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MÚSICA 23 JANEIRO 2016

Carmen Souza e Theo Pascal Epistola Jazz cabo-verdiano Postcolonialism and the Cultures of Africa, de Fernando Arenas, Até há um par de anos não se poderia como um exemplo em destaque? afirmar o mesmo, pelo simples facto de Carmen Souza, precisamente, a jovem que o jazz não era um fator dominante que tentava cantar o grande hino de na música da dupla criativa formada por Cabo Verde, Sodade, à sua maneira, Carmen Souza e Theo Pascal, mas com com a pretensão de inovar a tradição a publicação de “Epistola” em 2015 os das ilhas atlânticas do Continente-Mãe. termos foram invertidos: o disco é mais A apaixonada pelas vozes de Billie improvisado do que todos os anteriores, Holiday, Ella Fitzgerald e Nina Simone tem uma maior abertura conceptual que acabaria por ter no seu repertório e a colaboração de músicos da cena um outro cartão-de-visita, este vindo dos jazzística de Londres. Se o que se pre- territórios do jazz: Song For My Father, tendia era ocupar um lugar nesse dúbio escrito por um tal de Horácio Tavares da e enorme espaço a que mal ou bem se Silva, assim batizado, mas conhecido por chama world music, os nomes da can- todos como Horace Silver. tora nascida em de pais cabo- O mais emblemático dos pianistas -verdianos e do seu compositor, diretor do hard bop era um notável filho da artístico e contrabaixista passaram a diáspora cabo-verdiana no outro lado estar definitivamente associados a essa do oceano. E o certo é que Carmen faz tendência muito definida que ganhou a justiça ao tema, pois é ao seu próprio pai designação de world jazz. embarcadiço que se refere nas suas já A questão tem muito maior relevân- habituais interpretações, dando largas à Voz, piano acústico Carmen Souza Guitarra Wurly Baixo e contrabaixo Theo Pascal cia do que a suscitada por uma mudança tristeza que sentia por, na infância e na Bateria Shane Forbes Saxofone Nathaniel Facey de rótulos, pois coloca o projeto no adolescência, não o ver durante longos centro de uma nova condição do jazz: ao períodos. A bela canção torna-se algo longo do trajeto de universalização que de muito pessoal, algo que a convida a levou este dos locais Estados Unidos juntar a sua alma à que já lá se encon- para o mundo global, o género pode ter trava. É um dos poucos casos em que, perdido alguma da sua natureza folky, no repertório de Carmen, se carrega o mas tornou-se glocal, ou seja, ganhou sobrolho. Regra geral, o tom é alegre, uma dupla caracterização global e local, positivo, cheio de esperança. por ter introduzido elementos das prá- Isso diz tudo sobre a forma de estar, ticas musicais dos lugares por onde foi na música e na vida, de Carmen Souza: passando e estabelecendo um lar. a sua expressão vocal, a força das suas O termo glocal jazz vem da cabeça do palavras, escritas em crioulo, português, investigador e crítico Stuart Nicholson, francês e inglês, têm alcance espiritual, autor do livro Jazz and Culture in e este revela um propósito missionário a Global Age. Na continuação das muito cristão, fazendo-nos lembrar Sáb 23 de janeiro reflexões aí expostas, quem surge, em que ela foi em tempos membro de 21h30 · Grande Auditório · Duração: 1h30 · M6 Beyond Independence: Globalization, um coro de gospel. O desejo já não é

