serão revelar, dizia Francis9. Dias depois, toleradas fórmulas de legulelos ibadianos para impeachment. (…) A ‘guerra timidamente, ainda reproduzia notícia do psicológica’ está desencadeada para Wall Street Journaul sobre o “estado de fomentar o medo, a desconfiança e o liberdade” no mundo de então, referindo-se divisionismo. Os editoriais da imprensa ibadiana parecem escritos pela mesma ao Brasil como um país “parcialmente 10 equipe. São “inspirados” pela mesma livre” . E foi só. equipe. Adverti os leitores de que as As considerações com maior forças do imperialismo e latifúndio detalhamento por parte de Francis sobre o procurariam todos os meios de desviar o debate das reformas para o subjetivismo episódio golpista só vieram a partir de difamatório, para a politicagem pura e algumas colunas suas na FSP durante a simples, terreno onde os recursos do década de 1980. Em abril de 1980, passado 7 IBAD florescem sem obstáculos . alguns dias do 16º aniversário do Golpe, o

jornalista carioca opinava sobre a suposta No dia seguinte, reafirma: mediocridade de Golbery do Couto e Silva, O Golpe está aí anunciado nos editoriais perguntando “onde estaria ele sem o de primeira página da imprensa ibadiana, Exército por trás em 1964 e nas outras articulado por três governadores em nome 8 ocasiões em que foi ao poder?”, fazendo da defesa da Federação (…) . 11 alusão também ao IPES e IBAD . Da Essas foram as últimas colunas de mesma maneira, lembrava do IBAD e do Francis no Última Hora, em seu espaço IPES em dezembro de 1982, novamente chamado Paulo Francis interpreta e recordando a época em que havia comenta. No dia 1º de abril de 1964 o jornal conspiradores civis, representados por foi depredado e incendiado. Francis, então, organizações do empresariado e certos escondeu-se por um tempo com medo de intelectuais, contra o governo Jango. represálias. Ficou cerca de dois anos fora Portanto, na década de 1980, ainda das redações dos jornais. Exceto pelos recordava o papel dos empresários na posicionamentos políticos que deixava derrubada de Jango. Porém, como já transparecer sobre o regime em vigor no enfatizamos, pouco faz referência à ação Correio da Manhã, entre 1967 e 1968, além empresarial em seu livro de memórias das impressões dispostas no já mencionado Trinta Anos Esta Noite. As memórias Opinião Pessoal, de 1966, o autor só apresentam uma visão do Golpe com escreveria sobre o assunto, sob a perspectiva participação eminentemente militar, à analítica, cerca de dez anos depois, em uma exceção do desempenho de um civil em página inteira para a FSP. Mesmo assim, o particular, no papel de agitador dentro da conteúdo resumia-se aos “interesses imprensa, Carlos Lacerda. Porém, externos” pelo Golpe de 1964 no Brasil. O substancialmente, a avaliação de Francis título de sua coluna dizia: “Estados Unidos 9 Folha de São Paulo, 31/12/1976. estavam prontos para intervir no Brasil em 10 Folha de São Paulo, 19/01/1977. 1964”. A fonte de então é creditada “a uma 11 “(…) Onde estaria ele [Golbery] sem o Exército alta personagem no Conselho de Segurança por trás em 1964 e nas outras ocasiões em que foi ao poder? Estaria de pijama em Copacabana, ou no Ipes, Nacional nos governos John Kennedy e um dos vários Ibads que conspiraram contra a semidemocracia que tínhamos antes de 1964, para ser 7 Última Hora, 31/03/1964. trocada pela maravilha curativa que foi imposta ao 8 Última Hora, 01/04/1964. Brasil. É pobre”. Folha de São Paulo, 5/4/1980. Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 111-125 • ISSN 1518-4196 O GOLPE DE 1964 E A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA NO DISCURSO DE PAULO FRANCIS apresenta-se esvaziada da relevância de Para Paulo Francis, em Opinião quaisquer grupos coletivos, como a do Pessoal (1966), por exemplo, o regime que complexo IPES/IBAD, em que a história, se instalara em 1964, cuja deflagração é para ele, é determinada pela vontade de adjetivada claramente como “Golpe”, seria poucos indivíduos. René Dreifuss foi quem fruto, além da fraqueza de Jango, da conseguiu, como ninguém, argumentar a manipulação sobre a pequena e média relevância dessas organizações empresariais burguesia, feita pela imprensa e por para o desgaste de Goulart e à articulação organizações como o IBAD, tendo como golpista12. Tais organizações seriam ferramenta fundamental o anticomunismo13. financiadas pelos EUA, seguindo orientação Naquele momento, também relacionava a dos relatórios da embaixada norte-americana ditadura com o imperialismo estadunidense. no Brasil, a qual classificava Goulart como Referindo-se aos prejuízos de 1964, Francis uma personalidade perigosa aos interesses dizia que as massas populares é que estavam