Cadernos de Estudos Africanos

9/10 | 2006 Memórias Coloniais

Pedro Aires Oliveira e Cláudia Castelo (dir.)

Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/cea/1194 DOI: 10.4000/cea.1194 ISSN: 2182-7400

Editora Centro de Estudos Internacionais

Refêrencia eletrónica Pedro Aires Oliveira e Cláudia Castelo (dir.), Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006, « Memórias Coloniais » [Online], posto online no dia 01 junho 2006, consultado o 02 maio 2019. URL : http:// journals.openedition.org/cea/1194 ; DOI:10.4000/cea.1194

Este documento foi criado de forma automática no dia 2 Maio 2019.

O trabalho Cadernos de Estudos Africanos está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional. 1

No início de 2006, no seio do Africa-Europe Group of Interdisciplinary Studies (AEGIS), que agrega vários centros de investigação europeus de estudos africanos, surge a ideia de promover uma maior ligação e cooperação entre as perspectivas revistas, nomeadamente através da publicação de números temáticos afins, que permitam uma leitura comparada de fenómenos homólogos. A revista Politique Africaine (do Centre d'etude d'Afrique noire - Institut d'estudes politiques de Bordeaux) sugere o questionamento comum sobre as reconfigurações das memórias do passado colonial, aproveitando o contexto de intenso debate público sobre aquela problemática na sociedade francesa. Com o presente dossiê dos Cadernos de Estudos Africanos procuramos responder ao desafio lançado às revistas científicas europeias de estudos africanos, contribuindo para o alargamento e aprofundamento do debate, numa perspectiva cruzada. Abordamos o mesmo objecto genérico - a reconfiguração das memórias coloniais na Europa e na África - e partilhamos os mesmos pressupostos teóricos, isto é, o reconhecimento do carácter social e dinâmico da memória. Queremos reflectir sobre as representações coloniais sob o ângulo das suas permanências na actualidade pós-colonial. Mais do que as imagens do passado colonial e a recordação dessas imagens, interessam-nos os modos e as lógicas de reconfiguração dessas imagens no presente, em função de considerações do nosso tempo, de preocupações contemporâneas de grupos sociais concretos. Assumimos a noção de memória colectiva como construção e processo social (consciencializada, verbalizada ou incorporada) e não como mera recordação individual do vivido.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 2

SUMÁRIO

Nota Editorial

Apresentação: Memórias coloniais: práticas políticas e culturais entre a Europa e a África Cláudia Castelo

Artigos

Traumas do Império. História, Memória e Identidade Nacional Valentim Alexandre

D’une mémoire coloniale à une mémoire du colonial. La reconversion chaotique du Musée Royal de l’Afrique Centrale, ancien musée du Congo Belge Aurélie Roger

«I escaped in a coffin». Remembering Angolan Forced Labor from the 1940s Jeremy Ball

«In , we didn't have apartheid», Identity constructions on inter-ethnic relations during the «Third » Susana Pereira Bastos

A nostalgia colonial como técnica de best-selling literário Giorgio de Marchis

O futebol Português em Moçambique como memória social Nuno Domingos

Uma visão colonial do racismo Rui M. Pereira

Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC António E. Duarte Silva

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 3

Nota Editorial

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 4

Apresentação: Memórias coloniais: práticas políticas e culturais entre a Europa e a África

Cláudia Castelo

Agradeço ao Pedro Aires Oliveira as críticas e sugestões que fez a este texto.

1 No início de 2006, no seio do Africa-Europe Group of Interdisciplinary Studies (AEGIS), que agrega vários centros de investigação europeus de estudos africanos, surge a ideia de promover uma maior ligação e cooperação entre as respectivas revistas, nomeadamente através da publicação de números temáticos afins, que permitam uma leitura comparada de fenómenos homólogos. A revista Politique Africaine (do Centre d'etude d'Afrique noire — Institut d'etudes politiques de Bordeaux) sugere o questionamento comum sobre as reconfigurações das memórias do passado colonial, aproveitando o contexto de intenso debate público sobre aquela problemática na sociedade francesa1. Aquela revista tinha já publicado duas contribuições iniciais para o tema (BOILLEY, 2005; CHRÉSTIEN, 2005). Um dos textos examinava os debates que se desenrolaram em França a propósito do artigo 4.º da lei de 23 de Fevereiro de 2005, que estabelece que os programas escolares devem reconhecer o papel positivo da presença francesa além-mar, nomeadamente na África do Norte. O outro analisava o passado colonial através da lente do «dever histórico», com alusões ao debate belga sobre a colonização e as suas manifestações recentes (por exemplo, a exposição do Museu de Tervuren, «Mémoires du Congo au temps colonial», 2005).

2 Em Junho de 2006, a Politique Africaine publica o dossiê «Passés coloniaux recomposés: mémoires grises en Europe et en Afrique», coordenado por Christine Deslaurier e Aurélie Roger, com o objectivo de apreender as implicações políticas dos fenómenos de rememoração relativos à situação colonial na Europa e em África. Trata-se de focar não apenas os usos políticos da memória, do ponto de vista instrumental, mas também as visões parcelares concorrentes no interior das comunidades nacionais e, para além

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 5

destas, à escala internacional. Inclui artigos sobre as «memórias cinzentas»2 do passado colonial em diferentes contextos pós coloniais europeus e africanos.

3 Romain Bertrand procura compreender o regresso da controvérsia pública em França sobre o «facto colonial», à luz das lutas ideológicas entre dois campos distintos: as associações de repatriados da Argélia e de defesa da memória da OAS (Organisation armée secrete), capazes de influenciar a agenda parlamentar devido ao seu peso eleitoral; e uma nova geração de associações de defesa dos imigrantes que questionam a «integração republicana» dos jovens filhos da imigração. Segundo o autor, a mediatização dos debates sobre a «lei do véu» e, concomitantemente, sobre o Islão em França, ampliados pela dramatização da ameaça terrorista após o 11 de Setembro de 2001, potenciou uma renovada polémica sobre a pedagogia da «integração» e o fracasso da República francesa no ultramar.

4 Partindo da conexão estreita entre nacionalismo alemão e aventura colonial, Reinhart Kössler discute a amnésia da Alemanha relativamente ao seu breve mas brutal passado de dominação em África. Essa amnésia, que remonta ao fim da II Guerra Mundial, foi posta em causa em 2004, pela celebração do centenário do extermínio de 80% dos Herero da Namíbia pelo exército imperial alemão. As desculpas semi-oficiais apresentadas pela ministra alemã do Desenvolvimento e da Cooperação Económica colocaram na ordem do dia o reconhecimento da responsabilidade e a questão da reparação. No mundo académico e na opinião pública, a discussão sobre a utilização do termo «genocídio» para designar os acontecimentos na Namíbia, enquadrou-se num debate mais geral sobre o significado do colonialismo germânico na história da Alemanha no século XX, muito marcada pela ideia da singularidade do Holocausto.

5 Do outro lado do espelho, Vicent Bertout disseca as estratégias políticas de manipulação das memórias do genocídio dos Herero na Namíbia, evocado desde 1924 por organizações culturais locais. A conjuntura da campanha eleitoral de 2004 e do centenário do massacre colocou na ordem do dia questões como a expropriação de terras comunitárias pelo Estado colonial ou as reparações do genocídio reclamadas à Alemanha e, surpreendentemente, permitiu uma aproximação entre o governo da Namíbia e os representantes dos Herero. A instrumentalização da memória não se destinou a obter compensações financeiras, como o governo alemão parece julgar, mas faz parte integrante do jogo político daquele país africano.

6 Marie-Emmanuelle Pommerolle analisa o intenso debate suscitado pela publicação de dois estudos históricos sobre a repressão da insurreição Mau Mau, no Quénia3. Os dois estudos coincidem na revelação da extrema violência cometida pelo Estado colonial britânico nos últimos anos de presença no Quénia. Neste país africano, a recuperação da memória da violência sobre os guerrilheiros Mau Mau, serviu para legitimar a coligação que derrotou o partido único em 2002 e as exigências de «justiça» e de «verdade» a propósito dos crimes pós-coloniais. No mundo anglo-saxónico, o levantamento das memórias deste período mal conhecido da história do Império britânico veio sobretudo contestar o suposto pacifismo colonial e a imagem civilizadora do Reino Unido. Ora, a classe política britânica recusa ou prefere deliberadamente ignorar essas memórias. E na academia surgiram críticas à abordagem subjectiva e militante de Caroline Elkins e ao uso intensivo que fez dos testemunhos orais dos Kikuyu4.

7 Achille Mbembe começa por reflectir sobre as funções do terror, a «parte maldita» da colonização, e sobre as funções fantasmagóricas, a «parte secreta» do potentado colonial. Argumenta que o dispositivo fantasmagórico assenta em dois eixos: o cálculo das

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 6

necessidades e os fluxos do desejo; entre esses eixos encontra-se a mercadoria. A parte final do artigo inclui uma análise sobre as atitudes dos nacionalismos africanos pós- coloniais em relação às estátuas, aos monumentos e à arquitectura coloniais que ocupavam o espaço público e as ambiguidades em tomo da questão do «nome próprio» dos países, das cidades, das ruas e praças. O autor conclui que o trabalho de memória sobre o passado colonial passa pelo reconhecimento da verdade do que se passou e não pela destruição da sua materialidade e considera que a África do Sul foi o país africano onde essa reflexão foi mais profícua.

8 O dossiê da revista Politique Africaine termina com a transcrição e a análise por Kalala Ngalamulele do falso discurso do rei Leopoldo II da Bélgica aos primeiros missionários do Congo, que circula por vários países africanos há dezenas de anos (nomeadamente através da Internet) e tem legitimado uma releitura do confronto entre missionários cristãos e colonizadores, no momento em que as Igrejas recrutam em nome da sua «africanidade».

Portugal e África: memórias coloniais ou luso- tropicais?

9 Com o presente dossiê dos Cadernos de Estudos Africanos procuramos responder ao desafio lançado às revistas científicas europeias de estudos africanos, contribuindo para o alargamento e aprofundamento do debate, numa perspectiva cruzada5. Abordamos o mesmo objecto genérico — a reconfiguração das memórias coloniais na Europa e na África — e partilhamos os mesmos pressupostos teóricos, isto é, o reconhecimento do carácter social e dinâmico da memória6. Queremos reflectir sobre as representações coloniais sob o ângulo das suas permanências na actualidade pós colonial. Mais do que as imagens do passado colonial e a recordação dessas imagens, interessam-nos os modos e as lógicas de reconfiguração dessas imagens no presente, em função de considerações do nosso tempo, de preocupações contemporâneas de grupos sociais concretos. Assumimos a noção de memória colectiva como construção e processo social (consciencializada, verbalizada ou incorporada7) e não como mera recordação individual do vivido.

10 O objectivo deste dossiê é reunir contribuições que clarifiquem, de forma original e plural, a reconstrução da memória do passado colonial na Europa e em África, dando particular destaque a espaços físicos e humanos que integraram o chamado terceiro império colonial português. Os artigos agora apresentados foram elaborados por investigadores de diferentes áreas disciplinares (História, Estudos Africanos, Antropologia, Estudos Literários), recorrendo a metodologias distintas e partindo de pontos de observação geográfica e tematicamente diferenciados: , Bélgica, Angola e Moçambique; a identidade nacional, a política museológica, o trabalho forçado, as relações inter-raciais e inter-étnicas, a criação literária e a cultura popular (o futebol).

11 As interrogações dos colegas da Politique Africaine serviram-nos de guia e ajudaram-nos a formular novas questões. Se em França houve quem diagnosticasse uma «fractura colonial» (BANCEL, BLANCHARD & LEMAIRE, 2006), em Portugal tal não será evidente. No campo político e na opinião pública portuguesa continua a registar-se uma escassez de debate, mormente nos meios de comunicação social, sobre o passado colonial. A colonização não é um assunto discutido na sociedade. Regra geral, faz-se uma avaliação positiva da expansão, dos «Descobrimentos» e do colonialismo português (do Oriente a África, passando pelo Brasil), para a qual concorre uma certa retórica luso-tropicalista

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 7

muito vulgarizada8, a que não escapa a generalidade do espectro político. As ideias de uma especial capacidade dos portugueses para lidar com outros povos e de uma relação particularmente afectiva com a África e o Brasil, bem como a interiorização da norma anti-racista9, contribuem para a ausência de um questionamento crítico sobre o colonialismo.

12 De facto, o Estado português tem preferido evocar o período colonial mais exaltante: a expansão, os «Descobrimentos» e o Império Português do Oriente. Em 1986 criou a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP), com o propósito de assinalar oficialmente o ciclo de «descobertas» marítimas portuguesas. Nesse quadro comemorativo, que programaticamente se deveria extinguir em 2000 (passados 500 anos sobre a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil), não havia lugar para revisitar o colonialismo português tardio. Embora a CNCDP tenha patrocinado algumas (escassas) iniciativas que extravasavam o período áureo dos «Descobrimentos» portugueses, fê-lo sem qualquer visão integrada e apenas respondendo a solicitações pontuais de investigadores10. Dentro da mesma lógica de enaltecimento dos feitos marítimos dos portugueses, em 1998, organizou-se em Lisboa a última exposição universal do século, sob o signo dos Oceanos, e coincidindo o quinto centenário da chegada de Vasco da Gama à Índia.

13 Depois do 25 de Abril de 1974, da descolonização e da instauração da democracia em Portugal, a política externa portuguesa orientou-se para a Europa, sem esquecer o Atlântico. As relações políticas, diplomáticas, económicas e culturais de Portugal com as suas antigas colónias (do continente africano e com o Brasil) são sempre remíveis a uma suposta irmandade lusófona, assente numa herança histórica e num idioma comum (onde ressoa, entre outras, a ideia de uma comunidade de sentimento e de cultura, teorizada por FREYRE, 1951 [1940]: 39). Nessa óptica, em 17 de Julho de 1996, foi criada a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que congrega Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e, desde 20 de Maio de 2002, Timor-Leste.

14 No espaço público português, a memória do «fim do império» é que, de tempos a tempos, irrompe como um problema mal resolvido. O partido mais à direita no parlamento português (CDS-PP) foi porta-voz de algumas reivindicações dos antigos combatentes da guerra colonial e dos chamados «espoliados do Ultramar». Além disso, entre uma parte significativa da população portuguesa, sobretudo a que regressou à antiga metrópole após a independência das ex-colónias, faz-se um juízo muito negativo sobre o modo como se procedeu à descolonização, não obstante a rápida e bem sucedida integração de meio milhão de retornados na sociedade portuguesa (sobre este tópico vd. PIRES, 1987). Com o descaso da esquerda11, a direita portuguesa conseguiu impedir que se fizesse um exame crítico do colonialismo tardio, centrando as atenções na descolonização, apresentada como desastrosa, e culpabilizando o Partido Socialista pelos aspectos mais dramáticos do retorno dos portugueses que viviam nas antigas colónias. O êxodo forçado da esmagadora maioria da população branca, as guerras civis em Angola e Moçambique, a falta de democraticidade do regime angolano, os inúmeros golpes militares na Guiné-Bissau são, directa ou indirectamente, assacados à forma como Portugal descolonizou.

15 Em Portugal não existe uma política oficial de memória relativa ao chamado terceiro império português: não foi promulgada legislação específica sobre a preservação da memória do colonialismo ou sobre o seu tratamento nos programas escolares; não estão em preparação museus, centros de pesquisa ou outros espaços de evocação e reflexão relativos à nossa presença colonial em África12. No entanto, desde a década de 1980, por

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 8

iniciativa de associações de antigos combatentes da guerra colonial, foram erguidos, um pouco por todo o país, monumentos aos combatentes e aos mortos do ultramar. Também se lhes prestou homenagem na toponímia. Por iniciativa da Liga dos Combatentes, em 1994, foi inaugurado pelo Presidente da República Mário Soares um monumento aos combatentes do ultramar, junto à Torre de Belém (Lisboa). Nesse monumento, em 2000, o Presidente da República Jorge Sampaio descerrou as lápides com os nomes dos cerca de 9.000 portugueses mortos na guerra. Entretanto, em 1998, fora criado o Museu da Guerra Colonial, na delegação de Famalicão da Associação de Deficientes das Forças Armadas, mediante um protocolo de colaboração com a Câmara Municipal e o Externato Infante D. Henrique, de Ruílhe (Braga). Em 2001, esse Museu organizou a exposição itinerante «Guerra colonial — uma história por contar», que percorreu diversos municípios do país. A lei n.º 9/2002, muito ansiada pelos ex-combatentes, reconhece o seu esforço de guerra para efeitos de aposentação e reforma.

16 Os chamados «retornados» (portugueses e seus descendentes oriundos das ex-colónias ou que vieram viver para Portugal após a descolonização) e os antigos combatentes encontram-se entre os grupos que, de uma forma mais sistemática, promovem a construção e reelaboração das memórias do passado colonial. Às vezes, em contexto clínico ou de ajuda especializada, como é o caso dos veteranos vítimas da desordem de stress pós-traumático13. Porém, apenas os segundos quiseram e conseguiram colocar algumas das suas reivindicações na agenda política. Os primeiros parecem sobretudo apostados numa rememoração privada ou semi-pública dos aspectos positivos das suas vivências africanas no período colonial (o espaço, o clima, a paisagem, o exótico, a abundância, o nível de vida, o prestígio social, o poder, a infância e a juventude, as sociabilidades, o convívio multirracial, etc.), a que se associa uma condenação implícita da descolonização. Recordam as últimas décadas da colonização, de intenso desenvolvimento económico de Angola e Moçambique, de constituição de «sociedades multiraciais» progressivas no ultramar, lamentam (entre a mágoa e a revolta) a destruição dessas sociedades, a violência, a guerra e o drama do exílio...

17 De facto, pouco tempo depois do «regresso das caravelas», grupos de «retornados» (portugueses que viveram ou nasceram numa mesma localidade de Angola ou Moçambique, estudaram na mesma escola ou que trabalharam numa mesma empresa colonial) e de antigos intermediários do império (membros das elites cabo-verdiana, goesa ou timorense do período colonial) começaram a reunir-se anualmente (em almoços, convívios, piqueniques), numa lógica de cíclico «retorno» a um tempo/local de saudade. Nos últimos anos, verifica-se uma apetência crescente por tudo o que tem a ver com as antigas colónias portuguesas. Parece haver uma urgência de convocar essas memórias, mesmo da parte das gerações mais novas que já nasceram depois das independências. Paralelamente, temos assistido a um florescimento de memórias sobre África (que extravasam o tópico da guerra colonial) na imprensa, na produção editorial e audiovisual 14. No campo literário, a excelente recepção e o êxito comercial do romance Equador são, como assinala Giorgio de Marchis neste dossiê, um expressivo sinal da «urgência de reconciliação» da «Comunidade mnemónica portuguesa» com o seu passado colonial. A Internet já se afirmou como um espaço privilegiado e pulsante de encontro, partilha e apaziguamento, de repositório e de reconstrução de memórias coloniais15.

18 No campo das memórias colectivas e das emoções partilhadas pelos portugueses que viveram nas colónias, África é, invariavelmente, o paraíso perdido. A criação de lugares de memória (físicos, simbólicos ou virtuais), a multiplicação de recolhas de testemunhos, a

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 9

publicação de álbuns de fotografias e de relatos autobiográficos de antigos colonos não é apenas uma manifestação de nostalgia da felicidade pretérita e do império, tem também a ver com a inexorabilidade do tempo: os meios de memória são pereáveis (sobre os conceitos em itálico, vd. NORA, 1984: XVII-XLII); é agora ou nunca.

19 Nas ex-colónias portuguesas do continente africano, por seu turno, não parece haver uma forte tensão e/ou oposição às memórias veiculadas pela antiga potência colonial. Os governos dos países independentes não terão pejo de usar, em função de agendas próprias, o discurso da irmandade linguística, cultural e histórica. Acresce que em Angola e Moçambique, devido à guerra civil e à vigência de regimes de partido único após a independência, as memórias dos conflitos mais recentes, das dificuldades materiais e da insegurança ontológica sobrepõem-se às memórias do período tardo-colonial16. De forma perversa, e em aspectos concretos, como o desenvolvimento e o dinamismo da economia, a segurança física e material, as infra estruturas disponíveis, o acesso ao mercado, a comparação pode até «beneficiar» o balanço que é feito do domínio colonial17. Como mostra Jeremy Ball no presente dossiê, a recolha de testemunhos orais sobre vivências do quotidiano tem a virtualidade de perscrutar com mais pormenor os meandros desses processos de reconstrução da memória do colonialismo e revelar como são recordados alguns dos seus aspectos mais gravosos. No caso vertente, o trabalho forçado, mas também se poderiam levantar memórias sobre o esbulho de terras, as culturas obrigatórias, a discriminação de estatuto jurídico, os entraves no acesso à educação, ao emprego e à promoção social, as prepotências, as arbitrariedades e outras manifestações de racismo.

20 Sobre esta problemática, subsistem aliás muitos lugares-comuns que importa questionar. A ideia muito disseminada de uma especificidade — positiva — da colonização portuguesa, em comparação com as restantes colonizações europeias, sobretudo em oposição ao sistema do apartheid sul-africano, tem raízes antigas e uma credibilidade que poderá radicar no discurso de cientistas sociais relativamente insuspeitos, como Orlando Ribeiro e Jorge Dias. Sobre as perplexidades e contradições em que se envolve Jorge Dias na análise comparada da realidade do Planalto Maconde (Norte de Moçambique), do Tanganhica e da União Sul-Africana, no que se refere à discriminação e às relações raciais, fala-nos Rui M. Pereira no último texto deste dossiê. Perante testemunhos vivos da iniquidade difusa e arbitrária do colonialismo luso no Norte do Moçambique e da benignidade da «indirect rule» britânica no Tanganhica, é com um certo alívio que Jorge Dias assinala as «vantagens comparativas» do sistema colonial português relativamente ao racismo institucionalizado e explícito do vizinho sul-africano (cf. p. 140).

21 A suposta imunidade dos portugueses ao racismo ou aquilo que poderíamos denominar um racismo de baixa intensidade eivado de paternalismo, por contraposição a um modelo de racismo institucionalizado, o Apartheid sul-africano, é um argumento usado não apenas pelos ex-colonizadores, mas também por outros grupos étnicos do antigo império português. Mais à frente, Susana Pereira Bastos indica-nos que a reprodução de alguns mitos sobre a especificidade do colonialismo português entre hindus de origem indiana que viveram em Moçambique nas últimas décadas da administração colonial portuguesa pode servir estratégias identitárias de afirmação local e na diáspora portuguesa e britânica, face a outros grupos raciais e étnicos.

22 No meio académico português, até grosso modo ao 25 de Abril de 1974, privilegiou se o estudo do império português do Oriente e do segundo império — das plantações e minas do Brasil —, em detrimento do terceiro império português (1825-1975). A longevidade da

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 10

ditadura explica a debilidade de uma historiografia anticolonial e a abundância relativa de uma historiografia hagiográfica sobre o império português. Apenas nas últimas três décadas o colonialismo dos séculos XIX e XX se transformou em objecto de pesquisa para a historiografia portuguesa. Surgem estudos apostados em desfazer mitos cuja construção recua ao final de oitocentos e que foram reelaborados pelo nacionalismo imperial da I República e do . Também aparecem trabalhos académicos e de divulgação científica sobre as guerras coloniais.

23 Mais recentemente, o estudo do colonialismo tardio extravasou o campo da História, sendo apropriado por outras Ciências Sociais (como a Antropologia e a Sociologia) e pelos chamados estudos pós-coloniais. O colonialismo e o pós colonialismo entraram nos curricula universitários, seja nas disciplinas de graduação seja como tema de cursos de mestrado. Têm sido organizados colóquios, cursos livres, seminários e exposições sobre o período colonial, ainda que maior incidência nas guerras coloniais e nos movimentos de libertação. Apesar de continuarem a aparecer alguns textos que reificam a nostalgia do passado colonial, surgem cada vez mais trabalhos de investigação apostados em problematizar, comparar e contextualizar para iluminar processos de tensão e negociação, momentos de ruptura e longas persistências. É esse o papel da História: contrariar a tendência da memória para simplificar a compleidade do vivido, para reduzir as lembranças a essências, para exaltar aquilo que convém ao grupo que recorda e esquecer os aspectos mais negativos da sua acção.

24 Porém, como afirma Valentim Alexandre neste dossiê, as conclusões deste labor historiográfico «transitam dificilmente para a história geral de Portugal, e daí para o ensino-passos essenciais para o exerácio de qualquer influência na reformulação do discurso identitário nacional, tão necessária à adaptação do país a um sistema que se globaliza» (p. 41).

Contributo para uma leitura comparada

25 Uma leitura cruzada do dossiê «Mémoires grises» da Politique Africaine e do dossiê que agora se publica nos Cadernos de Estudos Africanos permite-nos constatar que a «nostalgia colonial», como nostalgia da grandeza pretérita do país (BLANCEL, BLANCHARD & LEMAIRE, 2006: 23), não é uma singularidade francesa ou portuguesa. O balanço globalmente positivo do passado colonial — enfatizando as vantagens que a «missão civilizadora» ou o encontro de culturas trouxeram aos colonizados — é comum a várias antigas metrópoles. O esquecimento institucionalizado sobre os aspectos mais brutais do colonialismo tardio (o trabalho forçado, as culturas obrigatórias, o esbulho de terras, a violência da administração colonial e a repressão dos movimentos independentistas, etc.) afectou a França, mas também a Alemanha, a Bélgica, a Grã-Bretanha e Portugal.

26 No caso português, os agentes da ruptura revolucionária do 25 de Abril de 1974 — os militares — foram, simultaneamente, os principais agentes da repressão colonial. Este facto conduziu a um silenciamento ou, pelo menos, a uma ocultação das circunstâncias em que ocorreram alguns dos episódios mais cruéis da guerra colonial. Os massacres de Moçambique (Wiryamu e Mocumbura, distrito de Tete, Dezembro de 1972) são um exemplo paradigmático dessa amnésia deliberada: apesar da denúncia do padre Adrian Hastings no jornal londrino Times (10 de Julho de 1973) e das conclusões mais moderadas do inquérito das Nações Unidas, depois da instauração da democracia nunca se procedeu

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 11

a uma investigação exaustiva do sucedido e houve até manobras de intimidação contra jornalistas que tentaram aprofundar o caso18. Do lado moçambicano não surgiram iniciativas reclamando uma reparação das vítimas, provavelmente porque a Frelimo não quis antagonizar os militares portugueses no período da transição para a independência19.

27 A enorme visibilidade do debate público em França nos últimos dois anos em torno desta problemática não tem comparação em nenhuma das outras antigas metrópoles europeias e não resulta de dinâmicas espontâneas. Fica a dever-se à grande capacidade de intervenção política das associações dos repatriados da Argélia (pieds-noir) e das emergentes associações de imigrantes. Assiste-se à convocação de memórias coloniais concorrentes em função de estratégias políticas e partidárias locais. Em Portugal, os «retomados» das antigas colónias cedo desistiram de se constituir como um lobby, optando antes por se integrar na sociedade portuguesa. Por sua vez, as associações de imigrantes não têm peso suficiente para influenciar a agenda política.

28 A persistência em museus das antigas metrópoles de narrativas produzidas em contexto colonial (como no caso do antigo Museu do Congo belga, de Bruxelas, até 2005, tratado neste dossiê por Aurélie Roger) denota que algumas antigas potências coloniais europeias têm revelado maior dificuldade em adequar os seus quadros sociais da memória ao contexto pós-colonial. As narrativas veiculadas pelos novos museus criados ou em preparação em várias cidades da França correspondem à vontade de valorizar a presença colonial francesa, em resposta a exigências de associações de repatriados da Argélia ( BANCEL, BLANCHARD & LEMAIRE, 2006: 18). Por seu turno, a inauguração em 2006 da Cidade nacional de história da imigração, nas instalações do antigo Museu das Colónias (Paris), inviabiliza a reutilização daquele lugar emblemático como um lugar da memória da colonização. Em Portugal, o Ministério da Cultura anunciou que tem em preparação um Museu do Mar e da Língua Portuguesa para o edifício do antigo Museu de Arte Popular, em Belém (que por sua vez funcionava num pavilhão da Exposição do Mundo Português, de 1940), cujo conceito associa a língua às navegações portuguesas20. Pouco se conhece do projecto, mas nada faz supor que inclua uma abordagem crítica e plural do que foi o colonialismo português em África. O Reino Unido parece ser o país que mais rapidamente e com maior eficácia reactualizou a sua política museológica em relação ao império, adaptando-a ao seu discurso oficial, o multiculturalismo (veja-se o caso do British Empire and Commonwealth Museum, em Bristol).

29 Nos países que estiveram sob o domínio colonial, as narrativas identitárias nacionais tiveram de fazer uso da memória da dominação colonial e da luta contra o colonialismo. As relações que estabeleceram com o passado colonial não foram unívocas nem lineares. Hoje, em África, as memórias coloniais não servem apenas para revelar episódios de opressão, violência e sofrimento que tiveram lugar no passado, legitimar os movimentos independentistas e afirmar a nação; são utilizadas, de forma deliberada, em jogos políticos locais; e estão impregnadas em aspectos da cultura política e da cultura popular, que adquiriram larga autonomia em relação ao legado colonial, como nos revela Nuno Domingos a propósito do futebol em Moçambique.

30 Na historiografia europeia é recente o desenvolvimento da investigação científica sobre a história dos impérios, numa perspectiva que vise ultrapassar o duplo simplismo do anticolonialismo e da hagiografia, convocando e confrontando diferentes fontes (incluindo as fontes orais, particularmente relevantes no trabalho de campo em África), revisitando acontecimentos pouco estudados, questionando representações concorrenciais. Tal reflexão está mais avançada no Reino Unido e em França do que em

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 12

Portugal21. Nas ex-colónias o panorama historiográfico também não obedece a um nível uniforme de desenvolvimento. Porém, até há pouco tempo, na maioria dos países africanos, a história do colonialismo esteve ao serviço da criação de uma narrativa nacional.

31 À margem da produção institucional de memória, em África e na Europa, emergem na cena pública e no quotidiano outras formas de reprodução de memória sobre o passado colonial que tanto podem operar por contaminação, emulação ou oposição, e têm obrigado a algumas reconfigurações da memória oficial do colonialismo. Para as antigas metrópoles coloniais continua a ser conveniente esquecer os aspectos brutais e desumanos da dominação colonial e exaltar os seus benefícios materiais e «civilizacionais»; para as ex-colónias é importante lembrar a exploração colonial de matérias-primas e mão-de-obra e esquecer algumas ambiguidades da luta de libertação (animosidades étnicas, lutas intestinas pelo poder, dependência relativamente a patronos externos, etc.) e alguns comprometimentos estratégicos neo-coloniais. Mas no interior destes dois grandes pólos de produção das memórias coloniais, convivem memórias contraditórias e concorrentes entre si, pois a lembrança e o olvido são processos em recomposição permanente, em função das estratégias e das agendas de cada grupo social, situado historicamente.

BIBLIOGRAFIA

Achille MBEMBE (2006), «La colonie : son petit secret et sa part maudite», Politique Africaine, n.º 102, Junho, Paris, Éditions Karthala, pp. 101-127.

Christine DFSLAURIER & Aurélie ROGER (2006), «Mémoires grises. Pratiques politiques du passé colonial entre Europe et Afrique», Politique Africaine, n.º 102, Junho, Paris, Éditions Karthala, pp. 5-27.

Cláudia CASTELO (1998), «O modo português de estar no mundo»: o luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1961-1933), Porto, Edições Afrontamento.

Frederick COORER & Ann Laura SROLER (1989), «lntroduction. Tensions of empire: colonial control and visions of rule», American Ethnologist, vol. 16, n.º 4, pp. 609-621.

Gilberto FREYRE (1951 [1940]), O mundo que o português criou, Lisboa, Livros do Brasil.

Jean-Pierre CHRÉTIEN (2005), «Le passé colonial: le devoir d'Histoire», Politique Africaine, n.º 98, Junho, Paris, Éditions Karthala, pp. 141-148.

José Pimentel TEIXEIRA (2003), «Ma-Tuga no mato: imagens sobre os portugueses em discursos rurais moçambicanos», in Lusotopie, Paris, Éditions Karthala, pp. 91-112.

Kalala NGALAMULELE (2006), «Document : Léopold II et les rnissionaires. Les circulations contemporaines d'un faux», Politique Africaine, n.º 102, Junho, Paris, Éditions Karthala, pp. 128-131.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 13

Marie-Emmanuelle POMMEROLLE (2006), «Une mémoire vive : débats historiques et judiciaires sur la violence coloniale au Kenya», Politique Africaine, n.º 102, Junho, Paris, Éditions Karthala, pp. 85-100.

Maurice HALBWACHS (1994 [1925]), Les cadres sociaux de la mémoire, Paris, Albin Michel.

Nicolas BANCEL, Pascal BLANCHARD & Sandrine LEMAIRE (2006), «Introduction. La fracture coloniale : une crise française», in Pascal Blanchard, Nicolas Bancel & Sandrine Lemaire, La fracture coloniale: La societé française au prisme de l'heritage colonial, Paris, La Découverte, pp. 9-31.

Paul CONNERIDN (1999), Como as sociedades recordam, Oeiras, Celta.

Pedro Aires OLIVEIRA (2006), A Grã-Bretanha e a questão colonial portuguesa: (1945-1975), Lisboa, FCSH- UNL. Tese de doutoramento.

Pierre BOILLEY (2005), «Loi du 23 Février 2005, colonisation, indigènes, victimisations. Évocations binaires, répresentations primaires», Politique Africaine, n.º 98, Junho, Paris, Éditions Karthala, pp. 131-140.

Pierre NORA, ed. (1984), Les lieux de mémoire, vol. 1: La République, Paris, Gallimard.

Reinhart KÖSSLER (2006), «La fin d'une amnésie? L'Allemagne et son passé colonial depuis 2004», Politique Africaine, n.º 102, Junho, Paris, Éditions Karthala, pp. 50-66.

Romain BERTRAND (2006), «La mise en cause(s) du "fait colonial". Retour sur une controverse publique», Politique Africaine, n.º 102, Junho, Paris, Éditions Karthala, pp. 28-49.

Rui Pena PIRES (1987), Os retornados: um estudo sociográfico, Lisboa, Cadernos do Inst. para o Desenvolvimento.

Vicent BEKIDUR (2006), «Mémoires et stratégies politiques: les commémorations culturelles herero en Narnibie», Politique Africaine, n.º 102, Junho, Paris, Éditions Karthala, pp. 67-84.

NOTAS

1. Desde finais dos anos 1990, o debate sobre o passado colonial da França vinha irrompendo no espaço público daquela antiga metrópole, mas terá sido a promulgação da lei de 23 de Fevereiro de 2005 que mais contribuiu para a visibilidade e para o impacto da discussão sobre as representações colectivas das memórias coloniais. Desta vez, mobilizaram-se simultaneamente grupos muito diversos: associações que representam actores ligados à história colonial (repatriados, descendentes de antigos colonizados, antigos combatentes da guerra da Algéria, etc.); o Estado, através da edificação de «lugares de memória» e de disposições legislativas que estabelecem a «memória oficial»; o campo intelectual e o universitário, mediante a publicação de numerosos ensaios e trabalhos científicos; e os meios de comunicação social que dão conta com frequência de questões contemporâneas ligadas, directa ou indirectamente, ao período colonial (vd. BANCEL, BALNCHARD & LAMALRE, 2006: 9-10). 2. Os coordenadores do dossiê não quiseram cunhar um conceito, antes sugerir uma metáfora capaz de potenciar a reflexão. Segundo eles, ela permite, antes de mais, insistir no carácter fundamentalmente compósito dos fenómenos de rememoração (cf. DESLAURIER & ROGER, 2006: 8). 3. Caroline ELKINS (2005), Britain's Gulag: The Brutal End of Empire in Kenya, Londres, Jonathan Cape; e David ANDERSON (2005), Histories of the Hanged. The Dirty war in Kenya and the End of Empire, Nova Iorque, Londres, W.W. Norton.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 14

4. O livro de Caroline Elkins também foi recenseado em jornais e revistas anglo-saxónicas (vd. http://www.metacritic.com/books/authors/elkinscaroline/imperialreckoning#critics). Na London Review of Books, à recensão favorável de Bernard Porter (http://www.lrb.co.uk/v27/n05/ port01_.html) seguiu-se um intenso debate (http://www.lrb.co.uklv27lnll/lletters.html; http:// www.lrb.co.uk/v27/n14/letters.html). 5. O mesmo se preparam para fazer as revistas Afriche e Orienti (Bolonha) e Afrika spectrum (Hamburgo). 6. A memória colectiva opera dentro de quadros sociais (comuns aos indivíduos de um mesmo grupo) e é reconstruída em função dos seus quadros sociais actuais, isto é, da acção do presente sobre o passado (vd. Halbwachs, 1994 [1925]). 7. Paul Connerton chama a atenção para a importância da memória como faculdade cultural de transmissão de práticas corporais nas e como tradições. Defende que as imagens do passado e o conhecimento recordado do passado são convocados e sustentados por performances rituais e que essa memória é corporal. A memória social incorporada é um aspecto essencial da memória social, embora seja um aspecto muito descurado, em favor das transmissões escritas ou inscritas de memórias (vd. CONNERTON, 1999). 8. Em traços gerais, o luso-tropicalismo (doutrina desenvolvida pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, 1900-1987) postula uma capacidade especial dos portugueses para se unirem aos trópicos por uma ligação de amor e não de interesse, e aí constituírem sociedades multirraciais marcadas pela mestiçagem e pela interpenetração de culturas. Essa predisposição resultava do seu passado étnico e cultural, indefinido desde sempre entre a Europa e a África, e sujeito a um longo contacto com os árabes. O Estado Novo soube apropriar-se das máximas luso-tropicalistas para se defender das pressões da comunidade internacional, sobretudo no quadro da ONU, mas também em campanhas de propaganda interna. Se o Brasil era o exemplo maior do génio coloni zador português, em Angola e Moçambique preparavam-se «novos Brasis». Ora esta doutrina foi de grande utilidade para o fortalecimento da ideia de «unidade da nação pluricontinental portuguesa» e para o programa de fixação de metropolitanos no ultramar. Internamente, uma versão nacionalista do luso-tropicalismo foi entrando no imaginário nacional, contribuindo para o fortalecimento da imagem em que os portugueses melhor se revêem: um povo plástico, fraterno e tolerante (vd. CASTELO, 1998: 96-101). 9. Só muito recentemente um pequeno partido de extrema-direita de fora do espectro parlamentar, o Partido Nacional Renovador (PNR), ousou expressar ideias explicitamente xenófobas, usando para o efeito um cartaz colocado numa das principais praças de Lisboa, instando os imigrantes a voltarem para os seus países de ori gem («Façam boa viagem», consta no slogan). 10. Refira-se, a título de exemplo, Orlando RIBEIRO (1999), Goa 1956: Relatório ao Governo, Lisboa, CNCDP, publicado por iniciativa de Suzanne Daveau, com prefácio de Fernando Rosas. 11. Durante o Estado Novo, até ao início da guerra colonial, houve uma certa sintonia entre o regime e a «Oposição democrática» em torno do nacionalismo português, da integridade da «nação pluricontinental portugue sa» e da vocação histórica do país. Só os anarquistas do jornal A Batalha se demarcaram desde os anos 20 do nacionalismo colonial. Mesmo o PCP teve uma posição ambígua ao longo do tempo e só no seu V Congresso (1957) defendeu explicitamente o direito dos povos das colónias portuguesas à autodeterminação. Sobre a posição do PCP relativamente à questão colonial. vd. Judith MANYA (2004). Le Parti Communiste Portugais et la question coloniale, 1921-1974, Bordeaux, Université Montesquieu. Tese de doutoramento em Ciência Política. 12. Em Lisboa, por pressão de antigos sócios da Casa dos Estudantes do Império, que funcionou para muitos jovens das colónias como espaço de consciencialização política anticolonial, e por onde passaram muitos dos líderes dos movimentos de libertação africana, a Câmara Municipal de

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 15

Lisboa colocou uma placa na calçada em frente à antiga sede da associação (no cruzamento da Avenida Duque d'Ávila com a Rua Dona Estefânia). Não se conhecem outras mobilizações da sociedade civil em defesa da preservação da memória do passado colonial. Refira-se, no entanto, que o movimento cívico Não apaguem a Memória!, criado em 2005, pretende contribuir para a promoção de uma memória colectiva e pública do que foi a luta contra o regime fascista e colo nialista do Estado Novo, pela liberdade e pela democracia em Portugal, empenhando-se na salvaguarda de lugares de memória. Apresentou uma petição na Assembleia da República, que entretanto foi alvo de um rela tório do deputado Marques Júnior, e aguarda votação. 13. Sobre a reinvenção da história das guerras coloniais e a procura de uma solução terapêutica, moral e política eficaz, através do vocabulário psiquiátrico, vd. Luís QUINTAIS (2000), As guerras coloniais portuguesas e a inven ção da História, Lisboa, Imprensa Ciências Sociais. 14. Um exemplo recente foi o programa Sociedade Civil (RTP2) de 24 de Abril de 2007, dedicado ao tema «Descolonização: o meu coração ficou em África». «Na véspera do 25 de Abril» o Sociedade Civil quis «avaliar a presença dos portugueses no continente africano, que cessou com a descolonização. Muitos trouxeram vivências diferentes, laços fortes, reminiscências de outras culturas, e uma ligação aos PALOP que vai além da saudade. Depois destes anos todos, o que resta de África no coração dos portugueses?» (http://sociedade-civil.blogspot.com/2007/04/descolonizacao-o-meu-coracao- ficou-em-africa.htm). Outros exemplos dos últimos anos: o álbum África 30 anos depois, publicado pela revista Visão, em 2005; álbuns de postais e de fotografias das principais cidades de Angola e Moçambique; romances, memórias e biografias que decorrem em África no período colonial; a telenovela A Jóia de África, cuja trama se passava em Moçambique nos anos 50 (TVI, 2003); documentários televi sivos sobre antigos colonos e o retorno dos nacionais após a descolonização. 15. Na rede global há uma miríade de sites, fóruns de discussão e blogues sobre as ex-colónias portuguesas no continente africano (http://www.sanzalangola.com, http://www.diamang.com, http://www.moçambique.blogs.sapo.pt, http://www.macua.blogs.com/moçambique_para_todos, http://www.ma-schamba.blogspot.com, http://www.retornados.net, http:// www.postaisultramar.com, etc.). Refira-se que o site SanzalAngola cumpriu em Dezembro de 2006 quatro anos de existência e conta com nove mil inscritos de vários cantos do mundo. Ali se têm reencontrado amigos e familiares que tiveram relação com Angola no período colonial. Além de um fórum, o site tem uma galeria de fotografias, postais e estampas, informação sobre a história, a geografia, a etnografia e a literatura de Angola e aloja textos literários e memorialísticos. 16. Sobre o caso moçambicano, vd. Gabriel Mithá RIBEIRO (2000), As representações sociais dos moçambicanos: do passado colonial à democratização: esboço de uma cultura política, Lisboa, Instituto da Cooperação Portuguesa. Trata se de um dos raros trabalhos sobre as memórias coloniais e pós- coloniais no contexto do terceiro império por tuguês. 17. Em contextos rurais moçambicanos, entre 1994 e 2002, José Pimentel Teixeira deparou-se com discursos que valorizam a tecnologia económica dos portugueses no período colonial, assumindo «particular relevo a memória da importância da rede de comercialização rural» (TEIXEIRA, 2003: 105). Na última fase do colonialismo (que coincidiu com um grande aumento do investimento capitalista), nas cantinas maioritariamente detidas por comerciantes portugueses, a população rural podia vender os seus excedentes agrícolas e comprar uma variedade de bens de consumo e de prestígio. A existência da rede comercial fomentava o aumento da produção e a circulação relativa de moeda na economia rural. O cantineiro português é retrospectivamente associado a uma certa prosperidade e «recordado pelo nome e características pessoais, o físico, a família, sua irascibilidade ou placidez, talentos de caçador, alcoolismo, grau de honestidade, etc., ou seja como persona gem integrado na ordem social» (TEIXEIRA, 2003: 107). A denúncia de violentas relações de exploração dirigem se ao português condutor distante do sistema relacional (a Administração) e não tanto ao português cantineiro, integrável nas relações sociais locais, «potencial inimigo pelas suas injustas acções comerciais e cumplicidades com o Estado, mas também aliado pelas razões (ou seja, pelas práticas) inversas» (TEIXEIRA, 2003: 112).

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 16

18. Refira-se que o jornalista José Amaro, organizador do livro Massacres na guerra colonial: Tete, um exemplo, publicado em Lisboa, pela Ulmeiro, em 1976, foi alvo de um processo por abuso de liberdade de imprensa, instaurado pelo Estado-Maior do Exército. Cf. reportagem de Felícia Cabrita alusiva aos 20 anos dos massacre de Moçambique, , 5 de Dezembro de 1992. 19. Sobre o inquérito da Comissão das Nações Unidas aos massacres de Moçambique e as pressões internacionais para mitigar o impacto das suas audições a seguir à queda do regime de Caetano, cf. a tese de doutoramento de Pedro Aires Oliveira, indicada na bibliografia final. 20. A notícia foi divulgada na imprensa, nomeadamente por Alexandra CARITA, «Museu da língua nasce em Belém», Expresso, n.º 1772, 14.10.2006. 21. Só no final dos anos 80, um conjunto de historiadores e antropólogos começa a procurar novas fronteiras e temas no estudo do colonialismo, que rompessem com a dicotomia redutora entre colonizadores e coloniza dos (COOPER & STOLER, 1989). Pela primeira vez, a proposta visava colocar metrópole e colónia num mesmo campo analítico (mesmo se internamente diferenciado) e dirigir a pesquisa para as múltiplas tensões no inte rior do império, nomeadamente entre os colonos e as populações indígenas e os colonos e o poder colonial.

ÍNDICE

Keywords: colonialism, Social Memory, Europe, Africa Palavras-chave: Colonialismo, Memória social, Europa, África

AUTOR

CLÁUDIA CASTELO CEA/ISCTE

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 17

Artigos

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 18

Traumas do Império. História, Memória e Identidade Nacional The traumas of Empire. History, memory and National Identity

Valentim Alexandre

Introdução

1 É corrente, na historiografia, distinguir três sistemas coloniais, no longo percurso da expansão ultramarina portuguesa: o império do Oriente, o império do Brasil e o império africano. No essencial, a distinção é justa: para além de se situarem em épocas diversas, cada um desses sistemas tem a sua lógica própria, nomeadamente no campo económico, e diferentes influências na evolução da vida da metrópole. Mas há também entre eles elementos de continuidade, não apenas pela existência de territórios comuns, como também porque vão contribuindo sucessivamente para a formação de uma tradição imperial.

2 No presente texto, é este o tópico que nos interessa. Tomaremos como pontos de referência alguns dos principais traumas que marcaram a história colonial portuguesa — desde Alcácer-Quibir ao Estado Novo e à descolonização final, passando pelo desmembramento do império luso-brasileiro e pelo ultimatum britânico de 1890. O nosso objectivo último — aqui apenas esboçado — será o de considerar o peso desses traumas na memória colectiva, na construção da narrativa identitária da nação portuguesa.

O Desastre de Alcácer-Quibir

3 O desastre de Alcácer-Quibir, a 4 de Agosto de 1578, teve repercussões profundas em Portugal. No terreno da batalha, ficavam, entre mortos e cativos, membros de quase todas as famílias nobres do reino, para além de cerca de dez mil soldados portugueses, recrutados por todo o país. Não surpreende, por isso, que os primeiros rumores sobre a derrota, em meados do mês, e, a 21, a sua notícia certa, tenham suscitado em Portugal um

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 19

movimento de «pânico colectivo»1, de que nos dá conta, entre outros, o testemunho muito sugestivo de Ieronimo de Franchi de Connestagio2: «A cidade de Lisboa, como todas as restantes, estava em grande alvoroço, por se saber que tinha chegado correio com novas que tinham perturbado os Governadores, sem se saber contudo do que se tratava: ver juntar todos os dias o Conselho, reter as cartas [...] deixava todo o reino suspenso de algum mau sucesso. Não havia ninguém em Lisboa que não tivesse interesse nessa guerra: os que não tinham lá o filho tinham o pai, ou o marido, ou o irmão; os negociantes e os artesãos que lá não tinham parentes, e muitos deles tinham-nos efectivamente, tinham lá pelo menos o seu dinheiro, que, em parte para ganhar, em parte por não ter podido evitá-lo, haviam emprestado aos nobres e soldados. Razão por que a tristeza era de facto geral; todos pareciam adivinhar terem perdido as pessoas e os bens que tinham em África; e, ainda que não estivessem já seguros disso, ouviam-se no entanto queixas súbitas. [...] Esta última dor universal, que, agravada pela incerteza da notícia, não fazia senão crescer, explodiu em choros e queixas. Não é possível dizer até que ponto tudo estava triste, tudo cheio de gemidos, como todos estavam carregados de luto. Era coisa lamentável ouvir as mulheres, que, as mais nobres em suas casas, de onde provinha o ruído, e as outras nas ruas, erguiam até aos céus choros e gritos, redobrando neles de cada vez que a notícia, por qualquer novo aviso, era confirmada».

4 Na sua condição de legado a latere, o cardeal D. Henrique ordenou que «em todas as cidades e vilas do reino se fizessem três procissões gerais, para rogar a Deus que aplacasse a sua ira [...]. Muitas damas da nobreza reuniam-se nas igrejas; outras andavam em grupo pelas ruas, seguidas pelas suas criadas e escravas [...]»3. Não se sabia ao certo quem tinha morrido ou ficado cativo, em breve circulando longas listas, manuscritas ou impressas, dos cavaleiros desaparecidos. A incerteza incitava, não apenas às práticas religiosas (procissões e romarias), mas também às de magia e feitiçaria — ao recurso a bruxas e adivinhadores supostamente capazes de conhecer a sorte dos desaparecidos no desastre do Norte de África4.

5 Segundo Diogo Ramada Curto, «testemunhos específicos e denúncias gerais dão a entender que são esses agentes, entre os quais se destaca uma população feminina, e tais práticas que começaram por sustentar uma crença sebastianista. No seu interior, dois aspectos vão a par: por um lado, a crença segundo a qual o rei D. Sebastião estava vivo, por outro, as expectativas alimentadas sobretudo pelas mulheres relativamente aos seus familiares mais próximos, os soldados desaparecidos»5. «Das bruxas às romarias, às práticas mágicas e religiosas organizam um primeiro universo de crenças no reino desaparecido, mas que se julga vivo. Neste rei morto-vivo, projectam-se as expectativas de familiares relativamente aos soldados considerados nas mesmas situações. Deste modo uma primeira entrada nas crenças sebastianistas permitiu isolar uma leitura da cultura política popular, fundada nos mesmos termos da religiosi dade popular»6.

6 No entanto, ainda segundo Ramada Curto, seria preciso «interrogar as certezas quanto ao carácter substantivo destas categorias e atender, sobretudo, à "polifonia de culturas" que estas mesmas categorias escondem»7. Questionável seria também o paradigma mais corrente na interpretação do sebastianismo, a partir dos episódios dos falsos D. Sebastião ocorridos de 1584 a 1603, que neles vê a prova de uma «determinada visão do mundo, um tipo de cultura ou uma mentalidade». Vários temas se configurariam, no quadro desse paradigma. Um deles diz respeito à «caracterização social do sebastianismo», dando à «gente comum», ao «povo», um «lugar de destaque», embora se refiram também outros grupos (ordens religiosas, cristãos- novos). O sebastianismo apresentar-se-ia «não só como uma crença, protagonizada pelas camadas populares, mas ainda como uma forma de resistência», que conheceria, «por sua vez,

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 20

diferentes tonalidades, desde a evasão frente às realidades, com base na efabulação, à oposição activa contra as autoridades do Estado». Um outro tema corresponderia «à própria disponibilidade para crer, protagonizada pelos portugueses e, mais concretamente, pelas camadas populares». Nesta perspectiva, a «disponibilidade para acreditar no fabuloso, patenteada pelo sebastianismo, tem sido utilizada para definir parcialmente o sentimento nacional [...]»8.

7 Pondo em causa este paradigma, Ramada Curto sugere um outro, segundo o qual «existem diferentes modalidades de crença em cada um dos episódios» dos falsos reis, que «não se esgotam, nem tão pouco permitem inferir a existência de uma relação directa» entre estes últimos «e a crença em que D. Sebastião se encontrava vivo. [...] Mais do que através da crença na vida de D. Sebastião, o seu reconhecimento, circunscrito a uma região, terá de ser analisado em função de outras práticas e representações, tais como as que envolvem o carisma de certos ermitãs [...] as atitudes frente à morte associadas à crença nos fantasmas ou nos diabos que andam à solta, o poder fundado num pacto celebrado com o demónio, e, ainda, as festas, mais concretamente, de S. João e dos Imperadores do Espírito Santo».

8 Tais práticas e representações deveriam ser consideradas como «expressão de interesses sociais cruzados", e não como "indicadores de uma cultura popular»9.

9 A mudança de paradigma traz também consigo «Uma reflexão diferente sobre as práticas políticas de resistência» — sublinhando, por um lado, o «carácter localizado» dos episódios dos falsos reis, supondo a existência de pequenos grupos, cujas relações são atravessadas por formas diferentes de conflitualidade, com destaque para as mais atomizadas; e, por outro lado, a «própria fragilidade do poder ou dos poderes, frente aos quais se organiza a resistência»10.

10 Por fim, estaria igualmente em causa a relação correntemente estabelecida entre sebastianismo e «sentimento nacional» — não apenas em consequência das análises anteriores, mas também pela introdução de uma «reflexão comparativa», a dois níveis: em primeiro lugar, constatando a existência de falsos reis noutras regiões da Europa, o que « conduz a uma relativização da especificidade nacional desse objecto»; em segundo lugar, tomando como «padrão outras séries de práticas e de representações» (as «grandes concentrações de grupos, tais como as procissões, as paradas e os bandos de famélicos, geralmente em êxodo rural»; e «as séries de práticas políticas e de criação intelectual, em particular nos géneros épico e histórico, que organizam os sistemas de classificação dos actos e das representações através dos quais a nação se identifica») — o que «permitiria "ultrapassar as leituras que tendem a pensar o quadro dos sentimentos nacionais, sem atender às diferentes modalidades de crença, e, sobretudo, à sua actualização conflitual»11.

11 No âmbito do nosso texto, é este último ponto, relativo ao «sentimento nacional», que mais de perto nos interessa — chamando a atenção para o anacronismo das interpretações do sebastianismo como expressão da «alma nacional» ou «feição inseparável da alma portuguesa »12, dominantes em todo o século XX13. Na perspectiva que adoptamos, o sebastianismo é relevante, não como a emanação de uma suposta essência de Portugal, ou sequer como uma característica específica e marcante, mas como um discurso trabalhado, ao longo dos tempos, pelas elites intelectuais e políticas que foram elaborando as narrativas sobre a identidade nacional.

12 No imediato, durante a dominação filipina, os textos de raiz sebastianista permitem pensar o desastre de Alcácer-Quibir — porventura o primeiro que afectou todo o reino, como tal, tendendo a fundi-lo na mesma dor — como um simples parêntesis na história do reino, pela reformulação da lenda do milagre de Ourique: segundo as versões da época14, a

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 21

D. Afonso Henriques fora feita a promessa divina, não apenas da vitória na batalha, mas também de sucessivos triunfos dos seus descendentes, com uma interrupção à décima sexta geração (a que corresponderia o reinado de D. Sebastião), após a qual o reino recuperaria os favores celestes15. Assim se retomava o tema do carácter providencial do reino português, incumbido de uma missão divina, que terá na teoria do Vº Império, por altura da Restauração, o seu ponto culminante, nomeadamente na obra do padre António Vieira16.

13 A narrativa sobre a identidade de Portugal começava a tomar a sua forma bipolar, fundada na tensão entre a queda nos abismos e a salvação mirífica.

A Descolonização do Brasil

14 Durante longo tempo — e, segundo cremos, ainda hoje — a versão dominante da história de Portugal desdramatizou a descolonização do Brasil, que teria acedido à independência com a anuência da antiga metrópole, por uma via natural e quase consensual. A ênfase é toda posta, quanto ao primeiro quartel de Oitocentos, nas invasões francesas, suposta origem dos males de que o reino padecerá nas décadas seguintes, pelas destruições que teriam causado.

