OS CIENTISTAS ERGUEM A VOZ Uma coincidência reuniu, nas páginas da Revista Adusp, dois dos maiores físicos brasileiros. Roberto Salmeron, que vive na França há muitos anos, veio ao Brasil para lançar seu livro sobre a UnB, e passou pela USP, de modo que não perdemos a oportunidade de entrevistá-lo. José Leite Lopes, por sua vez, re- cebera o Prêmio Unesco de Ciências 1999 quando a edição anterior da revista já estava fechada. Indis- pensável, assim, buscar seu depoimento. Ambos reivindicam para a educação e a ciência a grandeza que o neoliberalismo dominante tem negado a uma e outra. Ambos conferem à universidade pública (e à pesquisa a ela vinculada) papel central na produção do conhecimento. Ambos saem em defesa da ciência brasileira, acuada pelo colapso dos programas de financiamento da pesquisa, intimidada pelos ataques à autonomia universitária, ameaçada pelo desmonte do sistema público de ensino em todos os níveis. Ainda que em tom mais contido, a SBPC também reage ao desmantelamento do saber nacional, partindo para a “cartografia” da C&T nas diferentes regiões do país, em inédita maratona que entu- siasma Glaci Zancan, nova presidente da entidade. Por fim, este bloco de matérias é enriquecido por artigo de Romualdo Portela e Sandra Zákia sobre critérios e métodos de avaliação da produção dos docentes universitários, tema muito pertinente quando se sabe que a elaboração de rankings da ciên- cia pode resultar desastrosa. ✦✦✦ Acumulam-se os sintomas de uma crise generalizada do capitalismo. Tensões, conflitos, uma reto- mada sob novas vestes de práticas e discursos (como o darwinismo social) que pareciam sepultados ao final da Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto ideológico, a Democracia perde terreno, o Di- reito desfalece, e a política do fato consumado ditada pela hegemonia dos Estados Unidos é aceita sem pestanejar pelos países europeus governados pela centro-esquerda. A guerra desfechada pela OTAN contra a Iugoslávia, à revelia até mesmo das Nações Unidas, é sinal e produto desses novos tempos, analisados nos artigos dos professores Armen Mamigonian, da USP, e Salvatore D'Albergo, da Universidade de Roma. O Timor Leste, contraface do Kosovo na nova ordem mundial, é objeto de artigo do pensador norte-americano Noam Chomsky. ✦✦✦ Fechávamos esta edição quando foi anunciada a decisão da Justiça inglesa sobre o destino do ex- ditador chileno Augusto Pinochet. O juiz Ronald Bartle resolveu que Pinochet é passível de extradi- ção para a Espanha, a fim de responder pelos crimes que praticou. A detenção do ditador em Lon- dres desencadeou uma crise no Chile, por colocar em xeque a transição tutelada pelos militares, cuja finalidade última é a manutenção do modelo econômico neoliberal. É o que nos diz texto do profes- sor Francisco Dominguez, baseado em comunicação apresentada no I Congresso Interoceânico de Estudos Latinoamericanos, realizado em março em Mendoza (Argentina). Como o Brasil, o Chile ainda não acertou suas contas com o período ditatorial. Aqui, a Anistia completou 20 anos. A reportagem iniciada na página 70 procura evocar a luta pela Anistia, movimento que conquistou um êxito indiscutível, ainda que parcial, sobre o regime golpista iniciado em 1964. Até os dias de hoje o Estado brasileiro não reparou adequadamente os danos pro- vocados a milhares de perseguidos, humilhados e torturados. Nem rendeu as homenagens devidas às cerca de 500 pessoas assassinadas pela Ditadura, pois seus algozes continuam impunes. ✦✦✦ O traço cortante e irônico das ilustrações desta edição pertence a Minoru Naruto, designer e pro- fessor da FAU. As fotografias são, na maior parte, de Daniel Garcia e Carlos Gueller. Agradecemos à Biblioteca do Instituto Sedes Sapientiae por ceder-nos gentilmente fotografias da Madre Cristina. O Editor DIRETORIA Marcos Nascimento Magalhães, Márcia Regina Car, Francisco Miraglia Netto, Norberto Luiz Guarinello, Suzana Salém Vasconcelos, Lighia B. Horodynski-Matsushigue, Flávio Finardi Filho, Marcos Sorrentino, João Alberto Negrão, Clarice Sumi Kawasaki

Comissão Editorial Adilson O. Citelli, Bernardo Kucinski, Fernando Leite Perrone, Francisco Gorgônio da Nóbrega, Khaled Goubar, Nelson Achcar, Norberto Luiz Guarinello e Zilda M. Gricoli Iokoi

Editor: Pedro Estevam Pomar Assistente de redação: Fernanda Franklin Editor de Arte: Luís Ricardo Câmara Assistente de produção: Rogério Yamamoto Secretaria: Alexandra M. Carillo e Aparecida de Fátima dos R. Paiva Distribuição: Marcelo Chaves e Walter dos Anjos Fotolitos: Bureau OESP

Tiragem: 5.000 exemplares

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A Revista Adusp é uma publicação trimestral da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo - S. Sind., destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem, necessariamente, o pensamento da diretoria da entidade e são de responsabilidade dos autores. Contribuições serão aceitas, desde que os textos, inéditos, sejam entregues em disquete e tenham, no mínimo, dez mil e, no máximo, vinte mil caracteres. Os artigos serão avaliados pela Comissão Editorial, que decidirá sobre seu aproveitamento. Acuada, a ciência reage 6 Cientista engajado, Leite Lopes denuncia o abandono da Universidade 14 Entrevista: Salmeron defende Universidade pública, gratuita e autônoma 25 SBPC empreende Maratona pelo Brasil. Quem conta é Glaci Zancan 30 Problematizando a temática da Avaliação na Universidade Romualdo Portela de Oliveira e Sandra M. Zákia L. Sousa

Capitalismo fim-de-século 36 A retomada do darwinismo social em meio às tensões provocadas pela prolongada crise econômica Armen Mamigonian 41 Bálcãs: OTAN substitui a ONU e cresce ataque à Democracia e ao Direito Salvatore D'Albergo 51 A detenção de Pinochet e seus reflexos no Chile Francisco Dominguez 63 A enorme responsabilidade dos EUA no massacre do Timor Leste Noam Chomsky

Saúde pública 67 A privatização do SUS nada tem de moderno, pelo contrário Jacir Pasternak e Vicente Amato Neto

Memórias da luta contra a Ditadura 70 A Anistia, 20 anos depois: um balanço 76 Depoimento pessoal de Luiz Eduardo Greenhalgh Outubro 1999 Revista Adusp

UM CIENTIST

Distinguido com o Prê Leite Lopes reafirma seu compromis

Pedro Estevam Editor da R

Fotos: Daniel Garcia Revista Adusp Outubro 1999

A ENGAJADO mio Unesco de Ciências, so com o papel social do pesquisador

da Rocha Pomar evista Adusp

professor José Leite Lopes, 81 anos, O não tem papas na língua. Ao receber o Prêmio Unesco de Ciências 1999, durante a Conferência Mundial da Ciência, realizada em junho último em Budapeste, Leite Lopes honrou, uma vez mais, sua trajetória intelectual independente e seu temperamento combativo: no rápido discurso de agradecimento (que ele fez questão de ler em francês, “porque fala-se inglês demais”), não poupou o governo brasileiro, nem o empresariado nacional, nem a globalização cantada em prosa e verso.

7 Outubro 1999 Revista Adusp

— O pesquisador científico de um país em desen- fessor, os pesquisadores do mundo inteiro devem volvimento deve defender a ciência, as universidades, “defender vigorosamente” o papel central do Esta- a educação em geral das possíveis medidas de econo- do no apoio à pesquisa e à educação. “Globalização mia e falta de visão dos governos deste país, da falta é só um eufemismo para designar a dominação im- óbvia de compreensão destes governos do caráter de- perial do mundo pelos países ricos”, os quais dese- licado e específico da ciência. É atualmente o caso de jam “apagar a identidade de povos dos países em meu país, onde um governo presidido por um antigo desenvolvimento”. Nada mau para uma cerimônia professor universitário não acha fundamental apoiar de entrega de prêmios! a ciência e a tecnologia, as universidades públicas e institutos de pesquisa. Engajamento Se a pesquisa de novas tecnologias pode ser finan- ciada pela iniciativa privada, prosseguiu o orador Assim é Leite Lopes, o físico teórico que teima em (contudo, “os industriais da América Latina nos igno- tomar posição diante dos dramas sociais que afligem ram solenemente”, assinalou à guisa de ressalva), a o Brasil e o mundo. Em 1976, quando a maior parte ciência fundamental depende exclusivamente do Es- da América Latina vivia sob o tacão das ditaduras mi- tado, em países ricos como em países pobres. litares, e ele se encontrava na França, nomeado por Na chamada era da globalização, insistiu o pro- Giscard D'Estaing professor titular da Universidade

PROFESSOR E ANIMADOR DA CIÊNCIA José Leite Lopes, nascido no sador visitante do Instituto de Tec- lon, de Pittsburgh, onde não pas- Recife em 1918, é indiscutivel- nologia da Califórnia (1955-1956), saria mais do que um ano (1969- mente um dos grandes nomes da a convite de Richard Feynman. 1970), pois sentia-se desconfortá- ciência brasileira, e um dos pio- Exerceu diversos cargos importan- vel nos EUA, em razão do envol- neiros em sua área. Em 1945, aos tes no Brasil, como o de diretor da vimento do governo americano 27 anos de idade, foi o primeiro Divisão de Ciências Físicas do com o golpe militar. brasileiro a conquistar no exterior CNPq (1955-1964) e o de coorde- Na França o título de doutor (Ph.D.) em Físi- nador do Instituto de Física da Preferiu transferir-se para a ca, na Universidade de Princeton Universidade de Brasília (1962- Universidade Louis Pasteur (EUA), sob a orientação do afa- 1964). (Estrasburgo I), onde deu aulas de mado Wolfgang Pauli, Prêmio No- O golpe militar de 1964 impôs 1970 a 1985, tornando-se ainda vi- bel, ao tempo em que lá trabalha- um novo rumo à carreira de Leite ce-diretor do Centro de Pesquisas vam Albert Einstein e outros pes- Lopes. Demitiu-se do CNPq e Nucleares daquela instituição quisadores de renome. tornou-se professor visitante da (1975-1978). Foi nesse período que Catedrático de Física Teórica e Universidade de Paris (Orsay), lá escreveu, entre outras obras, o li- Física Superior da antiga Universi- permanecendo três anos, até que vro Fondements de Physique Ato- dade do Brasil (mais tarde Univer- voltou ao Brasil para retomar suas mique (Fundamentos da Física sidade Federal do Rio de Janeiro) aulas na UFRJ, a pedido de estu- Atômica), de que fala com orgu- já em 1948, no ano seguinte fun- dantes. Ficou pouco tempo, pois lho, pois “muita gente estudou por dava o CBPF, com César Lattes, foi punido pelo AI-5 e aposentado ele”. Voltou ao Brasil em 1986. Ao Roberto Salmeron e outros, e tor- à força, perdendo ainda seu cargo todo, publicou mais de 20 livros, nava-se membro do Instituto de no CBPF. Recebeu então convites uma centena de artigos e 80 traba- Altos Estudos de Princeton, a con- de diversas universidades do exte- lhos científicos. Recebeu variados vite de Oppenheimer. Foi pesqui- rior. Optou pela Carnegie-Mel- títulos, prêmios e condecorações,

8 Revista Adusp Outubro 1999

Reprodução Louis Pasteur, de Estrasburgo, publicou no Bulletin of Atomic Scientists artigo denunciando a perseguição de cientistas argentinos pelo regime liderado pelo gene- ral Videla: “Um câncer político está se espalhando pela América Latina. Acabou de ocorrer um golpe de esta- do na República Argentina”. “Pelo menos 56 homens e mulheres (nomeia vários deles) ... associados ao Conselho Nacional de Pesquisa da Argentina foram sumariamente demitidos pelo 'interventor' do Conse- lho e pela junta militar”. No artigo, Leite Lopes cita de passagem sua pró- pria situação de perseguido político (foi professor universitário compulsoriamente aposentado pela Di- tadura em 1969, com base no Ato Institucional núme- Com seus alunos, ro 5) e faz um apelo à comunidade científica interna- em Estrasburgo cional, aos cientistas, “para que digam ao general

no país e no exterior. plos: “academia”, “ciência”, “mu- Recentemente, foram lançados lher”), que no livro assumem a dois livros sobre a obra e as refle- forma de verbetes. Traz uma con- xões de Leite Lopes. Ciência e cisa e útil biografia do homena- Liberdade: escritos sobre ciência e geado, da qual esta reportagem educação no Brasil (Editora extraiu não poucas informações. UFRJ, 1998, 288 p.), organizado Contribuição teórica pelo professor Ildeu de Castro O próprio Leite Lopes con- Moreira, conta com depoimento sidera que seus mais importan- de César Lattes, que faz as vezes tes trabalhos de pesquisa são de um prefácio. Além de artigos dois artigos que publicou em “Propus a existência diversos, traz uma entrevista con- 1958, relativos à teoria das forças de um bóson fraco neutro, aquele cedida a Ênnio Candotti em 1985 nucleares. No primeiro deles, co- que é chamado o bóson ZO. Isso e preciosa iconografia, que inclui locou em evidência a interação deveria ser posto em evidência em a reprodução de telas pintadas pseudoescalar. No outro, publica- colisões elásticas elétron-nêutron, por Leite Lopes. do na revista Nuclear , pro- em época em que o neutrino muô- José Leite Lopes: idéias e pai- pôs, segundo suas palavras no dis- nico não era caracterizado ainda e xões (CBPF, 1999, 142 p.), organi- curso de Budapeste, “antes dos não era usado em feixes”. zado pelo professor Francisco trabalhos importantes de Steve Francisco Caruso afirma que, a Caruso, da UERJ, é uma espécie Weinberg, Abdus Salam e Shel- partir desta hipótese, “Leite Lopes de dicionário do pensamento do don Glashow, uma primeira tenta- nos deu a primeira avaliação corre- professor. Baseia-se em uma série tiva de verificação eletrofraca en- ta da massa dos bósons vetoriais”. de entrevistas realizadas em 1998, quanto admitia a igualdade de A hipótese levantada por Leite nas quais Leite Lopes foi convida- constantes de interação fraca e Lopes, da existência da partícula do a tecer considerações sobre de- eletromagnética para estimar a neutra bóson ZO, foi confirmada terminadas palavras-chave (exem- massa dos bósons W vetoriais”. por experimentos posteriores.

9 Outubro 1999 Revista Adusp

Jorge Videla, chefe da junta militar, que estes atos pelo nacionalismo e pelas lutas sociais das décadas são incompatíveis com a civilização e com o desenvol- de 40, 50 e 60. Chegou a fazer parte do Conselho de vimento da ciência e da tecnologia, e que peçam que Curadores do Instituto Superior de Estudos estes cientistas sejam reintegrados a seus empregos”. Brasileiros (ISEB), criado por Juscelino Kubitschek para atrair a intelectualidade de esquerda para seu Nacionalismo e lutas sociais projeto nacional-desenvolvimentista.

Como se vê, o engajamento do professor nas questões políti- Intelectualidade e Oposição cas e sociais não é recente. Ele pertence à geração “Em ciência como nas artes, “A Oposição é de pensadores forte- mente influenciada o intelectual em geral é muito muito fraca. ruim, porque como depende de ajuda Não sei se foi do governo para suas bolsas de estudo, o regime suas verbas, seus programas, muitos deles militar que têm medo de falar e perder os privilégios. liqüidou a Este é o problema. Mas que interesse tem formação de um projeto pessoal desse tipo quando líderes ao lado você vê o Brasil tomando políticos. Não um rumo completamente temos grandes anormal?” políticos que tenham programas, que inspirem confiança para uma mudança. A intelectualidade deve denunciar todos esses programas falsos que são anunciados pelo governo atual. O fato de que se liqüidou o patrimônio público. O abandono a que está sendo relegada a universidade. As ilusões: ‘toda criança na escola’, ‘apoio à pesquisa’ etc. Mas na prática não há apoio à pesquisa” Revista Adusp Outubro 1999 O Plano Plurianual de FHC “Ele precisava fazer alguma coisa, porque foi reeleito numa atitude vergonhosa. Deixou de fazer reformas, um programa de desenvolvimento, em favor do projeto de reeleição. Então o prestígio dele decaiu. Aquele espetáculo foi como uma reação à sua queda de popularidade. Ele apresentou um programa que os especialistas vão analisar: o que é possível, o que não é possível. Mas pode ser que seja uma ilusão” O Prêmio Unesco Na entrevista que concedeu no início de setem- “O premiado, em geral, é o último bro à Revista Adusp, no Rio de Janeiro, em sua sala a se pronunciar sobre isso, porque no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), instituição que fundou há 50 anos, Leite Lopes de- a decisão foi lá da Unesco. Acho monstrou que mantém a verve e o espírito crítico. que houve generosidade da parte Quando lhe perguntamos se a intelectualidade brasi- leira não havia se mostrado muito dócil diante do do júri internacional da Unesco. Se governo que assumiu em 1994, ele foi direto ao pon- to nodal da discussão. mereço ou não, já é outra história. — Em ciência como nas artes, o intelectual em Foi bom, de qualquer maneira foi geral é muito ruim, porque como eles dependem de ajuda do governo para suas bolsas de estudo, suas entregue na Conferência Mundial verbas, seus programas, muitos deles têm medo de sobre Ciência realizada em falar e perder os privilégios. Este é o problema: há uma falta de energia da parte de grande número de Budapeste, onde quase todos os intelectuais, com medo da reação do governo em re- países se fizeram representar por lação aos projetos que possam ter. Mas que interes- se tem um projeto pessoal desse tipo, quando ao la- delegações. Houve uma delegação do você está vendo o Brasil tomando um rumo com- do Brasil, mas não participei dessa pletamente anormal, de alienação da riqueza, de alienação da Companhia Siderúrgica Nacional, da delegação, nem fui chamado. Eu Vale do Rio Doce, da Petrobrás, e de desmatamento fui por convite da Unesco” da Amazônia? 11 Outubro 1999 Revista Adusp Hegemonia dos EUA Ensino e pesquisa “Os EUA são a potência que “Toda universidade só tem o nome restou da Guerra Fria e têm ‘universidade’ se for um lugar de demonstrado muitas vezes, pesquisa, criação de conhecimento. por exemplo, que não Quando você dá aula, se é um obedecem à Corte pesquisador, suas aulas são Internacional de Haia, que já diferentes das do outro, que não é fez resoluções que os EUA não pesquisador. Porque o que não é adotaram. Há uma lei pesquisador vai procurar nos livros americana que castiga as poeirentos o que foi, e o pesquisador empresas do mundo inteiro dá conhecimentos antigos, que tenham comércio com clássicos, mas como ele pesquisa, Cuba, como se a lei americana apresenta de uma maneira sempre tivesse validade internacional. nova. Qual é a universidade privada No fundo, a globalização é um no Brasil que adota pesquisa? Que novo nome para o eu saiba, nenhuma” imperialismo americano” Ciência, a Lua e a fome “A ciência e a tecnologia foram importantes até agora, mandaram o homem à Lua. Mas foram impotentes para acabar com a miséria no mundo. Então proponho que entre os compromissos assumidos pela Conferência Mundial da Ciência para o século 21, além dos compromissos científicos, haja uma vontade política para acabar com a fome e a miséria”

12 Revista Adusp A globalização e a mídia “Os meios de comunicação são cúmplices do processo de globalização. Você não vê nenhuma reportagem denunciando os escândalos que existem por aí. Eles procuram algum escândalo Leite Lopes na USP, em novembro de 1998, menor, falam, e depois silenciam sobre durante simpósio internacional em o tema. Se essa cumplicidade envolve homenagem ao seu 80º aniversário interesses maiores, econômicos, não sei. Ilusão e desengano

Provavelmente, porque é inconcebível Chega a espantar, nesse ancião em- que a imprensa não defenda com rigor pertigado, lúcido, de fala pausada e dis- creto acento nordestino, o apurado grau os interesses do país” de informação sobre as questões da atualidade. Se nutre alguma animosida- de pessoal contra aqueles que critica, Indústria e pesquisa não deixa transparecer: a natureza dos “Você vai ao industrial e faz um ataques que faz é claramente política, ou programa de pesquisa. O industrial filosófica. As considerações ferinas em- prestam maior contundência à crítica, em geral não apóia. Vai apoiar mas esta é direcionada ao essencial dos pesquisa em matemática? Em problemas, à sua raiz. Exemplo de tal atitude é o seu modo de ver a gestão de astronomia, em cosmologia? Fernando Henrique Cardoso: Certamente que não. A — No início, o presidente enganou, porque tem um passado acadêmico. Se pesquisa aplicada, a pensava que ele, considerado proveniente tecnologia, seria natural que dos grupos de esquerda, pusesse em ação ele apoiasse. Mas isso ele um programa da social-democracia legíti- ma. Mas isso foi uma ilusão muito gran- também não apóia. Porque de. Acho que toda pessoa que pertence a eles se contentam em um Estado, a uma nação, tem laços de afetividade com esta nação e um certo na- comprar caixas-pretas, cionalismo defendendo os interesses do os pacotes. Compram país. É grave quando você é de um país e e põem em tem nacionalismo por outro país. — O sr. enxerga isso neste governo? movimento aqui” — Certamente. RA

13 Outubro 1999 Revista Adusp

Entrevista Roberto Salmeron “ENSINO PAGO NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS SERIA UM CRIME” por Lighia B. Horodynski-Matsushigue e Pedro Estevam da Rocha Pomar

O renomado físico brasileiro radicado em Paris relata a rica experiência da Universidade de Brasília (UnB), critica o “delírio de privatizações” vivido pelo país e defende a educação superior pública e gratuita Fotos: Daniel Garcia

14 Revista Adusp Outubro 1999

Radicado na França desde 1966, o físico brasileiro Roberto Aureliano Salmeron esteve no Brasil em agosto último, para lançar seu livro A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965 (Editora da UnB, 1999). Cientista de prestígio internacional, primeiro não-europeu a integrar o corpo permanente de pesquisadores do laboratório da Organização Européia para a Pesquisa Nuclear (CERN), em Genebra, e atual Diretor de Pesquisa Emérito do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas da França (CNRS), autor ou co-autor de 150 trabalhos científicos, Salmeron suspendeu suas atividades profissionais nos últimos dois anos para dedicar-se unicamente à tarefa de escrever o livro. Na entrevista exclusiva que concedeu à Revista Adusp, encontramos as razões maiores dessa opção. Em primeiro lugar, para ele, é necessário preservar e cultivar a memória intelectual do nosso país. Em segundo lugar, é evidente que a empolgante experiência de criação e organização dos cursos da UnB, nos anos 1963-64, sob os auspícios de Anísio Teixeira, e depois a profunda frustração causada pela intervenção dos militares, ocupam um lugar central na história de vida desse notável pesquisador. Em 1965, Salmeron, que destemidamente deixara o CERN dois anos antes e regressara ao Brasil para trabalhar na UnB, onde foi professor titular e coordenador geral dos Institutos Centrais de Ciências e Tecnologia, “demitiu-se juntamente com 222 colegas, por recusarem pressões externas exercidas sobre a Universidade durante o regime militar que dominou o país de 1964 a 1985”, como não deixa de mencionar em seu próprio currículo. Nas páginas a seguir, Salmeron, de 77 anos, aborda também a crise que atinge em cheio a ciência e as universidades brasileiras. Prega a reação da comunidade acadêmica ao atual estado de coisas, e defende com ênfase e veemência a gratuidade da universidade pública: “Se na minha geração houvesse universidade paga, eu não poderia ter estudado. E um grande número dos meus colegas da Politécnica da USP também não. Querer fazer ensino pago é um crime”.

15 Outubro 1999 Revista Adusp

Revista Adusp - O senhor está lidade profissional e ao mesmo Revista Adusp - Para aqueles lançando um livro sobre a UnB. O tempo escrever um livro desses. que não puderem ler o livro, como que o levou a escrever este livro? Há no livro uma parte de memó- é que o senhor sintetizaria a expe- A UnB foi, tudo indica, uma expe- ria, mas o que considero mais fun- riência da UnB? riência marcante na sua vida. damental são os documentos que Salmeron - Devemos falar da Salmeron - O trabalho na UnB apresento. A procura de docu- experiência do ponto de vista hu- foi realmente uma experiência mentos, e a estruturação do livro mano e do ponto de vista acadê- marcante em minha vida, assim co- com base neles, tomou muito tem- mico. Do ponto de vista humano, mo de todos os que participaram po, agravado com o fato de eu es- a experiência dos anos iniciais da dos anos iniciais de implantação da tar morando fora do Brasil. Tenho UnB, que relato no livro, foi mara- Universidade. Por que escrevi este alguns documentos em meu arqui- vilhosa para todos os que dela par- livro? Para dar uma contribuição à vo pessoal, porque quando saí da ticiparam. Havia atmosfera de en- nossa memória intelectual. No Universidade tinha absoluta certe- tusiasmo, com a consciência de Brasil não estamos habituados a za de que muitos documentos iam que estávamos fazendo algo de cultivar nossa memória. Fatos im- desaparecer. Guardei comigo so- novo, e principalmente, grande es- portantes ou graves acontecem e mente papéis que, evidentemente, perança. Este ponto é muito im- são esquecidos com o tempo, às tinha moralmente a liberdade de portante: havia grande esperança. vezes basta uma geração para que guardar, como cópias de cartas Trabalhávamos intensamente, sete sejam esquecidos. Nos países avan- minhas, de cartas dos coordenado- dias por semana, sem limitação de çados da Europa, por exemplo, o res e de manifestos dos professo- tempo. Depois veio o golpe militar cultivo da memória intelectual faz res. A maior parte da documenta- e as perseguições cegas à Universi- parte da cultura, o que infelizmen- ção eu obtive em várias viagens ao dade, com controle policial cons- te não ocorre entre nós. Minha Brasil, em redações de jornais, na tante em todas as atividades, motivação, ao escrever esse livro, Biblioteca Nacional do Rio de criando um clima de insegurança foi contribuir para nossa memória. Janeiro, na Biblioteca Municipal cada vez maior, que foi a causa de Relato fatos que vivi e conheci des- de São Paulo, em consulta do nosso pedido de demissão coleti- de suas origens, e considero quase Diário do Congresso Nacional, e va. Do ponto de vista acadêmico, a uma obrigação minha deixar um na própria Universidade de UnB foi a precursora de uma re- testemunho para que a nova gera- Brasília, onde uma professora de forma universitária importante, a ção saiba o que aconteceu naquele História está reconstituindo um primeira universidade a funcionar período terrível de nossa História, acervo, assim como obtendo de- nos moldes posteriormente adota- com a ditadura militar. Um povo poimento oral de amigos ex-pro- dos na reforma universitária em precisa conhecer a sua História, e fessores da UnB. Comecei a es- todo o país, introduzindo a estru- criar o hábito de julgar os fatos e truturar o livro há mais de oito tura utilizada atualmente. Essa re- as pessoas, para ficar vigilante e anos, sem interromper meu traba- forma foi concebida com a evolu- não permitir que períodos como lho como físico, dedicando alguns ção da mentalidade, com a partici- aquele se repitam. Por que escrevi dias da semana à pesquisa, e ou- pação de muita gente e de muitas o livro somente agora? Porque eu tros ao livro, escrevendo e reescre- instituições. Achei importante não quis escrever um livro somente vendo as várias partes. Depois mostrar em meu livro, para os jo- de memórias, mas um livro de percebi que tinha de me dedicar vens de hoje, que a mentalidade Hístória, documentado e crível, e ao livro inteiramente, para poder evolui, e que houve uma luta, luta isso requer muito tempo. Radicado terminá-lo com uniformidade nas no bom sentido, na evolução da na França, dirigindo equipes de várias partes. Nos últimos dois mentalidade nas universidades pesquisa, não me era possível ter anos a dois anos e meio trabalhei brasileiras, começando na década as atividades devidas à responsabi- somente no livro. de 20, de 30, passando pela funda-