estadunidenses no país. pagando o preço “pela submissão crescente Com isso, Paulo Francis superestima do Governo Castello Branco às diretrizes o protagonismo de determinados agentes dos EUA14. Por outro lado, em Trinta Anos para a ocorrência dos fatos que suscitaram Esta Noite, esse quadro interpretativo se 1964, dando peso demasiado aos próprios distingue significativamente, sem contar o militares, desconsiderando a importância fato de relativizar a noção de Golpe de das organizações coletivas (tanto as de Estado15. defesa do governo Goulart, como as de No livro de 1994, sua opinião oposição) e, também, descrevendo referente à inexpressividade da participação elogiosamente as personalidades de Castello popular diante das decisões políticas torna- e Golbery, chegando a pressentir vocação se evidente. Um subcapítulo é inteiramente “democrata” dos mesmos em certos dedicado a tal cogitação, rotulando a momentos. questão desta maneira: “Existe povo, Em seu texto, não há uma avaliação politicamente?”16. Em certa altura responde substancial do “pré-golpe”, das razões que sobre a politização de movimentos levaram a ele. Há apenas uma digressão ao populares em momentos políticos relevantes período getulista, como um preâmbulo de historicamente: “A participação popular uma época nacionalista que teria esgotado nesses acontecimentos é nenhuma, que eu sua vitalidade política. Os detalhes dessa possa perceber. Há, às vezes, passeatas, reflexão sugerem mais uma tentativa de como em 1968, mas, se se olha bem, são os mostrar o atraso econômico, frente a uma necessidade liberal sempre apontada por Francis, do que um esforço para enumerar 13 elementos que precipitariam o Golpe. Essa FRANCIS, Paulo. Opinião Pessoal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, pp. 15-34. lacuna surpreende, de certa forma, levando 14 Ibidem, p. 55. em conta certos escritos anteriores do 15 Ainda no princípio da narrativa, intitula um dos capítulos como “Cronologia de um Golpe (ou jornalista, em que ponderava alguns Revolução?)” e, na sequência, questiona: “E quem elementos substanciais acerca do contexto deu o golpe, se golpe foi?”. FRANCIS, Paulo. Trinta de então. Anos Esta Noite. São Paulo: Francis, 2004, p. 25 e 33. 16 FRANCIS, Paulo. Trinta Anos esta noite: 1964, o que vi e vivi. São Paulo: Francis, 2004, p. 223 (1ª 12 DREIFUSS, René. Op.cit. edição de 1994). Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 111-125 • ISSN 1518-4196 DOSSIÊ DITADURAS DE SEGURANÇA NACIONAL E TERRORISMO DE ESTADO habituais suspeitos que fazem barulho. O sabe como funcionam os EUA, onde moro há 23 anos. Sem dúvida, Johnson resto é gente curiosa”17. apoiou a remoção de Jango, reconhecendo Suas fontes são quase sempre de apressadamente o governo provisório de “informantes”, como ele mesmo diz, aos Mazzili, no dia da posse, louvando-o por quais dá maior ou menor credibilidade, preservar a democracia… É certo que o embaixador Lincoln Gordon deve ter conforme seu próprio juízo. Nesse sentido, dado sinal verde a conspiradores como as fontes de então não são distintas daquelas Castello (…) e, como disse, temia de outrora, como acima citamos na “perder” o país para alguma forma reportagem que fez à FSP, em dezembro de cabocla de comunismo. Há mil maneiras de acenar sem ser diretamente19. 1976, quando se baseava fundamentalmente em um “informante” (não identificado). Para o jornalista carioca, a Entretanto, a sua interpretação na década de intervenção não teria sido direta nem 1990, em Trinta Anos esta Noite, já não era indireta, sugerindo que tenha sido “um a mesma daquela de 1976. No livro, Paulo aceno”, uma concordância de que a Francis relativiza o interesse dos EUA pelo derrubada de Jango e a ascensão dos cenário brasileiro de 1964, chegando a dizer golpistas iam ao encontro dos interesses que desacreditava numa participação direta estadunidenses. Ademais, fala com um tom ou indireta dos Estados Unidos: “Muita de autoridade no caso, de quem está há mais gente boa está convencida de que o governo de vinte anos nos EUA, mas na realidade dos EUA participou, direta ou seu ponto de vista resume-se a um palpite, indiretamente, do 1964. Há documentos que destituído de qualquer fonte confiável. Os sugerem isso e aquilo. Não é o que mesmos “informantes” (dos quais boa parte 18 acredito” . não cita o nome) que lhe dão dados sobre a O jornalista argumenta que nada se não cumplicidade dos EUA com o Golpe, mantém em segredo nos EUA. O fracasso têm o mesmo peso daqueles da década de em intervir em Cuba e matar Fidel, por 1970 que lhe disseram justamente o oposto, exemplo, após ter se consumado a conforme a coluna citada na FSP; ou seja, Revolução Cubana, seria uma, entre outras pouco se pode concluir sobre o assunto provas, de como a CIA fora incompetente nestes termos. Os dados desses nas intervenções em outros países. “informantes”, ou depoentes, para terem Relacionando essa perspectiva com outras maior relevância, mesmo que citados seus intervenções mal sucedidas e o caso nomes, deveriam ser tratados com maior brasileiro, acrescenta: suspeição e, preferencialmente, postos em