15 Noutra perspectiva, a importância das invasões estará no facto de ter desencadeado o processo que conduziu ao desmembramento do império, iniciado com a retirada da Corte para o Rio de Janeiro, em finais de Novembro de 1807 — à qual se seguiu, dois meses depois, a abertura dos portos do Brasil, pondo fim ao exclusivo mercantil de Portugal na colónia americana. O tratado de 1810 com a Inglaterra veio impedir qualquer veleidade de retomo à situação anterior. Os efeitos da nova situação sobre a economia portuguesa foram profundos: a abolição do exclusivo levou, em duas décadas, à perda quase total (cerca de 90%) da função de entreposto assegurada pela antiga metrópole e à quebra drástica da exportação de produtos industriais do reino para o Brasil17.

16 Por outro lado, a permanência da Corte no Rio, mesmo depois de feita a paz na Europa, e a elevação do Brasil a reino, em 1815, tiveram como consequência a relegação de Portugal para a periferia do império, privando-o do «poder de definir as prioridades e linhas de rumo de todo o sistema» luso-brasileiro18.

17 Logo após a ida do rei para o continente americano, dera-se um último e fugaz surto do sebastianismo (sustentado ainda nas profecias de Bandarra e nas do Preto do Japão), cujos adeptos José Agostinho de Macedo verberou como «maus portugueses », por incitarem a uma atitude passiva perante o invasor. Tudo não passou de vagas especulações, de escassa repercussão; e, em 1813, foi internado como louco um indivíduo que vagueava pelas ruas de Lisboa, dizendo-se enviado de D. Sebastião: chamavam-lhe «O último sebastianista»19.

18 Mas o mal-estar provocado pela situação subordinada de Portugal exprimiu-se também por outras formas e por outras vias: nos jornais publicados no exílio, nomeadamente em Londres, eram frequentes as referências à ausência do soberano, que retirava aos Portugueses a «natural protecção do rei», fazendo deles «órfãos». «Berço da monarquia», o « nobilíssimo reino de Portugal» ficava «posto no humilde, injurioso e incómodo estado de colónia»20 . Este sentimento de perda foi ainda reforçado, na segunda meta de da década de 1810-1820, por aquilo a que noutro lugar chamámos a «opção americana» da Corte do Rio, ou seja, «uma política centrada na defesa dos interesses especifica mente brasileiros» (em particular, a expansão territorial na zona platina e a preservação do tráfico de escravos a

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 22

sul do equador). Correram mesmo rumores de que D. João VI estava disposto a ceder o reino português à Espanha, em troca de território no continente americano21.

19 A conjuntura de crise então vivida, muito profunda, nos planos político, económico e social, trouxe à tona o tema da decadência de Portugal, num debate que pouco eco teve na historiografia, decerto por se desenrolar na imprensa, menos visível e mais difícil de pesquisar do que as publicações sob a forma de livro. O tópico não era novo: tivera um largo curso durante os séculos XVII e XVIII22; mas, a exemplo do que acontecera noutros momentos conturbados, ganha agora um novo fôlego. Como era de regra no tratamento do tema, os textos deste período contrapõem uma idade de ouro da vida nacional, com o seu ponto culminante nas Descobertas, a uma segunda fase, que dão geralmente como iniciada no reinado de D. João III (ou, mais raramente, já um pouco antes), prolongando-se pelos séculos seguintes, até princípios de Oitocentos, apesar da remissão parcial ocorrida — na maioria das versões — no período pombalino. Na generalidade desses mesmos textos, reaparecem-nos as explicações clássicas que iam buscar a origem dessa decadência às consequências das próprias «conquistas» — à «Corrupção dos antigos costumes» provocada pelo afluxo das riquezas do ultramar, ao despovoamento do reino inerente aos Descobrimentos e à crise da agricultura que dele teria resultado. Eram os factores mais geralmente indicados para as dificuldades do país, já desde o século XVI; e eram também as causas invocadas pelos autores gregos e latinos para o declínio das próprias sociedades 23.

20 Mas os ideólogos do liberalismo nascente — Rocha Loureiro, Liberato Freire de Carvalho e Solano Constâncio, entre outros — introduzem nas teorias da decadência portuguesa um elemento novo, na denúncia que fazem do absolutismo como causa última do declínio de Portugal. Nestes casos, tais teorias funcionam como arma ideológica, fundamentando o ataque às instituições vigentes. Deles está ausente qualquer ideia de incapacidade da nação, congénita ou adquirida: o país não decaía por que lhe faltasse o vigor, mas por má direcção e conformação institucional — tal é a mensagem que se procura transmitir, abrindo o caminho a uma ideologia de «regeneração » nacional, fundada na exigência de mutações mais ou menos profundas na política e na economia portuguesas (reformando o império, como se pretende numa primeira fase, até 1816; ou entrando em ruptura com o Brasil, se tal se mostrasse necessário para a defesa dos interesses especificamente portugueses)24. Neste tipo de discurso, o pólo positivo predomina largamente sobre o negativo.

21 A revolução de Agosto de 1820 exprime, no plano político, esta necessidade de afirmação nacional em que os ideólogos do liberalismo vinham insistindo. O ponto de união das diversas correntes do vintismo está na vontade de pôr termo à subordinação de Portugal ao Brasil (e, acessoriamente, de eliminar a influência dos militares britânicos no governo do reino, em particular do general Beresford). Mais incerta era a via a trilhar para consumar essa ruptura — havendo quem preconizasse a mudança de dinastia (passando a Coroa para a casa de Cadaval) e quem desejasse a união ibérica. Como se sabe, o caminho seguido foi outro, procurando conservar-se a unidade do império, recentrando-o de novo, tanto no campo político como no económico, na antiga metrópole. O regresso do rei, em Abril-Junho de 1821, parecia marcar o triunfo desta política. Nos meses seguintes, as Cortes vão empenhar-se na reformulação do sistema luso-brasileiro, a partir de uma perspectiva de integração nacional — a de uma nação una, abrangendo todos os territórios da Coroa, nos vários continentes, de que o reino de Portugal seria a matriz e o centro25. O movimento autonomista no Brasil depressa pôs em causa estes propósitos,

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 23

culminando com a declaração de independência, a 7 de Setembro de 1822. Só três anos depois — após várias tentativas para inverter o curso dos acontecimentos, incluindo pelo uso da força militar26 —, essa independência foi reconhecida por Portugal, através do tratado luso-brasileiro de 29 de Agosto de 1825 (negociado por mediação britânica), recebido no reino com «luto e tristeza», um «desgosto [...] tão geral e tamanho que se não pode explicar»27.

22 Esta evolução suscitou um intenso debate sobre «os destinos futuros de Portugal»28. Dos textos que versaram este tema na imprensa na época, ressalta um sentimento generalizado: o da fragilidade e mesmo da inviabilidade do país, uma vez despojado do Brasil e entregue a si próprio. Tal sentimento aparece claramente expresso em Freire de Carvalho — segundo o qual a existência de Portugal como «país independente» seria « inadmissível, porque, ainda quando pudesse realizar essa independência, seria ele sempre nominal; pois que por sua composição e forças, comparativamente pequenas, seria constantemente um boneco ou em mãos de um protector, ou de um rival»29. Como solução, lembrava-se por vezes a união ibérica, mas vendo nela «um último acto de apurada desesperação», nas palavras do mesmo Freire de Carvalho30.

23 Desde muito cedo, ainda com a questão brasileira em aberto, outra hipótese emergiu, em muitos textos, como via a seguir para assegurar a sobrevivência da nação portuguesa: a de compensar em África a perda do território americano, construindo um novo império nas «possessões fertilíssimas» do continente negro31.

24 Esta crença em que as possessões que a Portugal restavam, sobretudo as de África, encerravam grandes riquezas, pela fertilidade do seu solo e pelos tesouros das suas minas, terá um largo curso nas décadas seguintes, durante o constitucionalismo monárquico, sendo um dos pilares ideológicos do novo projecto imperial. «Milhares de vezes se tem dito que o nosso Ultramar é de muitíssima importância» — escrevia-se no jornal Nacional de 17 de Novembro de 1838 — «que deles [...] nos podem vir grandes vantagens, que é preciso ter por ele a maior consideração; tudo isto tem sido tão repetido, que já não parece senão um lugar-comum: entretanto é necessário não deixar de o dizer continuadamente ».

25 Essa era, no entanto, uma ideia mítica. Na realidade, após a independência do Brasil, não ficaram sob o domínio português mais do que alguns pequenos territórios dispersos pelo mundo, restos dos antigos sistemas imperiais, que, em começos do segundo quartel de Oitocentos, mantinham muito escassas relações com a metrópole. A própria soberania que sobre eles Portugal detinha pouco mais era do que nominal (e só muito lentamente se afirmará, ao longo do século), estando o seu governo entregue de facto aos estratos dominantes locais. As colónias de África, que não passavam então de pequenos enclaves, continuavam sobretudo ligadas economicamente às Américas pelo tráfico negreiro; e as do Oriente tendiam a inserir-se nas redes mercantis do Índico. Por outro lado, valorizar as possessões supunha um vasto esforço de investimento, que a metrópole, carecida de capitais para o seu próprio desenvolvimento, não tinha de toda a evidência capacidade para fazer. Os projectos imperiais — nomeadamente, os de Sá da Bandeira — foram sempre gravemente cerceados pela falta de recursos e pela resistência das Cortes a conceder verbas para o ultramar, para além da satisfação das despesas correntes. Por seu turno, os capitais privados só em muito raras ocasiões se dispuseram a tomar o caminho das possessões: era mais seguro investir no reino, sobretudo em títulos da dívida pública, do que apostar em empresas de lucro incerto e a longo prazo.

26 Em geral, as elites portuguesas consideravam a conservação das colónias, e de cada uma das suas parcelas, como um imperativo histórico: elas seriam, não apenas o testemunho

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 24

das grandezas passadas do país, mas um elemento essencial da imagem que este fazia de si próprio e do seu destino como nação evangelizadora e civilizadora, desde o tempo das Descobertas.

O Ultimatum inglês de 1890

27 A 11 de Janeiro de 1890, uma nota inglesa dirigida ao Governo de Lisboa cominava o Estado português a retirar todas as suas forças então presentes no Chire (Zambézia), no país dos Macololos e no território dos Mashona, sob pena de ruptura das relações diplomáticas. Tratava-se, antes de mais, de forçar a retirada da expedição que, sob o comando de Serpa Pinto, subia o rio Chire, em direcção ao lago Niassa. Mas a nota inglesa visava igualmente um objectivo mais vasto — o de paralisar a acção de várias outras expedições portuguesas ao interior do continente, determinadas em 1888 pelo governo de Lisboa num plano secreto (mas conhecido pelo de Londres através de um espião). Deste modo, a Inglaterra punha fim ao projecto, afirmado em Portugal sobretudo após a Conferência de Berlim (1884-1885), de ocupar um vasto domínio na África Central, unindo por uma faixa contínua os territórios de Angola e de Moçambique, como ficara expresso no «mapa cor-de-rosa», anexo ao acordo luso-francês de 1886 e publicado no ano seguinte.

28 Sob a ameaça do corte de relações diplomáticas e de eventuais represálias militares britânicas, o governo português cedeu nessa mesma noite, aceitando remeter ordens para a retirada das expedições, embora reservasse o direito de recorrer a uma arbitragem internacional.

29 O ultimatum provocou em Portugal um enorme sobressalto, que se prolongou por vários meses, sacudindo a população urbana do país. Logo no dia 12 de Janeiro, a agitação tomou conta das ruas da baixa de Lisboa, percorridas por uma manifestação espontânea em que foram hostilizados os políticos e os jornais governamentais e vitoriados os da oposição regeneradora e os republicanos, por entre vivas à pátria e ao exército e morras à Inglaterra. Outras se fizeram nas semanas seguintes, em Lisboa — onde se cobriu de crepes a estátua de Camões —, Porto e Coimbra, nestas duas últimas cidades por impulso das academias estudantis. Reprimidas pelo governo progressista (que sucedera ao regenerador, caído a 12 de Janeiro), as manifestações ganharam um novo fôlego após a assinatura do tratado luso-britânico de 20 de Agosto de 1890. Atacado por todos os quadrantes, frouxamente defendido pelo partido no poder, o acordo não obteve a ratificação, uma vez apresentado ao parlamento, a 16 de Setembro, de novo com grande agitação nas ruas de Lisboa.

30 Mas o movimento decaiu nos meses seguintes. A 31 de Janeiro, a tentativa revolucionária promovida por alguns sectores do partido republicano, rapidamente abortada, foi já contra a corrente. Finalmente, um novo tratado, assinado a 11 de Junho de 1891, não suscitou reacções significativas, apesar de não melhorar em nada de essencial a posição portuguesa, em relação ao concluído — e rejeitado — no ano anterior.

31 Mau grado este fim inglório, parece evidente que, nos meses aqui brevemente referidos, um «sentimento vivo e forte» atravessara a sociedade portuguesa, tomando embora por vezes uma «expressão despropositada» — para utilizar as palavras de Eça de Queiroz, em carta por essa altura dirigida a Oliveira Martins. Apesar de falhada, ou talvez por isso mesmo, a vaga nacionalista de 1890 teve um forte impacte na vida política e ideológica do

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 25

país, deixando traços profundos na sua memória colectiva, tal como foi construída e transmitida pela geração que a viveu32.

32 Um dos elementos nucleares dessa memória está na ideia de que Portugal foi em 1890 espoliado de uma grande parte das suas possessões africanas pela sua velha aliada, a Inglaterra. Na perspectiva mais corrente entre as elites nacionais, o domínio português deveria estender-se a grande parte da África Central (abrangendo, para além do baixo Congo, toda a zona que fica entre os paralelos que, na costa, tocavam os pontos extremos de Angola e de Moçambique, a sul e a norte), que lhe caberia por direitos históricos, provenientes das Descobertas e das viagens realizadas no interior do continente africano, nos séculos XVII e XVIII: nos contactos com os «povos bárbaros», o que deveria prevalecer seria «o título de aquisição, do descobrimento e primeira ocupação, de conquista, de cedência, de compra ou troca, de doação [...], títulos reconhecidos das aquisições coloniais »33. Era uma concepção patrimonialista, que dispensava a posse efectiva, bem como qualquer manifestação do propósito de desenvolver os territórios e de integrar as respectivas populações.

33 Mais importante ainda, nessa memória colectiva, do que a suposta amputação do império era o sentimento de humilhação resultante das imposições britânicas e da incapacidade para lhes resistir. Na visão dominante (como escrevemos noutro texto), «a nação portuguesa não era apenas espoliada dos seus territórios africanos: via-lhe ser também negada a qualidade de nação europeia de pleno direito, capaz de "civilizar" os povos "atrasados" — o que atingia o próprio cerne de uma identidade construída em torno das Descobertas, como momento fundador da missão de Portugal no mundo. Não estavam por isso apenas em causa as colónias: era também o estatuto do país no concerto das nações que se decidia (um ponto a que eram sensíveis mesmo os articulistas mais cépticos sobre o futuro do império-caso por exemplo de Rodrigues de Freitas)»34.

34 Ao sentimento de humilhação juntava-se o de vitimização, que, vindo já de longe (como a ideia de decadência, retomada e trabalhada pela geração de 70), ganhara corpo desde meados de década precedente, alimentado pela sensação de abandono resultante do isolamento de Portugal na Conferência de Berlim e pela consternação provocada pela imagem extremamente negativa propagada no estrangeiro sobre o sistema colonial luso, em violento contraste com a ideia que o país fazia de si próprio e da sua missão civilizadora. «O que víamos nós na imprensa por toda a parte?!» — perguntava-se Carlos Bocage (apenas um exemplo, entre muitos outros que poderíamos citar) — «A calúnia constante, as acusações mais loucas, as mais imerecidas; quem as lesse não via em Portugal senão uma horda de selvagens, e nas nossas colónias um bando de malfeitores que se lançavam sobre o comércio de todo o mundo procurando roubá-lo e arrancar-lhe violentamente tudo quanto podia; a mais profunda inépcia na nossa administração, um sistema bárbaro e impossível de alfândegas; os nossos descobridores nada haviam feito; a nossa influência em África, desconhecida; eis o que eles diziam, eis o que dizia Stanley [explorador ao serviço do rei Leopoldo da Bélgica], fazendo-o ao mesmo tempo espalhar em todos os jornais do mundo»35.

35 Por sua vez, os sentimentos de humilhação e de vitimização contribuíam para a emergência, no último quartel de Oitocentos, de formas radicais de nacionalismo imperial, que ganharam progressivamente uma base popular. São estas pulsões naci‐ onalistas, acumuladas desde finais da década de 1870, por força de pressões e de « desconsiderações» externas, verdadeiras ou supostas, que explodem por altura do ultimatum.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 26

36 O sobressalto que então sacudiu o país contribuiu decisivamente para a sacralização do império na opinião pública portuguesa, que perdurará nas décadas seguintes (com raras vozes discordantes); e deu o impulso necessário para o esforço de ocupação efectiva dos territórios coloniais, que então teve o seu início, só ficando concluído, no essencial, em finais da 1.º Guerra Mundial. No imediato, a vitória conseguida em 1895 sobre Gungunhana, soberano dos «Vátuas» (temidos pela sua tradição guerreira), no sul de Moçambique, serviu de bálsamo à ferida nacísica provocada pelo ultimatum: num ambiente de efervescência patriótica, o rei vencido foi passeado pelas ruas de Lisboa36; e as tropas expedicionárias foram recebidas em triunfo pelas suas cidades e vilas de origem.

37 Uma vez mais, a crise encontrava a sua solução, ao menos aparente, na reafirmação do destino imperial da nação portuguesa.

O Estado Novo e a Resistência à Descolonização

38 Contrariamente à opinião que se impôs na época e se enraizou — até hoje — na memória colectiva, o ultimatum de 1890 não espoliou Portugal de um imenso território, obrigando-o a retirar-se de regiões sobre que teria exercido uma soberania incontestável. Na sequência do tratado luso-britânico de 11 de Junho de 1891 e das demarcações feitas na sua sequência, ficaram sob o domínio português extensas áreas do continente africano, nomeadamente as colónias de Angola e de Moçambique, com fronteiras internacionalmente reconhecidas, muito para além dos pequenos enclaves até então ocupados. Tratava-se, não de um desastre similar ao ocorrido com a Espanha em 1898, mas da consolidação de um novo império (sendo por isso improcedentes as tentativas por vezes feitas para aproximar as duas trajectórias ibéricas, neste período e sobre esta questão).

39 Formalmente consolidado, o sistema colonial português sofria de uma vulnerabilidade estrutural — a sua dependência de uma metrópole pobre, sem recursos financeiros e sem poder político no contexto internacional. Tradicionalmente, o apoio proporcionado pela aliança inglesa supria essa vulnerabilidade, desde o século XVII. A partir de finais de Oitocentos, a situação era outra, e mais difícil: por um lado, por que se alargara o fosso entre as economias mais avançadas e a de Portugal, que não acompanhara o desenvolvimento da Revolução Industrial, contando-se entre as mais atrasadas da Europa; por outro lado, porque para a Inglaterra, em começos do século XX, o interesse na aliança foi diminuindo progressivamente, na mesma medida em que melhoravam as relações entre Londres e Madrid. Para mais, as negociações anglo-alemãs de 1898 e de 1912-1913 — ambas secretas, mas de que sempre algo filtrava para as outras chancelarias e mesmo para a opinião pública —, visando a partilha do império luso, faziam crescer os sentimentos de insegurança e de vitimização em Portugal.

40 A conjuntura nascida da Grande Guerra reforçou ainda o carácter anacrónico que marca o império português em África, desde a sua formação. Na Sociedade das Nações, criada no decurso da Conferência de Paz de 1919, foi ganhando peso a ideia de que a colonização deveria ter como objectivos prioritários o benefício dos povos autóctones e o desenvolvimento dos respectivos territórios, em prol de toda a comunidade internacional. Aplicáveis directamente apenas às regiões sob mandato (antigas colónias das potências vencidas, entregues à tutela dos países mandatários), estes princípios eram potencialmente invocáveis em relação às colónias em geral. Tornava-se cada vez mais

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 27

claro que o simples direito de conquista — para não falar já no de descoberta — não bastaria doravante para legitimar o domínio colonial.

41 Tomando consciência desta nova situação, o Estado português fez um esforço de modernização do império, nomeadamente em Angola e em Moçambique, com a criação, em 1921, da figura dos Altos Comissários, providos de vastos poderes. Mas tal esforço fracassou rapidamente, por várias razões, entre elas avultando, mais uma vez, a falta de meios financeiros necessários a uma empresa de tal envergadura. No essencial, mantiveram-se as formas arcaicas de exploração, baseadas no trabalho forçado, próximas da escravatura, de longa tradição, e por isso mesmo difíceis de erradicar. A falência desta política fez renascer em Portugal a inquietação sobre o futuro colonial do país, renovando-se os temores de uma partilha do império pelas grandes potências. A vinda a lume, em 1925, do relatório do sociólogo americano Edward Ross, no qual se denunciavam os procedimentos das autoridades angolanas e moçambicanas em relação aos «indígenas», acreditou-se em Lisboa numa vasta conspiração internacional para esbulhar o país da sua «herança sagrada», expressão da sua missão no mundo. De tudo isto resultou uma crise colonial, que foi um dos contributos decisivos da queda da 1.º República, em 192637.

42 Com a Ditadura Militar e o Estado Novo, passa-se oficialmente do discurso de incapacidade e de vitimização para um discurso eufórico, de reafirmação enfática do direito da «nação Portuguesa» de «possuir fora do continente europeu [...], por um imperativo categórico da história, pela sua acção ultramarina em descobertas e conquistas, e pela conjugação e harmonia dos esforços civilizadores das raças, o património marítimo, territorial, político e espiritual abrangido na esfera do seu domínio ou influência» — nas palavras de Salazar, que mais tarde referirá a «potencialidade colonial dos Portugueses, não improvisada em tempos recentes, mas radicada pelos séculos na alma da Nação», entre as «características dominantes do nosso nacionalismo»38. Esta distinção entre o império português, vindo do fundo dos tempos, e os das outras potências europeias, resultado acidental da conjuntura internacional de finais de Oitocentos, terá um largo futuro na argumentação do Estado Novo. Do mesmo modo, salientava-se uma suposta aptidão especial do colono português — «exemplo de audácia fria, de desprezo pelo perigo, de indiferença pelo sofrimento, de sobriedade, de persistência no trabalho, de amor à terra» — e a sua capacidade única para lidar com os « indígenas», caracterizada por «uma infinita tolerância e piedade pelo que lhe é inferior na gente do sertão», acompanhadas pelo «desejo de a elevar, aproveitando as suas aptidões e abrindo a sua inteligência, sentimentos e actividade [...]»39. Partindo-se da ideia, tida então geralmente corno incontestável, da superioridade da civilização europeia e, em muitos casos, da própria raça branca, acreditava-se na possibilidade de desenvolver e integrar parte das populações autóctones, colocadas sob tutela — um processo lento que, no entender do ministro Armindo Monteiro, principal arauto da «mística» do império, ocuparia várias gerações e dura ria séculos40.

43 Sobre esta base ideológica, o Estado Novo desencadeou nos anos trinta uma vasta campanha tendente à criação de urna mentalidade imperial em todo o povo português, quer através de realizações com impacte na opinião pública (conferências de Governadores coloniais, Semanas Coloniais, publicações diversas, exposições, culminando tudo na visita do Presidente da República aos territórios de África em 1938 e na Exposição do Mundo Português de 1940) quer por intermédio do sistema educativo, posto ao serviço da causa colonial em grau até então inigualado41.

44 Após a 2.ª Guerra Mundial, o império português parecia começar a cumprir o destino que assim lhe fora antecipado. É então que a economia colonial, beneficiando do aumento dos

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 28

preços das matérias-primas nos mercados internacionais, conhece uma fase de crescimento significativo, que tem como exemplo mais relevante o boom do café em Angola; é então também — e em grande parte em sua consequência — que se dá pela primeira vez um fluxo importante de emigração da metrópole para os territórios do ultramar, criando núcleos consistentes de população branca em Angola e em Moçambique.

45 Na sua evolução económica, o império reflecte a que se verifica nesta fase na África negra em geral, embora com variantes e intensidades diversas, de zona para zona. No entanto, do ponto de vista político, o sistema colonial português é, mais do que nunca, um anacronismo, numa época em que, sobretudo nos casos francês e inglês, se procede a urna mutação de fundo nos métodos de exploração e nas formas de justificação do domínio imperial — com ênfase, não apenas no desenvolvimento económico e social, mas também na integração política das populações dominadas, que passava «pela africanização dos quadros administrativos e pela criação ou reformulação de instituições representativas de maioria negra, total ou parcialmente eleitos, com poderes executivos ou legislativos (e não simplesmente consultivos), através dos quais os Africanos iriam fazendo a aprendizagem da democracia e da gestão de um Estado moderno, em estreita colaboração com as antigas metrópoles »42.

46 As próprias características do regime salazarista impediam que se tentasse algo de semelhante no império português, onde continuaram a prevalecer as formas de controlo administrativo das populações. A isto se somava a marginalização das elites crioulas (negros e mestiços de cultura luso-africana), que se iniciara em finais de Oitocentos, sendo depois sucessivamente reforçada tanto na 1.ª República como no Estado Novo43. Neste quadro, a ideia de integração nacional, imposta pela revisão constitucional de 1951, com a transformação das colónias em «províncias ultramarinas », tem sobretudo uma função retórica, de justificação da soberania (como acontecera no século anterior, aquando da crise que precedeu a independência do Brasil), perante as pressões para descolonizar que começavam a fazer-se sentir no plano internacional. Por outro lado, no plano interno, a perspectiva da «nação una», abrangendo o ultramar, vinha ao encontro das reivindicações da oposição ao Estado Novo44, pelo que tendia a alargar a base de apoio do regime nesta questão funda mental. Na verdade, quando a guerra colonial se iniciou, em 1961, existia entre as elites políticas portuguesas um largo consenso (de que, na altura, apenas o Partido Comunista Português se excluía) sobre a necessidade de defender o império, como garante da independência nacional e herança da idade de ouro das Descobertas. «O peso do nacionalismo imperial, muito enraizado nas elites portuguesas e popularizado desde o último quartel do século XIX, continuava a Jazer-se sentir»45. Serão necessários treze anos de guerra para lhe quebrar a força.

Conclusão

47 Após a descolonização de 1974-1975, seguiu-se um longo período de silêncio sobre o tema (entrecortado por uma ou outra rara reflexão), como muitas vezes acontece, após rupturas históricas graves. Só recentemente esse período de nojo teve fim: desde finais da década de 1990, multiplicaram-se as publicações sobre a guerra colonial e a retirada portuguesa, a tal ponto que René Pélissier — que minuciosa e infatigavelmente as tem vindo a recensear em sucessivos números da Análise Social — nos fala de uma «vaga de testemunhos», com «centenas de títulos»46. Trata-se, por grande parte, de obras de antigos

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 29

combatentes, que rememoram as suas experiências das campanhas militares coloniais, muitas vezes em edições de autor, vindas a lume em localidades de província, fora dos circuitos comerciais — no que o mesmo Pélissier vê justificadamente uma prova da « expansão e [d]a profundidade do traumatismo provocado pelo conflito»47. Menos numerosos, os textos de antigos funcionários coloniais ou de colonos (os «retornados» de 1975, por grande parte) dão também um contributo rele vante sobre o modo como esses anos foram vividos.

48 Em geral, estes testemunhos, quando historicamente contextualizados, implícita ou explicitamente, remetem para o Estado Novo, seja ainda na defesa das suas teses seja na crítica ao regime e à sua política, tomados, neste último caso, como causas últimas da opressão colonial. Mesmo no campo académico, só raramente se vai mais além, procurando integrar a guerra e a descolonização num tempo mais longo. Ora, quando limitada ao Estado Novo, a análise crítica da questão colonial omite os ele mentos de continuidade que lhe estão subjacentes — e deixa intacta a narrativa identitária da nação portuguesa, fundada por grande parte na tradição imperial. Como nas páginas precedentes se sugere, os mitos e os traumas ligados ao império contribuíram decisivamente para conferir a essa narrativa um carácter bipolar, em que se sucedem e muitas vezes se sobrepõem a crença num destino universal, numa missão a cumprir, e um sentimento de incapacidade e de decadência, acompanhado de uma sensação de vitimização (a que se acrescenta uma preocupação obsessiva com o reconhecimento externo e com o lugar do país na hierarquia das nações).

49 Esta perspectiva não é inteiramente nova. Recentemente, na área dos estudos culturais, Margarida Calafate Ribeiro, no seu livro Uma História de Regressos — Império, Guerra Colonial e Pós-colonialismo48, constatando a «coexistência de dois tipos de discurso no imaginário colectivo português: um "discurso épico" e um "discurso de perdição"»49, viu nela a consequência da « condição intermédia» do país, a «resultante de uma complexa tensão orgânica entre a nação e o seu império por um lado e, por outro lado, de uma multifaceta da tensão entre Portugal e a Europa »50. Nação imperial, mas simultaneamente «sociedade semiperiférica da região europeia do sistema mundial», Portugal tenderia a construir um «complexo de imagens [...] de "império como imaginação do centro"», que reflectiria «a condição pouco assumida, mas ansiosamente sentida [...] ora de Portugal como centro precário de um império, ora mesmo como periferia imperial, mas que através do império foi podendo imaginar-se como centro»51. Nesta análise, o conceito fundamental é o de semiperiferia, que a autora toma de Boaventura de Sousa Santos — na esteira, por sua vez, de Immanuel Wallerstein, que distingue entre semiperiferia, centro e periferia no seio da «economia-mundo» capitalista, criada a partir de meados do século XV52.

50 Em termos gerais, a nação abre decerto caminhos interessantes no estudo do caso português. Para o historiador, votado à análise de situações concretas, na sua especi‐ ficidade, ela tem o inconveniente de agregar na mesma categoria teórica circunstâncias e relações muito diversas, no tempo e no espaço: poderá por isso constituir, no seu âmbito, um bom ponto de arranque da investigação, mas não a sua única ou mesmo a sua principal chave interpretativa.

51 A partir de outra matriz conceptual, é também de bipolaridade que Eduardo Lourenço nos fala, em O Labirinto da Saudade — Psicanálise Mítica do Destino Português53, quando refere a « Conjunção de um complexo de inferioridade e superioridade», na forma como Portugal se vê a si próprio, reflectindo «a consciência de uma congenital fraqueza e a convicção mágica de uma protecção absoluta». «Segundo as contingências da situação internacional ou mundial [...]»,

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 30

apareceria «ao de cima, um ou outro complexo, mas com mais constância os dois ao mesmo tempo, imagem inversa um do outro»54. Essa conjunção estaria na «raiz» da «relação irrealista que mantemos connosco mesmos», tendo como «única função» a de «esconder de nós mesmos a nossa situação de ser histórico em estado de intrínseca fragilidade»55. Uma série de experiências «traumáticas», quase todas relacionadas directa ou indirectamente com a vida do império, terão contribuído para fomentar o sentimento de insegurança. Tudo isto tomaria necessária «uma autêntica psicanálise do nosso comportamento global, um exame sem complacências que nos devolva ao nosso ser profundo ou para ele nos encaminhe ao arrancar-nos as máscaras que nós confundimos com o rosto verdad eiro»56.

52 Há um paralelismo evidente entre a análise de Eduardo Lourenço e a que esboçámos no presente texto, em particular no relevo dado às rupturas ou traumas imperiais. Neste ponto, somos-lhe tributário. Mas há também diferenças evidentes — desde logo, porque a Eduardo Lourenço não interessa a historiografia, mas apenas a filosofia da história. A sua fonte ou inspiração, neste âmbito, está ainda em Oliveira Martins, em cuja História de Portugal ele vê (ou pelo menos via, no tempo de O Labirinto da Saudade) a única « remeditação global do destino e do devir colectivo»57. Lourenço, como Martins — e como muitos outros, na esteira deste último, ao longo do século XX — tem como objectivo último a revelação da «alma da nação», do «ser profundo » de Portugal, da sua «verdadeira» essência e do seu destino. Toda esta metafísica da portugalidade nos é estranha: nesta busca desesperada de uma missão nacional, sempre por cumprir, estará precisamente uma das fontes do discurso bipolar.

53 Resta, para além da diferença de perspectivas, um terreno comum: a crítica do discurso identitário português, como expressão de uma memória colectiva ferida ou mesmo doente — por incapaz de fazer o trabalho de luto das rupturas e perdas da sua história e de com elas se reconciliar.

54 Decerto, a extensão das categorias da psicanálise ao domínio das relações interpessoais é em si problemática. Em sua defesa, Paul Ricoeur faz notar que tal extrapolação, que o próprio Freud aceitou e praticou, se justifica, em última análise, pela «constituição bipolar da identidade pessoal e da identidade comunitária»: poderia por isso «falar-se, não apenas em sentido analógico mas em termos de an1ise directa, de traumatismos colectivos, de feridas da memória colectiva»; e a «noção de objecto perdido» encontraria «uma aplicação directa nas "perdas" que afectam do mesmo modo o poder, o território, as populações que constituem a substância do Estado». A transposição das categorias freudianas à memória colectiva seria ainda facilitada por «certas reinterpretações da psicanálise próximas da hermenêutica», nas quais a psicanálise é reformulada em termos de transformações no campo simbólico58. Permanece, entretanto, uma dificuldade, que o próprio Ricoeur reconhece: «a ausência de terapeutas reconhecidos nas relações inter-humanas»59. Tal papel já foi reivindicado para o historiador: este seria «o médico da memória», cabendo-lhe «curar as feridas, verdadeiras feridas. Do mesmo modo que o médico deve actuar por forma independente das teorias médicas, porque o seu paciente está doente, também o historiador deve actuar, levado pela moral, para restaurar a memória de uma nação ou a da humanidade»60. Mas é talvez demasiada ambição. Em geral, a memória colectiva mostra-se refractária a esta terapêutica, sobretudo em sociedades muito carregadas de história (como é o caso da judaica, especialmente em causa na citação anterior, e também, embora em menor grau, da portuguesa) — mas uma história fundada em tradições e em mitos, transmitidos de geração em geração, e não na investigação historiográfica. Como Yerushalmi sublinhou, «não há equivalência entre o sentido na história, a memória do passado e a escrita da história», não dependendo nem esse

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 31

sentido nem essa memória, em última análise, do «género histórico». Por isso mesmo, a historiografia não deveria ser tomada como uma «tentativa para restaurar a memória», mas como um «género realmente novo de memória»61.

55 Quer isto dizer, entre outras coisas, que a modificação da narrativa identitária da sociedade portuguesa não está nas mãos dos historiadores. No espaço público de debate em que tudo se decide, cabe-lhes, não afirmar uma qualquer verdade indiscutível, mas propor um tipo de conhecimento fundado nas «operações específicas» da sua disciplina: « construção e tratamento de dados, produção de hipóteses, crítica e verificação dos resultados, validação da adequação entre o discurso do saber e o seu objecto»62.

56 No domínio particular de que aqui nos ocupámos — o da questão colonial —, a his‐ toriografia especializada tem vindo a construir-se, nos últimos trinta anos, em grande parte por contraposição aos mitos dominantes na memória colectiva, bem como às suas omissões, aos seus buracos negros (como o peso do tráfico de escravos, da escravatura e do trabalho forçado, para referir apenas os temas de maior relevo). Mas as suas conclusões transitam dificilmente para a história geral de Portugal, e daí para o ensino — passos essenciais para o exercicío de qualquer influência na reformulação do discurso identitário nacional, tão necessária à adaptação do país a um sistema que se globaliza. Estarão aí, muito provavelmente, as linhas de resistência que os especialistas da questão colonial deverão procurar vencer.

NOTAS

1. A expressão é de Diogo Ramada CURTO, «O Bastião! O Bastião! (Actos políticos e modalidades de crença, 1578-1603)», in Yvette Kace CENTENO (coord.), Portugal: Mitos Revisitados, Edições Salamandra, Lisboa, 1993, p. 142. 2. Citado por Lucette VALENSI, Fábulas da Memória — A gloriosa batalha dos três reis, Edições Asa, Porto-Lisboa, 1996, pp. 27-28. 3. Idem, ibidem, pp. 10-11. 4. Idem, ibidem, pp. 139-140. 5. Diogo Ramada CURTO, op. cit., pp. 141-142. 6. Idem, ibidem, pp. 142 e 143-144. 7. Idem, ibidem, p. 144, citando Alphonse Dupront. 8. Idem, ibidem, pp. 165-166. 9. Idem, ibidem, p. 167. 10. Idem, ibidem, pp. 169-170. 11. Idem, ibidem, pp. 170-171. 12. Expressões de Oliveira Martins e de Lúcio de Azevedo, respectivamente, citados in Joel SERRÃO , Do Sebastianismo ao Socialismo em Portugal, Livros Horizonte, Lisboa, 1969, pp. 9-10 e 11. 13. E ainda influente na obra citada (a outros títulos interessante) de Valensi, que apenas substitui a explicação de fundo étnico de Oliveira Martins por uma interpretação de raiz freudiana. 14. Nomeadamente, na obra de D. João de Castro: cf. VALENSI, op. cit., pp. 179-180. 15. Idem, ibidem, pp. 178-181.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 32

16. Cf. Luiz Filipe F. F. THOMAZ e Jorge Santos ALVES, «Da Cruzada ao Quinto Império», in Francisco BETHENCOURT e Diogo Ramada CURTO (orgs.), A Memória da Nação, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1991, pp. 100-109. 17. Cf. Valentim ALEXANDRE, Os Sentidos d o Império, Afrontamento, Porto, 1993, Parte I, cap. 2 e Parte VI, cap. 1; Jorge PEDREIRA, Estrutura Industrial e Mercado Colonial. Portugal e Brasil, 1780-1830, Difel, Lisboa, 1994, cap. V. 18. Valentim ALEXANDRE, «Ruptura e Estruturação de um Novo Império», in Francisco Bethencourt e Kirti CHAUDHURI, História da Expansão Portuguesa, vol. IV, Círculo de Leitores, Lisboa, 1998, p. 17. 19. Lúcio de Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1947, pp. 108-113. 20. Citado in Valentim ALEXANDRE, Os Sentidos do Império, p. 408. 21. Pontos desenvolvidos in ibidem, pp. 407-411. 22. Cf. Ana Cristina Nogueira da SILVA e António Manuel HESPANHA, «A identidade portuguesa», in José MATIOSO (dir.), História de Portugal, Círculo de Leitores, Lisboa, 1993, p. 33, e obras aí referidas. 23. Seguimos de perto o que escrevemos em Os Sentidos do Império, p. 414. Para um tratamento mais alargado do mesmo tema, cf . pp. 411-440 da mesma obra, e textos aí citados. 24. Idem, ibidem, pp. 420 e sgs. 25. Idem, ibidem, Parte V, cap. 3; e História da Expansão Portuguesa citada, pp. 31-36. 26. Os Sentidos do Império, pp. 753-764; e Valentim ALEXANDRE, Velho Brasil, Novas Áfricas — Portugal e o Império (1808-1975), Afrontamento, Porto, pp. 35-53. 27. Expressão dos jornais Trombeta Final e O Popular, in Velho Brasil-Novas Áfricas, pp. 53-54. 28. Título de um artigo de Liberato Freire de CARVALHO, in Os Sentidos do Império, pp. 459-463; cf. tb. pp. 646-660. 29. Citado in ibidem, p. 459. 30. Citado in ibidem, p. 462. 31. Ibidem, pp. 656-659. 32. Seguimos de perto, nos parágrafos anteriores, o resumo da crise do ultimatum que fizemos em Velho Brasil, Novas Áfricas, pp. 147-149. Para uma análise mais pormenorizada, cf. o nosso texto na História da Expansão Portuguesa citada, vol. IV, pp. 129-132. Numa perspectiva diferente, cf. Nuno Severiano TEIXEIRA, O 'Ultimatum' Inglês, Política Externa e Política Interna no Portugal de 1890, Alfa, Lisboa, 1990. 33. Martens FERRÃO, Diário da Câmara dos Pares, 15-1-1879, pp. 79-80. 34. História da Expansão Portuguesa citada, p. 126. 35. Diário da Câmara dos Deputados, 10-6-1885, p. 2203. 36. Cf. Maria da Graça BRETES, «Arqueologia de um Mito — A Derrota do Gungunhana e a sua Chegada a Lisboa», in Penélope, n. 2, Fevereiro de 1989, pp. 75-95. 37. Valentim ALEXANDRE, Velho Brasil, Novas Áfricas, pp. 184-188 e 198-208. 38. Oliveira SALAZAR, «Princípios Fundamentais da Revolução Política», 1930, in Discursos, vol. I, pp. 77-79; e «O Estado Novo Português na Evolução Política Europeia», 1934, in ibidem, pp. 335 e sgs. 39. Armindo MONTEIRO, Os Portugueses na colonização contemporânea- nobreza colonial, Agência Geral das Colónias, Lisboa, pp. 19 e 6. O tema da aptidão especial do português para lidar com os «indígenas» vem já do século XIX (com antecedentes pontuais anteriores) e será retomado no lusotropicalismo de Gilberto Freyre. 40. Armindo MONTEIRO, «A actual organização administrativa e os fins da colonização portuguesa», in Boletim da Agência Geral das Colónias, n. 100, Outubro de 1933. 41. Seguimos de perto, nos dois últimos parágrafos, o que escrevemos em Velho Brasil , Novas Áfricas, pp. 188-189.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 33

42. Valentim ALEXANDRE, «A Descolonização Portuguesa em Perspectiva Comparada», in Manuela FRANCO (coord.), Portugal, os Estados Unidos e a África Austral, Fundação Luso-Americana, Lisboa, pp. 44-45. 43. Valentim ALEXANDRE, História da Expansão Portuguesa citada, vol. IV, pp. 206-208. 44. Cf. o manifesto de Norton de MATOS, Os dois primeiros meses da minha candidatura à Presidência da República, Lisboa, 1948, pp. 75-87. 45. Cf. op. cit. na nota 42, p. 57. 46. Análise Social, n.º 172, 2004, p. 646. 47. Análise Social, n.º 177, 2005, p. 937. 48. Afrontamento, Porto, 2004. 49. Ibidem, pp. 29-30, citando Luís de Sousa Rebelo. 50. Ibidem, p. 29. 51. Ibidem, p. 13, citando Boaventura Sousa Santos, e p. 130. 52. Cf. O Sistema Mundial Moderno, Afrontamento, 1990, Porto, vol. I, p. 68. 53. Editora D.Quixote, Lisboa, 1978. 54. Ibidem, p. 21. 55. Ibidem; itálicos no original. 56. Ibidem, pp. 19 e sgs. O passo citado é da p. 20. 57. Ibidem, p. 23; itálico no original. 58. Paul RICOEUR, La Mémoire, L' Histoire, L'Oubli, Seuil, Paris, 2000, pp. 94-97. 59. Ibidem, p. 50. 60. Eugen ROSENSTOCK-HUESSY, Out of Revolution, citado in Paul RICOEUR, ibidem, p. 522. Tradução minha. 61. Zakhor YERUSHALMY, Jewish History and Jewish Memory, citado in Paul RICOEUR, ibidem, pp. 520-522. Tradução minha. 62. René CHARTIER, Au bord de la falaise, Albin Michel, Paris, 1998, p. 103. Tradução minha.

RESUMOS

No presente texto, procura-se avaliar o peso de alguns dos principais traumas que marcaram a história imperial portuguesa na formação da memória colectiva, na construção da narrativa identitária nacional. Como pontos de referência, tomámos sucessivamente o desastre de Alcácer- Quibir, a desagregação do império luso-brasileiro, o ultimatum inglês de 1890 e a descolonização final (com as fortes resistências que encontrou). Nas conclusões, tenta-se caracterizar a memória colectiva formada a partir desses traumas — vendo-se nela uma memória ferida ou mesmo doente, por incapaz de efectuar o correspondente trabalho de luto. Finalmente, faz-se uma breve alusão à relação entre memória e historiografia, sopesando-se a capacidade desta última para alterar o carácter bipolar da narrativa identitária portuguesa, sempre oscilante entre a depressão e a euforia.

In this paper we try to evaluate the weight of some of the most important traumas that shaped the Portuguese imperial history in the formation of collective memory and in the construction of the national identity narrative. As reference points, we took successively the disaster of Alcácer- Quibir, the desegregation of the Portuguese-Brazilian empire, the English ultimatum of 1890 and

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 34

the final decolonisation (with the strong resistances it aroused). ln the conclusions, the paper attempts to characterise the collec tive memory shaped by those traumas — seeing in it a wounded memory ar a sick memory, not capable of making the correspondent mooring work. Finally, one makes a brief allusion to the relation between memory and historiography, evaluating the latter's capacity to transform the bipolar character of the Portuguese identity narrative, always balancing between depression and euphoria.

ÍNDICE

Keywords: Portuguese Empire, Colonial History, Social Memory Palavras-chave: Império português, História colonial, Memória social

AUTOR

VALENTIM ALEXANDRE Instituto de Ciências Sociais, Lisboa

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 35

D’une mémoire coloniale à une mémoire du colonial. La reconversion chaotique du Musée Royal de l’Afrique Centrale, ancien musée du Congo Belge Da memória colonial à memória do colonialismo. A complexa reforma do Museu Real da Africa Central, antigo Museu do Congo Belga From a Colonial Memory to a Memory of Colonialism. The complex reformation of the Royal Museum for Central Africa, former Museum of the Belgian Congo

Aurélie Roger

1 Le Musée Royal de l'Afrique Centrale (MRAC), a Tervuren, non loin de Bruxelles, a été inaugure en 1910, sous le nom de « Musée du Congo belge ». Il constituait alors une institution vouée à la propagande coloniale auprès de la population nationale. Son changement de nom, intervenu en 1960 à la faveur de l'indépendance du Congo, est loin cependant d'avoir été le reflet d'une transformation de son orientation muséographique. Le maintien en place de l'institution s'est au contraire accompagné d'une remarquable permanence dans la présentation des collections, témoignant de manière non questionnée d'un regard très colonial sur l'Afrique. Depuis cinq ans environ, le MRAC a toutefois fini par entrer dans une phase de réflexivité sur ce passé particulier, qui a culminé l'an passé avec la tenue d'une ambitieuse exposition temporaire sur l'histoire coloniale de la Belgique1, et devrait finir par mener à sa complète rénovation. Ce processus en marche s'ancre à la question de la mémoire collective d'une double façon.

2 Comme toute institution muséale nationale le MRAC occupe une place de choix dans la socialisation des Belges a son domaine de compétence -- en l'occurrence l'Afrique et l'histoire coloniale de la Belgique. Il a dès lors un poids évident dans la constitution de ces fameux Cadres sociaux de la mémoire dont Maurice Halbwachs a dévoilé qu'ils façonnent tout processus de remémoration individuel2. Le Musée de Tervuren, en ce sens, joue un

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 36

rôle essentiel dans la structuration de la mémoire belge de la période coloniale. C'est là du reste la raison pour laquelle il a essuyé au cours des dernières années le feu de nombreuses critiques, tant dans le champ scientifique que médiatique, qui stigmatisaient la présentation figée pour sa capacité à véhiculer auprès des visiteurs une vision de l'Afrique largement teintée par ce contexte colonial de création. Se faisant de plus en plus virulentes, ces attaques ont fini par mener à concevoir le projet de sa rénovation. Mais leur existence même mérite alors d'être interrogée, qui montre que des cadres concurrents doivent bien avoir cours au sein de certains groupes en Belgique. Si l'institution doit être envisagée comme un support mémoriel, constitutif des cadres sociaux de la mémoire belge du temps colonial, nous souhaitons donc ici montrer qu'elle incarne dans le même temps le produit de ces cadres sociaux, au sens ou la présentation de ses collections et la remise en cause qu'elle subit aujourd'hui sont la marque d'états particuliers et changeants de la perception sociale de la période coloniale.

3 Apres avoir rapidement présenté la muséographie actuelle du MRAC en montrant en quoi elle peut participer, aujourd'hui encore, de la structuration de représentations coloniales de l'Afrique chez les visiteurs, nous nous interrogerons donc sur les cadres sociaux qui peuvent expliquer la permanence de cet impense colonial au-delà de la décolonisation. Suite à quoi nous pourrons envisager la manière dont ces mêmes cadres ont évolué dans le temps, au point de mettre l'institution devant la nécessité impérieuse de reformer sa muséographie. Notre interrogation finale pourra alors porter sur les transformations récentes du MRAC et les enseignements qu'elles apportent sur la manière nouvelle d'appréhender le passé colonial au musée.

Une muséographie figée dans le temps: Tervuren et la mémoire coloniale du Congo

4 La genèse du MRAC est étroitement liée aux débuts de la colonisation du Congo3. Le projet scientifique propre à tout musée s'est doublé dans son cas d'une évidente vocation propagandiste, l'objectif général lui étant assigné par Léopold II de concourir « a l’éducation coloniale de [s]es compatriotes »4. Il paraît étonnant, de ce fait, de constater que la décolonisation du Congo n'a mené à aucun changement majeur a Tervuren, si ce n'est à l'abandon d'une appellation désormais impropre. La muséographie entière a continue au contraire de véhiculera jusqu'à nos jours un récit ancré à la légitimation de la colonisation, similaire à celui qui avoir cours avant 19605.

5 Accueilli dès l'entrée par quatre statues allégoriques, ayant pour sujet respectif L'esclavage, La Belgique apportant la civilisation au Congo, La Belgique apportant le bien-être au Congo et La Belgique apportant la sécurité au Congo, le visiteur se trouve immédiatement immergé dans ce qui a constitué le cœur de la mythologie coloniale belge. La colonisation du Congo s'est largement appuyée, tant du point de vue des manœuvres diplomatiques que des tentatives de légitimation, sur un argument humanitaire et philanthropique: il s'agissait, en prenant possession du pays, avant tout de le pacifier, de le délivrer du terrible joug de l'esclavagisme arabe, et de l'ouvrir à la civilisation universelle. Dans cette perspective, le projet colonial n'était donc pas le résultat d'une visée impérialiste et d'une volonté d'asseoir une domination économique et politique sur le Congo, mais bien la marque d'un devoir moral héroïquement assumé par les Belges: celui de libérer une partie de l'humanité du chaos dans lequel elle se débattait, fait de razzias arabes

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 37

incessantes et de barbarie primitive. Ce motif restera une constante au cours de la colonisation belge, et toujours elle sera légitimée par cet argument premier. Le visiteur est amené à le retrouver, comme un leitmotiv, au fil des salles.

6 La figure de l'esclavagiste arabe honni apparait ainsi à de nombreuses reprises au fil de la visite (groupe en plâtre, vitrines), de même que celle de l'Africain primitif (groupes sculptes divers, salles d'ethnographie, véhiculant implicitement une idée d'arriération et de sauvagerie des peuples congolais). La section du musée ou ce biais d'un récit mythique des temps coloniaux apparait de la manière la plus flagrante est certainement celle consacrée à l'histoire. Ses salles sont les descendantes directes de la section dite de « L’évolution politique et morale du Congo », inaugurée en 1910, qui visait à mettre en avant les réalisations belges dans la colonie. L'histoire de l'Afrique centrale est donc réduite à l'évocation de l'histoire coloniale, et plus spécifiquement même, a une histoire coloniale vue à travers le regard belge. On se trouve confronté aujourd'hui encore dans les vitrines a une glorification de l'œuvre coloniale nationale et de ses bienfaits au Congo. Les figures héroïques du temps des origines de la colonisation y ont bonne place, hommage appuyé étant rendu à Stanley, à Léopold, ainsi qu'à la mémoire de héros de l'ombre: 1500 « Belges morts au Congo » entre 1876 et 1908, célèbres sous la forme d'une immense plaque commémorative, inaugurée en 1934, égrenant la longue liste de leurs patronymes.

7 On le voit donc, si le musée de Tervuren est vecteur d'une mémoire, c'est d'une mémoire figée: une mémoire coloniale de l'Afrique centrale. En tant que lieu de socialisation, il offre l'occasion d'une incorporation de cadres de la mémoire très marqués par le contexte de formation de ses collections et de sa muséographie. Un discours colonial de légitimation de la présence belge au Congo est donné à entendre au travers de ses salles, à tel point qu'il parût incroyable que l'institution ait pu être maintenue en l'état, sans aucun questionnement, jusqu'à nos jours. La présentation actuelle des salles d'histoire date pourtant des années 19706, soit dix ans au moins après la décolonisation, mais n'en continue pas moins de véhiculer ce même discours. Comment donc un musée colonial, assumant ouvertement son rôle politique, a-t-il pu ainsi omettre de prendre en compte l'incidence de la décolonisation sur sa présentation muséographique? L'argument de la lourdeur des transformations à entreprendre ne peut être retenu, d'une part eu égard à la remarquable durée de cette torpeur muséographique, d'autre part pour la raison que des remises en cause aussi importantes ont été tôt effectuées dans des institutions similaires en Europe7. Il faut donc admettre que les cadres auxquels cette présentation s'articule, et qu'elle contribue à véhiculer, ont sûrement continué d'être revêtus d'une certaine validité sociale passée la rupture politique de la décolonisation. Ce phénomène mérite d'être éclairé.

Hypothèses explicatives: cadres scientifiques, sociaux et politiques de la mémoire belge du Congo immédiatement postérieure à la décolonisation

8 Tout en revêtant pour les visiteurs l'apparence d'un tout scientifiquement pensé, une muséographie se trouve au point de convergence de logiques sociales complexes en provenance d'espaces divers. Le maintien inchangé de la présentation des collections à Tervuren après 1960 pourrait en ce sens s'expliquer par l’existence de cadres sociaux

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 38

structurants dans les groupes multiples au sein desquels ses concepteurs et le musée s'insèrent, qui tous convergent vers cette absence de remise en question des représentations coloniales du Congo.

9 Il convient dans un premier temps de concevoir que le personnel du musée, tout en endossant le rôle propagandiste qui lui est assigné, ne percevait pas véritablement l’incidence de cette mission sur la mise en scène des collections. Si le musée était destiné, selon son créateur, a « l'éducation coloniale » des Belges, il demeurait en effet une institution scientifique. S'inscrivant dans ces deux perspectives, la présentation muséographique revêtait une ambivalence manifeste, vécue cependant de manière tout à fait naturelle, comme l'illustrent les propos de son premier directeur: « présentées suivant des données scientifiques, [l]es collections parlent à la raison, en même temps que par l'exposé, séduisant bien qu'objectif, des résultats acquis grâce au génie et à l'énergie de notre race, elles émeuvent le cœur en suscitant les nobles enthousiasmes et les saines émotions »8.La notion d'objectivité n'est pas davantage questionnée. Le fait colonial, selon cette conception, n'a d'autre influence sur les salles que de leur fournir un contexte favorisé de prélèvement des collections. Les objets seraient ensuite exposés d'une manière rigoureusement neutre au public, selon des critères scientifiques évidents. La propagande coloniale ne serait donc pas le fait de l’usage d'une rhétorique muséographique quelconque visant à orienter le regard sur les objets exposés; elle découlerait simplement de ce que le Congo était colonisé par la Belgique. Les collections, mentalement replacées par le visiteur dans le contexte de la colonisation belge en Afrique, auraient participé par ce seul mécanisme à la légitimation de l'entreprise coloniale en cours. L'argument a tendu à structurer l'ensemble du discours muséographique jusqu'à la fin de la colonisation. Dès lors que cette période avait pris fin, que le Musée du Congo belge était devenu Musée royal de l'Afrique centrale, on a donc pu tranquillement considérer que le regard du visiteur serait désormais réorienté par le nouveau contexte. La présentation muséographique, elle, n'ayant jamais obéi qu'a des critères scientifiques, perçus comme objectifs et détachés d'une quelconque finalité, n'avait pas besoin de changer.

