Quem ama não mata... ou mata? Identidades da mulher na mídia: Família, Trabalho e Sexualidade 11o Capítulo de "As aparições do deus Dionísio na Iadade Mídia"

Cláudio Cardoso de Paiva Universidade Federal da Paraíba

Índice sos que têm prejudicado as relações entre os gêneros. Se por um lado o feminismo ab- 1 Evolução virtual e social da mulher riu -para o melhor- uma ferida narcísica na brasileira 1 civilização branca e machista do Ocidente, 2 ...quem vai juntar os tais caquinhos do por outro lado, as relações afetivas se tor- velho mundo? 2 naram mais estremecidas. Nas anedotas so- 3 Que contradição... só a guerra faz o bre os casais americanos modernos, sintoma- nosso amor em paz... 4 ticamente, o riso se afrouxa diante do novo 4 Anima e animus da ficção brasileira 4 triângulo formado pelo marido, a mulher e o 5 Objetos de consumo e histórias da advogado das causas conjugais. vida privada 5 Chistes à parte, é preciso reconhecer que 6 Imagens dionisíacas no contexto da persistem ainda alguns preconceitos com re- mídia 7 lação à mulher; seja na dimensão econômica, política ou social. Não se pode fazer vista 1 Evolução virtual e social da grossa para o fato de que existem muitas for- mulher brasileira mas de exclusão e misogenia. Na época da globalização, o mundo parece ter encolhido Dos movimentos sociais que tiveram curso e as regiões distantes se assemelham; mas há neste século, a luta pela emancipação da mu- culturas locais, pelo planeta, que preservam lher se destaca porque conseguiu ir longe na tabus e signos regressivos que levam à infe- batalha pelos seus direitos. Do movimento licidade geral. O tratamento dispensado às feminista 1 à ética do "politicamente"correto muçulmanas, os baixos salários das mulhe- norte-americano 2, existem alguns retroces- PAGLIA, C. Personas Sexuais, Arte e Decadência de 1cf. BEAUVOIR, S. O segundo sexo, 1949. Nefertite a Emily Dickinson. S. Paulo: Companhia 2Para uma leitura crítica do feminismo e da das Letras, 1995; ___ Vamps e tramps.. Companhia ética do politicamente correto norte americano, ver das Letras, 1998. 2 Cláudio Cardoso de Paiva res nos países latinos e os crimes pela cha- tratam das questões afetivas e podem nos mada "defesa da honra"são apenas alguns permitir uma discussão sobre o uso dos pra- dos índices que atestam uma situação desi- zeres, os modos de temperança e o cuidado gual. de si nas ligações amorosas. Este debate nos Como provocação estimulante para um parece saudável e necessário devido à sua re- debate, argumentaríamos que as mídias (im- levância nos domínios de uma "antropologia prensa, cinema e televisão) têm formulado da comunicação", em que poderíamos dis- propostas éticas que se opõem às formas cutir a mídia e suas projeções no campo do de discriminação machista. É verdade que "trabalho, da vida e da linguagem". 3 existe, uma generalização de discursos cuja A recorrência à mitologia do deus Dioní- publicidade tende a mercantilizar o compor- sio aqui, parece-nos relevante porque apre- tamento de ambos os gêneros, reproduzindo senta um estilo de autonomia e liberdade dos clichês dos papéis masculinos e femininos o afetos, comunicação e sociabilidade entre os que promove o desequilíbrio entre ambas as gêneros, sem descartar a parte intempestiva partes. Feita esta ressalva, cumpre colocar do eros, a desordem amorosa entre os pares. em evidência que os meios de comunicação O espírito dionisíaco traduz a potência da têm contribuído para afrouxar os nós de uma sensualidade e erotismo no interior das cul- repressão milenar. O fato de hoje, as tecnolo- turas. Para o melhor e para o pior, as imagens gias da comunicação exercerem novas e so- do erotismo têm se expressado nas mídias e fisticadas formas de controle sobre os indi- artes tecnológicas, de forma excessiva. Ali víduos, de ambos os gêneros, tem sua con- percebemos o vitalismo da relação entre os trapartida no modo como as mídias podem sexos, com tudo o que encerra de pureza e despertar para uma nova percepção da rea- perigo. lidade. A