16 Revista Adusp Outubro 1999

ção da USP, até se conceber a es- Isso tinha de ser mudado. Era ne- obrigatoriamente. Terceiro ponto: trutura da UnB, que na década de cessário acabar com a posição de dentro da universidade, criar flexi- 50 estava no ar. Muita gente pen- catedrático e criar uma estrutura bilidade para que o aluno pudesse sava nesse tipo de estrutura na- que desse a todos a possibilidade mudar de carreira. Essa possibili- quela época: se a UnB não a tives- de evoluir de acordo com sua expe- dade não havia antes. Posso contar se adotado, outras universidades o riência profissional. Modificamos a meu exemplo pessoal, extrema- teriam, provavelmente a USP ou a carreira docente, criando as posi- mente significativo. Quando me UFRJ. Aliás, a reforma da UFRJ, ções de assistente e três de profes- formei engenheiro pela Escola que se chamava Universidade do sor. O mestrado era obrigatório pa- Politécnica da USP, fui convidado Brasil, estava sendo programada ra o posto de assistente, que não ti- pelo professor de Física, Luis Cin- pelo ministro da Educação de nha o significado do sistema antigo, tra do Prado, para ser seu assisten- Juscelino Kubitschek, com a cria- ninguém era assistente de um pro- te. Logo a seguir, comecei também ção de Institutos Cen- a carreira de pesquisador trais de Ciências e Facul- em Física com o profes- dades, e deveria ser inau- O QUE PRECISAVA MUDAR sor , na gurada com a instalação “Antes da UnB, a universidade tinha Faculdade de Filosofia, da Cidade Universitária estrutura arcaica. Por exemplo, em Ciências e Letras da USP. na Ilha do Fundão, no todas as faculdades, em cada Numa conversa com esse Rio de Janeiro. ilustre professor, ele mui- disciplina havia um professor to francamente me disse: Revista Adusp - E catedrático, que era o dono da “Seu País é muito compli- quais seriam os elemen- disciplina. Dono absoluto. Fazia o cado. Com o título de en- tos constituintes, os tra- ensino como queria, determinava se genheiro somente, o se- ços mais marcantes des- ia se fazer pesquisa ou não, e era nhor poderá encontrar se modelo de universida- auxiliado por um muita dificuldade na sua de adotado pela UnB? grupo de assistentes carreira. Eu acho que o Salmeron - Primeiro (era ele quem os senhor deveria fazer o ponto: antes da UnB, a escolhia) cuja curso de Física, mesmo já universidade tinha estru- denominação já fazendo pesquisa comigo, tura arcaica. Por exemplo, indicava ser posição para ter o diploma de físi- em todas as faculdades, subalterna” co”. Aceitei o conselho. em cada disciplina, havia Mas, para fazer o curso um professor catedrático, de Física na USP, univer- que era o dono da disciplina. Dono fessor, era assistente na carreira. O sidade da qual tinha diploma e na absoluto. Ele fazia o ensino como doutorado era obrigatório para o qual lecionava, tive de prestar novo queria, determinava se ia se fazer posto de professor. Segundo ponto: exame vestibular, e tive de cursar pesquisa ou não, e era auxiliado em Brasília insistíamos em que a todas as disciplinas do curso de por um grupo de assistentes – era pesquisa fosse obrigatoriamente Física, inclusive aquelas nas quais ele quem escolhia seus assistentes – associada ao ensino, em todas as eu já tinha sido aprovado na Escola cuja denominação já indicava ser disciplinas — nas artes, nas letras, Politécnica e aquela que eu lecio- posição subalterna. O assistente nas ciências humanas, nas ciências nava! Felizmente, professores de não tinha autoridade para imprimir naturais e exatas. E, nas faculdades espírito aberto não exigiam que eu rumo à disciplina que lecionava, e de medicina e de engenharia, que assistisse às suas aulas. Por exem- na vasta maioria dos casos ensinava estavam sendo criadas, queríamos plo, Marcelo Damy de Souza San- somente o que aprendia em livros. que também houvesse pesquisa tos disse-me: “Seria ridículo você

17 Outubro 1999 Revista Adusp

República. Quem a assinou, final- O GOLPE MILITAR mente, algumas semanas depois, foi “Na semana seguinte, o campus foi invadido João Goulart. A personalidade por tropas da Polícia Militar de Minas Gerais, mais eminente na concepção da que tomaram a UnB como UnB foi Anísio Teixeira, que era se estivessem tomando uma persona non grata. Darcy Ribeiro praça-forte, com os soldados trabalhava com ele no Ministério rastejando... Foram levados por da Educação, e fez muito para que a UnB fosse cria- 14 ônibus acompanhados de três da, tendo sido o primeiro rei- ambulâncias, porque pensaram tor; foi reitor durante menos que ia haver luta armada, de um ano, porque João pensaram que estávamos Goulart convidou-o para ser mi- armados. Funcionários, nistro da Educação, e, poucos estudantes e professores meses depois, para ser chefe do ficaram espantados, Gabinete Civil da Presidência da ao ver aqueles soldados República. Daí para diante, Darcy chegando, sem saber Ribeiro tornou-se homem político. por quê” Para o governo militar, a UnB ficou então associada a Juscelino Ku- bitschek, João Goulart, Anísio Teix- assistir às minhas aulas, você está truncar a experiên- eira e Darcy Ribeiro, considerados ensinando na Politécnica o que es- cia da UnB? inimigos e tratados como tal. Daí tou ensinando aqui na Faculdade Salmeron - A UnB foi persegui- uma vigilância extrema da UnB pe- de Filosofia. Mas não posso isentá- da mais do que as outras universi- lo governo federal, que chegava às lo dos exames, pois não posso dar dades porque, pelas origens, era li- raias do ridículo. Por exemplo: logo uma nota sem que você faça uma gada a nomes de personalidades depois do golpe de abril de 1964, na prova”. Em Brasília, suprimimos políticas consideradas inimigos fer- semana seguinte, o campus da UnB esse sistema arcaico; o estudante renhos do regime militar. Lúcio foi invadido por tropas da Polícia podia ser transferido de uma escola Costa foi o primeiro a pensar numa Militar de Minas Gerais, que toma- para outra com o sistema de crédi- universidade para Brasília, que pro- ram a Universidade como se esti- tos, que existe hoje em todos os lu- pôs em seu Plano Piloto para a no- vessem tomando uma praça-forte, gares. Quarto ponto: tempo integral va capital. A possibilidade de fun- com os soldados rastejando... e dedicação exclusiva obrigatórios dação de uma universidade foi exa- Foram levados por quatorze ônibus para todos os docentes, salvo pou- minada no governo de Juscelino acompanhados de três ambulâncias, quíssimas exceções. Quinto ponto: Kubitschek, que propôs a lei para porque pensaram que ia haver luta criamos pela primera vez os Insti- criá-la, com uma mensagem envia- armada, pensaram que estávamos tutos Centrais de Artes, de Letras, da ao Congresso Nacional no dia da armados na Universidade. Fun- de Ciências Humanas, de Ciências inauguração de Brasília. Mas, du- cionários, estudantes e professores Naturais e Exatas, além das Facul- rante os meses que restavam de seu ficaram espantados, ao ver aqueles dades, estrutura essa que existe governo, a lei não foi aprovada. Du- soldados chegando, sem saber por atualmente em todo o Brasil. rante o curto governo do Jânio quê. Mas a atmosfera era de paz e Quadros a lei também não foi apro- trabalho. Os militares levavam o Revista Adusp - Na opinião do vada, mas foi aprovada no dia em nome de alguns professores que senhor, o que fez o regime militar que ele renunciou à Presidência da queriam inquirir, e alguns não esta-

18 Revista Adusp Outubro 1999 vam na Universidade quando hou- nhado a situação das universida- Sempre foi precária, mas tenho im- ve a invasão. Anísio Teixeira, que des brasileiras? pressão de que nunca foi tanto era o reitor, mandou chamá-los em Salmeron - Bastante. Durante quanto agora. Os salários são bai- suas residências, para que se apre- todos estes anos radicado na Eu- xos, as universidades não têm infra- sentassem aos militares, porque ropa, tenho mantido contato per- estrutura, e ao lado dessa situação não tinham nada a esconder. manente com universidades e insti- grave vejo gradualmente, nos últi- Vários deles foram presos. Anísio tuições científicas brasileiras, mais mos anos, uma perda de esperança. Teixeira foi destituido do cargo de freqüentemente com amigos e co- Os reveses têm sido tão grandes reitor, e substituido por um profes- legas da USP, da Unesp, do Labo- que a comunidade acadêmica está sor da USP que tinha parti- assim numa espécie de ina- cipado como civil da prepa- ção. Não sei se resignação é ração do golpe militar. FALTA DE ÂNIMO o termo adequado, mas Este, por sua vez, foi subs- “Os salários são baixos, as certamente não está lutan- tuido um ano e meio depois universidades não têm infra- do. E a gente não vê um por outro professor da USP estrutura, e ao lado dessa plano nacional de investiga- que também era homem de situação grave vejo ção, de pesquisa científica, confiança do regime. Du- gradualmente, nos últimos anos, de amparo. Classifico a si- rante as gestões desses dois uma perda de esperança. Os tuação de perigosa, porque reitores, começaram e se reveses têm sido tão grandes que a precariedade e a falta de intensificaram as persegui- a comunidade acadêmica está orientação originam quebra ções cegas à Universidade, de ânimo e de esperança, assim numa espécie de inação. com controle policial diário que é o que de pior pode em todos os setores, estu- Não sei se resignação é o termo acontecer a uma comunida- dantes e professores pre- adequado, mas certamente não de, que nessas condições sos, professores demitidos, está lutando. E a pode cair na estagnação e criando um intolerável cli- gente não vê um não cultivar o espírito de ma de insegurança que au- plano nacional de luta. É alarmante a falta de mentava com o tempo. De- investigação, de sensibilidade do governo pois de lutar muito em de- pesquisa para com esse problema. E fesa da Universidade e da científica, de mais alarmante ainda quan- liberdade acadêmica, nós amparo” do vemos que em todos os nos convencemos de que setores de atividades o não era mais possível ser Brasil tem universitários da professor universitário dignamente ratório Nacional de Luz Síncroton, mais alta competência. Por que es- naquela situação. Então 223 do- de Campinas, da UFRJ, do Centro sas pessoas da mais alta competên- centes se demitiram da UnB que Brasileiro de Pesquisas Físicas, do cia não são ouvidas e apoiadas? Is- estavam construindo, com a pro- Rio de Janeiro. Há obviamente nas so não é somente chocante, é peri- funda decepção de ver que no nossas universidades uma série de goso, porque, contrariamente aos Brasil daquela época um empreen- problemas muito preocupantes, países avançados, que disputam as dimento dessa natureza podia ser muito alarmantes, porque podem pessoas competentes, o Brasil des- destruído facilmente. comprometer o futuro em escala perdiça a competência, não so- social que ultrapassa o quadro das mente em assuntos culturais, de Revista Adusp - O senhor tra- universidades. Em primeiro lugar, ensino e de pesquisa, mas também balha na França, vive lá há mui- a situação financeira é precária, ri- em assessoria para assuntos de in- tos anos. O senhor tem acompa- dícula e perigosamente precária. teresse nacional.

19 Outubro 1999 Revista Adusp

Revista Adusp - O senhor está Segundo exemplo grave: o Estação Espacial. Não se pode falando em não utilização de Sivam. Por que o governo, em vez compreender essa participação, competência nas universidades. de consultar os especialistas alta- que custará no mínimo 120 mi- Mas acha que não há utilização mente qualificados que nós temos, lhões de dólares. É muito dinheiro. de competência também em ou- e fazer um projeto nacional, dá o Para fazer uma comparação, a tros setores? projeto a uma companhia estran- França gasta, por ano, somente Salmeron - O governo atual, que geira? Não é exagero dizer que o 15% a 20% dessa quantia com neste ponto não difere em nada dos Brasil está pagando para ser espio- equipamento para todas as expe- governos passados, não tem o hábi- nado. Porque as companhias es- riências em Física Nuclear e Física to de usar a competência dos seus trangeiras ficam a par de tudo que de Partículas Elementares de todos universitários, dos seus engenhei- está acontecendo aqui. É ridículo! os seus laboratórios, com partici- ros, dos seus cientistas, como asses- O projeto poderia ser realizado no pação nos maiores projetos nacio- sores de projetos de inte- nais e internacionais de resse nacional. Tem-se a SIVAM cerca de 500 físicos e nú- impressão de que o gover- “Por que o governo, em vez mero pelo menos idêntico no não sabe o que fazer de engenheiros e técnicos. de consultar os especialistas dos universitários, como se estes devessem ensinar e altamente qualificados que Revista Adusp - O se- só. Posso citar três exem- nós temos, e fazer um projeto nhor, ao contrário dos de- plos de projetos, um feito nacional, dá o projeto a uma sesperançados, acredita durante o regime militar e companhia estrangeira? Não é no potencial da universi- dois no governo atual, nos exagero dizer que o Brasil está dade brasileira? quais a competência nacio- pagando para ser espionado. Porque Salmeron - Acredito nal não foi utilizada. O pri- as companhias imensamente. A prova de meiro foi a compra das estrangeiras ficam a que se deve acreditar é centrais nucleares da Ale- par de tudo que está óbvia, é que, apesar de to- manha: os cientistas não acontecendo aqui. É das as dificuldades, veja foram consultados, os en- ridículo! O projeto quanta gente competente genheiros não foram con- poderia ser realizado está sendo formada no sultados, os especialistas no Brasil” país. O que acontece é em energia nuclear da que o número de pessoas época não foram consulta- competentes ainda não é dos. Foi uma decisão autoritária, Brasil. Demoraria mais tempo, o muito grande, ainda não é tanto completamente desligada de qual- que não seria grave, mas formaria quanto o país precisa. Mas a vitali- quer planificação para o futuro. ou aperfeiçoaria a formação de dade universitária no Brasil é ex- Custou uma fortuna. O preço de pessoal nosso, e seria muito mais traordinária, e eu não tenho ne- cada reator, naquela época, era de barato. O terceiro exemplo é a nhuma dúvida de que, com tanta 3 bilhões de dólares. Eu me lembro participação do Brasil na Estação gente inteligente e tanta gente de que fiz um cálculo, porque sabia Espacial Internacional. Quero dei- competente, soluções importantes quanto ganhava um engenheiro e xar bem claro que faço distinção serão encontradas para os proble- um cientista alemão: se o Brasil ti- entre o programa espacial brasilei- mas. A falta de ânimo e de espe- vesse comprado as oito centrais ro, que se realiza no INPE, em São rança a que me referi há pouco (acabou comprando três) iria dar José dos Campos, que é sólido, tem de ser vencida, e será vencida. empregos a 10 000 alemães durante merece os maiores elogios e deve Mas, para isso, não podemos nos pelo menos quatro anos. ser apoiado, e a participação na limitar a nos queixar de coisas que

20 Revista Adusp Outubro 1999 não funcionam. A comunidade te que vem de famílias que têm está sendo usado é enfatizado de universitária tem de agir, de tomar posse para isso. Essa é que é a ver- modo mentiroso. iniciativas, de tomar em suas pró- dade. A quantidade de universitá- Por exemplo, se na minha gera- prias mãos os destinos da universi- rios que vêm de famílias humildes ção houvesse universidade paga, dade e tem de educar o governo a é muito pequena. É muito peque- eu não poderia ter estudado. E ver a universidade de outro modo, na no mundo inteiro. Não quero um grande número dos meus cole- mostrar ao governo que a universi- dizer que tem de continuar assim; gas da Politécnica também não. dade é a consciência da sociedade ao contrário, essa situação tem de Querer fazer ensino pago é um na qual está inserida. ser mudada, e os próprios univer- crime. Seria uma das coisas mais sitários têm papel importante a graves nas quais o governo falha- Revista Adusp - Ultimamente, desempenhar nessa mudança. ria, numa de suas missões impor- as pessoas têm sido levadas a pen- Quero dizer que os argumentos tantes para com a sociedade. Dão sar que é interessante exemplos de universida- que haja universidade DELÍRIO DE PRIVATIZAÇÕES I des pagas, os Estados paga, que as universida- “Se na minha geração houvesse Unidos são tomados co- des públicas são muito mo modelo. Mas tam- universidade paga, eu não poderia ter caras, que existe uma bém é mentira. A Uni- grande ineficiência en- estudado. E um grande número dos versidade da Califórnia tre os pesquisadores meus colegas da Politécnica também é pública, é o Estado da das universidades pú- não. Querer fazer ensino pago é um Califórnia quem arca blicas. Que o senhor crime. Dão exemplos de universidades com as despesas, tem tem a dizer sobre isso? pagas, os Estados Unidos são 300 000 estudantes. As Salmeron - A univer- tomados como modelo. Mas também é universidades dos Esta- sidade pública gratuita mentira. A Universidade dos, nos Estados tem de existir. Privatizar da Califórnia é Unidos, são todas uni- as universidades públi- pública, é o Estado da versidades públicas. E cas seria um crime. A Califórnia quem arca as universidades pagas, palavra adequada é cri- com as despesas, tem como Harvard, Yale, me. Os argumentos que 300.000 estudantes” etc. têm duas caracterís- são apresentados pelas ticas. Primeiro, os bons pessoas que falam em estudantes têm bolsa do pagamento dos estudos governo para estudar, e em universidades públicas são ina- que estão sendo utilizados para fa- quando o estudante não tem bolsa ceitáveis. Dizer que as universida- zer o ensino pago são falhos, por- e a família não pode pagar, tem des públicas são freqüentadas por que estão pondo em evidência de levantar empréstimo que o dei- jovens que vêm de famílias que uma situação que sempre existiu, e xa endividado durante anos. Se- podem dar aos filhos uma boa que existe nos outros países tam- gundo, o que nunca é dito, todo o educação no curso secundário, jo- bém. Além disso, não é verdade trabalho de pesquisa é pago pelo vens que vão à universidade de au- que essas famílias sejam tão bem governo. Essas universidades não tomóvel, e portanto podem pagar postas economicamente. É menti- têm possibilidade de fazer pesqui- as mensalidades... Esses argumen- ra, porque a maioria delas, mesmo sa com verbas próprias. Há uma tos são falsos e devem ser comba- não pagando os estudos, têm difi- falta de informações sobre isso. E tidos. No Brasil, desde que o culdade em ter um jovem ou uma a imprensa tem grande responsa- Brasil existe, a universidade é fre- jovem estudando até os 24, 25 bilidade, porque há jornalistas qüentada por uma minoria de gen- anos. O próprio argumento que que escrevem sobre isso sem se in-

21 Outubro 1999 Revista Adusp formar exatamente sobre o que Revista Adusp - E isso atende porque o perigo é grande. Já houve está acontecendo. Uma outra len- a que interesses? em governos passados rumores de da que está-se fazendo no Brasil é Salmeron - Vejo essa campanha que as universidades públicas pas- de que há muitos professores por para fazer o ensino pago como par- sariam a ser pagas, mas em perío- estudante. O que é mentira, por- te desse delírio de privatizações dos em que não se falava em priva- que também quando comparam que a gente vê. Além de o fato em tizações. O perigo hoje é maior do com certas universidades do exte- si ser inaceitável, comparando com que nunca, porque as privatizações rior não dizem que estão sendo feitas sem ne- nos Estados Unidos o DELÍRIO DE PRIVATIZAÇÕES II nhum escrúpulo e apresen- que se chama de uni- “O que o governo deu como ajuda a tadas como salutares e ine- versidade nem sem- esses bancos que tinham atividades vitáveis. pre é universidade co- fraudulentas daria para pagar a mo a nossa, com cur- verba de certas universidades Revista Adusp - Chega a sos de quatro, cinco, ser perverso. durante anos. É um escárnio querer seis, sete anos. A Salmeron - É perverso. maioria das chamadas que os jovens paguem a Exatamente. É a expressão universidades são co- universidade, quando há tanta correta. É uma espécie de légios, com cursos de roubalheira. Por que os bancos e escárnio à população que- só dois anos. E de grandes companhias não pagam os rer que os jovens paguem a cultura geral, não impostos que têm que universidade, quando há profissionalizantes. pagar? É nessa tanta roubalheira. Por que Aí a gente pode con- direção que o governo os bancos não pagam os ceber que um profes- tem que procurar impostos que têm de pa- sor de literatura vá dinheiro, e não com gar? Por que as grandes falar para 100 pessoas as mensalidades dos companhias não pagam os numa classe. Mas não estudantes” impostos que têm de pa- quer dizer que ele vá gar? É nessa direção que o formar escritores ou governo tem de procurar literatos. Quando se consideram o modo como o dinheiro público é dinheiro, e não com mensalidades universidades como as nossas, gasto no Brasil, com as subvenções de estudantes. Isso faz parte de um com cursos de quatro anos ou a bancos, as subvenções a compa- delírio de privatizações, feito sem mais, a gente vê que o número de nhias multimilionárias como a Ford reflexão, sem analisar as conse- estudantes por professor é o mes- que vêm se instalar aqui, então se o qüências. Veja por exemplo na Eu- mo que no Brasil, nas universida- governo está precisando de dinhei- ropa, não há universidade particu- des americanas. E na Europa, em ro é aí que ele tem de procurar. O lar. Na França, na Itália, na Ale- certos lugares como na França, que o governo deu como ajuda a manha, não há universidade parti- nas disciplinas científicas, o núme- esses bancos que tinham atividades cular. São todas públicas. Pode ha- ro de estudantes por professor é fraudulentas daria para pagar a ver uma ou outra escola de comér- menor do que no Brasil. O aluno verba de certas universidades du- cio, de informática ou coisa assim, tem muita assistência, quase que rante anos. Dentro do contexto mas não universidade. Se na individual. Então essas informa- brasileiro, de tanta calamidade que França o governo fizesse uma de- ções são divulgadas de modo erra- a gente vê por aí, a idéia de univer- claração de que o ensino seria pa- do e eu diria até tendencioso, por- sidade paga é mais inaceitável ain- go, haveria greves monstruosas pe- que a insistência com que elas são da. Mas a sociedade tem de ficar lo país inteiro, até que a idéia fosse publicadas é alarmante. vigilante e reagir contra essa idéia, completamente derrubada.

22 Revista Adusp Outubro 1999

Revista Adusp - Quer dizer que o Anísio Teixeira, com sua PESQUISADOR frase que dizia “educação não é um privilégio, é um direito”, es- EMÉRITO taria terrivelmente incomodado se estivesse vivo hoje. Patrick Blackett, Prêmio Nobel Salmeron - Ah, o Anísio esta- de Física, foi quem sugeriu à dire- ria sofrendo terrivelmente. ção do CERN, de Genebra, a con- Porque a batalha dele na vida in- tratação de Roberto Salmeron. teira era a educação gratuita para Blackett fora o orientador de todos. Como deve ser. Ele que foi Salmeron em seu doutorado um gigante da educação, como (Ph. D.) na Universidade de Man- costumo dizer, não aceitaria isso chester. De 1955 a 1963, o enge- de modo algum. Mas veja, no nheiro e físico brasileiro ocupou o Brasil já existem universidades posto de Físico Superior (Physi- particulares. Pelo que a gente lê cien Supérieur) na equipe de pes- nos jornais, aproximadamente quisadores do CERN. 60% dos estudantes de escolas Teve, assim, “a oportunidade superiores estão em escolas ou excepcional”, que muito influen- universidades particulares. Ago- ciou suas atividades posteriores, ra, quando nós, num ambiente “de acompanhar a evolução cientí- como o da USP, falamos em re- fica e a organização desse labora- forma universitária, em associa- tório, que se tornou o maior do ção de pesquisa ao ensino, em as- mundo em sua especialidade”, ex- sociação de atividades criadoras plica o próprio Salmeron. ao ensino, nós falamos num nível Depois que foi obrigado a dei- no qual essas universidades parti- xar a UnB, ele reassumiu, em 1966, seu posto no CERN. Em 1968, culares nem podem ser levadas passou a trabalhar na Escola Politécnica de Paris e no Laboratório de em conta, a não ser um pequeno Física Nuclear de Altas Energias, vinculado ao CNRS. Ali, foi suces- número de honrosas exceções. sivamente Diretor de Pesquisa, Diretor de Pesquisa Classe Excep- Não têm condição nenhuma de cional e Diretor de Pesquisa Emérito (Directeur de Recherche fazer uma elite intelectual para o Emérite), seu cargo atual. país. Repito: a não ser algumas Ocupou postos de direção na Politécnica de Paris e no CNRS e honrosas exceções. É evidente foi assessor do Fundo Nacional Suíço para a Pesquisa Científica. Co- que as universidades públicas têm mo presidente da Divisão de Física de Altas Energias e Partículas da que se concentrar para formar Sociedade Européia de Física, criou um prêmio internacional para pessoas altamente competentes, física de partículas elementares, intitulado High Energy Physics Prize em todo o território nacional, of the European Physical Society. Na França, fundou, em 1969, a Es- quer seja no sul, no centro, no cola de Verão de Física de Partículas de Gif-sur-Yvette, que se tor- norte, nordeste, todas devem ter nou a escola oficial do Departamento de Física Nuclear e de Partícu- essa missão de formar gente com- las do CNRS. petente. A universidade pública A convite da Academia Real Sueca de Ciências, por quatro anos con- tem que existir, gratuita, forman- secutivos (1985 a 1989) indicou candidatos ao Prêmio Nobel de Física. do gente de alto nível, e isso é responsabilidade do governo.

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Revista Adusp - O senhor conhece o projeto de autonomia universitária que o governo acaba de en- viar ao Congresso? Salmeron - Há poucos momentos vo- cês me perguntaram o que achava da situa- ção da universidade brasileira. Um ponto que me choca profun- damente é a falta de diálogo. Falta diálogo dentro da universida- de e da universidade com o exterior, inclu- Salmeron durante o lançamento do livro, em São Paulo sive com os ministé- rios públicos. Volto àquela parte, as universidades sejam todas iguais. cima, o que não existe no Brasil. os universitários não sendo chama- Se a universidade tiver o direito de As três universidades do Estado de dos para assessorar. Mas não são ser diferente das outras, ela poderá São Paulo já têm autonomia finan- consultados nem sobre o futuro da utilizar melhor as condições locais, ceira e administrativa há muitos própria universidade. Isso é muito e ter mais inserção no meio local. anos. Agora, o caso da autonomia grave. Como é que a comunidade A autonomia tem que ser muito é mais grave nas universidades fe- universitária não pode exprimir a mais ampla do que aquela que vem derais, mais do que nas três do Es- sua opinião num projeto de auto- sendo divulgada. E nisso é alar- tado de São Paulo. Mas aí então nomia universitária? Porque não se mante o fato de a comunidade uni- acho que a autonomia não está trata somente de distribuição de versitária não ter a chance de dar a bem colocada, porque é preciso verbas no nível burocrático, é mui- sua própria opinião. Porque o pro- que haja o direito de ser diferente to mais profundo do que isso. De blema é muito mais amplo do que na sua estrutura. Por exemplo, não vez em quando chegamos a ler nos simplesmente o contato entre dire- é evidente para mim que em todas jornais que um dos argumentos pa- tores e reitores, entre reitores e mi- as disciplinas em que se faz pesqui- ra dar autonomia é dar autonomia nistros. Afeta todo mundo. Como é sa na USP também se deva fazer financeira, para que os reitores que a comunidade não pode se ma- pesquisa numa universidade do possam despedir pessoas e contro- nifestar? Veja, se compararmos norte. Por outro lado, há muitas lar o orçamento etc. Isso é ridículo, com a França, por exemplo: na pesquisas que poderiam ser feitas tem-se a impressão de que as pes- França toda a estrutura é feita de no norte melhor do que na USP. soas que lançam esses argumentos modo tal que as idéias partem da Um exemplo típico: Geologia, estão fazendo pilhérias com a co- base e sobem para a direção. As vá- Ciências da Terra. Por que não se munidade acadêmica! Um dos rias disciplinas têm comitês de ges- pode ter, no norte do Brasil, insti- pontos mais importantes da auto- tão, que auxiliam a universidade na tutos de pesquisas em Ciências da nomia é dar às universidades o di- gestão da disciplina, especialmente Terra que poderiam ser muito mais reito de serem diferentes umas das na gestão científica. Esses comitês desenvolvidos do que aqui? Por outras. Não há necessidade de que é que levam as idéias de baixo para que não? RA

24 Revista Adusp Outubro 1999 MARATONA DA SBPC

Glaci Zancan fala da “viagem ao Brasil” que a entidade dos cientistas empreende, para colher dados e arregimentar forças na batalha por uma nova política nacional de educação e C&T

Fotos: Daniel Garcia A nova presidenta da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a bioquímica Glaci Zancan, professora da Universidade Federal de Curitiba, assumiu o cargo disposta a levar em frente aquele que talvez seja o mais ambicioso programa já realizado pela entidade: a Maratona SBPC- 2000, um mapeamento dos problemas enfrentados pela comunidade universitária e acadêmica em todos os Estados do país. No dia 30 de agosto, na sede da SBPC em São Paulo, no histórico prédio da Faculdade de Filoso- fia da Rua Maria Antonia, Glaci concedeu entrevista a Fernanda Franklin e Pedro Estevam da Rocha Pomar, da Revista Adusp.