10 Pour éclairante, cette hypothèse ne suffit cependant pas à elle seule à expliquer le long sommeil de Tervuren. Le contexte historique de la décolonisation en Belgique doit également être pris en compte. L'octroi brutal de l'indépendance au Congo, et les troubles qui l'ont accompagné, auxquels ni les esprits ni les institutions n'étaient vraiment préparés, ont sûrement été vécus, au musée comme ailleurs dans le pays, sur un mode proche de l'hébétude. Jean Stengers affirme que les évènements désastreux auxquels a donné lieu l'indépendance trop peu préparée, ainsi que le concert mondial d'accusations qu'ils ont soulevé contre la Belgique, sont à l'origine du choc puissant subi par une population habituée a n'entendre proférer que les louanges de l'œuvre coloniale nationale, et qui, en conséquence, aurait souhaité à tout prix « oublier le Congo »9. Une telle réaction n'a pu manquer d'affecter le musée. C'est peut-être aussi cette volonté d'oubli qui explique l'absence de changement notable d'orientation de la muséographie pendant les quatre décennies qui ont suivi la décolonisation. Cette torpeur muséale serait finalement la manifestation concrète d'une attitude d'évitement généralisée dans la société belge. Mais l'Afrique et le Congo demeurent le centre de la représentation à laquelle est vouée l'institution. Le maintien de représentations valorisantes du passé colonial (voire leur renforcement dans les années 1970, avec l'ouverture d'une salle d'histoire rénovée répétant le récit mythologique colonial) peut donc aussi être vu comme une stratégie d'oubli sélectif adaptée à ce contexte muséal particulier, qui

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 39

consisterait non à taire le Congo, attitude inconcevable dans un musée de l'Afrique centrale, mais a l'envisager sous une forme qui omet entièrement l'achèvement peu glorieux de cette histoire de la présence belge en Afrique. En continuant de narrer les hauts faits et réalisations belges au Congo, on pouvait tout aussi efficacement effacer le choc de l'indépendance congolaise. Le succès populaire constant du musée témoigne d'une certaine manière d'une réussite à rencontrer, ce faisant, les cadres sociaux de la mémoire belge du temps colonial, en même temps, soulignons-le à nouveau, qu'il a pu participer au cours du temps à leur consolidation.

11 Mais dans ce contexte d'une décolonisation traumatique pour la société belge, c'est aussi d'une absence totale d'impulsion politique qu'a souffert le MRAC. Nulle injonction ni aide financière ne lui a été donnée en vue d'une réorientation de sa muséographie. De manière générale, la Belgique a par ailleurs subi les conséquences d'une absence totale de politique volontaire et cohérente de « reconversion de l'africanisme colonial », à la source d'une grave crise dans ce domaine du savoir10, qui s'est nécessairement ressentie à Tervuren. On peut concevoir dans ces circonstances qu'un changement muséographique n'ait pas été la première préoccupation d'une institution très incertaine quant à son avenir.

12 En somme, nulle incitation au changement n'a affecté le musée en 1960. Les cadres scientifiques, sociaux et politiques à travers lesquels son personnel comme ses visiteurs se forgeaient une représentation du passé colonial semblent avoir converge pour que soit maintenu un mode de figuration du Congo identique à celui qui avait cours avant l'indépendance de la colonie. Et l’institution, en tant que lieu de socialisation des Belges à l'Afrique, a même pu participer d'une reconduction de ces cadres de la mémoire du fait colonial auprès de ses visiteurs. Près de quarante ans plus tard, cependant, un projet de rénovation totale de la muséographie du MRAC a fini par être mis en place, préfiguré par un certain nombre de transformations transitoires et d'expositions temporaires. C'est donc qu'en dépit de l'influence du musée, ces cadres sociaux ont pu évoluer. Il importe maintenant de s'intéresser à ces transformations.

Retour du passé colonial, au musée et en Belgique et cadres sociaux nouveaux qui y participent

13 Qui s'intéresse aujourd'hui au musée de Tervuren est tout d'abord frappé par la sensible agitation qui y règne. Il y a là sans aucun doute un effet de contraste saisissant avec la phase de long assoupissement qui a précédé, accentue par une politique de communication extrêmement efficace mise en place par le nouveau directeur. Mais on doit y voir et y saluer avant tout la marque d'efforts de réflexion sur le passé colonial et la nécessaire mutation du musée, aussi singuliers au regard de la situation qui prévalait jusqu'alors qu'en comparaison avec les processus a l'œuvre dans les autres anciennes métropoles coloniales11. Nous présenterons ici rapidement les développements muséographiques successifs de cette réflexion, ce qui permettra de faire apparaître leur interaction avec l'evolution patente des cadres sociaux structurant la mémoire belge du temps colonial précédemment décrits. Le première manifestation publique d'une réflexion critique sur le passe colonial du musée s'est tenue à Tervuren d'octobre 2000 à juin 2001, sous la forme d'une exposition intitulée ExItCongoMuseum12. Sollicité de mettre en scène des « Trésors cachés du Musée de Tervuren », Boris Wastiau, jeune ethnologue fraichement arrivé au musée, constate dès l'abord qu'aucun lien n'existe entre ces pièces,

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 40

hormis leur présume caractère esthétique. Plutôt que de les mettre en scène une nouvelle fois sur cette base, il décide donc de se livrer à une déconstruction de la manière dont le public occidental a pu en venir à les investir d'une telle signification. Le projet devient alors de montrer les usages rituels successifs qui ont pu être faits de ces objets dans un contexte muséal (leur statut de trophée, puis de fétiche, d'œuvre d'art, etc.). La colonisation, période essentielle dans l'histoire de la collecte, de la catégorisation et de l'exposition des objets, occupe une place centrale dans ExltCongoMuseum. Le questionnement n'est cependant pas directement élargi à l'ensemble du MRAC, mais porte sur les problèmes auxquels se trouve confronté tout musée ethnographique, reflétant en fait des interrogations scientifiques extrêmement répandues dans la période contemporaine. Néanmoins, le but reste bien d'inciter les visiteurs à faire usage d'un regard critique sur les objets présentés, qu’ils sont évidemment appelés à transposer dans tout autre musée, et par la même occasion dans les salles adjacentes du MRAC. Le volet ethnographique de la manifestation est d'ailleurs double d'un volet artistique, composé d'œuvres d'art contemporain sur le même thème, précisément placées par le curateur, Toma Muteba Luntumbue, au sein des salles de l'exposition permanente, de manière à ce que cette confrontation provoque une réflexion chez le visiteur. La « vieille garde » du musée, particulièrement sa direction temporaire, ne s'est du reste pas montrée dupe, qui a largement réprouvé la manière dont le projet initial évoluait13.

14 Même si elle a eu lieu au MRAC, si beaucoup des membres de son personnel scientifique ont selon B. Wastiau approuvé sa démarche, et si la version officielle en fait désormais la première pierre de la rénovation du musée, cette exposition constituait en réalité un acte isolé, et ne faisait donc en rien partie d'une réflexion globale sur le futur de l’institution. Malgré tout, le vaste écho qu'elle a rencontré dans la presse quotidienne et spécialisée, et jusque dans le débat politique, a permis que soit soulevée à vaste échelle la question de l'évolution nécessaire de l'ancien musée colonial14. L'ensemble de ce processus, on doit le constater, a en fait été favorisé par l'existence d'une conjoncture s'opposant terme à terme à celle qui présidait a l'absence de transformation du musée en 1960.

15 D'une part, le champ scientifique et muséographique a connu depuis lors le développement de réflexions épistémologiques interrogeant la nature des savoirs représentés, et leur représentation même. Les musées ont été atteints de plein fouet par les questionnements d'une mouvance que l'on pourrait schématiquement qualifier de post-moderne, et ainsi ébranlés dans l'évidence de leurs systèmes classificatoires et de leurs modes d'exposition par la prégnance croissante de thèses relativistes, rejetant toute forme de catégorisation absolue et de mise en scène objective du savoir. La taxinomie et la dispensation d'un savoir établi sont désormais dénoncées, et laissent place à leur permanente recontextualisation, voire au récit de simples « histoires », et à la transmission de « messages », que l'on ne veut plus considérer comme neutres15. Ce contexte, on le voit, rendait à la fois possible et nécessaire le questionnement mené par l'exposition. Il a pu résulter en une transformation des cadres scientifiques de structuration de la mémoire de la colonisation chez le personnel du musée, dont les phénomènes de génération qui se sont fait jour au sujet de l'exposition ExltCongoMuseum pourraient bien être illustratifs.

16 D'autre part, au niveau national, la conjoncture politique, en ce début des années 2000, est elle aussi favorable à un questionnement du passé colonial de la Belgique, et avec elle du musée. Une nouvelle coalition gouvernementale (libérale, socialiste, écologiste) vient d'être portée au pouvoir par les élections de juin 1999, mettant fin à plusieurs décennies

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 41

d'hégémonie sociale-chrétienne. Louis Michel, nouveau ministre des Affaires étrangères, proclame la mise en place d'une nouvelle politique africaine de la Belgique, visant à mettre fin à une période de distanciation diplomatique à l'égard du Congo.

17 Dans le même temps, des débats se font jour à la Chambre, qui mènent à la création en mars 2000 d'une commission d'enquête parlementaire « chargée de déterminer les circonstances exactes de l'assassinat de Patrice Lumumba et l'implication éventuelle des responsables politiques belges clans celui-ci ». Selon Gauthier de Villers, cette démarche se trouve facilitée à la fois par la nouvelle impulsion donnée à la politique africaine par L. Michel, qui, du fait des troubles incessants agitant le Congo, se trouve en quelque sorte cantonnée à la Belgique et au champ des actes symboliques, et par la possibilité pour la nouvelle coalition de se démarquer d'avec la famille sociale-chrétienne aux affaires depuis plus de quarante ans, qui était précisément au pouvoir lors de l'assassinat de Lumumba16.

18 Et qui se trouve également, indiquons-le dans la perspective qui est la nôtre, avoir fourni la grande majorité des Ministres des Colonies belges, ouvrant donc, si l'on prolonge cette réflexion, la possibilité d'une interrogation critique générale de la période coloniale.

19 De manière plus large, il faut bien constater que la perception de la période coloniale a changé, en Belgique comme ailleurs, depuis les années 1960, ce qui à la fois encourage ces prises de position politiques, et est encouragé par elles en retour. A partir du milieu des années 1990, une interrogation nouvelle sur le passe colonial du pays se fait jour au sein de l'opinion publique, de manière prégnante lors de grandes « crises » (génocide au Rwanda, guerre au Congo, commission Lumumba, etc.), mais également de manière plus diffuse au fil du temps. Des ouvrages à succès contribuent à développer des interrogations sur la responsabilité de la métropole dans des évènements sanglants outre-mer17. La presse, la radio, la télévision, mais aussi le théâtre se saisissent de manière distanciée, voire pleinement critique, de l'histoire coloniale18. Ce mouvement multiforme peut être envisagé comme la conséquence naturelle des changements de génération à l'œuvre dans le pays. Comme souvent dans le cadre de phénomènes mémoriels relatifs à des évènements traumatiques, le questionnement sur cette période est porté par les individus, Belges d'origine métropolitaine ou congolaise, qui n'ont pas connu la colonisation. La quarantaine d'années écoulée depuis la décolonisation serait donc le temps nécessaire à cette résurgence, appuyée par les générations qui ne sont pas porteuses d'une mémoire brute des évènements et seraient par la même en mesure de les passer au crible d'interrogations plus contemporaines. Mais si cette donnée est commune à la majeure partie des anciennes métropoles coloniales, un autre facteur joue également dans le cas de la Belgique, constitué par la « crise identitaire » traversée par le pays, qui permet d'expliquer la possibilité de reconsidérer désormais un épisode colonial ayant constitué un des ferments principaux de l'identité belge19. Enfin, cette émergence d'interrogations mémorielles sur le passé colonial doit certainement être envisagée à l'aune plus générale du développement de cadres supranationaux de questionnement de l'histoire, qui se manifestent dans le foisonnement contemporain de débats et de mobilisations mémoriels sur les enjeux les plus variés, entrant en interférence et se nourrissant mutuellement, et qui ont fini par se saisir de la problématique coloniale, en Belgique comme dans d'autres espaces anciennement coloniaux (voire anciennement colonisés)20.

20 Ces éléments combinés participent au final, au tournant des années 1990 et 2000, d'une transformation des cadres sociaux de la mémoire du fait colonial a l'œuvre au sein de

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 42

certaines franges de la population belge, qui se matérialise sous la forme d'une « demande sociale sur le passé [des] relations avec le continent africain »21. Et le phénomène n'épargne pas le MRAC, auquel sont adressées des critiques croissantes et de plus en plus vigoureuses22. L'état de la perception sociale du temps colonial dont témoigne alors le musée se trouve donc en décalage complet avec les nouveaux cadres d'appréhension de la période. En définitive, la Belgique se trouve en 2000 dans ce dont Karel Arnaut s'interroge pour savoir s'il s'agit d'une véritable « conjoncture », ou d'un simple « mouvement » postcolonial23 — alors éventuellement passager —, qui en tout état de cause a favorisé la réalisation de l'exposition ExltCongoMuseum, son succès critique, et les interrogations sur la rénovation complète du musée qui en ont découlé.

21 On perçoit bien là l'importance de processus de formation des cadres sociaux de la mémoire extérieurs au musée dans la réception qui en est faite en Belgique. Partiellement générateur de ces cadres d'appréhension du passé colonial et de l'Afrique pour ses visiteurs, le musée national n'a pas pour autant capacité d'imposition de son récit à la société entière dans laquelle il est inscrit. Les dynamiques externes qui se sont fait jour pendant son long sommeil muséographique ont donc fini par l'atteindre. Une interrogation du processus de rénovation en cours devrait alors nous offrir un reflet des cadres sociaux nouveaux à l'œuvre en Belgique dans la remémoration du fait colonial. Son observation attentive permet cependant de constater que c'est plutôt à une tentative de renversement du rôle du musée qu'on assiste, et à la volonté d'en faire le vecteur de nouveaux cadres sociaux, destinés à structurer une mémoire qui, en l'etat, est loin d'exister: une mémoire unissant les Belges en même temps que les Congolais dans une représentation apaisée du temps colonial.

La rénovation du MRAC: réalisations et perspectives. Une volonté d'impulser une nouvelle mémoire, apaisée et unifiée, de la période coloniale

22 En mars 2001 est finalement donnée au MRAC l'impulsion politique qui lui avait cruellement manqué en 1960: après une longue période de vacance à ce poste, un nouveau directeur titulaire, Guido Gryseels, est finalement nommé, et mission lui est faite de rénover l'ancien musée colonial. En novembre 2002, un projet en ce sens est présenté à la presse, plan à la fois ambitieux et assez vaporeux, qui de surcroit n'a pu trouver une concrétisation immédiate faute de crédits suffisants. La rénovation en est donc, aujourd'hui encore, au stade de l'intention générale, et il demeure difficile d'anticiper ce que deviendra réellement le MRAC. Quoi qu'il en soit, l'institution commence enfin à réfléchir sur son passé. Et dans l'attente du financement nécessaire à sa complète transformation, un certain nombre de réalisations concrètes ont déjà été effectuées, de manière à répondre aux critiques. Nous parcourrons rapidement ces évolutions, en nous interrogeant sur les différentes approches de la mise en musée d'une mémoire coloniale qu'elles peuvent incarner.

23 Si les crédits nécessaires à la refonte totale de l‘exposition permanente n'étaient pas immédiatement disponibles, son maintien en l'état sans aménagement aucun n'apparaissait enfin plus acceptable au musée. Une solution transitoire a donc été adoptée, consistant à mettre l'accent, auprès des visiteurs, sur le contexte particulier qui a présidé à l'ordonnancement de la muséographie existante. Des panneaux ont été places

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 43

dans chacune des salles, afin de montrer la manière dont la situation coloniale a pu influer sur la présentation des faits et objets exposés. Un nouveau guide a été rédigé dans le même esprit, et introduit le visiteur à de multiples questionnements sur la manière dont on lui donne à voir les collections. Des visites de groupe ont enfin été organisées, qui appelaient le public à s'interroger sur la vision de l'Afrique et de l'Africain mises en scène dans les salles, et a en témoigner par la prise de cliches polaroids, ensuite exposes sur un mur du musée. L'ensemble de ces solutions transitoires s'inscrivent pleinement, on le voit, dans le nouveau cadre de réflexion scientifique que nous avons retracé. La démarche adoptée a pour effet de mettre le visiteur au cœur du processus de réflexion sur la mémoire coloniale du musée et vise à le mener, partant, à une introspection sur sa propre mémoire du moment colonial. C'est lui, et non le muséologue, qui est appelé à s'interroger sur ce qu'on lui présente, sur la manière dont on le lui présente, et donc sur sa manière personnelle de se le représenter.

24 La situation actuelle, néanmoins, demeure insatisfaisante. Le visiteur individuel paresseux, peu motive, ou simplement rebuté par la lecture — et il nous a été donné d'en observer un certain nombre —, ne jetant au mieux qu'un regard distrait aux panneaux de recontextualisation des salles, se voit en effet toujours immergé dans la mise en scène poussiéreuse d'un discours colonial sur le Congo et l'Afrique. Mais dans la perspective d'une rénovation totale, des déclinaisons de cette démarche particulière ont été également envisagées. Un premier projet avait ainsi vu le jour en 2000, qui consistait à considérer le musée tel qu'il existe comme un « lieu de mémoire », au sens de Pierre Nora, et à le conserver dès lors en l'état, comme « musée du musée », tout en y surimposant une interprétation et une discussion du lieu dans le contexte contemporain: en contrepoint a cette muséographie inchangée, un nouvel espace aurait été créé en sous-sol, traitant de problématiques relatives à l'Afrique actuelle et aux relations Nord-Sud24. Ce projet n'a pas eu de suite. Mais l'arrivée du nouveau directeur, en 2001, a donné lieu à une réflexion générale du personnel scientifique sur la rénovation. A cette occasion, dans ce qui nous semble être le même esprit, B. Wastiau a proposé que la réfection totale de la muséographie de l'exposition permanente soit accompagnée de la reproduction à l'identique d'une des salles d'ethnographie telle qu'elle existait en 1910, à l'ouverture du musée, de manière à expliquer au public les voies par lesquelles l'idéologie coloniale pouvait trouver à s'y exprimer, et à soulever des questions sur les classifications, les modes de présentation des objets, etc25. L'idée n'a finalement pas été retenue.

25 Le projet officiel de rénovation tel qu'il a été présenté en novembre 2002, comme nous l'avons dit, n'est quant à lui pas extrêmement précis. Les lignes générales qu'il trace ne semblent cependant pas faire place à ce type de démarche, ce qui pourrait présenter une forme de recul dans la réflexion muséographique sur le passé colonial du musée. L'idée centrale énoncée est de faire du MRAC un musée de l'Afrique actuelle, avec une muséographie nouvelle, centrée sur l'interdisciplinarité, et mettant en avant des grandes problématiques, au rang desquelles le développement durable occupe une bonne place dans les déclarations. Le nouveau parcours serait centre sur le concept d'un voyage le long du fleuve Congo, l’ensemble des disciplines abritées étant mêlées au fil des salles. La place exacte octroyée à l'histoire coloniale, de la Belgique comme du musée, n'est pas claire. Une préfiguration éventuelle de sa teneur pourrait cependant être constituée par l'exposition temporaire qui s'est récemment tenue au musée, intitulée « Mémoire du Congo. Le temps colonial »26. Nous terminerons donc l'étude de cette évolution encore inachevée en analysant rapidement la manifestation dans cette perspective.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 44

26 Il convient de souligner immédiatement que le titre de l'exposition est assez trompeur. Elle ne constitue pas en premier lieu une réflexion sur la mémoire, mais sur l'histoire de la colonisation belge au Congo, replacée dans une perspective longue, par le biais d'une évocation du Congo pré- et postcolonial. L'intérêt est avant tout porté aux faits historiques, et non aux représentations du passé. Il ne s'agit donc plus ici de mettre l'accent sur la contingence des discours mais de donner à voir le résultat du travail minutieux de reconstruction du passé effectué par l'historien. La seule référence explicite à ce qui pourrait être assimilé à la mémoire collective belge de la colonisation vise en fait à rejeter une approche en ces termes. Le propos est tranchant: « L'Afrique ne fait pas exception au droit d'enquête historique, sans égard aux sentiments, aux amnésies ou censures de tout bord. Ici aussi l'exigence fondamentale du travail historique est d'identifier les contextes qui permettent d'avancer des explications plausibles. Lorsqu'il est question de l'Etat du Congo, ce travail d'identification fait généralement défaut. Le passé du Congo sert de prétexte à des controverses qui lui sont étrangères, soit qu'elles touchent à l'identité belge, soit qu'elles servent de terrain d'exercice «meaculpiste» aux intelligentsias occidentales. La question ne semble pas se poser que le bassin du Congo peut avoir son histoire à part entière [...] »27. On ne saurait concevoir démarche plus opposée à l'interrogation de la mémoire de ce passé à l'œuvre en Belgique. Cette position s'explique certainement par la personnalité du directeur scientifique de l'exposition, l'historien Jean-Luc Vellut28. Sa voix rejoint au reste celles d'un nombre croissant d'historiens, qui s'élèvent aujourd'hui pour redire avec force le départ à effectuer entre histoire et mémoire, les dangers de l'instrumentalisation de la première par la seconde, ou plutôt par les secondes — mémoires divergentes, voire antagonistes — et l'importance accrue de l'interrogation critique du passé colonial par l'historien dans le contexte des débats sur ses incidences contemporaines29.

27 Si cette prise de position est tout à fait justifiable, il y a cependant lieu alors d'interroger la pertinence du titre de l'exposition. S'agirait-il simplement de s'inscrire dans l'air du temps, et d'attirer le visiteur par l'énoncé d'une thématique prisée, au final mensongère? En fait, le récit historique fourni par les panneaux est complété par les témoignages contemporains d'acteurs (coloniaux et colonises) du moment colonial, consultables sous forme filmée sur des homes audiovisuelles, qui constituent bien des récits mémoriels, fournis de manière brute, sans interprétation critique. Néanmoins, aucune réflexion globale à leur sujet n'est apportée au visiteur, qui lui permettrait de comprendre le statut différencié des deux types de discours ainsi offerts à son entendement. On peut pourtant penser qu'exposer la mémoire (ou en l'occurrence l'histoire et la mémoire) aurait exigé, au-delà de la simple juxtaposition de ce type de témoignages, une interrogation explicite du terme, rendue accessible au public30. La consultation de ces homes est par ailleurs facultative, dans un parcours déjà fort long constitué par l'analyse proprement historique, de sorte que l'on a bien affaire au final à un projet centre sur l'histoire coloniale du Congo - et, dans cette mesure, à une interrogation très stimulante de l'histoire du Congo, permettant que soient enfin abordées au musée les phases les moins glorieuses de cette période - mais non sur la mémoire coloniale.

28 Ce constat d'un décalage entre le titre et le propos de l'exposition peut cependant être éclairé au regard, non plus du fond ou de la forme qu'elle prend, mais des objectifs poursuivis en la présentant au MRAC. Résolument inscrite dans le cadre de la rénovation du musée, et présentée comme un retour sur le passé de la Belgique et de l'institution indispensable dans cette perspective, « Mémoire du Congo » est en effet officiellement envisagée comme une réponse « à la demande croissante d'informations sur cette période

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 45

complexe », mais aussi comme une reconnaissance du « passé commun » qui lie la Belgique et la République démocratique du Congo, jugée essentielle en vue de la transformation du MRAC en « lieu de rencontre et centre d'études axés sur la collaboration interculturelle »31. On perçoit la nouvelle politique africaine de la Belgique. Il s'agit d'œuvrer à la réconciliation des deux pays en fondant sur de nouvelles bases une relation apaisée. Partant, le but est donc d'agir sur les mémoires nationales de la période coloniale. Les propos plus officieux tenus par une des commissaires de l'exposition, par ailleurs membre permanent du MRAC, lors d'un débat avec le public, s'avèrent éclairants sur ce point: « Au fond, nous espérions avec toutes ces informations faire un peu changer les mentalités, et que, à la sortie de l'exposition, que ce soient des européens qui aient traverse cette exposition ou des africains, on ait au fond une espèce de démythification de cette image qu'on avait de l'autre, qu'on ait un petit peu changé son image qu'on avait de l’autre et qu'on trouve … qu'on finisse par trouver un terrain d'entente et que, avec des débats comme ceux-ci, nous puissions progresser pour vivre ensemble, et dépasser cette période coloniale»32.

29 Au final, l'exposition a donc bien pour centre la mémoire coloniale. Mais en ce sens, ici, que le projet sous-jacent du musée est de contribuer à faire émerger une mémoire partagée, pacifiée, de la colonisation, premier jalon sur la voie de relations harmonieuses entre la RDC et la Belgique et entre communautés d'origine congolaise et belge sur le territoire national. L'exposition, et le musée avec elle, ne tenteraient donc pas de constituer le reflet de mémoires coloniales plurielles, souvent antagonistes, mais de se faire l'instrument d'une mémoire unifiée et apaisée de la période coloniale33. Ce changement de perspective appelle en conclusion plusieurs remarques.

30 Le constat le plus immédiat est celui de l'échec du projet. L'idée qui lui est sous-jacente consiste à poser que les mémoires contradictoires et adverses de la colonisation portées par certains groupes (mémoires principalement dénonciatrices vs. zélatrices de l'entreprise coloniale34) découlent d'une information tronquée ou orientée sur ce passé. Le rétablissement de l'intégrité de cette information suffirait dès lors à voir régner la Concorde. Pourtant, s'attriste en définitive S. Cornelis, confrontée à des réactions virulentes du public, « à ce stade-ci du débat, je me rends compte qu'il y a des buts fondamentaux de l'exposition qui n'ont pas été atteints, qui n'ont pas abouti. [ ... ] Je me rends compte à quel point les images qui ont été créées à cette période coloniale ont imprégné les mentalités et ne partiront vraiment jamais»35. Mais c'est que face à des représentations figées, la simple information, aussi précise fût-elle, se révèle impuissante dlans l'immédiat. L'expérience montre que les mémoires divergentes du passé colonial sont trop fortement prégnantes, et sûrement liées à l'identité de ceux qui les ont incorporées, pour souffrir que soit imposé à leurs détenteurs le fruit final d'une réflexion historique36. Ces mémoires jouent en fait le rôle de grilles de lecture sélectives et mènent ceux qui les portent à percevoir ces connaissances historiques, suivant le cas, comme trop critiques ou trop timorées, et à les rejeter en tout état de cause en bloc. On peut alors se demander si une muséographie faisant davantage appel aux visiteurs, sur le mode des méthodes que nous avons pu décrire précédemment (en fournissant par exemple une articulation explicite des données historiques avec la notion de mémoire et en permettant d'interroger les récits des acteurs au prisme de cette notion), ne permettrait pas d'aller davantage dans le sens recherché, en les incitant à effectuer un retour sur eux-mêmes et leurs propres représentations.

31 Si la partie historique du musée rénové reprenait au final les grandes lignes de l'exposition temporaire, il est loisible de penser, cela étant, qu'elle pourrait bien

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 46

contribuer sur le plus long terme à impulser dans la société belge les cadres structurant une telle mémoire unifiée du fait colonial. Mais plus globalement, l'objectif d'atteindre à une mémoire exclusive, apaisée, de la période coloniale se révèle en réalité problématique en ce qu'il tend naturellement à prôner une version jugée « moralement correcte » du passé 37. Au lieu de quoi il nous semble qu'il convient de se demander si ces mémoires ont tout simplement vocation à être conciliées, et si la pacification des rapports entre ceux qui les portent ne residerait pas davantage clans la possibilité de leur expression plurielle et contradictoire — mais en tant, précisément, que mémoires, dont il faudrait des lors faire entrevoir le caractère subjectif et contingent, et le statut fondamentalement différencié de celui de l'histoire. L'objectif est loin d'être aisé, mais une rénovation véritablement ambitieuse du MRAC ne devrait sûrement pas faire l'économie de ces questionnements profonds, tant sur la notion de mémoire que sur ses possibles traductions muséographiques.

NOTES

1. « Mémoire du Congo. Le temps colonial », du 4 février au 6 octobre 2005 au MRAC. 2. M. HALBWACHS, Les cadres sociaux de la mémoire, Paris, La Haye, Mouton Editeur, 1976 [1925]. Rappelons succinctement qu'Halbwachs s'attache à montrer dans cet ouvrage comment la remémoration individuelle n'est possible que par un travail de localisation des souvenirs dont l'efficace dépend du lien qu'ils entretiennent avec certains évènements saillants de l'existence. Comme ces évènements ne sont jamais exclusivement individuels, mais prennent sens du fait de l'inscription sociale du sujet dans son ou ses groupes d'appartenance (familial, religieux, professionnel...), Halbwachs en conçoit l’idée des « cadres sociaux de la mémoire » au travers desquels la mémoire individuelle se construit. C'est en ce sens que la mémoire peut être dite sociale, ou collective: en tant qu'elle s'articule dans la pensée individuelle à des cadres issus du groupe. On voit là que le musée constitue évidemment un lieu propice a l'incorporation de ces cadres sociaux de la mémoire. 3. Voir M. LUWEL, «Histoire du Musée royal du Congo belge a Tervuren», Congo-Tervuren, nº 2, 1960, pp. 31-49. 4. Propos qui auraient été tenus par Léopold a Charles Girault, architecte du nouveau musée, rapportés in A. DE HAULLEVILLE, « Le Musée du Congo Belge a Tervuren», L' Expansion belge, n° 12, décembre 1910, p. 948. 5. Nous ne pourrons ici décrire et analyser exhaustivement les salles. Pour une présentation critique plus détaillée, voir J. M. RAHIER, «The ghost of Leopold II: the Belgian Royal Museum of Central Africa and its dusty colonialist exhibition», Research in African Literature, vol. 34, no 1, printemps 2003, pp. 58-84; ainsi que le nouveau guide du musée, dont nous serons amenés à reparler: La clé du musée. Guide du visiteur du MRAC. Musée royal de l'Afrique centrale, Tervuren, 2003. Pour une interrogation plus particulière sur les salles ethnographiques, voir aussi: B. WASTIAU, « La reconversion du musée glouton », in M.-O. GONSETH, J. HAINARD, R. KAEHR (dirs.), Le musée cannibale, Neuchâtel, musée d'ethnographie, 2002, pp. 85-109. 6. La clé du musée..., op. cit., p.29. 7. C'est ainsi par exemple que le pendant français du MRAC, le musée coloniale de la Porte Dorée, s’est vu transformé dès 1961 en Musée des Arts africains et océaniens, sous l'impulsion d'André

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 47

Malraux, qui lui a donné une orientation artistique et une vocation a œuvrer à la reconnaissance des cultures africaines et océaniennes. 8. A. DE HAULLEVILLE, art. cit.,p. 949. 9. J. STENGERS, «Belgian Historiography since 1945», in P. C. EMMER, H. L. WESSELING, Reappraisals in Overseas History. Essays on Post-War Historiography about European Expansion, Leiden, Leiden University Press, 1979, p. 166. 10. G. DE VILLERS, «Les études africaines en Belgique. Evolution et perspectives», Bulletin des séances de l'Académie Royale des Sciences d'Outre-Mer, vol. 44, nº 3, 1998, p. 331. 11. La presse belge ne manque d'ailleurs pas de souligner qu'on attend toujours en France, en Grande-Bretagne, au Portugal ou en Allemagne une exposition sur l'histoire coloniale semblable à celle qui s'est déroulée récemment au musée (voir Guy DUPLAT, Roger Pierre TURINE, « Ni rêve, ni cauchemar », La Libre Belgique, 4 février 2005; et Colette Braeckman, « Un retour sur images qui ouvre l'avenir », Le Soir, 4 février 2005). En ce qui concerne le cas français, on peut rappeler pour comparaison les débats auxquels a donné lieu la question de la réaffectation des bâtiments du Musée des Arts d'Afrique et d'Océanie, ancien musée colonial, vidés de leurs collections suite à l'ouverture du nouveau Musée du Quai Branly. Des voix se sont élevées pour suggérer de saisir cette occasion unique de consacrer un musée national à la période coloniale. En juillet 2004, cependant, il a été arrêté que ce serait la « Cité nationale de l'histoire de l'immigration » qui verrait le jour dans ces locaux, décision qui a pu être critiquée comme un moyen d'épargner à la France une réflexion véritable sur son passé colonial (Voir P. BLANCHARD, « Musée des immigrations ou Musée des colonies? », L' Humanité, 3 décembre 2003). S'il est tardif, le questionnement du musée de Tervuren n'en est donc pas moins méritoire et ambitieux. 12. Nous ne pouvons la décrire précisément ici, mais l'on pourra se référer dans ce but a deux très bonnes analyses de l'exposition et des réactions qu'elle a suscitées: K. ARNAUT, « ExltCongoMuseum en de Afrikaniste Voor een etnografie van de Belgische (post)koloniale conditie », Forum, n° 20, mars 2001; et R. CORBEY, « ExltCongoMuseum: the travels of Congolese art », Anthropology today, juin 2001, pp. 26-28. Voir également son catalogue: B. WASTIAU, ExltCongoMuseum. Un essai sur la « vie sociale » des chefs d'œuvre du musée de Tervuren, Catalogue d'exposition, Tervuren, Musée royal de l'Afrique centrale, 2000. 13. Entre autres réactions, la réflexion menée dans le catalogue de l’exposition a par exemple été dénoncée pour son ton « négatif et provoquant », censé contribuer à « présenter notre institution sous un éclairage déformé et partial», de sorte que sa réécriture a été demandée à Boris Wastiau, « en vue d'aboutir à une approche des donnees de l'exposition qui soit objective et scientifiquement correcte » (Lettre de J. Gansemans (chef du département d'anthropologie culturelle du MRAC) à B. Wastiau, 31 octobre 2000). Il est amusant de noter que reparait ici la notion d'objectivité scientifique chère au premier directeur du musée... (nous tenons à remercier B. Wastiau de nous avoir laissé consulter l’ensemble des archives et de la correspondance liées à l'exposition). 14. La rénovation du MRAC a ainsi fait l'objet d'une question parlementaire de Leen Laenens, membre du groupe Agalev, justifiée par le fait, expliquait-elle, qu'à l'occasion de la visite de l'exposition ExltCongoMuseum, elle avait été choquée par la mise en scène historique de la période coloniale au sein de l'exposition permanente du musée (« Question orale de Mme Leen Laenens au secrétaire d'Etat à la Coopération et au Développement sur ‘l'exécution de l'accord-cadre relatif au Musée Royal de l'Afrique Centrale’ », n° 3160, 6 février 2001). 15. Voir S. MACDONALD, R. SILVERSTONE, «Rewriting the museum's fictions: taxonomies, stories and readers», in D. BOSWELL, J. EVANS (dir.), Representing the nation: a reader. Histories, heritage, and museums, Londres, New York, Routledge, 1999. 16. Voir, pour cette analyse du contexte politique: G. DE VILLERS, « Histoire, justice et politique. A propos de la commission d'enquête sur l’assassinat de Patrice Lumumba, instituée par la Chambre belge des représentants », Cahiers d' Etudes africaines, n° 173-174, 2004, pp. 198-202.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 48

17. C. BRAECKMAN, Terreur africaine. Burundi, Rwanda, Zaire: les racines de la violence, Paris, Fayard, 1996, qui s'interroge sur la responsabilité de la politique coloniale belge dans les évènements qui ont secoué ces pays; A. HOCHSCHILD, Les fantômes du roi Léopold II. Un holocauste oublié, Paris, Belfond, 1998, dénonçant les exactions commises sur les populations congolaises par le régime léopoldien; L. DE WITTE, L'Assassinat de Lumumba, Paris, Karthala, 2000, qui est à l'origine de l'ouverture de la commission d'enquête. 18. Au cours de l'année 2000, la RTBF diffuse ainsi une série documentaire intitulée « Mémoires noires d'une indépendance », donnant la parole à des Congolais pour retracer des chroniques de ce tournant historique (voir http://www2.rtbf.be/jp/matin/congo/ accueil.html [septembre 2006]). Dans le même temps est présenté à Bruxelles un spectacle théâtral intitulé « Bruxelles, ville d'Afrique », revenant de manière critique sur l'histoire coloniale belge et les rapports contemporains entre le Congo et la Belgique (voir http:// www.groupe-kuru.org/indexbva.html [septembre 2006]). Voir aussi B. BALTEAU, M. DUMOULIN, « Colonisation belge: historiographie et mémoire audiovisuelle », La Revue nouvelle, nº 1-2, janvier-février 2005, pp. 70-78. 19. Voir G. DE VILLERS, art. cit., p. 200. 20. On se permettra de renvoyer sur ce sujet à C. DESLAURIER, A. ROGER, « Mémoires grises. Pratiques politiques du passé colonial entre Europe et Afrique », Politique africaine, nº 102, juin 2006, notamment pp. 18-22, ainsi qu'à l'ensemble du dossier sur les « Passés coloniaux recomposés » introduit par cet article. 21. J.-P CHRETIEN, « Le passé colonial: le devoir d'histoire », Politique africaine, n° 98, juin 2005, p. 142. 22. Voir notamment H. ASSELBERGHS, D. LESAGE, Het museum van de natie: Van kolonialisme tot globalisering, Bruxelles, Yves Gevaert, 1999. 23. K. ARNAUT, art. cit. (nous traduisons). 24. Voir J. CAPENBERGHS, «Re-turning the shadow. Museological reflections on the Royal Museum for Central Africa in Tervuren, Belgium», JCME sessions, Conference triennale de l'ICOM, Barcelone, 2-4 juillet 2001 (disponible sur http://biblioteknett.noIalias/HJEMMESIDEIicme/ icme2001Icapenberghs.html [septembre 2006]). 25. Entretien avec B. Wastiau, novembre 2004. 26. Celle-ci a été l'œuvre d'une collaboration entre commissaires employés dans les services scientifiques du musée et extérieurs a l'institution. A la veille de l'ouverture de la manifestation, la responsable du service de muséologie du MRAC nous a exprimé son espoir que le travail effectué puisse constituer la base d'une présentation réduite dans le cadre de l'exposition permanente (entretien avec K. Claessens, novembre 2004). Nous ne disposons pas d'information plus récente et officielle à ce sujet. 27. Note synthétique intitulée «Brutalité et actes de barbarie» figurant à l'entrée d'une salle et dans la brochure gratuite qui accompagne l'exposition. 28. Spécialiste belge de l'histoire du Congo, J.-L. Vellut est en effet coutumier de la dénonciation d'une tendance actuelle à l'augmentation des études consacrées aux représentations occidentales de l'Afrique, qu'il juge effectuée au détriment tout à la fois des travaux proprement africanistes — ce qu'il considère comme le symptôme d'un « repli sur soi » — et d'une discussion appropriée de le vérité historique — abandonnée selon lui par ces études au profit d'un relativisme extrême, consistant à présenter sur un plan identique l'ensemble des représentations isolées (J.-L. VELLUT, « La peinture du Congo-Zaïre et la recherche de l'Afrique innocente », Bulletin des séances de l'Académie Royale des Sciences d'Outre-Mer, n° 36, avril 1990, p. 652). 29. Pour un apport récent à ce débat, discutant précisément de l'exposition « Mémoire du Congo » dans une perspective comparée belgo-française, voir J.-P. CHRETIEN, « Le passé colonial: le devoir d'histoire », art. cit.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 49

30. Si celle-ci n'est pas visible en l'état, elle a néanmoins dû se faire jour au sein du comité scientifique. Ainsi l'un de ses membres, l'historien congolais lsidore Ndaywel è Nziem, nous a-t-il indiqué que le titre « Mémoires du Congo », au pluriel, avait dans un premier temps été suggéré, puis finalement abandonné faute d'une possible traduction en Néerlandais (entretien avec I. Ndaywel, 27 juin 2005). On perçoit bien l'implication cruciale de cet usage du terme soit au singulier soit au pluriel-et le caractère du reste assez peu satisfaisant de la solution choisie. Si discussion critique et justification de ce choix il y eut, nulle trace n'en est cependant perceptible au visiteur. 31. Citations du directeur du musée, extraites du catalogue de l'exposition: G. GRYSEELS, « Avant-propos », in J.-L. VELLUT (dir.), La mémoire du Congo. Le temps colonial, Tervuren — Gand, Musée royal de l'Afrique centrale, Editions Snoeck, 2005, p. 5. 32. Sabine Cornelis, commissaire de l'exposition, scientifique au MRAC, chef de travaux dans la section d'Histoire de la période coloniale, lors d'un débat sur « L'exposition et les enjeux de l'histoire coloniale » organisé par le musée le 6 mars 2005, ou se faisaient jour au sein du public des représentations fortement polarisées de la période (sur un axe opposant très schématiquement accusateurs et laudateurs de l' entreprise coloniale) qui les unes comme les autres menaient à une critique de la version en quelque sorte médiane fournie par l'exposition. 33. Le débat sur la déclinaison de son titre au singulier ou au pluriel, ainsi que le choix final effectué, acquièrent ici toute leur valeur. 34. Ces dernières étant particulièrement portées par d'anciens coloniaux, toujours très actifs au cours des débats qui ont lieu en Belgique, et rassembles dans une association baptisée Union royale belge pour les pays d'outre-mer (UROME, voir http://www.urome.be/fr/acc.htm [septembre 2006] pour un aperçu de ses activités et prises de position). 35. Débat du 6 mars 2005. 36. Sur le lien entre mémoire du temps colonial et identité du groupe, particulièrement dans le cas des anciens coloniaux et des anciens colonisés, voir L. LICATA, O. KLEIN, « Regards croisés sur un passé commun: anciens colonisés et anciens coloniaux face a l'action belge au Congo » ,in M.SANCHEZ-MAZAS, L. LICATA, L'Autre: Regards psychosociaux, Grenoble, Presses universitaires de Grenoble, 2005, pp. 241-277. 37. N. GEDI, Y. ELAM, art. cit., p.42: la critique est en l'occurrence adressée à un ouvrage prétendant qu'aucune mémoire collective occidentale de l'Holocauste n'existe, pour la raison que les Juifs et les Allemands n'en auront jamais que des mémoires contraires, ce que les auteurs dénoncent comme une vision de la mémoire collective fondée sur une notion stéréotypée et « moralement correcte » de l'Holocauste, qui aurait vocation à être partagée par l'ensemble de l'humanité.

RÉSUMÉS

Até muito recentemente, o Museu Real da África Central, na Bélgica, uma instituição nacional outrora dedicada a propaganda colonial, continuava a fornecer uma narrativa pública da realidade congolesa e africana muito marcada pelo seu contexto colonial de criação. O estudo da sua renovação em curso — um processo que começou no início do século XXI — permite-me considerar o papel complexo da materialização oficial da memória belga do colonialismo: à vez, mas também simultaneamente, fornece e é produzido pelos quadros sociais da memória que funcionam na sociedade belga. O artigo lida com o longo sono do museu e a sua última evolução,

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 50

recolocando-o no contexto científico, política e social do actual ricochete geral da memória do passado colonial no país. A análise do processo de reforma desta instituição (incluindo uma investigação da espectacular exposição temporária denominada «Memoória do Congo. A Era Colonial», que teve lugar em 2005) salienta a emergência de um projecto político e museológico que procura criar uma memória una e fortalecida do colonialismo na Bélgica — uma memória que, na sua concepção, deve ser partilhada com o povo congolês e é vista como uma promessa de relacionamento produtivo e próximo com a antiga colonia. O artigo lida com as expressões e os limites de uma abordagem tão determinada da memória.

Until very recently, the Royal Museum for Central Africa, in Belgium, a national institution once dedicated to colonial propaganda, provided a public narrative of the Congolese and the African reality very much tinged with by its colonial context of creation. The study of its on-going renovation — a process that began in the early 2000s — allows me to consider the complex role of this official materialisation of the Belgian memory of colonialism: by turns, but also simultaneously, it provides and is produced by the social frameworks of memory that function in the Belgian society. The article deals with the museum's long sleep and its eventual evolution, replacing it in the scientific, political, and social context of a current general back-fire of the memory of the colonial past in the country. The analysis of the reformation process of this institution (including an investigation of a spectacular temporary exhibition entitled «Memory of the Congo. The Colonial Era», held in 2005) highlights the underlying emergence of a political and museal project which aims to create a unified and allayed memory of colonialism in Belgium — a memory which, in its conception, is supposed to be shared with the Congolese people and that is seen as a promise of fruitful and close relations with the former colony. The article deals with the expressions and the limits of such a determined approach of memory.

INDEX

Keywords : Royal Museum for Central Africa, social memory, Belgian colonial empire Palavras-chave : Museu Real da África Central, Memória social, Colonialismo belga

AUTEUR

AURÉLIE ROGER CEAN (Centre d’Etude d’Afrique Noire), Institut d’Etudes Politiques, Bordeaux

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 51

«I escaped in a coffin». Remembering Angolan Forced Labor from the 1940s «Eu escapei num caixão». Recordando o Trabalho Forçado Angolano desde os anos de 1940

Jeremy Ball

Introduction

1 The transition from slave-based economies, whether in the Americas or Africa, was never as simple as abolition implies. In many places former slaves served apprentice periods for years, and in others, sharecropping arrangements meant working conditions and the privileges accorded free persons eluded former slaves. Perhaps no part of the world better exemplified the muddy waters of this transition than colonial Angola. Portugal, like other colonial powers in Africa, abolished slavery, yet still wanted access to Africans' labor power. The most effective means to ensure access was the head tax, known in Portuguese Angola as the imposto indígena (native tax). By requiring all African men to pay this tax in Portuguese currency the government created a situation in which a large percentage of men in any given year could only earn the specie needed to pay the tax by going to work for a colonial employer. Of course, compelling people to work for low wages at undesirable jobs in distant locations from their homes and families required more than simply a law. The Portuguese constructed a network to enforce their requirements and to deliver labor. It was this network of colonial administrators and African policemen (cipaes; sing. cipaio) who enforced the system, often brutally, to ensure compliance. Women were not exempted, and in fact, it was women and children who built and maintained much of Angola's extensive road system.

2 The details of how Angolan forced labor functioned have been well documented by investigative commissions, missionaries, and Angolan reporters and civil servants. One lacuna, however, is how forced laborers themselves viewed the system. Did, for example,

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 52

these men and women have opportunities to resist? How did the system affect differently men and women? Due to the fact that forced labor was abolished in 1961, memories are filtered through a half century of life, including war, independence, and the official memory of colonialism. With these caveats, this paper argues that men and women have distinct memories based on their gendered experience of forced labor. However, former forced laborers, from across a huge geographical area describe the same basic network of oppression. Work songs lamented suffering and questioned the work regime, but so far as my interviewees attested, they did not directly challenge the system. The line between survival and resistance was often blurred as well. For example, a woman who agreed to sleep with a cipaio or capataz (foreman) in order to get out of grueling road construction. The only clear act of resistance was to flee (fugir). Contract workers commonly exercised this option, and often went to great lengths to re-locate to new districts and towns, in order to evade the authorities.

3 So-called «grey» memories emphasize materially better off times under colonialism; in the words of one interviewee, «at least in those days we had enough to eat». Many others voiced respect for Portuguese efforts to develop the country. And yet, in spite of all the hardship since independence — war, deteriorating infrastructure, and extreme poverty — former contratados did not voice nostalgia for colonialism. In fact, nearly all dismissed colonial rule as humiliation, and remembered with pride the day they first heard about Patrice Lumumba, the Congolese independence leader.

Documenting Forced Labor in Twentieth-Century Angola

4 People subjected to forced labor did not, as a rule, leave a written of their experiences; and thus it is very difficult to write a history from their perspective1. However, two sources in particular provide access to how workers viewed forced labor. The first source is the investigative report, of which several were conducted in Angola over the course of the twentieth century. The second source, interviews with former contratados (contract laborers), reveals how participants remember the past. As historian Alessandro Portelli explains, «the first thing that makes oral history different... is that it tells us less about events as such than about their meaning... the unique and precious element which oral sources force upon the historian and which no other sources possess in equal measure (unless it be literary ones) is the speaker's subjectivity... »2. Thus, memories of how forced labor functioned a half century ago help us to understand how former contratados remember their lives as indígenas (natives) under Portuguese law3.

5 In 1924 the American sociologist Edward Ross traveled in the interior of Angola for several weeks on behalf of the Temporary Slavery Commission of the League of Nations. Ross explains his methodology: «...we visited the native villages in the bush, gathered the people together and, through an interpreter known to them and in whom they had confidence, questioned them as to their compulsory labor. In Angola nineteen villages were visited from three centres not less than two hundred miles apart. The facts as to many other villages were elicited from conversation with the chief, the native pastor or the native teacher. The statements were taken down just as they fell from the lips of the interpreter and such notes form the basis of this report»4.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 53

6 Ross's method of collecting information is significant for the historical record because he questioned a reasonably random selection of people to recount their experiences. He questioned leaders-chiefs, pastors and teachers — but also ordinary people, including women. Ross's report is one of the few sources we have that provides a space for ordinary Angolans to explain the effects of forced labor. A woman on the first Work Gang Ross encountered attested: «Sometimes after the men are taken from the village, they take some of the women [to work on road maintenance]. Some men were taken to Catete on the railroad to work in the cotton fields. They may have to stay two or three years as contracted laborers. Some of them have been sent to work on sugar plantations for a six month's term, but under various pretexts the time may be prolonged to seven or eight months. The planter told them that he had «bought» them of the Government, that they were his slaves and that he did not have to pay them anything. They got only their food and a receipt for their head tax»5.

7 Withholding pay was another chronic abuse. Workers in different villages told Ross the same thing: that they worked, received food, a receipt for their tax, but no pay. According to Portuguese colonial labor law, employers were supposed to send approximately three- fourths of a worker's wages to the chefe de pasta in the worker's home area. When the worker finished his contract, he would collect his wages from the chefe de pasta in his home area. Workers reported that they rarely collected their wages from the administrators. For example, a worker explained to Ross that: «Government recruited him in 1920 and "sold" him to the petroleum company. He worked for it seven months, at the end of each three months he got a pano worth three escudos. At the end of the seven months he was told that he had seventy escudos due him, which would be paid him at the station where he had been recruited. However, he got nothing there but the receipt for his head tax. He asked about his wages but was told there was nothing for him»6.

8 Workers expressed the opinion that employers paid and that it was government officials who pocketed the money. Ross summarizes: «In practice forced labor works out as follows. A laborer works for the coffee planter and at the close of his term of service the planter says, "I can't pay you anything for I have deposited the stipulated wage for you with the Government; go to such and such an office and you will get your pay". The worker applies there and is told to come around in a couple of months. If he has the temerity to do so, he is threatened with the calaboose [jail] and that ends it. It is all a system of bare-faced labor stealing. They think that the planter has really paid for their labor, but that the official does them out of it»7.

9 Ross summarizes his findings as a collective condemnation of Portuguese colonial practice. He describes the labor system as «virtually state serfdom» that does not allow Africans adequate time to produce their food. Workers rarely received the bulk of their pay, which was embezzled by colonial officials. Africans had no recourse to colonial law for protection. The hut tax and obligatory labor for public works caused a heavy burden. Women, with only rudimentary tools and no pay, were forced to build roads, causing them to abandon their fields, and thus impacting negatively on food production. Ross's conclusions serve as a useful measure to weigh against future reports and oral history conducted in 2006.

10 A second investigate report from 1947 does not cite African interviewees, but is rather an analysis of Portuguese colonialism from a high-level Portuguese civil servant named Henrique Galvão, a former inspector for the colonies and governor of Huila Province in

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 54

southern Angola. Galvão, like Ross, identified forced labor and poor working conditions as undermining Portugal's long-term goals to develop Angola. Colonial officials, according to Galvão, became labor recruiters who sent workers to employers who paid bribes and stole salaries from workers whose interest they were supposed to protect. These conclusions mirrored those made by Ross twenty years earlier. According to Galvão, the practice of colonial officials forcibly recruiting workers for particular employers and receiving payments from employers and a cut of worker salaries was «required in confidential circulars and official orders»8. Galvão concluded that the system was crueler than pure slavery, an opinion also expressed by Africans interviewed by Ross in the 1920s. Mortality rates as high as thirty-five percent for forced laborers reflected the poor conditions under which they lived and worked.

11 Salazar's government made no effort to enact reforms as a result of the Galvão Report. Increasingly disillusioned, Galvão decided to make a public condemnation of the corrupt and incompetent colonial administration in Angola. On the floor of the National Assembly in 1949 he charged that the discrepancy between law and practice made the colonial administration a «colossal lie»: «This lie, that attempts to deceive the country and hides its own mediocrity and incompetence from our Government... has thrown Angola into a political, economic, and moral crisis without precedent in her troubled history of the last hundred years»9.

12 Definitive change did finally come on May 2, 1961, when Salazar's government, in the wake of an uprising in northern Angola, abolished forced labor and made all Angolans citizens. In fact, the government began to phase out forced labor in the mid-1950s. The government put pressure on colonial employers to ameliorate work conditions and focus on policies to attract voluntary workers. Large employers, such as the Sociedade Agricola do Cassequel in Catumbela, built new housing and medical posts for employees.

13 Manuel Espírito Santo, president of Cassequel's board of directors in , summed up the policy shift in a letter to the company's administration in Catumbela: «The labor problem is without a doubt of maximum importance for our business... the most desirable solution to the labor problem would be a voluntary work force, not only at present, but principally in the future given the native labor policy that the Governor General of the province plans to follow.

14 Hence, everything ought to be done to settle native families around our properties... so that the native is convinced of the advantages represented by the assistance that will be supplied to his children and wife and others that will be able to live in an environment of greater resources, free from the contingencies of bad agricultural years that bring hunger, and with a greater guarantee of income. A more intensive missionary action among our workers will result in their Christianization, which accords with our objective»10.

15 In 1959 Portugal ratified the 1930 Forced Labour Convention, which came into effect twelve months later. Within a few months, on February 25, 1961, Ghana filed a complaint against the Government of Portugal for alleged violations of the Forced Labour Convention. According to the Convention, «each Member of the International Labour Organization which ratifies this Convention undertakes to suppress the use of forced or compulsory labour in all its forms within the shortest possible period»11. After a series of hearings in Geneva, a three-member mission of inquiry spent a week in December 1961 investigating conditions in Angola. The ILO concluded that because of the part played in recruitment by

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 55

colonial officials and chiefs, the employment of recruited labor in the African colonies had «been alleged to constitute, and has in the view of the Commission in certain cases constituted, forced labor»12. Still, the ILO voiced optimism that the recent abolition of the Estatuto do Indigenato, and the commitment of the Portuguese government to reform, signaled an end to forced labor. Indeed, a follow up investigation by the ILO in 1970 concluded that contract labor in Angola did not involve coercion13.

Men's Memories of Forced Labor

16 Nearly a half century since the end of forced labor, former contratados still have vivid memories of their servitude. Working in conjunction with the Oral History Project at the Angolan National Archive, Manuel Domingoes, and I interviewed approximately 150 people over the course of five months between January and June 2006. We visited several key former recruitment districts on the Angolan central plateau: Bocoio (formerly Vila de Sousa Lara), Balombo (formerly Vila de Norton de Matos), Bailundo, Chinguar, and Quilengues. Upon arriving in each locale we contacted the local District Administrator to explain our project and to request assistance in contacting the local Regedor (head soba) to identify and coordinate visits to mais velhos and mais velhas who worked as contratados. We then interviewed men and women in groups of no fewer than five and no more than twenty. Roughly ? of interviewees were men, and ? women. Men were, in fact, the vast majority of contratados; however, women and children served as forced labor for roadwork. Nearly all of the interviews were conducted in Umbundu.

17 There was certainly an element of theatre involved in the group interviews. In nearly all the villages we set up a table, on which sat the tape recorder, and chairs. I often thought about «what it means to stage oral histories?»14. Did the performative aspect of the group interview presuppose how interviewees would answer? To begin we always explained, in Portuguese and in Umbundu, the objective of the group interview: «to learn about migrant labor from the 1940s and 1950s». I explained that we were working with the National Archives in Luanda, and that I had written a dissertation on the subject of labor in colonial Angola. As my dissertation was passed around, I told of my research in the National Archives and pointed out several reproduced photographs of contratados taken at the Sociedade Agrícola do Cassequel in Catumbela in 1961, just weeks before the 2 May 1961 abolition of the Estatuto do Indigenato. These photos, such as the one below, jump- started our conversation. I asked interviewees their reactions to the messages on the banner being held by contratados in the guia from Chinguar: «My land is Angola. Angola is a part of Portugal, hence I am Portuguese. My fatherland is Portugal». Most people simply laughed and shook their heads. The photo was then usually passed outside the immediate circle of mais velhos to younger men and women sitting on the outside the circle to hear their elders speak of the past.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 56

Chinguar Guia. Sociedade Agrícola do Cassequel Collection, Arquivo Histórico do Banco Espirito Santo (AHBES), Lisbon.

18 Memories of how the forced labor system functioned were consistent throughout the region, though with some variation in mechanisms for control. Sobas, who answered to the local chefe de posto, delivered specified numbers of men to serve as contratados. If a soba failed to fulfill the request he faced disciplinary action, including being beaten. João Ndamba remembers, for example, a soba from Chibungo who received 200 palmatórias (whippings), divided equally between his hands and feet, and as a result spent nine months in bed recuperating15. Men from distant areas describe similar consequences for sobas who failed to fulfill their labor quota. Augosto Katchilele from Chinguar remembers his soba receiving «matapalos», an Umbundu term for palmatórias, because he arrived at the government post with thirty men rather than the fifty the chefe de posto demanded to work on the roads16. Mr. Katchilele says those beatings explain why sobas «abducted men without rest»17.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 57

Interview, Bocoio, 16 February 2006. Photo by the author.