Notem que, para intervir às escâncaras no contraste com outras informações que se Vietnã, Lyndon Johnson teve de pretender tem a respeito do que se está investigando, um ataque dos vietnamitas contra a ou do que se quer lançar luz para um melhor Marinha dos EUA, no golfo de Tonkin. A entendimento dos fatos. resolução de intervir passou por dois votos no Senado americano… O que Chamam a atenção também os teriam de inventar sobre Jango para momentos dedicados à apreciação do justificar uma intervenção no Brasil? Que governo Castello Branco. Os elogios a ele fez pipi na Estátua da Liberdade? Castello mostram-se no entendimento de Quem fala disso com muita segurança não que o General teria tendências democráticas,

17 Ibidem, p. 225. 18 Ibidem, p. 131. 19 Ibidem, p. 137. Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 111-125 • ISSN 1518-4196 O GOLPE DE 1964 E A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA NO DISCURSO DE PAULO FRANCIS mas também na sua inclinação pela suposta mas em razão das circunstâncias ele não competência em montar seu ministério e tivera outra escolha: gerir a economia. Segundo Francis, antes do Castello aceitou estender seu mandato. Golpe, haveria uma tendência de reformas Era o início da ditadura plena (…). Os liberais-econômicas, das quais a inspiração militares anti-Castello, antiliberalização civil seria liderada por Carlos Lacerda, e que da economia, se aproveitaram disso para se consolidaria num futuro de ideias exigir mais repressão, tentaram convencer o vai-levando do governo num Estado condizentes com as realidades da economia policial (…). Castello ganhou até 1967 de mercado dos EUA. Sendo assim: para fazer suas reformas, um toma-lá-dá- cá moralmente deplorável, talvez, mas O primeiro governo de 1964, de Castello que alternativa havia?21 Branco, foi mais ou menos tirado dessas fontes. e Gouveia de Embora atomize as decisões e as Bulhões conseguiram baixar a inflação de 80% para 40% ao ano. Criaram o BNH ações fundamentais do Golpe e do próprio para valorizar e coordenar a aplicação de caráter inicial da Ditadura, Francis apela dinheiro em bens imobiliários. certas vezes à análise do processo para Dinamizaram o BNDE, para cofinanciar a isentar a omissão do General golpista diante indústria privada. Desvalorizaram o cruzeiro para torná-lo moeda real (desde do encaminhamento pelo regime ditatorial. Getúlio Vargas, no período de Presidência O jornalista carioca entende que Castello de 1950, os nacionalistas, pela Instrução Branco se vira impotente diante do processo 60, fixaram artificialmente o valor do dólar e criaram barreiras fortes à e, dessa forma, a Ditadura teria sido quase importação). Chamaram de todas as uma fatalidade. Agregado a isso, relaciona formas o capital estrangeiro. O capital não esse ponto de vista com o suposto caráter veio, diga-se, apesar de o governo dos menos cruel da ditadura brasileira, a qual EUA ter emprestado 4 bilhões de dólares ao Brasil para essas reformas internas. Eu não se compararia com regimes congêneres não entendia do assunto quando isso foi na região do Conesul: feito. Graças aos céus não tinha onde escrever, pois dispararia besteiras mil. As violências foram e são imperdoáveis. Hoje, aprovo completamente essas Fui amigo de Vlado e Rubens Paiva (…). reformas e gostaria que houvesse mais, E as centenas de anônimos e anônimas, apesar da origem do regime ser a força20. estas últimas não raro seviciadas sexualmente, que pereceram nos quartéis. É notável a identificação com uma Ainda assim são centenas, talvez mil e poucos. Não são os milhares e milhares de vertente liberal que teria se manifestado no vítimas das ditaduras de Pinochet, governo Castello. Acima, percebe-se que Stroessner e dos generais argentinos, cujo não deixa de realizar uma autocrítica à sua tônus se assemelhava ao da Gestapo fase anterior, como ideólogo de esquerda, nazista. Castello, por certo, não queria ser ditador nem estabelecer ditadura. É argumentando que naquele momento não importante repetir que se autocassou, por entendia de economia. Nota-se, nas palavras assim dizer. Isto é, negou-se a tentar do jornalista, que a preferência pela sequer sua reeleição e só ficou no poder liberalização econômica quase isenta até 1967. Foi levado ao que fez por circunstâncias22. Castello por ter optado posteriormente pela Ditadura. Dá a entender que o liberalismo castellista era incompatível com a mesma,