3 apenas mudar a música de Cabo Verde, são uma minoria, tal como, inclusive, mas inventar um jazz cabo-verdiano, o o público que assiste aos concertos. que pode passar pelo aproveitamento Não surpreende, portanto, que o duo de composições como Donna Lee, de tenha conquistado a admiração de gente Miles Davis, o standard coltraneano dos mais variados quadrantes do gosto. My Favorite Things ou, não podia faltar, Até de David Sylvian, figura histórica Cape Verdean Blues, de Horace Silver. da pop inteligente que tem convidado a Para tal efeito, Souza e Pascal não trabalhar consigo improvisadores como seguem aquele rumo em que “música Evan Parker e músicos eletrónicos como popular” significa música sem riscos e Christian Fennesz. Disse o ex-Japan: destinada a agradar por via da facilidade. «Carmen Souza canta no seu dialeto Os improvisos da vocalista podem crioulo nativo com uma intimidade, ser bastante audazes e complexos, uma sensualidade e uma vivacidade de remetendo-nos para a mais endiabrada extrema leveza. A sua música tem uma Maria João. O vocabulário que utiliza enganosa simplicidade e uma claridade é vasto, e impressiona a maneira como rara que derivam de uma mistura única o seu registo alto e espesso se trans- de influências da sua ancestralidade forma numa representação de menina. cabo-verdiana, do jazz e da soul, criando Em termos de composição e arranjo este híbrido belo, vibrante, tendencial- há ainda muito que se diga nesta umas mente acústico e bastante acessível.» vezes saltitante, outras vezes contem- Não deixa de ser sintomático, este plativa, combinação de fórmulas do apreço: o cantor não-jazz que aparen- jazz-funk-rock (curiosamente, uma temente os apreciadores do jazz mais área de estudo de Stuart Nicholson admiram está atento ao que se passa no para caracterizar o poli-estilismo jazz glocal, confirmando que o processo musical desde a década de 1970), do de localização da globalidade não só não jazz latino, do soul jazz, do afrobeat, está a dividir a «música clássica norte- com influências que vão de Thelonious -americana» (Duke Ellington dixit) em Monk, Charles Mingus e Joe Zawinul múltiplos e desviantes “jazzes” ou “abs- a Hermeto Pascoal, Fela Kuti e Ornette trações” / “estilizações” do jazz, como Coleman. Pascal conseguiu finalmente vem tendo como consequência uma realizar o que não lhe tinha sido possí- aproximação das músicas existentes no vel nos oito anos em que trabalhara com mundo. O glocalismo revela-se como a também cabo-verdiana Sara Tavares. um fenómeno de diversidade integrada, Algo de tão marcante quanto isto: por assim dizer, e é de vários lados que voltar a conferir etnicidade a uma se ouve o que Souza e Pascal têm para música, o jazz, que a tinha perdido oferecer. Ora vamos lá a isso. numa evolução que por um lado a intelectualizou e, por outro, a distanciou Rui Eduardo Paes das raízes africanas, e tanto assim que Ensaísta, crítico de música, atualmente os músicos de jazz negros editor da revista online jazz.pt

4 5 Carmen Souza íntimo e acústico, diferente da música repensar tudo o que nos faz gostar dos o mundo em digressões sucessivas, festiva tradicional de Cabo Verde. sons de Cabo Verde. O NPR (outro participando em festivais como o North Carmen Souza nasceu em Lisboa (1981) O disco foi finalmente editado em famoso site de música do mundo) Sea Jazz Festival, o African numa família cristã cabo-verdiana. 2005. Apesar de primeira obra, recebeu sentenciou: “abre-se uma janela para Music Festival ou o Laverkusener Jazz Muito cedo experimentou a sodade, inúmeras críticas elogiosas que justi- um outro mundo”; e o The Independent Tage Festival. Vários dos seus concertos por causa das ausências do seu pai, que ficaram o início de uma carreira inter- considerou que “a voz poética é tão foram transmitidos por algumas das trabalhava no mar. Cresceu rodeada da nacional, atuando no festival Womad original, como a voz musical”. mais importantes estações de rádio e maneira de viver cabo-verdiana, mas desse ano. Entre outras distinções, Protegid foi televisão. O seu trabalho foi motivo de em que o crioulo se misturava com o Verdade foi o seu segundo álbum, nomeado para o Prémio dos críticos estudo e investigação por etnomusicó- português. publicado em 2008, um empolgante e alemães de discos, entrou nas listas logos. Um deles, Fernando Arenas, da Na sua adolescência cantou profissio- vibrante repertório melódico, também dos melhores do World Music Charts Universidade de Minnesota, publicou nalmente num Coro Gospel lusófono. muito bem recebido pela crítica Europe (WMCE) (um site que reflete as Beyond Independence: Globalization, Sendo uma pessoa profundamente estrangeira. escolhas de especialistas em música do Postcolonialism, and the Culture of espiritual, Carmen sempre entendeu Em 2010 sai o terceiro álbum, mundo de estações de rádio de 24 países Lusophone Africa, em que dedica várias a música como a sua missão de vida, Protegid em que prossegue o seu cami- europeus), foi pré-nomeado para os páginas a Carmen Souza. sentindo-se privilegiada por ter a opor- nho de fusão, cada vez mais próprio, Grammy e incluído em numerosas listas O ano de 2011 começou com uma tunidade de se exprimir através dela, único, expandindo os limites da música dos melhores discos do ano de world participação especial na RAI UNO, trabalhando arduamente todos os dias cabo-verdiana, da música do mundo e music. Entretanto, ainda em 2010, foi no Concerto da Epifania, transmitido para merecer essa oportunidade. Na do jazz. Coproduzido por ela, nele toca reeditado Verdade, que também esteve para milhões em Itália, seguido de mais sua procura de uma voz própria foram guitarra e fender rhodes e assina onze nas escolhas do WMCE. digressões pela Europa, Estados Unidos, importantes os músicos Luís Morais dos doze temas incluídos no álbum. Em A par do seu trabalho discográfico, Canadá, Brasil, Cabo Verde. Saliente-se e Theo Pascal, mas também ouvir e Protegid, a singular abordagem vocal e desde 2005 que Carmen Souza percorre que nos EUA cumpriu 14 datas em estudar gravações dos grandes do jazz, as corajosas escolhas musicais, justifi- como Ella Fitzgerald, Billie Holiday, caram que fosse comparada a cantoras Nina Simone, Herbie Hancock, Keith como Billie Holiday, Nina Simone, Cleo Jarret, Bill Evans, Miles Davies, Horace Laine, Earth Kitt, Marie Daulne. Silver e outros. O seu talento único como cantora Theo Pascal, o seu produtor e mentor, e compositora colocou-a num lugar à um excelente baixista, descobriu o parte na cena das cantoras cabo-verdia- talento de Carmen e introduziu-a no nas, ao mesmo tempo que consolidava o jazz e noutros sons contemporâneos seu próprio estilo. que muito influenciaram o seu percurso O álbum recebeu ainda melhores musical. críticas, se o podemos dizer, do que Em 2003, com 22 anos, começou os anteriores. Por todo o mundo a a trabalhar com Theo nos temas que imprensa reconhecia que alguma coisa seriam incluídos no seu álbum de nova estava a desenvolver-se. O World estreia Ess ê nha Cabo Verde. Carmen Music Central – dos mais reputados queria criar um novo som, usando o sites de música do mundo – conside- crioulo, a partir dos vários que assi- rou o CD um marco que iria fazer não milara (música de Cabo Verde, ritmos só crescer o entusiasmo pela música tradicionais africanos, jazz), um som cabo-verdiana, como refletir sobre ela, © Patrícia Pascal