19 Most interviewees use the word «okukwatu» («to abduct») to explain how they were selected for forced labor. There was no choice in whether or not to accept, or even to where one would be sent for the next year. João Kutakata explains: «In 1940 when I was abducted, I had no notion of where I would be sent, and I received no explanation, nobody would take the time to explain to you that you will be sent here.. .what options does a prisoner have?»18.

20 In response to whether contratados exercised any choice in employer, Félix Alberto Satuala responded: «Not at all because the term contratado signified slave... nobody had the right to stand next to a white to say his name, much less to voice a preference [for employer]»19.

21 The best explanation as to why men in particular remained for long terms (anywhere from six months to eight years) as contratados without fleeing was that once a person's absence had been noted a message would be sent to the chefe de posto in the area of recruitment, who would then relay a message to the soba of the fugido (runaway). The soba was then expected to supply a replacement worker from the family of the fugido; thus, fleeing often carried a price for one's family. This practice also explains the importance administrators attached to compiling statistics at the time of «recruitment»: age, sobado (village), and names of parents. In Quilengues, which is an area where most people focus on cattle keeping, the soba held a man's cattle as collateral to ensure that he fulfilled his period of service. A contratado who fled thus risked forfeiting his family's collective wealth20. The fact that men from Quilengues had more to lose helps to explain their reputation (borne out by statistics) to rarely flee forced labor. Still, even in areas without cattle, the penalties suffered by families served as a major disincentive to flee.

22 For contratados who did flee, returning to one's village was out of the question. A fugido had to move to a new area and begin a new life. Some went to cities, others to neighboring agricultural zones. According to Alfredo Domingos, himself a fugido:

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 58

«For many of us who fled it was not possible to return here [to Monte Belo, Province of Benguela] and we had to move to other villages. There were men who fled who abandoned their families, wives, children, and parents»21.

23 Workers who fled generally walked for great distances, on back roads, and relied on the generosity of others for sustenance. A few came up with inventive plans for escape. In the 1940s, for example, several guias fled the Cassequel Sugar Plantation by claiming to the capataz that one of their members had died. Then, 8-10 men gathered to make up the funeral procession, with two live «corpses» in the coffin, they went in the direction of the cemetery, and never returned. According to Justino Patricio, «this system worked like magic, and when it was discovered, a good part of some groups had already fled»22.

24 The consequences for men caught fleeing their contract obligation were severe. First, the man would be arrested and put in prison, and usually beaten. Next, the fugido would be contracted to a new employer for a longer period of service. Often, caught fugidos were sent to São Tomé in the Gulf of Guinea. São Tomé was the most feared destination for contratados because of its great distance and the fact that periods of service lasted years, and many never returned — some as a result of death, others were simply never heard from again.

25 A person caught without his guia de circulação (passbook) was also liable to be sent to São Tomé. In the 1940s, for example, a young son of an important Umbundu soba was apprehended far from home without his guia de circulação. Normally sobas and their families were exempted from forced labor, but without proof of identity, the young Augustinho Kachitopolola had no right to an exemption. That young man, who would later return home and eventually become king of Bailundo, served nearly nine years on the São Tomé cocoa plantation Boa Entrada. King Augustinho Kachitopolola explains: «That work on São Tomé was slavery. I did not want to go, but because of the white [government official] I was sent to São Tomé for not having my passbook... on that plantation [Boa Entrada] I planted cocoa, bananas, coconuts, and later harvested each one, with sufficient whippings [chicotata] mixed in.... I also had to dig holes in which to plant the cocoa trees, this was surely the work of slaves... as were all of those who were sold in Catumbela and sent to São Tomé, and I was one of them. I worked roughly eight years and seven months until an order came down to liberate all of the slaves, all those who had been sold as slaves, now had to be returned to their lands of origin. Thus the government sent ships to carry us home»23.

26 Based on the King's age and estimated service as a contratado between the ages of 17 and 26, he must have served his time in the 1930s. It is true that the government occasionally put pressure on the plantation owners to return contratados to their home districts, which would corroborate the King's description of events. The general practice, of course, was to return contratados to their port of embarkation, so that a contratado from Bailundo would be returned to the coastal port of Benguela, and then expected to make his own way home, up the escarpment and across several hundred miles24.

27 Other fugidos carved out a space in one of Angola's growing and relatively anonymous cities. For fugidos from the central highlands, the coastal cities of Benguela and Lobito were favorite destinations. Bento Somuvuango fled a coffee fazenda (farm) and ended up spending three years as a domestic servant in Benguela. He avoided returning to his home and family in Bailundo because he feared being sent back to the coffee fazenda by his soba25.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 59

28 Across the board, contratados remembered their salaries as «virtually nothing». Men talked about working simply to pay their tax, which remained with the government administrators who «recruited» them: «I received 40$00 per month and when I arrived here [Quilengues] I received 600$00 after 15 months, from this salary they took out 300$00 to pay my taxes, leaving me with only 300$00. In that time we worked for the chefe de posto... who paid us that unjust salary, whilst the rest of the money remained with him. Hence, one time I asked the administrator why if we worked, the money to be paid to us remains here [with the administrator]? The Administrator thought about it, and said, «When you have a dog... and this dog goes hunting and brings home an animal, do you give the meat or the bone to the dog? We said, "I give him the bones". "Hence," the Administrator said, "you are like the dog, because you go to work"»26.

29 Work for contratados at the Port of Lobito loading and unloading cargo paid simi lar wages to contratados in the 1950s. João Ndamba remembers being paid 400$00 after 15 months of service, from which 150$00 was subtracted to pay his tax, leaving him «only with a few crumbs that did not solve any of your problems, much less those of your wife and children»27. Describing his work as a contratado at the Cassequel Sugar Plantation, José Ináçio explains: «You were not able to buy cloth for your wife with what we were paid, much less a shirt for your child. It was obligatory work, we did it not because we wanted to, but because they wanted us to, hence it was not good»28. One interviewee became exasperated when asked if during his service as a contratado he had a small garden to grow food: «My dear son... this is an absurd question because our work was the work of a prisoner, difficult work, a work without equal, hence it would be difficult for a slave to have a vegetable garden, no?»29.

Women's Memories

30 Both men and women were obligated to perform annual roadwork, usually of a relatively short duration of a week to two weeks. However, forced labor without pay on the roads is remembered as one of the most onerous and resented experiences of colonialism. In addition to the work being excruciatingly difficult – repairing holes created by rain and landslides by carrying baskets full of dirt by hand – it was usually women and children who performed the bulk of the work, though men also contributed. Selection for roadwork mirrored that for contratados, the chefe de posto sent word to a particular soba that x number of people would be needed on a particular stretch of road. The government provided no food or salary. Workers carried with them their own food. In order to ensure compliance with such hated instructions, cipaios were sent to enforce a disciplined work regime.

31 Memories of roadwork a half century later universally describe it as «slavery» and «work beyond the imagination». Verónica Chilomba, for example, explains salaries for road work: «If there wasn't even food for us, we certainly were not paid, we worked worse than slaves because a slave has a right to a cup of water»30. Cristina Vatchia explains: «I went to work on the roads at a very young age, and I saw the suffering. When we arrived, the first thing to do was to construct a shelter. We were like monkeys living in the rocks, running from one side of the road to the other like ants, our heads carrying huge baskets full of dirt... »31.

32 Women suffered especially due to sexual assaults from capatazes and cipaios. As a mais velha in Balombo explains: «We were humiliated, our suffering as women passed all boundaries because white men had no shame. We did not have the protection of our

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 60

husbands because they were also under the thumb of the whites... we were easy targets... it was really incredible how the colonists mistreated us»32.

33 In fact, it was not only whites who sexually assaulted women, but also black cipaios, who regularly chose concubines from among roadwork crews and in villages. In fact, this sexual abuse is documented as far back as 1924 in Edward Ross's Report on Employment of Native Labor in Portuguese Africa: «In the village where the cipaio sleeps for the night, he takes whatever woman he fancies and no one dares say him nay»33. Similar practices continued up through the end of forced labor in the late 1950s. Justina Kalumbo remembers: «The women considered beautiful to the eyes of men served the cipaios, and some of exceptional beauty were reserved for the capatazes... it was not important if she was married or not»34. When asked if women ever initiated sex in exchange for exemption from hard labor, all but one of the interviewees said no. They insisted that women were chosen and that they could not say no because it would mean severe reprisals, including beatings and increased work burden. As one interviewee explained: «If you did not consent you would be beaten as if you were an animal, or any other instrument to be used. The women were used with tears and with pain [on their faces], with violence, it was an act without equal, when you arrived home you looked at your husband with tears and sobs, ashamed at the same time»35.

34 The one interviewee who said she knew of women offering sex in exchange for exemption from forced labor, explained that women who did so ran the risk of receiving a beating: «… if the cipaio was not interested, you ran the risk of receiving chicotadas [whippings], because each one of us was so dirty to be unrecognizable»36.

35 Women forced into sex generally received support from their communities, including their husbands, because as Bernarda Kabyndo explains: «… though she [a woman raped during road work] arrived [back in the village] timid with her husband, and full of shame, she was not discriminated against by the community because in that time it was not only women who were violated, but also our husbands. When the whites said to do something, even if it was to parade around naked in a public street, you did it. It was not only women who had to comply»37.

36 In addition to performing obligatory roadwork, women shouldered the burdens of carrying for families during men's absence for contract labor. When a man left to spend six months or more on a faraway plantation, his family received no financial compensation. Indeed, Portugal's forced labor system, like those in place in neighboring British and French colonies, shifted the costs of family maintenance to rural areas, thus freeing colonial employers from the financial responsibility of supporting the family unit. Sra. Jacinta Cahomas explains: «our husbands never sent anything during forced labor, with luck when they arrived home they would buy you a pano [piece of cloth] and some clothes for the kids, but the rest went towards the tax. Many had to return to forced labor because they were unable to pay the next year's tax»38.

Grey Memories of Colonialism

37 The horrors of the civil war that engulfed Angola for most of the twenty-seven years between independence in 1975 and the assassination of UNITA leader Jonas Savimbi in 2002, accentuated for many Angolans the more positive aspects of colonialism such as: stability and access to consumer goods. Salomão dos Santos remembers that after the initial honeymoon when everything seemed «like a bed of roses», the situation quickly

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 61

deteriorated into a brutal war without reason or end39. UNITA, in particular, captured young people from the fields and took them to the bush to be forcibly turned into soldiers. It was during this period that people remembered «how we lived with the colonists, that in spite of having to pay our taxes, the suffering was nothing like now. We had food, clothes, drinks, etc., but now we have nothing, neither food nor clothes, and only war. What kind of independence is this?»40. One interviewee described the civil war as a kind of football game, in which ordinary people were kicked back and forth between warring elites. Paulo Sapeque describes the intense poverty caused by the civil war: «We had hunger, all over people went about naked because they had no more clothes. Villages were destroyed, the beautiful houses of the colonists were destroyed, bridges were blown apart... UNITA stole whatever they wanted, wherever they went they massacred, raped, and killed»41.

38 Following his explanation of the horrors inflicted on the region of Bailundo by the war, Paulo Sapeque commented that «the presence of a North American historian here in our midst is a good signal that we are in peace»42. In fact, my presence as a «European» or a «white» was referred to several times by the mais velhos as a sign of both change and peace. In Chinguar (Bihé) Senhor Benedito Chitumbo remarked: «it is a pleasure to see a white here in our midst conversing with our elders, in the past this never would have happened»43. Senhor Chitumbo remarked that «the Portuguese presence in Angola was a good thing in respect to development», however, «one never feels any nostalgia for someone who mistreats you, the negro was an instrument, or even better, a machine of labor»44.

Conclusion

39 It is clear from men and women's memories that Angola's forced labor regime affected men and women in distinct ways. Though exempt from forced contract labor, women carried the burden of maintaining the family while their husbands fulfilled their labor obligation away from home. It is not an exaggeration to say that women subsidized the profits of colonial businesses, as their husbands' wages were never intended to support a family. In many respects women shouldered a more onerous burden than their menfolk because it was primarily women, and children, who maintained the road network without pay. Women also faced the added humiliation of sexual exploitation at the hands of road foremen and police. As a result of their responsibilities to children and elders, women also had even fewer options for resistance than men. Women rarely exercised the option of fleeing because of their commitments to maintain children and elders. Men, on the other hand, frequently absconded onerous forced labor and settled far from home secure in the knowledge that their wives would maintain the homestead.

40 Conducting oral history interviews in rural Angola impressed upon me the importance of oral memory, especially in societies with relatively few written sources. In every village we visited, generations gathered to hear their elders «making history in dialogue», and giving this interviewer the sense that the occasion of the interview was truly momentous 45.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 62

NOTES

1. For an introduction to subaltern studies see Gyan PRAKASH, «Subaltern Studies as Postcolonial Criticism», American Historical Review, Vol. 99, n°. 5, 1994, pp. 1475-1490. 2. Alessandro PORTELLI, «The Peculiarities of Oral History», History Workshop, nº. 12, Autumn 1981, p. 97. 3. For an excellent analysis of the juridical status of indígenas see Mario MOUTINHO, O lndígena no Pensamento Colonial Português 1895-1961, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000. 4. Edward Alsworth ROSS, Report on Employment of Native Labor in Portuguese Africa, New York, The Abbott Press, 1925, p. 5. 5. Ibid., p. 6. 6. Ibid., p. 8. 7. Ibid., p. 9. 8. Ibid ., p. 30. 9. Session of 24 February 1949, Caixa 48, nº. 10 «Henrique Galvão», Arquivo Histórico- Parlamentar, Assembleia da Republica. 10. «Letter from Manuel Espírito Santo to Administration in Africa», (March 10, 1955), in Cartas Recebidas, 1950-1955, Colecção da Sociedade Agrícola do Cassequel, Arquivo Histórico do Banco Espírito Santo (AHBES), Lisbon. For a comparative case of improving labor conditions in order to attract workers to the sisal plantations of southern Tanganyika see Alpers, «'To Seek a Better Life'», p. 375. 11. International Labour Organisation, Conventions and Recommendations, 1919-1981, Geneva, International Labour Organisation, 1982, p. 29. 12. Ibid., p. 245. 13. «Report by Pierre Juvigny, Representative of the Director-General of the International Labour Office, on Direct Contacts with the Government of Portugal Regarding the Implementation of the Abolition of Forced Labour Convention, 1957 (No. 105)», in ILO, International Labour Conference, 56, 1971, p. 7. 14. Della POLLOCK (ed.) Remembering Oral History Performance, New York, Palgrave MacMillan, 2005, see in particular pp. 2-3. 15. Interview with João Ndamba, 17 February 2006, Monte Belo (Benguela). 16. Interview with Augusto Lopes Katchilele, 18 April 2006, Chinguar (Bié). 17. Ibid. 18. Interview with João Kutakata, 21 February 2006, Balombo (Benguela). 19. Interview with Félix Alberto Satuala, 18 April 2006, Chinguar (Bié). 20. Interview with Manuel Seguro, 9 May 2006, Socobal (Quilengues). 21. Interview with Alfredo Domingos, 17 February 2006, Monte Belo. 22. Interview with Soba Justino Patrício, 23 February 2006, village of Cayengue-Mbola Kavulo. 23. Interview with King Augostinho Kachitiopololo, 12 April 2006, Bailundo. 24. In 1917 the English Consul in Angola visited a group of men near the port of Benguela who had been «recruited» for service on São Tomé in what was then the British colony of Rhodesia, east of Angola. «Ano de 1917 Distrito de Benguela Circunscrição Civil do Bailundo, Autos de Investigação», Bailundo, Caixa 5647, Arquivo Histórico de Angola. 25. Interview with Bento Somuvuango, 14 April 2006, Bailundo. 26. Interview with Luis Massuna, 10 May 2006, Mussanji (Quilengues). 27. Interview with João Ndamba, 17 February 2006, Monte Belo.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 63

28. Interview with José Inácio, 17 February 2006, Monte Belo. 29. Interview with José Samuel, 21 February 2006, Balombo. 30. Interview with Verónica Chilomba, 21 February 2006, Balombo. 31. Interview with Cristina Vatchia, 13 April 2006, Bailundo. 32. Interview with Joaquina*, 21 February 2006, Balombo. [*Some interviewees declined to give a second name]. 33. Edward Alsworth ROSS, Report on Employment of Native Labor in Portuguese Africa, New York, The Abbott Press, 1925, p. 31. 34. Interview with Justina Kalumbo, 13 April 2006, Bailundo. 35. Interview with Cipriana Nduva, 13 April 2006, Bailundo. 36. Interview with Bernarda Kabyndo, 18 April 2006, Chinguar (Bié). 37. Ibid . 38. Sra. Jacinta Cahomas, 21 Feb. 2006, Balombo. 39. Sr. Salomão dos Santos, 21 Feb. 2006, Balombo. 40. Ibid. 41. Sr. Paulo Sapeque, 14 April 2006, Bailundo. 42. Ibid. 43. Sr. Benedito Chitumbo, 18 April 2006, Chinguar. 44. Ibid. 45. Della POLLOCK (ed.,) Remembering Oral History Performance, New York, Palgrave MacMillan, 2005, p. 2.

ABSTRACTS

Forced labor in colonial Angola was infamous for its cruelty, even among colonial regimes in Africa. As a result of civil war, however, little research has appeared that explores how former laborers remember their servitude in shared stories and oral narratives. Collecting these memories is critical for Angolan historiography because the last generation of forced laborers (from the 1950s) is dying at increased rates. Based on an extensive oral history project conducted by the author in Benguela, Huambo, and Bié provinces (February-June 2006), this paper analyzes how Angolan forced laborers remember their servitude and recounts their various strategies for survival, including personal stories of escape and the encoding of resistance in song. In addition to documenting and analyzing common tropes among their memories, this paper argues that the gendered nature of their work regimes determines (and differentiates) the memories of these men and women nearly a half-century later. Memories of colonialism are also complicated by the tremendous suffering of the civil war years, and the failure of independent Angola to meet many of the expectations generated by independence. This paper argues that current realities influence how and what former laborers remember about forced labor and Portuguese colonialism.

O trabalho forçado em Angola no período colonial era infame pela sua crueldade, mesmo entre os regimes coloniais em África. Como resultado da guerra civil, no entanto, pouca pesquisa tem sido feita que explore como os antigos trabalhadores recordam a sua servidão em história partilhadas e narrativas orais. Recolher essas memórias é crucial para a historiografia angolana porque a última geração de trabalhadores forçados (da década de 1950) está a morrer em números

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 64

crescentes. Baseada num projecto extensivo de história oral, conduzido pelo autor nas províncias de Benguela, Huambo e Bié (Fevereiro-Junho 2006), este artigo analisa como os trabalhadores forçados angolanos recordam a sua servidão e recontam as suas diversas estratégias para sobreviver, incluindo histórias pessoais de fuga e a codificação da resistência em canções. Além de documentar e analisar modos de expressão comuns entre as suas memórias, este artigo argumenta que a natureza de género dos seus regimes de trabalho determina (e diferencia) as memórias dos homens e das mulheres quase um meio século depois. As memórias do colonialismo são também complicadas devido ao sofrimento tremendo dos anos da guerra civil, e o fracasso da Angola independente realizar muitas das expectativas geradas pela independência. Este texto argumenta que as realidades actuais influenciam como e de que forma os trabalhadores recordam o trabalho forçado e o colonialismo português.

INDEX

Keywords: forced labor, social memory, Portuguese colonialism, Angola Palavras-chave: Trabalho forçado, Colonialismo português, Angola, Memória social

AUTHOR

JEREMY BALL Dickinson College, EUA

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 65

«In Mozambique, we didn't have apartheid», Identity constructions on inter-ethnic relations during the «Third Portuguese Empire» «Em Moçambique não tivemos apartheid». Construções identitárias e relações inter-étnicas durante o «Terceiro Imperio Português»

Susana Pereira Bastos

«Third Portuguese Empire» in the title is a reference to the Portuguese modern African Empire which lasted from the second half of the 19th century to 1974 (see CLARENCE-SMITH, 1985).

1. Introduction

1 Present historical investigation reveals that the Indian presence during the establishment and consolidation of the Portuguese colonial system in Mozambique is among the least- studied domains in the social and economic history of Mozambique (Pereira Leite, 2001, p. 15). Moreover, with the exception of Zamparoni's (2000) work, the analysis of the interactions among the various diasporic groups of Indian origin that had settled in Mozambique (Hindus, Sunni Muslims, Khoja-Ismailis and Goanese), and between these groups, the Colonial State and the white settlers, and the native population, has not been the subject of any systematic investigation on the part of historians and/or anthropologists. The difficulties of accessibility and use of available written sources may partially justify this want. However, another valid hypothesis is that this (ethnographic and theoretical) «invisibility» is related to variables that are internal to the subject of study itself, in particular to the elaboration, on the part of the various diasporic groups present in Mozambique, of cultural strategies of invisibilization (Cohen, 1971; 1981), not unlike those repeatedly observed in many trading middleman minorities.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 66

2 First introduced by Howard Becker in the 1940s, used since the 1960s in multiple research projects on economic development, trading minorities, and inter-ethnic tensions in Africa and Asia (Shibutani & Kwan, 1965; Blalock, 1967; Schermerhom, 1970; etc.) and recently theorized within the framework of wider approaches to trading diasporas (Bonacich, 1973; Cohen, 1971; 1981), the concept of middleman minority offers a framework of hypotheses that applies to the analysis of interactions between middleman ethnic groups, elites, and the remaining local populations. Among these, we would like to single out the following:

3 i)- the position of «foreigner» usually attributed to the middleman ethnic minority, by both the elites in charge and the majority of the population, through the recourse to ethnic markers (religion, race, language, previous social status, etc.);

4 ii)- the economically advantageous use of the «foreigner» status on the part of the middleman minority, since ethnic difference permits a devaluation of the demands for reciprocity with members of different ethnic groups, and therefore allows a greater objectivity to be applied in economic decisions and transactions;

5 iii)- the paradoxical nature of the «foreigner», an opportunist who is not to be trusted, but at the same time someone who extends credit, treats illnesses, and acts as a confidante (of micro-familiar secrets, rivalries, and local conflicts, etc.);

6 iv)- the ambivalent relationships which the elites in power usually establish with ethnic middleman minorities, granting them protection when they may have political, economic and social advantages to offer in exchange (as concessionaires, tax collectors, moneylenders, etc.), while using them as scapegoats in times of crisis, exacerbation of nationalism, etc.

7 Despite the fact that the fieldwork we have been carrying out with Hindu Indians who lived in Mozambique during the last decades of Portuguese colonial administration does validate a number of the aforementioned hypotheses, it also leads to a reconsideration of the position of the «foreigner» disaffected and strictly opportunistic. While Hindus did take advantage of the natives» ignorance regarding commercial transactions, a significant percentage of the memories we recorded does emphasize, rather, an almost obsessive preoccupation, on the part of the common Hindu, with the observance of certain minimal requirements of reciprocity towards the «Other», as testified by many examples of Hindus who were the confidantes, friends, moneylenders, keepers of savings and even accomplices (in certain «forbidden matters») of the native population.

8 A rejection of mercantile objectivity and opportunism, transgressive of the basic rules of reciprocity, also structures the most emotional memories on the interaction of Hindus with colonial elites and with the «white» settlers. Hindus were discriminated, and felt, with more intensity than the other groups of Indians in Mozambique, the ambivalence of governmental elites towards their presence. Despite this, many Hindus identify themselves with a relationship pattern that is attributed to a segment of the Portuguese population, within which the processes of re-familiarization of the «other» (client, employee, employer, neighbour, etc.) and interpersonal relations based on good faith and mutual confidence are greatly valued.

9 The Hindu sensitivity to the needs for reciprocity to the «other» was inspired by a series of typically Hindu propositions regarding the porous and influentiable nature of the relationship self/other, and amplified by the inter-subjective processes which were established in the bush and/or in urban settings, between Hindus and natives, and

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 67

between the former and certain segments of the «white» population. As we will see, it is also constructed as an identity gain in the comparison with other Indians, of Muslim religion, living in the colony.

10 The memories that we will analyse1 are to be interpreted as narratives of identity. That is, as productions that are organized on the basis of (selective and repeatedly changeable) combinations of events of the distant and recent past, and even of the present (Pina Cabral, 2002), whose aim is the protection of the self-image of those who produce them within their identity groups, and, simultaneously, the positive construction of their identity groups within the context of (international national, local, interethnic, etc.) relations in the past and/or in the present. In other words, these narratives do not merely alter the perception of past experiences; they also attempt, based on a reconstruction of the past, to reinterpret present identity dynamics and geometries in which their producers take part. This is the reason why we attempted to widen the relational context of interpretation of the memories we analysed, extending it, where possible, to the present.

2. «Kanji did not show himself, but left signs...»: ambivalent representations of hybridity.

11 Contemporary historical research demonstrates how, since the late seventeenth century, trade in the North of Mozambique was mainly carried out by traders from Diu2. Following the creation of the Company of Banyans of Diu in 1686, they had made the Ilha de Moçambique their base. We also know that, beginning in the second half of the nineteenth century, a significant part of the Hindu population active in commerce moved to the South of Mozambique, in particular to the provinces of Inhanbane and Lourenço Marques. The migration of Hindus of various castes from Diu to these same regions also increased substantially, in particular after the implementation of the Liberal regime in Portugal in 1820 (Pereira Leite, 2001).

12 Additionally, in the late nineteenth century, the changes in the economies of the neighbouring British and Boer territories and the implementation of legislation restricting Indian settlement in Natal, especially in the Transvaal, while Portuguese policies considered the presence of Indians indispensable to the economic development of Mozambique, influenced the arrival of groups of British Indians (Pereira Leite, 2001), in particular of Gujarati Hindus, the majority of which originated from Porbandar, Rajkot and Surat.

13 The main strategies for the professional insertion in the Mozambican context for this group lay in trade, both the cantineiro trade between the interior regions and urban centres3 and -especially for those who arrived in the 1930s — investment in traditional commerce, while the castes of Diu masons mostly became employed in the construction industry4. However, a small number of families took advantage of the economic boom of the 1960s to expand their activities to the industrial sector. At the same time, a number of subgroups invested in the secondary and university education of the youngest generations, thus laying the foundations for a diversification of professional opportunities.

14 Whether they opted for new migratory projects after the decolonization process, or they remained in Mozambique, the identity narratives that centre upon interethnic relations

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 68

during the colonial period always refer to a first phase of insertion, when sexual relationships between Hindu Gujarati men and local women (adhering to traditional religions or Islam) were very frequent, and resulted in the birth of descendants who were known as «mistos» [mixed] or «mestiços» [half-breeds]. However, only exceptionally the offspring of these relationships were integrated in the Hindu religion. Even in those cases in which the relationship was maintained, these children usually were integrated in the mother's family and mostly grew up as Muslims. As is often stressed by our informants, the situation of those who grow up «between two influences, that of the father and that of the mother», or those who end up «being neither one thing nor the other» is usually repulsive to the average Hindu.

15 However, to this conceptualization of «mestiçagem» [mixing of races] as a non-defined production is opposed another that, on the contrary, values the potentiating hybridism (Ashcroft, 1998) of the first Hindus that settled on Mozambican territory. In fact, according to the following narrative (which is presented as historical), the first Hindus to land in Delagoa Bay are symbolically seen as «children», transformed from the point of view of identity by the crossing of the kali pani (the Indian Ocean). After they stand for an undifferentiating communitas (Turner, 1969), they are reborn with new communicational powers, that is, as the owners of a double identity and linguistic conscience (ambiguous, contradictory, ironic, etc.) which is put to the service of the natives (who are imprisoned by intermediaries who in turn sold them to the French, Portuguese or other foreigners as slave labourers to be exported to Brazil or other overseas colonies) and of Gujarati Indians (who enrich themselves with the gold they seized from the natives). «This happened long before the Portuguese reached Delagoa Bay. (...) Kanji lived in Gujarat, in the times of a great plague (...). He escaped to sea, and boarded a small sailboat. He was so tired that he lost his senses. When he came to, he was very thirsty and drank sea water. You must never drink sea water, those who drink it do not know who they are anymore, they become confused and lose their memory. Meanwhile, a boat of baneanos [banyans] from Diu who were sailing to Mozambique found the small boat. The crew saved the boy and left him in Delagoa Bay. Kanji began living in the bush. In those times, there only was Downtown, all the rest of Lourenço Marques [now ] was bush. Kanji lived as the Africans did, spoke their language, helped them. In those times, there were men who hunted Africans to sell them as slaves. He saved them, by leaving signs that only they could understand. He also helped the Indians who went into the bush to look for ivory and gold to send back to India. Kanji did not show himself, but he left signs...» (Brahman, businessman, Maputo).

16 Despite being projected into a remote past, the transforming power of Kanji's linguistic bivocality (Bakhtin, 1968) emerges as a significant symbolic-identitarian resource within the complex puzzle of inter-subjectivities that is currently experienced in Mozambique. In a context where «Indians» are generally represented as hyper-endogamic in marriage, death and culture in general (Serra, 2000) — «they don't marry blacks», «they have their own cemeteries», and «they don't teach their language» - the valorisation of a primordial hero, hybrid but creative, seems to reveal that certain segments of the Hindu population partially question closure, «purity», even hierarchisation itself, of cultures. It is indeed significant that this construction of the past happens at the same time as the proliferation (among the youngest Maputo Hindus) of identity statements such as «now, all of us, we are more or less mulattoes» (without necessarily also being mestiços).

17 The coexistence of two linguistic consciences and identity economies that Kanji symbolizes acquires visibility (despite the arrival of the «Hindu ladies» — depositaries of

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 69

group identity and limits) in other narratives on the Hindu experience in Mozambican territory «in the time of the Portuguese».

3. Reinterpreting the Indian/African relation

3.1 Advantages and dangers of inter-ethnic arrogance

18 The characterization of inter-racial relations in colonial Mozambique includes statements on the part of Hindus that «the black man [unlike the «mulatto», whose position and social status depend on many variables, in particular their level of education and «assimilation»] was discriminated by all social strata. Then came the Indians, who occupied the central stratum, whether they were Hindu, Mohammedans or Khojas [Ismailis]. But there was no equality between them and the whites»5.

19 Without denying that «Indians also discriminated blacks» many Hindu informants stress that «Hindus treated them differently, in comparison, they were less arrogant»6. Moreover, they usually construct this «lesser arrogance» as a «marketing» strategy, in order to obtain commercial advantages given the ever-increasing competition, and/or as a reaction to the situation of insecurity in which they lived, in particular after they were selected as scapegoats for the humiliation suffered by the elites of the government headed by Salazar when the Portuguese Indian territories were lost. «Black clients asked to take everything off the shelves, and ended up buying nothing. And the Indian shopkeeper was more patient, took everything out, put everything back, because he wanted to win clients. Many also gave credit and even bartered things. The white shopkeeper, Portuguese, had no patience. That is why the majority of blacks preferred to buy in Indian shops. Also, some white insulted, called names, scolded and beat his black employees. Indians rarely did that. And you know why? Because they were afraid of being expelled» (judicial consultant, of fudamiá caste, Maputo). «The treatment also varied according to the social status and educational qualifications of the black man. For example, if he was a régulo or a nduma7 the Hindu treated him differently, gave him a marketing treatment, because Hindus always placed their commercial interests first. (...). Since some tribal chiefs and régulos influenced the natives under their jurisdiction, they could direct them towards the cantina of a certain Indian and drive them away from the cantina of another shopkeeper» (businessman, of surti caste, Maputo).

20 However, other narratives reveal that the main reason why many Hindus avoided disqualifying and/or humiliating excesses in their relation to the Africans are linked to the fact that the two shared a set of ontological postulates. In fact, and despite the reduction of «African religion» to ancestor worship, possession and magic, recorded memories also insist upon the fact that these «beliefs» also played an important role in the daily lives of Hindus who lived in Mozambique. «My father's father when he arrived in the late 19th century had those Brahman attitudes, (...), for example, going through purification rituals after any black touched him. My father, however, dropped that. He did no purification, no separation. (...) Beneath that tree there, that was where they carried out their mhambas [ancestor rituals], and here, beneath this pipero [sacred fig tree] was where mother poured milk and water for our ancestors» (businessman, of brahman caste, Maputo).

21 This does not mean, however, that the relations between Hindus and Africans were limited to the co-habitation, apparently non-conflictual (or non-hierarchical), of

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 70

representations and practices, based on the mutual recognition of the importance of ancestor cults. As the last informant remarked: «Towards the end of the day, the peasants warned us that the house where we would be living was full of spirits. It seems that in that area, in the past, there had lived an African who had killed a woman, and her spirit would not leave alone those who decided to live there. That is why the place was abandoned. For years my mother carried out hawans [Hindu rituals] to stop it, and she succeeded».

22 However the Africans may have used the ancestor cult as a strategy of symbolic resistance against the Indians who came to live in the sertão [wilderness], the quotation above does confirm that communication was enhanced, and since the very first encounter, by the fact that the two interlocutors shared the same ontological postulates: that a relation of continuity and communication exists between the living and the dead, and that those who pass away (in particular when they suffer a bad death) turn into powerful agents who may cause discontentments and various misfortunes to the living, independently of their race and religion.

23 In numerous other occasions, the interaction was initiated by the Hindus. Seeking a solution to personal crises, «many Indians went to a healer», «asked him to see, in shells, in little bones», «to know why something bad happened to them. He begins trembling too, moving this and that way, it is no longer him, it is someone else speaking. It is like the mataji»8. Projective recognition allows the establishment of a performative and structural identification (Bateson, 1936) between the African healer or diviner, and the Hindu mataji; moreover, the specifically Hindu conceptualization of the instability of identity of beings and of the permeability of their limits (Assayag & Tarabout, 1999), according to which any being may influence and be influenced by another being (of the same and/ or a different category) makes it possible, as certain Hindu statements affirm, that the native healer may pronounce «the name of the pitrus [Hindu ancestors], saying that they are dissatisfied with something or other», or that «a black spirit» could «enter the body of an Indian to cause suffering».

24 That is, by admitting the possibility that Indian / Hindus may be possessed by Muslim, Catholic and even African spirits and I or deities, and at the same time the possibility that Hindu spirits and/or deities may manifest themselves in «whites» and «blacks», Hindu narratives do not merely reject the existence of a relation of discontinuity between past and present, between the space that is perceived by the senses and that which cannot be perceived, but they also insist in stating that the human alterity is a mere illusion (maia). According to the words of a Hindu man whose family came from Diu, but who was born and grew up in Beira (Mozambique), and is currently a businessman in London: «You see an Indian, a black man, a Briton, going by your window, and you notice nothing, but it could be a spirit, you think it's a person, but it isn't. They can take various forms».

25 However, any interpretation of these interactions merely based on the hypothesis of structural similarity of ontological postulates runs the risk of blurring the different points of view, motivations and identity strategies that Hindus and African social actors deploy in specific situations.

26 According to quite a number of Hindu informants, the power of interference in the processes of evil influence attributed to the Africans is mainly due to the fact that they are «nearer» to «impure», «unsatisfied» and/or evil spirits, independently of the race, religion and ethnic group they belonged to while living. In this sense, the power of the African diviner/healer/witch may be seen as the equivalent of the power of

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 71

untouchables, to whom Portuguese-speaking Hindus also attribute similar magical powers as well as varied abilities in the field of exorcism. The recourse to African magic and performances of possession is still represented as the incorporation of an inferior level (in comparison to the referential Hindu traditions), but necessary and effective (in times of crisis). Structural correspondences do not therefore result in the elimination of inter-ethnic hierarchies. It does however seem to keep the relation «us»/«them» into a binary, irreversibly determined opposition.

27 Hindu village organization relegates untouchability to a peripheric space-or, à la limite, to the world of the forest (Malamoud, 1989) — to be protected from it, but also to use it to propitiate and (creatively) absorb it in times of crisis; in much the same way, Hindu migrants in Mozambique maintained a similar relation to the sertão and its inhabitans: not too near, nor too rejected or humiliated. «You couldn't treat the blacks badly, because they could bewitch and kill you. (…). Many years ago, my niece's husband ran a black man over near Namaacha. The black man only told him, "You will see...". That same day, my nephew fell very, very ill» (female owner of grocers», of lohana caste, Maputo). «More than forty years ago, there was an Indian here in Inhambane who had a shop. One day, a black client lost his wallet in the shop, and the owner did not want to give him back his money. The black man only said "You will see...": shortly afterwards, the daughter of that Indian died, she was only 13 or 14» (trader, of vanja caste, Inhambane)». «It is always envy. I am still suffering, even now, because of the blacks envy. You cannot cause another's envy» (construction worker, of fudamiá caste, London).

28 Actualized in the Gujarati repertoire of reference, the explanation of inexplicable suffering as magical aggression resulting from actions set in motion by the sufferers themselves (and, in particular, as the result of situations of inequality in which they hurt the dignity of others), may be said to be maximized during their life experience in Mozambique.

3.2 Materializing respect for the «other»: the construction of the Salamanga mandir

29 Amplified by situational factors, this symbolic organizer turns into a central element of Hinduism as reconstructed in Mozambique, so much so that it was reworked in each and every recorded oral version on the establishment, in 1908, of the Salamanga sanctuary, in the South of Mozambique. «This happened in the 1890s. My nana [mother's father] had a salt business, he exploited salt-works various kilometres away from Salamanga. He also owned a cantina, where he sold all kinds of things. (...). He was a rich man and, because of this, became very proud. One day, as he was coming back from the river, he met an old man, with dark skin and a white cloth. But he was very proud in his manner of speech. And that man told him: "I am a special person. You don't know that". Instead of respecting him, my nana asked for proof Immediately, Mahatma Bapa shook a tree, and gold fell from it. Nana was not impressed. And said: "This is nothing. I have more gold than that''. When they reached the cantina, my nanima was giving out water and sugar to people. Mahatma Bapa took the bowl from her and gave to everyone. That water never ran out. There always was more. It was then that my nana knelt down before him and said: "I am no longer going to be proud. I don't want any more money. I want to help others". So Mahatma Bapa gave him two magic words. One to help pregnant ladies who cannot give birth; the other one, to take away snake poison. But he also told him: "You cannot keep this to

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 72

yourself, you must give to others". (...). Before he left, Mahatma Bapa told my nana: "I want to sit here"» (housewife, of fudamiá caste, Lisbon).

30 By insisting on respect for the «foreigner», the recorded oral versions of the foundation of the main mandir in Mozambique question impermeable power relations and, in particular, those that are based on skin colour and economic power; at the same time, they condemn the closure and impermeability of the Hindu «we». These narratives, however, are not to be taken as a mere mechanism of control and strengthening of basic requirements of reciprocity on the inter-ethnic plane. They also include constructive objectives, in particular when they underscore that a (non-arrogant) opening to the «other» may be the very accumulative source of power (in this instance, the power to interfere in certain irregularities between life and death).

31 Moreover, the fact that Mahatma Bapa is usually described as a «dark-skinned» foreigner (or, in other versions, taken for a black client by an enriched Indian cantineiro) allow us to posit the hypothesis that, to the Hindu eye, the relation with the African may still be interpreted as an «exam» of Hindu gods to their devotees. It is easy to understand why in so many Hindu identity productions, as a specialist of processes of influence (good as well as evil), as the disguise of a god, and/or as the very source of the material richness of Hindus, the native peasant (not only those who were «involved in the provincial administration») deserves, at least ideally, «a [asymmetrical but] special treatment».

3.3. In default of colonial authority: the emergence of Mozambicanism and other complicities between Indians and Africans

32 The strategy implemented by the colonial Portuguese to «civilize» the «indigenous population» was based upon the repression of their socio-political and cultural traditions, forced conversion to Christianity, the implementation of Catholic missionary education, as well as a policy of assimilation, aimed at the creation of a class of non-indigenous people («assimilated» to the Portuguese, preferentially Catholic but, more importantly, non-believers in the ancestral spirits and sceptical towards any form of «healing» and «witchcraft»).

33 The destruction of traditional power structures, by creating the figures of the régulo and the nduma, and by repressing rituals of worship of ancestral spirits, as well as by stripping of authority of religious leaders (diviners, healers, mediums, etc., but also leaders of independent churches) and of all those who were locally invested of terrible powers (witches, for example), was carried out by the Portuguese regime. It thus attempted not merely to eliminate the power of traditional political authorities, but also to repress the exercise of symbolic power mobilized by certain local leaders, thus questioning the very source of legitimization of both powers: ancestral spirits, who had a central role in the daily lives of the natives. A task that the colonial authorities soon recognized as vain, and which led them to accept native performances of worship, appeasement and search for protection of and from ancestral spirits, as long as these did not appear as threats or strategies of resistance to the colonial regime (which required the payment of prescribed taxes, and implemented a system of forced labour and work migration to South Africa, etc.). The authorities therefore slackened the repression of genealogical cults but continued to punish by law (see the Penal Code of 1964) the practice of «healing» and

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 73

«witchcraft»; thus, they clearly indicated that the rival sources of power which could threaten colonization were possession and witchcraft (Honwana, 1996).

34 According to the sources used by Young (1978), towards the end of the nineteenth century, any native who (openly) carried out rituals for his ancestors could be threatened by his armed patrão [master]. Therefore, it is not surprising that the first Hindus who came to live in Mozambique also hid from the local authorities their ceremonies of worship of pitrus, traditionally carried out outdoors, beneath sacred trees (exactly like those of the natives). «(...) back then, old people told us that they did it very early in the morning, not to attract attention. It seems that they were afraid» (trader, of lohana caste, Lisbon).

35 More often, other memories insist on the invisibilisation of possession events that in the colonial times involved men and women; the secrecy maintained by their forefathers around anything that may be linked to «witchcraft» is especially highlighted. The following statement, by hinting towards the supposed friendship of a Hindu (of fudamiá caste) interested in jadu (witchcraft) and a well-known tinyanga from Salamanga9 seems to indicate at least that relationships of complicity between individual Hindus and Africans did exist, and were organized around certain «subjects»: «My grandfather was very interested in all that. But, back then, in the time of the Portuguese, all those who were caught performing jadu were jailed. They sent them to the Ilha de Moçambique, as punishment. He had an African friend, a good healer, there in Salamanga, he was taken there. You could not talk, as I am doing now, of these subjects» (worker in a food factory, London).

36 We don't have available information on the role of specialists in African traditional performances during the decade of struggle for independence led by Frelimo against the Portuguese colonial regime (1964 to 1974); any investigation on possible symbolic resistance strategies deployed prior to 1961, in Diu and Daman, by the Hindu population against the Portuguese colonizers, has been made. However, the relationship of complicity that sometimes existed between Hindus and Africans (generally outside the main urban centres) around possession and witchcraft certainly deserves further attention.

37 In fact, and despite general Hindu statements according to which «in the colonial times, the great majority of Indians complied with the regime» because «their only interest was their business», so much so that there is no «memory of any Hindu being arrested by PIDE [International Police for the Defense of the State]» rather, the opposite is mentioned, that is, a number of Hindus who «passed on information» and «of one or two who were actually recruited by PIDE»10, there is proof that the political stance of Hindus was, possibly, more heterogeneous (and, more importantly, more ambivalent) than a number of statements may indicate.

38 As a merchant (of khania caste) who lives in Maputo spontaneously stated, «Once, before '61, Mahatma Bapa also appeared in Diu. (...)The Portuguese soldiers tried to catch him. (...) But, suddenly, he started walking towards the sea and (...) disappeared». According to this last narrative, a Hindu god-man is conceived as owning an excessive symbolic power that enables him to paralyse (and humiliate) the colonial military power. However, Mahatma Bapa is not constructed as an active agent against colonialism: «He did not want to sit in Diu» adds the same interviewee, without any further explanation.

39 On an interpretative level, the identity stance underlying this Hindu construction of Portuguese colonialism is neither one of compliance nor that of counter-colonial

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 74

(symbolic) resistance. The narrative gain seems rather to reside in the statement that the Portuguese colonization of the genealogical space of origin (Diu) was not imposed by military power, but allowed by the diveshas themselves, who possessed such symbolic powers as to be able to prevail over their own colonizers.

40 This hypothesis is strengthened by a different interpretation of the history of Portuguese colonialism in India, as given by a construction contractor (of fudamiá caste) living in Lisbon: «In the time of the Portuguese, there were some soldiers who entered the Kankai Mata Mandir [in Diu] and removed the eyes of the Devi. When people went there and found that the eyes were missing and all that mess, they asked a lady in whom Mataji descended, who had pierced the eyes of the Devi. And she said: "The Portuguese soldiers did it''. She also said the Mataji was very furious with the Portuguese and that in a short time the independence of Goa, Daman and Diu would come about. And behold it did, eight or nine months later».

41 The hypothesis that performances of possession were used as a practice of resistance and counter-hegemony (Comaroff, 1985; Kapferer, 1991; Assayag, 1999; etc.) in Portuguese India is yet to be proved; however, this last narrative demonstrates that possession may be recurred to as a prime narrative resource in the construction of a reinterpretation of colonial history (and of the independence of Diu itself). If the narrative is seen as a condensed representation of the relations between Hindus I diveshas (from Diu) and the Portuguese colonizers, the strictly a-political character of diveshas, both before and after 1961, may be questioned.

42 Converging with this last hypothesis, a number of memories refer the existence of Hindu cantineiros that extended credit to Mozambican peasants and miners (and to whom these entrusted their scarce savings), who were treated as régulos without having the qualification, instead of cooperating in tax collection, who had an «ethics» contrary to the «bad reputation» («that they cheated the blacks anytime they could»), who had «a lot of Mozambicanism», due to which they were under constant surveillance by the PIDE.

4. Beyond common «lndianness»: «Muslim witchcraft no one can remove»

43 The first aspect to emerge from Hindu narratives on the other «Indians» who were also living in the colony (Carvalho, 1999; Pereira Leite, 2001) is the immediate subdivision of the category «Muslim». «Indian Muslims» (whose origins are in India) are distinguished from «African Muslims» (that is, the native Islamized population of the North littoral area of Mozambique); moreover, among «Indian Muslims», the descendants of Indian parents are differentiated from the mestiços, that is, the descendants of mixed-race relationships, and the blacks converted by the Indians. An important distinction is also made within «Indian Muslims» between Sunnis and Khojas (Ismailis).

44 The «big difference» between «Indian Muslims» and «African Muslims» resides, according to Hindus, in the fact that the ancestors of the first were Hindus but were converted. The persistence of some kind of lndianness (supposedly Hindu, by the equation of India and Hinduism) made them less violent and more tolerant people from the religious point of view.

45 Despite this, even the «Sunnis» of Indian origin are seen as «very radical», since they «do not accept that their believers may leave Islam, and when that happens they become very

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 75

discriminating. On the other hand, they accept the people who are not born from Muslim parents and convert. They really have that habit of converting people. And the African always got advantages from being Islamic» (businessman, of Khania caste, Maputo).

46 In contrast, Indian Ismaili Muslims (Khojas) are represented as those who most preserve the supposed Hindu Indianness, as indicated by moderation and openness towards the other, as well as by their own religious practices: «They were and still are most like us. They celebrate divali and id. And why? Because they were Hindus once» (housewife, of fudamiá caste, Lisbon).

47 However, this supposed «common lndianness» does not seem to have helped the interaction between the various categories of Indians. In fact, for the majority of interviewees, «in the colonial times, there were no partnerships between Muslims and Hindus, only after independence, and still in a limited number, because the Muslim tends to cheat his partner, he pockets everything and swindles the other»11. On the other hand, even though with great caution, «Commercial relations, between buyers and seller, among shop-owners, warehouse operators, or importers, that did always exist»12. Only a limited number of statements does however indicate that these interactions developed into friendships, sociability and commensality in the North of the country, unlike what happened in the South where «there was a great separation between Hindus and Muslims»13.

48 However, other «Indians» occupy an important function in terms of identity comparison. The economic gain attributed to the khoja, for instance, repeatedly appears in Hindu memories. It is justified by referring to «the advantages that they always got and keep getting from belonging to a large network which enables them to obtain the right information on where and in what to invest, where to live and when to leave» and whereby «they also obtain funds earmarked for their business ventures»14.And it is also linked to the fact that «they were the Indians who upkept the most relations with the colonial State», receiving in return a «preferential treatment», since «the colonial Government thought that they could contribute to upkeep good political relations in Portugal, because they had many communities, in Kenya, in Uganda, in Tanganika, who had enough influence with their governments»15. The Khojas are also seen as those who suffered less from the decolonization process, as those who fared best in the new receiving societies (United Kingdom, Canada, Portugal, etc.), and as those who, having recently returned to Mozambique, obtained the most profitable investments (in particular in the hotel and tourism sectors).

49 It is therefore not surprising that their continued success favours identity envy. In fact, through statements such as «they always were apatrids, chameleons, they change their nationality when it suits them»16, some Hindus manage to turn the transnationalism of the Ismaili community into an identity defect. Similarly, the adhesion on the part of the Khojas to a «more Western» lifestyle or the preferential treatment they were given by the Portuguese colonial administration, may be depreciate by Hindu memories. Mobilized by a number of informants, certain episodes (real or imagined) from the recent past make a questioning of the «superiority» (civilizational) of the Khoja possible and, simultaneously, allows the criticism of the colonial complicity towards the same community. «They had a human sacrifice for the foundation of their church. It seems they bought two children. I don't know how they could do it. I don't understand how the Portuguese authorities allowed that» (contractor, fudamiá caste, Maputo).

50 On the other hand, monopolizing the identity productions that focus upon the inexplicable sufferings of the past, statements such as «you cannot take lightly a Muslim [Sunni] spell, if someone is sent a Im [spell] no-one can get it out», «Only a stronger spell, made by

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 76

a Muslim» (carried out «in the place where the Im was launched») are still heightened by postcolonial life experiences and imaginaries.

51 In fact, the hyper-visibility of the processes of corruption that have involved the new Mozambican elites is accompanied by a proliferation of interpretations that equate the (corrupt) acquisition of economic power (on the part of Islamized groups, of Pakistani origin, who have recently settled in Mozambique) to the power of the spell, thus intensifying (in those who feel cheated) the belief in magic cursing: « Muslims rule Mozambique. They bewitch people with words and lead us to think that it is good business. (...). But what goes around, comes around»17. Rapidly spread through networks of family and caste, similar statements are repeated in Portugal or in Britain, that is, in the preferential migratory destinations of those who left Mozambique after decolonization. As «a changing set of notions reflecting and reinterpreting new identity circumstances», witchcraft may not be seen «as a more or less fixed, traditional residue» (Geschiere, 1997: 222).

52 In parallel, the impact of broader configurations is also crucial for the understanding of the specificities of witchcraft fantasies of Portuguese-speaking Hindus. For instance, even the attacks of September 11 and the subsequent world conflict confirm, to Hindus, the (indestructible) power of Islamic witchcraft. As related by an educated female interlocutor in Lisbon: «Maybe you didn't understand this, but when bin Laden spoke in his language, he said that the Americans may have much power, money, weapons, bombs, everything, but he had something the Americans did not have. He has the power of witchcraft (...), the power to turn invisible. Why do you think no one has found him yet?»

53 The auto-attribution to the Hindu «we» of certain relational qualities seems to pass through the negation of those same attributes to other categories of «Indians». On the one hand, transnational mobility is evoked to justify the lack of consideration on the part of the Khoja for the basic requirements of reciprocity. On the other, the evocation of Sunni community organization, described as «very discriminating» in relation to those that opt to maintain their religious difference, justifies the maximization of a stance of opportunistic lack of consideration of reciprocity towards the «different» among the Sunnis. Lastly, even the principal common denominator between Sunnis and Hindus permits the differentiation between the two identity categories. Associated to Sunnis, the evocation of witchcraft is a culturally codified synonym of economic opportunism towards the «different»; while associated to Hindus, the same evocation signifies the respect for minimal exigencies of reciprocity and a counter-ethnicizing management of the relation to the «other».

5. «Racist Portuguese» and «whites with a golden heart»: a Hindu interpretation of Portuguese colonialism

54 "The domination of the white stratum was a given»18 constitutes another constant statement of Hindu-Gujarati memories of inter-ethnic relations in Mozambique during the colonial period.

55 However the majority of interviewees does not deny that Hindus made much of «Portuguese culture» their own, the (post-colonial) interpretation of that incorporation does exhibit variations and graduations.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 77

56 In fact, according to a number of narratives, the Hindu stance towards «Portuguese culture» in the colonial distant past is constructed as a sort of cultural resistance, whereby linguistic integration and the exterior conversion to certain cultural standards identified as Portuguese, allowed the defence and / or renewal, within the micro-familiar and domestic domains, of differential - and typically Hindu - religious and cultural resources. Other identity constructions however rejected with conviction the thesis of mimicry (Bhabha, 1994). This is the case especially in the narratives produced by many of those who still represent themselves as Hindus and, at the same time, as Portuguese (regardless of whether they currently reside in Africa, India or Europe).

57 On the other hand, the Colonial State stressed the «metamorphosis of the Indian»19 to prove how «Portuguese civilization» was «evermore gaining the upper hand»20; however, it also denied the possibility of a pluri-referential — Hindu and Portuguese — identification, underscoring how the exterior adaptation of Hindus to Portuguese civilization had no correspondence in a process of cultural and/or religious assimilation; neither could the adaptation be seen as an effective indicator of their political subordination to the regime in power. Hindu mimicry was «also the signe of the inappropriate, of a difference» which needed surveillance (Bhabha, 1986: 86). In fact, in many colonial reports (never made public), Hindus are described as «impermeable to any identification»; the same sources also note the «tranquil serenity with which (...) they encourage and help their children to attend, in (...) secondary schools, classes of Christian morals and religion» since nothing seemed to affect their private practices and beliefs21. This accentuated cultural and religious impermeability was compounded by another typical trait of the Hindu character (also shared with other Indians): the non-exteriorization (and/or indefinition) of the way of feeling or thinking and, above all, a notable ability to deceive and fool the colonizer on any ideological plane. This last characteristic stands out, for example, in a statement given by the General and Commanding Officer of the 4th Military Region of the colony, in the late 1950s: «... they appear to accept the opinion of the [Portuguese] interlocutor, even though they have one that is very well structured and absolutely to the contrary. They do not become exalted and, if anyone should try to change their opinion, either they uphold their polite and smiling rejection, or appear to accept the new idea with no enthusiasm, leaving their interlocutor to doubt whether they really did adopt it with conviction or otherwise»22.

58 The same source did not hesitate in describing Indians globally as «debarred of any patriotic sentiment»23.

59 The colonial administration however did not appear to be worried by these «facts». On the one hand, the respect for Portuguese institutions, «even (...) only in appearance», was not threatened, nor did it include any real possibility of opposition to the regime, since Indians were not «courageous», but also because their «persistence» and « spirit of sacrifice» were frequently oriented towards «commercialism» and the «eager desire to earn money». Having no interest by nature in political issues and avoiding «causing problems» (in order to maximize their commercial gains) only «When (...) properly stimulated and well-oriented» could they « nonetheless, become dangerous»24.

60 On the other hand, the official discourse gained a greater identity advantage (on the national, international and diplomatic levels) by insisting on the thesis according to which the Hindu stance, in relation to the «work of aggrandizement» of that «corner of the Portuguese Colonial Empire» was one of «close cooperation». On the economic level, and

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 78

despite the dissatisfaction towards the Indian presence on the part of certain groups of the colonial society, the Portuguese colonial administration recognized the importance of the economic activities of Indians with regards to the commercial development of the territory. On the geopolitical level, the implementation of measures for the repression of entry, movement, establishment and even economic activity of Indians (considered as British subjects) caused (or rekindled) unwanted diplomatic reactions on the part of the United Kingdom. Lastly, on the ideological level, the Indian presence could strengthen, internally and externally, the maxim of «tolerance» (not only «economic but also in the sphere of cultural and religious activities»)25 that was supposed to be a peculiar characteristic of the Portuguese Empire.

61 Equally conscious of the advantages that could accrue from their definition as close collaborators of the regime, Hindus periodically gave the Portuguese State «proof», exhibited in the Portuguese and British press, of their gratitude and political subordination. Among the most highly recognized were the confirmation of racial and religious tolerance as a moving force of the Portuguese Colonial Empire, the inclusion of Portuguese language instruction among the basic objectives of the main Hindu association in the colony (created in Lourenço Marques in 1933) and, more importantly, the numerous demonstrations of deference, admiration and homage to the Colonial Government (for instance, by placing portraits of the highest political figures of the time in the main hall of the Veda Mandir, inaugurated in the capital city of Mozambique in 1938).