25 Outubro 1999 Revista Adusp

idéia é dar à socialmente, é isso que está se no- pende do governo. Se a curto prazo nação um pa- tando, nós temos que encontrar al- nós não conseguirmos mudar a po- norama real ternativas para o modelo. E isso vai sição política do país, temos que da situação exigir criatividade”. No seu entender, conseguir mudar via eleição. E para “A das universi- é precisamente este o papel que cabe isso é preciso que o povo saiba exa- dades, da ciên- à entidade: levantar opções para a tamente aquilo que ele quer. Então, cia e tecnologia no país”, explica economia nacional. não vejo nenhuma contradição no Glaci, para quem só é possível supe- “Porque, se nós estamos num re- trabalho de tentar motivar toda a rar a situação crítica enfrentada hoje gime democrático, só vamos poder comunidade para a importância da pelo setor se a sociedade reconhecer a mudar via voto. A concientização educação, ciência e tecnologia para importância da C&T no desenvolvi- da população, o trabalho de melho- o futuro do país. Acho que talvez a mento nacional. A Maratona surgiu ria do nível de consciência da cida- gente tenha problemas imediatos, de uma sugestão do reitor da UnB, dania. E a academia tem que forne- mas certamente poderemos pensar Lauro Morhy, submetida à 51ª Reu- cer intelectualmente as alternativas. em resolvê-los em médio prazo. nião Anual da entidade, realizada em A gente não pode pensar que vai re- ESTÁGIO DOCENTE julho último em Porto Alegre. Seus solver com messianismo”, sustenta Se for pedagógica, ou seja, se for achados e constatações serão exami- Glaci. A seguir, os principais tópicos para a formação do aluno, é uma nados e discutidos na 52ª Reunião de sua entrevista. boa iniciativa. Se for para substituir Anual, que terá lugar em Brasília. PRIORIDADE PARA C&T docentes que têm que exercer suas Capitaneada pelos dois vice-pre- Nós não mudamos de posição. atividades, é uma péssima idéia. Do sidentes da entidade, Marco Anto- Nós achamos que educação, ciên- ponto de vista de você formá-los pa- nio Raupp e Vilma Figueiredo, a cia e tecnologia devem ser prioritá- ra que eles sejam capazes de exer- Maratona foi lançada em Brasília rias. No entanto, não é assim que cer melhor o magistério posterior- no dia seguinte à entrevista, e teve os condutores da política econômi- mente, já que a grande maioria dos início em Recife, Campina Grande ca pensam. Essa é uma discussão egressos da pós-gradução vai para o e Natal, nos primeiros dias de se- permanente. A forma de sobrepor ensino superior, eu acho bom. Ago- tembro. Até abril do ano 2000, está esse choque entre o que a gente ra, não é possível pensar que se vai prevista a realização de onze “en- considera que é prioritário, e o que fazer um treinamento de um aluno contros de debates” nas diversas re- a administração econômica do país para que ele seja bom profissional giões do país. considera prioritário, é fazer com substituindo aqueles que devem fa- A Maratona, assim, está articula- que a sociedade reconheça a im- zer o serviço das universidades. da também à necessidade de con- portância da educação, ciência e Ninguém vai obrigá-los a fazer quistar a adesão da sociedade na tecnologia para o desenvolvimento 40 horas de aula. Por exemplo, o disputa (Glaci usa a expressão “cho- nacional. Então, o enfoque nosso que nós temos feito, e já vínhamos que”) entre a comunidade científica vai ser nesse sentido agora: tentar fazendo antes, é fazer com que os e a “administração econômica do convencer a sociedade de que essa alunos participem numa carga ho- país”. A presidenta da SBPC evita área é importante. rária de uma disciplina convencio- atacar frontalmente a política eco- MOTIVAR A SOCIEDADE nal, portanto, um crédito, dois cré- nômica e social vigente no Brasil: Os governos são eleitos, os go- ditos, quer dizer, não é mais do “Se o modelo que está aí não é bom, vernos devem passar. Portanto, o que isso e nem acho que a Capes se o modelo é ruim porque prejudica convencimento da sociedade inde- está pedindo mais do que isso.

“Se a curto prazo não conseguirmos mudar a posição política do país, temos que mudar via eleição. E para isso é preciso que o povo saiba exatamente aquilo que ele quer”

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AUTONOMIA Mandamos carta ao Ministro da Educação dizendo que considera- mos que o anteprojeto na sua reda- ção não é bom, e que portanto ele fica totalmente prejudicado. Se a forma jurídica não é boa, não tem nem como pensar em aplicá-lo, não é mesmo? Ele é muito detalhista. Temos defendido, em conjunto com a Academia Brasileira de Ciência, Na montagem, Glaci aponta que às universidades deve ser dada para outdoor sobre o ensino autonomia, mas autonomia respon- privado: “A geração de conhecimentos no país sável, ou seja, as universidades vão é feita nas universidades públicas, ter que prestar contas, porque o di- as demais são escolas de terceiro grau” nheiro é público, dos recursos que a Portanto, a gente vai ter que pagar truir, o difícil é reconstruir. A gente elas são alocados. Já chegamos até para ver, não é mesmo? Agora, o precisa preservar São Paulo se qui- a propor que se tivesse um conselho grande problema da área de produ- ser preservar a ciência do país. Mas, para analisar os pedidos de projetos ção científica no país é que a Fapesp por outro lado, precisa fazer o resto estratégicos das universidades. consegue fazer com que as universi- do país crescer, para que não seja só Quer dizer, as universidades dades de São Paulo sejam geradoras São Paulo a cultivadora de conheci- apresentariam o que pretendem, se- de conhecimento, com o suporte mentos. E é para tentar levantar to- ria discutido e seria dada a autono- que ela dá, e com isso garante 50% dos os problemas e potencialidades mia. Não seria uma autonomia por da produção científica brasileira. do país que nós estamos iniciando decreto, mas uma autonomia anali- Mas no restante do país a situação é amanhã uma longa caminhada, na sada caso a caso, para ver o que a muito complicada, as universidades preparação da reunião anual do ano universidade pretende, como ela vai federais e o CNPq estão pratica- 2000, que vai ser em Brasília. crescer. Não é uma autonomia ab- mente sem recursos, com exceção A MARATONA DA SBPC soluta, por decreto, mas sim uma dos programas mais ou menos espe- Estamos chamando todos para autonomia racional e administrada. cíficos, como é o caso do PADCT e discutir, porque há uma diferença PÚBLICAS x PRIVADAS do Pronex. Os laboratórios que têm muito grande das necessidades da Por enquanto eu acho que a ge- esses recursos têm condições de so- população em ciência e tecnolo- ração de conhecimentos no país é breviver, os outros não. gia, dos níveis intelectuais e de de- feita nas universidades públicas. Então é muito angustiante a si- senvolvimento da pesquisa nos di- Com exceção das confessionais, que tuação do resto do país inteiro. E is- ferentes Estados da federação. A são financiadas pelo Estado, como é so se reflete no que você vê, todo gente precisa conhecer isso, ver se o caso da PUC do Rio de Janeiro, mundo triste, desesperado. Na insa- pode alavancar sugestões de ações como é o caso da PUC de São Pau- tisfação, na desesperança, não é? e de idéias que permitam um cres- lo, as demais ainda têm que “crescer Que precisa de qualquer maneira cimento mais harmônico de toda a e aparecer”, elas ainda não existem, ser combatida, porque não se faz o federação. Essa jornada só vai elas são escolas de terceiro grau. pesquisador em um ano. É fácil des- acabar em abril ou maio do ano

“Quem sabe se o grande problema do país é a centralização da ciência e tecnologia, da pós-graduação, tudo, no Sudeste. Precisamos ver como resolver esse problema”

27 Outubro 1999 Revista Adusp

“No MIT, maior centro de tecnologia dos EUA, não chegam a 15% os recursos de empresas. O governo entra com a maior parte do financiamento” que vem. Os dois vice-presidentes COTAS E ENSINO PAGO dos projetos, mas tem muita doa- da SBPC vão sair, junto com a Fixação de cotas para ingressar ção, doação de ex-alunos, por Universidade de Brasília (UnB), na universidade não resolve. O que exemplo. Gostaria de saber quan- porque a secretaria regional é Bra- é preciso é melhorar a qualidade tos ex-alunos estão dispostos a sília e a UnB é a sede, e vão come- do ensino público de primeiro e se- contribuir para que a USP possa çar essa maratona. gundo graus, para dar a todos a crescer, já que São Paulo é uma A idéia é uma discussão, em to- mesma oportunidade. Com relação potência econômica e tem grandes dos os Estados, dos problemas da ao financiamento, vejo que em ne- fortunas que surgiram de ex-alunos ciência e tecnologia. Na realidade nhum lugar do mundo o pagamen- da USP. Por outro lado, há um mi- estamos começando a trabalhar to pelos alunos resolve o proble- to de se dizer que só os ricos vão para dar à nação um panorama ma, porque a pesquisa científica é para a universidade pública. Isso real da situação das universidades, cada vez mais cara e ela é, e tem si- não é verdade. Esses números não da ciência e tecnologia no país. Es- do sempre, atribuição do Estado. são reais, então é preciso cair na peramos conseguir os dados para a No MIT, que é o maior centro de real dos números. discussão dos problemas, princi- tecnologia dos EUA, não chegam a A CRISE BRASILEIRA palmente para motivação das pes- 15% do total os recursos que en- Não consultei toda a minha di- soas, para encontrar soluções. tram por contratos com empresas. retoria, nem todo o meu conselho, Quem sabe se o grande problema Se você analisar o que entra de ta- portanto não tenho como emitir do país é a centralização da ciência xas, também é pouco. Por outro la- opinião sobre economia. Não sou e tecnologia, da pós-graduação, tu- do, o governo dos Estados Unidos economista, acho que é muito difí- do, no Sudeste. Precisamos ver co- entra com a maior parte no caso cil fazer uma oposição formal des- mo resolver esse problema. do financiamento da pesquisa e se tipo, essas coisas têm que ser OBRA COLETIVA “Esta grande maratona, certamente, mobilizará a inteligência e as melho- res energias de milhares de brasileiros. Seus frutos generosos nos darão pre- cioso acervo de visões, preocupações e recomendações práticas, todas volta- das para a conquista de uma sociedade mais consciente, mais determinada e mais justa, num momento crucial de nossa história. Com este rico material — uma mostra da diversidade, do senso crítico e da capacidade criativa da nação brasileira — poderemos editar e oferecer ao país um volume com reflexões e contribuições consistentes sobre a tarefa essencial de superar as mais perversas injustiças e desigualdades nacionais e preparar nossa sociedade para os desafios da cultura e do conhecimento no novo milê- nio. A SBPC-2000 parte, claramente, da necessidade inadiável da retomada do desenvolvimento nacional com base no fomento e no avanço do fazer científico e tecnológico no país inteiro. Todos os brasileiros estudiosos e inte- ressados em apresentar idéias e soluções estão convidados para a nossa ma- ratona. Esta deve ser e será uma obra coletiva.” (SBPC, via Internet) Revista Adusp Outubro 1999

“Temos defendido que se deve dar às universidades autonomia responsável, ou seja, as universidades vão ter que prestar contas, porque o dinheiro é público” debatidas, têm que ser discutidas, de forças muito grande, que eu Enquanto não formos capazes e a gente não pode sair falando de não tenho, não sou capaz de meter de mobilizar a população toda, pa- coisas que não tem como equacio- a minha mão. Não, não, acho que ra considerar a educação, a ciência nar. Não temos nenhuma bola de isso é um jogo de forças, é um jogo e a tecnologia prioritárias, nós não cristal para saber os rumos da eco- de queda de braços, que nós, en- vamos conseguir mudar o panora- nomia mundial. Na SBPC o que quanto comunidade científica, não ma do orçamento. Por exemplo, o temos feito é discutir, cada assunto temos instrumentos para opinar, a trabalho magnífico que está sendo é discutido com o seu conselho. não ser que houvesse dados para feito em Ribeirão Preto, foi publi- Como todo o universo humano é analisar e julgar. Quantos operá- cado no MIT, com a vacina e a te- muito díspar, existem opiniões de rios vão ser demitidos aqui, quer rapia de DNA contra a tuberculo- todos os tipos, não é uniforme, não dizer, é preciso defender o empre- se, é uma amostra de como, quan- há coesão absoluta em todas as go aqui, e isso acho que o governo do bem aplicado o recurso, com idéias, há uma discordância que é de São Paulo vem fazendo bem. criatividade, pode-se ter um retor- própria do meio acadêmico tam- O país vive muito do dia a dia. no imenso. É importante que se bém, então penso que vivemos um Nós precisamos mudar isso, temos diga que o Brasil tem muitas con- momento muito, muito, muito difí- que ter políticas estratégicas de tribuições importantes, e que a cil. A gente tem que buscar é que longo prazo, se quisermos ser gente não sabe. as cabeças pensantes do país pen- competitivos internacionalmente, Então outra tarefa da comuni- sem alternativas. Se o modelo que está certo? Esse imediatismo é dade é divulgar aquilo que faz, pa- está aí não é bom, se o modelo é que mata. Em ciência e tecnologia ra que a sociedade saiba o que está ruim porque prejudica socialmen- não se faz nada correndo. O pro- sendo feito, aonde está indo o re- te, é isso que está se notando, nós jeto educacional americano é para curso. O ataque à universidade temos que encontrar alterações pa- o ano 2061. deve-se ao desconhecimento, tam- ra o modelo econômico. E isso vai EDUCAR A POPULAÇÃO bém, e isso compete à universida- exigir criatividade. Tentamos já fa- Essa é uma tarefa que nós te- de combater. A Fapesp já tem um zer isso na Reunião Anual, convi- mos que nos impor, educar a po- boletim, está divulgando, acho im- dando, fazendo mesas redondas e pulação. Isso compete à universi- portantíssimo. A USP tem um tra- simpósios para debater alternati- dade, é ela que forma toda a rede balho de extensão fantástico, a vas de modelo econômico, alterna- educacional. A gente sempre pro- Adusp podia mostrar isso. tivas de política de ciência e tecno- cura achar que são os outros que Essa história de país grande logia. A política econômica norteia têm que fazer, mas somos nós que com recursos infinitos não existe. o resto. Deveria ser o social nor- temos que fazer, assumir nossa res- Nós somos pobres, temos que ra- teando a economia, mas não é as- ponsabilidade social com a popula- cionalizar, analisar o custo-benefí- sim, é o setor produtivo, a econo- ção brasileira, enquanto elite inte- cio de todas essas coisas. Os re- mia que norteia. lectual. Imagine que somos uma cursos não são suficientes, são SUBSÍDIOS PARA A FORD minoria, dentro de uma população poucos. Temos que ter o máximo Eu diria que isso tudo é muito pobre, extremamente injustiçada, de eficiência. Nós estamos com confuso, muito complicado. Sai do pisada. Então temos que fazer nos- tudo em 10% do que deveria ser. Rio Grande do Sul, vai para a Ba- sa autocrítica, nós somos responsá- Esta é que é a triste realidade. Te- hia, fecha São Paulo, quer dizer, veis. Voltar para a sociedade, para ria que multiplicar tudo por dez. uns negócios malucos. É um jogo dar o retorno que ela espera. Só não sei como. RA

29 Outubro 1999 Revista Adusp

A AVALIAÇÃO DE CURSO UMA DIMENSÃO DA AVALIAÇÃO NA UNIVERSIDADE

Romualdo Portela de Oliveira e Sandra M. Zákia L. Sousa Professores do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da FEUSP

30 Revista Adusp Outubro 1999

que nos levou a encaminhar este artigo para publicação na Revista Adusp é que, segundo entendemos, ele procura problematizar a te- mática da Avaliação na Universidade, hoje em evidência tanto in- terna quanto externamente à USP. Originalmente foi redigido para estimular um debate na Faculdade de Educação, quanto ao Curso O de Pedagogia, tendo em vista o particular momento institucional vi- vido por esta instituição, com a implantação do novo Currículo do Curso, com a elabo- ração do Projeto Acadêmico da FEUSP e, no âmbito da Universidade, com as iniciati- vas desencadeadas com vista à avaliação e ao aperfeiçoamento do ensino. Esboçamos algumas indagações que têm estado presentes no debate acerca da ava- liação da e na universidade, delineando a partir delas uma possibilidade para desenca- dearmos, professores e alunos, um processo de avaliação de curso. Para tal, levamos em consideração a experiência advinda da participação na Comissão Coordenadora do Curso de Pedagogia quando de sua implantação, em 1991, e as informações que temos coletado como produto da pesquisa de acompanhamento da trajetória escolar e profis- sional dos alunos do Curso de Pedagogia, desenvolvida desde 1993.

Algumas preliminares. Genera- riam as escolas a aperfeiçoarem-se entre os motivos que levam à ava- lizou-se, nos últimos anos, a cons- ou buscariam escolas com melhor liação e a forma como ela é reali- ciência da necessidade de avalia- desempenho. (Cf. Castro, C. M. zada. A adoção de determinados ção das instituições de ensino, em [1994], Educação Brasileira: Con- processos avaliativos sinaliza para todos os níveis. Diversas motiva- sertos e remendos. Rio de Janeiro, onde se quer direcionar a institui- ções justificam-na, desde a melhor Rocco; Melo, G. N. [1993], Cida- ção, tendo, portanto, intrinseca- utilização de recursos financeiros, dania e Competitividade: Desafios mente, a capacidade de induzir até a oportunidade para subsidiar educacionais do terceiro milênio. modificações institucionais. Mes- a tomada de decisões relativas às São Paulo, Cortez). mo que não se estivesse tratando dimensões administrativa e peda- Se a consciência da importân- de “prêmios” e/ou “punições” pa- gógica. Vislumbra-se, ainda, a ava- cia da avaliação dos sistemas esco- ra os bem ou mal avaliados, o sim- liação como um mecanismo de in- lares e, particularmente, das esco- ples fato de se realizar uma avalia- dução de melhorias, através da di- las generalizou-se, longe estamos ção significa que se definiu uma si- vulgação de seus resultados aos de algum acordo acerca de “para tuação desejável. usuários (pais, alunos e comunida- que avaliar” e “como avaliar”. Evi- Ao se realizar determinado de em geral), que ou pressiona- dentemente, há uma articulação processo avaliativo, espera-se, ex-

31 Outubro 1999 Revista Adusp plicitamente, verificar quão dis- tante se está da situação desejável “O método que toma como indicador da pesquisa e, a partir daí, definir elementos para modificar a situação em dire- apenas o número de publicações é caso típico de ção ao padrão esperado, se neces- resposta simplista a um problema complexo. sário. Além disso, a avaliação po- de, também, possibilitar a emer- O comportamento esperado, ‘pesquisar’ ou gência de propostas de redirecio- ‘pesquisar mais’, é substituído pela máxima namento ou transformação do próprio projeto institucional. Não americana do publish or perish, que acaba é possível pensar-se a avaliação dissociada da idéia de modifica- induzindo a que se publique, independentemente ção institucional. Para isso, talvez, da qualidade desta publicação” a mais importante questão seja como criar uma situação tal na qual todos os membros da institui- Os critérios ou padrões podem, ção se engajem no processo de dentre outras distorções, gerar transformação. simplificações de problemas com- Transita-se, assim, entre dois plexos, através da utilização de in- “modelos”. De um lado, a avalia- dicadores com potencial de provo- ção interna, que teria maior capa- car mudanças, mas não necessaria- cidade de criar envolvimento, mas mente induzir à situação desejada. com o risco de reforçar “corpora- Um exemplo disso é o método di- tivismos” de diversas ordens, po- fundido nos últimos anos que toma dendo transformar-se em um ritual como indicador da pesquisa ape- formal que não tem capacidade al- nas o número de publicações. Este guma de induzir modificações; de é um caso típico de uma resposta outro, a avaliação externa que, su- simplista a um problema comple- postamente neutra, teria condições xo, fazendo com que o comporta- de apontar problemas que a ava- mento “induzido” não seja exata- liação interna nem sempre tem a mente o que se deseja. necessária isenção para fazer e, Dessa forma, o comportamento portanto, seria capaz de induzir à esperado, “pesquisar” ou “pesquisar alteração da situação constatada. mais”, é substituído pela máxima Se, por um lado, vem-se cons- americana do publish or perish, que truindo um consenso de que as ava- acaba induzindo a que se publique, liações interna e externa cumprem independentemente da qualidade papéis complementares, o que tem desta publicação e de seu potencial resultado em projetos de avaliação para provocar avanços no conheci- institucional que contemplam estas mento acerca do objeto tratado. duas vertentes, por outro lado não O exemplo acima citado é ilus- se tem um correspondente consen- trativo, pois há um reconhecimento so quanto aos critérios a serem uti- de que publicação é um indicador lizados para avaliação e sobre o uso da produção de conhecimento na de seus resultados. universidade; entretanto, não se po-

32 Revista Adusp Outubro 1999 de reduzir a avaliação da produção cimento produzido e seu impacto nosso ver, levado à difusão e assi- de conhecimento à contagem do nú- social e científico? Freqüentemen- milação de uma nova lógica de fun- mero de publicações. Mesmo a al- te, não se contempla, por exemplo, cionamento da universidade e de ternativa de número de citações do o conhecimento produzido na práti- organização do trabalho em seu in- trabalho em publicações da área, ca profissional e social dos docen- terior. Um exemplo simples refere- que procuraria verificar o impacto tes. No caso dos educadores, vale se à pouca relevância que se atribui do conhecimento produzido, pode lembrar aqueles que assumem pos- às atividades didáticas nesses pro- acarretar outros tipos de distorções. tos na gestão dos sistemas de ensi- cessos avaliativos, induzindo, se São conhecidos exemplos do núme- no, os quais exigem respostas e pro- não explicitamente, mas de fato, ao ro de citações que produções polê- postas concretas no exercício dessas reconhecimento institucional da micas de pesquisa geraram. funções, representando, no nosso desimportância dessa atividade. Vale lembrar, para A tentativa mais recen- ilustrar esta afirma- te de incorporar este as- ção, a Curva de Bell “Os processos avaliativos, no âmbito pecto à avaliação, na USP, (Hernstein, R. & da Universidade, têm levado à os questionários de avalia- Murray, C. [1994], ção do desempenho didáti- The bell curve: inteli- difusão e assimilação de uma nova co, preenchidos pelos alu- gence and class struc- lógica de funcionamento e de nos, novamente simplifica ture in American Life. a complexa questão da New York, Free organização do trabalho. Um avaliação do desempenho Press) que “mos- didático, reduzindo-o à trava” a supe- exemplo simples refere-se à pouca avaliação dos docentes por rioridade inte- relevância que se atribui às parte dos alunos. Este pro- lectual dos bran- cesso pode estimular o es- cos sobre os ne- atividades didáticas, induzindo, de tabelecimento de um “pac- gros, gerando inú- fato, ao reconhecimento institucional to” entre professores e alu- meras citações, em nos, via de regra, tendo co- sua maioria, deplo- da desimportância dessa atividade” mo “moeda” a nota. Seria rando sua a-cientifi- interessante correlacionar- cidade. Da mesma se o resultado médio da forma, poderia haver a indução a entender, um conhecimento produ- avaliação por Unidade e os índices “troca de citações”, algo não total- zido, porém não considerado pelos médios de reprovação por Unida- mente estranho nos meios acadê- mecanismos usuais de avaliação. de ou professor, para se perceber micos que adotam este tipo de pro- No que diz respeito ao uso dos possíveis comportamentos que es- cedimento avaliativo. Estas são resultados dos processos avaliati- tejam sendo induzidos por este possibilidades extremas às quais vos, no âmbito da Universidade, re- processo avaliativo. recorremos para ilustrar a fragili- gistra-se que estes têm, quando Outro aspecto que se pode dade dos critérios usualmente utili- muito, condicionado processos de mencionar é que são implementa- zados para avaliação da pesquisa recontratação de docentes, mas dos diferentes processos avaliati- na universidade. têm tido pouco efeito no sentido de vos, nem sempre complementares De qualquer forma, subsiste a uma mudança mais ampla e subs- e integrados, tal como vem ocor- questão: que outros indicadores in- tantiva da Instituição. Isto não quer rendo na USP. A avaliação de De- corporar a estes para se conseguir dizer que não produzam efeitos partamento acaba enfocando o de- uma avaliação adequada a respeito mais gerais, mas talvez não no sen- sempenho departamental como da qualidade e relevância do conhe- tido desejado. Tais processos têm, a um todo, induzindo respostas inte-

33 Outubro 1999 Revista Adusp gradas e coletivas. Entretanto, a percepção de desperdício de recur- que seguem têm como propósito avaliação docente ainda é marca- sos públicos aí investidos, quer da estimular o debate acerca de uma damente individualizada. priorização de investimento em sistemática de avaliação de curso, O que acaba por prevalecer é a outros níveis de ensino, em oposi- capaz de induzir a um processo de lógica de ação individual, favorecen- ção ao ensino superior. aperfeiçoamento institucional, in- do uma fragilização dos vínculos Nessa ótica, a temática da ava- corporando as preocupações acima institucionais, que se expressa na liação tem sido equivocadamente esboçadas. Estas devem ser enten- desvalorização da participação nas relacionada à perspectiva neolibe- didas como provocação para um instâncias decisórias e de gestão da ral, fazendo com que a negação a debate coletivo, envolvendo pro- instituição, como por exemplo as esta, automaticamente, signifique fessores e alunos, capaz de gerar comissões estatutárias e uma proposta de avalia- o conjunto de atividades ção do ensino que seja relacionadas com o ensi- “Há que se reconhecer que a incorporada ao funcio- no, tornando a participa- namento cotidiano dos avaliação tem sido sistematicamente ção uma atividade “espe- cursos. Outras dimen- cializada” daqueles que associada, por parcelas da sões da avaliação institu- porventura já não te- cional da universidade, nham que prestar contas comunidade acadêmica, a um como a avaliação da pro- de sua produção. mecanismo de operacionalização da dução de conhecimento Esta tendência acaba e de sua estrutura admi- inviabilizando, na práti- lógica de redução dos investimentos nistrativa, não serão ca, as tentativas de cons- abordadas aqui. no setor educacional. Nessa ótica, a trução e/ou fortaleci- Nesta direção, regis- mento de mecanismos temática da avaliação tem sido tram-se diversas iniciati- coletivos e democráticos vas que vêm sendo con- de gestão. Além disso, equivocadamente relacionada à duzidas por universida- indica um tratamento perspectiva neoliberal” des brasileiras, particu- não articulado entre os larmente após a institui- fins institucionais (ensi- ção do “Programa de no e pesquisa) e os meios (ativida- uma negação àquela. Entendemos Avaliação Institucional da Universi- des administrativas), dicotomizan- que o desafio seja a construção de dade Brasileira” (PAIUB). Entre- do as instâncias administrativas das modelos de avaliação universitária tanto, tais estudos, em geral, não de ensino e pesquisa, autonomizan- que possibilitem o aumento da efi- têm articulado, nas análises produ- do a gestão em relação aos fins da ciência no uso de recursos na insti- zidas, informações sobre o perfil do Universidade. tuição e a ampliação de seu papel ingressante, sua trajetória no curso Além de questionamentos e de- social, e não sua redução como e seu destino profissional. Isto re- safios que emergem da discussão querem os neoliberais. Isto significa quer um estudo de longo prazo que da avaliação propriamente dita, há desenvolver metodologias de ava- analise desde o momento em que o que se reconhecer que esta tem si- liação que incorporem ao debate o estudante busca a universidade, do sistematicamente associada, por papel social da Universidade, tanto suas motivações, interesses e perfil, parcelas da comunidade acadêmi- no que diz respeito ao público que até a inserção e trajetória no mer- ca, a um mecanismo de operacio- a ela tem acesso, quanto ao destino cado de trabalho, passando pelas nalização de uma lógica de redu- profissional de seus egressos. interações, do indivíduo e do grupo, ção dos investimentos no setor Avaliação de Curso: elementos com o curso, abrangendo, inclusive, educacional, decorrente quer da para discussão. As considerações aqueles que não o concluem.