6 7 vários Estados e abriu os festivais de de França e da Alemanha e na Fnac de A sua carreira não se limita à estreita jazz de São Francisco e de Monterey França. À saída do disco seguiu-se uma colaboração com Carmen Souza. (a sua atuação foi transmitida pela digressão de 68 concertos por todo o Participou em álbuns com artistas rádio, facto até aí inédito na história mundo. portugueses e africanos de Cabo Verde, do Festival), participando também no Epistola, o álbum que está na base Moçambique, e Guiné Bissau Festival de Montreal. do concerto de hoje, é apresentado como, entre outros, Sara Tavares, No início de 2012 Carmen e Theo em nome dos dois músicos, Carmen e Ildo lobo, Maria Alice, Eneida Marta, gravam um dueto ao vivo, em Londres, Theo, o que acontece pela primeira vez D.Kikas. Teve também oportunidade com versões, muito simplificadas em anos de trabalho conjunto. Nasceu de trabalhar com Lokua Kansa, um dos no acompanhamento, de canções de e foi apresentado em 2015, no Festival cantores/músicos/produtores africanos álbuns anteriores. London Accoustic Set Jazzahead de Bremen. melhores do mundo, estabelecido em foi também muito bem recebido pela O CD foi Álbum da Semana (4 estre- França. Trabalhou durante oito anos crítica e o público. Metade das receitas las) do site Music Story, fez parte dos 10 com Sara Tavares, no início da carreira das vendas foram entregues às aldeias melhores CDs do mês da Mezzo TV, dos da cantora. de Crianças SOS em Cabo Verde e à dez melhores CDs da semana da estação Entre 2001 e 2011, além de gravar UNICEF do Brasil. de rádio nacional Bayern2 Kultur, etc. dois discos em seu nome, Quamundo’s e Em setembro de 2012, o seu quarto Inquestionavelmente, Carmen Souza Motive, produziu mais de 20 CDs com álbum, Kachupada, foi editado em é hoje uma personalidade forte da artistas portugueses, africanos e brasi- França e na Alemanha. Em França world music e uma das cantoras de jazz leiros e foi o mentor de dois pioneiros entrou diretamente na lista dos mais de mais sucesso. Como disse alguém, programas portugueses, dedicados à vendidos da WMCE e foi n.º 1 de vendas «Carmen Souza não precisa de decidir descoberta de novos talentos do nosso na Amazon francesa, sendo distinguido se a sua música é jazz ou “Música do país em áreas muito diversas como por várias revistas da especialidade. Na Mundo”. O seu estilo é tanto único música do mundo, música africana, jazz, Alemanha o disco foi lançado através como convincente e as suas raízes cabo- fusão, fado, etc. de uma prolongada digressão e, entre -verdianas são evidentes como o seu Criou a sua própria editora disco- outras distinções, o álbum foi consi- desejo de criar uma nova linguagem sob gráfica que, desde 2003, trabalha com a derado o melhor disco da semana por a marca “Música do Mundo”.» maior editora e distribuidora indepen- várias rádios. O concerto que com dente do mundo, Peermusic. grande êxito realizou na Culturgest em Theo Pascal Compôs e produziu músicas (jingles) janeiro de 2014, baseou-se nesse álbum. para vários anúncios comerciais e para a Kachupada valeu a Carmen Souza ter Quem conhece Carmen Souza obri- SIC e RTP2. sido distinguida em Cabo Verde com gatoriamente conhece Theo Pascal, Está a preparar um novo e inovador os prémios 2013 para melhor cantora e baixista e contrabaixista português. projeto na área do world jazz para 2017. melhor morna. Referido pela própria como o seu O concerto que, com Theo Pascal, mentor e principal influência, foi Theo apresentou em 2014 no Festival de quem descobriu o talento de Carmen Jazz de Lagny, em França, deu origem Souza em 2001 e quem desde então tem a um CD e DVD, Live at Lagny Jazz acompanhado a artista tanto em estúdio Festival, também recebido com elogios como ao vivo, sendo que os dois dividem e distinções da crítica. Esteve na lista todas as composições incluídas nos sete dos 10 álbuns mais vendidos na Amazon discos lançados até hoje (2005-2015).