telenovela, partcularmente, tanto Como corpus empírico em nossa pes- pode despertar positivamente para uma con- quisa elegemos a série "Malu Mulher", assim sciência crítica e abolir antigos preconceitos, como outras ficções que lhe sucederam, na quanto absorver estilos liberais do compor- medida em que representam uma disposição tamento coletivo. para discutir o lugar da mulher na sociedade, Neste texto observamos a evolução da quando as atitudes masculinas se mostram construção da identidade feminina, a partir excessivamente violentas. das imagens exibidas nas telenovelas e mi- nisséries brasileiras. A proposta é pertinente 2 ...quem vai juntar os tais porque o espaço da televisão mundial tem se tornado um palco de expressão do cínico, caquinhos do velho mundo? do grotesco e do sensacionalista, mas para- A sinopse da ficção Malu Mulher doxalmente, ali podemos encontrar produtos de qualidade, concebidos com inteligência e 3Fazemos aqui uma leitura particular dos livros de sensiblidade que nos permitem aprender o Michel FOUCAULT. As palavras e as coisas. Rio de Janeiro: Martins Fontes. A História da sexualidade. sentido de algumas mutações na cultura con- Vol.II O uso dos prazeres. Rio, Graal, 1985; Vol.II O temporânea. cuidado de si. Rio: Graal, 1985. As ficções na televisão, em sua maioria,

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Após a falência do casamento com Pedro meios de comunicação têm o poder de recon- Henrique, Malu ficou sozinha, com a sua struir as noções que estruturam a sociedade. filha Elisa. Ela trabalha como socióloga, Entretanto é preciso ser prudente quanto à vive num pequeno apartamento em São forma de introduzir os temas tabus na ficção; Paulo e deverá, a cada episódio, enfren- convém não esquecer que a sociedade está tar numerosos problemas. saindo de um longo transe. Contudo, o muro foi derrubado e, como diz a canção popu- A ficção seriada "Malu Mulher"se propôs lar, não há como juntar "os tais caquinhos do a tratar de modo realista a reconstrução da velho mundo". identidade feminina após o divórcio. Con- No curso de vários anos de censura houve tudo, a série irá abordar, em última instân- um desequilíbrio no acesso às informações. cia, a crise de uma das mais importantes in- Num país de dimensões continentais, que stituições brasileiras, ou seja, a familia. É convive com a foice e o computador, com as uma ficção que se propõe a apresentar o reco- favelas e parabólicas, há distinções import- meço de uma nova vida. Aliás, o tema musi- antes entre as diferentes camadas sociais. cal na abertura da série, "Começar de Novo", O cotidiano de uma mulher descasada não presta-se a uma interpretação que distingue é o mesmo na metrópole e na província. O um duplo "recomeço": por um lado, a canção projeto de integração nacional das imagens suscita um novo estilo de vida privada da do Brasil, executado pela Rede Globo, não mulher que se descasou e está sozinha, e por poderia permanecer fechado às diferenças. outro lado, uma renovação da sociedade, que A estética da série "Malu Mulher"teve que está saindo de um regime político autoritário. tomar cuidado na apresentação das imagens Nos anos 80 muita coisa se encontrava em que poderiam ter um efeito explosivo junto mutação na vida social do país: houve mu- à sociedade. A cultura brasileira têm um danças políticas, socioeconômicas, nos co- caráter dionisíaco, como mencionamos, pois stumes, na moda, na linguagem e no estilo de é vigorosamente hedonista, carnavalesca, vida. As representações coletivas sofreram musical... porém, é preciso não esquecer modificações com repercussão nos meios de que esta cultura sedimenta uma sociedade comunicação, os quais disseminaram tais sobretudo híbrida, ao mesmo tempo liberal modificações nos interstícios da sociedade. e conservadora, aberta em certos aspectos, Os autores e intérpretes da criação cultural mas restritiva em outros. A ficção deverá tinham, então, consciência das mutações em mostrar o caráter híbrido do social se qui- curso nas diversas camadas