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“O delineamento das vertentes a serem apreciadas e a análise dos resultados seriam atividades coletivas. Precisariam ser previstos mecanismos capazes de mobilizar professores e alunos, em direção à ruptura com o trabalho individualizado, articulando os que trabalham em áreas afins e os que trabalham com um mesmo grupo de alunos em um dado semestre”

O ponto de partida para atingir Alguns estudos deveriam ser os que tal objetivo é o entendimento de produzidos para subsidiar as dis- trabalham com que a qualidade do trabalho insti- cussões, como, por exemplo o flu- um mesmo gru- tucional não se resume à somató- xo e trajetória dos alunos no cur- po de alunos ria de competências individuais, so, evasão do curso, a apreciação em um dado se- mas sim das relações estabelecidas dos alunos e docentes sobre as ati- mestre, com entre os diferentes participantes vidades desenvolvidas ou o acom- participação do processo. panhamento dos egressos. A pes- de repre- No que diz respeito à avaliação quisa sobre a Trajetória Escolar sentantes dos do ensino, os focos considerados dos Alunos do Curso de Pedago- alunos. pelo PAIUB e que tomamos como gia, por nós desenvolvida, tem Esta referência são: produzido informações que po- proposta in- • condições técnicas e adminis- dem ser utilizadas para estas análi- dica uma possi- trativo-pedagógicas para o de- ses. (Cf. Oliveira, R. P. & Sousa, S. bilidade de transformação senvolvimento das atividades Z. L. Curso de Pedagogia FEUSP da cultura institucional, apontan- curriculares; - Perfil dos Ingressantes, Trajetória do, por um lado, para uma aproxi- • processos pedagógicos e organi- Acadêmica e Destino Profissional mação de professores que traba- zacionais utilizados no desen- dos Formandos. Avaliação, 3[3]:61- lham em área temática comum e, volvimento das atividades cur- 71, set. 1998). por outro, para uma proposta in- riculares; O delineamento das vertentes a terdisciplinar entre áreas. • resultados alcançados pelos alu- serem apreciadas e a análise dos Nesta direção, a avaliação do nos no decorrer do curso e in- resultados seriam atividades coleti- desempenho docente se dá tendo serção profissional após o curso vas, assumidas por todos. Para tan- como referência uma proposta Propomos que a avaliação des- to, precisariam ser previstos meca- curricular, que para se concretizar ses focos seja de responsabilidade nismos institucionais capazes de demanda a participação de todos. do corpo docente e discente, reali- mobilizar professores e alunos, em O desafio acima esboçado, em es- zada através da organização de direção à ruptura com o trabalho sência, é romper com procedi- reuniões periódicas onde seriam individualizado, visando à elabora- mentos individualizados e rituali- produzidas as análises relativas às ção do planejamento do ensino e à zados de avaliação, que não têm dimensões foco de avaliação, bem avaliação de sua execução pelo tido capacidade de comprometer como as propostas de encaminha- grupo de professores, articulando os sujeitos envolvidos com a me- mento futuro. os que trabalham em áreas afins e lhoria dos Cursos. RA

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NEODARWINISMO SOCIAL E MÚLTIPLAS TENSÕES NO CAPITALISMO EM CRISE

Armen Mamigonian Professor do Departamento de Geografia da FFLCH-USP

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final do século lucratividade do capital (que se re- cura de novas invenções, quer na XX vive um re- pete periodicamente), em decor- conquista militar das colônias e fluxo das lutas rência do esgotamento da máquina áreas de influência. sociais, carac- a vapor como invenção revolucio- Por outro lado, a contração do terizando-se, nária na indústria e logo depois mercado capitalista dentro de ca- O do ponto de nos transportes. da nação acirrou o conflito entre vista intelectual, por uma enorme Assim, o período 1876-1896 ca- empresas, provocando o desapa- ideologização de extrema-direita, racterizou-se por uma corrida téc- recimento das empresas mais fra- patrocinada pelo grande capital nico-científica acelerada em dire- cas, assim como acirrou os confli- mundial, sobretudo norte-america- ção a novas invenções que ajudas- tos entre capitalistas e trabalhado- no, momentaneamente vitorioso. sem a alavancar a lucratividade res, levando em alguns casos à im- Numa certa medida é uma repeti- (corrida que se deu sobretudo nos plantação da legislação trabalhista ção piorada de outras de cima para baixo (Ale- conjunturas econômi- manha), com a finalidade cas depressivas típicas Uma das idéias mais difundidas de garantir a paz social no do capitalismo, como front interno, para poder entre as classes dominantes na ocorreu nas últimas enfrentar mais agressiva- décadas do século XIX Europa e nos Estados Unidos nas mente o front externo, com e nas décadas imedia- palavras de ordem de na- tamente seguintes à três últimas décadas do século XIX cionalismo agressivo. Não Primeira Guerra Mun- foi o chamado darwinismo social, é preciso dizer que a crise dial. Quando se instala atingiu não só as empresas uma fase de crise eco- que misturava A. Smith, Lamarck e menores, engolidas pelas nômica prolongada, as maiores, os assalariados, Darwin e cujo ideólogo principal, tensões sociais, políti- mas também as classes mé- cas, étnicas, nacionais, Spencer, é o autor da expressão dias em processo de empo- ideológicas, etc. se brecimento. agravam, revelando o “sobrevivência do mais forte” Assim sendo, não é sur- enorme potencial des- preendente, nas circunstân- trutivo e irracional do capitalismo Estados Unidos e na Alemanha), cias acima apontadas, a expansão e assim a sociedade burguesa tor- enquanto paralelamente ocorria das idéias críticas ao sistema capi- na-se conjunturalmente mais neu- uma outra corrida em direção às talista (marxismo, anarquismo), rótica (E. Morin: Cultura de mas- conquistas coloniais e na aplicação como também das idéias que “ex- sas no século XX). de capitais ociosos fora da Euro- plicassem” a crise como fenômeno É útil relembrar que em 1873 pa, na construção de estradas-de- natural e que enaltecessem os vi- iniciou-se uma grave crise na eco- ferro, portos etc. na América do toriosos (grandes capitalistas) e nomia européia, sobretudo inglesa, Norte, América Latina, Ásia e denegrissem aqueles que eram que intuitivamente foi percebida África, sob liderança da Inglaterra agredidos ou derrotados pela dura por F. Engels, no final do século e da França sobretudo, dando ori- realidade (pobres, negros, povos XIX, como uma grande depressão gem ao que foi sendo chamado de colonizados etc.). (durou até 1896) e que os levanta- imperialismo (Hobson, Lênin e É sintomático que uma das mentos estatísticos feitos na URSS outros). Em resumo, com a con- idéias mais difundidas entre as por N. Kondratieff nos anos vinte tração do mercado capitalista, em classes dominantes na Europa e do século atual vieram confirmar. decorrência da crise, os capitais se nos Estados Unidos nas três últi- A crise resultou de uma queda da tornaram agressivos, quer na pro- mas décadas do século XIX tenha

37 Outubro 1999 Revista Adusp sido o chamado darwinismo social, confirmando a visão selvagem que É preciso relembrar que as que misturava A. Smith, Lamarck o próprio darwinismo social difun- ideologias reacionárias e suas prá- e Darwin e cujo ideólogo principal, dia sobre a sociedade que estava ticas políticas no final do século H. Spencer, foi o responsável pela se formando. Curiosamente os XIX não ficaram nos limites civili- expressão “sobrevivência do mais ideólogos burgueses de hoje usam zados, mas avançaram para “exces- forte”. Sua viagem aos Estados a expressão criada um século atrás sos”, como diriam os professores Unidos em 1882 foi um grande su- sem conhecerem suas origens, pois universitários, já que o biologismo cesso, pois ajudou seus seguidores como disse G. Lukács “o cerne acima apontado partiu para o ra- a aprofundar suas idéias: “os milio- não histórico, anti-histórico, do cismo em A. Gobineau (Ensaio so- nários são produtos da seleção na- pensamento burguês, surge em seu bre a desigualdade das raças huma- tural”, como disse um famoso pro- aspecto mais patente quando exa- nas). A crise do capitalismo naque- fessor de Yale, assim como “Deus minamos o problema do presente le período precisava encontrar bo- quis que os grandes fossem gran- como problema histórico”. des expiatórios nas perseguições des e os pequenos fossem aos estrangeiros, na ridi- pequenos”, como prega- cularização aos árabes e va um conhecido pastor O racismo e o anti-semitismo do negros, na pregação do protestante, que além de chamado “perigo amare- final do século XIX foram confortar seus ricos paro- lo” e também no anti-se- quianos quanto à legiti- aperfeiçoados pelas idéias nazistas mitismo, latente na Eu- midade de suas fortunas, ropa e que se transfor- também confortava suas e fascistas e introduzidos na mou nesta época em per- esposas, de outra manei- propaganda de massa, o cinema por seguições sanguinárias. ra naturalmente (J.K. O caso individual mais Galbraith: A era da incer- exemplo. Desde os anos 70 conhecido foi o do capi- teza, cap. II). tão Dreyfus, na França, recomeçaram as ladainhas Se os Vanderbilt, Roc- que além de tudo redun- kefeller, Carnegie e ou- reacionárias, o que nos leva a crer dou em perseguições ao tros eram incensados por seu defensor, E. Zola (H. essas fumaças ideológi- que o darwinismo social não é uma Troyat: Zola, cap. XXIII cas, por outro lado eles relíquia do passado eram na visão popular os “barões-ladrões”, que conquistavam títulos nobiliárqui- cos com o dinheiro ganho em jo- gadas escusas, como os monopó- lios impostos freqüentemente de maneira criminosa (nos dias de hoje a Microsoft repete os métodos, em circunstâncias econômi- cas parecidas). Como des- truíram seus concorrentes mais fracos sem dó e nem piedade, pas- saram a ser chamados pelos críti- cos populares de “dinossauros”,

38 Revista Adusp Outubro 1999 e seguintes), como ocorre (neoliberalismo), discur- com muitos que comba- sos políticos de puro mar- tem as injustiças atuais. Neste final de século XX o keting, incluindo bodes As novas crises capita- expiatórios (comparem- listas nas décadas seguin- capitalismo, sobretudo o norte- se os discursos dos diri- tes à Primeira Guerra americano, partiu agressivamente gentes das democracias Mundial e nas últimas dé- ocidentais de meados do cadas deste século volta- para a defesa dos seus interesses, e século com os discursos ram a agravar as tensões seu Estado nacional desempenha atuais), programação de políticas, sociais, étnicas, televisão de tipo holly- etc. O racismo e o anti- neste processo um papel woodiana, como já pro- semitismo do final do sé- punha precocemente culo XIX foram aperfei- fundamental, desmentindo na Goebbels para o cinema. çoados pelas idéias nazis- prática suas pregações ideológicas Neste final de século tas e fascistas e introduzi- XX o capitalismo, sobre- dos na propaganda de tudo o norte-americano, massa, o cinema por partiu agressivamente exemplo. Desde os anos setenta re- para a defesa dos seus interesses, e começaram as ladainhas reacioná- seu Estado nacional desempenha rias, o que nos leva a crer que o neste processo um papel funda- darwinismo social não é uma mental, desmentindo na prática relíquia do passado, como suas pregações ideológicas. mostra o pronunciamento

Neste final de século XX o capitalismo, sobretu- do o norte-americano, partiu agressivamente para a defesa dos dos” (J. K. Gal- seus interesses, e seu Estado nacio- braith, op. cit.). nal desempenha neste processo um Assim como o fascismo papel fundamental, desmentindo aperfeiçoou idéias racistas e na prática suas pregações ideológi- de N. Rockefel- anti-semitas do final do século XIX, cas. Com a eclosão da crise (cho- ler, propondo cortes nos gastos so- nós assistimos após 1973-74 a um que do petróleo), os Estados Uni- ciais americanos, em 1975: “um aperfeiçoamento das idéias e práti- dos foram pegos de surpresa e de- dos problemas deste país é que te- cas fascistas, com disfarces demo- moraram a reagir, iniciando a in- mos uma tradição judaico-cristã de cráticos e populistas, sob forma de flexão de sua política econômica sempre querer ajudar os necessita- pensamento único para a economia no governo Reagan (década de

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80). Endividando-se no mercado franceses? E os recursos obtidos Cayman. É interessante notar que interno e sobretudo externo, o go- não são reinjetados nas empresas a “independência” de Kossovo não verno realizou imenso programa francesas, TGV, Airbus e outras? foi uma iniciativa européia, mas keynesiano, sobretudo o recrudes- Enquanto isto, os Estados ex- norte-americana, provavelmente cimento da corrida armamentista, comunistas são desmontados para porque o avanço geo-político da paralelamente ao estímulo à rees- atender às necessidades de expan- Alemanha na Europa Oriental está truturação industrial e, em segui- são dos países capitalistas avança- sendo considerado excessivo. da, à adoção de uma política agres- dos, principalmente a Alemanha, Estas considerações não são siva de abertura dos mercados es- que apadrinhou junto com o Vati- novidade para ninguém minima- trangeiros aos seus produtos. cano a “independência” da Croá- mente informado, menos ainda Aliás, o que se passou a chamar cia e da Eslovênia, pacificamente, para os jornais, TV e intelectuais de “globalização”, exceção da ciran- mas militarmente a “independên- de várias ordens, mas que não fa- da financeira que avançou geome- cia” da Bósnia, onde se constatou lam destas coisas “perigosas”. São tricamente, consistiu basi- desconhecidas as deze- camente na política de nas de incêndios das submeter México, Argen- Para os intelectuais não alugados igrejas de negros no sul tina, Brasil e recentemen- dos Estados Unidos nos aos interesses norte-americanos é te a Europa Oriental à últimos anos? abertura escancarada dos visível a olho nu que as idéias de Por isto podem pare- seus mercados aos inte- cer chocantes as opi- resses imperialistas, prin- enfraquecimento do papel do niões do Lord Curzon, cipalmente americanos. Estado nacional na conjuntura que foi vice-rei inglês da Mais do que qualquer ou- Índia na passagem do tra coisa a “globalização” atual não passam de ilusão, quando século XIX para o XX, é um projeto norte-ameri- autor de livros de obser- se trata do Estado nas economias cano de submeter o mun- vações sobre o Irã, a do aos seus interesses (ler imperialistas, seja nos Estados Rússia e a Ásia Central, os escritos de R. Boyer, P. e o Extremo-Oriente, e Nogueira Batista Filho e Unidos, na Alemanha ou na França que assim se expressou A. Biondi). sobre os interesses ingle- Para os intelectuais ses: “Turquestão, Afega- que não estão alugados aos inte- neste ano o desvio de até US$ 1 bi- nistão, Transcaucásia, Pérsia, para resses norte-americanos é visível a lhão em dinheiro público e de aju- muitos essas palavras exalam um olho nu que as idéias de enfraque- da internacional, afinal o preço co- sentido longínquo extremo, a lem- cimento do papel do Estado nacio- brado pela traição nacional, como brança de inesperadas vicissitudes nal na conjuntura atual não pas- os dólares de Yeltsin desviados pa- e de um fascínio agonizante. Para sam de ilusão, quando se trata ra paraísos fiscais não tão mim, confesso, elas representam do Estado nas economias impe- distantes quanto as ilhas as peças de um tabuleiro de xa- rialistas, seja nos Estados Unidos, drez, em que se joga o jogo do do- na Alemanha, na França, etc. já mínio do mundo”. Chocantes pa- que eles continuam atuando de ra quem? Para alguns professores maneira rigorosa no esforço de das Ciências Sociais e da FEA, seus respectivos capitais nacionais. para os quais o imperialismo já Por acaso a privatização na França acabou faz tempo, desde que eles não visa privilegiar os capitais “amadureceram”. RA

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ENTRE A PAZEAGUERRA, NA CRISE DA DEMOCRACIA

A Guerra da Iugoslávia, flagrante ilegalidade cometida pela OTAN e pelos governos dos EUA e Europa contra a autodeterminação dos povos, resultou de um contexto de progressiva desvalorização da Democracia e de ataque sem precedentes ao Direito. A esquerda no poder, por sua vez, abandonou o antifascismo militante, abrindo caminho a um intervencionismo típico da Guerra Fria e ao uso anormal dos poderes da OTAN. Quem defende tais opiniões é Salvatore D’Albergo, professor de Direito Constitucional da Universidade de Roma e colaborador da revista La Contradizione. Tradução de Bernardo Ricupero e Lincoln Secco

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iante da como- bases da Organização das Nações sérvios são vistos como o símbolo ção popular, e Unidas (ONU) em nome de uma residual da resistência ao imperialis- da clara toma- paz entendida não apenas como mo personificado no próprio e ver- da de posição renúncia à guerra, mas sobretudo dadeiro hitlerismo “clintoniano”. contra a guer- como um valor indispensável para Para avaliar de modo mais com- D ra, já não vista refundar as relações sociais em ca- pleto as circunstâncias nas quais apenas como evento “anti-humani- da Estado e no mundo todo, con- lentamente se desenvolveu o pro- tário” mas como escolha criminosa tra a dominação de classe que foi testo contra a guerra desencadea- das forças capitalistas que domi- e continua sendo a fonte principal da nos Balcãs por Estados postiços nam o mundo, cabe a todos aque- de agressões, hoje escondida pelo sob a liderança do imperialismo les que não renunciaram aos prin- signo mistificador das divisões ét- americano, é preciso clarificar a cípios sobre os quais se constituiu a nicas e raciais. estreita ligação das relações entre democracia depois da derrota do A identificação acrítica da feroz política internacional e política na- nazi-fascismo a responsabilidade política do líder sérvio Milosevic cional que, desde 1914, manifesta- de apontar a OTAN e os governos com o “hitlerismo”, realizada pela se cada vez mais como sinal da dos EUA e da Europa como os propaganda oficial levada a cabo qualificação do contraste ideológi- principais responsáveis pela ilegali- na Itália pelo “Olivo” e o “Pólo”, co entre os capitalistas internacio- dade cometida em nome da ONU. ambos empenhados na defesa da nais e nacionais. Impõe-se como principal tarefa guerra, é fruto de uma inversão Por outro lado, as demais for- dessas forças a recuperação dos va- dos dados e valores históricos ças dividem-se entre a escolha de lores do antifascismo militante, cujo (N.T.: Ulivo, coalizão de partidos um contra-ataque em nome da progressivo abandono, por uma es- governistas liderada pelo PDS, ex- ideologia socialista, que pode querda preparada para “governar” PCI; Polo, oposição de direita, lide- acarretar o retorno do “bipolaris- em nome dos interesses do capital, rada pela Forza Italia). Na verdade, mo” da dissuasão atômica, e a op- e não do trabalho, revela-se um si- é o resultado de uma campanha ção de tentar uma suposta “tercei- nal emblemático para justificar de- alimentada pelo “revisionismo”, ra via” social-democrata, a qual, saforadamente um intervencionis- que recebe abrigo no mundo inte- principalmente nos aspectos inter- mo típico da guerra fria a serviço lectual, tornado cego pela crítica nacionais da luta de classes, acaba do imperialismo americano. aos partidos de massa por velhos por sobrepor-se — confundindo- Só desta forma pode-se, de fato, princípios reacionários, e que é se — com a estratégia imperialis- entender o desembocar em 1999 de também um dos responsáveis por ta, estando-se mesmo disposta a um “atlantismo” pan-europeu, que um fatal desvio da democracia, servir a seus interesses. se desenvolveu mais clara e decisi- agora entendida simplesmente co- Não é possível penetrar no la- vamente durante os anos 80 (de- mo produto progressivo da con- birinto de interpretações jurídicas pois da morte de Tito) e nos anos fluência entre grupos dirigentes. sobre as normas da ONU ou da 90 (após a queda do Muro de Ber- Deslocados do movimento ope- OTAN para estabelecer quais as lim), conduzindo à dissolução da rário, apoiados numa visão de su- alternativas que se encontram la- República Federal Iugoslava, para posta “normalização” das relações tentes na escolha entre paz e guer- chegar finalmente à crise soviética sociais e políticas, os intelectuais ra, se elas não forem contextuali- de 1989, marco da substituição do não percebem que a guerra ameri- zadas na dinâmica mais ampla do primado ideológico do antifascismo cana contra os sérvios deve-se não desenvolvimento contraditório en- pelo anticomunismo. ao “fim das ideologias”, mas à subs- tre os processos, tanto nacionais No primeiro caso, URSS, Chi- tituição do antifascismo pelo antico- como internacionais, de democra- na e EUA tinham estabelecido, so- munismo como nova fronteira da tização, lançado pelo fim do nazi- bre as cinzas do nazi-fascismo, as intolerância. Nessa operação, os fascismo, e de revisão restaurado-

42 Revista Adusp Outubro 1999 ra, que, tanto nas questões de po- tentava dar conteúdo à democracia, Recuperemos as passagens fun- lítica externa como nas de política como valor universal da transforma- damentais através das quais a afir- interna, se alimentam de leituras ção da sociedade e das instituições. mação do “direito da paz” foi vivida opostas acerca das alternativas en- Não se pode esquecer que sen- pelas forças democráticas mais con- tre democracia política e autorita- tido teve a luta pela democracia seqüentes, quando apareceu, de rismo, conflito e paz social, e, fi- quando entraram em vigor, quase forma cada vez mais clara, o con- nalmente, guerra e paz. na mesma época, o Estatuto da junto de questões relativas ao papel A crise profunda implícita na ONU e a Constituição italiana. da democracia no período atômico. guerra entre a OTAN e a Sérvia em Era necessária então uma luta “de- A instalação de mísseis e bases mili- relação ao tipo de orientação indi- fensiva”, devido à tomada de ini- tares, os acordos internacionais cada pela criação da ONU, e o pro- ciativa por Churchill (cujo conser- “simplificados”, foram respondidos gressivo esvazia- pela crítica às regras de mento das institui- A crise profunda implícita na guerra entre a política externa, o “ca- ções estabelecidas so OTAN” já aparecen- para fazer dos prin- OTAN e a Sérvia em relação ao tipo de do como justificativa cípios democráticos orientação indicada pela criação da ONU para o questionamento a base fundadora da “soberania li- da libertação e só pode ser entendida mitada” por parte emancipação dos corretamente se for analisado o do movimento pa- povos no interior cifista europeu. dos Estados e nas desenvolvimento (num processo Esta era a relações entre eles, época em só pode ser enten- desigual e ultimamente que se reto- dida corretamente mais veloz e incontrolável) mava a dis- se for analisado o cussão em desenvolvimento da geral desvalorização da termos de fi- — num processo democracia losofia da não mecânico mas história desigual, ultima- sobre o mente mais veloz e incontrolável significado — de uma geral desvalorização da vadorismo é continuado e da guerra, importância dada à democracia. “enobrecido” pelo traba- discutindo-se O que ocorre no entrelaçamento lhista Blair) de promoção então a pro- cada vez menos reconhecível entre da guerra ideológica Leste-Oeste, blemática da guerra “justa ou in- aspectos internacionais e nacionais que caracterizou, de forma varia- justa”. A demonização das armas das estratégias de governo conduzi- da, todo o período que culminou atômicas, devido ao seu caráter das pelos grupos dirigentes da Eu- com a queda do “Muro de Ber- mortífero, fazia com que a guerra ropa ocidental, na qual anterior- lim”. Período cujo sentido político não fosse mais vista como instru- mente havia progressivamente se e cultural é preciso revisitar, se se mento de potência, mas de morte afirmado o direito “à paz” como quer entender o que aconteceu nos universal. Revalorizou-se, assim, a condição para uma democracia tan- dez anos em que a guerra contra a cultura da “não violência”, e atra- to substantiva como formal, numa Sérvia foi incubada, da Guerra do vés dela o fundamento ético e jurí- dialética entre as esferas “externa” Golfo às guerras “étnicas” na dico da “desobediência de cons- e “interna” das relações civis, so- Croácia, Eslovênia e Bósnia, lem- ciência” contra a violência coletiva ciais, econômicas e políticas que bradas agora com remorso. e organizada.

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Na época, àqueles que contrapu- crática pela paz deixava de ter co- cionais, que agiam ou através do nham história e catástrofe, faltava a mo objetivo simplesmente impedir poder financeiro, ou do poder do resposta daqueles que (em nome da que a guerra fosse usada como um aparato industrial-militar, ou do po- guerra “de defesa” e mesmo da instrumento político, mas procura- der longe de ser neutro da ciência. existência de armas não nucleares) va também prevenir o extermínio Isso ocorre mesmo nos compli- não questionavam a doutrina da da civilização humana. cados limites que parecem preva- justificação da guerra, mas apenas Ora, a evocação da fase históri- lecer na Europa dos governos fi- legitimavam o equilíbrio do terror co-política marcada pelo bipolaris- loatlânticos, que são contestados, como condição extrema da manu- mo atômico não vale tanto para en- de forma variada, ingenuamente tenção da paz. por próteses de movi- E o vulnus ao direito Procurava-se nos anos 80 colocar mentos pacifistas a de paz, que a passagem limites aos possíveis abusos da usarem o referendum da fase da “sociedade das como limite ao poder nações” para a da ONU imprensa, quando, em contraposição, decisório da maioria desejava representar, a governamental. Tra- fim de derrotar definitiva- aparecia em toda a extensão a ta-se aqui daquelas mente a cultura e a capacidade persuasiva das formas de enfrenta- forma de poder típi- mento do capitalismo cos do fascismo, iden- grandes multinacionais, que desenvolvidas nos tificava-se então agiam ou através do poder anos 60-70, que pro- claramente na jetaram de maneira justaposição financeiro, ou do aparato mais incisiva aspectos (transformada da cultura crítica do agora em con- industrial-militar, movimento operário, traposição) da ou do poder longe de e depois foram impe- OTAN com a didas de prevalecer ONU. Na Itá- ser neutro da ciência no interior da es- lia, as con- querda histórica por tradições contra-tendências de inspiração principais ma- fatizar o papel social-democrata. nifestavam-se da política de contenção Elas, por sua vez, devido à inter- com a aceitação, (cara a quem nos EUA nalização do liberalismo, passaram por parte dos continuou iludido sobre a entender que a luta de classes foi movimentos sociais e políticos pela os efeitos imediatos do fim do so- superada, ao mesmo tempo que democratização, da violação auto- vietismo), mas para sublinhar o começaram a enfatizar a revolução mática da Constituição (nos arti- grau de desenvolvimento que o di- da informática como instrumento gos 11, 78, 80) por governos dis- reito de paz adquiriu. Assim, coe- de superação do trabalho, levando postos a comprometer os órgãos rentemente com o mesmo que não ao progressivo desaparecimento de soberania estatal e popular nas intencional anti-capitalismo que es- do movimento operário, que pas- decisões internacionais. tá implícito no anti-fascismo, procu- sou a assumir uma postura de de- Baseada na premissa de que a rava-se nos anos 80 colocar limites fensivismo corporativo. supremacia das “superpotências” aos possíveis abusos da imprensa, Postura explicada por uma con- detentoras da capacidade nuclear quando, em contraposição, apare- versão ideológica favorável ao pri- lesava o princípio de soberania dos cia em toda a extensão a capacida- mado da economia sobre a políti- Estados particulares, a luta demo- de persuasiva das grandes multina- ca, da eficiência tecnocrática sobre

44 Revista Adusp Outubro 1999 os valores sociais da comunidade; Posteriormente já se consolida- mocracia substantiva. Procurava- com o conseqüente ofuscamento e va uma praxe de ilegitimidade em se, então, garantir não apenas a li- desaparecimento dos valores de relação às normas da OTAN, con- berdade mas também a justiça nas autonomia social e política que sistente no caso das decisões toma- relações internas e internacionais. apareciam como herança do anti- das pelo comandante supremo na O que apenas confirma a políti- fascismo militante contra a agressi- Europa, mas realizadas no caso ca comunitária que reconstituiu vidade orgânica do capitalismo so- das diretivas do Conselho Atlânti- hierarquias sociais contrastantes bre todas as frentes, internas e ex- co com um predomínio claro da com as normas constitucionais dos ternas aos Estados. hierarquia militar dos EUA. Praxe ordenamentos mais avançados, co- Foi isso que ocorreu, mo aquele da Itália, com no campo das relações in- Os Estados Unidos, que poderiam o desenvolvimento da ternacionais dominadas ser neutralizados na ONU pelo contra-informação, a par- por uma política militar tir do fim dos anos 70. ativa em nome dos inte- direito institucional de veto que Com a conseqüência de resses da “comunidade que os governos de “cen- atlântica”, com a progres- as potências presentes no Conselho tro-esquerda”, instalados siva acentuação da supre- de Segurança têm, de forma variada macia dos EUA. Eles, que no sistema de go- poderiam ser neutraliza- invadiram abusivamente verno cada vez mais dos na ONU pelo direito a Sérvia em nome da orientado para o institucional de veto que primado do exe- as potências presentes no OTAN, generalizando cutivo (como o Conselho de Segurança semi-presi- têm, invadiram abusiva- o papel desta de dencialismo mente a Sérvia em nome substituição dos francês, e o da OTAN. governo de Organização no seio poderes da ONU chancelaria da qual governos das mais da Alema- variadas orientações políticas não nha), estão levantaram a questão da autono- que está na ori- cada vez mia dos interesses dos Estados ne- gem do fenômeno já acei- mais prontos a la representados, apesar de que, de to do mau uso do poder favorecer o maneira não formal e oficial, leva- nas circunstâncias da guer- uso anormal do va-se em conta o contraste cres- ra do Golfo e que generaliza um poder da OTAN, como ocorreu no cente entre os interesses dos Esta- papel da OTAN, que é de inteira pipocar de “casos” aparecidos na dos europeus e os dos EUA. A tal substituição/antecipação dos pode- década de 90 nos Balcãs. ponto que chegou-se a minar a res da ONU. Não poderia escapar a essas confiança popular na Otan, o que Essa atitude representa uma forças o fato de que um regime de era bem compreensível para quem mudança na atitude dos governos inspiração “comunista” estava ins- notava que já o controle sobre os europeus membros da OTAN, que talado estavelmente no poder, con- tipos de teste (nuclear ou conven- se afastam definitivamente dos va- tra a tendência manifestada na Eu- cional) dos mísseis de “defesa di- lores em nome dos quais derrotou- ropa oriental e ocidental. No caso nâmica” era responsabilidade ape- se o fascismo, e que se referiam dessa última, com a ajuda dos “ex” nas dos comandos americanos e não apenas aos aspectos da demo- comunistas, sobretudo italianos, não de toda a OTAN. cracia formal mas também à de- hoje na linha de frente da aceita-