8 9 Próximo espetáculo

© Luisa Ferreira Carlos Martins

Jazz Sex 12 de fevereiro Grande Auditório · 21h30 · Dur. 1h20 · M6

Saxofone Carlos Martins Bateria Alexandre mais alegre e quente, tocando uma Frazão Contrabaixo Carlos Barretto inquietação calma inspirada ainda numa Guitarra Mário Delgado incerta nostalgia, sentindo o pulso do ambiente que vivemos aqui e no mundo. O Jazz não é uma música em si É também fruto do natural desenvolvi- mas uma maneira de se fazer música. mento da música, dentro de um sistema Willis Conover permeável como é o Quarteto, em contacto com o público nos concertos O disco Absence trouxe claramente feitos entretanto, em performances ilu- à discografia portuguesa um som minadas que se afastaram ligeiramente diferente. Em primeiro lugar na atitude do som inicial. Não por coincidência determinada de guardar o maior silên- o último concerto feito na Culturgest, cio possível dentro do som produzido realizado também num dia 12 de feve- obrigando a uma disciplina inédita reiro, foi um momento de celebração do coletivo. Terá sido também essa do CD Água ainda com as cores do disciplina e a vontade de partilha da piano de Sassetti... Em 2016 teremos generosidade que conquistou o coração outras cores e algumas surpresas, como de tantos portugueses que escutaram acontece sempre que Carlos Martins vai o Absence e o transformaram num dos a estúdio. discos de jazz mais vendidos dos últi- mos anos em Portugal. Agora haverá um novo disco, com outras nuances, que é a continuação do Absence, como um segundo volume

As emissões de gases com efeito de estufa associadas à produção desta publicação foram compensadas no âmbito da estratégia da CGD para as alterações climáticas. Conselho de Administração Culturgest Porto Maquinaria de Cena Presidente Susana Sameiro Nuno Alves (chefe) Álvaro do Nascimento Artur Brandão Comunicação Administradores Filipe Folhadela Moreira Técnico Auxiliar Miguel Lobo Antunes Vasco Branco Margarida Ferraz Publicações Marta Cardoso Frente de Casa Assessores Rosário Sousa Machado Rute Sousa Dança Gil Mendo Atividades Comerciais Bilheteira Teatro Catarina Carmona Manuela Fialho Francisco Frazão Patrícia Blázquez Edgar Andrade Arte Contemporânea Clara Troni Serviços Administrativos e Financeiros Miguel Wandschneider Cristina Ribeiro Receção Serviço Educativo Paulo Silva Sofia Fernandes Raquel Ribeiro dos Santos Teresa Figueiredo Auxiliar Administrativo João Belo Direção Técnica Nuno Cunha Estagiárias: Paulo Prata Ramos Cláudia Pereira Coleção da Caixa Geral de Depósitos Nádia Luís Direção de Cena e Luzes Isabel Corte-Real Horácio Fernandes Inês Costa Dias Direção de Produção Lúcia Marques Margarida Mota Assistente de Direção Cenotécnica Maria Manuel Conceição José Manuel Rodrigues Produção e Secretariado Estagiária: Patrícia Blázquez Audiovisuais Aleksandra Kotova Mariana Cardoso de Lemos Américo Firmino Jorge Epifânio (coordenador) Ricardo Guerreiro Exposições Suse Fernandes Coordenação de Produção Mário Valente Iluminação de Cena Produção Fernando Ricardo (chefe) Edifício Sede da CGD António Sequeira Lopes Vítor Pinto Rua Arco do Cego nº50, 1000-300 Lisboa Paula Tavares dos Santos Tel: 21 790 51 55 · Fax: 21 848 39 03 Fernando Teixeira [email protected] · www.culturgest.pt

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