21 Idem. 20 Ibidem, p. 112. 22 Ibidem, p. 116. Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 111-125 • ISSN 1518-4196 DOSSIÊ DITADURAS DE SEGURANÇA NACIONAL E TERRORISMO DE ESTADO

Em seu livro, Francis entende que os o regime, que não se assumia como militares regentes do Golpe, especialmente Ditadura. Em retrospectiva, até chegar aos Golbery e Castello, não desejavam um EUA em 1971, Paulo Francis qualificava a regime ditatorial. As ações seguintes é que Ditadura como “envergonhada”, epíteto teriam se precipitado contra a abertura, e o idêntico ao utilizado por Elio Gaspari, oito que provaria isso seria a suposta reticência anos mais tarde: entre os militares em manter um único líder no comando do país, insistindo na Vim para os EUA. Cheguei em 10 de junho de 1971 (…). Vindo do Brasil me alternância do poder. Enfaticamente, Francis senti cachorro a quem abriram o canil e confirma essa ideia no programa Roda Viva, largaram solto num campo livre, ilimitado da TVE, onde foi em 1994, por ocasião da até onde os olhos enxergavam. Mas quero fazer justiça aos militares brasileiros. Em publicação de Trinta Anos esta Noite: restrospecto me parece que sua ditadura

era envergonhada, sempre professamente Absolutamente, eu acho que nunca eles transitória, seguindo um ritual de eleição quiseram fazer ditadura. Tanto que eles de um general atrás do outro, eleito nos estabeleceram um rodízio. Onde é que já quartéis e no Alto Comando, e, depois, se viu ditador em rodízio, só no Brasil. sufragado no Congresso civil de Fazer ditadura é com o Pinochet, que fica 24 fancaria . 200 anos. Ditador é um só: Stroessner,

Fidel Castro. Justamente para evitar a perpetuação do Estado. Agora, qual é o Qualificar a Ditadura de movimento apropriado para abrir? Essa é “envergonhada”, segundo Paulo Francis, que era a questão. Aí, cada um tem a sua seria não ignorar a hesitação constante dos agenda particular. O Geisel devia ter, a agentes militares em se reconhecerem como meu ver, também. É pura especulação. O Elio Gaspari está escrevendo um livro ditadores, como se o embaraço diante das sobre isso. E ele deve saber muito mais, características autoritárias do regime, de porque ele tem documento, ele tem alguma forma, tornasse aquela situação arquivos do Golbery, ele tem uma coisa peculiar. Tal argumento vai ao encontro da que os acadêmicos adoram, no fundo é uma versão do Golbery do que está ideia de uma ditadura mais amena, que acontecendo23. partilhava características comuns com os “interesses democráticos”, como o próprio No final desse excerto, Francis desejo de ser uma democracia, negando-se demonstra estar a par do trabalho realizado no discurso constituir-se enquanto ditadura. por Elio Gaspari. Adiante comentaremos Dessa forma, essa perspectiva guarda o este detalhe. Acima, o jornalista especula raciocínio de que, ao ocorrerem sucessões que a opção pela Ditadura poderia ter sido presidenciais e, proporcionalmente, haver pela indefinição de como promover a menos repressão, em comparação às abertura, sugerindo que essa exitação teria ditaduras congêneres do Conesul, se se sobreposto à predileção pela Democracia. comprovaria a peculiaridade da Ditadura Em consequência disso, as motivações para brasileira, supostamente permeada de boas os anos iniciais de época ditatorial teriam intenções, mas com peso na consciência sido, em suma, quase constrangedores para frente às atrocidades (necessárias?) que era “obrigada” a cometer. 23 Programa exibido em 31/10/1994. A íntegra da entrevista pode ser encontrada em: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/35/entrevistad os/paulo_francis_1994.htm. Acessada em 20/07/2010. 24 Ibidem, p. 115. Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 111-125 • ISSN 1518-4196 O GOLPE DE 1964 E A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA NO DISCURSO DE PAULO FRANCIS