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ção dos princípios ideológicos do indiscriminado de albaneses e sér- a contrafigura “política” do capita- capitalismo. vios “kossovares” para afirmar o lismo financeiro transnacional re- Postura que chega ao ponto de “direito ao arbítrio” de interven- corre, perpetuando o domínio da patrocinarem a completa reformu- ção de governos liderados pelos ideologia do capitalismo monopo- lação da Constituição em nome EUA, levando mesmo à substitui- lista de Estado através das varian- das “reformas institucionais”, num ção da ONU por uma OTAN con- tes “formais” analisadas pelos cul- sentido antiparlamentar e de perda solidada e ampliada, é preciso rea- tivadores das ciências jurídicas da autonomia, criando mesmo lizar uma densa análise crítica pa- particulares. apanágios para poderes incontro- ra demonstrar o quanto está en- O aprofundamento dessas va- láveis e secretos — na combinação, volvendo-se a Europa e toda a co- riantes, se feito segundo os cânones por exemplo, entre o executivo na- munidade internacional num ata- da teoria marxista do Estado, não cional e o executivo da somente seria útil para OTAN. Os governos de “centro-esquerda” estão legitimar as teorias so- Essas escolhas se ciais da exploração e traduzem numa supre- cada vez mais prontos a favorecer o uso da alienação como ba- macia sistemática do anormal do poder da OTAN, como se fundamental de poder militar dos uma crítica conse- EUA, com o pretexto ocorreu no pipocar de casos aparecidos qüente do Direito e do da defesa dos “direi- ano após ano na década de 90 Estado burgueses, mas tos humanitários”, também resultaria ne- que segundo as nor- nos Balcãs, e não poderia cessário para pôr em mas da ONU es- evidência o nexo entre tão referidos ape- escapar a eles o fato de que a invariabilidade do nas ao uso de um regime de inspiração domínio capitalista meios pacíficos. nos seus processos de A saber, con- “comunista” estava transformação anti-so- duz-se a com- instalado estavelmente no cial, e a diversidade binação de dos mecanismos forja- princípios de poder dos pela ideologia jurí- democracia dica burguesa, que institucional tem o dever de seguir de tipo estatal e que “antijurídico” universal. a consolidação e expansão do po- princípios de O que é mais grave é der da formação social capitalista. democracia ins- que novos slogans ideoló- Nunca, como nesta fase — pre- titucional de tipo internacional, gicos o justificam em nome de pre- cedida pelo bipolarismo da Déten- entreconectados em nome tanto da tensos “direitos humanitários” te, que foi válida para amadurecer paz como valor, como da paz sínte- que, na realidade, apenas suspen- toda e qualquer ideologia da su- se dos poderes dinâmicos que pre- dem os “direitos humanos” de uma premacia das superpotências, com cedem à guerra. parte cada vez maior de Estados, as conseqüentes implicações sobre Frente ao refluxo do já débil e nações e povos, para dilatar o po- “operações cirúrgicas”, antes só te- contraditório movimento pela paz der de potências imperialistas, co- midas porque de tipo nuclear, e e a prevalecente passividade dos mo os EUA e a Grã Bretanha. O depois concretizadas com as novas povos europeus, cegos por uma esclarecimento teórico e político e sofisticadas armas convencionais avassaladora campanha ideológica que se impõe deve levar em conta —, ressalta a equivalência e a con- pronta a camuflar-se no massacre as variáveis mistificadoras às quais vergência entre o poder de domí-

46 Revista Adusp Outubro 1999 nio econômico aparentemente não reita, contribuiu para despoten- tudo desnaturada nos seus pró- “formalizado” (tanto que a muitos cializar a teoria marxista do Esta- prios deveres institucionais, nas fa- marxistas escapam as decisivas in- do. E, em tal contexto, seguiram- ses em que Grã-Bretanha, EUA, cidências institucionais do poder se, em termos predominantemen- Alemanha e a Santa Sé legitima- nacional-transnacional do sistema te “descritivos” e meramente ram, via ONU, a crescente radica- de empresas) e o poder político- “conjunturais”, os eventos que, lização de todas as guerras “étni- militar das instituições estatais-su- na sua estreita concatenação, es- cas” com relativos “genocídios” praestatais. pecialmente a partir de 1989, na entre os povos que conviveram na Poder que lentamente, contra- passagem da União Soviética à Federação Iugoslava. ditoriamente e num processo pro- Rússia (e à CEI - Comunidade de Daí a escolha de operações pa- gressivo de extrema e complexa Estados Independentes) e na ra atacar a Sérvia, sob um pressu- “formalização”, por- posto nunca declarado quanto a OTAN se so- O mais grave é que novos slogans pelos interventores, brepõe à ONU, faz ideológicos justificam um ataque em desprezo por toda constatar a superposi- regra internacional, ção não só “concei- “antijurídico” universal em nome de mas explicitado na se- tual” mas também de de “revanchismo “operacional” entre o pretensos “direitos humanitários” que, ideológico” intrínseca poder da central do na realidade, apenas suspendem ao revisionismo his- sistema capitalista (nas tórico, segundo o vestes do FMI, Banco os “direitos humanos” de qual tudo que se re- Mundial, Sistema dos cada vez mais Estados, fere culturalmen- Bancos de Estado Eu- te ao comunismo ropeus), e poderes ins- nações e povos, para dilatar (e, portanto, es- titucionais centraliza- sencialmente dos no dueto Grã-Bre- o poder de potências ao marxismo) tanha-EUA, onde a imperialistas como EUA e equipara-se ao OTAN mascara a efe- nazismo, apa- tiva direção das opera- Grã Bretanha gando na ções desferidas pela consciência CIA, que num contex- popular a to caracterizado por uma sistemá- transição do “esmagamento responsabilida- tica “antijuridicidade” faltou os- organizado” da Federação de da burguesia tentar o projeto de provocar um Iugoslava, despotenciali- capitalista e das golpe de Estado na Sérvia. zaram a ONU. camadas médias naquilo que foi A dificuldade de prevenir o es- Por isso, não só a Assembléia, definido como “século breve”. clarecimento indispensável na mas o próprio Conselho de Segu- Isso para relançar o presente própria cultura democrática é rança, foram preteridos, essencial- na longínqua tradição dos poderes constituída pelo fato de que, de mente a favor do poder militar autoritários que precederam o um lado, as questões de direito norte-americano, seja por via dire- nascimento do chamado “Estado internacional assumiram um rele- ta, seja indireta, especialmente de Direito”, e na descoberta da lei vo científico tanto mais “especia- quando a OTAN foi “alargada” como forma de legitimação das lizado” quanto mais o formalismo como vasta área de influência, em desigualdades de classe, defor- jurídico, enquanto produto cultu- uma perspectiva provocadoramen- mando assim gravemente os “di- ral que aproxima esquerda e di- te substitutiva da ONU, e sobre- reitos humanos”, porque estes

47 Outubro 1999 Revista Adusp não só expunham os “direitos so- mais só dos Estados, mas também entendidos não como perten- ciais” realizáveis somente com a das “pessoas”, tornando-se cen- centes ao tradicional “direito passagem do liberalismo à demo- trais os chamados “Direitos do bélico”, mas no mais extensivo e cracia: mas, no significado atribuí- Homem” (Bill of Rights inglês, mistificador sentido funcional, nos do a eles pela ciência burguesa, “Declarações” americanas e fran- cânones sobre os quais surgiu a comportavam uma reserva de po- cesas) no interior dos Estados. ONU, pelo “direito da paz”, pela der real e, portanto, econômico- Aquilo que se vem insinuan- interferência das grandes potên- social através da forma-estado. do contra o “direito da paz” cias: para legitimar uma variedade Os fatos atestam que uma ope- depois do fim da Segunda de intervenções em situações defi- ração assim capaz de dobrar os go- Guerra Mundial — com todas nidas como de emergência, tanto vernos europeus de cen- relativas a situações tro-esquerda pode ir lon- Concebidas, já nos séculos XVI, XVII e de crise na vida in- ge — fazendo-os cúmpli- terna dos Estados, XVIII, antes em termos ces não tanto da queda do quanto para assimi- Muro de Berlim, mas so- consuetudinários e, depois, em termos lar tumultos de mas- bretudo da renúncia dos sa, prisões generali- ex-comunistas ocidentais formalizados, com o intento de zadas, detenções ar- (e italianos antes de “humanizar a guerra”, as bitrárias com situa- tudo) mediante a ções de tensão e de- deformação de um assim chamadas “leis da sordem “internas”. velho princípio de Tudo isso com a humanidade” tentavam “direito bélico” conseqüência per- que existe sob o colocar limites ao arbítrio turbadora, sobre o nome de “direi- terreno da relação to humanitá- nos conflitos armados entre os “fatos” e o rio”. internacionalmente “Direito” (seja in- Concebidas, terno ou internacio- já nos sécu- declarados nal), de auxiliar os los XVI, arbítrios de uma po- XVII e tência poderosa nas XVIII, antes as implicações vestes de portadora dos princípios em termos con- relativas ao fato de do “direito internacional humani- suetudinários e, que, no seio do anti- tário”, agora deformado até nas depois, em ter- comunismo, contra- situações de beligerância, ainda mos formalizados, com o intento põem-se as mesmas forças que que não declarada, segundo os de- de “humanizar a guerra”, as assim em nome da democracia com- sígnios incontroláveis dos podero- chamadas “leis da humanidade” bateram o que era considerado sos que em qualquer vestimenta tentavam colocar limites ao arbí- o inimigo comum ideológico, o — formal ou “informal” — deci- trio nos conflitos armados interna- nazifascismo — consiste na dem a intervenção armada exter- cionalmente declarados. Até que, operação ideológica pela qual o na com o pretexto dos “conflitos passando pelas convenções de direito humanitário, de soma armados” internos. 1899-1907 (de Haia) e de 1929- de princípios de validação do Para explicar, portanto, aquilo 1949-1977 (de Genebra), amadu- direito de guerra, transformou- que sucedeu, a propósito de Koso- receu um complexo normativo vol- se em soma de princípios para vo, deve-se não só não perder de tado à proteção internacional não validar os “conflitos armados”, vista o sentido de toda a política

48 Revista Adusp Outubro 1999 internacional que se desenrolou Assim, não houve nenhuma di- tão de Kosovo, dentro do esquema logo em 1989 e depois, mas sobre- ficuldade, nem em relação ao jus- teórico de quem (sendo adepto da tudo inscrever as vicissitudes da naturalismo (e por isso a reivindi- “democracia formal” com a obses- fase precedente na recusa sérvia cação do direito da paz como ex- são de Bobbio e dos seus seguido- de assinar o Tratado de Rambouil- pressão da justiça substancial de res) terminou por restituir todo o let no quadro daquele debate so- que não por acaso fala o artigo 11 seu peso à “tradição”, que é enten- bre a distinção entre guerra “jus- da Constituição italiana), nem ao dida como autoritarismo ou totali- ta” e guerra “injusta”, que nos de- positivismo jurídico (cujos limites tarismo reacionário, chega-se en- cênios anteriores havia sido colo- históricos as constituições “demo- fim a compreender com qual auto- cado em coerência, mais geral, crático-sociais” apontaram para matismo (fundado sobre a desco- com a questão teórica berta, também essa de concernente às rela- Descobre-se assim que o mais calejado Bobbio, de que as guer- ções entre direito, for- ras são, de toda manei- “sofista” italiano da época moderna, ça e violência, e (so- ra, julgadas do ponto de bre aquele itinerário) Norberto Bobbio, na linha da sua vista da sua eficácia, o sobre a contraposi- contrário portanto de ção/justaposição entre constante adesão à teoria qualquer idéia do que democracia formal e normativa/kelseniana do seja o “justo”), po- democracia substan- de-se legitimar, cial, que nos últimos Direito, considerou “justa” bem mais do que o cinqüenta anos havia Direito em sua a guerra contra o Iraque caracterizado o grande fase “iraquia- dualismo “ideológico” porque justo em na”, a delibera- entre marxismo e anti- da, dolorosa e marxismo, entre co- linguagem jurídica é premeditada munismo e anti-comu- sinônimo de “conforme a antijuridicida- nismo, seja pelas polí- de sobre cujos ticas “internas” dos lei”, ou “legal” fundamen- Estados, seja pela sua tos agiram política exterior. os Estados Descobre-se assim que o mais superar legiti- Unidos através calejado “sofista” italiano da épo- mando as lutas civis, po- da OTAN, co- ca moderna — o filósofo seja do líticas e sociais), em “re- mo se fazia na direito, seja da política, Norberto conhecer” — assim Bobbio es- época da Santa Aliança Bobbio — na linha da sua cons- creveu textualmente em 1991 — (para lembrar uma data recente). tante adesão à teoria normati- que no curso da Guerra do Golfo Agora, além da ONU, usam todo va/kelseniana do direito, como au- a relação entre o organismo inter- tipo de arbitrariedade típica da ti- tonomia e supremacia do jusposi- nacional (a ONU) e a condução rania e da “ditadura”, sob a roupa- tivismo relativo ao “jusnaturalis- da guerra é cada vez mais evanes- gem mais “moderna” da “socieda- mo”, considerou “justa” a guerra cente, com a conseqüência de que de-mãe” da cadeia de filiais em contra o Iraque porque, no seu o conflito presente assemelha-se a que se decompõe o capitalismo fi- modo de dizer, justo em lingua- uma guerra tradicional, salvo na nanceiro internacional. gem jurídica é sinônimo, “ao me- desproporção de força entre as Entre tais arbitrariedades, assi- nos” de Aristóteles em diante, de duas partes contendoras. nala-se, em particular, o apêndice B “conforme a lei”, ou “legal”. Projetando os termos da ques- (secreto) do Tratado de Rambouil-

49 Outubro 1999 Revista Adusp let, destinado a substituir a sobera- A inconcebível idéia da “ação deve ser interpretada segundo os nia da Sérvia/Iugoslávia pela dos não-artigo 5” pela simbologia que interesses imperialistas dos Esta- órgãos da OTAN; e, em termos evoca, assemelha-se àquela atitude dos Unidos. Ninguém recusou a mais gerais, não só o esmagamento unilateral e arrogante que sempre guerra contra a Sérvia/Iugoslávia, do chamado “direito humanitário”, se assumiu contra a existência da nem os “comunistas” e os “verdes” mas também a invenção juridica- União Soviética e do seu ordena- italianos, que se mostraram numa mente aberrante, mesmo para a mento jurídico, especialmente crise de nervos, mas sem se revol- cultura burguesa, de uma categoria quando, para fazer uma avaliação tar efetivamente contra a prepo- de “ações não-artigo 5”, mediante a jurídica segundo os ditames da tência dos Estados Unidos. qual a OTAN refuta explicitamente ciência burguesa, se classificava a Achamo-nos assim não só a observância do próprio diante do abandono artigo 5 do Tratado, le- Achamo-nos não só diante do abandono das conquistas da Se- vando a antijuridicidade gunda Guerra Mundial ao paroxismo no terreno das conquistas da 2ª Guerra Mundial e e dos efeitos da derro- do uso da lógica formal, ta do nazi-fascismo, que é o aspecto pelo dos efeitos da derrota do nazi-fascismo, mas diante também da qual a ciência jurídica mas diante também da retomada dos retomada dos princí- burguesa autoprocla- pios mais reacionários ma-se como a única princípios mais reacionários codificados na ciência ciência digna desse codificados na ciência jurídica “moderna”, a nome, porque inspi- qual Karl Schmitt le- rada na idéia de jurídica “moderna”, a qual vou à direita, com a “pureza”. notória contraposição Neste senti- Karl Schmitt levou à “amigo-inimigo”, aco- do, a OTAN direita, com a lhida até por certa cul- não hesita em tura marxista afeita a recorrer à pro- notória contraposição um pseudo-leninismo clamação de “amigo-inimigo” que, na fase mais agu- uma “nega- da dos conflitos entre ção”, como as classes, exaltava o fundamento União Soviética “decisionismo” como forma de pseudo-formal como expressão de um “governabilidade”, pondo de lado de um princí- não-Estado e de um o “normativismo”, e apresentan- pio jurídico não-direito. Essa atitude do-se hoje como base da “autono- formalizado, princípio que naque- é própria do positivismo jurídico mia do político”. le artigo 5 é igual e contrário ao antimarxista, na medida em que Universaliza-se tudo aquilo que do Tratado instituído por ela, o nega ontologicamente o seu con- na prática se contrapõe à democra- que, a rigor, comportaria, como trário, e Bobbio disse publicamen- cia: a simbiose entre os instrumen- único tipo de ação legítima reco- te que não existe uma teoria mar- tos do capitalismo internacional e nhecida para “restabelecer e man- xista do Estado, recorrendo por- as formas do poder político-institu- ter a segurança do Atlântico Nor- tanto a uma negação. cional: presidência, semi-presidên- te”, o emprego da força armada, o Tudo isso se parece com a viola- cia, chancelaria, gabinete ministe- exercício do direito de legítima de- ção daquele artigo 5 do Tratado da rial, neoparlamentarismo. Tudo le- fesa com “prévio ataque armado OTAN, ao decidir que aquela nor- gitimado naturalmente pelo refe- contra um ou mais países”. ma até então vigente formalmente rendum popular. RA

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CHILE OS EFEITOS POLÍTICOS DA DETENÇÃO DE PINOCHET

Francisco Dominguez Universidade de Middlesex, Londres

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detenção de Pi- forte insatisfação com o processo que fizeram ruidosas ameaças. nochet em Lon- de transição, que no seu entender Esta comunicação concentra-se dres por solici- mantém ainda uma dívida no tema nos efeitos políticos que a deten- tação do juiz es- dos direitos humanos” (El Mercu- ção de Pinochet em Londres, e os A panhol Baltazar rio, 28.10.98). Estas tensões ocor- antecedentes relacionados com A Garzon, para rem justamente num momento de sua possível extradição para a Es- que seja extraditado e eventual- rivalidade crescente entre estes panha, têm e estão tendo no Chi- mente julgado na Espanha, desnu- dois partidos, em razão das próxi- le. Qualquer que seja o resultado dou as limitações da mal chamada mas eleições presidenciais de de- da estadia londrinense de Pino- “transição democrática” no Chile. zembro de 1999. chet, o panorama político chileno Como dissera Hernán Monteale- A questão é se o candidato da mudou qualitativamente, pondo gre, fundador e ex-integrante do Concertação será um socialista ou em evidência a questão de qual Vicariato da Solidariedade e mili- um democrata-cristão. Os favoritos “transição democrática” querem tante democrata-cristão, referindo- para a indicação são Rafael Zaldí- os chilenos, e mesmo se há verda- se às declarações do presidente var, representando os democratas- deiramente transição no Chile. Frei, de oposição ao arresto de Pi- cristãos, ou Ricardo Lagos, repre- Dadas as amplamente reconheci- nochet em Londres e à sua extradi- sentando os socialistas (N.doT.: Ri- das limitações da “transição pacta- ção para a Espanha: da” chilena, é difícil não es- As declarações do presi- tar de acordo com Joan Gar- dente Frei sobre o caso Pino- A caracterização de cés, conselheiro político de chet comprovam que o Chile “democradura” ou Allende, que disse: “A tran- não somente não é uma de- “ditabranda”, em que pese sua sição no Chile começou em mocracia — porque a Consti- falta de rigor científico, é mais 16 de outubro de 1998”. tuição que nos rege não é de- A evidência contra Pino- mocrática — como também precisa para descrever o que chet é abrumadora, há infor- tampouco vive um Estado de existe no Chile pós-Pinochet mação exaustiva dos milha- Direito (revista Processo, res de casos de violação dos 25.10.98). direitos humanos no Chile, e Curiosamente este assassino cardo Lagos, do PS, está concorren- ademais mi general tem uma atitu- conseguiu dividir praticamente o do à Presidência do Chile, como de de desprezo brutal pelas vítimas mundo inteiro seja a seu favor, seja candidato da Concertação). Frei e a de seu regime. Há alguns anos, por contra si (o jornalista britânico An- DC não esconderam seu desagra- exemplo, quando se encontrou no drew Ransley escreveu, a propósi- do pela ambigüidade socialista no Chile uma fossa comum com mais to, que não sabia determinar quem caso Pinochet. De fato a DC bus- de cem cadáveres, executados pelos era mais desprezível: se o ex-gene- cou consolidar seu repúdio ao ar- militares, Pinochet comentou: “- ral ou seus amigos e apologistas na resto de Pinochet e ao seu possível Quem quer que os enterrou serviu Grã-Bretanha: The Observer, julgamento na Espanha, concitan- bem à Pátria, economizando di- 25.10.98). A atitude militante de do o apoio do restante da direita: a nheiro em cravos” (The Sunday Te- defesa incondicional de Pinochet União Democrática Independente legraph, 25.10.98). adotada pelo presidente Frei e pe- (UDI), o partido pinochetista par Para quem agora alega não sa- la maioria da Democracia Cristã excellence, e a Renovação Nacio- ber nada de nada das violações de (DC) contrasta com a mais ambí- nal (RN), que representa a direita direitos humanos sob seu regime, gua adotada pelos socialistas da mais tradicional. A estes últimos disse num momento de honestida- Concertación, coalizão de governo. uniu-se o setor empresarial e, para de: “No Chile não se move nem Os socialistas expressaram “sua completar o quadro, os militares, uma só folha sem que eu o saiba”.

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Manuel Contreras, sinistro chefe da basicamente “ao largo processo de de 1980 (op. cit., p. 146). Porém, a DINA, disse sobre isso, de dentro preparação, durante a ditadura, de institucionalidade política emergen- da sua cela: uma saída da mesma ditadura des- te era somente um meio para obter Eu sempre levei a cabo as ordens tinada a permitir a continuidade de objetivos de muito maior alcance: que o presidente da República me suas estruturas básicas sob outras instituir um sistema político que deu. Qualquer missão tinha que vir, roupagens políticas, as vestimentas permitisse a continuidade da lide- como sempre aconteceu, do presi- democráticas” (op. cit., p. 145). Ou rança neoliberal ou, caso fracassas- dente da República (The Observer, seja, o Estado sofreu importantes se essa opção, assegurar que qual- 13.12.98). modificações porém manteve inal- quer governo garantisse a reprodu- Uma das melhores análises das terado um aspecto substancial: o tibilidade, a continuidade do mo- limitações da “transição” no Chile é regime de poder muda — de uma delo sócio-econômico criado du- provavelmente a obra de Tomás ditadura a uma certa forma de de- rante a ditadura... (op. cit., p. 147) Moulián Chile Atual. Anatomia de mocracia, substituindo inclusive os A julgar pelo apego dos gover- um Mito (Lom Arcis, 1997), que políticos nos postos de comando do nos da Concertação (incluída a disseca o chamado “modelo chile- Estado — mas o bloco dominante maioria dos socialistas) ao modelo no”. Moulián considera “ao Chile não muda (op. cit., p. 145). neoliberal e a suas políticas, não atual como uma produção do Chile A rigor, não há mudança essen- cabe dúvida de que a respeito des- Ditatorial” (op. cit., p.15). Não se cial nos postos de comando do Es- se objetivo central o êxito foi trata aqui de realizar nem sequer tado, mas sim nos de Governo (de completo. uma síntese de tão formidável obra toda forma o ponto é válido). As- Tal institucionalidade não pode- — nem o espaço, nem o caráter pectos centrais na evolução do pro- ria ser criada sem a manutenção dessa comunicação o permitem — cesso transformista são a Constitui- de continuísmos decisivos, conti- porém é pertinente resumir a tese ção de 1980 e, em 1988, a “absorção nuísmos que impedem caracterizar central de seu ensaio, que se orga- da oposição no jogo de alternativas o Chile como uma democracia. Is- niza ao redor da idéia do que Mou- definidas pelo próprio regime e le- to não significa não reconhecer a lián chama “transformismo” ou, in- galizadas” na mesma Constituição derrota eleitoral da ditadura em clusive, mais 1988-89, nem acertadamen- tampouco mi- te, “gatopar- nimizar os dismo” (“uma progressos alucinante democráticos operação de alcançados perpetuação no Chile. Po- que se realizou rém, a conti- através da mu- nuidade do dança do Esta- modelo neo- do”, op. cit., p. liberal re- 145, o segundo quer, por termo fazendo necessidade alusão à magní- imperiosa, a fica novela de manuten- Lampedusa, Il ção de ins- Gattopardo). tituições- Transformis- chave, tais mo refere-se como o

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Banco Central, fora da órbita elei- cretas de Pinochet”, Punto Final, 8.9.1978) outorga um aporte ex- toral, assim como também deixar 28.8.98). Dado o compromisso da traordinário de US$ 12 milhões ao fora do escrutínio democrático-po- alta hierarquia militar com o mo- Conselho Superior de Defesa Na- pular o essencial da política econô- delo e sua institucionalidade, é im- cional para entregar US$ 5 mi- mica. Neste sentido, o sistema pós- provável que, com tal controle fér- lhões ao Exército, US$ 3 milhões à ditadura foi apelidado de “neolibe- reo sobre as promoções, surja a Armada e US$ 4 milhões à Força ralismo com face humana”. Ou se- curto prazo uma nova geração de Aérea. Outro dos decretos-leis se- ja, o bem sucedido transformismo oficiais com mentalidade mais cretos (nº 3527, de 12.12.1980) só humanizou um sistema político “profissional” e menos politizada. destina US$ 50 milhões ao Minis- que tem muito de autoritário, bu- As Forças Armadas fizeram tério da Defesa Nacional “com o rocrático e até mesmo ditatorial. A uso liberal dos recursos fiscais da fim de cobrir a diferença gerada caracterização de “democradura” nação em seu próprio benefício pela aquisição de mate- ou “ditabranda”, em que rial bélico [sem pese sua falta de rigor maior detalhe]”. Fi- científico, é sem dúvida nalmente, e só para mais precisa para descre- As Forças Armadas fizeram uso exemplificar, outro destes ver o que existe no Chile decretos-leis (nº 18090, de pós-Pinochet. dos recursos fiscais da nação em 30.12.81) designa 100 mi- Em primeiro lugar, o seu próprio benefício em níveis lhões de dólares ao Minis- que se costuma chamar “o tério da Defesa Nacional pinochetismo feito lei”, e sem precedentes, recorrendo a (Totoro, op. cit.). que se refere a “novas vin- decretos e leis secretas para A maior dificuldade culações hierárquicas no com tais transferências de interior dos distintos ra- movimentar milhões de dólares fortunas fiscais aos milita- mos das Forças Armadas” res é não somente seu ca- que converteu a “lealdade ráter ilegítimo, mas tam- ao comandante-em-chefe” bém sua irregularidade. em elemento central na carreira em níveis sem precedentes. Du- Por isso, os militares emitiram um dos oficiais de alta patente. Para is- rante o governo de Patricio Alwyn, conjunto de leis secretas pelas so estabeleceu-se uma Junta de Se- a Comissão de Direitos Humanos quais obtinham 10% do “ingresso leção Extraordinária de Oficiais da Câmara dos Deputados solici- total em moeda estrangeira pela cuja intervenção é equivalente a tou e obteve um informe da Con- exportação da produção de co- um comissariado político cuja con- troladoria da República a respeito bre”. O decreto-lei nº 239 vocatória (seus vereditos são ina- das leis secretas do regime de Pi- (31.12.1973) especificava que se a peláveis) está em mãos do coman- nochet. Segundo a relação da cifra resultasse menor do que US$ dante-em-chefe. Tudo isso no con- Controladoria, entre setembro de 90 milhões, “a diferença deveria texto de uma modificação substan- 1973 e os últimos dias da ditadura ser completada pelo Fisco”. A lei cial dos sistemas para as qualifica- militar foram formalizados 132 de- nº 18.445 (14.10.1985) aumentou ções, designações e promoções, de- cretos-leis e leis secretas. Uma essa cifra para US$ 180 milhões, e, senhada para aumentar a autono- parte importante delas “refere-se pouco antes de abandonar o con- mia das instituições castrenses das a forte movimentação de verbas trole formal do governo, Augusto autoridades civis, para determinar no interior dos diferentes ramos Pinochet promulgou outra lei se- o desenvolvimento das carreiras da defesa, sem que se explique sua creta aumentando o piso nova- militares dos oficiais de toda pa- finalidade ou destino”. Um só des- mente para US$ 210 milhões. tente (Dauno Totoro, “Leyes se- tes decretos-leis (nº 2330, de Ademais, o decreto-lei nº 470