62 Despite the fact that the leaders of Hindu associations preferred, in public, to make statements such as «we Hindus see the Portuguese as the most welcoming of all the lords of the land»26, the majority of the Hindu population recognized that there was much discrimination of whites towards Indians. The pay gap between the salaries of specialized professionals, varied depending on race (Indian or white), the exclusion of small and medium entrepreneurs from the industrial sector on the grounds of skin colour (only partially reversed since the beginning of the 1970's), the many restrictions to the employment of Hindus in banks and the civil service (mitigated in the 1960's), the discrimination in access to education and academic evaluations, the racist practices during military service, the impossibility of renting or buying houses in certain urban spaces, etc., appear constantly in recorded memories.

63 Nevertheless, the majority of informants spontaneously declared that Mozambique wasn't apartheid, like South Africa was. The eldest still (nostalgically) recall the frequent commercial relations between Hindus and Portuguese, and especially those established on the basis of mutual trust. Competition between Hindus and Portuguese happened in particular between small and medium shop-owners, in the cities, but also in towns, or between cantinas, in the interior, they tell us, but it did not have any equivalent at the level of importers and warehouse operators, since «usually, the large importers and warehouse operators of foodstuffs were Portuguese, while those of textiles and ready-to-wear clothes were Indian»27. The operation of cantinas in the interior or in the outskirts of urban centres required not only the existence of links with co-ethnics who owned wholesale establishments in the coastal area but also, and very frequently, relations with Portuguese importers and warehouse operators: «many Indian cantineiros bought their goods on credit from the Portuguese. They only paid after 30, 60 days. It was based on trust, because there was nothing in writing»28.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 79

64 During the military service, a number of interviewees actually assert that they «met Portuguese who were not racists, even officers»29. From the official school system (primary and secondary), where many felt discriminated, others took away memories of «whites with a golden heart»30, «teachers who were important»31 and even about the fact that «Indian, Portuguese, black and mulatto boys played together», which did not exist «outside the school, where each of us limited oneself to one's race»32. Similarly, the way in which some restrictions in the industrial sector were overcome is recalled through statements such as: «I have encountered a Portuguese partner, and that's how I managed to set my first factory»33.

65 According to the opinion of a number of informants, only the hostile measures taken against Indians, that is, the detention of those who had a Hindustani passport in «concentration camps» and their subsequent «expulsion, after all that trouble in Goa, Daman and Diu» may be compared to what happened in the British colonies of East Africa and in South Africa. However, not even these facts are unanimously interpreted. By insisting upon the contrast between «the racism of the Portuguese» and the «racism of the British», many prefer to construct the «detention» and «expulsion» as a security measure, that is, as a preventive process in the face of the possibility of Indians becoming the victims of eventual aggressions on the part of a minority of white settlers34. Some of those that were repatriated said to the Indian Press that «individual Portuguese citizens could not forget the friendship that had developed over the years with the Indians. They knew that the Indians settlers were innocent. They helped them in every way - even in stealing - so that when they returned to India they would have some assets in the form of goods»35.

66 Thus, the memories of Hindus insist on splitting the representation of «Portuguese» colonizers in two large subcategories - those who used (as the British did in South Africa, but also in Uganda and Kenya) race as a frontier of univocal domination (Pina-Cabral, 2001), and discriminated Asian ethnic minorities (keeping them from gaining access to certain «items» of exclusive use to the «whites») and the Portuguese that established inter-personal relations (based on good faith and mutual confidence) with people of different races. Moreover, the same memories also seem to reveal that the Hindu rejection of an opportunism transgressive of the basic rules of reciprocity resulted, in part, from a process of identification with the relational pattern attributed by Hindus to certain segments of the Portuguese population, in particular, to the «whites who didn't exploit differences in skin colour»36 as idioms of domination.

6. Post colonial identity managements of Portuguese and British colonialism

67 This last interpretation is perhaps sharpened in the identity narratives of those Hindus who left Portugal and Mozambique in the Nineties and settled in areas of Greater London (such as Wembley, Alperton, Harrow, Edgware, Southall, etc.) and in Leicester, where numerous other Gujarati Hindus from Kenya, Uganda, Tanzania or directly from India have concentrated since the late 1960's and 1970's.

68 Justifying current and old negative evaluations about the Portuguese Hindus, namely their socio-economic and educational inferiority, the British-Indian Gujaratis evoke their identification with Portuguese colonizers perceived as under-developed and peripheral. On the other hand, reacting to these evaluations, the Portuguese Indians or portuguesiá (as they are now in London) emphasise the colonial «imperfections» of the British colonizers,

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 80

that is, the type and intensity of their «racism» (contrasting it to that «of the Portuguese»), all the while interpreting the «hidden racism» which characterizes their treatment on the part of British-Indian Gujaratis as the result of the multigenerational ties of the latter to the British Colonial Empire. «They say that they were linked for over a century to a world power, while we were linked to a peripheral and backward country. But the British do not have only good qualities. For example, in Mozambique there wasn't as much racism against Indians as in South Africa, Uganda, or Kenya. (...) Of course there was no comparison (...). But racism wasn't directly hostile. (...) They themselves did not only gain good qualities... Don't think that living here [in London] is easy. Deep down, I think they don't like us, just like the English. They don't show it openly. It's just another kind of hidden racism» (grocery shop owner, of khania caste, London).

69 This comparison of «colonizers» (and of the «colonized») is not a mere Portuguese rhetoric strategy that helps to face an unfavourable identity environment. Without denying their socio-economic superiority, many British Hindus share with the Portuguese Hindus the opinion that Portuguese colonizers and colonized, unlike the British, did not resort to race as a binary idiom in the construction of colonial sociabilities. «Nobody's perfect. Maybe the Protestant Church was less repressive than the Catholic, but the Portuguese treated Indians and Blacks with more dignity, more humanity. They didn't exploit the differences in skin colour as much as the British did in Uganda or Kenya. In those territories, racial discrimination was very strong. There was no racial law, as in South Africa, but it was a given that Indians could only live in certain areas, where the Africans could not enter. And both Africans and Indians couldn't enter the white areas. Everybody knew. Racism in Mozambique was different. [...]. And you can't forget that there was a lot of racism between Indians and Africans, but also among Indians. [...]. I think that there was more cooperation between the various Hindu groups, in Mozambique» (businessman, of patel caste, London).

70 The identity assertion according to which the «less rich» (like their «backwards» and «peripheral» «colonizers») had, in compensation, relational identity qualities seems to have balanced the general hierarchisation created by the colonial phase of the expansion process of the global market between central and semi-peripheral colonizers and between their respective Hindu settlers. It is not surprising that in new socio-historical circumstances, British and Portuguese colonialism continue to serve as a source of identity arguments in the management of post-colonial asymmetries between Hindu European minorities.

BIBLIOGRAPHY

B. ASHCROFTH et al., 1998, Key Concepts in Post-Colonial Studies, London, Routledge.

Jackie ASSAYAG & Giles TARABOUT (eds.), 1999, La Possession en Asie du Sud. Parole, Corps, Territoire, Purusartha, vol. 21, pp. 149-82.

Susana BASTOS & José BASTOS, 2001, De Moçambique a Portugal - Reinterpretações Identitárias do Hinduismo em Viagem, Lisbon, Orientália.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 81

Mikhail BAKTHIN, 1968, Rabelais and His World, Cambridge, Ma, MlT Press.

Hubert BLALOCK, 1969, Toward a Theory of Minority Group Relations, New York, John Wiley.

Homi BHABHA, 1994, The Location of Culture, London, Routledge.

Gregory BATESON, 1936, Naven, Cambridge, Cambridge University Press.

Edna BONACHI, 1973, «A theory of middleman minorities», American Sociological Review, vol. 38, pp. 583-94.

Gervaise CLARENCE-SMITH, 1985, O Terceiro Imperio Português (1825-1975), Lisbon, Teorema.

Ana CARVALHO, 1999, «O Empresariado Islâmico em Moçambique no período pós-colonial», PhD dissertation, Department of Economy, ISEG, Lisbon.

Abner COHEN, 1971, «Cultural strategies in the organization of trading diasporas», in Claude MEILLASSOUX (ed.), The Development of Indigenous Trade Markets in West Africa, London, Oxford University Press, pp. 266-84.

Abner COHEN, 1981, Politics of Elite Culture, Berkeley, University of California Press.

Jean COMAROFF, 1985, Body of Power, Spirit of Resistance, Chicago, University of Chicago Press.

Peter GESCHlERE, 2000, The modernity of Witchcraft. Politics and the Occult in Postcolonial Africa, Charlottesaville and London, University Press of Virginia.

Alcinda HONWANA, 1996, «Spiritual Agency and Self Renewal in Southern Mozambique», PhD dissertation, Department of Anthropology, School of Oriental and African Studies, London.

Bruce KAPFERER, 1983, A Celebration of Demons. Exorcism and the Aesthetics of Healing in Sri Lanka, Bloomington, Indiana University Press.

Charles MALAMOUD, 1989, Cuire le monde. Rite et pensée dans l'Inde Ancienne, Paris, Editions de la Découverte.

Joana PEREIRA LEITE, 2001, «Indo-britanniques et indo-portugais: la presence marchande dans le Sud du Mozambique au moment de l'implantation du système colonial portugais», RFHOM, vol. 88, n°. 330-331, pp. 13-37.

João PlNA CABRAL, 2001, «Galvão among the Cannibals: The Emotional Constitution of Colonial Power», Identities, vol. 8, n°. 4, pp. 483-515.

João PlNA CABRAL, 2002, «Dona Berta's Garden. Reaching across the Colonial Boundary», Etnográfica, vol. 6, n°. 1, pp. 77-90.

R. A. SCHERMERHORN, 1970, Comparative Ethnic Relations, New York, Random House.

Carlos SERRA et al, 2000, Racismo, Etnicidade e Poder, Maputo, Universidade Eduardo Mondlane.

T. SHIBUTANI & K. KWAN, 1965, Ethnic Stratification, New York, Macmillan.

Jonathan TURNER & Edna BONACICH, 1980, «Toward a composite theory of middleman minorities», Ethnicity, vol. 7, pp. 144-58.

Victor TURNER, 1969, The Ritual Process, Ithaca, N. Y, Cornell University Press.

S. YOUNG, 1978, «What have they done with the rain? Twenty Century Transformations of Ceremonial Practice and Belief in Southern Mozambique», paper delivered to the American ASA Conference, November 1978.

Waldemir ZAMPARONI, 2000, «Monhes, Baneanes, Chinas e Afro-maometanos: Colonialismo e racismo em Lourenço Marques, Moçambique (18901940)», Lusotopie, pp. 191-222.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 82

NOTES

1. This analysis is the result of a multi-sited ethnography carried in Maputo, London and Lisbon in the nineties. In Lisbon and Maputo we have selected around 40 informants, born before 1960, belonging to different castes and socio-economic status. On the other hand, in London, we have sought a sample of interviewees which was representative of the Portuguese Hindu population. Therefore, we carried out 20 interviews with Hindus born after 1960, belonging mainly to castes from Diu, whom have migrated to London either directly from Mozambique or from Portugal. 2. Diu, in the Gulf of Cambay, adjacent to the Saurasthra Peninsula, was a Portuguese possession for 450 years. Following the Operation Vijay in December 1961, it was considered a Separate Union Territory. 3. The business of the cantineiro included the acquisition and transport of various types of produce («peanuts, cashews, cotton, corn», etc.) harvested by the natives to the towns. Cantineiros also sold capulanas — the traditional cloth — and other textiles, basic foodstuffs, the «colonial wine» and other basic goods («kerosene, pots and pans, hammers, nails, knives, etc.») provided by merchants in the cities. 4. Despite the frequency of professional mobility from masons to traders, there was an important class stratification within the Hindu Community. 5. Businessman, lohana caste, Lisbon. This memory is shared by the majority of our informants. 6. Economist, vanja caste, Maputo. 7. Since 1896, the Portuguese divided the region in a number of districts and localities. They appointed Portuguese regional and local administrators, and selected a number of Africans as regulos and ndumas (often selected without any reference to the traditional chiefs of the area). 8. Mataji is one of the most frequent denominations used to describe a person who is possessed by a Hindu goddess. 9. It is very likely that the reference is to a well-known tinyanga from Salamanga, called Shingoma, who was deported to the Ilha de Moçambique against witchcraft; the same crime led to the detention, deportation and condemnation to forced labour of many Mozambican natives during the first decades of the 20th century. 10. See interview with one of the few Hindus who were active members of Frelimo before 1974. 11. Businessman, lohana caste, Maputo. 12. Businessman of construction industry, khania caste, Lisbon. 13. Industrial, vanja caste, Maputo. 14. Merchant, lohana caste, Lisbon. 15. Engineer, vanja caste, Maputo. 16. Businessman, vanja caste, Nampula and Maputo. 17. Trader, fudamiá caste, Maputo. 18. Businessman, Iohana caste, Lisbon. This kind of statement is shared by the majority of our informants. 19. Beginning by characterizing Indians as «Sordid beings, astute, degenerate, greedy, mean, voracious, insatiable, languid, effeminate, loathsome», while recognizing their «pacific, obedient, apolitical» conduct and, more than anything, their precious contribution to tax collection (Zamparoni, 2000: 192-200), the colonial imaginary of the late XIX and early XX centuries underwent a partial modification in the 1930s and 1940s. 20. See the article «Indianos» [Indians] in the Lourenço Marques Guardian, of 2 August 1938. 21. See the document entitled «Estudo sobre indianos» [«Study on Indians»] (commissioned by the Ministry of Overseas Territories to the Government of the Province), Lourenço Marques, 28th August 1962, p. 27, (Historical Archives of Mozambique).

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 83

22. See the Report by the General and Commanding Officer of the 4th Military Region of the colony, in the document «Estudo sobre Indianos» [«Study on Indians»], 1938, p. 37-38. 23. Ibid., p. 37. 24. Ibid, p. 38. 25. See the speech of the Governor General, on the occasion of the inaugural session of the Veda Mandir, Lourenço Marques Guardian, 2 August 1938. 26. See the speech of Mr. Bhagwangi Kakoobhai, in «lniciativa da Comunidade Indiana» [«Initiative of the Indian Community»], Lourenço Marques Guardian, 2 August 1938. 27. Businessman, fudamiá caste, Maputo. 28. Judicial consultant, fudamiá caste, Maputo. 29. Businessman of surti caste, Maputo. 30. Trader, mochi caste, Maputo. 31. Doctor, vanja caste, Lisbon. 32. Engineer, vanja caste, Lisbon. 33. Industrial, lohana caste, Lisbon. 34. This argument was used by the colonial administration to justify the detention of those Indians who had Hindustani documents. See, for instance, the Report of PIDE, 15 December 1961, (Historical Archives of Torre do Tombo, Lisbon). 35. In the article «Repatriates refuse to pay customs duty», Times of India, 5 February 1963. 36. Businessman, patel caste, London.

ABSTRACTS

Based on a series of memories of Hindu Indians who lived in Mozambique in the last decades of the Portuguese colonial administration, regarding the relations they established with a triple «other» — the colonial State and the Portuguese, the indigenous population and other groups of Indians —, the present article is an attempt to contribute to an area that has received virtually no attention, that of the study of identity productions relating to inter-ethnic and inter-racial relations in Mozambique in the colonial period. The analysis of the imagined constructions of Hindu Indians reveals that present identity experiences interact with the colonial memory and that interpretations of the past are a strong source of imaginary material for the postcolonial construction of power dynamics.

Partindo de um corpus de memórias produzidas por Hindus de origem indiana que viveram em Moçambique nas últimas décadas da administração colonial portuguesa, nomeadamente acerca das relações que estabeleciam com o Estado colonial e com os colonos portugueses em geral, com a população africana e com outros grupos de origem indiana, o artigo procura contribuir para uma área de pesquisa escassamente trabalhada, o estudo das produções identitárias sobre as relações inter-raciais e inter-étnicas em Moçambique durante o período colonial. A análise das construções imaginadas dos Hindus de origem indiana revela que as suas experiências identitárias actuais interagem com as memórias coloniais e que as suas reinterpretações do passado colonial continuam a constituir uma importante fonte de argumentos no manejo pós- colonial das dinâmicas de poder em que se encontram envolvidos.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 84

INDEX

Palavras-chave: Indianos, Relações inter-étnicas, Administração colonial, Memória social, Moçambique Keywords: Indian, social memory, inter-ethnic relations, colonial administration, Mozambique

AUTHOR

SUSANA PEREIRA BASTOS Faculdade de Ciências Sociais e Humana, UNL, Lisboa

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 85

A nostalgia colonial como técnica de best-selling literário Colonial nostalgia as literary best-selling pratice

Giorgio de Marchis

1 O primeiro romance de Miguel Sousa Tavares, por evidentes razões de projecção mediática do seu autor, não podia ter o normal acolhimento que o público costuma reservar às obras com que escritores, até esse momento desconhecidos, estreiam a própria carreira literária. A notoriedade televisiva gera sempre curiosidade nos potenciais leitores e esta peculiar forma de suspense acaba por incrementar as vendas do livro em questão; assim, limitando-nos ao âmbito da literatura portuguesa contemporânea, A Filha do Capitão e O Codex 632 de José Rodrigues dos Santos e A Casa Quieta de Rodrigo Guedes de Carvalho confirmam esta consideração preliminar tão óbvia como necessária. Contudo, vinte e cinco edições esgotadas em três anos e mais de 250.000 exemplares vendidos só em Portugal, assim como uma invulgar difusão internacional — com a tradução para mais de dez línguas e, finalmente, com a surpreendente atribuição do prémio Grinzane Cavour (um dos mais prestigiados de Itália, já conferido nas precedentes edições a autores tais como José Saramago, Nadine Gordimer e Günther Grass) — obrigam a considerar outros factores, literários e extraliterários, que possam ter contribuído ao extraordinário êxito de Equador. Deste ponto de vista, evidentemente, não se pode ignorar a hábil reconfiguração do colonialismo português realizada por Sousa Tavares e perguntar-se senão é precisamente esta recriação dum passado colonial aliciante e aceitável — porque, ao fim e ao cabo, livre de sentimentos de culpa — uma das razões do entusiasmo suscitado em Portugal pelo romance. Contudo, pelo que respeita à recepção de Equador, antes de mais é preciso distinguir entre uma dimensão nacional — onde factores como a fama do autor e uma determinada ficcionalização da temática histórica poderão ter funcionado como «geradores de interesse» — e uma dimensão internacional, influenciada por elementos que é possível integrar numa mais ampla estratégia narrativa de carácter paraliterário. Deste ponto de vista, a receita aplicada por Sousa Tavares não podia ser mais convencional e eficaz: uma mistura de erotismo (penso na sexualidade irrefreável dos protagonistas), exotismo estereotipado (tanto oriental como africano) e requintado heroísmo, desenrolada na extrema linearidade duma

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 86

estrutura romanesca «mínima», onde tudo contribui para simplificar (leia-se: orientar) a interpretação dos leitores; assim, como em qualquer romance-folhetim do século XIX, o aspecto físico das personagens, em Equador, traduz sempre os seus valores éticos (de acordo com o tradicional esquema beldade/bondade vs. fealdade/maldade) permitindo, de facto, ao leitor de dispor sem hesitações todas as figuras no tabuleiro ideológico do romance logo que estas aparecem no enredo. Comparem-se, por exemplo, as descrições de Luís Bernardo Valença, do governador de Angola e do secretário-geral do Governo em São Tomé: «Luís Bernardo era quase da idade do Rei, mas, ao contrário deste, era um homem magro e elegante, que se vestia com aquela sobriedade só aparentemente distraída que é característica dos verdadeiros gentlemen D. Carlos de Bragança parecia um pacóvio far dado de Rei: ele parecia um príncipe disfarçado de burguês»1. «A figura do outro — baixinho, semicareca, olhos pequeninos e castanhos, manchas de suor na cara e no peito — era-lhe desagradável. Os seus modos, de pequeno ditador insinuando permanentemente o seu conhecimento privilegiado do meio, a sua ciência certa de experiência feita, preenchia exactamente o perfil do funcionário colonial que ele execrara nos seus escritos»2 «(...) avançou para ele um sujeito baixinho, de fato preto completo, com colete, gravata e camisa branca cujos colarinhos o suor tinha já manchado. Aparentava ter uns quarenta e poucos anos e apresentou-se como sendo Agostinho de Jesus Júnior, secretário-geral do governo, o que ali significava secretário do governador. (...) Transpirava suor, respei to, cansaço e acomodação (...)»3

2 Uma técnica de construção das personagens — que Daniel Couégnas já identificou como característica do fenómeno paraliterário4 — que se integra perfeitamente numa mais ampla estratégia narrativa, finalizada a seduzir o leitor oferecendo-lhe o prazer perverso de ler algo novo lendo, ao invés, algo muito parecido ao que já leu e, por tanto, já conhece (no caso italiano, a obra de Sousa Tavares inevitavelmente traz à memória tanto os romances aventurosos de Emilio Salgari como as páginas mais ousadas de Liala). Uma fórmula narrativa adaptável a qualquer meio, que conseguiu cativar a curiosidade de um público internacional que provavelmente ignorava a história finissecular de Portugal e jamais se interessou por questões santomenses mas que, para usar uma expressão criada por Roland Barthes, não soube resistir ao fascínio da leitura confortável dum texto de prazer5, enriquecido pelo surplus intelectual das três páginas de «Bibliografia de consulta do autor» com que se fecha o livro.

3 Esta estratégia paraliterária não funciona, porém, apenas no estrangeiro; pelo contrário, o efeito de déjà vu literário é, para um leitor português, ainda mais intenso. De facto, reconhecem-se na escrita de Sousa Tavares as pegadas dum antígrafo queirosiano, quase um palimpsesto onde transparece a lição do último Eça, tanto na descrição dos ambientes lisboetas, como na construção da figura do protagonista, evidentemente inspirado em Carlos Fradique Mendes e, num sentido mais amplo, no dandismo finissecular que tantas personagens do autor de Os Maias e de A Cidade e as Serras encarnam e, não raro, parodiam6 . Como Fradique, Luís Bernardo é um homem elegante — «estava a par da moda, do que se passava lá fora, mas não prescindia do seu próprio critério»7 — que «nada detestava mais intensamente do que o "efeito" e o "desta que excessivo''»8. Ambos nunca concluíram o próprio curso de Direito e são homens bem relacionados e solteiros que, mesmo sendo portugueses ricos que vivem bem, são vítimas do tédio e da falta de reais ambições sociais: «A sua qualidade», escreve Sousa Tavares acerca da sua personagem, «era não alimentar demasiadas ambições, o seu defeito o de não alimentar, provavelmente, ambição alguma»9. Uma atitude que João Forjaz, ao apresentar o amigo à prima Matilde, resume nestes termos: «

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 87

Este é o Luís Bernardo o espírito mais céptico da minha geração»10. O mesmo desencanto, contudo, também se intui no «sorriso sinuoso e céptico onde viviam vinte séculos de literatura» 11 da personagem queirosiana a quem, como afirma Oliveira Martins, «falta-lhe na vida um fim sério e supremo»12. Além de tudo isto, há em Equador um fradiquismo generalizado, reconhecível no à vontade permanente e cosmopolita das suas personagens mais chiques, que lembra a elegante naturalidade do autor de Serenata de Satã às Estrelas. De facto, se Fradique Mendes sabia estar «tão homogeneamente numa cervejaria filosófica da Alemanha, aprofundando o Absoluto entre professores de Tubingen — como numa aringa africana da terra dos Matabeles, comparando os méritos da carabina "Express" e da carabina "Winchester", entre caçadores de elefantes»13, da mesma maneira David Jameson, o consul inglês residente em São Tomé, «estava à vontade nos salões ou no mato, no pólo ou na caça ao tigre, no clube de oficiais ingleses ou nas discussões em hindi com as autoridades autóctones »14, assim como o ocidentalizado rajá de Goalpar «estava tão à vontade no dorso de um elefante, numa caçada ao tigre nas florestas húmidas do Assam, como estava num salão de chá, entre oficiais ingleses e estrangeiros de passagem»15.

4 Contudo, a banalização da lição queirosiana e a sua adaptação a moldes paraliterários não é nem a única nem a principal razão da fortuna do romance de Miguel Sousa Tavares em Portugal. O que provavelmente tomou Equador num best-seller nacional foi talvez a sua invulgar capacidade de satisfazer o desejo social, muito generalizado na opinião pública portuguesa, de partilhar uma memória positiva do que foi o próprio passado em África. Em termos literários, a operação realizada por Sousa Tavares acaba por ser afim à que Francisco José Viegas e Manuel Arouca levaram a cabo com romances como Lourenço Marques e Deixei o Meu Coração em África e consiste em obedecer e, ao mesmo tempo, alimentar determinadas normas sociais da lembrança, na definição que Eviatar Zerubavel criou para as regras que uma comunidade mnemónica estabelece acerca do que há-de recordar e o que é preciso esquecer. Deste ponto de vista, Equador pode interpretar-se como uma obra que funciona como factor de agregação de uma comunidade que se reconhece enquanto recorda e consome a mesma imagem do próprio passado e, contemporaneamente, como gerador desta mesma imagem alternativa da própria história colonial, que contribui para filtrar e alterar, através da reconfiguração dos marcadores deste determinado segmento histórico.

5 No que concerne ao imaginário mítico da África portuguesa, o problema principal, para usar sempre as palavras de Zerubavel, é que «"(...) é preciso considerar o passado como parte integrante das actuais identidades. Isto justifica as crises de identidade que amiúde sofremos a seguir a dramáticas mudanças que literalmente nos arrancam do nosso pas‐ sado, como quando emigramos, sofremos uma histerectomia, perdemos um familiar»16. Assim, se é verdade, como afirma Eduardo Lourenço, que o fim do império, na altura em que se produziu e por várias razões, não abalou os alicerces identitários da sociedade portuguesa17, não há dúvida que hoje Portugal sinta a necessidade, por várias razões (mas talvez também para cicatrizar essa mesma ferida que há três décadas não foi possível diagnosticar), de reafirmar política, cultural, económica e até mnemonicamente a sua «afinidade natural» com África18.

6 A memória, porém, não é um simples armazém onde amontoamos todas as experiências que fizemos; ao contrário, trata-se dum processo que, através duma série de operações (incluindo o esquecimento), contribui para que os sujeitos individualmente construam a própria identidade e as nações mantenham coesa essa comunidade imaginada que Onésimo Teotónio Almeida prefere chamar de «comunidade de coração»19; ou seja, como

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 88

afirma Manuel Cruz, «A memória não guarda nem armazena, mas põe em realce, aponta, chama a atenção: daí o seu carácter qualitativo. É o lápis que sublinha os acontecimentos, os momentos, as pessoas que nos permitem ser o que somos e que fizeram com que o nosso mundo seja o que agora é»20. Portanto, mesmo num romance histórico, é indispensável averiguar os critérios e os elementos que o autor considerou relevantes para a reconstrução da sua versão do passado de um indivíduo ou, como neste caso, do passado do próprio país porque, como Edward Said aliás diz muito claramente, a maneira como representamos o passado determina a nossa com preensão e visão do presente21.

7 Deste ponto de vista, Equador não se limita a restaurar lembranças de vida colonial (como faz, por exemplo, com as páginas dedicadas a figuras da história santomense como Ana Chaves, Maria Correia e Jacinto de Souza ou com a descrição de S. Tomé e Príncipe com que se abre o capítulo XII), mas propõe ao mesmo tempo aos seus leitores uma imagem do Outro que esclarece os alicerces ideológicos nos quais se baseia toda a interpretação do passado do seu autor. Assim, o Raj que David Lloyd Jameson conhece durante a sua estadia na índia é um típico exemplo de Oriente orientalizado; ou seja, uma falsa imagem duma cultura que traduz uma geografia imaginária elaborada na Europa para os europeus, onde «rationality is undermined by Eastern excesses, those misteriously attractive opposites to what seem to be normal values»22: «David ficou três anos em Bangalore. Matou dois tigres em caçadas organizadas pelo marajá e um sem-número de peças menores, com o par de Purdeys compradas em segunda mão ao segundo comandante dos Lanceiros da Rainha. Venceu o campeonato estadual de pólo, numa equipa mista hindu-britânica, com cavalos emprestados pelos estaôulos do marajá de Bangalore, experimentou — como também era de tradição entre os oficiais locais do India Civil Service — algumas das incríveis posições do acto sexual patentes nos frescos dos templos com as dispensadas do harém do marajá, e viajou por todo o lado, dentro do Estado, levando a todo o lado a administração da boa, tranquila e fiável justiça britânica»23.

8 E a África no livro não é menos africanizada. As suas paisagens, por exemplo, como aconselha Binyavanga Wainaina no seu irónico prontuário How to write about Africa, são sempre descritas duma forma extraordinariamente romântica, evocativa e vaga24: «Choravam pela sua outra África, das planícies a perder de vista, do capim seco ao sol, dos animais correndo livremente, do mato onde o leão espreita a zebra e o leopardo persegue silenciosamente o antílope, dos rios atravessados em frágeis canoas por entre jacarés e hipopótamos adormecidos, das noites na savana, ouvindo gritos da selva e aquecendo o medo num fogo aceso entre pedras»25.

9 Da mesma maneira, o excesso é uma condição permanente também no «inferno verde» de São Tomé; dir-se-ia o estigma revelador duma africanidade elementar, que se caracteriza por uma redução do homem à esfera animal dos instintos primários e da sensualidade mais compulsiva: «Quantos homens não se teriam apaixonado por uma mulher tão fantástica, para mais ali, onde tudo era diferente, desde a premência dos sentidos até às regras de com portamento social? Ali, onde todos os instintos eram vorazes, onde o desejo crescia como as simples plantas que se transformavam em árvores de um dia para o outro, onde os negros se passeavam quase tão nus como os animais, onde o calor, a lassidão e a lonjura, diluíam aos poucos o que noutro lugar estaria seguro por regras e convenções acatadas sem esforço? Ali, onde cada mulher acabava por se tornar apetecível para um homem só, e onde a simples presença e figura de Ann se tornava uma tortura aos olhos de qualquer homem?»26

10 Uma organização do espaço deste tipo — com a instauração duma fronteira cultural (o Equador?), criada a partir de categorias preexistentes, entre um aquém familiar e racional

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 89

e um além-fronteira bestial onde tudo era diferente — acaba inevitavelmente por determinar as modalidades de representação do Outro. Deste ponto de vista, o romance limita-se a silenciar os africanos numa muda resignação: não falam Joanino e Jesus Satumino durante o processo, não falam os revoltos da ilha de Príncipe que recebem o governador «num pesado silêncio»27, não falam os negros que escutam em «religioso silêncio aquela música triste que o gramofone do governador espalhava na noite equatorial»28, assim como mudos são o olhar de agradecimento que Sebastião dirige a Luís Bernardo e até o orgasmo de Gabriel no quarto de Ann. Aliás, as poucas vezes que estas personagens tomam a palavra, fazem dela um uso impróprio e até diria infantil, que é quase uma caricatura dos discursos de Luís Bernardo e David.

11 Exemplares, neste sentido, são o malentendido de Sebastião em relação à música que ouve o governador e o seu medo do óbó: «Sebastião ouviu tudo muito compenetrado e na sexta-feira a cidade conhecia já a verdadeira história daquela música que despedaçava os corações de quem a escutava: era uma "oprá", uma música que só se podia escutar de noite naquela máquina e que era cantada por um amigo do senhor governador, também governador da Itália. Era, tinha explicado o Sebastião, como se os dois estivessem a falar ao telefone»29. «Os olhos do Sebastião arregalaram-se de genuíno terror e até a voz lhe tremeu: "Dotôr, não faça isso, pela sua alma! O óbó está assombrado, é terra de cobra, de trovoada, relâmpago, assombrações. Já muitos pretos loucos quisera ir para lá viver, mas nenhum voltou: diz-se que se transformam em cobras também"»30.

12 É preciso, mais uma vez, voltar às páginas de Frantz Fanon para perceber o significado desta mudez e a razão deste uso gaguejante da língua. O autor de Peau noire masques blancs, no ensaio dedicado à controversa relação entre o negro das Antilhas e a língua francesa, afirma: «Un homme qui possède le langage possède par contrecoup le monde exprimé et impliqué par ce langage. On voit où naus voulons en venir: il y a dans la possession du langage une extraordinaire puissance»31. Equador, porém, põe em causa precisamente esta extraordinária potência e o silêncio é funcional à sua representação do africano como indivíduo que não sente alguma contradição entre o seu ser e o sistema colonial32.

13 Dir-se-á que o protagonista do romance de Sousa Tavares luta ao longo de mais de quinhentas páginas contra a escravidão, mas esta é só a superfície ideológica duma obra de que se poderia dizer o mesmo que Ngugi wa Thiong’o disse de um romance de Karen Blixen: «Out of Africa is one of the most dangerous books ever written about Africa, precisely because this danish writer was obviously gifted with words and dreams. The racism in the book is catching, because it is persuasively put forward as love. But it is the love of a man for a horse or for a pet»33. Disto mesmo, aliás, é um exemplo a patética e paternalista consoada que Luís Bernardo Valença organiza no Natal de 1907: «Mandou, insistiu e finalmente teve de se exaltar, para que todos, todo o seu povo caseiro, se sentasse à mesa no jantar da consoada. Estavam lá todos, seis pares de olhos brilhantes em rostos negros, que o fitavam, embaraçados e silenciosos: o Sebastião, o Vicente, o Tobias, o cocheiro, a Doroteia, sentada à sua direita e mais tentadora do que nunca, o Mamoun e Sinhá. Todos recusaram, envergonhados, o champagne que ele quis servir à volta e o resultado é que bebeu a garrafa inteira sozinho, durante o jantar. No final estava entre a melancolia e a lucidez do champagne e levantou-se para fazer um discurso com uma lágrima ao canto do olho, mas a única coisa que lhe saiu foi: — Nesta mesa, que já serviu um príncipe, um ministro do reino e vários governadores, nesta mesa onde vocês já me serviram tantas vezes sozinho, eu quis tê-los a todos aqui, hoje, na noite de Natal, porque vocês são, quer queiram quer

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 90

não, a única famí1ia que eu tenho no mundo. E, dito isto, desatou a chorar a sério e fugiu para o terraço, deixando-os mudos e sem jeito, sentados a olhar uns aos outros»34.

14 Contudo, o paternalismo e a auto-complacência não raro são formas de colonialismo atrasado35 e o romance de Sousa Tavares, escolhendo muito bem quais personagens fazer falar e quais manter caladas, o que, de facto, faz é uma obra de revisionismo histórico da imagem do império, porque a única coisa que Equador não põe absolutamente em causa é a legitimidade da autoridade portuguesa em África. Agora, afirmar que o seu autor adoptou uma ética coerente com a sociedade imperialista que representa (numa obra que, do ponto de vista da estruturação das personagens, apresenta não poucos anacronismos) não é uma justificação admissível36. Apresentar São Tomé e Príncipe ao leitor português como algo para ele longinquamente íntimo-exótico e, ao mesmo tempo, familiar37 — mas nunca como um território com direito a uma própria e diferente soberania e a uma cultura independente e autónoma é um exemplo de como um texto literário possa tirar proveito da reelaboração do discurso do seu contexto ideológico — neste caso ligado à promoção da comunidade lusófona, através duma retórica que, nas palavras de Alfredo Margarida, «limita-se a procurar dissimular, mas não a eliminar, os traços brutais do passado. O que se procura de facto é recuperar pelo menos uma fracção da antiga hegemonia portuguesa, de maneira a manter o domínio colonial, embora tendo renunciado à veemência ou à violência de qualquer discurso colonial. Ou seja, pretende-se manter o colonialismo, fingindo abolir o colonialista, graças à maneira como o colonizado é convidado a alienar a sua própria autonomia para servir os interesses portugueses»38.

15 Mais uma vez, é importante questionar o que consideramos relevante para o nosso passado. Luís Bernardo Valença, o quadragésimo primeiro governador de São Tomé e Príncipe e São João Baptista de Ajudá inventado por Miguel Sousa Tavares, é uma figura romanesca que funciona perfeitamente como separador histórico; ou seja, o protagonista de Equador interrompe com a sua acção a continuidade histórica e estabelece uma interrupção entre duas épocas e duas maneiras de conceber a presença portuguesa em África. «Estou a dar-lhe a última oportunidade para perceber por si mesmo que as coisas mudaram. As coisas mudaram, senhor Germano!»39 declara este arauto dos novos tempos ao representante oficial dos serviçais negros das roças, substituindo a um colonialismo odioso e escravocrata uma política moderna e magnânima, gerida com espírito profissional e atitude civilizacional. Desta maneira, Luís Bernardo, com quem qualquer leitor acaba por identificar-se, encarna (e inventa) um passado não só comum mas por fim também partilhável entre o Centro e a Periferia do ex-império. Um passado que, ao separar-se do seu passado, toma-se um colante para o futuro da comunidade (já não simplesmente portuguesa mas lusófona) que nele se reconhece. Ainda por cima, toda a luta do protagonista do romance e o seu trágico suicídio criam um ambíguo e comum discurso de vitimização, onde já não é possível traçar diferenças entre colonizadores e colonizados porque todos, ao fim e ao cabo, são vítimas do mesmo sistema40.

16 Em conclusão, romancear a história colonial obriga sempre o escritor a considerar vários factores: dum lado, a saudade do império e o sentimento de culpabilidade, do outro, a desconfiança e o ressentimento. Equador aparentemente propõe uma revisitação crítica do que foi o passado colonial português mas, na realidade, o romance depura e falseia a memória deste passado, procurando satisfazer nostalgias imperiais e, ao mesmo tempo, apaziguar qualquer remorso e anestesiar possíveis ressaibos. O êxito do livro confirma a urgência de reconciliação que a comunidade mnemónica portuguesa vive em relação às

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 91

suas responsabilidades coloniais mas, como revela o diálogo entre Luís Bernardo e o chefe dos revoltosos da roça Infante Henrique, a ambiguidade do texto (e do seu contexto) reside sobretudo na paternalista pretensão de chegar a uma reconciliação, deixando ao Outro a possibilidade de escolher só entre a inferioridade e a sujeição: «— Ouve Gabriel — começou ele —, eu acredito em ti e em tudo o que me contaste. Mas é preciso que tu acredites também em mim. Eu não sou igual a eles e não te vou deixar nas suas mãos, porque te matavam assim que eu virasse as costas. Tu vens comigo para S. Tomé e, visto que não há nenhum crime de que te possam acusar, ficas sob a minha protecção, se necessário for, em minha própria casa. (...) Em troca quero que venhas comigo ao armazém onde estão barricados os serviçais e que os convenças a voltarem ao trabalho. (...) - Não sei se acredito em si. - Não tens alternativa senão acreditar em mim»41.

NOTAS

1. Miguel Sousa Tavares, Equador, Lisboa, Oficina do Livro, 200625, p.26 2. Ibidem, p. 109. 3. Ibidem, p. 123. 4. «Ces personnages nous apparaissent globalement comme lisibles ou déchiffrables de la maniere la plus univoque, même si cette lisibilité peut être différée: la paralittérature fait un grand usage de types illustrant l'opposition être/paraître (hypocrite, traître, masque, travesti...). De fait, le texte "programme" cette démarche d'élucidation qu'effectue le lecteur. Dès le début du récit, chaque personnage, en général, prend sa place, se carre dans une posture idéologico-narrative qui ne changera plus guère. (...) D'entrée, et sous une forme très ramassées, les auteurs établissent donc une espèce de fiche signalétique du personnage, collection de traits pertinents qui frappe par sa simplicité et son exhaustivité: on ne saura pas grand-chose de plus, du moins qui soit essentiel, sur le personnage. Chaque détail est signifiant, chaque information prépare le développement ultérieur du récit. (...) la suite du texte, lors des entrées en scène et des "prestations" du personnage, ne contribuera nullement à enrichir, à nuancer ou affiner ce portrait, mais bien plutôt à exemplifier, illustrer et confirmer répétitivement les traits de la fiche signalétique initiale», D. COUÉGNAS, Introduction à la paralittérature, Paris, Éditions du Seuil, 199, pp. 154-156. 5. «Texte de plaisir: celui qui contente, emplit, donne de l'euphorie; celui qui vient de la culture, ne romp pas avec elle, est lié à une pratique confortable de la lecture. Texte de jouissance: celui qui met en état de perte, celui qui déconforte (peutêtre jusq’à un certain ennui), fait vaciller les assises historiques, culturelles, psychologiques, du lecteur, la consistance de ses goûts, de ses valeurs et de ses souvenirs, met en crise son rapport au langage», R. BARTHES, Le plaisir du texte, Paris, Éditions du Seuil, 1973, pp. 25-26. 6. Veja-se: M. DE JONG, «Carlos Fradique Mendes. Contribution à l’ètude du personnage d’Eça de Queiroz», Bulletin des Ètudes Portugaises, (1934), 3, pp. 5-23; António José SARAIVA, As Ideias de Eça de Queirós, Amadora, Bertrand, 1982, pp. 139-157; Isabel PIRES DE LIMA, «O dandismo de Fradique ou o exercício impossível de um heroísmo decadente», in Eça e Os Maias, Porto, Asa, 1990, pp. 101-107; O. Paiva MONTEIRO, «Sobre a excentri cidade humorística de Fradique, Queirosiana. Estudos sobre Eça de Queirós e a sua geração, (1994), 5/6, pp. 193-226; Carlos REIS, «Sobre o último Eça ou o Realismo como problema, in Estudos Queirosianos. Ensaios sobre Eça de Queirós e a sua obra, Lisboa, Presença, 1999, pp. 156-163. 7. Ibidem, p. 16.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 92

8. J. M. Eça de QUEIRÓS, A Correspondência de Fradique Mendes, Lisboa, Livros do Brasil, 1999, p. 65. Da mesma maneira, para Luís Bernardo Valença «passar desapercebido era motivo de angústia, ser demasiado notado, apontado a dedo, era-lhe constrangedor, M. SOUSA TAVARES, op. cit, p. 16. 9. Ibidem. 10. Ibidem, p. 19. 11. J. M. Eça de QUEIRÓS, op. cit., p. 33. 12. Ibidem, p. 54. 13. J. M. Eça de QUEIRÓS, op. cit., p. 78. 14. M. SOUSA TAVARES, op. cit., p. 228. 15. Ibidem, p. 248. 16. «(...) il passato è da considerare come parte integrante delle identità presenti. Ciò spiega le crisi di identità che spesso patiamo come conseguenza di cambiamenti drammatici che ci strappano letteralmente dal nostro passato, come quando emigriamo, subiamo un'isterectomia, perdiamo un congiunto». E. ZERUBAVEL, Mappe del tempo. Memoria collettiva e costruzione sociale dei passato, Bologna, Il Mulino, 2005, p. 69, [Time maps: collective memory and lhe social shape of lhe past, Chicago-London, University of Chigago Press, 2003]. 17. «Treze anos de guerra colonial, derrocada abrupta desse império, pareciam acontecimentos destinados não só a criar na nossa consciência um traumatismo profundo — análogo ao da perda da independência — mas a um repensamento em profundidade da totalidade da nossa imagem perante nós mesmos e no espelho do mundo. Contudo, todos nós assistimos a este espectáculo surpreendente: nem uma nem outra coisa tiveram lugar. É possível que a profundidades hoje ainda não perceptíveis supure uma ferida que à simples vista ninguém apercebeu. Estamos perante um caso de inconsciência colectiva sem paralelo nos anais de outros países (basta lembrar o que foi o exame de consciência a que procedeu em Espanha a Geração de 98 após o «desastre de Cuba» ou às consequências político-ideológicas da guerra da Argélia), resumo de um processo histórico caracterizado por um sonambulismo incurável, ou perante um exemplo de sageza exemplar, de adaptação realista e consciente aos imperativos mais fundos da consciência e interesses nacionais?(...) Um acontecimento tão espectacular como a derrocada de um "império" de quinhentos anos, cuja «posse» parecia co-essencial à nossa realidade histórica e mais ainda fazer parte da nossa imagem corporal, ética e metafísica de portugueses, acabou sem drama», Eduardo LOURENÇO, «Psicanálise mítica do destino português», in O Labirinto da Saudade, Lisboa, Gradiva, 20012, pp. 46-47. 18. «Le lusotropicalisme revient cependant au galop, pu isque le Portugal reste caractérisé par une "affinité naturelle" avec l'Afrique qu'il faut certes préserver et même reconstruire mais qui n'en reste pas moins sa méthode et sa maniere d'être. Le Portugal a besoin de ceife "tension fondatrice" de son identité nationale contemporaine, d'autant plus que pointe l'inquiétude du moment de vérite de 1999, quand l'Union européenne devra resserrer les cordons de la bourse pour les ouvrir à l'Europe de l'Est», Michel CAHEN, «Des caravelles pour le futur? Discours politique et idéologie dans I’ "institutionnalistation" de la communauté des pays de langue portuguaise», Lusotopie, 4, 1997, p. 402. 19. Onésimo T. ALMEIDA, «Identidade nacional — a doce tirania do passado», in O estado do nosso futuro. Brasil e Portugal entre identidade e globalização, org. por O. GROSSEGESSE, Berlin, Edition Tranvía, 2004, p. 20. 20. «La memoria non conserva né immagazzina, ma mette in risalto, indica, richiama l'attenzione: da qui il suo carattere qualitativo. È la matita che sottolinea eventi, momenti, persone che ci fanno essere chi siamo e che hanno fatto dei nostro mondo cià che è ora», Manuel CRUZ, «Bisognerà cominciare a difendersi dal passato», in La memoria e l'oblio, a cura di F. Rella, Bologna, Pendragon, 2002, p. 19. 21. Veja-se: E. SAID, Culture and Imperialism, New York, Vintage Books, 1994, pp. 3-19. Manuel Cruz leva ainda mais para a frente a ligação entre dimensões temporais: «(...) compreendi até que ponto, de facto, o discurso da história e o discurso da acção façam referência um ao outro, de que maneira não se

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 93

possa compreender o passado sem uma nítida percepção do próprio projecto futuro, como, finalmente, ambos os discursos representem as faces inseparáveis da mesma moeda», [«(...) mi sono reso conto fino a che punto, in effetti, il discorso della storia e il discorso dell’azione si riferiscano l'uno all'altro, inche misura non vi sia intellegibilità dei passato senza una chiara percezione dei proprio progetto futuro, in che misura, infine, entrambi idiscorsi rappresentino le facce inseparabili di una stessa moneta»], M. CRUZ, op. cit., p. 13. 22. E. SAID, Orientalism, London, Routledge & Kegan, 1978, p. 57. 23. M. SOUSA TAVARES, op. cit., p. 229. 24. «In your text, treat Africa as if it were one country. It is hot and dusty with rolling grasslands and huge herds of animals and tall, thin people who are starving. Or it is hot and steamy with very short people who eat primates. Don't get bogged down with precise descriptions. Africa is big: fifty-four countries, 900 million people who are too busy starving and dying and warring and emigrating to read your book. The continent is full of deserts, jungles, highlands, savannahs and many other things, but your reader doesn't care about all that, so keep your descriptions romantic, and evocative and unparticular», B. WAINAINA, «How to write about Africa, Granta, 92, 2006, http://www.granta.com/extracts /2615. 25. M. SOUSA TAVARES, op. cit., pp. 178-179. 26. Ibidem, p. 464. 27. Ibidem, p. 424. 28. Ibidem, p. 151. 29. Ibidem, p. 151. 30. Ibidem, p. 163. 31. Frantz FANON, «Le Noir et le langage», in Peau noire masques blancs, Paris, Éditions du Seuil, 1975 (1952), p. 14. 32. Veja-se, neste sentido, em que termos Luís Bernardo é recebido pela criadagem do palácio, ao seu regresso das inspecções nas roças: «O mais reconfortante nas suas vindas a casa era constatar como o Sebastião e todo o pessoal pareciam ter sentido as suas ausências, tratando-o como um soldado de regresso da frente de batalha para se rebastecer na reta guarda. Da cozinha, vinham pedidos insistentes de Mamoum e Sinhá para que "o senhor governador diga o que mais lhe apetece para o jantar" e qualquer coisa que ele dissesse transformava-se imediatamente em jantar, como se os seus desejos já tivessem sido adivinhados. A Doroteia sorria à vista do monte de roupa suja que ele atirava para o chão do quarto e como esmero alinhava sobre a cómoda um rol de camisas lavadas e engomadas para ele levar de volta na manhã seguin te», M. SOUSA TAVARES, op. cit., p. 188. Uma fiel devoção bem resumida nesta declaração de Sebastião: «é uma honra servi-lo e tê-lo como governador de S. Tomé», Ibidem, p. 373. 33. N. WA THIONG'O, «Her cook, her dog: Karen Blixen's Africa», in Moving the centre. The struggle for cultural freedoms, London-Nairobi-Portsmouth, Currey-East African Educations Publishers- Heinemann Educations Books, 1993, p. 133. 34. M. SOUSA TAVARES, op. cit., p. 486. Em termos de revisão crítica de um sistema de poder, é interessante comparar esta ceia com a consoada descrita por José Cardoso Pires no capítulo XVI de O Delfim. Em Equador, o «povo caseiro» fica, mais uma vez em absoluto silêncio, sentado à mesa do patrão numa ilusória atmosfera de benevolência; ao invés, no romance de Cardoso Pires assistimos ao abandono da festa dos três camponeses-operários que, num gesto político de reivindicação da própria autonomia (que Sousa Tavares não admite nos seus criados negros) deixam o Engenheiro só com a degradação da sua autoridade. 35. Veja-se: Alfredo MARGARIDO, A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000. 36. Leia-se o que escreveu Salman Rushdie acerca do The Raj Quartel de Paul Scott: «Indians get walk-ons, but remain, for the most part, bit-players in their own history. Once this form has been set, it scarcely matters that individual fictional Brits get unsympathetic treatment from their author. The form insists that they are the ones whose sto ries matter, and that is so much less than the whole truth that

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 94

it must be called falsehood. It will not do to argue that Scott was attempting to portray the British in India, and that such was lhe nature of imperialist society that lndians would only have had bit paris. It is no defence to say that a work adopts, in its structure, lhe very ethic which, in its con tent and tone, it pretends to dislike. It is, in fact, the case for lhe prosecution», S. RUSHDIE, «Outside the Whale», in Imaginary Homelands. Essays and Criticism 1981-91, London, Granta, 1991, p. 90. 37. Veja-se, por exemplo, esta descrição de S. Tomé: «Na avenida principal, em frente, as palmeiras oscilavam com o vento e eram elas que, antes de mais nada, recordavam ao recém-chegado que estava em África, se bem que no alto mar e em plena linha do Equador. Mas, ao fundo, os telhados das casas, de telha lusitana e de duas águas, diziam-lhe que aquela era terra portuguesa e, no meio da apreensão que o consumia, Luís Bernardo comoveu-se com essa visão e sentiu-se estranhamente em terra familiar, M. SOUSA TAVARES, op. cit., p. 122. 38. Alfredo MARGARIDO, «A re-descoberta da língua como "força imperial"», in A Lusofonia cit., p. 76. 39. M. SOUSA TAVARES, op. cit., p. 291. 40. Podemos até dizer que no Equador, excluindo algumas ovelhas verdadeiramente negras, há só vítimas, porque também os escravocratas que administram as roças «é gente que sacrificou o melhor das suas vidas aqui, que trabalhou de sol a sol, que suportou o tédio e as recriminações das mulheres, a dor dos filhos mortos pela malária, e as incomprensões e as injustiças dos proprietários que lhes perguntam, lá do conforto de Lisboa, porque é que a safra deste ano rendeu menos mil toneladas do que a do ano passado e não querem saber de mais nada», Ibidem, p. 348. 41. Ibidem, p. 420.

RESUMOS

O artigo analisa o romance Equador de Miguel Sousa Tavares à luz do sensacional êxito que o livro teve sobretudo em Portugal. Além duma estratégia ficcional de cariz paraliterário, a hábil recuperação e banalização da lição queirosiana aparece como um dos elementos que, ao oferecer uma leitura muito confortável dum texto de prazer, justifica o óptimo acolhimento que este best- seller recebeu no mercado editorial português. Contudo, o romance de Miguel Sousa Tavares, assim como outras obras publicadas nos últimos anos em Portugal, responde sobre tudo ao desejo social, hoje em dia muito generalizado na comunidade mnemónica portuguesa, de partilhar uma imagem positiva do que foi o próprio passado em África. Deste ponto de vista, Equador obedece e, contemporaneamente, alimenta determinadas normas sociais da lembrança e pode, portanto, considerar-se como um romance histórico que funciona como factor de agregação de uma comunidade que se reconhece enquanto recorda e consome a mesma imagem do próprio passado e, contemporaneamente, como gerador desta mesma imagem alternativa da própria história colonial, que contribui para filtrar e alterar, através da reconfiguração dos marcadores do segmento histórico em questão.

The article analyses Miguel Sousa Tavares’ novel Equador in the light of the sensational success that the book had, mainly in Portugal. In addition to a fictional strategy of paraliterary character, the skilful recovery and banalization of the Queirosian lesson appears as one of the elements that, by offering a comfortable reading of a pleasure text (in a barthesian sense), justifies the great acceptance that this best-seller received in the Portuguese editorial market. Still, Miguel Sousa Tavares' novel, as well as other works published in Portugal in the preceding years,

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 95

responds mainly to the social desire, nowadays very generalized in the mnemonic Portuguese community, of sharing a positive image of Africa’s past. From this point of view, Equador obeys, and simultaneously feeds certain social rules of rememberance and can then be considered an historical novel that functions as an aggregation factor of a community that recognizes itself while remembering and consuming the same image of the past and, simultaneously, as a generator of this same alternative image of the colonial history that contributes to filter and alter through the reconfiguration of the historical segment markers in question.

ÍNDICE

Keywords: lusophone literature -- century 21, colonial literature, cultural representation Palavras-chave: Literatura lusófona -- séc. 21, Literatura colonial, Representação cultural

AUTOR

GIORGIO DE MARCHIS Università degli Studi di Salerno, Itália

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 96

O futebol Português em Moçambique como memória social Portuguese football in Mozambique as social memory

Nuno Domingos

1 Este artigo foi elaborado a partir de algumas impressões etnográficas retiradas do quotidiano de Maputo durante o ano de 2006. Se é certo que procurei suportar estas impressões com dados de natureza mais objectiva, que pudessem fortalecer as considerações produzidas, é elementar insistir que não substituem um trabalho mais profundo sobre um tema bastante particular da relação de Portugal com os países africanos de língua oficial portuguesa.

2 No fim do mês de Março de 2006, no exterior do Mercado Central de Maputo, fui abordado por um jovem vendedor ambulante que se distinguia da multidão por envergar uma camisola garrida do Liverpool FC, clube de futebol inglês. Enquanto lhe garantia não ser um turista e não estar interessado nas várias peças de roupa, distribuídas por diversos cabides, que procurava vender, ele insistia para que eu olhasse para a sua mercadoria adiantando que sempre era melhor vender do que andar a roubar. Numa cidade com inúmeros problemas, onde grande parte da população vive em condições extremas, procurando sobreviver na vasta economia paralela, o fim da frase soou como um aviso. Parei, apontei para a sua camisola e disse que tinha vindo a Moçambique para ver jogos de futebol, aproveitando para lhe relembrar que o Liverpool acabara de ser eliminado, nos oitavos de final da Liga dos Campeões Europeus, pelo Benfica. O jovem vendedor olhou- me com um sorriso e apresentou-se como Marcos Isaías, normalmente conhecido por Isaías, nome dado pelo pai em homenagem ao antigo jogador de futebol brasileiro que jogou pelo Benfica. Alertaram-me para as inúmeras capacidades retóricas dos vendedores da baixa de Maputo, e para o modo como conseguiam adaptar com facilidade o discurso aos seus interlocutores. Marco Isaías podia, perfeitamente, ser um nome de origem cristã. Mas talvez as origens estivessem misturadas numa espécie de sincretismo religioso- desportivo. Marcos Isaías, que tinha 13 anos, colocou as devidas notas de rodapé para suportar o seu discurso. Arsenal-Benfica, segunda mão da eliminatória de acesso à Liga dos Campeões, 1991. Vitória histórica do Benfica por 3-1 em Londres, com dois golos de

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 97

Isaías. O pai de Marcos Isaías jamais se esquecera daquela noite em que o «pontapé canhão» do clube de Lisboa fora saudado de pé pelo público que enchia o estádio de Highbury. Marcos Isaías nasceu dois anos depois. A camisola vermelha do Liverpool, oferecida por um turista inglês, substituía, à falta da original, o equipamento do clube português.