Paulo Francis e Elio Gaspari: ideias em Ditadura Envergonhada, os personagens comum e sociabilidade em Nova Iorque centrais atuantes na trama que teria arquitetado o Golpe, e na maneira como se À semelhança de Francis, Elio implantou e declinou o regime ditatorial, Gaspari qualifica a Ditadura como estariam personificados essencialmente nas “Envergonhada”, mas a vergonha teria se figuras de Golbery do Couto e Silva e de limitado ao Governo Castello, pois em 1968, Ernesto Geisel. Além disso, Gaspari com a implementação do AI-5, para minimiza a participação das classes Gaspari, a Ditadura teria tornado-se empresariais e dos EUA no Golpe, do “Escancarada”25. Para Paulo Francis, no mesmo modo que faz Francis. entanto, a própria sucessão de militares lhe Elio Gaspari acredita, da mesma parecia uma ditadura envergonhada. De forma que Paulo Francis, na ação qualquer forma, há semelhança no modo de providencial de protagonistas excepcionais, racionalizar a natureza do regime para em uma história caracterizada pelas "elites ambos os autores. Elio Gaspari, políticas", determinada pela vontade de similarmente a Paulo Francis, também poucos indivíduos. O autor também se constrói uma visão positiva de Castello, utiliza de “informantes” para reforçar seus elogiando-o como poliglota e portador de argumentos ou citar uma ou outra “letra elegante, além de ressaltar curiosidade (apesar de, ao contrário de seguidamente que a Ditadura, sob sua Francis, se apoiar fundamentalmente em um responsabilidade, se pretendia grande número de documentos). Ao longo temporária”26. Além desses, há outros de sua narrativa, desaparece a trama social, elementos que chamam atenção na em que os comportamentos singulares e convergência de pontos de vista. individuais estão relacionados com o tecido Pode-se dizer que a semelhança mais da sociedade. O Golpe e a Ditadura seriam significativa entre Francis e Gaspari diz também consequências de um sucesso respeito ao fato de darem grande relevância eminentemente militar, além de um produto à ação das “eminências pardas”, dos relacionado ao “desvio moral” decorrente do Generais e à política feita dentro dos acaso ou da “inabilidade política” de um gabinetes. Esta tem sido, a propósito, uma agente histórico atomizado, que é, crítica recorrente feita por historiadores aos particularmente, o juízo que Gaspari faz do livros de Gaspari27. Para o autor de A ex-presidente João Goulart28. Por essa razão é que transparece o enfoque interpretativo 25 A série “ilusões armadas” divide-se em dois nos títulos dos volumes: a Ditadura que volumes, do qual o primeiro, A Ditadura Envergonhada, percorre os acontecimentos dos anos seria em caráter provisório (envergonhada) e desde a instauração do Golpe, em 1964, até o a Ditadura que de fato foi em caráter imediato pós-1968, com a decretação do AI-5. No definitivo (escancarada). segundo volume, A Ditadura Escancarada, são percorridos os anos entre 1969-1974, finalizando a narrativa dos últimos tempos de guerrilha. MAESTRI, Mário; JAKOBSKIND, Mário Augusto. GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São A historiografia envergonhada. In: História & Luta Paulo: Companhia das Letras, 2002; GASPARI, Elio. de Classes, Abril de 2005, p. 125-131; FICO, Carlos. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Além do Golpe. Op.cit. Letras, 2002. 28 Tal juízo é justificado ainda por uma nota de 26 GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada, rodapé em que cita uma frase crítica de Celso op.cit., p. 129-232. Furtado em relação a João Goulart. Furtado havia 27 SILVA, Marcos. Jornalismo retrospectivo e quase sido Ministro do Planejamento de Jango: GASPARI, história. In: Revista Adusp, maio de 2005, p. 80-84; Elio. A Ditadura Envergonhada, op.cit., p. 46 Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 111-125 • ISSN 1518-4196 DOSSIÊ DITADURAS DE SEGURANÇA NACIONAL E TERRORISMO DE ESTADO

Na entrevista ao programa Roda Francis em Trinta Anos esta Noite, que Viva, citada anteriormente, Paulo Francis qualifica a Ditadura brasileira como menos deixa claro que está a par do trabalho que cruel comparada às suas congêneres na Elio Gaspari estava desenvolvendo, e que Argentina e no Chile31. resultaria nos livros em questão. De fato, Abrindo um parênteses em relação a Francis e Gaspari, além de compartilharem este tema, referente à crueldade e ideias semelhantes, eram amigos. perseguição, Francis, ainda na FSP, na Encontravam-se em Nova Iorque, no década de 1980, escrevia que “a grossura intervalo do trabalho, dividindo momentos entre 1968 e 1975 foi intolerável”32. de sociabilidade em passeios e almoços, Também lamentava o infortúnio de vários como o próprio Paulo Francis recorda: amigos seus. Chegou a citar, na ocasião do falecimento do cineasta , em O Elio e eu nos divertimos muito quando 1981, os malefícios causados pelo regime, ele morava em Nova York (como correspondente da revista Veja). Nós que reprimia a liberdade jornalística e almoçávamos aqui (no Bravo Gianni), daí perseguia seus amigos íntimos, como o dávamos uma volta de 40 quarteirões para próprio Glauber Rocha: “(…) a hora é afinar a barriga e ver os loucos. Os loucos são a maior atração de Nova York. Saem realmente de chorar, pela brutalidade de gritando por aí. Tem louco que entrou na nossa vida pública, que apressou a morte de era da eletrônica e grita de microfone Glauber, mantendo-o