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(22.5.1974) especificava que garantiram com isso um altíssimo tinha uma limitação fundamental: As entregas de fundos [...] deve- nível de representação e influência nomear as vítimas, porém não os rão fazer-se de forma reservada; se- política em órgãos parlamentares responsáveis. A ironia era que o rão mantidas em contas secretas, chaves, a partir dos quais podem Informe Rettig seria a base para contabilizadas de forma reservada e defender e promover a “obra mili- levar a juízo os responsáveis pelas sua aplicação [...] dar-se-á mediante tar”. O sistema binominal também violações dos direitos humanos du- decretos supremos reservados, isentos assegura uma sobre-representação rante a ditadura. Ademais, Pino- de exposição de motivos e de referen- exorbitante aos partidos de direita. chet já havia decretado uma anistia dação. (Totoro, op. cit.) Foram outorgadas, além disso, pelos crimes cometidos antes de Ou seja, os militares como ins- posições constitucionais chaves às 1978 (decreto-lei 2.191, de 1978, tituição forçaram sua integração Forças Armadas no aparato do Es- que impede processos contra pes- ao sistema econômico como bene- tado, como no Conselho de Segu- soas implicadas em de- ficiários da rubrica de ex- terminados delitos co- portações que concede os metidos entre 11.9.73 maiores aportes de verba e 10.3.78: Punto Final, à nação. Para a Democracia Cristã (DC), 10.9.98), a qual foi ratifi- Talvez um dos mecanis- cada pela Corte Suprema mos mais efetivos, até ago- o conjunto da direita, a classe durante o mandato de Pa- ra, do continuísmo pino- empresarial chilena e as Forças tricio Alwyn. O Informe chetista sob o regime de Rettig racionalizou legal- transição seja a cláusula Armadas, trata-se de impedir que mente o desejo político do da Constituição de 1980 a “transição” progrida e coloque governo: apresentar um que permite a nomeação informe político imacula- não eletiva de nove sena- em risco o modelo do em seus detalhes sobre dores, ou “designados”. Is- os crimes cometidos du- to assegura que exista no rante a ditadura como um Congresso da nação uma mecanismo catártico so- maioria de fato cuja função é blo- rança Nacional. A Constituição de cial, ao mesmo tempo que fugia da quear qualquer iniciativa orientada 1980 lhes dá a condição de fiado- questão central de justiça para as a desmantelar as continuidades res últimos da institucionalidade vítimas e castigo para os culpados. que mantêm a impunidade e o vigente, “portanto, de determinar Assim, a institucionalidade her- neoliberalismo. quando a existência de conflitos ou dada da ditadura é na realidade Isto significa concretamente, en- de uma crise fariam exigível sua uma camisa de força que não só tre outras coisas, que “três milhões participação como protetoras da impede qualquer progresso na de- e meio de cidadãos elejam em San- 'essência' do sistema” (Moulián, mocratização do país, como tam- tiago quatro senadores, o mesmo op. cit., p. 50). Em outras palavras, bém perpetua (e promove) “legiti- número que designa o Conselho de as Forças Armadas gozam do direi- mamente” estruturas essenciais do Segurança Nacional integrado por to constitucional de determinar sistema pinochetista. oito membros” (artigo de Agustin quando é necessário intervir com A detenção de Pinochet em Squella, El Mercurio, 5.11.98). Este outro pronunciamiento, como o fi- Londres evidenciou gigantescas se combina com o sistema eleitoral zeram numa aziaga manhã de se- fissuras no interior da Concerta- binominal, cuja função é recompen- tembro de 1973. ção: a maioria dos dirigentes da sar “de um modo exorbitante” as A função da Comissão Rettig, DC se opõe com pertinácia a qual- segundas minorias (Moulián, op. que investigou as violações dos di- quer mudança política na relação cit., p. 50). Quer dizer, os militares reitos humanos durante a ditadura, entre civis e militares estabelecida

55 Outubro 1999 Revista Adusp desde a presidência de Patricio dada do pinochetismo, seja com do que para defender Pinochet se- Alwyn em 1989, enquanto os socia- sua reforma ou abolição. riam reiterados ante os lordes os listas, em geral, apoiaram a deten- Alega-se com vigor inusitado princípios da imunidade soberana, ção, a extradição e seu julgamento que a detenção de Pinochet em territorialidade da lei e soberania na Espanha. Altas personalidades Londres, e, pior, sua possível ex- de jurisdição, que excluem tercei- da DC criticaram duramente a ati- tradição para a Espanha e subse- ras nações de processar atos que tude socialista. O senador Rafael qüente julgamento, poriam em pe- tenham sido cometidos no Chile Moreno, secretário nacional da rigo a “transição pactada” e seus (La Tercera, dossiê Pinochet, DC, por exemplo, disse: “Quando consensos. Justifica-se esta posição http://www.tercera.cl/casos/pino- se tem a tarefa de conduzir o país, com o argumento de que a “oposi- chet/pinochet588.html). se tem que estar en las duras y en ção ao governo militar devia acei- E se persistisse alguma dúvida las maduras” (El Mercurio, tar, por razões de realismo políti- do compromisso do governo de de- 4.11.98). O mais significativo desta co, a Constituição feita aprovar pe- fender Pinochet, o vice-presidente fissura política na Concertação é lo regime em 1980 [...] o sistema da República, Raul Troncoso, logo que a DC e o governo fo- após a declaração de ram buscar apoio para a Jack Straw declarou que defesa de Pinochet no O Partido Socialista, o governo “utilizará, tal resto da direita, incluídos como fez desde o início, os militares. diferentemente dos seus ministros, todos os meios a seu al- Para demonstrar seu interpôs ação judicial contra cance para reverter esta apoio ao general o go- situação” e obter o re- verno retirou seu embai- Pinochet, a quem acusa de ser gresso do “senador Pino- xador em Londres, sus- responsável pela morte de quatro chet” para o qual “busca- pendeu todas as visitas mos para estas gestões o oficiais chilenas ao Rei- de seus dirigentes, em 1973 respaldo de todas as for- no Unido e, obviamente ças políticas, e o compro- sob a pressão dos milita- misso de toda a socieda- res, cancelou compras de armas eleitoral, o Tribunal Constitucio- de” (La Tercera, dossiê Pinochet). ao Reino Unido no valor de 100 nal, o Conselho de Segurança Na- Quer dizer, a DC, a direita do em- milhões de libras esterlinas (The cional, as faculdades do Presidente presariado e as Forças Armadas, Independent, 10.12.98; The Finan- em relação às Forças Armadas, a utilizando o argumento da violação cial Times, 14.12.98; Sunday Busi- composição do Senado e outras” da soberania nacional, embarca- ness, 13.12.98). (Agüero, professor de Ciência Po- ram no intento de criar um novo O que está verdadeiramente lítica da Universidade de Miami, consenso político para defender a em jogo, que explica todas essas manifestou essa opinião em El “democradura” chilena. manobras, é o caráter da Mercurio, 20.11.98). Os socialistas da Concertação, à “transição”. Para a DC, o conjunto Esta parece ser a única defesa diferença de seus coligados cris- da direita, a classe empresarial possível de Augusto Pinochet, pois tãos, adotaram uma atitude mais chilena e as Forças Armadas, tra- até agora ninguém se atreveu a ambígua, que não satisfez nem a ta-se de impedir que a “transição” sustentar sua inocência. O gover- seus partidários nem aos detrato- progrida, seja resolvendo as ques- no, arrastando a um recalcitrante res da extradição e julgamento de tões pendentes relacionadas com Partido Socialista, chegou até a so- Pinochet. A posição dos ministros as violações dos direitos humanos licitar ser parte “interveniente” na socialistas foi de um apoio incondi- sob a ditadura, ou com a democra- nova fase do processo de Pinochet cional à tese de Frei de que a de- tização da institucionalidade her- na Câmara dos Lordes, anuncian- tenção de Pinochet em Londres

56 Revista Adusp Outubro 1999 viola a soberania nacional e daí sua litantes socialistas contraditaram ram os algozes (Punto Final, 4- oposição ao julgamento do ex-dita- publicamente a posição oficialista 17.12.98). dor nos tribunais espanhóis (ou de indo a Londres declarar ante os Finalmente, em outubro de qualquer outro país que não seja o lordes, para obter a extradição de 1998, os dirigentes socialistas enca- Chile), porém ao mesmo tempo in- Pinochet. Foram os deputados so- beçados por Escalona se reuniram sistem que tal posição não deve cialistas Isabel Allende, filha de com dois dirigentes comunistas, por nenhum motivo confundir-se Salvador Allende, e Juan Pablo em uma reunião bastante divulga- com a defesa política de Pinochet. Letelier, filho de Orlando Lete- da, na qual se discutiu especifica- Ou seja, o PS está de acordo lier, assassinado em Washington mente o caso Pinochet. A reunião com as acusações de genocídio, pela DINA muito provavelmente chegou à conclusão “de que o ex- tortura e terrorismo que Pinochet por ordens diretas de Augusto Pi- comandante em chefe do Exército enfrenta nos tribunais da Espanha. nochet. Eles agradeceram ao mun- deve ser julgado por tribunais es- A posição incrivelmente militante do “o repúdio ao ditador e a de- panhóis por violação dos direitos adotada por Frei e seus correligio- núncia dos crimes contra a huma- humanos” (El Mercurio, 23.10.98). nários democratas-cristãos levou o nidade cometidos no Chile, que a A pressão no interior do PS cres- governo, até, a negar informações- direita esconde embaixo do tape- ceu a um tal nível que o governo chave aos ministros e dirigentes so- te” (Punto Final, 4-17.12.98). A is- decidiu abandonar o argumento da cialistas a respeito das estratégias to junta-se a posição do senador imunidade de Pinochet como chefe que o governo pretende seguir (El socialista Ricardo Nuñez, atual de Estado no momento em que se Mercurio, 4.1.99. É de supor-se, presidente do PS, que declarou: cometeram as atrocidades (El Mer- apesar disso, que a alta hierarquia É uma vergonha que no exterior curio, 3.1.99). A coroação desta militar teve acesso a esses docu- preocupem-se mais do que nós e que atitude socialista foi a proposição mentos.) Porém é no próprio Par- tentem fazer uma justiça que no de Lagos de criar um pacto nacio- tido Socialista que a Concertação Chile diluiu-se em processos inter- nal para julgar Pinochet no Chile enfrenta as maiores dificuldades. mináveis, ou por efeitos da anistia (El País, 30.11.98), o que obvia- No dia 28 de agosto de 1998, que foi um autoperdão que se con- mente aumentou as tensões no in- diferentemente dos ministros so- cede- terior da Concertação. cialistas, o Partido Socialista, por As diferenças quanto ao caso meio de seu então presidente, Pinochet desde então aprofunda- Camilo Escalona, interpôs ram-se, tanto no interior da uma ação judicial (de um Concertação quanto entre total de 12 neste mo- o governo e o restante da mento nos tribunais do esquerda. Uma manifesta- país) contra Pino- ção planejada em Santiago chet, a quem, junto de apoio à causa dos a outro general, direitos huma- acusa de ser res- nos, que teria ponsável pelas lugar em no- mortes de qua- vembro do ano tro de seus diri- passado, foi gentes, ocorridas no cancelada por norte do país em Frei. O primei- 1973 (La Tercera, ro ataque veio dossiê Pinochet). da DC, que soli- Ademais, dois mi- citou ao restante

57 Outubro 1999 Revista Adusp dos participantes o cancelamento porém no que respeita à RN sua ala direita do partido, tem poucas da manifestação para impedir o base eleitoral é não somente tradi- possibilidades de triunfar caso se aumento da polarização política no cional (burguesia industrial, co- apresente sozinho, pois as últimas país. A reação dos socialistas, co- mercial e agrária e pequena bur- pesquisas indicam que obteria munistas, humanistas e verdes foi guesia acomodada), como também apenas uns 17%, enquanto Lagos, de realizar a manifestação de todas foi-se reduzindo firmemente. O af- sozinho, obteria 30% dos votos as maneiras. Até a Juventude DC faire Pinochet uniu RN e UDI, que (La Tercera, 5.1.99). Assim, a úni- discrepou publicamente de seu declararam publicamente sua ca possibilidade que a direita tem partido e declarou seu apoio in- aliança eleitoral em torno de Julio para retomar o governo seria fazer condicional à manifestação (El Si- Lavin, candidato da UDI, demons- uma aliança com a DC, reorgani- glo, 20-26.11.98). Logo a DC tra- trando com isto o declínio da direi- zando as bases políticas do gover- tou de vetar a participação dos co- ta tradicional e o ascenso do ele- no em uma coalizão de centro-di- munistas, o que levou o PC a de- mento pinochetista. reita. Na DC, Zaldivar, con- clarar que assistiria a manifestação O grande problema para a di- juntamente com Enrique com ou sem convite, uma Kraus, dirige e repre- vez que a causa dos direitos senta uma corrente que humanos é de todos. Final- O objetivo estratégico da direita desde 1997 vem argu- mente, o governo, instigado mentando que o partido essencialmente por seu ele- chilena, mais do que a defesa de adote esta linha. Conside- mento DC, decidiu retirar a Pinochet, é recuperar o governo. ra-se Frei parte da ala di- permissão e a manifestação reita da DC. não pode realizar-se. Por isso trata de exacerbar as Em uma palavra, as A direita chilena, como diferenças entre socialistas e alianças políticas que Frei era de esperar-se, lançou- buscou para defender Pi- se à defesa incondicional democratas-cristãos nochet não são mais do de Pinochet tratando, si- que a evolução lógica de multaneamente, de exacer- um processo político que bar as diferenças entre socialistas reita chilena é que, independente- já estava em incubação. É interes- e democratas-cristãos. O objetivo mente da capitalização exitosa que sante notar que a DC novamente estratégico da direita, mais do que faça no Chile da detenção de Pi- volta a cumprir o papel político de a defesa de Pinochet, é recuperar nochet, isso não é de nenhuma legitimar e viabilizar os objetivos o governo. El Mercurio expressou- maneira suficiente para assegurar- da direita chilena. Já cumpriu esse o num editorial, com clareza: lhe o triunfo eleitoral. Seu escolhi- papel em 1970-73, quando se aliou Se esta unidade da direita (UDI, do Lavin tem cerca de 15% das com a direita golpista na Confede- RN) pode ser-lhe útil a seus projetos, preferências eleitorais. A divisão ração Democrática (CODE), coali- é assunto que está por ver-se... [pode da Concertação melhoraria suas zão que com o concurso ativo da ser] que a unidade alcançada favo- possibilidades eleitorais, porém o DC propiciou o sangrento golpe de reça uma ação política mais con- grande risco seria que o candidato Estado que derrubou o governo de tundente no futuro. ( 21.10.98) socialista, Ricardo Lagos, conver- Salvador Allende e resultou na di- A maior dificuldade que a direi- ta-se ou no presidente da Repúbli- tadura de Pinochet. ta enfrenta para alcançar este an- ca já no primeiro turno, algo im- Neste sentido, é de notar a fle- siado objetivo é que, diferente- provável, ou no vitorioso do se- xibilidade de Genaro Arriagada, mente da DC, não conseguiu obter gundo turno. um dos intelectuais de maior esta- uma base social popular. Sem dú- Por outro lado, o candidato da tura da DC — dirigente da campa- vida a UDI avançou neste sentido, DC, Rafael Zaldivar, membro da nha pelo “Não” que derrotou Pi-

58 Revista Adusp Outubro 1999 nochet no plebiscito de 1988 e au- niram-se com o comandante em qual o comandante em chefe das tor de um livro formidável, The chefe, Ricardo Izurieta, reunião Forças Armadas, general Izurieta, Politics of Power: Pinochet (Unwin em que o tema único foi a deten- “propôs um conjunto de medidas and Hyman, Boston, 1988) — e ção de Pinochet (Processo, destinadas a endurecer a posição que, como embaixador do Chile 25.10.98). Os militares, por meio do governo” em defesa de Pino- nos Estados Unidos, escreveu arti- do general da reserva Eugenio Vi- chet (Punto Final, 11.98, p. 4). Es- go defendendo a tese governista dela, acusaram aos socialistas, em te é o símbolo da impunidade e da territorialidade, porém usando carta pública, de que sob a pre- institucionalidade de que gozam como argumento central que não tensão de julgar Pinochet o que as Forças Armadas e a identifica- há solução judicial para os proble- realmente buscam é “destruir to- ção destas com Pinochet é quase mas da transição no Chile, de tal da a obra das Forças Armadas e total. Neste contexto há que men- maneira que estamos obrigados a Carabineiros” (La Tercera, dossiê cionar a ata firmada pelo Corpo “aceitar a justiça, porém limitá-la Pinochet). Como assinalou um de Generais na plenária ao possível” (El Mercurio, diário espanhol: que designou Pinochet 28.10.98). Em uma palavra, comandante em Arriagada está a favor da chefe benemérito, so- impunidade para Pinochet, Pinochet é o símbolo da lenizada na cerimônia do que é a verdadeira posição 7 de março [de 1998] em da grande maioria da DC. impunidade e que a instituição compro- Da mesma maneira, Pa- institucionalidade de que meteu sua lealdade e apoio tricio Alwyn também repe- ao que fora comandante tiu os argumentos de Arria- gozam as Forças Armadas em chefe por vinte e cinco gada. Talvez mais significa- e a identificação destas com o anos e ditador durante de- tivamente, Raúl Rettig, in- zessete. (Punto Final, tegrante central da Comis- ex-ditador é quase total 11.98, p. 4) são Verdade e Reconcilia- Ademais, o Exército ção (CVR), expressou sua respaldou Pinochet em de- oposição pública aos argumentos A detenção do ex-ditador reve- claração pública, assinalando que de Garzón — que baseia sua acu- lou que a suposta divisão entre pi- a situação que o afeta é inaceitá- sação contra o ex-general em gran- nochetistas e institucionalistas não vel “e que recorrerá a todos os de medida no Informe da CVR corresponde à realidade. Com o ge- meios jurídicos, diplomáticos e de que Rettig presidiu — para extra- neral Izurieta à cabeça, os militares governo para superar o fato” (El ditar Pinochet a fim de julgá-lo chilenos professam uma lealdade Mercurio, 18.10.98). Se ainda res- num tribunal espanhol, dizendo: inquebrantável ao antigo chefe... tasse alguma dúvida quanto ao ní- “Juridicamente, os delitos cometi- (El País, 30.11.98). vel de autonomia política das dos em um território são julgados Isto é, os militares tanto como Forças Armadas, que atuam como ali” (El Mercurio, 27.10.98). os partidos de direita são uma for- um quase-partido político, unila- No processo de reorganização ça política deliberativa, ativa e in- teralmente cancelaram viagens à política da direita é necessário in- tegral da defesa do continuísmo. Grã-Bretanha e à Espanha em tegrar na análise a participação Como se fosse necessária uma protesto contra a detenção de Pi- política ativa do elemento militar prova dessa realidade, em novem- nochet em Londres, além de obri- como um de seus componentes. bro do ano passado os comandan- gar o governo a anular ordens de Assim, por exemplo, a 21 de outu- tes em chefe impuseram ao presi- compra de navios de guerra e ou- bro de 1998, 1 200 oficiais (incluí- dente Frei uma reunião do Conse- tros armamentos na Inglaterra e dos 23 generais) e suboficiais reu- lho Nacional de Segurança, na Espanha.

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Na declaração que informava blica, Arturo Alwyn, que baseou a classe empresarial não lhe fará a da decisão, e em não muito velada defesa de Pinochet na imunidade vida fácil [a Lagos]” (The Financial referência aos socialistas, conde- diplomática que este haveria tido Times, 11.12.98). Ligar as duas nava-se a “certos” atores da socie- ao ingressar na Inglaterra (El Mer- questões indica que o empresaria- dade, que sustentam uma linha à curio, 21.10.98). do chileno também vê a recupera- parte da do governo, e reiterava- Naturalmente, a institucionali- ção do governo para a direita co- se o apoio “institucional” a Pino- dade legada pela ditadura sai à de- mo uma das questões centrais da chet (El Mercurio, 21.10.98). Sob o fesa de seu arquiteto principal. O política chilena. regime político que antecedeu a maior temor é de que o ajuizamen- Uma das vozes discordantes ditadura pinochetista, tal nível de to do ex-ditador desencadeie uma neste coro sicofântico foi a do arce- autonomia e atuação política in- dinâmica que leve a uma reestrutu- bispo de Santiago, Francisco Javier dependente por parte das Forças ração substancial do aparato do Errázuriz, que em nome do episco- Armadas era simplesmente im- Estado, incluído o Poder Judicial, pado chileno expressou-se assim: pensável. Isso revela até onde o que debilitaria a manutenção do Se em nosso país se houvesse co- progrediu a chamada transição modelo neoliberal. laborado realmente com a Justiça e democrática. Como era de esperar-se, o em- se houvessem podido julgar determi- Adicionalmente, como parte da presariado também saiu à defesa nados casos (de violação de direitos ofensiva da direita chilena, é ne- de Pinochet. Apesar disso, seu ob- humanos) de cidadãos chilenos, e cessário integrar os dirigentes das jetivo, mais que a defesa do ex-di- inclusive de outros países, e se se ti- instituições-chave do sistema polí- tador, é a segurança de que não vesse castigado o que era contrário à tico herdado de Pinochet. Assim, haverá mudanças na institucionali- Justiça, nunca se haveria produzido por exemplo, o presidente da Cor- dade existente, que lhe tem sido um fato como o que atualmente es- te Suprema, Roberto D'Ávila, benéfica. Pablo Zalaquet, presi- tamos vivendo. uniu-se ao coro dos que saíram a dente da Geração Empresarial, A classe alta chilena, por seu defender a “soberania nacional” e uma organização de empresários turno, reagiu com rapidez e fúria Pinochet, assinalando que “só os chilenos, disse que “se Pinochet esperadas, quando anunciou com tribunais nacionais podem julgar não regressa e Lagos é eleito [nas delitos cometidos no Chile”. O próximas eleições] a mesmo fez o Controlador Geral da Repú-

60 Revista Adusp Outubro 1999 estardalhaço que boicota- A DC, por meio de seu ria os produtos ingleses, presidente, Enrique recusando daí para a fren- Os golpistas chilenos procuram Kraus, emitiu uma decla- te beber o uísque dessa na- reorganizar-se por meio de ração-resposta à carta de ção. Apesar disso, as medi- Pinochet de 22 de dezem- das do governo chileno em recomposição com a DC: bro de 1998. Em essência, represália ao anúncio feito empresários e militares a DC pede perdão pelos por Jack Straw não tive- erros de conduta e omis- ram nem terão maiores propuseram a Eduardo Frei que são que pode haver come- conseqüências, indicando tido e que pudessem haver que a defesa da soberania emende a Constituição para provocado “efeitos não nacional não é seu proble- reeleger-se desejados em alguns chile- ma crucial. nos”. O documento chama A posição de conjunto a realização de um plebis- da direita não governamental de democracia que se conseguiu cito para configurar um novo acor- (UDI, RN, empresários e milita- no Chile pós-ditadura, se se chegar do nacional que permita fazer justi- res) foi de uma aberta chantagem ao julgamento de Pinochet. ça e verdade em matéria de direi- política de que a extradição de Pi- Em outras palavras, a ameaça é tos humanos (La Tercera, dossiê Pi- nochet põe em perigo a transição de realizar um golpe de Estado. nochet). No documento em prepa- democrática (The Financial Times Não existe, provavelmente, nenhu- ração pela Concertação, endossa-se de 17.11.98, por exemplo, revela ma condição para isso no momen- o chamado da DC a impulsionar ameaças feitas por um oficial da to, porém a burguesia chilena de- um novo acordo nacional. A direi- Marinha durante uma recepção di- monstrou o que é capaz de fazer ta, assim como a DC, está empe- plomática). Quer dizer, a direita quando seus interesses estão em nhada em impedir o triunfo de La- estaria disposta a renegar sua par- perigo. De todo modo, o governo gos e faz tudo que esteja ao alcance te no acordo de respeitar o pouco está fazendo exatamente o que as de sua mão para atrair a DC e se- Forças Armadas querem. pará-la de seus sócios so- cialistas (The Econo- mist, 19.12.98, p.79).

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A DC está preparando o terre- Final: “A transição não resiste à Pinochet, em outubro de 1998: “Os no para a criação das bases para justiça”. Será que não há Outono chilenos devem ser julgados no um consenso com a direita, que os para este patriarca, nem justiça Chile” (El Mercurio, 19.10.98). ministros socialistas no governo para o Chile? O chanceler José Miguel Insul- parecem apoiar, ainda que não o Não sabemos, no momento de za foi a figura-chave na ofensiva partido. De todo modo, a situação escrever, qual será o resultado dos diplomático-política da adminis- eleitoral para a Concertação é di- processos legais em Londres. Sa- tração Frei para defender Pino- fícil, pois espera-se que a econo- bemos que, não obstante a conde- chet. Por isso, várias federações mia cresça apenas 1% neste ano; o nação mundial generalizada de Pi- de estudantes universitários pedi- preço do cobre, principal ram sua renúncia por consi- produto de exportação, des- derar que “o governo, atra- pencou (em grande medida vés de sua pessoa, se faz devido à crise no sudeste Será que não haverá Outono cúmplice e acobertador do asiático); o conjunto do país para este Patriarca, nem justiça acusado Pinochet” (El Mer- está afetado por uma seca curio, 20.10.98). pertinaz que tem conse- para o Chile? Enquanto não Agora mesmo a DC está qüências negativas nas ex- atuando para inibir (já que portações agrícolas e que houver, continuará sendo uma não pode suprimir) a reali- poderá, mesmo, reduzir a sociedade traumatizada zação de campanha política geração de eletricidade (The pelo julgamento dos tortura- Economist, 19.12.98, p. 79). dores. Em reação à propa- Por fim, a imprensa chi- ganda eleitoral utilizada pe- lena informou sobre a reunião en- nochet, e o desejo de muitas na- lo comando juvenil da candidatura tre a Sociedade de Fomento Fabril ções de julgar ao ex-tirano, o go- presidencial de Ricardo Lagos (Sofofa, organização de empresá- verno chileno da Concertação está (“Os torturadores vão votar! Der- rios) e o presidente, na qual a en- providenciando as cartadas que rote-os com teu voto. Junta-te à tidade propôs a Frei a possibilida- impeçam que este (e muitos outros força de Lagos”), a DC criticou de de emendar a Constituição e assassinos que todavia passeiam li- publicamente tais slogans (La Ter- permitir-lhe assim um segundo vre e impunemente pelas ruas do cera, 5.1.99). Isso quando uma pes- mandato. A pré-condição para Chile) sejam levados a juízo, e se quisa demonstrou que dois terços que a Sofofa apóie tal solução é a faça assim, de uma vez por todas, dos chilenos consideram que Pino- expulsão dos socialistas do gover- justiça. Enquanto ela não ocorre, o chet é passível de culpa e que de- no, e a criação de uma aliança de Chile continuará sendo uma socie- veria ser julgado no Chile. centro-direita. dade traumatizada e em dívida A mesma sondagem indicou Também falou-se de uma pro- consigo mesma. que Lagos tem 32%, Lavin, da di- posição similar feita pelas Forças A DC no governo realizou em reita, 15%, e Zaldivar, da DC, Armadas. A direita, incluída a menos de dois meses mais gestões 17% (The Financial Times, DC, quer assegurar sua “transição e demonstrou maior vigor na defe- 3.12.98). a nenhuma parte”, impedindo que sa do ex-ditador do que fez pelas E este é o problema central: Lagos seja o presidente da Repú- milhares de vítimas da ditadura. com Pinochet na Espanha ou de blica em dezembro de 1999. Por isso custa a crer nas declara- volta ao Chile, um triunfo de La- A detenção de Pinochet em ções do presidente Frei na cidade gos pode desencadear processos de Londres e seus efeitos políticos no do Porto (Portugal), na VIII Cúpu- democratização inaceitáveis para o Chile confirmaram amplamente la Íbero-Americana, onde o sur- modelo neoliberal e... para o conti- uma manchete da revista Punto preendeu a notícia da detenção de nuísmo pinochetista. RA

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TIMOR LESTE, AS “VÍTIMAS QUE NÃO VALEM A PENA”

Noam Chomsky

Timor Today/Internet O lingüista norte-americano escreveu esse artigo (divulgado por Rebelión, com tradução de Jesús Gómez e Natalia Cervera) bem antes da intervenção das forças de paz da ONU no Timor Leste, que só ocorreu no final de setembro. No entanto, para quem observava, ainda em outubro, o reduzido efetivo das forças de paz, a minguada ajuda internacional (inclusive a brasileira) e a desenvoltura das milícias ligadas à Indonésia, o texto de Chomsky permanecia forte e atual.