3 A ligação dos moçambicanos, nomeadamente em contexto urbano, com o universo do futebol português reconhece-se num simples passeio pela baixa de Maputo. Tal proximidade, aliás, parece encontrar paralelo com o que ocorre em outras antigas colónias portuguesas em África. Embora não se conheçam estudos abrangentes sobre o tema, esta realidade tem sido comprovada por relatos de viajantes, turistas, jornalistas e de indivíduos que, por diversos motivos, têm uma vivência repartida pelos dois países1. Além dos depoimentos informais, outros dados indicam, com maior precisão, a força deste laço. Em 2006, o campeonato português, denominado Superliga, foi acompanhado com intensidade por parte da população da capital moçambicana. Em todos os fins-de- semana de competição foram transmitidos, em canal aberto, dois jogos da Superliga, um pela televisão estatal, TVM, e outro pelo canal português destinado à África lusófona, a RTP África. Os jogos transmitidos envolvem sempre um dos três maiores clubes portugueses. O Benfica, o Porto e o Sporting são os grandes embaixadores desta relação de proximidade, os suportes de uma memória antiga transmitida geracionalmente, que todos os dias se reproduz, demonstrando uma vitalidade que não deixa de surpreender. A actual popularidade do Futebol Clube do Porto, clube com pouca reputação entre os moçambicanos durante o tempo colonial, revela a capacidade do universo do futebol português comunicar com novas gerações moçambicanas. Neste sentido, parece que, mais do que ter sobrevivido à experiência colonial, o futebol português se configura como um universo autónomo de significados que sobrevive com facilidade sem uma remissão constante para o passado.

4 É comum encontrar nas ruas de Maputo moçambicanos com as camisolas de um dos grandes clubes portugueses, sobretudo nos dias de jogos. As camisolas destes clubes, uns dos objectos mais frequentemente pedidos a indivíduos que viajam de e para Portugal, parecem, em certos espaços e circunstâncias, no âmbito da vida de bairro ou por exemplo nas escolas, ser investidas de uma função de suporte estatutário. Os jornais desportivos portugueses, vendidos, com algum atraso em relação à data de publicação e com preços bastante elevados, em vários locais da cidade, ajudam ao acompanhamento mais particular do que se vai passando em Portugal. A quase centenária livraria Minerva Central expõe numa das suas vitrinas vários exemplares do jornal A Bola, organizados como se fossem os sucessivos números de um folhetim. É o único jornal português que vendem. À porta do conhecido café Continental, numa pequena banca de jornal gerida por um jovem adepto do Sporting, é possível adquirir números atrasados do Record, mas nenhum outro jornal português. Na Minerva Central, acumulam-se exemplares de clássicos e contemporâneos da literatura portuguesa, que apenas os saldos parecem fazer escoar.

5 do Totobola em Moçambique é preenchido por jogos do campeonato português. A maior companhia de telefones móveis moçambicana, a MCEL, disponibilizou em 2006 um serviço especial, no qual, através de um sms com as iniciais do seu clube, os clientes podem saber tudo acerca da Superliga: as classificações, os resultados, o calendário da prova. A popularidade do futebol português coincide com uma crise geral do futebol moçambicano, penalizado pelas constantes dificuldades financeiras, pela falta de infra-

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 98

estruturas e por dificuldades na formação de jogadores. A guerra civil que marcou o país até 1992 contribui decisivamente para este cenário. O último revés do futebol local foi o fracasso da candidatura à organização do Campeonato Africano de Nações (CAN) de 2010. Angola foi o país escolhido. O insucesso provocou um intenso debate que rapidamente extravasou a questão desportiva2. Como ficou mais uma vez comprovado aquando da realização do campeonato do Mundo na Alemanha, o futebol é uma poderosa forma de afirmação africana no mundo, um momento em que o continente pode competir em igualdade com os países mais poderosos, nomeadamente com as nações do continente colonizador, a Europa. No âmbito deste último campeonato, o caso angolano comprovou a importância destes momentos de comunhão massificada para reforçar a identidade de nações com uma história de independência recente3.

6 No entanto, no que respeita às preferências clubistas, as paixões em Moçambique continuam a estar em Portugal. No quotidiano de Maputo, os moçambicanos, sobretudo por via masculina, possuem um conhecimento profundo sobre a vida das principais equipas portuguesas. Acompanham os resultados, a carreira dos jogadores, e opinam, com uma competência elevada, sobre a forma desportiva das equipas, o seu tipo de jogo, as vantagens e inconsistências de jogadores e treinadores. Falam dos clubes como se fossem seus, na primeira pessoa, e não fazem distinção entre um adepto português do Sporting e um adepto moçambicano do mesmo clube. Estão todos no mesmo barco, lutam pelos mesmos objectivos e têm o direito de opinião como qualquer outro adepto, independentemente da sua nacionalidade.

7 O papel do futebol português no âmbito das «memórias coloniais» está para além de uma simples rememoração de acontecimentos recuados, cuja importância é relembrada cerimonialmente4. Matéria de uma memória actuante, é um património presente, apropriado, adaptado, ajustado aos quotidianos locais. Não seria justo interpretá-lo como uma nostalgia, como se fosse apenas uma forma de relembrar, reconhecer e interpretar o passado. Este universo de referências, cuja origem resulta indiscutivelmente do «encontro colonial», constitui-se como um elemento participante de práticas sociais quotidianas, sendo substância de encontros sociais ritualizados. Como uso social, motivo de encontro e de partilha nos mais variados espaços, o futebol português é sobretudo matéria do que Paul Connerton, designou por «memória social incorporada»5, tipo de processo mnemónico que se distingue de uma memória meramente cognitiva, consciencializada, traduzida em discursos sobre o passado. A sua relevância no quotidiano de muitos lugares na antiga África portuguesa prende-se como o modo como sustenta formas ritualizadas de viver, hábitos quotidianos intrincados nas interacções. A procura de informação em Moçambique sobre tal universo de referências, corresponde a uma necessidade de alimentar essa «memória social incorporada». O modo como o futebol português se transformou numa parte importante da cultura popular urbana das cidades como Maputo ou Luanda remete para um trajecto original e muito particular que acaba por explicar o facto de, além da memória histórica se manter ainda viva, este património ter adquirido uma forma contemporânea original. Recuemos, então, ao tempo colonial.

8 A primeira filial do Sporting Clube de Portugal em Moçambique, o Sporting Club de Lourenço Marques, terá sido fundada em 3 de Maio de 19206, embora outras fontes indiquem o ano de 19167. Ainda antes dos anos de 1940, o clube possuía representações nas principais cidades moçambicanas8. O Sport Lisboa e Beira, fundado em 1 de Julho de 1916, inaugurou a presença do Benfica em Moçambique. Em 31 de Maio de 1921, foi criado, em Lourenço Marques, o Clube Desportivo9, que viria a ser a principal

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 99

representação do Benfica em Moçambique, base da criação de outras delegações pelo território10. Nos anos de 1960, os dois clubes portugueses mais populares cresceram um pouco por todo o território11. O Futebol Clube do Porto12, o Belenenses13 e o Atlético também tinham delegações, embora em menor número. No último período do colonialismo português foram constituídos, quase sempre em localidades mais pequenas, inúmeros clubes que ostentavam o nome de agremiações portuguesas, fundados de modo bastante informal, sem nunca terem visto os seus estatutos aprovados pela administração colonial.

9 O movimento desportivo em Moçambique cresceu no contexto de discriminação racial que caracterizou a administração colonial portuguesa14. As filiais dos clubes portugueses e as colectividades criadas por iniciativa individual dos colonos ou ligadas a empreendimentos coloniais, como é o caso notável do Clube Ferroviário15, participavam em competições organizadas pela Associação de Futebol de Lourenço Marques (AFLM), criada em 14 de Maio de 1932 e pertencente à orgânica da Federação Portuguesa de Futebol.

10 Os clubes africanos que se formaram no subúrbio de Lourenço Marques ainda na década de 1920, juntaram-se na Associação de Futebol Africana (AFA)16, estrutura separada que organizava competições próprias. A divisão racial, fomentada pelo poder colonial português, entre os chamados clubes da baixa, representantes da AFLM, e os clubes do subúrbio negro não era completamente estanque. Alguns jogadores, quase sempre com o estatuto de assimilados, conseguiam jogar futebol nos dois campeonatos17. A transferência de um jogador negro ou mestiço para um clube da baixa proporcionava uma evidente melhoria de vida, já que a mudança implicava normalmente a garantia de um novo emprego. Eram poucos, porém, os jogadores que passavam de um campeonato para o outro. A situação alterou-se nos anos de 1950, sobretudo porque o próprio desenvolvimento do futebol como jogo competitivo no qual os clubes, representantes de um público em crescimento, lutavam pelos melhores jogadores, forçou algumas das barreiras raciais. Quando este mercado suscitou interesse nos clubes metropolitanos a mobilidade dos atletas aumentou.

11 A transferência de jogadores moçambicanos negros e mestiços para Portugal, como foram os casos de Mário Wilson, em 1949, Matateu, em 1951, Naldo e Coluna, ambos em 1954, teve um significado profundo, chegando a provocar conflitos entre os clubes metropolitanos que os contrataram e os clubes de Moçambique que os viram partir sem grandes contrapartidas financeiras. A ida de jogadores negros e mestiços para Portugal contribuiu para estreitar os laços entre o futebol português e o quotidiano moçambicano. O jogo que se fazia na Metrópole passou a interessar a grupos da população urbana e suburbana negra, deixando de ser apenas um consumo de colonos, brancos e de algumas franjas de uma elite negra e mestiça.

12 Desde os anos de 1920 que os jornais publicados em Moçambique informavam acerca dos desenvolvimentos das competições de futebol em Portugal. Foi, no entanto, a partir dos anos de 1940, quando o se institucionalizou solidamente na metrópole, que essa informação se tomou mais regular18. O aumento do número de colonos em Moçambique ajuda a explicar o crescimento do interesse que as competições portuguesas registavam neste território ultramarino19. A identificação clubista era uma forma evidente de reforçar laços comunitários numa terra estranha, bem como de manter uma relação estreita com o país de origem. A criação de associações desportivas e recreativas foi uma das formas de reproduzir as vivências da metrópole, entre as quais se destacava a

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 100

assistência a jogos de futebol. A afluência de colonos traduziu-se numa cobertura mais cuidada do futebol português por parte da imprensa local, nomeadamente pelos jornais mais importantes, como o Notícias ou o Diário de Lourenço Marques Guardian. Mas o mesmo efeito se sentiu no Brado Africano, jornal que defendia, face ao estado colonial, os interesses das populações nativas20. Se a imprensa reforçou este laço, a rádio tratou de mediatizar o acontecimento em tempo real. A possibilidade de captar as emissões da Emissora Nacional proporcionou um acompanhamento dos jogos dos principais clubes portugueses. No princípio dos anos de 1950, as partidas eram transmitidas com regularidade. A democratização do transístor proporcionou uma multiplicação deste efeito; as descrições dos homens da rádio iam, à falta da imagem, revelando com pormenor o lado performativo dos jogos e das exibições dos atletas. Como matéria de uma cultura popular urbana, e apesar do contexto discriminado, o futebol português tomou-se conhecido no subúrbio de Lourenço Marques, num típico processo de passagem da informação dos centros para as periferias.

13 Os dados do Anuário Estatístico de Moçambique revelam o ritmo de crescimento dos meios de difusão de informação. Entre 1935 e 1945, o número de publicações não ultrapassou as 18 por ano. Já existiam, entretanto, 4293 receptores do rádio. Este número passou para 8670 em 1950, duplicando outra vez em 1955, para 16513. Se nesta data, existiam 24 publicações, mas apenas 4 com mais de 1900 de tiragem, em 1960, alcançou-se as 33 publicações, 14 das quais com mais de 1.900 exemplares de tiragem. Os receptores de rádio chegaram aos 36.927, para em 1965 atingirem os 53.906, ano em que, das 35 publicações de imprensa, 10 tinham uma tiragem maior do que 15000 exemplares21. Em 1970, já existiam por todo o território, 141 986 receptores.

14 O crescimento do interesse do subúrbio, cimentado, como referimos, pelas performances altamente elogiadas de jogadores negros e mestiços em Portugal, foi ainda favorecido pelas digressões de clubes portugueses a Moçambique, momentos fundamentais na reificação destes laços. A Académica de Coimbra visitou Lourenço Marques em 1939 e regressou em 1951, no mesmo ano em que o Atlético de Alcântara também jogou na capital. O Marítimo viera em 1950, ano especialmente marcado pela visita do Benfica22. O Sporting realizou vários jogos em 1954. Em Julho de 1962, o Benfica, depois de vencer a segunda taça dos campeões europeus, visitou Angola e Moçambique, tendo sido recebido em festa23. As digressões, que quase sempre resultavam em paradas no centro da cidade, possibilitavam aos adeptos observarem os seus ídolos. A imprensa local atribuía grande importância a estas visitas, momento de recordação da terra de origem e, de um ponto de vista mais específico, oportunidade para medir o valor das equipas locais.

15 O desenvolvimento da popularidade do futebol português, nomeadamente dos seus clubes, durante o período da guerra colonial merecia, por si só, um estudo elaborado. Relatos míticos24 sobre a convivência futebolística de ambas as partes em conflito, separadas por quase tudo mas unidas pelo laço do futebol, são indicadores que não podem, por si só, sustentar uma tese. Não existem trabalhos de fundo que analisem o hipotético papel que o futebol possa ter tido durante o conflito, ou mesmo noutras dimensões do domínio colonial português25. Face às evidentes prioridades de investigação, os trabalhos de investigação ignoraram uma temática considerada marginal. Esta ausência parece pelo menos indicar que o futebol não terá sido um elemento importante na retórica entre as partes em conflito.

16 Depois de alcançada a independência, quando importava edificar as bases de uma nova nação, a situação alterou-se. O novo regime moçambicano aplicou um conjunto de

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 101

medidas para restringir a influência do futebol português na estrutura desportiva do país. Alguns dos principais clubes de Moçambique mudaram de nome. O Sporting e o Benfica de Lourenço Marques passaram a chamar-se, respectivamente, Maxaquene e Costa do Sol, nome dos bairros nos quais estavam sedeados. O novo governo pôs fim ao regime de transferências de jogadores moçambicanos para o exterior, considerado uma forma colonialista de exploração de talentos26. O novo país necessitava dos seus melhores atletas para desenvolver uma estrutura desportiva própria27.

17 O corte de relações desportivas que marcou o período pós-independência não atingiu significativamente a popularidade dos clubes portugueses em Moçambique. Uma sondagem efectuada em Maputo 20 anos depois da independência revelou que apenas 15% da população local preferia as equipas moçambicanas às portuguesas28. A «memória social» sobreviveu ao corte radical de alguns laços, à alteração de nomes, à quebra da circulação dos jogadores. Noutro sentido, o repertório nacionalista associado na denúncia do colonialismo português, pelo qual a própria nação se ergueu, não seleccionou a força cultural do futebol entre os factores negativos da presença portuguesa. Este domínio cultural era pouco significativo, quando colocado ao lado da violência do trabalho forçado ou da discriminação racial. Isto não significa, porém, que a questão seja, hoje, politicamente vazia.

18 A mudança de denominação porque passaram os clubes moçambicanos após a independência constituiu uma pequena parcela de uma revolução terminológica mais vasta, cuja face mais visível é sentida nas ruas e nos bairros de cidades como Maputo29. A galeria de heróis da gesta lusa, navegadores, administradores coloniais, políticos metropolitanos, etc., foi substituída pelos heróis da luta da libertação, por datas que marcam as fronteiras da nacionalidade, pelos inspiradores marxistas da luta pela independência, políticos e heróis das independências africanas e outros líderes e teóricos da revolução. A mudança na terminologia foi genericamente bem sucedida, e os novos nomes adoptados, embora alguns indivíduos, mais velhos, ainda reconheçam os locais pelo nome antigo, ou por uma dupla denominação. Claro que muitas vezes os próprios nomes, por vezes de fonia complexa, são adaptados às circunstâncias30. Todavia, em algumas ocasiões, poucas, houve uma resistência à mudança terminológica, mantendo-se a designação do tempo colonial. Em 1981, o bairro do Benfica, no subúrbio de Maputo, foi rebaptizado bairro Jorge Dimitrov, homenagem ao revolucionário comunista búlgaro31. O Dicionário de Nomes Geográficos de Moçambique — Sua Origem, revela que a génese do bairro do Benfica não se deve a nenhuma imitação do nome da localidade de Benfica, em Lisboa, mas tão somente à paixão que um comerciante português influente, Custódio da Graça, nutria pelo Sport Lisboa e Benfica32. Custódio da Graça, que montou um estabelecimento comercial naquela área, insistiu para que o bairro fosse baptizado com o nome do clube lisboeta. A alteração de 1981 não foi, porém, aceite pela população que, no seu quotidiano, continua a designar o bairro como o Bairro do Benfica, como o provam as carreiras dos transportes semi-colectivos, vulgo chapa 100, que cruzam a cidade de Maputo.

19 O caso pode não parecer muito mais do que um exemplo caricato. Mas se considerarmos que o Benfica, o Sporting e o Porto, Eusébio, Matateu, e outras glórias de tempos idos, passando pelo já referido Isaías, pelo Figo, o Rui Costa, o e o Simão e acabando em Mourinho, cujo nome aparece escrito num dos muros que circunda um campo de futebol improvisado no bairro da Mafalala, são entidades presentes no quotidiano moçambicano, ao contrário dos nomes heróicos dos navegadores, administradores coloniais e outras

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 102

figuras que marcaram a marcha imperial e colonial portuguesa, talvez a caricatura tenha um significado mais estrutural.

20 Quando no dia 11 de Maio de 2006, a equipa de futebol do Benfica aterrou no aeroporto de Maputo, a fim de participar num torneio quadrangular33, foi recebida entusiasticamente. O diário Notícias assinalava estarem «milhares de moçambicanos ávidos em ver in-loco desfilar as suas principais "estrelas", principalmente as do Benfica de Portugal»34. Em Portugal, a viagem proporcionou uma prosa mais contundente e a espaços nitidamente mais nostálgica. No dia 12 de Maio, o jornal A Bola descrevia a visita do Benfica a duas escolas secundárias de Maputo com um título épico, inspirado nas palavras de Léo, defesa brasileiro do Benfica: « Deus, o que é isto?». O repórter de A Bola, Mário Nóbrega, iniciou a sua reportagem dizendo que «os alunos das escolas secundárias Josina Machel e Portuguesa de Moçambique não mais esquecerão o dia 11 de Maio de 2006. Vai ficar-lhes para sempre marcado na memória. Daqui a anos dirão, primeiro a filhos, depois a netos, que nesse dia para eles memorável receberam em apoteose, em delírio mesmo, uma comitiva do Benfica. Foram momentos de paixão clubista incontrolável»35. Não é fácil, pelo menos na aparência, associar as memórias da visita do Benfica, aquelas que o repórter de A Bola diz irem ser contadas por estes jovens moçambicanos nascidos num país já independente aos seus filhos e netos, a um legado político ou mesmo cultural. As comemorações, para infelicidade dos nostálgicos do império, pareciam não estar a celebrar outra coisa que não o futebol, os seus artistas e os clubes que os moçambicanos se habituaram a gostar. Para compreender este laço é fundamental fugir ao espartilho apertado imposto por uma história política.

21 A passagem do Benfica por Maputo preencheu parte substancial das colunas de publicidade nos vários media moçambicanos. Apesar do interesse demonstrado pelos moçambicanos no campeonato português e apesar das duas transmissões televisivas semanais, os serviços noticiosos de televisões e jornais dão, normalmente, pouca importância ao que sucede na Superliga. O Notícias, principal jornal do país, próximo do partido no poder, remete o campeonato português para umas pequenas caixas semanais. Os noticiários na televisão estatal ignoram os jogos e apenas em algumas publicações mais recentes, cuja dinâmica é claramente comercial, se dá grande destaque aos clubes portugueses36. Dir-se-ia existir uma desproporção entre o interesse da rua e o acompanhamento mediático. Alguns artigos de jornal denunciaram certos comportamentos «estranhos» que os adeptos moçambicanos terão tido aquando desta passagem do Benfica por Maputo. No semanário Savana, Paulo Mubalo salientava que a maioria do público que quase enchera o estádio da Machava37 ignorara as equipas moçambicanas «chegando a envergar a indumentária do Benfica ou exibindo bandeirinhas daquele clube luso»38. O cronista ficara mais chocado quando viu adeptos moçambicanos a cantar o hino português: «O coração tem motivos que a razão desconhece, dizem os estudiosos, mas que não deixa de ser esquisito, isso é verdade». Aproveitou para criticar os clubes que, «na esperança de receberem algum apoio ou por mero saudosismo dos tempos de então (...) voltaram ou querem voltar aos nomes coloniais», acrescentando que, «não é de estranhar que um dia exijam que Maputo se volte a chamar Lourenço Marques»39. Termina dizendo «"Nós do Benfica" é, infelizmente assim, como se identificavam orgulhosamente os moçambicanos! E nunca é tarde para se retractarem». Em 2005, quando os moçambicanos foram para a rua comemorar a vitória do Benfica no campeonato português, algumas vozes vieram assinalar a permanência em Moçambique de uma ideologia colonialista alienante que tinha no futebol uma dos seus principais instrumentos de poder40. Tais manifestações de alegria eram quase um

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 103

assassinato da personalidade moçambicana, independente, que nasceu contra o poder colonial português.

22 É quase inevitável que a relação dos moçambicanos com o futebol português seja, em certos meios, assunto de análise política. Está por provar, no entanto, que os usos e as funções quotidianos do futebol português em Moçambique estejam directamente associados a uma nostalgia dos tempos coloniais. Dir-se-ia que esta é uma distinção impossível de realizar e que, na verdade, os laços permanecem. É fundamental, porém, compreender a natureza destes laços à luz de uma sociologia do quotidiano, de uma antropologia urbana ou de uma abordagem no âmbito dos «estudos culturais». A análise do papel que o futebol português desempenha hoje nas antigas colónias africanas exige que se identifique as suas utilizações sociais, a importância que tem na manutenção de laços comunitários. Formatar o fenómeno pelos pressupostos de uma história política, implica uma redução brutal da realidade, que interessa, sem dúvida, a quem, tanto do lado português como do lado moçambicano, deseja utilizar a situação como instrumento da política contemporânea. Aos alunos das escolas secundárias que o Benfica visitou foi- lhe ensinado o modo como o movimento de libertação acabou com o colonialismo português. Portugal e os portugueses surgem como os opressores e toda a prepotência da máquina colonial é denunciada. Estes alunos parecem não confundir, porém, os planos.

23 A importância do futebol português no quotidiano moçambicano deve ser interpretada, também, no âmbito mais geral do conhecimento que existe em Moçambique sobre Portugal. O futebol preenche grande parte das representações quotidianas que os moçambicanos têm do Portugal do princípio do século XXI. É por estas razões que o futebol, muito mais do que uma memória nostálgica, é matéria presente e, como eixo da cultura popular urbana, será matéria futura. Algumas instituições do estado português esforçam-se por promover, com maior ou menor eficácia, outras representações do Portugal contemporâneo, nomeadamente nos domínios da cultura artística dominante41. Estas iniciativas são consumidas, predominantemente, pela comunidade portuguesa e por elites locais. Numa dimensão mais próxima dos consumos de outros grupos sociais, o esforço mais abrangente da televisão portuguesa, RTP África, parece estar a ser ultrapassado pelo poder magnânime da cultura popular brasileira, que vai desempenhando um papel fundamental na defesa da língua portuguesa. Os canais moçambicanos apresentam vários produtos do Brasil, nomeadamente uma quantidade substancial de telenovelas. Acrescente-se ainda a influência da TV Miramar, controlada pela Igreja Universal do Reino de Deus, especialista no consórcio da mensagem religiosa com a linguagem televisiva de cariz populista42.

24 Não se conhece, no âmbito das instituições portuguesas que procuram promover a chamada «lusofonia», qualquer utilização do futebol para desenvolver as relações no espaço lusófono, o que parece infirmar, desde logo, qualquer teoria do neocolonialismo cultural baseado neste laço. É certo que existe um esforço de organização de jogos desportivos que envolvam atletas dos vários países de língua oficial portuguesa, mas a natureza dos laços culturais que unem o futebol português às populações africanas baseia-se noutros princípios, mais facilmente incluídos numa concepção alargada de tradição cultural, cuja definição ultrapassa a usualmente utilizada no seio das «instituições da lusofonia», focada em determinado património linguístico e cultural. Se recordarmos que a herança educativa e cultural portuguesa em Moçambique foi caracterizada pela ineficácia e pelo desinteresse do poder colonial em democratizar a cultura, a língua e a educação43 é relevante que o futebol, à margem das políticas oficiais,

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 104

continue a ser matéria de produção de laços entre Portugal e os países de língua oficial portuguesa. O futebol, traduzindo-se numa linguagem corporal identificada, servido por regras simples e partilhadas por todas as classes sociais, afirma-se como uma «linguagem franca», cujos conteúdos, em Moçambique, remetem para uma mundividência portuguesa. Estes conteúdos servem, porém, a vida social moçambicana, os seus gestos e interacções quotidianos, razão pela qual participam de uma «memória social» solidificada, cujo significado é grandemente autónomo do passado colonial.

BIBLIOGRAFIA

António Carlos Pereira CABRAL, 1975, Dicionário de Nomes Geográficos de Moçambique Sua Origem, Lourenço Marques.

Carlos SERRA, 2003, Combates pela mentalidade sociológica, Maputo, Imprensa Universitária.

Cláudia CASTELO, 2007, Passagens para a África Portuguesa: o Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole (1920-1974), Porto, Edições Afrontamento.

Francisco BETTENCOURT, 1999, «A Memória da Expansão», in Francisco Bethencourt & Kirti Chaudhuri (dirs.), História da Expansão Portuguesa, vol. 5, Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 442-480.

Gary ARMSRRONG & Richard GIULIANOTII (eds.), 2004, Football in Africa, Hampshire, Palgrave.

Gary ARMSRRONG, 2004, «The Migration of the Black Panther: an Interview with Eusébio of Mozambique and Portugal», Football in Africa, ed. Gary Armstrong, Richard Giulianotti, Hampshire, Palgrave, pp. 247-268.

Ismael Mário JORGE, 1931, L' Education Physique et le Sport, Paris, Congresso Colonial de Paris.

João Carlos PAULO, 1999, «Da Educação Colonial Portuguesa ao Ensino no Ultramar», em Francisco Bethencourt & Kirti Chaudhuri (dir.), A História da Expansão Portuguesa, vol. 5, Círculo dos Leitores, Lisboa, pp. 304-333.

João de PINA-CABRAL, 2002, «"Agora pode saber o que é ser pobre". Identificações e diferenciações no mundo da Lusotopia», Lusotopie, 2, pp. 215-224. llídio ROCHA, 2000, A Imprensa de Moçambique, Livros do Brasil, Lisboa.

Malyn NEWITI, 1995, História de Moçambique, Lisboa, Europa-América.

Miguel JERÓNIMO, 2006, «Os Missionários do Alfabeto nas Colónias Portuguesas (1880-1930)», em Diogo Ramada Curto (dir.), Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal no século XX, Gulbenkian, Lisboa, 2006, pp. 29-68.

Nuno DOMINGOS, 2006, «Futebol e Colonialismo, dominação e apropriação: sobre o caso moçambicano», Análise Social,179, vol. XLI, 2.º trimestre de 2006, pp. 397-416.

Paul CONNERTON, 1999, Como as Sociedades Recordam, Celta, Oeiras.

Paul DARBY, 2006, «Migração para Portugal de jogadores de futebol africanos», Análise Social, 179, vol. XLI, 2.º trimestre de 2006, p. 426.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 105

Renato CALDEIRA, 2003, Coluna, o Monstro Sagrado, Maputo, Edisport.

NOTAS

1. Recentemente João de Pina Cabral referiu-se, ainda que de forma marginal, a esta relação identitária. João de PINA-CABRAL, 2002, «"Agora pode saber o que é ser pobre". Identificações e diferenciações no mundo da Lusotopia», Lusotopie, 2, pp. 215-224. 2. Esgrimiram-se argumentos diversos, alguns salientaram a injustiça da decisão da Confederação Africana de Futebol, refém de interesses instalados, outros preferiam realizar uma feroz crítica à incapacidade interna, complementado por sombrios diagnósticos quanto ao futuro da modalidade em Moçambique os jornais trataram largamente a questão da candidatura ao CAN. Por exemplo, Manuel Meque, «Desilusão abalou a Nação moçambicana», Domingo, 21/5/2006, pp. 2-3; «Perdemos o CAN mas não perdemos a guerra», 21/5/2006, Domingo, p. 8.; Entrevista a Carlos Sousa, vice-ministro da Juventude e Desportos, «Esquemas de Corrupção não são valores, nós entramos só nas regras de jogo limpo», Desafio, pp. 8-9.; «CAN-2010: Um desaire anunci ado», Savana, 19/5/2006, p. 6; Francisco Carmona, «E agora: a culpa é dos outros?», Savana, 19/5/2006. 3. Ver, a este propósito, Gary ARMSTRONG & Richard GIULIANOTTI (eds.), 2004, Football in Africa, Hampshire, Palgrave. 4. Francisco Bethencourt, abordando a memória da expansão portuguesa, refere-se à acção de instituições, agentes, cerimónias, artefactos e edifícios no trabalho de criação de uma memória colectiva, no sentido definido por Marice Halbwachs (Francisco BETHENCOURT, 1999: 442-480). A sua análise não avança, porém, pelos terrenos da «cultura popular». 5. Paul CONNERTON, 1999, Como as Sociedades Recordam, Celta, Oeiras, pp. 4-5 e pp. 83-86. 6. Segundo a proposta de estatutos (em 15/5/20) que oficializou a criação do clube. 7. Em texto escrito em 1931 intitulado L'Education Physique et le Sport (Paris, Congresso Colonial de Paris), o capi tão Ismael Mário Jorge refere que o clube foi fundado em 1916. 8. Até à década de 1940 foram criados, em 17 de Fevereiro de 1929, o Sporting Clube da Beira, em 2 de Maio de 1932, o Sporting Clube de Moçambique, em 1 de Julho de 1933, o Sporting Clube de Quelimane, em 10 de Janeiro de 1934, o Sporting Clube de Gaza. Depois de 1940, em 6 de Abril de 1947, o Sporting Clube do Guijá, em 6 de Fevereiro de 1948, o Sporting Clube de Nampula e em 26 de Setembro de 1959, o Sporting Clube de Mucucune. 9. O Desportivo deixaria de ser filial do Benfica em 1954, depois de uma polémica assembleia geral. Em 1956 seria fundada a nova filial do clube lisboeta em Lourenço Marques, o Benfica de Lourenço Marques. 10. Para além das sucursais do Desportivo, foram criadas filiais do Benfica em Quelimane, onde em 17 de Junho de 1954, o Grupo Desportivo de Quelimane passou, na sequência da polémica entre as direcções do Desportivo e do Benfica de Lisboa, a designar-se por Sport Quelimane e Benfica, em Nampula, o Sport Nampula e Benfica, fundado em 27 de Maio de 1961, na Machava, onde em 23 de Julho de 1955 surgiu o Sport Machava e Benfica e no Chimoio, onde em 9 de Fevereiro de 1957 surgiu o Sport Chimoio e Benfica. 11. Por exemplo, em 30 de Junho de 1962, foi criado o Sporting Clube de Massinga, em 21 de Julho de 1962, o Sporting de Pucucune (Inhambane), em 31 de Maio de 1961, o Sport Gurue e Benfica (Vila Junqueiro). 12. A mais importante filial do Futebol Clube do Porto era o Clube de Malhangalene, importante bairro em Lourenço Marques, fundado em 4 de Outubro de 1934. O clube só passou a ter futebol em 1942, como refere o Guardian Desportivo de 16/9/53, pp. 1 e 10. 13. Um dos clubes mais antigos de Moçambique, o 1.º de Maio, era uma filial do Belenenses. Fundado em 1 de Maio de 1917, o Grupo Desportivo 1.º de Maio foi criado por um grupo de

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 106

operários com influência anarco-sindicalista, mas que, depois de 1926, acabou por ser integrado na ordem política. Em 1954 o 1.º de Maio deixou de ser uma filial do Belenenses. Em 1 de Janeiro de 1950 foi fundado o Grupo Desportivo Carreira de Tiro, que posteriormente se passaria a chamar de Clube de Futebol os Belenenses de Lourenço Marques, cujos estatutos foram aprovados em 3 de Fevereiro de 1962, pela portaria n.º 15742, p. 141. 14. A este propósito ver Nuno DOMINGOS, 2006, «Futebol e Colonialismo, dominação e apropriação: sobre o caso moçambicano», Análise Social, 179, vol. XLI, 2.º trimestre de 2006, pp. 397-416. 15. O Clube Ferroviário foi fundado a 13 de Outubro de 1924. O Clube pertencia à empresa de Caminhos-de-Ferro. Rapidamente constituiu uma rede de filiais, acompanhando as localidades por onde ia avançando o comboio. 16. Formada ainda na década de 1920, mas com os estatutos aprovados apenas em 1934. 17. De entre um conjunto de casos, realce-se o exemplo paradigmático de Mário Coluna. Filho de um português e de uma africana, Coluna iniciou o seu percurso num clube da Associação Africana, o João Albasini — clube cujo nome homenageia uma das vozes que mais se destacou na defesa dos direitos dos chamados indígenas face ao poder colonial, nomeadamente nas páginas do jornal o Brado Africano e através da acção do Grémio Africano de Lourenço Marques. Mário Coluna, depois de se destacar como atleta passou a representar o histórico Desportivo, antes da sua romagem, em 1954, para o Benfica de Lisboa. Enquanto jogador do Desportivo, participante do campeonato colonial, Coluna não deixou de representar em algumas partidas o João Albasini. Ver. Renato CALDEIRA, 2003, Coluna, o Monstro Sagrado, Edisport, Maputo, pp. 17-23. 18. O campeonato português estruturou-se definitivamente em 1938, depois de um modelo experimental iniciado em 1934. Foi também na década de 1940 que a imprensa desportiva portuguesa viu nascer projectos mais consistentes, como foram os casos notáveis de A Bola (n. 1945), o Mundo Desportivo (n. 1945) e o Record (n. 1949). 19. Entre 1943 e 1974 entraram em Moçambique, apenas por via marítima, 163 783 portugueses do continente e ilhas, regressando à metrópole 80 763 pessoas, o que resulta num saldo 83 023 indivíduos, (Cláudia CASTELO, 2007, cap. IV). No total, a população branca em Moçambique passou de 48 000 em 1950, para para pouco menos de 100 000 em 1960 e chegando a quase 200 000 em 1974, (Malyn NEWITT, 1995, História de Moçambique, Lisboa, Europa-América, p. 406) 20. O Brado Africano foi criado em 1918 como órgão oficial do Grémio Africano de Lourenço Marques, prolongan do o trabalho de defesa das populações indígenas antes iniciado pelo Africano. A sua intervenção foi bastante afectada depois da instauração do Estado Novo em Portugal. Em 1958 seria mesmo cooptado pela União Nacional. Ver Ilídio ROCHA, 2000, A Imprensa de Moçambique, Livros do Brasil, Lisboa. 21. Neste ano, pela primeira vez, foi criada uma categoria estatística que contemplara as emissões desportivas semanais. A categorização anterior incluíra sempre, nas emissões mistas, uma categoria designada por cultura física. Note-se, porém, que este espaço nunca fora preenchido por nenhum programa. Sabendo-se que existiam informações regulares sobre o desporto metropolitano e local, as horas de transmissão relativas, estão diluídas, até ao Anuário Estatístico de 1965, noutras categorias. Todos estes dados foram recolhidos no Anuário Estatístico de Moçambique, editado em Lourenço Marques pela Repartição Técnica de Estatística de Moçambique. Os dados são relativos ao período entre 1935 e 1970. 22. Durante esta visita, o Benfica perdeu por 3-1 contra uma equipa formada por jogadores nascidos em Moçambiques, designados por «naturais». Este feito foi muito celebrado em Lourenço Marques. 23. As vitórias do Benfica na Taça dos Campeões Europeus de 1961 e 1962 afirmaram o clube de Lisboa como o mais popular em terras de Moçambique. Não é correcto afirmar que o processo de popularização do Benfica se realizou por essa altura. Desde os anos de 1930 que a este clube de Lisboa era dado algum destaque nos jornais de Lourenço Marques. A sua relação com o popular Desportivo local também terá ajudado. Mas as vitórias dos anos de 1960, amplificadas por uma

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 107

maior cobertura mediática, não apenas pelo trabalho da imprensa mas também pela rádio, tiveram um efeito multiplicador. O facto de Mário Coluna e Eusébio da Silva Ferreira terem sido dois dos maiores protagonistas destas vitórias não deixou de ter um efeito significativo, sobretudo junto da população negra. 24. É conhecido o relato do escritor António Lobo Antunes sobre a sua experiência em Angola. Em entrevista à revista Visão, em 27 de Novembro de 2003, Lobo Antunes refere que «Quando o Benfica jogava, púnhamos os altifalantes virados para a mata e, assim, não havia ataques (...) Parava a guerra. Até o MPLA era do Benfica. Era uma sensação ainda mais estranha porque não faz sentido estarmos zangados com pessoas que são do mesmo clube que nós. O Benfica foi, de facto, o melhor protector da guerra». 25. Recentemente Paul Darby, referindo-se às transferências de jogadores africanos para clubes europeus, nomeadamente ao caso da ida de jogadores das ex-colónias portuguesas para Portugal, sustentou que estas transferências eram um exemplo de neo-colonialismo. Esta análise levou-o a considerar a utilização do futebol, durante o período colonial, como parte de um «plano mais geral de promoção da hegemonia colonial». Embora seja inegável a existência de uma forte influência cultural do futebol português em Moçambique e noutras antigas colónias portuguesas, considero estar ainda por provar que o futebol foi um meio primordial do poder colonial, estrategicamente, aplicar esta hegemonia. Paul DARBY, 2006, «Migração para Portugal de jogadores de futebol africanos», Análise Social, 179, vol. XLI, 2.º trimestre, p. 426. 26. Esta medida seria revogada em 1987, já depois de muitos jogadores moçambicanos terem rumado ao campeonato da África do Sul. 27. A forma encontrada para sustentar os clubes no Moçambique independente foi ligá-los a empresas e outras estruturas estatais. Por exemplo, o Maxaquene, antigo Sporting de Lourenço Marques, passou a estar sob a alçada do das Linhas Aéreas de Moçambique, o clube da Malhangalene, agora Estrela Vermelha, sob a tutela do exército. 28. Paul DARBY, 2006, op. cit. p. 426, refere este facto, citando uma publicação da BBC, «Mozambique», in BBC Focus on Africa, Janeiro-Março (1996), p. 47. 29. As alterações foram legisladas pelo Decreto-Lei 10/76, de 13 de Março de 1976. 30. Não é pouco comum, porventura pela influência das novelas brasileiras no quotidiano urbano de Moçambique, ouvir chamar Valdemir Lenine à avenida que homenageia o líder da revolução de Outubro de 1917. 31. Pelo Despacho do Conselho Executivo de Maputo publicado no B.R. de 12/10/1981.

32. António Carlos Pereira CABRAL, 1975, Dicionário de Nomes Geográficos de Moçambique — Sua Origem, Lourenço Marques, 1975, citado por Jorge Luís Fernandes na Revista Digital a Filatelia Portuguesa http://www.filatelicamente.online.pt/rl14/artigo_html/revistal14_1.html. 33. Em que participaram as equipas do Ferroviário de Maputo, do Petro de Luanda e do Costa do Sol, organiza dor do torneio e, recorde-se, antigo Benfica de Lourenço Marques. 34. Notícias, 12/5/2006, p. 26. 35. A Bola, 12/5/2006, p. 6. 36. O grupo de comunicação 9, que detém um semanário, uma rádio e mais recentemente uma televisão, reflecte esta nova abordagem mais comercial. 37. Antigo Estádio Salazar, inaugurado em 1968, com um jogo entre Portugal e o Brasil. 38. Savana, 19/5/2006, p. 20. 39. Em Nampula, os antigos Sporting e Benfica locais, regressaram aos nomes do tempo colonial. 40. João Craveirinha no Zambézia online, http://www.zambezia.eo.mz/index2.php? option=com_content&do_pdf=l&id=962 41. Nomalmente pelo trabalho das Embaixadas portuguesas e do Instituto Camões. 42. A força mediática da IURD tem proporcionado um crescimento assinalável do seu culto, em detrimento tanto de outras igrejas cristãs, como o caso evidente da católica, como de cultos

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 108

tradicionais. Ver, a este propósito, Carlos SERRA, 2003, Combates pela mentalidade sociológica, Maputo, Imprensa Universitária, pp. 27-54. 43. Ver, por exemplo, João Carlos PAULO, 1999, «Da Educação Colonial Portuguesa ao Ensino no Ultramar», em Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri (dir.), A História da Expansão Portuguesa, vol. 5, Círculo dos Leitores, Lisboa, pp. 304-333; e Miguel JERÓNIMO, 2006, «Os Missionários do Alfabeto nas Colónias Portuguesas (1880-1930)», em Diogo Ramada Curto (dir.), Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal no século XX, Gulbenkian, Lisboa, pp. 29-68.

RESUMOS

Este artigo tenta interpretar a relação do futebol português com Moçambique contemporâneo, e nomeadamente o papel desempenhado por um conjunto de referências que, tendo sido introduzidas durante o período colonial, persistem nos dias de hoje com força e originalidade. O artigo examina a forma como estes laços foram construídos e se tornaram uma parte importante na vida quotidiana dos colonos portugueses e das populações africanas de Moçambique. Defende- se que estes laços, mais do que a expressão de uma nostalgia pelo período colonial, fazem parte de uma memória social viva, permanentemente actualizada, cuja existência e usos sociais, embora baseada em referências portuguesas, adquiriu uma larga autonomia em relação ao legado colonial.

This article tries to interpret the relation of Portuguese football with contemporary Mozambique, namely the role played by a set of references that, introduced in the territory dur‐ ing the colonial period, persist today in an original and strong fashion. The ways by which these bonds were constructed and became common to the daily life of Portuguese colonizers and African populations in Mozambique are briefly examined. It is argued in this article that, currently, these bonds, more than an expression of a colonial nostalgia, are part of a lively social memory, permanently updated, whose existence and social uses, though based on Portuguese references, are widely autonomous from the colonial inheritance.

ÍNDICE

Palavras-chave: Futebol, Desporto, Moçambique, Memória social Keywords: football, sport, social memory, Mozambique

AUTOR

NUNO DOMINGOS School of Oriental and African Studies, Londres

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 109

Uma visão colonial do racismo A colonial idea of racism

Rui M. Pereira

1 Entre 1956 e 1959, no período imediatamente anterior ao despontar da guerra colonial, o regime português patrocinou um conjunto de «investigações sociais» nas suas possessões coloniais africanas. Sobre as origens e desenvolvimento desse «despertar científico» já dissertámos suficientemente em outros textos já publicados1, pelo que me limitarei a resumir o essencial. Em Fevereiro de 1956, menos de um ano após a Conferência de Bandung, é criado na Junta de Investigações do Ultramar o Centro de Estudos Políticos e Sociais, «com o fim de coordenar, estimular e promover o estudo dos fenómenos políticos e sociais verificados em comunidades formadas em territórios ultramarinos»2. A enunciação das atribuições do Centro demonstra cabalmente quanto a situação política nas colónias preocupava o regime e de que meios científicos deitaria mão para procurar controlar a situação: «estudo das doutrinas e orientações estrangeiras ou internacionais que visem territórios ultramarinos ou neles possam ter projecção»; mas também estudos de demografia e estudos de antropologia cultural.

2 Na direcção do Centro de Estudos Políticos e Sociais estava, desde o primeiro momento, Adriano Moreira, professor do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, lídimo representante de uma corrente reformadora da situação colonial que, sobretudo em atenção ao quadro internacional, viria a conseguir, já no início dos anos 60 e após o desencadear da guerra colonial, alterar a face mais visível do colonialismo português: a profunda iniquidade legal que opunha colonos a colonizados. Consciente do fim da era imperial, cuja ideologia mais acrisolada ainda era dominante nos círculos do poder metropolitano e colonial, Adriano Moreira congregou em seu tomo, por toda a década de 50, um grupo de colaboradores altamente qualificados nas áreas do Direito, Economia, Sociologia e Antropologia. Tratou-se de um verdadeiro grupo de pressão ou escol, de enquadramento essencialmente académico, e que chegaria aos círculos do poder na década seguinte, na fase final do regime. Para a afirmação dessa nova corrente do colonialismo português em muito foi decisiva a actuação no Centro de Estudos Políticos e Sociais, ao proporcionar aos académicos do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos e de outras instituições congéneres, uma dimensão prática e um campo de aplicabilidades.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 110

3 Fazendo jus aos objectivos que nortearam a sua criação em 1956, foram estabelecidas no seio do Centro de Estudos Políticos e Sociais três linhas de acção, três «missões»: a Missão de Estudos dos Movimentos Associativos em África3; a Missão para o Estudo da Atracção das Grandes Cidades e do Bem-Estar Rural no Ultramar Português4 a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português5. Na direcção desta última foi colocado António Jorge Dias, etnólogo, que desde meados da década de 1940 vinha promovendo uma decisiva reformulação dos estudos antropológic os em Portugal.

4 Pode afirmar-se que os objectivos da Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português (MEMEUP) eram, como os resultados vieram a comprovar, de natureza eminentemente antropológica, ou, melhor dizendo, e dada a apropriação do termo pela corrente antropobiologista instalada nos organismos coloniais oficiais desde os anos 20, de natureza etnológica. Não se tratava agora, em 1957, de medir índices cranianos ou avaliar provas de esforço físico; tratava-se de conhecer a «disposição social e cultural» das populações africanas. Mas sejamos claros: no âmbito da atitude prospectiva que animava o Centro de Estudos Políticos e Sociais e que visava, em última instância, salvaguardar os interesses mais fundamentais do colonialismo português, a investigação etnológica da MEMEUP servia, igualmente, o mesmo propósito das «missões antropobiológicas» dos anos 30 e 40.

5 De uma viagem prospectiva que António Jorge Dias fez pelas colónias, em 1956, resultou a escolha do Norte de Moçambique como destino das suas missões de investigação e em resultado das quais surgiria a extensa e exaustiva monografia etnográfica sobre a população maconde6. Foram assim cumpridos os objectivos científicos da Missão. Mas, a par destes, outros tinham sido previamente delineados: deveria Jorge Dias fazer um levantamento da situação social e política, não só no Planalto dos Macondes, mas também do outro lado do Rovuma, para onde tinha emigrado um número elevado de macondes moçambicanos e onde existia um grupo étnico extremamente aparentado, os macondes do Tanganhica. Quereria certamente o Ministério do Ultramar, através dos seus organismos de investigação, conhecer a opinião de alguém não tão directamente envolvido com a situação colonial e que pudesse, por tanto, estabelecer uma apreciação relativamente «imparcial e científica» da administração colonial portuguesa, confrontando-a com a administração colonial britânica do outro lado do Rovuma e com os problemas político-sociais que aí se estavam levantando através da popularidade crescente do movimento nacionalista TANU (Tanganyika African National Union) de Julius Nyerere. A esta específica tarefa juntou-se uma outra do mesmo jaez quando lhe foi pedido que durante a sua estadia na União Sul-Africana, onde permaneceu enquanto professor convidado da Universidade de Witwatersrand durante o ano lectivo de 1959, elaborasse um relatório de avaliação do regime do apartheid. Jorge Dias regressaria ainda à União Sul-Africana no ano seguinte, em 1960, acompanhando o antropólogo americano Charles Wagley numa visita patrocinada pelas autoridades portuguesas a Angola e Moçambique, sendo que a viagem entre as duas colónias portuguesas se fez por via terrestre, atravessando o país do apartheid.

6 A permanência de Jorge Dias no território do Tanganhica, durante a «Campanha de 1959», permitiu-lhe constatar o pragmatismo da administração britânica e os «benefícios», relativos, do exercício da «indirect rule», por comparação com a prática administrativa portuguesa.

7 A forma como os ingleses no Tanganhica se relacionavam com os africanos, não deixou de suscitar em Jorge Dias a mais viva admiração e, por tudo isso, era o exercício da

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 111

administração indirecta um modelo a seguir, excepto no que diria respeito aos seus objectivos finais: os britânicos sabiam que, inexoravelmente, teriam que conceder a autonomia política total, se bem que tentassem protelar ao máximo a chega da desse momento, enquanto que aos governantes portugueses tal hipótese nem sequer se punha. Como tal, no geral, deveria Jorge Dias fazer uma apreciação critica de três modelos de gestão colonial: a «indirect rule» aplicada pelos britânicos no Tanganhica, a «assimilação» que os portugueses pretendiam promover nas suas possessões e o apartheid sul-africano, política de segregação racial.

Interregno para um chá em Newala

8 Quando Jorge Dias, durante as férias escolares de 1959, ruma ao Norte de Moçambique, apercebe-se que decorria, de forma acelerada, o retomo de uma percentagem elevada dos Macondes emigrados no Tanganhica. Muitos deixaram de ter trabalho nas fazendas de sizal e algodão do Sul do Tanganhica entretanto abandonadas pelos colonos ingleses e, no entendimento de Dias, o retomo dos macondes moçambicanos poderia acarretar duas perturbações fundamentais, a primeira das quais vingando já em finais da década de 50 e que consistia numa significativa alteração no direito consuetudinário da propriedade; a segunda perturbação era de índole exclusivamente política e adviria das «ideias subversivas» de que poderiam ser portadores esses macondes retomados, confrontados na colónia britânica com um processo político de independência, melhores condições de trabalho e remuneração na indústria sisaleira e, sobretudo, a oportunidade de conhecer um outro tipo de administração colonial de que Jorge Dias não se cansava de exultar os méritos e perante a qual a portuguesa não resistia à comparação. Enceta, então, e em resultado da sua deslocação ao Tanganhica, uma série de positivas apreciações criticas à « indirect rule». «Os ingleses estão hoje a fazer uma política de franco e cordial convívio entre os diferentes grupos raciais, procurando a todo o custo acabar com qualquer forma de segregação. A grande experiência colonial inglesa levou-os a proceder desta maneira no Tanganhica. Não sabemos se há sinceridade ou não nesta orientação, nem isso interessa; o que sabemos é que o funcionalismo inglês corresponde de maneira absolutamente perfeita à orientação superior. Ao contrário dos latinos — e neste ponto somos infelizmente demasiado latinos — cada funcionário incarna magnificamente a política ditada em Londres»7.

9 Referia-se Jorge Dias, neste ponto, à conhecida não concertação existente entre os ditames da governação central e a prática quotidiana dos seus funcionários no terreno da administração colonial portuguesa, ou, se pretendermos ser mais objectivos, à enorme distância entre a letra de uma legislação de cariz cosmético e a natureza pro fundamente discriminatória da realidade colonial portuguesa. Mais adiante, não resistindo a aprofundar a comparação entre a prática administrativa britânica e a portuguesa, apresenta um cenário nada consentâneo com certas imagens da propaganda colonial que já tinham ganho foros de senso-comum: «Portanto, ao contrário daquilo que geralmente pensamos em relação à atitude snob e racista inglesa, e que foi de facto uma atitude que se manteve através dos séculos e cujas raízes mergulham no próprio sentimento de classe, tão vincado em Inglaterra, nós vemos hoje um comportamento completamente diferente no Tanganhica. Pode mesmo dizer-se que parece ter-se dado um fenómeno duplo de inversão da atitude tradicional de comportamento racial para aquém e para além do Rovuma. Enquanto que nós, ainda hoje considerados como o povo menos

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 112

discriminador por índole e tradição, apresentamos um quadro verdadeiramente deformado dessa tradição no Norte de Moçambique, os ingleses causam uma surpresa ainda maior no Tanganica, pela sua política de confraternização multi- racial»8.

10 Confrontado com a prática administrativa colonial no Norte de Moçambique e com a crua realidade da discriminação racial, Jorge Dias denuncia no «Relatório de 1959» essa crença generalizada na aptidão dos portugueses para o convívio interracial: «... nós continuamos a ouvir sempre repetir que os indígenas gostam mais dos portugueses que dos ingleses, porque os tratamos com mais humanidade e nos interessamos pela vida deles. E esta história vai-se repetindo, como certos erros que passam de uns manuais para os outros, porque os autores em vez de procurarem verificar a exactidão das afirmações, acham mais cómodo repetir aquilo que outros disseram. Já noutro relatório dissemos que alguns Macondes nos confessaram ter mais admiração pelos ingleses do que por nós, estabelecendo confronto entre o tratamento dado por nós e pelos ingleses no Tanganhica. Confesso que na ocasião registámos o facto mas não o tínhamos compreendido bem. Só agora, depois de termos feito esta excursão pelo Tanganhica, a situação nos parece clara e de certo modo alarmante»9.

11 Parece ter sido a viagem ao Tanganhica, pelo que se depreende da leitura do «Relatório da Campanha de 1959 (Moçambique, Angola, Tanganhica e União Sul Africana)», que mais contribuiu para o desenvolvimento do sentido crítico de Jorge Dias. Aí teve oportunidade, não só de observar um sistema e uma prática administrativa diferentes daquelas que conhecia do Planalto, como também teve acesso directo às opiniões individuais de muitos emigrados macondes, que, não se sentindo constrangidos como o estariam em território colonial português — sobretudo perante alguém que, utilizando o apoio logístico da administração, estava imediatamente conotado com ela — discorriam livremente sobre a situação no Planalto. No «Relatório» desse ano narra algumas das suas experiências pessoais nos contactos que manteve com macondes emigrados: «Em Dar-es-Salaam conversámos com um grupo de escultores Macondes que ali vivem há vários anos. Ficaram encantados de ouvirem falar das suas aldeias e até de pessoas amigas ou parentes que nós tínhamos conhecido durante as duas campanhas que fizemos nos Macondes. Esta conversa fez-se na presença do dono de um estabelecimento de objectos de arte. A certa altura, um deles virando-se para o dono da loja disse: "É a primeira vez que falamos com portugueses, a gente lá tem medo de falar com os brancos!". Isto é doloroso e fere a nossa sensibilidade, mas não quero deixar de dizer o que ouvi, pois parece-me fundamental fazermos um grande esforço para mudar a situação e conquistar o terreno perdido. Pode talvez pensar-se que vale pouco o que diz um Maconde que saiu há anos de Moçambique, mas os factos provam que a situação é bastante perigosa. Não devemos esquecer que entre cerca de 28 000 não há só agricultores simples ou boçais. Infelizmente tivemos ocasião de verificar que a afirmação do Maconde não era esporádica, nem das mais graves. No Hotel de Mtwara, onde estivemos hospedados antes de partir para Newala e no regresso, tivemos várias conversas com um criado Maconde de Macomia, que falava português correctamente, apesar de já ter saído de Moçambique há uns cinco anos. Era um rapaz aberto e alegre, que gostava de ouvir falar da sua terra, e que visivelmente nos ganhou estima. Quando um dia lhe perguntamos porque razão não voltava para Moçambique, respondeu-nos que preferia viver no Tanganhica, porque ali podia dormir mais descansado! É evidente que tais respostas devem corresponder a qualquer realidade, e nós deveríamos procurar remediar com a máxima brevidade tudo aquilo que dê motivos a tais situações. [...] Como nós, portugueses, temos uma concepção de soberania não colonialista mas de assimilação, devíamos fazer tudo no sentido de tornar essa política uma realidade e contrariar, por todos os processos, os desvios dessa

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 113

directiva originados por ignorância, rotina e interesses egoístas, prejudiciais aos interesses nacionais»10.

12 Os testemunhos recolhidos por Jorge Dias no sul do Tanganhica, durante a campanha de 1959, corroboravam as primeiras impressões recolhidas no Planalto em meados de Julho de 1957: «O branco habituou-se a considerar-se, de tal maneira, um ser superior, que não dá por nada destas coisas, nem mostra a mínima cortesia ao falar com pretos instruídos ou assimilados, nem muito menos pensa em estender-lhes a mão. Desta maneira vai-se cavando um abismo absolutamente desnecessário entre pretos e brancos, que me parece contrario às superiores directrizes estabelecidas pelos responsáveis»11.