fora do único lugar em (…). Saíamos daqui para ir à Quinta que se sentia bem, o Brasil”33. Ao mesmo Avenida, na altura do Central Park. Aí, íamos andando pela Quinta até a tempo, dizia “não [ser] tanto a violência confluência com a 57, que é a maior [que] o preocupava, ainda que devesse esquina do mundo. Ali você vê as preocupar mais, talvez (…)”. O problema mulheres mais bonitas do planeta. O Elio maior estaria na falta de “oposição real, tem até uma piada ótima. Diz que as mulheres quando ficam velhas passam lá orgânica, visceral, ao modelo, nas classes para lembrar de quando eram gostosas e intermediárias da sociedade brasileira. O 29 bonitas. Porque vêem as outras, é claro . que há é uma reação de ressentimento a que o modelo não mais produza como nos A grande imprensa preparou ampla tempos do ‘milagre’”34. badalação em torno dos livros de Elio Retomando a relação entre Francis, Gaspari. O jornal em que ainda trabalha, a Gaspari e a grande imprensa, na entrevista Folha de São Paulo, deu larga divulgação supracitada, concedida ao Roda Viva, aos seus livros, chegando a ser designado Francis alegou que Gaspari “saberia mais em uma matéria de Mário Magalhães como detalhes”, por estar fazendo um trabalho 30 “o biógrafo da Ditadura” . A própria Folha elaborado com fontes documentais: de São Paulo tem deixado transparecer uma “[Gaspari] tem documento, ele tem arquivos determinada visão do “caráter da Ditadura do Golbery, ele tem uma coisa que os brasileira” que se instaurou em 1964. O acadêmicos adoram”. O jornalista carioca, conhecido editorial da FSP que deixou embora aqui dissesse que Gaspari atendesse escorregar o termo “ditabranda”, tem uma necessidade acadêmica, como citar paralelo com as alusões apresentadas por

31 Folha de São Paulo, 17 de fevereiro de 2009. 29 Paulo Francis por ele mesmo (Entrevista). Revista 32 Folha de São Paulo, 5 de janeiro de 1984. Cult, 14/03/2010. 33 Folha de São Paulo, 28 de agosto de 1981. 30 Folha de São Paulo, 23 de novembro de 2002. 34 Folha de São Paulo, 5 de janeiro de 1984. Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 111-125 • ISSN 1518-4196 O GOLPE DE 1964 E A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA NO DISCURSO DE PAULO FRANCIS documentos de Golbery, também, em outros Em tese, os livros guardam maior tempos, fazia a crítica inversa, condenando a independência frente aos artigos escritos nos academia. Ou seja, os acadêmicos, segundo jornais, os quais estão sempre sob “o crivo Francis, não recorreriam às testemunhas da das redações”. Porém, mesmo se essas época, recurso que seria muito utilizado por “produções independentes” continuam em ele, embora sem um rigor teórico e conformidade com posições assumidas nos metodológico, por exemplo, como é caro às editoriais da grande imprensa, e tais exigências formais, hoje, da chamada posições assumem conotação consensual “história oral”35. De qualquer modo, seus nos espaços dos grandes periódicos, é comentários evidenciam uma indício de que esses espaços são despreocupação autoral em documentar a propositalmente hegemonizados, base de seus argumentos, ao mesmo tempo contrastando a ideia, que grande parte dos em que divulga o trabalho em andamento de veículos de imprensa tenta difundir, de que seu colega, com tendência supostamente são imparciais e comprometidos com uma oposta. ética idônea no trato da informação e da De maneira geral, apesar de comunicação. pormenores distintos, vemos que há uma evidente relação entre as interpretações de Considerações Finais Paulo Francis e Elio Gaspari sobre o Golpe e o caráter da Ditadura, não apenas É importante lembrar, como referentes às suas ideias, mas presumível apontamos anteriormente, que existe também pela própria sociabilidade entre os considerável produção de conhecimento dois. Apesar de se dizerem jornalistas acadêmico sobre os acontecimentos independentes, é necessário lembrar o lugar vinculados ao Golpe e à Ditadura, de onde ambos escrevem – ou escrevia, no principalmente oriunda de historiadores, caso de Francis – levando em consideração cientistas sociais e filósofos, que adota outra as empresas jornalísticas às quais se postura conclusiva, diferente das vinculam. Afinal, o trabalho dos dois se apresentadas pelos jornalistas que aqui insere na área do jornalismo político e, neste comentamos, ao analisar a contextualização campo, os intelectuais sempre marcam as do tema36. Nesse conjunto, dificilmente suas posições. Suas relações com a grande haverá o tratamento descuidado de fontes imprensa, como a Folha de São Paulo, O como “autoridades da verdade”, como no Globo, e mesmo a revista Veja, não devem caso dos “informantes” de Francis e ser escamoteadas.