63 Outubro 1999 Revista Adusp

á três boas ra- harto foi aclamado pelos meios de zões para que Clinton apoiava comunicação como um “modera- os norte-ame- Suharto, seguindo do” de “bom coração”, ainda que ricanos preo- precedente de 1965, tivesse um recorde de assassinatos, cupem-se por quando o general terror e corrupção com poucos H Timor Leste. competidores na história posterior Em primeiro lugar, desde a inva- tomou o poder e o à Segunda Guerra Mundial. são indonésia de dezembro de Exército massacrou o Suharto gozou do apoio do Oci- 1975, o Timor Leste sofreu algu- Partido Comunista dente até que cometeu seus pri- mas das piores atrocidades da era meiros erros: perder o controle e (PKI) e cometeu um moderna. Em segundo lugar, o go- duvidar sobre a hora de aplicar as verno dos EUA desempenhou um dos piores duras prescrições do Fundo Mone- papel decisivo no aumento de di- assassinatos em tário Internacional (FMI). Só en- tas atrocidades e pode atuar para massa do século XX tão chegou o pedido de Washing- mitigá-las ou eliminá-las com faci- ton de “uma transição democráti- lidade. Não é necessário bombar- ca”, que não incluía a possibilidade dear Jacarta, nem impor sanções nós”, seguindo o precedente estabe- de que o povo do Timor Leste des- econômicas. Haveria bastado, em lecido em 1965, quando o general frutasse do direito à autodetermi- qualquer momento, que Washing- tomou o poder e dirigiu os massa- nação, respaldado pelo Conselho ton retirasse seu apoio ao governo cres perpetrados pelo Exército, que de Segurança das Nações Unidas e da Indonésia e informasse a seu acabaram com o único partido polí- pelo Tribunal Internacional. cliente que o jogo havia terminado. tico com grande implantação no Em 1975, Suharto invadiu o Ti- Isto continua sendo válido, quando país (o PKI, um partido comunista mor Leste, país que estava sendo a situação se aproxima de um pon- que gozava do apoio popular) e de- governado por seu próprio povo to crucial: a terceira razão. vastaram sua base social em “um depois do colapso do império por- O presidente Clinton não ne- dos piores assassinatos em massa do tuguês. EUA e Austrália sabiam cessita que o instruam acerca de século XX”. Segundo um informe que ocorreria a invasão e a autori- como proceder. Em maio de 1998, da CIA, os massacres foram compa- zaram. O embaixador australiano Madeleine Albright, secretária de ráveis aos realizados por Hitler, Stá- Richard Woolcott recomendava, Estado, pediu ao presidente Su- lin e Mao. Centenas de milhares de em papéis que mais tarde vazaram harto que se demitisse e permitisse pessoas foram assassinadas; quase na imprensa, a via “pragmática” do uma “transição democrática”. Pou- todas, camponeses sem terras. “realismo de Kissinger”, porque fa- cas horas mais tarde, Suharto Tal êxito foi recebido com abso- zer um bom acordo sobre as reser- transferiu o poder a seu vice-presi- luta euforia no Ocidente. O “espan- vas de petróleo do Timor seria dente escolhido a dedo. Ainda que toso genocídio” converteu-se em mais fácil com a Indonésia do que não tenha sido uma simples rela- “um raio de luz na Ásia”, segundo com um Timor Leste independen- ção de causa e efeito, os aconteci- dois comentários, paradigmáticos te. Naquela época, 90% das armas mentos ilustram as relações que da reação geral dos meios de comu- do exército indonésio procediam prevalecem. Deter a tortura no Ti- nicação ocidentais, publicados no dos EUA, porém seu uso estava mor Leste não haveria sido mais New York Times. As grandes empre- restrito, pelos termos do acordo, à difícil do que acabar com o ditador sas correram para o que muitos “defesa”. Seguindo a doutrina do da Indonésia em maio de 1998. chamavam o “paraíso para os inves- “realismo de Kissinger”, Washing- Pouco antes, a administração de tidores” de Suharto, apenas limita- ton aumentou o fluxo de armamen- Clinton apoiava Suharto e o definia do pela voracidade da família do di- tos enquanto declarava uma sus- como “o homem adequado para tador. Durante mais de 20 anos, Su- pensão da entrega de armamentos,

64 Revista Adusp Outubro 1999 simultaneamente, e a opinião pú- para impedi-lo. O método foi sim- blica permaneceu na ignorância. Após a invasão do ples: organizaram forças paramili- O Conselho de Segurança das Timor Leste, em tares para aterrorizar a população Nações Unidas ordenou à Indoné- 1975, o Conselho enquanto o EOI adotava uma atitu- sia que se retirasse do Timor Les- de de “negativa verossímil”, que ra- de Segurança da te, porém sem resultado. Daniel pidamente fracassou ante a presen- Patrick Moynihan, embaixador dos ONU ordenou à ça de observadores estrangeiros, os EUA nas Nações Unidas naquela Indonésia que se quais puderam comprovar de pri- época, explicou o fracasso da reso- retirasse, em vão. meira mão que o EOI armava e lução da ONU em suas memórias. protegia os assassinos. Segundo in- O embaixador vangloriou-se de ha- O embaixador dos formações dignas de crédito, as mi- ver conseguido que a ONU fosse EUA vangloriou-se lícias encontram-se sob a direção “profundamente ineficaz quanto às de haver levado a da Kopassus, as temidas forças es- medidas que precisaria tomar”, ONU ao fracasso peciais da Indonésia, modeladas à porque “os EUA desejavam que as imagem e semelhança dos boinas coisas ocorressem como ocorre- verdes dos EUA, e “lendárias por ram”, e “trabalharam para conse- Em 1989, a Austrália firmou um sua crueldade”, como observa Be- guir isso”. Quanto a como “se de- tratado com a Indonésia para explo- nedict Anderson, importante inte- senvolveram os acontecimentos”, rar o petróleo da “província indoné- lectual da Indonésia. Moynihan comenta que, em pou- sia de Timor Oriental”, uma região Anderson acrescenta que, no Ti- cos meses, haviam assassinado que segundo alguns intelectuais rea- mor Leste, “a Kopassus converteu- 60 000 cidadãos do Timor Leste, listas não é economicamente viável, se em pioneiro e exemplo de todo “quase a proporção de vítimas so- e que portanto não pode aceder ao tipo de atrocidades”, entre as quais fridas pela União Soviética durante direito à autodeterminação. O acor- violações sistemáticas, torturas, exe- a Segunda Guerra Mundial”. do de Timor Leste passou a vigorar cuções e organização de bandos de O massacre continuou e alcan- imediatamente depois que o Exérci- delinqüentes. No mesmo sentido, çou seu ponto mais alto em 1978, to assassinara vários milhares mais David Jenkins, veterano correspon- com a ajuda de novas armas entre- de cidadãos timorenses, na come- dente australiano na Ásia, comenta gues pela administração de Carter. moração, em um cemitério, de um que estas “forças especiais de cho- As mortes foram calculadas em assassinato cometido pouco antes que receberam treinamento regular 200 000, o pior massacre de popu- pelo Exército. As empresas petrolí- com forças norte-americanas e aus- lação civil desde o Holocausto. Em feras ocidentais uniram-se ao espó- tralianas até que seu comportamen- 1978, França, Grã Bretanha e ou- lio, sem suscitar comentários. to converteu-se em mal-estar para tros países uniram-se aos EUA, Depois de 25 anos terríveis, por seus amigos estrangeiros”. dispostos a arrancar o que pudes- fim deram-se passos que poderiam O Congresso dos EUA proibiu o sem do massacre. O protesto no acabar com o horror. A Indonésia treinamento de assassinos e tortu- Ocidente foi minúsculo, e apenas permitiu a realização de um referen- radores no IMET (Programa de informou-se sobre o que vinha dum em agosto de 1999, para que Treinamento e Formação Militar acontecendo. A cobertura jornalís- os cidadãos de Timor escolhessem Internacional), porém a administra- tica por parte dos meios de comu- entre a autonomia, dentro da Indo- ção de Clinton encontrou formas nicação dos EUA, que havia sido nésia, e a independência. Era claro de burlar a legislação, e embora te- intensa no contexto da preocupa- que, sendo o voto minimamente li- nha irritado o Congresso nada mais ção com a derrocada do império vre, venceriam as forças indepen- aconteceu. As proibições parlamen- português, diminuiu até pratica- dentistas. O exército de ocupação tares podem ser mais eficazes ago- mente inexistir em 1978. indonésio (EOI) atuou com rapidez ra, mas, sem o tipo de investigação

65 Outubro 1999 Revista Adusp que raramente leva-se a cabo com As milícias ravanas da ONU que levavam relação às atrocidades apoiadas pe- encontram-se sob a doentes para tratamento. Murphy e los EUA, não há razões para con- direção da outros comentam que o EOI tor- fiar nessas proibições. nou-se valentão pela falta de inte- A conclusão de Jenkins, no sen- Kopassus, temida resse do Ocidente. “A declaração tido de que a Kopassus segue “tão força especial da de um importante diplomata dos ativa como sempre no Timor Les- Indonésia, EUA resume a situação: o Timor te”, foi comprovada por observa- Leste é o Haiti da Austrália”. Em modelada à dores próximos. “Muitos desses outras palavras, não é um problema membros do exército assistiram a imagem e dos EUA, país que ajudou a criar e cursos do IMET nos EUA, agora semelhança dos a manter o desastre em Timor Les- suspensos”, escreveu ele. Suas táti- boinas verdes dos te e que poderia detê-lo com suma cas recordam o Programa Phoenix facilidade. Os que conhecem a ver- dos EUA, aplicado no sul do Viet- EUA, e lendária dade sobre a intervenção dos EUA nã, e com o qual foram assassina- por sua crueldade no Haiti apreciarão a ironia. dos dezenas de milhares de campo- Na cena do terror, Carlos Xime- neses e muitos dos líderes indíge- formou-se, milhares delas foram li- nes Belo, bispo e prêmio Nobel, pe- nas sul-vietnamitas, assim como as teralmente escravizadas para que diu “uma força militar internacio- “táticas empregadas pelos Contra” trabalhem na colheita de café. nal” para proteger a população do na Nicarágua, em aplicação das li- “Chamam-lhes deslocados inter- terror indonésio e para permitir a ções que receberam de seus mento- nos”, comentou uma religiosa aus- realização do referendum. Porém res da CIA, e que não será necessá- traliana, “porém são reféns das mi- não se fez nada. A “comunidade in- rio rever. Os terroristas de Estado lícias. Disseram-lhes que serão ternacional”, ou seja, as potências “não se limitam a perseguir as pes- mortos se votarem a favor da inde- ocidentais, prefere que o Exército soas mais radicalmente indepen- pendência”. Calcula-se em mais de indonésio proporcione “seguran- dentistas, mas também aos mode- 50 000 o número de deslocados. ça”. A administração de Clinton au- rados, às pessoas que têm influên- As condições sanitárias são ter- torizou o envio de alguns observa- cia em sua comunidade”. ríveis. Um dos poucos médicos que dores da ONU, desarmados, porém “É Phoenix... observa uma im- se encontram na zona, o voluntário depois adiou sua viagem. portante fonte de Jacarta”, escreve norte-americano Dan Murphy, in- O panorama dos últimos meses Jenkins. E a fonte acrescenta que o formou que diariamente morrem contrasta de forma particularmente objetivo é “aterrorizar a todo o entre 50 e 100 cidadãos por enfer- descarada com a pose beata dos mundo, às ONGs, à Cruz Verme- midades curáveis, enquanto a In- “Estados ilustrados”. Porém só ser- lha, às Nações Unidas e aos jorna- donésia “mantém uma política de- ve para demonstrar, novamente, o listas”. A consecução desse objeti- liberada de não permitir que che- que deveria ser evidente: nada de vo teve não pouco êxito. Desde guem medicamentos ao Timor substancial mudou. Os cidadãos de abril, as milícias dirigidas pela In- Leste”. Murphy detalhou nos Timor Leste são “vítimas que não donésia empreenderam uma onda meios de comunicação australia- valem a pena”. Nenhum poder está de atrocidades e assassinatos. Ma- nos os atrozes crimes que presen- interessado em amenizar seu sofri- taram centenas de pessoas, muitas ciou, e jornalistas da Austrália e mento, nem sequer em dar alguns delas nas igrejas em que se haviam voluntários elaboraram um infor- passos simples para detê-lo. A de- refugiado; queimaram cidades e le- me impressionante. morada e conhecida história conti- varam dezenas de milhares de pes- A ONU adiou duas vezes o refe- nuará, em Timor Leste e em todo o soas para campos de concentração rendum por culpa do terror, que al- mundo, se não se produzir uma nas montanhas, onde, segundo in- cançou inclusive os escritórios e ca- reação popular significativa. RA

66 Revista Adusp Outubro 1999

PRIVATIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA

Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak Médicos e professores universitários

Apresentada como a chegada da modernidade ao setor, a privatização é profundamente reacionária. As fundações privadas de direito público não são fiscalizadas e pouco têm feito no sentido de servir a população

67 Outubro 1999 Revista Adusp

stamos indo nu- tes de desmanche dos sistemas pú- se a Managed care, que controla ma direção que blicos de saúde teve nexo com as desperdícios na assistência médi- consideramos in- greves suicidas que nossos caríssi- ca. Existem? Sim, e muitos. São desejável na or- mos próceres sindicais repetida- solicitados exames ao invés de ganização de mente lançaram, sem entender usar bom-senso e há prescrição de E nossos serviços por que a população depois nunca remédios muito caros quando ou- de saúde. Resolveram copiar o sis- mais os apoiou. Inclusive, tais gre- tros mais baratos seriam até mais tema norte-americano, que é único ves tornaram-se apreciadíssimas eficientes. A indústria de apare- no mundo e com o qual a popula- nas Medicinas de Grupo, que até lhos cria obsolescência programa- ção americana não está satisfeita, usaram a sua existência para ven- da nos seus equipamentos e a pro- ao invés de imitar modelos euro- der seus serviços. paganda de medicamentos faz peus, que são o embasamento do O modelo norte-americano se- com que sempre se prefira o mais nosso Sistema Único de Saúde para um pedaço da população que novo, de última geração. Ocorre (SUS). Parece que alguém assumiu ninguém quer atender: os pobres diplomação de gerações de médi- que o SUS é mais ou menos como muito pobres e os velhos pobres, cos claramente mal preparados a falecida e não lamentada União assistidos em Medicaid e Medica- não apenas nas escolas de segun- Soviética, ou seja, uma linda idéia re. Todos os demais cidadãos vi- da, terceira ou quarta linhas e elas fracassada na prática. Segundo ram-se através de convênios ou suprem suas limitações de conhe- nossa opinião isto não é bem assim trabalhando em empregos que cimento usando a tecnologia co- e, até muito pelo contrário, o SUS providenciam atendimento. Como mo muleta. Entretanto, a Mana- constitui plano perfeitamente viá- o custo da medicina norte-ameri- ged care não reverte as economias vel, desde que haja vontade políti- cana andava indo pa- que indubitavelmente produz em ca, com organização racional, além ra o espaço criou- prol dos pacientes ou em diminui- de profissional. É claro que o SUS ção dos custos, mas aumenta os fica inviável, como qualquer ou- lucros das firmas que a utilizam. tra coisa, se submetido ao mo- Um fato ainda mais conturban- delo pítico e da nossa Câma- te vem acontecendo neste Brasil. ra de Vereadores, por É a privatização dos serviços pú- exemplo, quando os car- gos são loteados e distri- buídos apenas por in- fluências políticas, co- mo infelizmente tem acontecido. O SUS também nunca será adequado enquanto li- deranças sindicais dos pro- fissionais da área da saúde não perceberem que o propósito corresponde a servir o usuário, o paciente, e não os es- tamentos que traba- lham no contexto. Aliás, uma das fon-

68 Revista Adusp Outubro 1999 blicos, de maneira curiosa. O Go- capazes de minimizar a dedução difícil no âmbito do desmonte do verno paga os grandes investimen- de colocar as referidas Fundações serviço público, que continua cada tos, relacionados com prédios, como más soluções. Pelo contrá- vez mais intenso hoje. equipamentos e insumos, ficando rio, podem caracterizar gigantesco Não queremos dar uma de pro- os lucros para os que operam os problema no dia em que as inade- fetas e muito menos de Cassan- hospitais, indo partes maiores pa- quações transparecerem. dras. Cremos que a privatização e ra alguns. A privatização, que é O SUS, insistimos, é uma idéia a fundatização da assistência mé- apresentada como a chegada da correta nos seus princípios e o dica pública vão dar com os burros modernidade ao setor, na verdade grande defeito dele, demarcado n'água mais cedo do que parece. é algo profundamente antigo, rea- pela falta de atenção a moléstias Aguardamos um plano governa- cionário e tradicional no país, cor- muito complexas, afigura-se facil- mental sério e ordenado que res- respondendo ao que pode ser cha- mente suprível com incorporação, gate o SUS, corrigindo alguns dos mado de patrimonialismo: quem de maneira organizada e remune- exageros que são textos legais. Co- está no poder usufrui das vanta- ração adequada, dos hospitais uni- mo ilustração, lembramos que ne- gens do cargo pessoalmente e não versitários, que são exatamente os nhum sistema de saúde do mundo em favor das pessoas que deveria que podem propiciar boa atenção fornece tudo, incluindo remédios, servir. A propósito, é antiga a pia- às patologias eivadas de dificulda- a todos. Serviços que têm deman- da conforme a qual no Brasil ser- des. Sistemas de referência e con- da infinita exigem racionalização viço público é o que os america- tra-referência são aptos a deixar o de recursos e decisões criteriosas, nos chamam de oxymoron: não é SUS extremamente lógico e capaz por meio de estruturas abertas, serviço e de público só tem o no- de grandes economias. Claro que possibilitando discutir e garantir o me. Aconteceu de forma progres- isto requer gerenciamento igual ou que pode ser ou não concedido in- siva a implantação de Fundações melhor do que o de serviços priva- discriminadamente. RA privadas de direito público, den- dos; todavia, isto exige gente com- tro de próprios do Estado, que petente e decentemente paga. não são fiscalizadas satisfatoria- Possível é, mas muito, muito mente, praticam coisas mirabolan- tes, enriquecem alguns dos que nelas trabalham e pouco têm efetuado no sentido de melhor servir o público. Não podemos dizer que todas são assim, porquanto existem exceções, in-

69 Outubro 1999 Revista Adusp ANISTIA, ANO 20

Brasília, agosto de 1979

Fotos: Correio Braziliense 70 Revista Adusp Outubro 1999

História, paradoxos e limites do perdão legal que a Ditadura viu-se obrigada a conceder em 1979 aos seus opositores

Anistia de 1979 A lei excluiu dos benefícios da “somente será deferido para o foi a vitória possí- anistia os militantes políticos mesmo cargo ou emprego, posto vel do movimento “condenados pela prática de cri- ou graduação que o funcionário ou popular, resulta- mes de terrorismo, assalto, se- servidor, civil ou militar ocupava do de uma corre- qüestro e atentado pessoal” (arti- na data de seu afastamento, condi- Alação de forças go 1º, parágrafo 2º), os quais, pe- cionado, necessariamente, à exis- que ainda favorecia precariamente las contas do próprio governo na tência de vaga e ao interesse da ad- a Ditadura Militar. Como sinteti- época, eram ao todo 195. Portan- ministração” (artigo 3º). zou na época o semanário O São to, a lei afrontou a palavra-de-or- Portanto, tornava-se fácil aos Paulo, da Igreja católica, a anistia dem e principal bandeira dos mo- burocratas ligados à Ditadura ne- foi “anêmica e parcial”. Ainda as- vimentos pela anistia, encampada gar aos servidores a reintegração. sim, foi uma concessão que os mili- até por figuras como o senador Ainda hoje, são muitos os militares tares e seus sócios civis fizeram a arenista Teotônio Vilela: “Anistia que foram anistiados mas jamais contragosto — e que terminou por ampla, geral e irrestrita”. reintegrados. Além disso, foi-lhes enfraquecer o regime e acentuar Concomitantemente à exclusão expressamente negado o direito a seu declínio, em meio à maré cres- dos que pegaram em armas contra “vencimentos, soldos, salários, pro- cente de lutas operárias contra o a Ditadura, foram anistiados aque- ventos, restituições, atrasados, in- arrocho salarial e ao fortalecimen- les que cometeram crimes “cone- denizações, promoções ou ressarci- to dos setores dissidentes do em- xos”, ou seja, “crimes de qualquer mentos” (artigo 11º). presariado, encarnados pelo MDB. natureza relacionados com crimes É fácil compreender, assim, a A lei 6.683/79, aprovada pelo políticos ou praticados por motiva- reação dos quase 2 000 manifes- Congresso Nacional no dia 22 de ção política” (artigo 1º, parágrafo tantes que lotavam as galerias do agosto e sancionada pelo último di- 1º). A bisonha invenção do “crime Congresso naquele histórico 22 de tador-presidente, general João Fi- conexo” destinava-se a proteger de agosto de 1979, quando o governo gueiredo, no dia 28 de agosto, con- uma eventual punição legal os e seu “braço parlamentar”, a Are- cedia anistia “a todos quantos, no agentes da repressão. Assim, pu- na, conseguiram aprovar a duras período compreendido entre 2 de nham-se a salvo da justiça os milita- penas o substitutivo do deputado setembro de 1961 e 15 de agosto de res de variadas patentes e policiais Ernani Satyro ao projeto de anis- 1979, cometeram crimes políticos responsáveis pelo seqüestro, prisão tia. Por escassa margem (209 vo- ou conexos com estes, crimes eleito- e tortura, por motivos políticos, de tos a 195), “foi rejeitado o substi- rais, aos que tiveram seus direitos milhares de pessoas — das quais tutivo do MDB que concederia políticos suspensos e aos servidores mais de 400 foram assassinadas. anistia ampla, geral e irrestrita, de administração direta e indireta, excetuando apenas os torturado- de fundações vinculadas ao poder Sob vaias res” (Jornal de Brasília). Em se- público, aos servidores dos poderes guida, por apenas cinco votos (206 Legislativo e Judiciário, aos milita- Além disso, a lei impunha difi- a 201), foi rejeitada emenda do res e aos dirigentes e representantes culdades e prejuízos aos servidores deputado Djalma Marinho, da sindicais, punidos com fundamento civis e militares perseguidos ou pu- Arena, que estendia a anistia a to- em atos institucionais e complemen- nidos pelo regime. Assim, o retor- dos aqueles que cometeram cri- tares e outros diplomas legais”. no ou a reversão ao serviço ativo mes por motivação política.

71 Outubro 1999 Revista Adusp

Os apoiadores da anistia, que ça se faça, um ano atrás jamais se tiveram de disputar lugares nas ga- imaginaria pudesse a Revolução lerias com 800 soldados da Aero- avançar até onde avançou, isto é, náutica, castigaram com vaias os permitir a volta à atividade política parlamentares que defenderam o de antigos líderes como Leonel projeto da Ditadura, como Nelson Brizola, Miguel Arraes, Francisco Marchezan e Jarbas Passarinho. O Julião, Márcio Moreira Alves, Luis presidente do Congresso, Luiz Carlos Prestes e outros”, escreveu Vianna, ameaçou retirar os mani- Carlos Chagas, jornalista com festantes quando estes puseram-se trânsito entre os militares, no dia todos de pé para vaiar o coronel e seguinte à votação no Congresso. deputado arenista Erasmo Dias, “Ficaram fora da anistia os que chamado repetidas vezes de “as- cometeram atos de terrorismo e sassino” quando pronunciou seu não foram ainda condenados, espe- voto contra a emenda Marinho. ra-se que todos eles, ou seja, não só os adversários do governo, mas Manifestação pela Anistia em Brasília, em agos de muitos familiares de presos políticos e de mo também os do seu lado, que no pas- Teoria canhestra sado mais ou menos recente empe- também anistiados é canhestra e nharam-se na prática da tortura e não subsiste ao menor exame le- “Não terá sido o projeto ideal, sucedâneos, tão terroristas quanto gal”, acrescentou, alegando que a sequer aquele que atende a todas os outros. A teoria dos crimes cone- Constituição proibia claramente as aspirações nacionais, mas, justi- xos aos crimes políticos estarem que o Poder Judiciário deixasse de PERSEGUIÇÃO AOS FUNCIO

A Ditadura implanta- purgos do Estado Novo. rios e a remoção de juí- tração federal” os profes- da em 1964 reinstaurou Ao enfrentar as turbu- zes independentes. sores Florestan Fernan- a prática adotada pelo lências de 1968, o regime Como registra o Livro des, Jaime Tiomno e Vil- governo “democrático” de 1964, que teve em Du- Negro da USP, produzido lanova Artigas, todos da do general Eurico Gas- tra um de seus patronos, e editado pela Adusp já USP. Um erro flagrante. par Dutra (1946-1951): a jogou definitivamente “às em 1978 (portanto ainda Da lista faziam parte, punição massiva de ser- favas os escrúpulos”, co- antes da Anistia), as pri- ainda, Bolívar Lamou- vidores públicos “suspei- mo propôs o então minis- meiras punições de do- nier, Elisa Esther Frota tos”. Dutra fez aprovar tro Jarbas Passarinho ao centes da USP foram da- Pessoa, José Leite Lo- no Congresso lei que o general-presidente Costa das a conhecer em 28 de pes, Lincoln Bicalho Ro- autorizava a exonerar e Silva, e editou uma abril de 1969, com a pu- que (que viria a ser as- funcionários comunistas obra-prima na área, o blicação, no Diário Ofi- sassinado pelos órgãos ou tidos como tais, e de- Ato Institucional nº 5, ou cial da União, de um “es- de repressão do I Exérci- mitiu em massa, além de simplesmente AI-5, que tranho decreto” baseado to em 1973), Quirino destituir milhares de sin- permitiu, entre outras no AI-5 e que aposenta- Campofiorito e mais 34 dicalistas que lhe faziam medidas de força, a apo- va compulsoriamente “- servidores. O decreto foi oposição, superando sentadoria compulsória nos cargos que ocupam assinado por Costa e Sil- mesmo o índice de ex- de professores universitá- nos órgãos da adminis- va, Tarso Dutra, ministro

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dualismo” implantado pelo ditador Longo caminho anterior, Ernesto Geisel. “O gra- dualismo, que já acabou para o go- A luta pela anistia percorreu verno no setor econômico com a um longo caminho até a vitória ascensão do ministro Delfim Net- conquistada em Brasília. Em sua to, sofre agora um grande revés na edição de 11 de maio de 1978, por área política com a meia-vitória de exemplo, o vetusto jornal O Esta- seu projeto de anistia, na verdade do de S. Paulo noticiava: “No Lar- uma derrota do esquema político- go cercado, o ato pela anistia”. parlamentar do Palácio do Planal- Tratava-se de uma atividade do to”, anotou. Previa que Figueire- Comitê Brasileiro pela Anistia-se- do, “ainda vivendo a perplexidade ção São Paulo, cujos objetivos fo- de uma aprovação do substitutivo ram “anunciados ontem para mais Satyro por apenas 5 votos”, seria de 4 mil pessoas reunidas em ato obrigado “a alterar seu cronogra- público no pátio da Faculdade de to de 1979, com a presença ma de ação no campo institucio- Direito do Largo de São Francis- rtos e desaparecidos nal, que programa desdobramen- co”. Na mesma página, o Estadão apreciar “qualquer lesão de direito tos gradualísticos”. O que viria a reportava ainda uma manifestação individual” (Jornal de Brasília). seguir, porém, seria uma tentativa pela Anistia em Campinas, com Outro jornalista, Leonardo Mo- de sobrevivência da Ditadura: o mil estudantes da PUC e da Uni- ta Neto, observou que a anistia voto vinculado, obrigando o eleitor camp, um debate no Centro Aca- deu um golpe de morte no “gra- a votar num único partido. dêmico de Medicina da USP, e

O NÁRIOS PÚBLICOS

da Educação, e Gama e compulsória ou rescisão vinculados à USP. O pro- Silva, que se afastara da de contrato Bento Prado fessor Júlio Puddles, por Reitoria da USP para as- Júnior, Elza Berquó, exemplo, demitido já em sumir o Ministério da Emília Viotti da Costa, 1964, em razão do inqué- Justiça. Fernando Henrique Car- rito policial-militar (IPM, Expurgo do reitor doso, Isaías Raw, Jean um dos primeiros instru- Novo decreto, publi- Claude Bernadet, Mário mentos discricionários cado dois dias depois, Shemberg, Octávio Ianni, do regime) realizado na atingiu direta e expressa- Paulo Duarte, Paul Sin- Faculdade de Medici-

mente a USP. Foram rela- ger, Alberto de Carvalho na, não fora readmitido. Carlos Gueller cionados 24 nomes, entre da Silva, Jon Andoni Caio Prado Júnior só ti- Isaias Raw, na Faculdade eles o do reitor em exercí- Maitrejean, José Arthur nha o título de livre-do- de Medicina, e Jean- cio, Hélio Lourenço de Gianotti, Luiz Hildebran- cente pela USP. Claude Bernadet (foto Oliveira, que tivera a de- do Pereira da Silva, Paula Após a anistia, alguns acima), na Escola de Co- cência e o desassombro Beiguelman e Paulo professores conquista- municações e Artes. Ou- de protestar contra o de- Mendes da Rocha. ram a reintegração, co- tros, como Florestan Fer- creto anterior. Foram pu- Os outros sete lista- mo Paul Singer, na Fa- nandes, não chegaram a nidos com aposentadoria dos, porém, não eram culdade de Economia, ser reintegrados.