13 Essas «superiores directrizes» políticas, que se queriam no sentido da afirmação de uma política de assimilação e de integração, eram constantemente ignoradas, como o pode observar Jorge Dias no Norte de Moçambique. Radicavam na natureza discriminatória do sistema económico colonial os obstáculos mais sérios à causa da assimilação: «Para o comum dos europeus mantém-se a mentalidade colonialista, que considera o negro como mão de obra barata e não procura assimilá-lo. No momento em que o preto tem o direito ao mesmo salário que o branco, já ninguém o quer, mesmo que seja um bom operário. Daqui sucede que pretos assimilados têm de ocultar por vezes a sua situação jurídica, para conseguirem arranjar trabalho como um indígena vulgar. Desta maneira muitos pretos não têm interesse em ser assimilados. Além de não terem vantagens económicas, também não conseguem ser tratados com mais consideração»12.

14 A sua deslocação ao Tanganhica forneceu-lhe, ainda, os meios de apreciação que permitiram constatar do subdesenvolvimento económico do Norte de Moçambique, por oposição ao relativo desenvolvimento económico do território sob administração britânica. Esse colonialismo desenvolvido, que era o britânico, dotava os macondes moçambicanos emigrados de um termo de comparação económico e social que acabava por ser desfavorável para a imagem da administração colonial portuguesa: «Devemos pensar que o indígena observa um maior desenvolvimento económico do outro lado do Rovuma. Newala, que pela sua posição geográfica se pode comparar a Mueda, é um centro comercial incomparavelmente mais activo, com dezenas de lojas e bastante vida. [...] Entre Mueda e Newala existe um abismo cronológico que nos há-de ser muito difícil de transpor, e que, nem sei bem, se o queremos transpor»13.

15 Não seria menos desfavorável o confronto entre as duas realidades das relações inter- radais, tema que preocupava sobremaneira Jorge Dias: «As relações entre ingleses e africanos são cordiais, e o tom de conversa com os africanos, ou na sua ausência, é de respeito e confiança nas suas capacidades e no seu progresso e colaboração. Mesmo que não haja inteira sinceridade da parte de alguns ingleses, o certo é que representam bem o seu papel, em obediência a instruções vindas de cima, e conseguem criar uma atmosfera de confiança e simpatia. Porém, atravessamos a fronteira e a atitude muda completamente, mesmo em relação aos africanos assimilados e com algumas habilitações, como sejam os enfermeiros, ou mesmo comerciantes de origem oriental. Ninguém lhes estende a mão, a alguns tratam-nos mesmo por tu, embora possam ser mais velhos do que o interlocutor»14.

16 Para Jorge Dias era um comportamento que estava perigosamente próximo da absoluta segregação racial que ele conhecia da sua permanência recente na União Sul-Africana, na campanha de 1959 (durante esse ano escolar de 1959 viveu e trabalhou em Joanesburgo,

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 114

como professor convidado da Universidade de Witwatersrand) e que viria a corroborar no ano seguinte, em 1960, quando acompanhou o antropólogo americano Charles Wagle da Universidade de Columbia, numa «viagem de prospecção etnosociológica [...] através das províncias ultramarinas do continente africano»15.

Uma viagem em sightseeing pelo Soweto

17 Não obstante a estreita colaboração que sempre existiu entre o governo português e as autoridades sul-africanas, não agradava ao regime a perspectiva de um pronunciamento branco, do género daquele que ocorrera na União Sul-Africana e que, anos mais tarde, viria a ocorrer na colónia britânica da Rodésia do Sul. Estava o governo português igualmente preocupado com a eventualidade de a União Sul-Africana, aproveitando-se das convulsões políticas que entretanto tinham começado a surgir por toda a África, pudesse incentivar nas colónias portuguesas, sobretudo em Moçambique — onde detinha grandes interesses económicos — os intentos autonómicos da minoria branca, concorrendo, assim, para a realização de um velho sonho da ideologia nacionalista boer: a Grande União. Daí que Jorge Dias aproveitasse a sua permanência na África do Sul, lecionando na Universidade de Witwatersrand, para proceder ao levantamento da situação política e social na União, procurando inquirir da forma como os meios mais radicais da sociedade branca sul-africana encaravam as possessões e a política colonial portuguesas. E aquilo que ele pôde constatar, nessa sua primeira estadia na União Sul- Africana, não era de molde a tranquilizar os interesses da soberania portuguesa: «Bem observadas as coisas, a União olha com cupidez para os nossos territórios africanos ao sul do Equador e em especial para Moçambique. Em qualquer conversa com sul africanos pouco hábeis em ocultar os seus íntimos desígnios, transparece a ambição de vir a constituir uma nação única no sul de África, incluindo os protectorados da Suazilândia, Basutolândia, Bechuanalândia, o Sudoeste Africano e a nossa Província de Moçambique. [...] Desta maneira temos de contar que a União há-de olhar com simpatia e ajudar qualquer aspiração de emancipação dos portugueses de Moçambique, visto que tal coisa representa o primeiro passo num plano de anexação dos territórios vizinhos»16.

18 Mas deveria a comunidade portuguesa desencorajar-se de tais propósitos e, em certa medida, já o estava fazendo, pois que, como o faz lembrar Jorge Dias, em jeito de aviso às tentações emancipalistas: «Os casos de portugueses que foram à União, e antigamente à Rodésia, e que não eram recebidos nos hotéis, por não serem muito brancos, serve-lhes de lição»17.

19 Quanto a essa paranóia segregacionista, enquadrava-a Jorge Dias no mesmo campo ideológico do nacional-socialismo alemão: «Os únicos imigrantes de quem os africanders nacionalistas gostam é dos alemães, e principalmente dos alemães partidários do nazismo. A simpatia dos africanders nacionalistas — devemos dizer para bem da verdade que muitos são da oposição — pelo nazismo, é uma consequência da sua política racista, convicta da superioridade da raça ariana. Este mito ariano pode ser um perigo sério para nós, no dia em que triunfe plenamente a política boer»18.

20 A ideologia nacionalista boer, reprodução local da ideologia nacional-socialista alemã, merecia de Jorge Dias a mais viva reprovação, não hesitando em caracterizar os seus mentores da forma mais depreciativa, ou atribuindo-lhes uma psicologia algo demencial: «Hoje, pode dizer-se, que o africander é na generalidade fanático, destituído de maleabilidade e fantasia, sensual e muitas vezes brutal e cruel. [...] Nesta população

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 115

branca, tão pequena, há quatro mortes por suicídio diários, além de 600 suicídios frustrados por ano. Para tal população, cerca de 2 000 suicídios anuais e numa das mais ricas terras do Globo, e bem um índice do profundo desequilíbrio psico-social deste povo»19.

21 Escrevendo assim, talvez que Jorge Dias estivesse demonstrando uma espécie de ressentimento pela forma como foi acolhido em Johannesburg. Não que tivesse sido mal tratado, mas, a tal propósito narra o caso de uma assistente de literatura inglesa da Universidade de Witwatersrand, filha de emigrantes portugueses e que tinha sido a aluna mais bem classificada em todos os cursos que tinha frequentado, e sobre a qual Jorge Dias ouviu dizer «[...] não parece nada portuguesa, pois não?»20. Desse facto e por aquilo que pôde observar na União, Jorge Dias concluía que o conceito africander de apartheid não se aplicaria apenas aos grupos africanos, mas estender-se-ia, igualmente, aos asiáticos e mesmo, embora não reconhecido oficialmente, aos europeus mediterrânicos, numa escala gradativa em que os anglo-saxónicos se postavam no patamar superior. E em reforço dessa sua constatação, elucidava: «Aliás, deve dizer-se que, a maneira como se referem à necessidade de substituir o trabalhador indígena por trabalhadores europeus, chega a ser ofensiva para nós, como me contou o Sr. Dr. Ramalhete, Leitor de Português na Universidade de Witwatersrand, que leu uma vez num jornal um artigo sobre o problema dos criados negros virem a desaparecer e das dificuldades que daí adviriam. O articulista terminava dizendo que talvez a solução fosse importar criados de um país subdesenvolvido, como Portugal»21.

22 Quanto à natureza do regime do apartheid, Jorge Dias parecia não perfilhar a ideia, largamente aceite na altura, segundo a qual ele deveria a sua existência a uma espécie de bizarrerie ideológica, sobrelevando-se, assim, o aspecto político do fenómeno em detrimento de outros domínios. Em derradeira instância, a segregação racial consagrada pelo apartheid, visava justificar e fundamentar uma discriminação económica que pudesse assegurar à minoria branca, não só a direcção da economia, mas, igualmente, a exploração dessa economia em desfavor de uma maioria negra: «O objectivo dos africanders é reduzir os negros e mistos a uma massa invertebrada e dúctil, que sirva sempre de instrumento à raça superior, sem lhe oferecer resistência. Para isso tem de viver agrupada em reservas e bantustans, sempre vigiada e submetida a tipos de ensino, que nunca lhes forneçam meios para se emancipar. Os brancos ficam com as riquezas mineiras e com as melhores terras agrícolas e vivem em cidades expurgadas de ele mentos não brancos. Indianos, paquistãos, chineses, etc., estão em posição intermédia, pois não devem ter acesso ao ensino superior nem podem casar ou ter relações com indivíduos brancos. Mesmo no ensino técnico não fornecem conhecimentos que permitam aos africanos elevar-se a um nível económico melhor»22.

23 Em 1960 Jorge Dias regressaria à União Sul-Africana, acompanhando o antropólogo americano Charles Wagley na visita às possessões ultramarinas portuguesas. A sua anterior estadia na África do Sul forneceu-lhe uma visão tão crítica do regime do apartheid, que fez intencionalmente a viagem entre Moçambique e Angola de carro, para com isso, e através do confronto, patentear aos olhos de Wagley as vantagens da presença portuguesa em África: «Ao chegar a Joanesburgo, em vez de entrar directamente na cidade, fiz um desvio de maneira a passar pela zona das minas e pelos townships e bairros indígenas. A enorme concentração de indígenas numa paisagem desarborizada e suja confrange. Aos velhos bairros miseráveis, sucedem-se agora townships, onde as casas são mais espaçosas e melhores, mas a imensa monotonia de casas todas iguais, alinhadas

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 116

regularmente, com os seus telhados metálicos, sem um pouco da verdura de uma árvore ou de uma horta, e tudo isto cercado por uma sebe de arame, faz lembrar campos de concentração.[...] Além disso, a agravar mais o espectáculo, a presença permanente da polícia que guarda as entradas dos townships e lhes dá o carácter de prisões, em vez de cidades de trabalhadores»23.

24 Percebe-se, para a ideologia colonial portuguesa, quão conveniente era a existência de um modelo de gestão social, política, económica e cultural assente na mais profunda discriminação e iniquidade. As «vantagens comparativas» daí decorrentes militavam em favor daquele «modo português de estar português», imaginado e pretensamente teorizado por Gilberto Freyre, que enformaria a ideologia tardo-colonial portuguesa, o «luso-tropicalismo»24, uma forma mais desenvolvida do omnipresente paradigma da colonização portuguesa, a assimilação.

25 De algum modo, Jorge Dias parece ter sido vítima desprevenida daquilo que, trinta anos mais tarde, Robert Miles25 apresentou como a «inflação conceptual» do racismo, propiciada pela sua plasticidade histórica, com formas e graus variando ao longo do tempo, com grupos-alvo e protagonistas muito heterogéneos, nem sempre racialmente diferenciáveis e por vezes apenas «racializados» por via de uma construção ideológica e cultural. Esse parece ser o caso da comunidade portuguesa na África do Sul, alvo de uma discriminação uma expressão de Bourdieu26, em que um grupo dominante assegura a sua reprodução social através da transmissão de um «capital cultural», herdado e incorporado, mas apresentado-o como natural e inato, na verdade nada distinto das justificações elaboradas em redor de outras formas de dominação. Tratar-se-ia, para utilizar um conceito que vem fazendo um paulatino percurso nas últimas décadas, de uma «minoria intermédia»27, naturalmente alvo de uma discriminação social contaminada por um preconceito racial.

26 Em todo o caso, Jorge Dias esforçou-se por não perceber que, conceptualmente, esteve sempre perante o mesmo fenómeno — o racismo —, imediatamente reconhecível em qualquer uma das suas três dimensões constitutivas: preconceito, discriminação e ideologia.

NOTAS

1. Como, p. ex., em Rui PEREIRA (1998), «Introdução à reedição de 1998», in Jorge Dias, Os Macondes de Moçambique, vol. I, Lisboa, CNCDP/IICT; (2001), «A "Missão Etognósica de Moçambique". A codificação dos "usos e costumes indígenas" no direito colonial português. Notas de investigação», in Cadernos de Estudos Africanos, 1, Lisboa, Centro de Estudos Africanos, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa; e (2005), «Raça, Sangue e Robustez. Os paradigmas da Antropologia Física colonial portuguesa», in Cadernos de Estudos Africanos, 7-8, Lisboa, Centro de Estudos Africanos, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. 2. Portaria n.º 15 737, de 18 de Fevereiro de 1956. 3. Portaria n.º 16 158, de 6 de Fevereiro de 1957. 4. Portaria n.º 16 160, de 6 de Fevereiro de 1957. 5. Portaria n.º 16159, de 6 de Fevereiro de 1957.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 117

6. Jorge DIAS (1964a), Os Macondes de Moçambique. Aspectos históricos e económicos, vol. I, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar; Jorge DIAS & Margot DIAS (1964), Os Macondes de Moçambique. Cultura material, vol. II, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar; Jorge DIAS & Margot DIAS (1970), Os Macondes de Moçambique. Vida social e ritual, vol. III, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar; Manuel Viegas GUERREIRO (1966), Os Macondes de Moçambique. Sabedoria, língua, literatura e jogos, vol. IV, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar. 7. Jorge DIAS, Manuel Viegas GUERREIRO & Margot DIAS (1960), «Relatório da Campanha de 1959 (Moçambique, Angola, Tanganhica e União Sul-Africana)», Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, Centro de Estudos Políticos e Sociais, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, p. 7, [doravante apenas referenciado como «Relatório de 1959»]. 8. «Relatório de 1959», p. 8. 9. «Relatório de 1959», p. 21. 10. «Relatório de 1959», pp. 25-26. 11. Jorge DIAS & Manuel Viegas GUERREIRO (1958), «Relatório da Campanha de 1957 (Moçambique e Angola)», Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, Centro de Estudos Políticos e Sociais, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, p. 60, [doravante apenas referenciado como «Relatório de 1957»]. 12. «Relatório de 1957», p. 61. 13. «Relatório de 1959», pp. 24-26. 14. «Relatório de 1959», p. 26. 15. Jorge DIAS, Manuel Viegas GUERREIRO & Margot DIAS (1961), «Relatório da Campanha de 1960 (Moçambique e Angola)», Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, Centro de Estudos Políticos e Sociais, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, p. 2, [doravante apenas referenciado como «Relatório de 1960»]. 16. «Relatório de 1959», pp. 35-36. 17. «Relatório de 1959», p. 36. 18. «Relatório de 1959», p. 43. 19. «Relatório de 1959» pp. 39, 46. 20. «Relatório de 1959», p. 37. 21. «Relatório de 1959», pp. 42-43. 22. «Relatório de 1959», p. 43. 23. «Relatório de 1960», pp. 28-29. 24. Após o antológico texto de Cláudia CASTELO (1999), «O modo português de estar no mundo»: o luso- tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa, 1933-1961, Porto, Afrontamento, muitos outros autores têm ajudado a desmontar o luso-tropicalismo». Permito-me destacar, entre outros: Miguel Vale de ALMEIDA (2000), Um Mar da Cor da Terra “Raça”, Cultura e Polaica da Identidade, Oeiras, Celta; bem como alguns dos textos reunidos em Miguel Vale de ALMEIDA, Cristiana BASTOS & Bela FELDMAN- BIANCO [orgs.] (2003), Trânsitos Coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais. 25. Robert MILES (1989), Racism, Londres, Routledge, p. 41-68. 26. Pierre BOURDIEU (1980), «Le racisme de l'intelligence», in Questions de Sociologie, Paris, Minuit, p. 264. 27. P. ex., Edna BONACIGH, 1973, «A theory of middleman minorities», in American Sociological Review, vol. 38, Washington, American Sociological Association; ou, mais recentemente, Robin WARD (1996), «Middleman minority», in Ellis Cashmore, Dictionaire of Race and Ethnic Relations, Londres, Routledge.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 118

RESUMOS

Em 1959 o antropólogo António Jorge Dias foi professor convidado da Universidade de Witwatersrand, em Johanesburg, para aí leccionar a cadeira de Cultura Portuguesa. Desde 1957 que Jorge Dias dirigia campanhas de investigação no Norte de Moçambique, no Planalto Maconde, e reportava regularmente ao governo de Lisboa, após cada campanha, as suas observações sobre a situação política e social na colónia. Aquele interregno na África do Sul forneceu-lhe matéria suplementar de análise, permitindo-lhe estabelecer um «quadro comparativo» entre o modelo de gestão política do colonialismo português — a propalada «assimilação», a administração indirecta («indirect rule») do colonialismo britânico que ele observava do outro lado da fronteira norte de Moçambique, no Tanganhica, e o sistema de apartheid vigente na então União Sul-Africana. Este texto não analisa a reconfiguração actual daquela memória colonial mas deixa perceber que naquela altura, em finais da década de 1950, as «leituras» de Jorge Dias estavam já enviesadas no sentido da afirmação do paradigma luso-tropicalista que ainda hoje enforma largos sectores da sociedade portuguesa.

In 1959 António Jorge Dias, anthropologist, was invited to lecture Portuguese Culture in the university of Witwatersrand, in Johannesburg. Since 1957 he had been carrying out research work in the north of Mozambique, in the Makonde Plateau, reporting his observations on the political and social situation of the colony to the Portuguese government, in Lisbon. That period of time in South Africa provided him with further information of analysis which allowed him to develop a «comparative framework» between the political ruling model of the Portuguese colonialism — the so called «assimilation» — the indirect rule of the British colonialism he could observe in Tanganyika and the apartheid system in South Africa. This text does not analyse the current reconfiguration of that memory. However, it helps perceive that in the late 50s Jorge Dias's points of view were already leading towards the assertion of the paradigm of lusotropicalism which even today shapes the minds of large sectors of Portuguese society.

ÍNDICE

Keywords: Jorge Dias, 1907-1983, missão científica, racismo, Maconde, Moçambique

AUTOR

RUI M. PEREIRA Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, UNL e Centro de Estudos Africanos, ISCTE

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 119

Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC Guinea-Bissau: the cause of nationalism and the foundation of the PAIGC

António E. Duarte Silva

Agradeço as sugestões do António de Araújo, Miguel Nogueira de Brito e Teresa Abreu.

I. A Guiné e a nova escola colonial

1 Marcello Caetano, enquanto Ministro das Colónias de 1944 a 1947, prosseguira (já então) uma política de «evolução na continuidade» da colonização portuguesa, cujos factores inovadores eram, por um lado, a progressiva autonomia administrativa e o desenvolvimento económico e social das colónias e, por outro, a cautela perante a conjuntura internacional do pós-guerra e a ascensão das forças anticolonialistas, especialmente norte-americanas. Ora, a colónia da Guiné foi escolhida como primeiro campo de ensaio destes novos rumos da política colonial portuguesa. Para tal, Marcello pretendia uma equipa que a saneasse «do ambiente de depressão e intriga», e cujos trabalhos haveriam de começar «por um exaustivo conhecimento científico das possibilidades da terra e da gente» e prosseguir através de uma «completa ocupação sanitária, educacional e política». Portanto, o perfil do novo governador apontava para «um oficial da Marinha de Guerra, corporação com tradições tão ligadas à colónia»1. Esse oficial seria o capitão-tenente Sarmento Rodrigues.

2 Nos cerca de três anos e três meses de exercício efectivo, de 1945 a 1948, o governo de Sarmento Rodrigues vai reforçar a administração colonial, tentar associar os guineenses à governação e construir a rede de infra-estruturas indispensáveis à política de desenvolvimento2. Apesar de, na época, a orientação ter causado «alguma controvérsia», esse triénio, resume Peixoto Correia, produziu «obra de alcance e profundidade, porque a política praticada atendeu às características sociais e étnicas locais e ainda por as realizações haverem afectado todos os sectores»3. Segundo o Vice-Almirante Silva Horta, Sarmento Rodrigues acreditou «sinceramente na doutrina oficial de então», contactou toda a população,

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 120

proibiu os castigos corporais, promoveu a agricultura, a investigação científica e inúmeras obras, tornando «a Guiné melhor» e pondo-a «no mapa»4.

3 A sua política prosseguiu a estratégia (iniciada, antes do «28 de Maio» de 1926, pelo Governador Velez Caroço) de privilegiar as alianças com os muçulmanos (sobretudo fulas) e, por outro lado, expandiu o aparelho administrativo, mediante o preenchimento do quadro de dirigentes com uma elite metropolitana e a entrega da administração intermédia a cabo-verdianos e mestiços (que também dominavam o sector comercial), envolvendo, progressivamente, «alguns guineenses de côr escura»5.

4 De facto, Sarmento Rodrigues restringiu os poderes dos régulos e manifestou-se «intransigentemente» contra o uso das violências em relação ao trabalho dos indígenas, atitude que terá provocado diversas «lamentações, de que os indígenas agora faziam o que queriam»6. Numa perspectiva de economia política, terá adoptado um «populismo agrário», algo romântico, e olhado para a Guiné como se fora «um pomar tropical»7.

5 Outra medida significativa foi a aprovação do Diploma dos Cidadãos, como ficou conhecido o Diploma Legislativo n.º 1364, de 7 de Outubro de 1946, que reformava o chamado «Diploma dos Assimilados» (Diploma Legislativo n.º 535, de 8 de Novembro de 1930), o qual, por sua vez, estabelecera as condições em que os naturais das colónias podiam passar à condição de «assimilados a europeus», definindo, desse modo, um estatuto pessoal, étnico e hereditário, no caso aplicável aos guineenses de origem mas não aos caboverdianos (que nunca estiveram sujeitos ao regime de indigenato). Na Guiné, a partir de 1946, passaram, portanto, a distinguir-se relativamente aos «indivíduos de raça negra, ou dela descendentes» apenas duas categorias — os indígenas e os cidadãos (ou «civilizados») —, abolindo aquela terceira categoria de «assimilado». Eram considerados indígenas os indivíduos de raça negra ou dela descendentes que não preenchessem conjuntamente as seguintes quatro condições: a) falar, ler e escrever português; b) dispor de rendimentos suficientes ao sustento familiar; c) ter bom comportamento; d) ter cumprido os deveres militares. As condições de passagem à condição de cidadão português (ou seja, de «civilizado») eram enunciadas pelos artigos 2.º e 3.º, sendo o bilhete de identidade o «o único documento comprovativo da qualidade adquirida de não indígena» (artigo 4.º). A verdade é que este regime só em 1954 seria aplicado em Angola e Moçambique pelo novo «Estatuto dos Indígenas», desenvolvendo a filosofia de assimilação que enformara a revisão constitucional de 1951 e sendo o próprio Sarmento Rodrigues Ministro do Ultramar. O referido Diploma dos Cidadãos, disse-se então, era «o mais importante no género do Império Colonial Português»8.

6 Pelo censo de 1950, já excluídos os «assimilados», para uma população presente de cerca de 500.000 indígenas, a população civilizada total da Guiné cresceu para uns (escassos) 8.320 indivíduos, onde os portugueses representavam 95,6% e os estrangeiros 4,4%; entre os portugueses, cerca de 58% eram naturais da Guiné, 21% de Cabo Verde e 18% da Metrópole; quanto aos mais importantes aglomerados urbanos, destacavam-se Bissau, em crescimento, com 3.792 residentes, e Bolama, em queda, com 884 residentes9.

7 Com o governo de Sarmento Rodrigues na Guiné começou, pois, a formar-se «uma nova escola de política ultramarina»10. Esta escola colonial propunha uma mudança na política portuguesa, quer jurídico-política, quer ideológica: a primeira concretizou-se na revogação do Acto Colonial; a segunda, apostou na promoção do «luso tropicalismo».

8 Mas a substituição de Sarmento Rodrigues demorou vários meses, pois o novo Ministro das Colónias (1947-1950), Teófilo Duarte, alterou a política prosseguida na Guiné, optando

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 121

por um «administrador colonial» que privilegiasse o incremento da produção agrícola. O Ministro considerava que as obras do cais de Bissau e da ponte de Ensalma estavam a ser bastante custosas e que os correspondentes 40 mil contos de empréstimos tinham de ter rápida influência na vida da colónia. Por isso, as verbas de momento disponíveis no orçamento local iriam ser concentradas em melhoramentos de importância vital para a economia da colónia e esses eram, apenas, por um lado, a melhoria das condições de navegabilidade das grandes artérias fluviais, e, por outro, o incremento e mecanização da agricultura, sobretudo quanto à cultura de arroz, de que a Guiné deveria ser o grande fornecedor da Metrópole. Ora, os resultados da produção agrícola eram insuficientes e estavam longe de atingir, na opinião do Ministro, «as quantidades compatíveis com a área, com a população e com as faculdades de trabalho dos habitantes da Guiné». Com efeito, a exportação de amendoim — que em 1939 era de 32 mil toneladas — tinha andado sempre à volta desse número, atingindo o máximo em 1947 com 38 mil toneladas; o mesmo aconteceu com a exportação de coconote, que passara de 12 mil para 14 mil toneladas, enquanto a de arroz baixara de 4.900 para 1.700 toneladas. Aliada a esta questão estava o problema demográfico, pois a população da Guiné era escassa, havendo «necessidade imperiosa de uma campanha em larga escala a favor da infância», procurando reduzir, para metade «pelo menos, a brutal mortalidade infantil»11.

9 Finalmente, por decreto de 2 de Junho de 1949, acabou por ser designado Governador da Guiné o capitão de engenharia Raimundo António Rodrigues Serrão, cujo auto-retrato evidenciava um «soldado do Estado Novo e soldado de Portugal». Creditado com 19 anos de permanência em Angola — onde trabalhara como engenheiro e em cargos administrativos (designadamente como Governador em quatro províncias) — exercia funções, à data, no Ministério das Colónias, em Lisboa. Amigo e colega do Subsecretário de Estado das Colónias, Rui de Sá Carneiro, o novo Governador Raimundo Serrão não conhecia a Guiné, não trazia qualquer programa de governo, pois a sua «traça superior [competia], aliás, ao Ministro das Colónias» e, conforme lhe fora sugerido, dispunha-se tão-só a «concluir as obras iniciadas e dar andamento aos problemas em curso»12.

10 Entretanto, a reeleição presidencial de António Óscar de Fragoso Carmona, em 13 de Fevereiro de 1949, tinha tido pouco impacto. Segundo informações da secção local da União Nacional (partido único na Metrópole e colónias), haveria 1.929 eleitores inscritos na Guiné. Ter-se-ão abstido 716 e a União Nacional informava mesmo que 503 abstenções foram «voluntárias», enquanto as demais 213 se deveram a «ausentes, mortes e presos». Votaram, pois, 1.213 eleitores: 1.184 a favor do candidato e 11 contra (4 votos em Bissau, 1 em Bafatá, 4 em Cacheu e 2 em Fulacunda), pelo que é (só) de cerca de 62% quer a percentagem de votantes sobre o total de inscritos quer a percentagem dos votos favoráveis à reeleição do Presidente Carmona. Destaque-se o escasso número de eleitores e de votos recalcitrantes e sua dispersão geográfica.

11 Pouco depois, com vista às eleições para a Assembleia Nacional, marcadas para 13 de Novembro de 1949, as autoridades de Bissau prepararam «Uma bem orientada campanha da qual fez parte uma importante sessão de propaganda». Na «vasta sala» do tribunal da comarca, após a intervenção inicial do presidente da União Nacional, os três oradores (seleccionados em representação, respectivamente, dos portugueses da Metrópole, dos portugueses de Cabo Verde e dos portugueses da Guiné) restringiram-se à «apologia do candidato pela Guiné, enaltecendo a obra do Estado Novo». Encerrou a sessão o Governador Raimundo Serrão, recordando ter pertencido aos «tempos dos Tenentes do 28 de Maio de 1926» e ser daqueles que foram buscar Salazar a Coimbra; disse lamentar «a ausência da

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 122

oposição na presente campanha eleitoral», concluindo com uma «alta lição de patriotismo e de afecto ao Estado Novo». Quanto aos resultados do sufrágio, perante 1.643 inscritos, votaram 1.451 eleitores, correspondentes — acrescentava-se — «a uma percentagem-recorde de 93% no total geral». O que significa que, entre a eleição presidencial de Fevereiro e esta eleição parlamentar, ainda diminuiu o número de recenseados e de eleitores. O Ministro das Colónias celebrou, telegraficamente, o resultado, mas quanto ao candidato único (tratava- se do tenente-coronel Ricardo Vaz Monteiro, que havia sido Governador da Guiné entre 1941-1945) nem esteve presente a qualquer acto eleitoral, nem foi citado nos discursos, tendo-se limitado a uma mera «alocução» à colónia.

12 No início dos anos cinquenta, perante a ameaça da descolonização, Salazar decidiu finalmente eliminar o Acto Colonial, desencadeando em Março de 1950 um processo de revisão constitucional antecipada. No seu decurso concluiu, em Agosto de 1950, uma remodelação ministerial e, quanto ao Ministério das Colónias, a substituição de Teófilo Duarte, não terá sido nada fácil, visto que as questões de Goa, de Macau, de Timor, e o ambiente internacional sobre África não só impunham «maior actividade ao departamento e um ministro firme» como exigiam alguém «com ligações ou contactos em círculos ideológicos internos variados»13; Salazar hesitou, até que se decidiu por Sarmento Rodrigues.

13 Com a aprovação do novo texto constitucional, em 1 de Maio de 1951, foi revogado o Acto Colonial, as suas disposições integradas na Constituição, mediante a abolição da terminologia evidentemente colonialista, substituída pelas expressões Ultramar Português e Províncias Ultramarinas, tendo, enfim, saído reforçado o princípio da unidade nacional de um Estado português pluricontinental. Por isso, a partir de 15 de Junho de 1951, o Ministério das Colónias passou a designar-se Ministério do Ultramar e, pelo Estatuto de 1955 (Decreto n.º 40 223, de 5 de Julho de 1955), a Guiné Portuguesa passou a ser «a província da Guiné», ou seja, uma pessoa colectiva de direito público gozando de autonomia administrativa e financeira, de harmonia com a Constituição Política e a Lei Orgânica do Ultramar, cujos órgãos de governo próprio eram o governador e o Conselho de Governo.

II. Governo e subversão

14 A maioria dos «oposicionistas» portugueses havia sido saneada da Guiné na sequência do fracasso da chamada «Revolução Triunfante» em Bissau e Bolama como vertente guineense das revoltas de 1931 contra a «Ditadura Militar». Mais ainda, com a imposição da administração portuguesa desde os anos quarenta, a população adaptava-se progressivamente «às realidades duras do sistema colonial» e não se notava qualquer manifestação protonacionalista nas elites coloniais14. Por essa altura, com a expansão da actividade comercial e a «penetração progressiva do litoral "animista" pelo Leste "islamizado"»15, o crioulo expandia-se como língua franca e formava-se uma sociedade civil rural. A partir de então, como comprova a transferência da capital de Bolama para Bissau em Dezembro de 1941, pode começar a identificar-se uma formação social bissau- guineense.

15 Segundo os depoimentos de Elisée Turpin e Rafael Barbosa, figuras históricas do nacionalismo guineense, logo na segunda metade da década de quarenta surgiram manifestações de contestação ao domínio colonial e a favor da democratização (nem sequer se punha a questão da independência ou «autodeterminação»), entre as quais a

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 123

fundação, em 2 de Abril de 1947, de um Partido Socialista da Guiné, que, porém, não conseguiu desenvolver qualquer acção relevante16.

16 Em Julho de 1952, a propósito do terceiro aniversário do seu desembarque em Bissau e para demonstrar que este «rincão da África Portuguesa» estava a atravessar «um surto de felicidade», realizou-se uma sessão de homenagem ao Governador, concluindo o próprio Raimundo Serrão que tal homenagem lhe dava «a impressão que não se encontram completamente extintas as esperanças» depositadas na sua nomeação17. Obviamente, a linha política traçada pelo ex-Ministro Teófilo Duarte fora afastada e a governação da Guiné tomara-se problemática. Por carta, dirigida ao «Amigo e Senhor Ministro» Sarmento Rodrigues, Raimundo Serrão desmente as queixas do Chefe de Repartição Militar quanto «à existência de propaganda comunista entre os indígenas», até porque, aquando do censo geral de 1950, houvera «um contacto grande entre as autoridades e os indígenas e nada constou». Além disso, mais recentemente, a propósito da entrada em vigor do imposto de capitação, os indígenas vieram junto das autoridades «nas melhores disposições e até acatando de boa vontade a nova ordem neste aspecto da modificação do sistema de cobrança do imposto indígena», o que, portanto, levava a assegurar «a certeza que nada há»18.

17 A comissão de Raimundo Serrão, de quatro anos, terminava em Junho de 1953. Apesar de ter inaugurado importantes obras (entre elas, a criação do Colégio-Liceu, a Ponte-cais de Bissau, a ponte «Sarmento Rodrigues», o aeródromo de Bissalanca, a Catedral, o Palácio do Governo e o alcatroamento de várias ruas de Bissau e algumas estradas), nenhuma delas fora de sua iniciativa e responsabilidade. O mandato não foi renovado e o Ministro Sarmento Rodrigues entendeu enviar o Subsecretário de Estado, Raúl Ventura, percorrer a Província e inaugurar a Ponte-cais localizada no Pigiguiti (segundo a ortografia oficial)19 .

18 Raúl Ventura foi recebido oficialmente, pelas autoridades da África Ocidental Francesa e representante do consulado português, no aeroporto de Dacar, em 15 de Maio de 1953. Desembarcou, no dia seguinte, no aeródromo de Bissalanca, assistiu a um Te Deum na nova Catedral e foi percorrer longamente o interior da Província. De regresso a Bissau, visitou o quartel da Amura, as instalações da Sociedade Comercial Ultramarina, a missão do Sono, a Granja do Pessubé — «na companhia dos Engenheiros Agrónomos Nobre da Veiga e Amí1car Cabral, foi ela percorrida em detalhe» —, o Asilo de Bór e a enfermaria de Cumura. Em 28 de Maio, realizou-se finalmente a inauguração festiva e demorada da Ponte-Cais de Bissau20.

19 Logo a 13 de Junho embarcava para Lisboa o Governador Raimundo Serrão. Antes, empossara o novo Encarregado do Governo, o Inspector de Saúde Dr. Fernando Pimentel que, ao discursar, descreveu o governo de Raimundo Serrão, o qual — segundo concluiu —, não obstante «algumas arrelias e dissabores», até representa ra «uma época de fulgurante grandeza»21.

20 Para novo Governador foi nomeado, de imediato, o capitão-de-fragata Diogo José Leite Pereira de Mello e Alvim, então Governador da Zambézia, onde, aliás, em Janeiro de 1952, em Quelimane («uma cidade luso-tropical em começo»), recebera Gilberto Freyre no seu percurso por Moçambique. Era-acrescenta Freyre — mais um «esclarecido oficial» da Marinha, da escola de Sarmento Rodrigues, cedido à administração ultramarina22. Mello e Alvim passara pela Guiné dezasseis anos antes e o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (CEGP) mostrou-se particularmente agradado com a nomeação. No discurso de posse, em 3 de Dezembro de 1953, o Ministro Sarmento Rodrigues lembrou-lhe que todos os governantes ultramarinos deviam «manter em actividade uma imaginação criadora», pois a governação não podia contentar-se «com a conservação do passado» e que seria «para o

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 124

futuro que têm de estar voltadas as sua principais atenções»; realçou os recentes melhoramentos na Guiné e incentivou à continuação do desenvolvimento agrícola, por constituir «a base da economia da província »23.

21 O Governador chegou a Bissau em 7 de Janeiro de 1954, a bordo do navio-motor «Alfredo da Silva», que atracou na nova ponte-cais, na ocasião-segundo o cronista — «repleta, vendo-se desde as personagens mais em evidência no nosso meio até à enorme multidão de indígenas». Em princípios de Fevereiro, iniciou uma viagem pelo interior, começando por Bolama. Na sua correspondência com o Ministro, fez, meses depois, um apanhado da situação: em 1954, a Guiné estava «muito diferente» daquela que Sarmento Rodrigues deixara em 1948: agora, «[t]odos mandavam e ninguém se entendia. A pouco e pouco, sem pressas, tenho chamado os comandos ao Governo e posso assegurar-lhe que, presentemente, já voltou a haver mais um bocadinho de ordem em tudo; nas despe[s]as, na disciplina e até, perdoe- me o desabafo, na justiça. À parte um administrador Costa, um director do Colégio-Liceu [...], julgo que estão todos satisfeitos. Acima de todos, porém, os indígenas, que vêem em mim o continuador da sua obra»24.

22 Também o bem informado comandante Teixeira da Mota enfatizava a «perfeita tranquilidade no que se refere às relações entre brancos e pretos» reinante na Província, pro‐ piciada quer pelas leis vigentes quer pelo «trato individual dos Portugueses, avessos a discriminações raciais»25. Curiosamente o mesmo número do Boletim Cultural que noticiava a chegada de Mello e Alvim publicava dois artigos de Amílcar Cabral, um «A propósito da mecanização da agricultura na Guiné Portuguesa», e outro «Acerca da utilização da terra na África Negra»; de facto, Amílcar Cabral fora, a 4 de Agosto de 1953, encarregado de «estudar, planear e executar» o Recenseamento Agrícola da província e já editava um Boletim Informativo, apelando à «permanente consciencialização» e ao «incessante conhecimento do ambiente»26.

23 Ainda no mandato do Ministro Sarmento Rodrigues fora alargada a competência da polícia política — a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) — ao Ultramar, através da reorganização de 1954, promovida pelo Decreto n.º 39 749, de 9 de Agosto. Ficava sob superintendência do Ministro do Ultramar (e não do Ministro do Interior, como na Metrópole) não só por uma questão de unificação administrativa, cara ao Ministro do Ultramar, mas também «para precaver as províncias ultramarinas contra o aparecimento de grupos de tendências independentistas e de concomintantes revoltas anticolonialistas»27. A sua instalação ainda demorou algum tempo: por um lado, o Decreto- Lei n.º 40 541, de 27 de Fevereiro de 1956, veio introduzir «alterações no funcionamento dos quadros» da PIDE no Ultramar e, quanto à Guiné, previu um subinspector de polícia, um agente de 1.º classe e dois agentes de 2.ª classe; depois, a abertura da delegação ocorreu em 1957, mas a rede da PIDE só foi completada na sequência da Portaria n.º 16 750, de 28 de Junho de 1958, mediante a criação de 5 postos (com 12 subpostos) em S. Domingos, Catió, Bafatá, Farim e Gabu, «todos dependentes da subdelegação da mesma» PIDE, com sede em Bissau.

24 Por isso, as primeiras notas sobre movimentações subversivas em Bissau pertencem ainda à Polícia de Segurança Pública (PSP). Assim, uma nota datada de 3/5/1955 registou as reuniões dirigidas por Amílcar Cabral com mais de uma dúzia de amigos visando a constituição de uma associação desportiva e recreativa, reserva da aos «filhos da Guiné», para a prática de futebol e «O desenvolvimento de actividades nativistas, incluindo uma biblioteca». Obtidos os fundos para as despesas dos «Estatutos» elaborados por Amílcar Cabral, aprovados estes e assinada a respectiva «petição» por 11 subscritores, foi escolhida

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 125

a comissão que os apresentaria à autorização administrativa. Não foram aprovados e Amílcar Cabral ficou com a fama de «estar feito com os grumetes», enquanto a PSP registava que «o Eng.º Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de actividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade dos direitos dos nativos». As notas da PSP não só identificavam os locais dos encontros e os intervenientes, como chegaram mesmo a conter uma relação de guineenses «anti- situacionistas»28.

25 Várias fontes referem que, em 1955, terá sido criado, em Bissau, um Movimento para a Independência Nacional da Guiné (MING), por um pequeno grupo de «civilizados» (embora tudo aponte para Amílcar Cabral e seus auxiliares na granja de Pessubé), influenciados pela evolução política nas limítrofes colónias francesas do Senegal e da Guiné. Segundo as fontes de informação das autoridades portuguesas, os responsáveis do MING tentavam alargar a influência que vinham exercendo, estendendo «O seu esforço de aliciamento às camadas médias da população mestiça e nativa — os "trabalhadores intelectuais" — e, simultaneamente, visa[vam] o despertar de uma consciência proletária em determinadas camadas menos evoluídas, dos centros urbanos, procurando a adesão dos trabalhadores braçais»29. Não há qualquer prova de actividade nacionalista deste grupo, que se revelou «pouco consistente»30 e não terá sido mais que uma «escola ilegal»31. Nesse mesmo ano, o Governador Mello e Alvim — que era, segundo Luís Cabral, de trato inteligente, desenvolto e franco — convidou telefónica e formalmente Amílcar Cabral para o informar que recebera «denúncias» sobre reuniões subversivas em que Amílcar Cabral participara, a que tinha de dar seguimento, e pôs termo às suas funções na «estação agrária» e à residência permanente, embora autorizando-o a uma visita anual à família32.

26 Entre 2 de Maio e 14 de Maio de 1955, a Guiné recebeu a visita do Presidente da República, Craveiro Lopes, acompanhado pelo Ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues. Do extenso programa destacam-se, em Bissau, a inauguração do aeroporto, da Escola Central das Missões Católicas, do monumento a Teixeira Pinto, a visita ao CEGP e, no interior, as passagens por Bolama, Fulacunda e Catió, Bafatá, Nova Lamego, Farim, Cacheu e Teixeira Pinto. Porém, na documentação da viagem, não ficou qualquer referência a uma «Representação», subscrita por vários «oposicionistas» e redigida por José Ferreira de Lacerda, contendo uma relação de aspirações quanto ao futuro da Guiné33. Em 1 de Outubro, reuniu o novo Conselho de Governo, constituído por três vogais «natos», três vogais eleitos por sufrágio directo e por quatro vogais escolhidos pelo Governador (respectivamente, representantes dos indígenas, dos maiores contribuintes, dos corpos administrativos e da Associação Comercial, Industrial e Agrícola). Mas, para a escolha dos vogais eleitos, tinha sido apresentada uma «lista da oposição» (que não elegeu ninguém), registando-se «a existência, mais ou menos paralela, de outro grupo de nacionalistas que actuava sob a coordenação de Mário Lima Wanon»34.

27 No IV Congresso da União Nacional — convocado por Salazar, para finais de Maio de 1956, com a deliberada intenção de a mobilizar para as tarefas «políticas» de defesa do Ultramar — uma comunicação considerava que sobre a Guiné impendia «a ameaça islâmica», pois, muito embora fulas, mandigas e outros islamizados continuassem, de momento, a render «o preito da sua amizade e lealdade, revelando-se respeitadores, nada havendo a recear deles», tal comportamento poderia alterar-se em caso de instigação «por qualquer movimento vindo do exterior», tanto mais que eles mantinham intensas ligações « com os seus confrades dos vizinhos territórios estrangeiros (onde a semente subversiva começa a agitar os povos)»35. As autoridades portuguesas não iriam descurar este aviso.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 126

28 Porém, o ano de 1956 é politicamente assinalado na Guiné por outras razões. Na tarde de 6 de Março, grande agitação social: uma greve dos descarregadores africanos da «Casa Gouveia». Segundo o relato feito por Henrique Pinto Rema, tudo começou por um recontro entre seis guardas da polícia e um grupo de marítimos e estivadores amotinados e excitados, que reivindicavam aumento de salário; como a polícia recebeu ordens para não utilizar a força, «os desordeiros perceberam, agrediram o chefe e os guardas»; chamados, então, reforços policiais, foram detidos cinco amotinados. A Polícia ainda se terá sentido mais «humilhada», quando, «mal eram passadas cinco horas», o Governador Mello e Alvim foi à esquadra libertar os detidos. Aliás, sugere Pinto Rema, a agitação estava concertada e teria a ver com movimentações visando a fundação de um partido político independentista, pois, a 7 de Março, «os marinheiros das embarcações de Mário Lima, alegando igualmente aumentos de salários, recusaram-se a sair para o mar» e, para mais, no dia seguinte, «os marinheiros e manjacos da casa NOSOCO não quiseram receber os salários daquele mês e não permitiram a saída de embarcações, da Casa Gouveia, do cais do Piguigiti para o ilhéu do Rei com trabalhadores»36.

29 Tempos depois, «por via aérea e por motivo de saúde», o Governador Mello e Alvim partiu para Lisboa, tendo feito entrega do Governo ao inspector administrativo, capitão Abel de Sousa Moutinho. Um dos últimos actos oficiais foi o descerramento, na biblioteca do Museu, do retrato de Sarmento Rodrigues como fundador do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (CEGP)37. Em 13 de Setembro de 1956, assumiu o Governo o Dr. Álvaro Silva Tavares — cabo-verdiano de origem e anterior magistrado do Ministério Público e Judicial na Guiné, Moçambique, Angola e Goa — que se propunha seguir a «linha inspirada por Marcello Caetano, sob a égide de Salazar, e desenv olvida por Sarmento Rodrigues»38.

30 Setembro ficará na história da pacata Bissau por também ter desembarcado Amílcar Cabral, de passagem, para visitar a família e conversar com alguns amigos sobre «assuntos importantes». A 1 de Outubro, reuniu o Conselho de Governo. Em 22 de Outubro, na posse da nova Comissão Executiva do CEGP, presidida por Avelino Teixeira da Mota, o representante da comissão executiva cessante referiu que, quanto ao n.º 40 do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (BCGP), relativo a Outubro de 1955, se aguardava «ainda que o Engenheiro Amí1car Cabral nos envie de Angola, onde presentemente reside, um trabalho relativo ao Censo Agrícola da Província da Guiné, tirado do seu Relatório Oficial, que julgamos ser de interesse publicar».

31 Mas o relacionamento de Amílcar Cabral com a administração portuguesa ia-se rompendo, este trabalho nunca foi enviado e Amílcar Cabral será ignorado na detalhada «exposição de trabalhos e projectos» apresentada por Teixeira da Mota39.

III. O Partido Africano da Independência (PAI), o Movimento Anti-Colonialista (MAC) e o Movimento de Libertação da Guiné (MLG)

32 Segundo a versão consolidada, a 19 de Setembro de 1956, domingo à tarde, intervindo num círculo de amigos convidados para o efeito, Amílcar Cabral propôs a constituição de um partido político para alcançar a independência da Guiné e Cabo Verde e defender a união entre os povos guineense e cabo-verdiano, numa perspectiva geral de unidade africana. Seria o Partido Africano da Independência (PAI).

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 127

33 A reunião durou cerca de uma hora, foram poucos os presentes (a maioria de origem cabo-verdiana) e não há qualquer documento comprovativo. Elisée Turpin afirma que teriam sido «aprovados os Estatutos do PAI, elaborados por Amílcar», mas o testemunho de Turpin, habitualmente indicado como um dos seis fundadores, está posto em causa40.

34 As precauções de segurança e discrição e a insistência nos estudos e reuniões culturais tinham sido adquiridas por Amílcar Cabral no trabalho clandestino e de con‐ sciencialização (recorda Cabral que, acabada «a hora da brincadeira» nos encontros de amigos que promovera em Bissau, para se passar a umas «pequenas conversas», alguns deles deixaram de aparecer por entenderem — dada a «realidade da nossa terra» — que a criação do PAI era «uma doidice»).

35 Não há sequer consenso quanto ao número de «fundadores», nem quanto ao alcance efectivo da reunião: para além da intenção de formar um partido político, as principais medidas limitaram-se ao incentivo da preparação teórica pela leitura (em grupo), a uma incipiente distribuição de tarefas e à escolha de pseudónimos41.

36 Mas a fundação do PAIGC (sigla adoptada a partir de Outubro de 1960) tem de ser vista como um processo amplo e com antecedentes, onde intervieram variadas personalidades, e que só se concluirá pela afirmação pública e organizacional do PAI/PAIGC no decurso de 1960. Esta reunião de 19 de Setembro de 1956 e a intervenção de Amílcar Cabral terão sido — como decorre dos testemunhos coetâneos, incluindo os do próprio — apenas o momento do lançamento do PAIGC como ideia e organização nacionalista e, portanto, o seu essencial «momento constituinte».

37 Na sua linguagem desenvolta e tendo presente o que veio a ser a futura obra libertadora, a estratégia militar e a produção ideológica e política do PAIGC, Jean Ziegler — depois de considerar que o original grupo fundador correspondia a «um núcleo fraternal, unido por uma sensibilidade idêntica, alimentado por uma memória comum» — avança que a reunião de 19 de Setembro de 1956 teve um «carácter irrisório» (assemelhando-se a mera «assembleia constitutiva» de mais um círculo político, humanista e patriótic o), cujos debates foram «medíocres», e que os fundadores do PAI, «pequeno-burgueses mestiços ou negros, instalados no seu papel subalterno de auxiliares do colonialismo, viviam a anos-luz das preocupações quotidianas, das angústias e das humilhações sofridas pelas massas rurais»42.

38 Aparentemente, este PAI guineense era «gémeo» do partido com idêntica designação, criado na mesma altura no Senegal por vários ex-estudantes em França, e inseria-se na vaga pan-africana que agitava a África Negra. De qualquer modo, a acção inicial do PAI, na Guiné, não foi significativa, limitando-se à tentativa de recrutar simpatizantes, embora alcançasse, em Abril de 1957, o domínio da lista eleita para a direcção do único sindicato existente, o corporativo Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e Indústria, mas rapidamente desistiu dos propósitos sindicalistas 43. Remetido à clandestinidade numa «cidadezinha» colonial, a estrutura do PAI continua, ainda hoje, nebulosa e enquanto Patrick Chabal, baseado em relatos orais, adianta que o PAI «começou com um escasso número de membros, 20 a 30 em Bissau e uns poucos mais noutras cidades», Chaliand acrescenta que, após o aparecimento da PIDE, a organização do PAI acautelou-se mediante «células de três a cinco membros, garantindo uma compartimentação rigorosa»44.

39 Em 1957, a PIDE instalou-se em Bissau e começou por controlar directamente a acção de alguns «antifascistas», próximos do Partido Comunista Português ou «desterrados políticos», com destaque para a Dr.ª Sofia Pomba Guerra45.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 128

40 Em Novembro, Amílcar Cabral e Viriato da Cruz convocaram a recente «diáspora parisiense» (Mário Pinto de Andrade, Guilherme Espírito Santo e Marcelino dos Santos) para uma Reunião de consulta e estudo para o desenvolvimento da luta nas colónias portuguesas. Esta reunião a cinco durou alguns dias e realizou-se no quarto de Marcelino dos Santos, na Praça da Sorbonne, em Paris. Há sobre ela várias referências em obras de Mário de Andrade e um texto dactilografado, não assinado e datado da «Europa 1957», que enuncia a «Declaração de Princípios» e as «Resoluções» adoptadas, «por unanimidade», na referida Reunião46.

41 Os «Princípios» aprovados constam de 20 pontos — que funcionam como uma espécie de «proposições». Parte-se das constatações de que as províncias ultramarinas portuguesas de África viviam sob regime colonial (n.º 1), de que os interesses vitais dos africanos impunham uma «luta concreta», sagrada, vital e mediante a participação activa das massa populares até à eliminação completa e incondicional do colonialismo (n.ºs 2 a 7). Abordam-se, depois, algumas características específicas que condicionavam a luta contra o colonialismo português, como sejam: a quase totalidade das populações africanas não tem instrução e é analfabeta (n.º 8); a luta deve ser bem preparada e organizada e o seu desenvolvimento principal há-de ser necessariamente clandestino (n.ºs 9 a 12). Tomava-se indispensável uma organização, de carácter patriótico, que trouxesse ânimo, confiança e convicção (n.ºs 13 a 16). Além do «princípio da luta», era indispensável o «princípio da unidade» na libertação do jugo colonial e imperialista (n.ºs 17 a 19). Finalmente, a Reunião reconhecia a «Concepção, digamos, marxizante ou marxista ortodoxa da nossa formação política [...] aliás, de uma forma que se verificou em seguida estar errada»47, ou seja, a conclusão de que a classe operária constituía a classe social mais revolucionária e que caberia «ao proletariado o papel de mobilizar e organizar as massas, de dirigir a luta contra o colonialismo» (n.º 20).

42 Seguem-se as cinco «Resoluções» tomadas pela Reunião:

43 a)- favorecer a criação e consolidação de organizações patrióticas;

44 b)- criar, de imediato, na Europa, o movimento de libertação nacional das colónias port uguesas, com o objectivo de contribuir para a liquidação do colonialismo português;

45 c)- tentar participar (o que, note-se, não foi conseguido) na Conferência Afro Asiática do Cairo, em Dezembro de 1957;

46 d)- designar um Comité provisório de direcção colectiva, ao qual incumbia «começar imediatamente a execução das tarefas inerentes às soluções da presente Declaração».

47 O mais importante resultado desta Reunião foi, pois, o lançamento do designado Movimento Anti-Colonialista para a Libertação das Colónias Portuguesas, que ficou mais conhecido por Movimento Anti-Colonialista (MAC). A sua criação foi impulsionada por Viriato da Cruz, aquando da sua passagem por Lisboa (onde residiu em casa de Amílcar Cabral) com destino a Paris e o MAC vai agrupar os estudantes africanos da Casa dos Estudantes do Império (CEI), servindo para associar os elementos da chamada «geração de Cabral» (que constituíram o primeiro Directório do MAC, em Lisboa, formado por Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Macedo dos Santos, Lúcio Lara e Noémia de Sousa e que Edmundo Rocha identifica como os «Mais Velhos») com o «numeroso grupo de estudantes da "Nava Vaga" mais ligados às actividades na CEI e sem qualquer vínculo com as organizações da Oposição portuguesa»48. Apesar de ser «um grupo muito restrito e fechado»49, o MAC era composto por estudantes de todas as colónias e mantinha algumas «relações orgânicas» com a «Componente externa», ou seja, os chamados «Grupo de Paris» e «Grupo da

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 129

Alemanha» (integrados por exilados políticos), e com os núcleos nacionalistas de Bissau e Luanda.

48 Mas em Bissau havia mais contestação política e a expansão da cidade levara a que muitos «civilizados» passassem a residir no antigo bairro indígena do «Tchon di Papel». Ora, precisamente no bairro de Varela — perto do Cobom di Bandé, que correspondeu ao «berço da Luta, o local que forneceu a nata dos dirigentes»50 50 do movimento nacionalista —, em Agosto de 1958, cerca de uma dezena de «quadros», quase exclusivamente «civilizados» guineenses de origem (estatuto que os afastava da conotação cabo-verdiana), decidem formar um Movimento de Libertação da Guiné (MLG). Era um movimento nacionalista (com várias derivações posteriores) que, por um lado, se pretendia continuador da republicana «Liga Guineense» e, por outro, defendia que a Guiné se deveria tomar um Estado Federado da República Portuguesa, dotado de uma organização político- administrativa semelhante à dos Estados brasileiros (uma das constantes propostas de José Ferreira de Lacerda, o «patriarca» deste MLG). Segundo Hélio Felgas, a actividade inicial do MLG e «durante muito tempo» reduziu-se «à difusão de panfletos, comunicados e manifestos»51.

IV. Cautelas do poder português

49 Entretanto, a presença portguesa parecia firme e o futuro promissor. Em Fevereiro de 1957, criticada na ONU a recusa de reconhecer para as «províncias ultramarinas» o estatuto dos «territórios não autónomos», as autoridades guineenses promoveram manifestações de repúdio a tais críticas e de solidariedade com a política nacional. A 3 de Novembro, realizaram-se eleições legislativas de que resultou, sem surpresa ou contestação, a designação do candidato único a deputado pelo círculo da Guiné, comandante Avelino Teixeira da Mota. Mas o ano não acabou sem uma revelação: o Ministro do Ultramar, Raúl Ventura, deslocou-se a Bissau, informando o Conselho de Governo da eventual existência de petróleo e confirmando a próxima celebração de contratos de pesquisa e exploração com a Esso Exploration Guiné Inc., de que apresentou os traços gerais52.

50 Em Abril de 1958, foi comemorado, como habitualmente, o aniversário da entrada de Salazar para o Governo e, a propósito das comemorações do «28 de Maio», efectuaram-se várias inaugurações, entre as quais a ponte «General Craveiro Lopes» no Saltinho. Em Junho, realizaram-se eleições presidenciais — num ambiente de alguma tensão, pois excitaram-se «os ânimos de alguns», indo até ao «delírio da paixão política» —,embora a campanha do candidato da União Nacional se tenha limitado a duas sessões de propaganda, porque «dela não necessitava». Os resultados proclamados pelo presidente da mesa eleitoral e dirigente do partido único «União Nacional», António Carreira, mas contestados pela «Oposição», foram os seguintes: Américo Thomaz, 1 624 votos; , 430 votos53.