sociais. Assim, ser ser verossímil, se quiser criar novas re- a música, a literatura, o cinema e a televisão des de identificação junto ao público. "Malu irão catalizar as novas formas de informação, Mulher"deverá acariciar o espectador sem linguagem, comunicação e as devolverão ao feri-lo; esta é uma tarefa difícil pois o tema corpo social. Houve algo de inquietante na da "nova desordem amorosa"ainda é um ass- atmosfera cultural dos anos 80, que experi- unto difícil para algumas parcelas da socie- menta um certo frisson, uma sensação de li- dade e portanto, exige perspicácia no trata- berdade e a mídia está atenta para isso. mento. A estética, a ideologia e a técnica dos www.bocc.ubi.pt 4 Cláudio Cardoso de Paiva

3 Que contradição... só a guerra bitos e costumes, sugere a moda, nortea a faz o nosso amor em paz... opinião pública e -em alguns casos- a to- mada de decisões importantes na vida púb- A sociedade brasileira é reputada pela cor- lica. Mas não podemos esquecer que a ficção dialidade, apesar da atmosfera de violência brasileira tem se caracterizado enquanto uma e clima de quase guerra civil, devido prin- "obra aberta"4, que se constrói também de cipalmente aos abismos sociais. Contudo, o acordo com o gosto médio dos telespectado- estilo de sociabilidade do brasileiro se torna res; ou seja, o desenvolvimento e a conclusão evidente na estética da vida cotidiana (na de uma telenovela ou de uma série depende poética das canções, no cinema, na teleno- também da decisão do público. É este prova- vela). Sendo uma cultura híbrida, mestiça, velmente o elemento mais surpreendente da temperada pelo ethos de várias procedências, ficção brasileira, em relação à produção tele- possui aptidão para administrar e interagir visual de outros países: o público influencia com os "diversos tempos"do país, sem ex- sensivelmente a construção (e a leitura) da plodir. Dizemos que a imagem dionisíaca ficção. se adequa à alma do Brasil como uma luva: a inclinação para o jogo, candoblé e carna- val expressa antes um espírito hedonista que 4 Anima e animus da ficção se distingue de uma cultura de cunho mais brasileira pragmático ou prometêico. Este espírito dio- O papel do personagem de "Malu"foi atri- nisíaco -por outro lado- põe em evidência as buído à 5, atriz prestigiada do tensões de uma cultura que comporta muitas grande público. Esta escolha foi fundamen- diferenças. tal para a aceitação do personagem. Sabe-se É curioso observar como a ficção de que há atores, cujo carisma é tão forte que a "Malu Mulher"apresenta a cultura brasileira sua aparição influencia de modo decisivo o em toda sua potência dionisíaca, também no comportamento do público. que concerne à exposição dos costumes, das Regina Duarte tinha encarnado anterior- novas relações sociais e das novas formas de mente o personagem central da telenovela socialização. Face às diferentes imagens so- "Minha Doce Namorada", uma ficção po- ciais, ideologias e estilos tão heterogêneos que povoam o imaginário coletivo, a Globo é 4ECO, U. A obra aberta. S.Paulo: Perspectiva, obrigada a realizar uma mediação para con- 1970. 5 quistar o norte e o sul do corpo social. A atriz Regina Duarte estreiou na televisão en- carnando uma vilã na telenovela "A Deusa Ven- "Malu Mulher"é uma história que possui cida"(1965); protagonizou uma jovem possuída pelo duplo encargo, apresentando a mulher divor- mal, no caso especial "O Dibuk"(1973) e, realizou, ciada, mas também, o lugar vazio da família no teatro a peça "Reveillón", como interprete de uma tradicional que desapareceu. Retomando prostituta. Mas, permaneceu durante longo tempo as relações entre a sociedade e a ficção brasi- no imaginário popular como a "namoradinha do Bra- sil". Mais tarde, faria a viúva Porcina, na sátira in- leira, compreendemos que a ficção participa teligente de ""(1985/86) e posterior- da vida cotidiana dos brasileiros como tal- mente, uma avó redentora, que abre mão do próprio vez não exista alhures. A ficção muda há- filho, na ficção de "Por amor", 1998/9.