73 Outubro 1999 Revista Adusp uma missa celebrada em Apucarana (PR) em homenagem a um estudante que teria sido morto pelos ór- gãos de segurança. Em julho de 1978, o CBA-SP aprovou seu Programa Míni- mo de Ação, listando como objetivos o fim “radical e absoluto” das torturas; a liberta- ção dos presos políti- cos e a volta dos cas- sados, aposentados, banidos, exilados e perseguidos políticos; a elucidação da situa- A luta pela anistia era também uma luta pela derrubada da Ditadura ção dos desaparecidos; a recon- tra a Ditadura. O isolamento dos Ditadura, trucidaram brasileiros. quista do direito ao habeas-corpus; detentos foi quebrado, ainda que Da mesma forma, apontam a insu- o fim do tratamento desumano da- por pouco tempo. ficiência das reparações já conce- do aos presos políticos; a revoga- A movimentação pela Anistia didas legalmente pelo Estado. ção da Lei de Segurança Nacional seguiu crescente. Em novembro Marta Nehring, que nasceu no e o fim da repressão às atividades de 1978, em São Paulo, foi reali- ano do golpe militar, aos seis políticas; e o apoio às lutas pelas li- zado o Congresso Nacional pela anos teve o pai, Norberto Neh- berdades democráticas. Anistia, que lançou um “Manifes- ring, preso e torturado até a mor- Em relação aos presídios polí- to à Nação”. Em julho de 1979, te. Viveu, aos quinze, a emoção ticos, a pior situação parecia ser a 1 500 pessoas reuniram-se no Tea- da conquista da anistia, que pro- de Itamaracá (PE), onde os pre- tro da PUC-SP, o Tuca, em novo metia trazer da França seu tio sos políticos entraram em greve ato em favor da anistia ampla, ge- exilado, João Quartim de Moraes. de fome em abril de 1978, para ral e irrestrita. O ápice de todas “É uma lembrança festiva. Não protestar contra o confinamento a essas jornadas foram os atos reali- cheguei a participar dessa luta. que estavam submetidos, havia zados em Brasília, na véspera e no Mas lembro que foi uma alegria, mais de dois anos, os detentos dia da votação do projeto de lei, e um dos grandes eventos na minha Carlos Alberto Soares e Rholine em diversas cidades do país, quan- memória de criança”, diz. Sonde Cavalcante. A solidarieda- do a lei foi, enfim, sancionada. Amélia Teles, ela mesma ex- de a Carlos Alberto e Rholine presa política, dirigente da Co- alastrou-se rapidamente por ou- Os familiares missão de Familiares de Mortos e tros presídios políticos do país: Desaparecidos, viu a promulga- Rio de Janeiro, São Paulo, Forta- Passadas duas décadas, familia- ção da anistia como um momento leza, Juiz de Fora. Ao todo, 84 res das vítimas de perseguição po- de oxigenação da luta, com o re- presos políticos entraram em gre- lítica continuam a denunciar a im- torno de companheiros exilados. ve de fome no Brasil, num dos punidade dos facínoras que, a ser- “A anistia não foi uma dádiva do mais belos episódios da luta con- viço dos órgãos de repressão da regime, foi conquistada”, enfatiza

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tos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964 (Grupo Tortura Nunca Mais e Gover- no Miguel Arraes) e o recém-lançado Dos Filhos deste Solo (Fun- dação Perseu Abramo), cujos autores são o deputado federal Nil- mário Miranda (PT- MG) e o jornalista Carlos Tibúrcio. “Estamos até hoje lutando pela anistia, pelo reconhecimento do tempo de trabalho perdido nas prisões, Teotônio Vilela discursa: o senador da Arena encampou a luta pela anistia pelo esclarecimento Amelinha, como é conhecida. Ela méia, que está entre os poucos so- das mortes e desaparecimentos”. discorda do entendimento, quase breviventes da Guerrilha do Ara- Amelinha lembra que o caso da consensual, de que a lei anistiou guaia (1972-1974). Além disso, os vala de Perus, aberta nove anos os torturadores: “Nem a repres- mortos e desaparecidos políticos atrás, ainda não teve um desfecho são teve essa coragem. A anistia não foram reconhecidos como tais (veja entrevista na p. 76). “A Uni- foi concedida nominal e indivi- em 1979. “O Estado tinha que as- camp já disse que não continuará dualmente e eles não estavam in- sumir que cometeu crimes contra a investigar as ossadas retiradas cluídos”. seus cidadãos e cidadãs. Mas usou da vala clandestina. O governo “É hora de uma revisão. A a anistia para tentar colocar uma estadual não tomou providências. anistia não foi completa. Tortura- pedra em cima”. Falta vontade política!”, protesta. dores não foram punidos. Milita- Brechas, lacunas, silêncios da Marta, por sua vez, aposta no res de esquerda, por exemplo, não lei até hoje não resolvidos, segun- fôlego da sociedade para em- foram reintegrados pelo Exército. do Amelinha. “Faltam ainda mui- preender uma profunda revisão. Crimes não foram esclarecidos. A tos reparos morais e materiais. As “Tortura é crime contra a huma- história não foi contada por intei- diversas leis que vieram depois, nidade, imprescritível. Crianças e ro”, diz Marta Nehring, autora, ao como a lei 9.140 que indenizou fa- grávidas também foram tortura- lado de Maria Oliveira, do vídeo miliares, não encerraram o assun- das. A sociedade brasileira tem o 15 Filhos, produzido para um to”. Esta lei levou à criação, em direito de saber quem torturou, evento em homenagem às vítimas 1995, de uma Comissão de Mor- quem patrocinou a tortura e a da Ditadura, realizado pela Uni- tos e Desaparecidos Políticos, que OBAN. Tudo isso, oficialmente”, camp em março de 1996. atua no âmbito do Ministério da exige. Grave omissão da lei de anis- Justiça. Por meio dela o Estado “É necessário abrir os arquivos tia, no entender de Amelinha, foi reconheceu sua responsabilidade do Exército. Temos de contar os a exclusão de muitos militantes na morte violenta de 424 pessoas. fatos e conseguir pelo menos a que foram torturados e passaram O trabalho da Comissão é re- execração pública da tortura e anos presos, como sua irmã Cri- latado nos livros Dossiê dos Mor- dos torturadores”. RA

75 Outubro 1999 Revista Adusp Luiz Eduardo Greenhalgh

“A ANISTIA FOI A ÚNICA LUTA QUE NÓS GANHAMOS E LEVAMOS”

O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh Carlos Gueller participou ativamente da história de resistência política dos brasileiros que enfrentaram a Ditadura e construíram o movimento pela Anistia ampla, geral e irrestrita. Entrar nessa luta era algo incompreensível para muitas pessoas alheias ao que ocorria nos cárceres e câmaras de tortura, como o próprio pai do então estudante de Direito, que lhe cassou os privilégios de família rica, como castigo pela escolha política e profissional. Mais tarde, o pai seria mais um brasileiro a apoiar a resistência aos generais. Em depoimento a Rita Freire, especial para a Revista Adusp, Greenhalgh faz um retrospecto da luta pela Anistia no Brasil.

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A prisão de Queda do PC do B tra entrevista perguntando por que Idibal Piveta expõe general o general não apresentava os pre- sos. Ele, no dia seguinte, divulgou Meu envolvimento com a luta O estouro do aparelho do Co- outra nota oficial dizendo que mais pela anistia começou antes, com a mitê Central do PC do B pela re- comunista do que os presos era o defesa de presos políticos. Era um pressão em 16 de dezembro de advogado deles. Isso me deu noto- sábado, em 1973, e eu li no Estadão 1976 deixou mortos Pedro Pomar e riedade, me colocou enfrentando a a notícia de que um amigo meu, o Ângelo Arroyo, e outros dirigentes repressão, e também levou meu pai Idibal Piveta, então advogado de foram presos, como Aldo Arantes a fazer as pazes comigo. Quando o presos políticos, tinha sido preso no e Haroldo Lima, que se tornaram general disse que ia me processar, DOI-Codi. Telefonei para o Airton meus clientes por indicação de mas que não apresentava os presos, Soares, sócio dele, e me ofereci pa- Madre Cristina. Era um caso de meu pai ligou dizendo: “Não abai- ra ajudá-lo no escritório, enquanto repercussão internacional. E o pri- xe a crista para esse general. Se os ele se liberava para cuidar do Idi- meiro com participação do general seus clientes foram torturados, não bal. Eu era ainda estudante de Di- Dilermando Gomes Monteiro, já tenha medo de processos”. reito e fazia estágio no escritório de no Comando do II Exército, que se advocacia do meu pai, especializa- fazia de bonzinho, depois da queda Um chacoalhão do em desapropriações, e bem co- do seu antecessor, o general Ed- na LSN nhecido em São Paulo. Nunca tinha nardo D'Ávila Melo. visto um preso político, nem tinha Em 1975, houve a repressão ao Depois de 1976, acabei pegan- lido a Lei de Segurança Nacional. Partido Comunista inteirinho. Em do os casos mais importantes da O Airton me mandou fazer uma vi- julho, a morte por “enforcamento” Justiça Militar, como o julgamento sita à Casa de Detenção e foi aí que do tenente José Ferreira de Almei- do Lula e da diretoria do Sindicato comecei a conhecer as pessoas que da. Em outubro, morre o Vladimir dos Metalúrgicos de São Bernar- estavam presas, a tomar contato Herzog nas mesmas circunstâncias. do, e derrotamos a Lei de Segu- com os processos nas auditorias. O E em janeiro de 1976, morre o Ma- rança Nacional porque foi a pri- Idibal ficou preso durante 67 dias e noel Fiel Filho nas mesmas cir- meira vez em que os réus não com- eu fiquei esse tempo no escritório. cunstâncias. Então a opinião públi- pareceram a um julgamento na Quando saí já tinha a certeza de ter ca, e a Igreja, com o cardeal D. Justiça Militar. O julgamento esta- dado outro rumo para a minha car- Paulo Evaristo Arns, fizeram uma va marcado para segunda-feira. Eu reira profissional. pressão muito grande, e tiraram o fui, na sexta-feira, à Auditoria Mi- Meu pai ficou magoado, porque general Ednardo do comando do litar, e lá encontrei o soldado que queria que eu assumisse o seu es- II Exército. deveria dar as senhas de meus critório. “Ficou de mal” de 1973 Um general “bonzinho”, Diler- clientes, datilografando alguma até o final de 1976. Me fez devol- mando, assumiu o comando, foi ao coisa. Vi que ele ficou branco, que- ver o carro, sair de casa, não me D. Paulo e disse que em sua gestão ria que eu saísse da sala, tirou rapi- deu mais nada. Fui morar no apar- não haveria tortura, não ocorre- damente o papel da máquina e eu tamento do zelador de um prédio riam mortes, e que respeitaria os intuí que ele já estava datilografan- da Rua Conselheiro Ramalho, na direitos humanos. De janeiro a de- do a sentença. Depois ele me deu Bela Vista, e Madre Cristina me zembro de 1976 houve poucas pri- as senhas e fomos tomar um café. ajudou muito. Me formei, conti- sões, até o estouro do aparelho da Eu disse que sabia o que ele estava nuei no escritório do Airton e do Lapa. Descobri que meus clientes fazendo e que só queria perguntar Idibal e, em dezembro de 1976, pe- estavam sendo torturados e denun- uma coisa: “Quanto o Lula vai pe- guei meu primeiro grande caso, ciei isso na imprensa. O general gar?” Ele respondeu: “Três anos e que foi a queda da Lapa. desmentiu em nota oficial. Dei ou- meio”. “E o Djalma (Bom)?” Tam-

77 Outubro 1999 Revista Adusp bém três anos e meio”. “E o (José) deiro Luiz Antonio estava fechada, dos réus, em uma máquina cujo ti- Cicote?” Então ele parou: desde a Avenida Paulista até o po era diferente daquela usada pa- “Doutor, não falo mais nada!”. Viaduto Maria Paula, com brucu- ra a sentença, que já estava pronta. Em função deste episódio, tive- tus, soldados, cachorros e bombas. Com isto conseguimos anular o mos uma grande reunião com Mas não chegamos. Fomos para a julgamento no Superior Tribunal meus clientes e os outros advoga- casa do Lula em São Bernardo. Militar, que reconheceu a farsa. dos. Propus que nenhum de nós Eles acabaram nomeando um ad- fosse ao julgamento. Depois de vogado dativo, fizeram o julgamen- Primeiros comitês muita discussão, o Lula decidiu: to, condenaram as pessoas àquelas pela Anistia “Se o Greenhalgh disse que não é penas, mas cometeram um erro. para ir, não vamos”. Na segunda Datilografaram um agravamento Desde o começo de 1975, os feira, às 9 horas, a Avenida Briga- da pena, por não comparecimento primeiros movimentos pela anistia MADRE CRISTINA, SOLIDARIE

Instituto Sedes Sapientiae Rita Freire

Madre Cristina, fundadora do Institu- to Sedes Sapientiae, em São Paulo, dizia não entender por quê nunca tinha sido pre- sa. Sua participação ativa e solidária, na resistência à ditadu- ra, não era segredo para ninguém. Quan- do morreu, aos 81 anos, em 1997, gente Madre Cristina durante a construção do Sedes, na década de 70... de diferentes causas sociais e militância política apareceu pa- cos, reuniões clandestinas e tornou-se en- ra relembrar e agradecer ações de apoio dereço de encontros pela anistia em São e de coragem da psicóloga, religiosa, Paulo. Ali aconteceram a primeira reu- educadora e ativista política, em momen- nião para montar o CBA, o primeiro tos difíceis, durante e depois do regime Congresso Nacional do movimento em militar. 1978 e as últimas tentativas de se ampliar Nos anos 70, Madre Cristina buscava os limites do projeto do governo, às vés- notícias de presos e desaparecidos e con- peras da votação. seguia advogados para defendê-los. O Ao inaugurar o Sedes, em 1977, Madre próprio Instituto Sedes Sapientiae, sob Cristina dizia ser aquele um espaço aber- seu comando, abrigou perseguidos políti- to aos que quisessem “estudar e praticar

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vinham se organizando. Em 1974, política, de redemocratização do um Comitê Brasileiro pela Anistia, houve uma eleição geral no Brasil. país. Em São Paulo, em janeiro ou do qual depois ela seria presidente. Tínhamos dois partidos, a Arena fevereiro de 1975, algumas mulhe- Era mais amplo, não só com a par- dizia “sim senhor” e o MDB, opo- res lideradas pela Terezinha Zerbi- ticipação de mulheres, mas ainda sição, dizia “sim”. O povo, nessa ni fundaram, com ajuda da Madre eram pessoas. Conversei bastante eleição, votou em massa no MDB. Cristina, o Movimento Feminino com Madre Cristina e, aqui em O Quércia, ilustre desconhecido, pela Anistia. Mas eram pessoas, São Paulo, começamos a assumir a foi eleito senador por São Paulo quando eu achava que o certo se- perspectiva de um CBA com enti- com cinco milhões de votos. A ria engajarmos entidades. No Rio dades representativas. análise desta eleição permitiu que de Janeiro, a Eni Moreira, advoga- Então vieram o Sindicato dos a gente começasse a discutir um da que trabalhava com o Sobral Metalúrgicos de São Paulo, mesmo processo de anistia, de abertura Pinto, também começou a articular com o Joaquinzão, pelegão na épo- DADE NOS ANOS DE CHUMBO

Instituto Sedes Sapientiae educativo e social para o psicólo- go. Mas ela mesma foi além, co- mo ativista. Certa vez, pôs-se a conversar com dois policiais que escoltavam um preso para um eletroencefalograma na clínica. Queria saber como se sentiam mantendo aprisionados jovens idealistas. “Eles se sentiram tão ameaçados que, pelo rádio, pedi- ram reforço e cercaram o quar- teirão”, contou em sua última entrevista ao Conselho Regional de Psicologia. ... e nos anos 90, com o bispo d. Pedro Casaldáliga Conta-se que Madre Cristina teria enfrentado pessoalmente o um projeto para a transformação da socie- temido delegado do DOPS, Sérgio Para- dade”. Em vinte anos, no Sedes, nasceram nhos Fleury. “Eu nem sabia quem era o ou ganharam espaço centros de educação Fleury. Eu chegava lá (no DOPS) e dizia popular, pastorais de Terra e do Índio, que tinha ido visitar meus netos. Quando movimentos de saúde mental, direitos hu- eles queriam me impedir de entrar, eu ia manos, indígenas e a Secretaria Nacional passando e dizia que não estava pergun- do MST. tando se podia. E se eles ameaçavam ati- Formada em filosofia pela antiga Fa- rar, eu dizia que podiam atirar. Não sei, culdade Sedes Sapientiae, em 1940, e acho que Deus estava comigo”, concluiu a criadora da primeira clínica de psicologia religiosa, ao lembrar o quanto esteve ex- no Brasil, a religiosa apontava um papel posta à repressão.

79 Outubro 1999 Revista Adusp ca, a Comissão de Justiça e Paz, a do conta do ato e eu fui com mais frente, ocupamos a Praça da Sé. Comissão Arquidiocesana, a algumas pessoas falar com o coro- Nos viciamos. Qualquer nota do Adusp, que teve uma ação de gran- nel Braga, que era comandante da governo que a gente não gostava, a de importância ao publicar um li- PM e que avisou: “Vai tudo em ca- resposta era ir para a Praça da Sé. vro negro da repressão política na na!” E explicou: “Isto aqui é o res- “Tem ato! Onde? Na Sé!”. Era nos- Universidade de São Paulo. Vie- to de comunista que tem em São so exercício da liberdade. No dia ram o Instituto dos Arquitetos do Paulo”. Argumentamos que era um da Anistia, 28 de agosto de 1979, Brasil, a Associação Brasileira de ato pela anistia. Mas ele disse: “- nós faríamos atos no Brasil inteiro, Imprensa, o Sindicato dos Jornalis- Que anistia? É tudo subversivo!” simultâneos. Aquela foto da pomba tas e entidades do movimento es- Acabamos fazendo uma negocia- pousada na faixa da Anistia seria tudantil que começavam a se reor- ção: terminaríamos o ato e todo feita nesse dia, na Praça da Sé, com ganizar, como o Centro Acadêmi- mundo sairia de mão na cabeça, 100 mil pessoas reunidas. co XI de Agosto, o DCE, a UEE. mas ninguém seria preso. Foi quan- Eu representava advogados de do montamos pela primeira vez um A unificação presos políticos, outros eram re- esquema de segurança. As pessoas do movimento presentantes dos familiares de pre- mais visadas tinham que chegar em sos, outros dos médicos contra a casa e ligar para o meu escritório. Cada comitê pela Anistia, em tortura. Cada um de nós não esta- O segundo passo foi um ato cada estado, era diferente, alguns va representando a si próprio e ti- aberto, que fizemos no lado exter- tinham nascido por causa dessa lu- nha de dar satisfação a outros. A no da Faculdade de Direito do Lar- ta, outros eram antigos comitês de Ruth Escobar abria o Teatro para go São Francisco. Se tivesse polícia, direitos humanos. O primeiro fazermos reuniões. Lembro de a gente entraria correndo. Depois, Congresso Nacional pela Anistia, uma em que até o Fernando Hen- uma terceira ousadia: nossa primei- realizado nos dias 2, 3 e 4 de no- rique compareceu e falou dos pro- ra passeata, do Largo São Francis- vembro de 1978, reuniu 2 000 pes- fessores cassados na USP. co até a Praça da Sé, em 1977. As soas. Eu tive a certeza de que ía- pessoas começaram a jogar papel mos ganhar. As reuniões eram fei- Tem ato! Onde? picado. A Sé estava proibida desde tas no Sedes Sapientiae. Mas tam- Na Sé maio de 1970, quando o governa- bém abrimos o Tuca e, pela primei- dor Sodré, no Dia do Trabalhador, ra vez em público, chamamos os A primeira ação do CBA de São levou a famosa pedrada. Mas che- nomes dos nossos companheiros Paulo se deu por causa da prisão gamos na Sé, fizemos um pequeno desaparecidos. Inventei de todo dos militantes da Convergência So- comício e ninguém foi preso. De- mundo dizer “presente” a cada no- cialista. Fomos para o pátio da Fa- pois fizemos uma passeata mais me. E foi uma emoção. Quem par- culdade de Direito do Largo de longa: Teatro Municipal, Viaduto ticipou, nunca vai esquecer. Carlos São Francisco. Na mesa, estávamos do Chá, Líbero Badaró, Largo São Marighela: presente! Lamarca: eu e a Veroca Paiva, filha do Ru- Francisco, Senador Queiroz, Praça presente!. E a cada um dos guerri- bens Paiva, o Marcelo Barbieri, da Sé, e vimos simpatia da popula- lheiros: presente, presente, presen- que hoje é deputado federal, o Ar- ção. Começamos a pegar firme na te! Tinha família de desaparecido naldo Jardim, que a gente chamava bandeira, que era “Anistia ampla, que falou pela primeira vez. Teve de chefão, hoje deputado federal. geral e irrestrita” e fizemos nosso depoimento de mãe com o filho Estávamos ali dirigindo o ato, com primeiro ato na Sé. Apenas chega- morto havia dez anos. E com filho um bruta medo, quando tivemos a mos. Montamos nossas bancas, ins- exilado não sei onde. De militante informação de que a Faculdade es- talamos som na catedral, com um que foi torturada e disse que ainda tava cercada pela tropa de choque. fiozão grudado com esparadrapo tinha delírio persecutório. As pes- Pedi calma. A Veroca ficou toman- para ninguém cortar. Daí para a soas verbalizaram pela primeira

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Carlos Gueller Respondi que não e desliguei o te- lefone. Dois dias depois, Petronio Portela chamou um jornalista de O Globo, para uma entrevista qual- quer. A notícia foi de que o jorna- lista viu sobre o sofá o anteprojeto da anistia, que o jornal publicou na íntegra. Mas quando foi divulgado, já tínhamos articulado um “cacete” nesse projeto, de norte a sul do país. Mal chegou ao Congresso Na- cional, e o país já estava contra.

A adesão de Teotônio Luiz Eduardo em seu escritório vez, naquele ato público, o que ti- é e continuará a ser”. No final do Um fato importante, nesse mo- nham passado. O Congresso unifi- ano, em 1976, o Golbery deu outra mento, foi a conversão do senador cou a luta pela anistia. Juntamos entrevista dizendo: “Anistia não, Teotonio Vilela. Tinha sido designa- em um livro o que era a luta das mas nós podemos fazer uma revi- do pelo governo relator da Comis- famílias dos desaparecidos, a luta são caso a caso, daqueles que não são Especial de Anistia, para defen- dos presos políticos, dos exilados, pegaram em armas ou tiveram der seu projeto. Fomos visitá-lo, pa- dos banidos, a luta contra a tortu- bom comportamento carcerário”. ra falar do CBA, e ele avisou: “Anis- ra, contra a LSN. Eram os Anais Nós respondemos exigindo anistia tia é via de mão dupla e eu não vou do I Congresso Nacional pela ampla, geral e irrestrita. Mais para defender anistia para terrorista”. Anistia, uma relíquia que ainda te- frente, ele disse que daria um in- Parei, voltei e falei: “Não conheço nho. Editamos 5 000, depois mais dulto para os presos de bom com- nenhum terrorista. Terrorista para 15 000 e distribuímos pelo Brasil, portamento. Dissemos “não”, que- mim é o governo. O sr. se disporia a para entidades, para pessoas que ríamos anistia ampla, geral e irres- visitar os presos para ver se encon- recebiam e tinham que discutir co- trita. Depois do Congresso da tra algum terrorista?” Ele pergun- letivamente. Neste Congresso, nós Anistia, Golbery disse que o gover- tou se a gente organizaria as visitas tiramos uma executiva nacional: no estava disposto a dar uma anis- e concordou. Havia presos políticos dona Iramaya Benjamin, do Rio de tia parcial. Dissemos “não”, teria em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Janeiro, dona Helena Grecco em que ser ampla, geral e irrestrita. Grande do Sul, Minas Gerais, Cea- Minas, eu em São Paulo e gente do O primeiro contato do governo rá, Pernambuco, por todo o Brasil. Brasil inteiro, gente com vivência. com o CBA, oficialmente, foi em A primeira visita foi em São Paulo. junho de 1979, dois meses antes da Antes, o senador disse que em 31 de O governo vencido promulgação da lei. Recebi um te- março de 1964 tinha saído com uma aos poucos lefonema do chefe do gabinete do metralhadora em punho, em Ma- ministro da Justiça, Petronio Porte- ceió, caçando comunista. Quando fundamos o CBA em la, informando que ele queria en- Quando saiu do presídio Ro- São Paulo, o general Golbery do viar uma cópia do anteprojeto de mão Gomes, a jornalista Marilena Couto e Silva deu uma entrevista: anistia. Perguntei se era ampla, ge- Chiarelli, da Globo, perguntou: “E “Não adianta vir com essa história ral e irrestrita. Ele disse que não, aí, o que o sr. achou dos terroris- de anistia. A revolução não foi, ela mas que o ministro falaria comigo. tas?” Ele disse que não tinha en-

81 Outubro 1999 Revista Adusp contrado nenhum terrorista, so- do exterior. Fizemos vários atos Mortos e Desaparecidos Políticos) mente jovens idealistas que arris- no Aeroporto de Congonhas. Re- passaram dias dentro do cemitério, caram as suas vidas pela liberdade cebemos o Betinho, o João Ama- revirando livros. Tínhamos que con- do Brasil. Ela parou e perguntou: zonas, o Fernando Gabeira. tatar organizações clandestinas, que “Mas o sr. hospedaria algum deles Quando chegou a Flávia Shiling, na época já estavam desestrutura- em sua casa?” Ele disse que hospe- presa política do Uruguai, fizemos das, para saber os nomes que os mi- daria todos eles, convite que não até panfletagem no Aeroporto. litantes usavam. Nós checávamos os faria a muitos ministros do atual Recebemos o Zé Dirceu, o Ma- nomes falsos e os verdadeiros pro- governo. Aí o coração bateu alto. noel da Conceição, o Arraes. Fi- curando naqueles livros. Não podía- À noite, ele disse em uma palestra camos p. da vida com o Brizola, mos fazer nada porque era a gestão em Santos que foi o dia mais im- porque resolveu atrasar sua volta do Maluf. Mas fomos acumulando portante de sua vida, porque en- e tínhamos um ato pronto para re- informações, até que no governo do controu pessoas que tinham dado cebê-lo dois dias antes. PT a vala de Perus foi aberta. profundo sentido às suas vidas, e que se ele pudesse ajudar dali para Investigando A única luta que a frente para que essas pessoas fos- denúncias ganhamos e levamos sem soltas e os exilados voltassem, ele poderia contribuir com o senti- O movimento pela anistia tam- Das lutas que participei, a da do da vida do Brasil. A partir daí, bém passou a receber (e investigar) Anistia foi a mais bonita, a mais todo dia ele ligava para saber de denúncias de desaparecidos, de tor- importante e a única de que a bur- cada preso que conheceu, em São turadores. Começamos a montar guesia não se apoderou. Tivemos a Paulo e outros presídios do Brasil. listas. O primeiro caso foi o de Ma- Assembléia Nacional Constituinte, Até para perguntar do resfriado do ria Augusta Tomás e Márcio Beck que deu em Centrão. Tivemos as Chiquinho, preso que o impressio- Machado. Marido e mulher, se re- eleições diretas, que acabaram em nou porque cultivava orquídeas e fugiaram em uma fazenda em Rio Collor. Tivemos o impeachment, tinha passarinhos na cela, onde já Verde, Goiás. A polícia foi lá, ma- que deu em Itamar e Fernando estava havia dez anos. tou-os e enterrou os corpos na fa- Henrique. Dessas lutas todas, a Para o governo era um absur- zenda. Foi o primeiro caso que o Anistia foi a que nós conseguimos do: fizemos nosso projeto de CBA investigou com sucesso. Na ganhar e levar. Usufruimos a vitó- Anistia ampla, geral e irrestrita, e volta de Rio Verde para Goiânia, ria. As pessoas foram soltas, volta- o senador que estava lá para de- uma senhora me deu um envelope. ram, se candidataram. Muitos mili- fender o projeto do governo de- Era um conjunto de 18 fotos da re- tantes importantes do movimento, fendia o nosso. Quando foi votada pressão à Guerrilha do Araguaia, como Perseu Abramo, foram para a lei de Anistia, quase 50% da ba- em que os corpos eram jogados de a fundação do PT. No projeto par- se do governo votou em nosso pára-quedas, dentro de sacos. Ti- cial, vitorioso, os torturadores fo- projeto. Venceu a Anistia parcial, nha foto inclusive de cadáveres no ram anistiados por antecipação. mas o movimento tinha tanta for- chão. A partir daí, nós abrimos o Nem tinham sido condenados. O ça que eles não conseguiam segu- processo da Guerrilha do Araguaia, projeto Brasil Nunca Mais (que le- rar as pessoas nos presídios, que que até hoje tramita na Justiça. vantou nomes e histórico das pri- foram abertos. Quem estava fora Depois resolvemos direcionar. sões, torturas e desaparecimentos) do projeto inicial, teve o livramen- Fomos a Perus. Sabíamos que mui- listou os torturadores e funcionou to condicional facilitado. Para ou- tos mortos eram enterrados como como sanção moral. Há poucos tros, anistiavam uma parte da pe- desconhecidos. Foi um trabalho bo- meses, o FHC nomeou um diretor na e mandavam o preso embora. nito. A Suzana Lisboa e o Ivan Sei- da Polícia Federal. Mas ele estava E as pessoas começaram a voltar xas (da Comissão de Familiares de na lista. Teve que sair. RA

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