51 Por essa altura, sem alarde e para trabalhos de campo, chegou a «Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África», chefiada por Silva Cunha e integrada pelo 1.º assistente José Maria Gaspar e pelo 2.º assistente Fernão Vicente. Fora criada por portaria de Fevereiro de 1957, no âmbito do «Centro de Estudos Políticos e Sociais» (dirigido por Adriano Moreira), organismo dependente da Junta de Investigações do Ultramar e adstrito ao Instituto Superior de Estudos Ultramarinos. Segundo o (prévio) relatório confidencial elaborado por Jorge Dias, o caso da Guiné não era «preocupante», mas haveria

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 130

que tomar «medidas especiais», dada a «reduzida influência da cultura e da língua portuguesa junto dos indígenas e a resistência à penetração da religião católica»54. A referida «Missão» fizera a primeira campanha, em 1956 e 1957, em Angola, e adoptaria modelo idêntico nesta campanha da Guiné, cuja urgência derivava da situação política nas colónias francesas limítrofes, «Com vista à referenciação de eventuais movimentos de reacção que pudessem servir de canal de penetração no nosso território de ideias semelhantes às que agitam as populações» dessas colónias. A acção da «Missão» abrangeu todo o território, tendo examinado os arquivos dos Serviços da Administração Civil, da PIDE, da PSP, do Tribunal de Comarca e das administrações de circunscrição e concelho e interrogado muita gente, desde autoridades a cidadãos e indígenas. O Relatório consta de cerca de 100 páginas e as «Conclusões» mais relevantes são:

52 a) perante a conjuntura social interna, não se afigurava um perigo imediato de «efeitos de reacção anti-portuguesa», mas ele podia «surgir, de um momento, para o outro, em resultados de influências externas», sendo «de excepcional interesse o que se passa na nova República da Guiné» ;

53 b) havia o risco de as associações mutualistas tradicionais serem aproveitadas para acção política, pelo que era de acompanhar a evolução «dos chamados clubs, pois poderão ser aproveitados para veículos de penetração de movimentos subversivos que sob eles se acobertam»;

54 c) devia ser revista a política cultural e de ensino, pois a crescente islamização das populações facilitava a expansão de ideias anti-portuguesas;

55 d) apesar de reinar a paz, havia que «estar atento», pois os fenómenos sociais evoluem rapidamente e os «indígenas sabem tudo o que se passa à roda. Sabem que no chão francês os brancos estão a ir embora e que os pretos agora é que mandam»55.

56 Nas reuniões de Junho e Julho de 1959 do «Conselho Orientador» do já referido Centro de Estudos Políticos e Sociais foi discutido e aprovado, como fora determinado por despacho do Ministro do Ultramar, um «Relatório» a propor «medidas imediatas para resolver os problemas suscitados por aqueles movimentos», que se baseou nos relatórios da «Missão» e num documento elaborado por Silva Cunha. Tal relatório não se limitou «ao escopo restrito dos movimentos associativos», começando até pelos «problemas políticos de fundo». Os aspectos específicos da Guiné não são autonomizados, mas, na reunião de 5 de Julho, o Dr. Henrique Martins de Carvalho mostrou-se «bastante impressionado» com o que se passava na Guiné «pois essa província está dominada pela CUF e aí existe um sentimento de revolta contra essa companhia», em particular contra os seus «dirigentes locais»56.

57 Na mesma altura, o governador Álvaro Silva Tavares foi empossado como Secretário de Estado da Administração Ultramarina, a 14 de Julho de 1958. Como novo Governador da Guiné o Conselho de Ministros, de 7 de Outubro de 1958, nomeou o capitão-tenente António Augusto Peixoto Correia que, entre 1945 e 1949, fora, sucessivamente, chefe de gabinete do Governador Sarmento Rodrigues, presidente da Câmara Municipal de Bissau, presidente do Conselho dos Desportos, capitão dos Portos, vice-presidente da Comissão Orientadora da Radiodifusão e membro residente do CEGP. Chegou a Bissau em 29 de Dezembro. No discurso de posse como Governador da Guiné, Peixoto Correia, depois de se considerar honrado por «prosseguir a obra notável de fomento e valorização» iniciada por Sarmento Rodrigues, invocou o «especial cuidado» a dispensar à «população nativa», acelerando «a sua integração total na nossa comunidade» e reforçando «os laços de fidelidade à Pátria, evidencia dos pelos indígenas, elemento primordial a opor a qualquer acção dissolvente que porventura surja»57.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 131

58 Segundo Armando Castro que, em meados de 1958, visitara a Guiné preparando um estudo destinado ao Partido Comunista Português, desenvolvia-se, entre os guinéus, uma «resistência surda» à exploração e algumas «lutas de massas», como a de Maio de 1956; crescia a influência islâmica e a luta elevava-se «mesmo ao plano político, como é demonstrado pela apresentação de uma lista de candidatos ao Conselho de Governo». Por seu lado, apesar da vaga anticolonialista, «a política das autoridades portuguesas não sofreu qualquer transformação» e até tinha intensificado «a vigilância e a repressão policial», como comprovava a recente instalação da PIDE58. Ou seja: não há notícia de qualquer organização política anticolonial e a situação era de «aparente calma», num quadro geral de relativo atraso do «despertar da consciência nacional» e de vasta ofensiva ideológica e propagandística do regime vigente59.

V. O massacre do Pindjiguiti

59 A 11 de Dezembro de 1958, aterrara uma delegação militar, chefiada pelo Subsecretário de Estado do Exército, Francisco da Costa Gomes, que percorreu várias localidades numa missão «de carácter militar, mas relacionada com diversos aspectos económicos locais, e com a localização de aquartelamentos militares no interior da Província»60. Tratava-se de aplicar na Guiné a alteração da organização militar do Ultramar, decidida no início de 1958, reorganizando o Exército e a defesa em vista da eventual e provável «guerra subversiva», e dando toda a prioridade à Guiné pois os órgãos superiores da Defesa Nacional tinham concluído que poderiam «ter de fazer face a uma agressão de forças organizadas pela nova república» da Guiné-Conakry61. Costa Gomes voltou a passar por Bissau, em princípios de Julho, «a fim de estudar assuntos relacionados com actividades do Comando Militar»62 e não deixou de prevenir o Governador Peixoto Correia sobre as informações de que «estava em mente, em preparação, uma revolta dos homens que faziam o serviço do porto, cargas e descargas, que eram manjacos» e que o Governador deveria satisfazer as «reivindicações», pois o tratamento dos trabalhadores era desumano e havia que tomar providências63.

60 E, de facto, em Julho de 1959, os marinheiros de Bissau desencadearam novo movimento grevista. A organização da greve, alargada a contra-mestres, marinheiros e cozinheiros, pertenceu aos «capitães» dos barcos e partiu de uma reivindicação de aumentos de salários (invocando a dureza das condições de trabalho e o custo da alimentação — arroz, azeite de palma e «casseque», ou seja, peixe-seco), recusado esse ano pela empresa «Casa Gouveia». As embarcações das nove firmas armadoras eram «lanchas», «motoras» e «barreiros» ou «botes» a remos e a grande maioria dos marítimos, de etnia manjaca, tinha de fazer também o trabalho de estiva. Os salários eram concertados anualmente pelas casas comerciais que dispunham de lanchas para os serviços de cabotagem.

61 A preparação das reivindicações começara nos encontros, sob os coqueiros do cais, iniciados a 25 de Julho, que estabeleceram o abandono do trabalho com devolução dos barcos, caso não fosse concedido um imediato aumento dos vencimentos. O fracasso da reunião, na manhã de 3 de Agosto, entre António Carreira (à data, gerente da «Casa Gouveia») e os representantes dos marinheiros despoletou a crise. Os «Capitães» convocaram uma concentração para as três horas da tarde no cais do porto, a fim de devolverem os barcos e recusarem terminantemente retomar o trabalho enquanto os salários não fossem aumentados. Interveio então o patrão-mor da Capitania que convocou os marinheiros para o edifício das Oficinas Gerais, mas, como não os fez mudar de posição, chamou novamente António Carreira. Este, às três horas, «veio à esquadra buscar os chefes

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 132

Lima, Rocha e Conceição»64. Cerca das quatro da tarde, o chefe Conceição «dirigiu-se ao porto e foi dar ordens aos marinheiros para continuarem a trabalhar e como eles nem sequer se mexeram dali, começou a empurrá-los e até chegou a dar uma bofetada a um deles»65; os marítimos ripostaram violentamente, brandindo os remos, paus, barras de ferro e arpões com que se haviam armado. Ouviram se os primeiros tiros (para o ar), houve luta pelo domínio das armas e várias agressões, começando a correr sangue. Imediatamente foram chamados reforços policiais para a zona do cais, que assumiram posição de combate (diz o testemunho de um dos «guardas» que «o tenente Simão foi logo à esquadra onde organizou o pessoal para o Pindjiguiti porque estava a haver guerra com os marinheiros»). Generalizou-se a insurreição, foi dada ordem de «fogo!» pelo comandante militar, tenente-coronel Filipe Rodrigues (para outros, a ordem veio do tenente Simão). Foram cinco minutos de tiroteio e lançamento de granadas, com perseguição aos grevistas que tentavam fugir na direcção do cais e abrir os portões, entretanto encerrados (para impedir o acesso às instalações da «Casa Gouveia»).

62 A polícia, prossegue outro relato (elaborado a partir dos dados da «Missão católica»), « perde o autodomínio e começa a atirar a matar em força, sem quaisquer considerações. No fim, há uns 13 a 15 mortos espalhados no cais do Pindjiguiti; mais cadáveres de marítimos e estivadores são arrastados pelas águas do Geba, não se sabe quantos; alguns moribundos ou gravemente feridos vão falecer no hospital [...]. Muitos dos amotinados conseguiram escapar para o Senegal e República da Guiné-Conakry nos próprios barcos em que trabalhavam»66. Segundo o relato do «Comando da Defesa Marítima da Guiné» (CDMG), mesmo depois das primeiras descargas e mortes, a repressão continuou «atirando polícias e militares sobre manifestantes fugitivos, uns dentro de água, acocorados outros atrás de embarcações, outros ainda correndo pelo lodo»; então, o comandante militar, para «impedir a fuga destes últimos» fez «fogo comprido, à maneira de "barragem" para que eles não a pudessem atravessar e retrocedessem» e o substituto do Capitão dos Portos «mandou sair uma lancha-motor da capitania para que impedisse a fuga de algumas canoas», mas sem êxito67.

63 Transportados cadáveres e feridos, a repressão foi violenta, com prisões e interrogatórios no Quartel-General. A área do cais esteve isolada e sujeita a vigilância policial. A PIDE desentendeu-se com a administração e procurou descortinar «cabecilhas políticos» por detrás dos analfabetos marítimos indígenas (e diligenciou para o envio dos presos com destino ao Tarrafal, em Cabo Verde, ordem essa que acabaria por ser revogada68). Foi instaurado um inquérito administrativo (a cargo do Inspector Manuel Bento Gonçalves Ferreira) aos ditos «incidentes de 3 de Agosto» — que, em conclusão, apurou nove mortos e catorze feridos (em internamento hospitalar), a que acresciam «alguns presos à ordem da PIDE, desconhecendo, no entanto, o seu número»69. Para o citado relatório do CMDG o balanço do movimento registava: 1 chefe de polícia ferido; 9 marítimos manifestantes mortos; 15 marítimos manifestantes feridos de certa gravidade e hospitalizados; 23 marítimos presos 70.

64 Na manhã seguinte, terça-feira, 4 de Agosto, o Administrador do concelho de Bissau, José Eduardo Silva Marques, contactou um dos capitães, o mestre Ocante Benunte, que lhe apresentou as cinco condições dos grevistas para retomarem o trabalho71: aumento dos salários; afastamento de António Carreira, por, além das suas responsabilidades pelas mortes nos incidentes do dia anterior, ser useiro em insultos e descontos arbitrários nos vencimentos, e, ainda, por não ter cumprido a ordem de aumento de salários que a CUF, de Lisboa, lhe transmitira oportunamente; afastamento do cais do patrão-mor da

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 133

Capitania, pelo uso contínuo de frases insultuosas; afastamento do chamado «patrão-mor da Ultramarina»; libertação dos marítimos presos.

65 As negociações couberam ao citado Comando da Defesa Marítima da Guiné (CDMG) respeitando as seguintes directivas fixadas pelo Governador Peixoto Correia: «1º — Que a questão dos salários só poderia tratar-se de forma disciplinada, por intermédio da Capitania, e a intervenção das casas armadoras. 2°— Que a libertação dos presos não se faria de maneira alguma sem que fossem apuradas responsabilidades; então castigar-se-iam os culpados e pôr-se-iam em liberdade os que não fos sem responsáveis. 3°— Que nenhuma das diligências se iniciaria sem que retomassem o trabalho»72.

66 As conversações terão sido, por um lado, facilitadas «com a presença e a ajuda muito compreensiva» do régulo (manjaco) de Cantchungo, Baticã Ferreira, mas, por outro lado, «tornaram-se delicadas pelo aspecto de comício em que por vezes decorriam». As auto‐ ridades procuravam, sobretudo, «que os mesmos homens voltassem ao trabalho por não haver a mínima possibilidade da sua substituição imediata, nem mesmo dentro de certo tempo, e não podia de forma alguma atender-se às suas reivindicações como sintoma de fraqueza ou submissão». Ora, as negociações, iniciadas na sexta-feira, 7 de Agosto, continuaram no sábado, mas, no domingo «a propaganda da rádio Conakry, referindo-se aos acontecimentos e imprimindo-lhes carácter político, prejudicou ligeiramente o [seu] andamento». Então, na terça-feira seguinte, 11 de Agosto, considerando que «havia já muitos adeptos de retomarem o trabalho», as autoridades apresentaram um ultimato, pois que «se o assunto não fosse resolvido imediatamente o caso seria entregue a outras entidades que o resolveriam pela força; o ultimato deve ter quebrado as últimas resistências e nesse dia mesmo começou a apresentar-se em massa todo o pessoal». Assim sendo, apenas houve que «1azer novas matrículas, acertar tripulações [...], conseguindo- se pôr em movimento, ordeira e disciplinadamente, 32 lanchas. No dia seguinte, quarta- feira, as restantes embarcações entraram todas em funcionamento, podendo considerar- se o caso resolvido no que tinha de grave, no momento»73.

67 Recentemente surgiu um depoimento importante, da autoria de Mário Dias, mesmo que o seu testemunho presencial se limite à parte final dos acontecimentos74.

68 Conta que, no regresso de uma guarda de honra prestada no aeroporto, a coluna em que se integrava foi desviada para o cais, onde viu uma «considerável multidão», fecha dos os portões do Pindjiguiti e cerca de uma dezena de seguranças da PSP; já então «tinham terminado os tiros e encontravam-se apenas a conter a multidão e a evitar que os marinheiros e trabalhadores do cais de lá saíssem em direcção à Casa Gouveia». A missão da coluna de que Mário Dias fazia parte visava «cercar os terrenos anexos», impedindo qualquer passagem; aí se mantiveram «aproximadamente 30 minutos, até os ânimos se acalmarem (era o que se pretendia)». Depois, Mário Dias retira significativas conclusões «destes tristes acontecimentos»:

69 a) a ocorrência «foi inteiramente da responsabilidade dos marinheiros e trabalhadores do cais pertencentes à Casa Gouveia, por motivos puramente laborais», enquanto o então cha‐ mado PAI «não esteve por detrás da ocorrência»;

70 b) não se tratou de uma mera greve, pois «rapidamente se transformou numa revolta violenta»;

71 c) apesar dos 16 mortos confirmados, parece-lhe «um pouco exagerado» qualificar a ocorrência de «massacre», pois este termo refere-se a «chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada».

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 134

72 Este texto originou vários comentários, incluindo uma abrangente análise de Leopoldo Amado. Também ele repete que o PAI «não teve, pelo menos directamente, uma acção ou influência decisivas nas acções que viriam a desembocar em Pindjiguiti», ao contrário do MLG, pois vários «activistas» deste último «tinham-se há muito empenhado em acções de discreta mobilização e consciencialização política dos trabalhadores portuários em geral e dos marinheiros e estivadores do cais de Pindjiguiti em particular». Considerando a envolvência política dos acontecimentos, Leopoldo Amado avança que «a reivindicação a posteriori da paternidade de Pindjiguiti por parte do PAI(GC) só se pode compreender na medida em que o MLG como o PAIGC partilhavam indistintamente o mesmo espaço político», havendo mesmo vários casos de dupla filiação ou simpatia75. De facto, numa entrevista que concedeu em 1991, Rafael Barbosa (na época «Zain Lopes», membro do MLG) reconheceu ter sido «um dos responsáveis da questão do Pindjiguiti», pois controlara António Nola que fora «quem organizou a greve»76.

73 O investigador alemão, da Universidade de Friburgo, Alexander Keese teve oportunidade de consultar documentação do Ministério da Defesa Nacional e do conselheiro diplomático francês em Dacar, donde concluiu que o massacre de Pindjiguiti era «vivamente criticado, tanto pelos administradores locais, como pelos responsáveis das for‐ ças armadas»77.

74 Os acontecimentos tiveram repercussão internacional, através da difusão de notícias, a partir de Bissau. Serão aproveitados pelos movimentos de libertação nacional das colónias portuguesas, então em fase de «explosão organizacional». Mas a acção decisiva iria ser empreendida por Amílcar Cabral.

75 Logo a 7 de Agosto, em carta a Ruth Lara, escrita em Kano (Nigéria), Amílcar Cabral comunicava-lhe andar armado em «caixeiro-viajante», tencionando ir «ver a terra» e «regressar a Lisboa em Setembro», e informava-a, de modo telegráfico, que na Guiné houvera «há dias 7 mortos e 5 feridos»78. Envia, então, um relatório aos seus «[b]ons amigos», referindo-se à «etapa nova e decisiva» que impunha o regresso a África, «onde a nossa ausência deixa uma lacuna prejudicial à luta», e que continuava «a tentar cumprir o programa» que traçara (ou seja, a implantação de um decidido movimento anticolonialista, numa «marcha» que «não pode parar»), reafirmando ir visitar Bissau e «tentar ir a Conakry»79. Por seu lado, Lúcio Lara encarregou-se de denunciar inter‐ nacionalmente os acontecimentos da Guiné, que «o Governo português, receando a opi‐ nião internacional, esconde», nos quais houvera «muitos mortos e feridos (o jornal francês Le Monde, menciona 12 mortos)»80.

76 Em seguida, por carta de 24 de Setembro, dirigida aos seus «[c]aros amigos» (no caso, endereçada a Lúcio Lara), Amílcar Cabral resume a sua ida a Bissau. Por um lado, encontrara provas da «vontade espontânea» e do «desejo consciente» de lutar e, perante o aparecimento de outras organizações nacionalistas, deveria ser «objectivo fundamental do programa traçado, conseguir uma união sólida, a formação de uma só frente para lutar». Por outro lado, quanto à «chacina feita pela polícia e civis portugueses», afinal o balanço era: «24 mortos e 35 feridos, alguns muito graves. Chegaram mesmo a matar alguns africanos dentro da água [...]»; tratou-se de crime «do mais hediondo», que teria de ser vingado, mas os acontecimentos eram também «uma lição e importa tirar daí as mai‐ ores vantagens para a luta»81.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 135

VI. O PAIGC, movimento de luta de libertação nacional

77 Com efeito, durante a sua estada de uma semana em Bissau, Amílcar Cabral realizara «a mais decisiva reunião» da história do PAIGC. Aliás, há mesmo quem, pura e simplesmente, considere ter sido «então que foi fundado o PAI, mais tarde PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) e não em 1956 como se tem insistentemente defendido no discurso oficial»82. Parece-nos uma afirmação precipitada mas, em qual quer caso, foi na sequência desta reunião de 19 de Setembro de 1959 que o movimento nacionalista adoptou várias medidas que se revelarão estratégicas:

78 a) evitar manifestações urbanas e deslocar a acção para o campo, mobilizando e organizando os camponeses;

79 b) confirmada a natureza e violência do colonialismo português, preparar-se para o previsível recurso à luta armada;

80 c) transferir parte da direcção para o exterior, indo Amílcar Cabral instalar-se na República da Guiné (Conakry);

81 d) acordo entre Amílcar Cabral («Abel Djassi») e Rafael Barbosa («Zain Lopes») quanto à «Carta da Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde» (FLGCV), ou seja, a «frente orgânica de unidade», que permitiria a integração dos «principais responsáveis» do MLG nos « organismos superiores do PAI».

82 Três documentos testemunham esta importante reunião e permitem algumas ilações quanto à génese da luta de libertação. O primeiro é um «relatório confidencial» — obviamente da autoria de Amílcar Cabral e redigido, segundo acrescenta Basil Davidson, «imediatamente depois» da reunião «alargada» de 19 de Setembro de 1959 — que, além das respectivas conclusões (sumariadas supra), invoca a «experiência de três anos de luta», embora não cite no texto a sigla PAI, mas sim «O Partido», sem mais83. O segundo é a referida «Carta da Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde», expressamente datada de «Bissau, 19 de Setembro de 1959» — apesar de a fixação do seu texto ser, por certo, posterior, até porque se encontra assinada apenas por Abel Djassi (Amílcar Cabral) — e na qual se invoca o PAI enquanto «organização política autónoma criada por guineenses e cabo- verdianos na Guiné dita Portuguesa»84. O terceiro, é uma expressiva carta enviada de Conakry, em 16 de Junho de 1960, por A. Djassi aos seus camaradas do PAI e da FLGC, onde Amílcar Cabral se refere ao «encontro do ano passado », ou seja, a «Célebre reunião com Zain», menciona a actividade política que, entre tanto, desenvolveu e, no último parágrafo, recorda ser ele o «irmão, o vosso camarada de sempre, aquele que criou o PAI, o nosso Partido autónomo», sublinhando que é «aquele que ama a agricultura», o mesmo «que fez uma reunião com o Zain, o ano passado para criar a Frente de Libertação» e, antes de concluir com incitamentos e pedidos de notícias, insiste na sua qualidade de «Secretário-Geral do nosso PAI»85.

83 Mas o PAI só vai afirmar-se publicamente aquando das intervenções (e respectivos trabalhos preparatórios) dos representantes do Movimento Anti-Colonialista (MAC) na II Conferência Pan-Africana, realizada em Tunes, em fins de Janeiro de 1960. Assim acontece, além do mais, no (adiado) texto definitivo do Manifesto do MAC onde o PAI aparece, ao lado do MPLA, como um dos fundadores do MAC, de que ambos constituíam « a estrutura basilar»; depois, nos documentos apresentados ou aprovados em Tunes e, sobretudo, a propósito da substituição do MAC pela Frente Revolucionária Africana para a

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 136

Independência Nacional (FRAIN)86. De resto, entre Londres e Conakry, de Pequim à sede da ONU, este ano de 1960 será marcado pela denúncia internacional do colonialismo português e pela imposição do PAI. Depois, em Outubro de 1960, na «Conferência de Quadros das Organizações Nacionalistas», realizada em Dacar, o PAI altera definitivamente a sigla para PAIGC (sobretudo por duas razões: por um lado, para reafirmar a política de Unidade Guiné-Cabo Verde; por outro, para se demarcar do PAI senegalês, cujo dirigente Majhemout Diop fora detido, acusado de «esquerdismo») e prepara a luta total pela independência87.

84 No citado Manifesto do MAC, a propósito da reacção portuguesa ao nacionalismo africano, sustentava-se que, a partir de 1956, «o colonialismo português desencadeou uma violenta repressão contra os Patriotas africanos e contra os movimentos e organizações nacionalistas ». Referiam-se vários exemplos, como o «massacre de 50 africanos indefesos», ocorrido em Bissau, em Agosto de 1959. Era a primeira vez que se contava tal número de vítimas.

85 As reuniões, documentos e deliberações adoptadas em Tunes, em Janeiro de 1960, originaram «uma transformação qualitativa, uma verdadeira mutação»88 nos movimentos nacionalistas angolano e guineense. Mais ainda: delimitaram algumas efemérides quer relativas à fundação do MPLA e do PAIGC quer quanto ao número de cinquenta vítimas nos acontecimentos de 3 de Agosto de 1959, no cais do Pindjiguiti (número esse que, apesar de não comprovado, se generalizou, embora não se distinga entre mortos, feridos e desaparecidos).

86 O massacre do Pindjiguiti converteu-se no símbolo da libertação da Guiné-Bissau — ou seja, «o dia da nossa pátria africana» — já que, no contexto africano daquela época, foi promovido pelo PAIGC à «expressão corajosa» da luta contra o domínio colonial, revelando- se, antes de mais, como «primeira manifestação vigorosa da nossa consciência nacional, embora embrionária»89. O «3 de Agosto» passou mesmo a ser o dia da solidariedade internacional com os povos das colónias portuguesas, nos termos da primeira resolução aprovada contra o colonialismo português90, e o dia da proclamação da acção directa, na Guiné, em 1961, ou seja, o «dia da passagem da nossa revolução nacional da fase da luta política à da insurreição nacional, à acção directa contra as forças colonialistas»91. Ao que apurámos, é no texto desta «Proclamação...» que, pela primeira vez, um documento do PAI (ou texto de Amílcar Cabral) expressamente refere o total, quanto ao massacre «em Bissau, de 50 trabalhadores africanos em greve», pois que os outros documentos coetâneos ainda se referiam, genericamente, ao massacre de «dezenas de trabalha dores guineenses em greve»92. Conclui-se, em suma, que a perspectiva da independência política só surge, na Guiné-Bissau, a partir de meados de cinquenta e que, ao contrário de todas as precauções e previsões das autoridades e investigadores portugueses, a subversão não veio do exterior da Guiné, nem foi desencadeada por assodações influenciados pelo Islão. Começou em Bissau, liderada por uma elite política urbana e crioula em busca de uma organização independentista.

87 A década de 1950 fora de criação, divergências estratégicas e tácticas e, ainda, de esforços para unificação das correntes nacionalistas. No período subsequente, após as resoluções sobre a descolonização aprovadas pela ONU em Dezembro de 1960, os movimentos nacionalistas privilegiarão a defesa da nova legalidade internacional e os factores externos tomam-se as determinantes fundamentais da aspiração à independência. Esta nova linha predominará, na Guiné-Bissau, até aos princípios de 1963, e corresponde ao período em que proliferam, no seio da emigração — sobretudo em Dacar, mas também em Conakry — organizações nacionalistas guineenses e caboverdianas, podendo distinguir-se, mais ou menos, quinze93.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 137

88 Politicamente, o massacre do Pindjiguiti marcou a passagem da agitação nacionalista para a luta de libertação nacional. Esta convergirá num movimento nacionalista, o Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC), que prosseguia um programa de «Unidade e Luta» — unidade (interna) do povo da Guiné e unidade (externa) com Cabo Verde — e de ampla luta armada, desencadeada em 23 de Janeiro de 1963, segundo uma estratégia de guerra de guerrilha e de «cerco das cidades pelos campos». O papel desempenhado por Amílcar Cabral na organização desta passagem da luta anticolonial à luta armada de libertação nacional foi, como resume Jean Ziegler, «Único, essencial, determinante»94. Aquele movimento de libertação nacional tomar-se-á, com o tempo, num «proto-Estado» e será internacionalmente reconhecido como representante único e legítimo do povo da Guiné e de Cabo Verde. E mais ainda: também ao contrário de todas as intenções portuguesas, a Guiné não foi uma «colónia modelo», antes acabou, sim, por definir o modelo da descolonização portuguesa e ser o paradigma da formação dos novos Estados nos PALOP.

89 O PAIGC ainda sobrevive como sigla. Tudo aquilo por que lutou e chegou a alcançar — libertação nacional, paz, progresso, independência, melhoria das condições de vida, unidade Guiné-Cabo Verde, um Estado, uma Constituição — falhou, está em ruínas, desapareceu. Se a libertação viera do campo, Bissau, a cidade, tudo devorou.

NOTAS

1. Cfr. Marcello CAETANO, 1977, Minhas Memórias de Salazar, Lisboa, Verbo, p. 182. 2. Ver, sobretudo, José da Silva HORTA & Eduardo da COSTA DIAS, 2005, «História da Guiné Bissau» in Fernando Cristóvão (dir. e coord.), Dicionário Temático da Lusofonia, Lisboa, Texto Editores, pp. 480/481; «Sarmento Rodrigues (Manuel Maria)», in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. XXVII, pp. 754/755; e Comandante SARMENTO RODRIGUES, 1952, No Governo da Guiné, 2.ª edição, Lisboa, Agência Geral do Ultramar.

3. António A. Peixoto CORREIA, 1980, «Notas sobre a acção do Vire-Almirante Sarmento Rodrigues na Marinha e na Guiné», in Revista Militar, Vol. 32, p. 25. Sobre Peixoto Correia, ver infra.

4. Henrique da Silva HORTA, 1999, «O meu depoimento», in AAVV, Almirante Sarmento Rodrigues (1899-1979) — Testemunhos e Inéditos no Centenário do seu Nascimento, Academia da Marinha/Câmara Municipal de Freixo de Espada-à-Cinta, pp. 146 e segs. Silva Horta, foi, em 1950, Capitão dos Portos da Guiné e, posteriormente, Presidente da Câmara de Bissau. 5. Carlos CARDOSO, s.d., A formação da elite política guineense, Centro de Estudos Africanos (CEA/ ISCTE), «Occasional Papers Series», p. 16, e, também, José da Silva HORTA & Eduardo COSTA DIAS, 2005. 6. Comandante SARMENTO RODRIGUES, 1952, p. 159. 7. Rosemary E. GALLI, 1994, «A ausência de capitalismo agrário na Guiné-Bissau durante o regime do Estado Novo», in Soronda — Revista de Estudos Guineenses, n.º 7, pp. 124/127. 8. Cfr. Diploma dos Cidadãos: relato da sessão do Conselho de Governo da colónia da Guiné, de 20 de Setembro de 1946, e Comentários publicados no Boletim da Agência Geral das Colónias, n.º 268, de Outubro

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 138

de 1947, Bissau, 1947, p. 10. Também, da época, SARMENTO RODRIGUES, 1952, pp.123/131; Honório BARBOSA, 1947, «Os indígenas da Guiné perante a lei por tuguesa», in Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (BCGPI, n.º 6, pp. 343 e segs.; e Álvaro Silva TAVARES, 1947, «Do Indigenato à cidadania: o Diploma Legislativo n.º 1 346, de 7 de Outubro de 1946», in BCGP, n.º 8, pp. 853 e segs. 9. António CARREIRA, 1959, «A população civilizada da Guiné Portuguesa em 1950», in BCGP, n.º 56, pp. 549 e segs. 10. Álvaro da SILVA TAVARES in Jaime NOGUEIRA PINTO (org.), 1993, Salazar visto pelos seus próximos (1946-1958), Venda Nova, Bertrand Editora, p. 196. Silva Tavares será, além do mais, Governador da Guiné, entre 1956 e 1958. 11. Discurso do Ministro Teófilo Duarte apud A. RODRIGUES & R MOITA, 1949, «Crónica da Colónia — Nomeação e posse do novo Governador da Guiné, Capitão de Engenharia Raimundo António Rodrigues Serrão», in BCGP, vol. VI, n.º 16, p. 746. 12. Discurso do Governador Raimundo Serrão, ibidem, p. 748. 13. Franco NOGUEIRA, 1980, Salazar — Volume IV — O Ataque (1945-1958), Coimbra, Atlântida, pp. 190-191. 14. Cfr. P. Karibe MENDY, 1994, Colonialismo português em África: a tradição de resistência na Guiné- Bissau (1879-1959), Bissau, INEP, pp. 328 e segs., e 1995-1999, «A perturbação da Pax Lusitana: resistência passiva na Guiné "Portuguesa" duran te os primeiros anos do Estado Novo», in Revista Internacional de Estudos Africanos, n.ºs 18-22, pp. 192-193. 15. Philip J. HAVIK, 1995-1999, «Mundasson i Kambansa: espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994)», in loc. cit., p. 118; e, também, Joshua B. FORREST, 2003, Lineages of State Fragility: Rural Civil Society in Guinea Bissau, Athens, Ohio University Press, pp. 127 e segs. 16. Ver, em resumo, Leopoldo AMADO, «Da embriologia nacionalista à guerra de libertação na Guiné-Bissau», apud http://www.didinho.org/daembriologianacionalista.htm. 17. Cfr. Joaquim A. de OLIVEIRA & Joaquim A. AREAL, 1952, «Crónica da Província», in BCGP, Vol. VII, n.º 28, pp. 846 e segs. 18. Carta de Raimundo Serrão, gabinete do Governador, datada de Bissau, 15 de Outubro de 1952, in Arquivo Mário Soares, «Espólio Sarmento Rodrigues — Correspondência», Pasta n.º 4290.01, Imagem 50. 19. Era esta, desde a reforma dos nomes geográficos ordenada em 1948, a nova ortografia do acanhado «cais das lan chas», local onde terminava a antiga muralha da cidade, junto de um poço recentemente tapado que abastecia os habitantes e fora bravamente disputado pelos Papéis durante as guerras com a «praça» — poço esse que está na ori gem do dito local bebeu a água do Pindjiguiti, no sentido de ter ficado «amarrado à Guiné» (Cfr. A. TEIXEIRA DA MOTA, 1954, Guiné Portuguesa, vol. II, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, p. 65). Aqui ocorreu, em 3 de Agosto de 1959, o «Massacre do Pindjiguiti» (por vezes usa-se ainda, confundindo as ortografias tradicional e da referida reforma de 1948, o termo «Pidjiguiti»). 20. Cfr. Joaquim A. de OLIVEIRA & Joaquim A. AREAL, 1953, «Cróruca da Província — Visita de Sua Excelência o Subsecretário de Estado do Ultramar, Prof. Doutor Raúl Jorge Rodrigues Ventura», in BCGP, Vol. VIII, n.º 29, pp. 525 e segs. 21. Cfr. Joaquim A. de OLIVEIRA & Joaquim A. AREAL, 1953, «Crónica da Província — Posse do Encarregado do Governo [e] embarque do Governador Raimundo Serrão», in loc. cit., pp. 570 e segs. 22. Cfr. Gilberto FREYRE, s.d., Aventura e Rotina — Sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de carácter e acção, 2.ª ed., Lisboa, Livros do Brasil, pp. 420/421. Mello e Alvim foi nomeado Governador da Guiné por decreto de 31 de Julho de 1953, publicado no Diário do Governo, II Série, n.º 233, de 6 de Outubro de 1953.

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 139

23. Cfr. Joaquim A. de OLIVEIRA & Joaquim A. AREAL, 1954, «Crónica da Província», in BCGP, vol. IX, n.º 33, pp. 207 e segs., e (Álbum), 1954, Guiné: início de um governo — 1954, Bolama, Imprensa Nacional da Guiné. 24. Carta de Diogo Mello e Alvim, Governador da Guiné, a Sarmento Rodrigues, Ministro do Ultramar, datada de 23/10/1954, in Arquivo Mário Soares, «Espólio Sarmento Rodrigues — Correspondência», Pasta n.º 4296.002, Imagem 7. 25. A. TEIXEIRA DA MOTA, 1954, pp. 47-48. 26. Cfr. BCGP, vol. IX, n.º 34, Abril de 1954, pp. 207 e segs. O referido «Boletim Informativo» foi criado em 1953; foram publicados quatro números (o n.º 4/5 é duplo), inseridos no jornal Ecos da Guiné (de Bolama), que estão integralmen te reproduzidos apud Estudos Agrários de Amílcar Cabral, Lisboa/Bissau, IICT e INEP, 1988, pp. 181 e segs. 27. Nuno de Sotto-Mayor Quaresma Mendes FERRÃO, 1997, O Pensamento Colonial de Sarmento Rodrigues enquanto Ministro do Ultramar: 1950-1955, (Dissertação de mestrado em História Contemporânea), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, p. 113. 28. Quanto a este período, há arquivos por consultar. Quanto ao «Arquivo da PIDE/DGS» e ao «Arquivo António Salazar» ver, entretanto, Aristides PEREIRA, 2002, Guiné-Bissau e Cabo Verde — Uma luta, um partido, dois países, Lisboa, Editorial Notícias, pp. 82-84; e Leopoldo AMADO, «Da embriologia nacionalista..», cit., e, ainda, «Simbólica de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné- Bissau», apud http://guineidade.blogs.sapo/pt/arquivo/1019191.html 29. Luís Fernando Dias CORREIA DA CUNHA, 1968, «Alguns Aspectos da Subversão na Província Portuguesa da Guiné», in Ultramar, Lisboa, n.º 32, vol. VIII, p. 135, que, aliás, designa o MING por M.I.G. 30. Assim, Jean METTAS, 1984, La Guinée Portugaise au XX siècle, Paris, Académie des Sciences d'Outre-Mer, p. 99 (citando Amílcar Cabral, que entrevistou a propósito). 31. O. IGNÁTIEV, 1984, Amílcar Cabral, Moscovo, Edições Progresso, p. 81. 32. Sobre o episódio (que se tomou lendário), ver Luís CABRAL, 1984, Crónica da Libertação, Lisboa, Edições O Jornal, pp. 32/34. Amílcar Cabral voltará a Bissau, para estas curtas estadias, em 1956, 1958 e 1959. 33. Sobre a visita, Rodrigues MATIAS (coord.), 1956, Diário da viagem presidencial às províncias ultramarina da Guiné e Cabo Verde em 1955, vol. I, Agéncia Geral do Ultramar. 34. Leopoldo AMADO, «Simbólica... », cit., in loc. cit. 35. António George Cristóvão de Sousa FRANKUN, 1956, «A ameaça islâmica na Guiné portuguesa», Comunicação apre sentada ao IV Congresso da União Nadonal, Lisboa, pp. 23 e 24. O Autor (licenciado, funcionário administrativo em Tunor, na Guiné e no Ministério do Ultramar e que usou o pseudónimo literário de António de Cértima) acentua também, em capítulo autónomo, que os cabo-verdianos (que calculava em cerca de 1.700 residentes) eram «o tipo de colono que a Guiné precisa» (op. cit., pp. 28 e segs.). 36. Henrique Pinto REMA, OFM, 1952, História das Missões Católicas da Guiné, Braga, Editorial Franciscana, p. 855. A «Casa Gouveia» era um estabelecimento da A. Silva Gouveia, Lda. (associada da CUF — Companhia União Fabril), que monopolizava parte significativa dos produtos coloniais e se dedicava a múltiplas actividades económicas. 37. F. MENDES, 1956, «Crónica da Província» in BCGP, Vol XI, n.º 42, pp. 134-135. 38. In Jaime NOGUEIRA PINTO (org.), 1993, p. 198. Relata o seu mandato «Doutor Silva Tavares, Governador da Guiné, 1956-1958», in AAVV, 1994, Os últimos gvvernadores do império, Lisboa, Edições Neptuno, pp. 47 e segs. 39. Apud, «Notas e Informações — Centro de de Estudos», in BCGP, Vol. XII, n.º 45, Janeiro 1957, pp. 125 e segs. 40. Cfr. Elisée TURPIN, «Depoimento», in http://www.pajgc.org/DEPOIM~1.HTM e declarações de Abílio Duarte e Aristides Pereira, in José Vicente LOPES, 1996, Cabo Verde — Os Bastidores da

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 140

Independênda, Praia-Mindelo, Centro Cultural Português, pp. 40 e segs. Fernando Fortes diz recordar-se de um documento que «continha essencialmente o juramen to» («Fernando Fortes evoca a criação do PAIGC» in Nô Pintcha, n.º 75, de 18/9/1975). 41. Existem múltiplas referências em textos de Amílcar Cabral (quanto à citação, cfr. , «Os princípios do partido e a prá tica política», in Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Vol. I, Lisboa, Seara Nova, 1976, p. 146). Ver os relatos de Luis CABRAL, 1984, pp. 42 e segs., Fernando FORTES, 1975, «Fernando Fortes evoca a criação do PAIGC» in Nô Pintcha, n.º 75, de 18/9/1975; Aristides Pereira, 2002, p. 86; Elisée TURPIN, «Depoimento», in loc. cit., e as significativas reticências e Abílio Duarte, in José Vicente LOPES, 1996. 42. Jean ZIEGLER, 1983, Les Rebelles — Mouvements armés de libération nationale du Tiers Monde, Paris, Éditions du Seuil, pp. 184-186. 43. Luís CABRAL, 1984, pp. 49 e segs. 44. Cfr. Patrick CHABAL, 1983, Amílcar Cabral — Revolutiornary leadership and people's war, Cambridge, University Press, p. 56; e Gérard CHALIAND, 1967, Lutte armée en Afrique, Paris, François Maspero, p. 34. Ver, ainda, sobre esta fase (embora com erros e parecendo-nos exagerar na implantação do PAI), Mustafah DHADA, 1993, Warriors at Work, Colorado, University Press, pp. 1 e segs., e, quanto à (posterior) implantação rural e mobilização multi-étnica do PAIGC, Joshua B. FORREST, 2003, pp. 181 e segs. 45. Maria Sofia Carrajola Pomba do Amaral Guerra, licendada em Farmácia, pertenceu à Direcção dos Jovens Democratas de Moçambique (ligada ao MUD Juvenil) e, acusada de militância no PCP, partiu para Bissau (juntamente com o marido), após os «processos de 1949». Nomeada membro residente do CEGP, publicou o artigo «Amendoim e palmeira de azeite — Pilares económicos da Guiné Portuguesa», in BCGP, Vol. VI, Janeiro de 1952, n.º 25, pp. 9/83. Manteve intensa actividade cultural e pedagógica (por exemplo, fez, em 1952, no Colégio-Liceu, uma palestra sobre «Grandeza intelectual e moral e dentistas notáveis») e a militância política, sempre vigiada pela PIDE (cfr. José PACHECO PEREIRA, 2005, Álvaro Cunhal — Uma biografia política — O prisioneiro (1949-1960), Lisboa, Temas e Debates, pp. 529-530). Foi, no resumo de Luís Cabral, «a amiga e conselheira de cada um de nós» (1984, p. 39). 46. In Arquivo Mário Soares — Documentos Mário de Andrade, pasta 4337.005, Imagem 136. Ver, também, Julião Soares Sousa, 2003, «Os movimentos unitários anti-colonialistas (1954-1960). O contributo de Amílcar Cabral», in Luís Reis TORGAL e Luis Oliveira ANDRADE, Colonialismo, Anticolonialismo e Identidades Nacionais — Estudos do Século XX, Universidade de Coimbra, Quarteto, pp. 338 e segs. 47. Mário PINTO DE ANDRADE, 1997, Uma entrevista dada a Michel Laban, Lisboa, Edições João Sá da Costa, p. 142. 48. Edmundo ROCHA, 1977, «A Casa dos Estudantes do Império nos anos de fogo», in AAVV. Mensagem – Número Especial, Lisboa, Associação Casa dos Estudantes do Império, p. 106. 49. Entrevista de Tomás Medeiros, apud Dalila Cabrita MATEUS, 1999, A Luta pela Independência — A Formação das Elites Fundadoras da FRELIMO, MPLA e PAIGC, Lisboa, Inquérito, p. 260. 50. Filinto de BARROS, 1997, Kikia Matcho, Bissau, Centro Cultural Português, p. 18. 51. Hélio FELGAS, 1967, Guerra na Guiné, Lisboa, SPEME, p. 45, e, 1966, Os movimentos terroristas de Angola, Guiné e Moçambique (influência externa), Lisboa, pp. 44 e segs.; ver também Leopoldo AMADO, «Da embriologia...» e «Simbólica ...», cit., in loc. cit.. Sobre José Ferreira de Lacerda, ver António E. DUARTE SILVA, 1997, A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, Porto, Afrontamento, p. 54. 52. Cfr. Joaquim AREAL, «Crónica da Província», in BCGP, n.º 50, p. 220/222. 53. Conforme descrição de Joaquim AREAL, «Crónica da Província», in BCGP, n.º 51, pp. 376 e segs. 54. Relatório enviado a Marcello Caetano, Ministro da Presidência, em 8 de Novembro de 1956, citado por Cláudia CASTELO, 1999, «O Modo Português de Estar no Mundo». O luso-tropicalismo e a

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 141

ideologia colonial portuguesa (1933-1961), Porto, Afrontamento, p. 104. No mesmo sentido, Richard PATIEE, 1959, Portugal na África Contemporânea, Coimbra, Faculdade de Letras (Instituto de Estudos Ultramarinos), sobretudo pp. 581 e segs. (salientando, por um lado, a «franca expansão» do Islão e, por outro, a «pressão cada vez maior dos territórios vizinhos, não só no campo religioso, mas também no político»). 55. J. M. da Silva CUNHA. 1959, Missão de Estudo dos movimentos associativos em África. Relatório da Campanha de 1958 (Guiné), Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, pp. 98 e 99. 56. Centro de Estudos Politicos e Sociais, Conselho Orientador, Acta n.º 9 (borrão), de 5/6/1959 (dactilografado), pp. 7-8. 57. Cfr. Joaquim AREAL, «Crónica da Província», in BCGP, n.º 53, pp. 125 e segs.. 58. Armando Castro, 1980, O Sistema Colonial Português em África (meados do século XX), Lisboa, Caminho, pp. 366-368. 59. Idem, op. cit., pp. 15-16. 60. Idem, «Crónica...», cit. loc cit., pp. 139-140. 61. Segundo o relatório do Conselho Superior da Defesa Nacional, de 29 de Agosto de 1959, citado por António José TELO, 1977-1978, «A mudança — 1959», in Aniceto AFONSO & MATOS GOMES, Guerra Colonial — Angola, Guiné, Moçambique, Lisboa, Diário de Notícias, pp. 26-27. Ver, ainda, John P. CANN, 1998, Contra-Insurreição em Ajrica — o Modo Português de Fazer a Guerra (1961-1974), S. Pedro do Estoril, Atena, pp. 63 e segs. 62. Cfr. Joaquim AREAL, «Crónica da Provmcia» , in BCGP, n.º 56, p. 737. 63. Cfr. a entrevista do marechal Costa Gomes in Drumond JAIME & Hélder BARBER (org.), 1999, Angola: Depoimentos para a História Recente,1.º Volume, Luanda, Edição dos Autores, pp. 285/286. 64. Depoimento de Sido Balde, 50 anos, guarda da Polida, in Nô Pintcha, n.º 56, de 2/8/1975, p. 9. 65. Depoimento deSalio Camará, 56 anos, cabo da Polida, in Nô Pintcha, n.º 56, de 2/8/1975, p. 9. 66. Henrique Pinto REMA, 1966, p. 856 (com base nos números de 6, 20 e 21 de Agosto de O Arauto, diário do clero católico, e nas notas do Guarda da PSP, Francisco Valoura). 67. Cfr. «[Relatório] Confidencial do Comandante da Defesa Maritima, cap. ten. Raul de Sousa Machado, ao Estado Maior da Armada, de 18 de Agosto de 1959» (de 5 folhas dactilografadas, «desclassificado» em 10/3/2003), apud Luís SANGJES DE BMNA, 2006, Fuzileiros — Livro III — Crónica dos Feitos da Guiné (1962/1974), Comissão Cultural da Marinha, Edições Inapa, pp. 238-242. 68. Assim, «[Relatório] Confidencial do Comandante...», cit., fls. 2. apud loc. cit. 69. Cfr. «Documentos Inéditos do 3 de Agosto de1959 — Confidencial n.º 27, endereçada ao «[...] Inspector Manuel Bento Gomes Ferreira»», apud Nô Pintcha, n.º 56, de 2/8/1975 (trata-se de uma edição especial subintitulada O Massacre do Pidjiguiti — 16 anos depois, de 14 págs.), pp. 6 e 10. O citado «inquérito administrativo» consta dos «documentos oficiais encontrados nos arquivos da antiga administração colonial-fascista». Acrescente-se que os nove mortos e catorze feridos estão todos identificados (nome, profissão e firma em que trabalhavam), os primeiros enquanto «indígenas manjacos mortos» e os segundos enquanto «marítimos feridos nos incidentes de 3 do corrente». 70. Assim, «[Relatório] Confidencial do Comandante...», cit., fls. 2, apud loc. cit., Segundo Mário António FERNANDES DE OliVEiRA (dir.), 1979, A Descolonização Portuguesa — Aproximação a um estudo, Vol. I, Lisboa, Instituto Democracia e Liberdade, p. 209, a greve dos estivadores manjacos e a repressão de 3 de Agosto provocaram «sete mortos e 15 feri dos», citando o jornal A Província de Angola, de 6/8/59 e 29/8/59, e o relato do correspondente «Comunicado oficial» (que não encontrámos). 71. Cfr. «Documentos...», cit., apud loc. cit., p. 10. Ocante Benunte seria militante do PAI e a sua biografia consta do artigo «Irmão Ocante, herói do povo», in loc. cit., pp. 5 e 10. 72. «[Relatório] Confidencial do Comandante...», cit., fls. 3, apud loc. cit.. 73. Assim, «[Relatório] Confidencial do Comandante...», cit., fls. 3 e 4, apud loc. cit..

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 142

74. Mário DIAS, «Guiné 63/74 — DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá», in http:// blogueforauada.blogspot.com/. Mário Dias (ex-sargento comando, Brá, 1963/66) partiu para a Guiné em 1952, com quinze anos, e regres sou a Portugal (Alhos Vedros) em 1966. 75. Leopoldo AMADO, «Simbologia...», dt., in loc. cit. 76. Cfr. «Rafael Barbosa, mito do nacionalismo africano, ao Público», in Público, de 6/12/1999, p. 19. António Nola foi um dos três «elementos indígenas considerados preponderantes nos acontecimentos do passado dia 3» — cfr. «António Nola Marinheiro Heróico» e «Documentos Inéditos do 3 de Agosto de 1959 — Confidencial n.º 26», apud Nô Pintcha, n.º 56, de 2/8/1975, pp. 6 e 10. Também Hélio FELGAS, 1967, p. 45, destaca que o MLG «gostava de insinuar que fora o impulsionador dos incidentes». 77. Alexander Keese, 2003, «"Proteger os pretos". Havia uma mentalidade reformista na administração portuguesa na África Tropical (1926-1961)?», in Africana Studia, n.º 6, pp. 116/117. Sobre os acontecimentos, há também importantes testemunhos de Carlos Fabião in José Freire ANTUNES, 1995, A Guerra de África (1961-1974), Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 363/364, e de Carlos Correia, Lourenço Gomes, bem corno a reportagem de José Upadai Gomes, «Marinheiros sobreviventes do Pidjiguiti relatam o massacre» in Nô Pintcha, n.º 56, de 2/8/1975, cit., pp. 11 e 4/5, respectivamente. Ver, ainda, o «Guião» do (incompleto) filme de Chris Marker, «Massacre de Pidjiguiti.1959. PAIGC», apud Arquivo Mário Soares Documentos Mário de Andrade, pasta 4357,012. 78. «Carta de Amílcar Cabral a Ruth Lara», apud Lúcio LARA, 1999, Documentos e Comentários para a História do MPLA, Lisboa, Publicações Dom Quixote, pp. 119-120. 79. «Relatório de Amílcar Cabral» apud Lúcio LARA, 1999, pp. 153-155. 80. «Carta do MAC à Conferência Pan-Africana», apud Lúcio LARA, 1999, pp. 141-142. 81. «Carta de Amílcar Cabral» apud Lúcio LARA, 1999, p. 161-162. 82. Assim, Julião Soares SOUSA, 2003, p. 344. 83. Este «Relatório da reunião de 19 de Setembro de 1959» foi dado a conhecer por Basil DAVIDSON , 1969, Révolution en Afrique — la libération de la Guinée Portugaise, Paris, Seuil, pp. 36-37. Ainda não encontramos o documento original, mas tudo indica que a sua redacção é algo posterior à referida reunião. 84. Está publicada apud Mário de Andrade, 1980, Amilcar Cabral, Paris, Maspero, pp. 90-91. 85. O original em francês (e a tradução portuguesa) encontram-se apud Amílcar Cabral — Sou um simples africano…, Fundação Mário Soares, 2000, p. 23. 86. Sobre o Manifesto do MAC e a Conferência Pan-Africana de Tunes, ver, sobretudo, Lúcio LARA, 1999, e Edmundo ROCHA, 2003, Angola — Contribuição ao estudo da génese do nacionalismo moderno angolano (período 1950-1964), Edição do Autor (Kilombelombe), Lisboa, 2003, pp. 160 e segs. A dita FRAIN será, em 1961, substituída pela CONCP Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas. 87. Quanto à estratégia do PAIGC em 1960, ver o nosso A Independência..., cit., pp. 41 e segs., e 323 e segs. 88. Edmundo ROCHA,1977, p. 159. 89. Amílcar CABRAL, 1976, pp. 101-102. 90. Aprovada pela citada II Conferência dos Povos Africanos. 91. Cfr. «Proclamação da acção directa» apud Amílcar Cabral, 1976, p. 35-36. 92. Assim, o «Memorandum» do PAIGC ao Governo português, de Outubro de 1960, e o «Relatório Geral», apresentado na reunião de Dacar, de 12 a 14 de Julho de 1961. 93. Para um resumo, Ronald H. CHILCOTE, 1971, Emerging Nationalism in Portuguese Africa, California, Stanford University, Hoover Institution Press, pp. 603-607. 94. Jean ZIEGLER, 1983, p. 185 (comparando Amílcar Cabral a Mao Zedong).

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 143

RESUMOS

No pós-guerra, uma linha reformista liderada pelo Governador Sarmento Rodrigues tentou fazer da Guiné uma «colónia-modelo», assente na autonomia administrativa, no desenvolvimento económico-social e na aliança com os indígenas muçulmanos. Foi um período de consolidação do aparelho colonial e de coesão social. No início dos anos cinquenta o Governo português começou a prevenir-se contra a descolonização, revogando o Acto Colonial, instalando a polícia política e investigando os movimentos associativos. Na Guiné, revelaram-se as primeiras perspectivas de independência política, mas a subversão não veio do exterior nem foi desencadeada por associações influenciadas pelo Islão; começou em Bissau, liderada por uma elite política urbana e crioula, enquanto, na Europa, se tentava um movimento unitário de libertação das colónias portuguesas. Em 1959, dois acontecimentos históricos vão levar à passagem da agitação nacionalista para uma luta de libertação nacional. Por um lado, o «massacre do Pindjiguiti», de que se faz aqui uma investigação sistemática, assente em documentos e depoimentos inéditos ou pouco divulgados; por outro, a reunião alargada de 19 de Setembro, «a mais decisiva» (Amílcar Cabral) da história do PAIGC. Considerando a formação do movimento de libertação nacional como um processo, vê-se, por fim, como só em 1960, após a II Conferência Pan-Africana, de Tunes, e a «Conferência de Quadros das Organizações Nacionalistas», de Dacar, se pode considerar concluída a fundação do PAIGC.

In the aftermath of the Second World War, some reformist elements of the Portuguese regime, led by Governor Sarmento Rodrigues, tried to convert Guinea-Bissau in a «model-colony», based on administrative autonomy, social and economic development and an alliance with the native Muslims. It was a period marked by the consolidation of the colonial apparatus and a reasonable degree of social cohesion. In the early 50's, the Portuguese government began to take steps to prevent being harassed by the anti-colonial movement, such as the revocation of the Colonial Act, the opening of branches of the Political Police (PIDE) in the colonies, and more thorough inquiries into the activities of the civic associations. Guinea was one of the first overseas territories where the independentist aspirations emerged, but the seditious acts were not inspired by exterior movements or by Islamic groups or individuais. They were led by a urban and «creole» political elite with strong connections to other disaffected nationalists from the Portuguese overseas territories. In 1959, two dramatic events contributed to the escalation of this political unrest. One was the «Pindjiguiti massacre», which is the object of a systematic research in this article based on new materiais; the other is the «decisive» (in the words of Amilcar Cabral) PAIGC meeting of 19 September 1959. If we adopt the perspective that the formation of the PAIGC resulted not from a single event, but from a process, then we will have to consider that only after the Tunes Pan-African Conference of 1960 and the Dacar Conference of Cadres from the Nationalist Organisations was the PAIGC foundation complet ed.

ÍNDICE

Keywords: nationalism, PAIGC, liberation movement, Guinea-Bissau Palavras-chave: Nacionalismo, PAIGC, Movimento de libertação, Guiné-Bissau

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006 144

AUTOR

ANTÓNIO E. DUARTE SILVA Tribunal Constitucional e Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, UNL, Lisboa

Cadernos de Estudos Africanos, 9/10 | 2006