www.bocc.ubi.pt Quem ama não mata... ou mata? 5 pular, em que interpretava o papel de uma televisão estruturam no imaginário social, o jovem doce, agradável e ingênua. Esta que Camile Paglia chama de "Personas Se- imagem, apesar do talento versátil da atriz xuais". Quer dizer, são receptáculos dos de- para fazer papéis diferentes, ficou impre- sejos, das projeções, da economia libidinal gnado na memória do público das telenove- do público. A sua conduta na ficção e na las. Ela era, por assim dizer, uma peça im- vida "real", apresentada cotidianamente atra- portante no "regime diurno"ou "apolíneo"do vés das "revistas do coração", produzem um imaginário social. Isto é, um personagem tipo de emanação que faz sonhar o público; claro, límpido, de estilo e conduta modera- eles encarnam aquilo que o público gostaria dos, envolta numa aura de pureza e integri- de ser ou ter por perto. dade. Entretanto, a "namoradinha do Brasil", A emancipação dos costumes que ocorre seja fazendo "Minha Doce Namorada"seja na realidade será projetada -igualmente- na no papel de uma jovem meiga, como sua dramaturgia televisual. A diferença entre os personagem na telenovela "", de- gêneros, a confrontação entre a "anima"e o spertaria paixões amorosas enlouquecendo "animus"6 que mobilizam a alma e a forma os vilões. Em várias ficções ela incorporou do masculino e feminino na sociedade irão o papel de ninfeta e "namoradinha do Bra- tomar novos rumos após a liberação femi- sil"e se casou bastante. O misto de inocência nina. e simpatia será estratégico para o fenômeno de identificação entre público e o persona- 5 Objetos de consumo e histórias gem da nova mulher liberada; isto é tratado com cuidado e eficácia pela mídia. Não po- da vida privada demos esquecer que o produto de comuni- Há um lugar vazio na família tradicional cação é também um produto de marketing. após a separação e o divórcio. O persona- Na pele de "Malu", a "namoradinha do gem de "Malu"representa as outras mulhe- Brasil", o arquétipo televisual para milhões res divorciadas de classe média no Brasil. A de jovens brasileiras, irá se tornar uma mu- quebra dos elos que sedimentavam a institu- lher livre. Ocorrerá uma mudança sutil: o ição familiar tradicional, ou seja, a família "regime diurno"das imagens (habitado pelo nuclear burguesa, tem duas conseqüências: melodrama, pelas narrativas com "final fe- por um lado emergem novas formas de ano- liz", feitas para agradar os telespectadores) mia e de solidão; por outro lado, são cria- irá se confrontar com o "regime noturno"em dos novos laços e novas formas de sociabili- que os sonhos dourados podem se tornar pe- dade. Um novo universo de imagens, objetos sadelos. O retrato da mulher média bra- e de identificações se inscreve na paisagem sileira, no desempenho de Regina Duarte, social. A ficção de "Malu Mulher"está atenta irá ganhar novos contornos. Diva, lésbica, para este novo universo e irá utilizá-lo nesta mãe, namorada, heroína, vilã... as persona- história de uma mulher descasada. gens, como mulheres imaginárias irão po- Sutiens, lingeries, maiôs de banho, vários voar a imaginação popular além dos limites da ficção. 6Cf. JUNG, C.G. Types psychologiques Genève: Os astros e estrelas do cinema, teatro e Georg Editeur S.A., 1991. www.bocc.ubi.pt 6 Cláudio Cardoso de Paiva objetos de consumo ocuparam o cotidiano que espancam suas esposas. Malu deixou feminino nos anos 50/60, de forma que nos o seu marido, Pedro Henrique, porque este permitem descrever um imaginário de época. tentou espancá-la. Através de outros casais, Novas peças íntimas, tais como os absor- a série nos mostra o problema da violência ventes higiênicos, as pílulas anticoncepcio- entre parceiros. A importância da apresen- nais e os preservativos penetram no universo tação da violência nesta ficção pode ser com- feminino dos anos 70/80; assim é possível preendida, se considerarmos os numerosos construir uma história social da vida privada casos de violência a que são submetidas as estudando a circulação e consumo destes ob- mulheres. jetos. As peças e os objetos que compõem A Rede Globo difundirá, nos anos 90, uma o cenário de uma ficção nos anos 80, tal minissérie chamada "Quem Ama Não Mata", como "Malu Mulher"se distinguem daque- enfocando a história de um casal que se dis- les dos anos precedentes. Eles assinalam o puta até as últimas conseqüências. estilo de vida da "nova mulher"projetada na A propósito, seria pertinente fazermos ficção; os cuidados, os medos, as formas de uma digressão retomando