36 Embora agregando uma diversidade de interpretações e perspectivas de abordagem, podem 35 Ao se referir que a esquerda pensava que o golpe ser usados como exemplos os diversos artigos da tinha a intenção de colocar Lacerda no poder, Paulo obra coletiva de Caio Navarro de Toledo e daquelas Francis confirma que Golbery se reuniu com Ênio publicadas nos jubileus de trinta e quarenta anos do Silveira, Álvaro Vieira Pinto, e outros líderes de golpe civil-militar: TOLEDO, Caio Navarro de esquerda, pedindo-lhes apoio condicional. Golbery (Org.). 1964: Visões Críticas do Golpe: democracia e teria reveladodo que Lacerda e outros líderes que reformas no populismo. São Paulo: Unicamp, 1997; “enganavam o povo” seriam afastados do poder: “O SOARES, Gláucio Ary Dillon (Org.). 21 Anos de general Golbery está aí. Ênio Silveira está aí. Seria Regime Militar: Balanços e perspectivas. Rio de útil que nossos acadêmicos de vez em quando Janeiro: FGV, 1994; REIS FILHO, Daniel; conversassem com quem participou e ajudou a fazer RIDENTI, Marcelo; SÁ MOTTA, Rodrigo Patto a história, em vez de só lerem o que é publicado”. (Orgs.). O Golpe e a Ditadura Militar – 40 anos Folha de São Paulo, 12/4/1984. depois (1964-2004). Bauru: Edusp, 2004. Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 111-125 • ISSN 1518-4196 DOSSIÊ DITADURAS DE SEGURANÇA NACIONAL E TERRORISMO DE ESTADO

Gaspari, os quais são avaliados por meio de disputa pela maneira como deve ser juízo subjetivo de maior ou menor confiança compreendida a história torna-se objeto de em seus depoimentos, carecendo de disputa hegemônica. Somado a outros problematização adequada. É impraticável elementos, a maneira como Paulo Francis encontrar o tratamento dado aos ditadores racionalizou e procurou explicar a Ditadura Castello, Golbery e Geisel, mencionados Civil-Militar é uma fonte rica para a melhor como militares refinados e com tendências compreensão de sua virada ideológica. Sem progressistas. Porém, sejamos justos, dúvida, o espaço que teve na grande também existe dentro do campo imprensa está relacionado à perda de historiográfico a “história personalizada”, importantes características de seu discurso guiada por decisões de gabinete e anterior à década de 1970. Para ele, a conchavos, que não raras vezes omite as Ditadura representou um momento organizações coletivas. Assim, não é importante: o exílio voluntário nos EUA, a incomum encontrar essa prerrogativa em adaptação de seu conteúdo textual frente aos certas vertentes da história política, muitas cortes e às ameaças de cortes da censura, vezes centrada demasiadamente nas relações além do ingresso com estabilidade na grande das “elites” nas disputas de poder. imprensa, com contrato exclusivo na Folha As próprias características deste de São Paulo, proporcionando-lhe o contato “modelo de interpretação” do Golpe de 1964 com pessoas poderosas, vislumbrando uma e da Ditadura, afastadas de grande parte das vivência extremamente contrastante com a interpretações mais criteriosas dos que tinha no Brasil. historiadores e outros profissionais de A partir de certo momento, Francis dentro e de fora da academia, mostra, no passou com maior frequência a conviver em mínimo, o descuido que há com a um círculo de homens ricos, conservadores complexidade dos fenômenos históricos. Do e próximos do poder, como Delfim Netto e mesmo modo, a preferência pela visão o banqueiro Ronald Levinsohn. Este último, liberal dos acontecimentos (elogios às inclusive, cuidava e administrava sua conta medidas liberalizantes e simpatia àqueles bancária, avaliada pouco antes de sua morte ditadores mais compromissados com tais em três milhões de dólares37. Do mesmo medidas) demonstra de maneira clara a modo, e igualmente significativo, Elio feição ideológica dessas interpretações. Em Gaspari guardava estreitas relações com síntese, é significativo como essas Golbery e Geisel, os quais lhe cederam seus explicações acerca da temática, junto aos acervos pessoais que ocasionaram as jornalistas que compactuam com elas, publicações