um aspecto par- prazer, as maneiras de cuidar do corpo e de ticular desta ficção. "Quem Ama Não se mostrar... não poderiam estar fora daquele Mata"inaugurou um gênero, atualmente, universo. Observando os objetos postos em conhecido como "ficção interativa". Atra- cena numa ficção como "Minha Doce Namo- vés de cartas e por telefone o público deveria rada"(1971/72) dos objetos exibidos durante se pronunciar e decidir a conclusão da nar- a realização de "Malu Mulher"(1980) ou rativa. No caso da série "Quem Ama Não da ficção seriada "Mulher"(1999) podemos Mata", o telespectador deveria escolher o fi- vislumbrar o percurso de uma mudança de nal da trama e decidir "Quem mata quem?"O costumes, hábitos, comportamento e estilo público decidiu pela resposta que lhe pare- de vida; assim, os objetos nos permitiriam, ceu mais verossímil: na maioria dos casos igualmente, uma leitura da vida social brasi- dos "crimes de paixão", o marido mata a leira nos anos 90. esposa. Deste modo o telespectador pôde Buscando modificar a imagem estreo- exprimir a sua denúncia contra os "crimes tipada da mulher objeto e popularizar a passionais"ou "crimes pela defesa da honra", imagem da mulher "emancipada", a série como na época dos coronéis. "Malu Mulher"correu o risco de tropeçar nos Esta questão difícil, concernente à violên- clichês feministas. Tentando ultrapassar a cia contra as mulheres, seria retomada numa caricatura da mulher como objeto sexual e outra série realizada pela Rede Globo, cha- a ideologia fechada das feministas radicais, mada "Delegacia de Mulheres". Aqui a si- a série sinalizou uma tendência em direção tuação se repete, em relação à reciprocidade aos movimentos femininos e às imagens de entre a sociedade e a ficção brasileira. A liberdade. ficção absorve fenômenos que ocorrem nas A série discutiu diversas questões sobre grandes cidades como Rio de Janeiro e São as dificuldades sociais experimentadas pela Paulo e os difunde para todo o Brasil. Sabe- mulher brasileira no seu cotidiano. Pôs em se que após a exibição da série "Delegacia destaque, por exemplo, o caso dos maridos de Mulheres", disseminaram-se várias dele-

www.bocc.ubi.pt Quem ama não mata... ou mata? 7 gacias da mulher por todo o território nacio- dia - o personagem de "Malu"apresenta uma nal. Estas delegacias se tornaram instituições certa ambigüidade: a mulher laboriosa, ho- nacionais que buscam proteger as mulheres nesta, cheia de virtudes poderia ser identi- contra os abusos e a violência. ficada antes a uma imagem prometêica que As reflexões e as práticas sobre as relações dionisíaca; contudo, no que respeita à pro- de poder, deslocam-se do domínio das cama- dução e recepção de signos, "Malu"acionou das mais ricas e intelectualizadas da socie- os dispositivos que são da ordem da inver- dade e, chegam às camadas sociais mais po- são do sentido. Enfrentando as questões da pulares. Evidentemente não se pode atribuir violência, do aborto e da discriminação se- à televisão o mérito da organização social; xual o personagem se inscreve -no fim das entretanto, os meios de comunicação têm um contas- num contexto às avessas, que desafia papel social importante enquanto vetores de a norma estabelecida. Na série "Malu Mu- informação; eles retomam assuntos de difícil lher"a forma é apolínea e prometêica, mas tratamento e os colocam em "discussão"no o conteúdo é explosivo e perfeitamente dio- espaço midiático da teleficção. nisíaco. É compreensível que, no princípio dos anos 80, o "começar de novo"tenha se 6 Imagens dionisíacas no tornado num vetor de choque e de surpresa que instigou a sensibilidade média do pú- contexto da mídia blico. Os movimentos de emancipação das mu- lheres, de liberação sexual, as discussões e práticas do amôr livre, o uso dos contracep- tivos, o aborto, o divórcio e a violência a que são submetidas as mulheres fazem parte doravante do repertório da ficção televisual brasileira. Neste quadro em que se redefi- nem os papéis do homem e da mulher na casa, na rua, no trabalho, enfim, na vida so- ciedade, "Malu Mulher-apesar de todos os filtros estéticos, técnicos e ideológicos- cum- priu uma tarefa importante: iniciou a dis- cussão sobre um tema tabu na televisão e na sociedade brasileira. "Malu"representou o primeiro orgasmo na televisão do Brasil. As mãos crispadas sobre os lençóis exprimiram o simbolismo do pra- zer da mulher, derrubando os muros de uma repressão secular. No que concerne ao nosso tema de estudo - As imagens dionisíacas no contexto da mí- www.bocc.ubi.pt