da série As ilusões Armadas. ganhem espaços privilegiados na grande Poderia se questionar também a imprensa. semelhança dos formatos narrativos desses De todo modo, essas comparações enfoques jornalísticos da história. As colocam sempre em dúvida a independência metáforas, ironias e doses de cinismo são do intelectual e do jornalismo feito na/para a recursos que agradam o leitor e, portanto, grande imprensa. Aliado a isso, o espaço de opiniões consensuais sobre determinado 37 BEIRÃO, Nirlando. Francis, o homem-bomba. In: ponto de vista histórico pode indicar a Revista Brasileiros, Março/2010, Edição 32. Disponível em: posição de certo veículo de imprensa como http://www.revistabrasileiros.com.br/2010/03/18/paul Aparelho Privado de Hegemonia, em que a o-francis-o-homem-bomba/, acessado em 16 outubro de 2011. Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 111-125 • ISSN 1518-4196 O GOLPE DE 1964 E A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA NO DISCURSO DE PAULO FRANCIS têm apelo mercadológico. As críticas que editoriais as empresas jornalísticas emitem têm sido feitas a essas narrativas, suas opiniões, mas no próprio conjunto do condenando o suposto protagonismo de periódico, incluindo a organicidade dos alguns agentes nas ações, as quais dariam intelectuais, escolhendo amiúde seus rumos importantes e definitivos à história, jornalistas e dando destaque aos seus textos evidenciam a fragilidade das interpretações e status como respeitáveis intelectuais. derivadas dessas obras. Entretanto, o Paulo Francis continua sendo historiador também pode questionar a razão referência obrigatória em tais veículos de delas terem sido construídas daquela imprensa. Sua influência é referenciada por maneira, e se com vista a atender uma inúmeros jornalistas. Desde que o articulista demanda mercadológica. carioca faleceu, em fevereiro de 1997, não Supostamente o mercado tem melhor faltam homenagens e reminiscências à sua aceitação para amenidades, processos mais biografia e ao seu estilo de comunicação. tragáveis de compreensão, com linguagem Boa parte da herança que Francis deixou em acessiva e romanceada. Porém, a termos intelectuais, no entanto, não trivialidade da narrativa jornalística se apresenta nada de excepcional: entre outros coloca em oposição à complexidade dos temas, especialmente aos alusivos à história fenômenos históricos. Tal perspectiva pode do Golpe e da Ditadura, ao que tudo indica, muito bem acompanhar certas condutas de foi apenas mais um, entre outros jornalistas, classe e tentativas de construção a tentar forjar uma interpretação consensual hegemônicas de determinado ponto de vista sobre aqueles eventos, a qual tem se histórico. Como resume Carlos Fico, no repetido no conteúdo político informativo da caso da memorialística do Golpe e da grande imprensa do país, com pouquíssimas Ditadura: esse enfoque pode ser estudado vozes dissonantes. Entretanto, justamente como “a luta pelo estabelecimento da por ligar-se a este elo junto aos grandes ‘versão correta’” dos fatos38. Sem dúvida, veículos de comunicação e Aparelhos não há como separar essas disputas sem Privados de Hegemonia, sua herança atrelá-las aos desdobramentos que têm no intelectual da fase liberal-conservadora tempo presente e sem desnudá-las de seu torna-se relevante como objeto de estudo e caráter ideológico. necessária referência para o conhecimento Nesse sentido, a grande imprensa da grande imprensa brasileira. tem desempenhado um papel destacado na memorialística do Golpe e da Ditadura. Pelo Recebido em: 21/01/2013 menos em três grandes veículos Aceito em: 27/01/2013 jornalísticos, como os jornais FSP, e a revista Veja, Paulo Francis e Elio Gaspari tiveram amplos espaços para escrever. A repercussão, entre os colegas de redação, de suas produções independentes, notadamente as de conotação essencialmente política, foi e é notória. Isso põe em questão que não apenas nos

38 FICO, Carlos. Op.Cit., p. 25-26. Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 111-125 • ISSN 1518-4196