Revista 47-2.Indd 112 28/10/2015 14:14:37 Corpo À Mostra: Ecos Do Dizer No Corpo
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 47, p.112-122, jul. 2014/dez. 2014 CORPO À MOSTRA: TEXTOS ecos do dizer no corpo1 Manuela Lanius2 Resumo: O presente artigo busca trazer para debate um aprofundamento teórico e clínico sobre as consequências da relação corpo/discurso em psicanálise. Os eventos de corpo são estudados a partir de fragmentos de um estudo de caso e debatemos as vias possíveis de intervenção na clínica psicanalítica. Palavras-chave: corpo, linguagem, sintoma. BODY EXPOSED: ECHOES OF SAYING IN THE BODY Abstract: This article comprises a theoretical and clinical approach to the conse- quences of the body/discourse relation in Psychoanalysis. The events of the body are studied from fragments of a case study and the possible ways of interventions in the Psychoanalytical Clinic are regarded Keywords: body, language, symptom. 1 Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Corpo e discurso em psicanálise, novembro de 2014, em Porto Alegre. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Doutoranda em Psicanálise: Clínica e Pesquisa (UERJ) e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). E-mail: [email protected] 112 Revista 47-2.indd 112 28/10/2015 14:14:37 Corpo à mostra: ecos do dizer no corpo ntendemos que o sintoma como evento que ressoa no corpo é efeito de Eum advento de discurso que encontra neste o escoamento da pulsão. Definido por Lacan como superfície privilegiada do gozo, o corpo do falasser funciona por relação com a linguagem. É pelo encontro com a voz materna que será fundada a existência do falasser e suas inscrições simbólicas, en- contro que fará molde à relação do sujeito com os objetos, como preâmbulo da relação imaginária. Por esta via é que a palavra anima o corpo, o desna- turaliza, retirando-o da condição de pura carne. Todavia, da incidência da incorporação do significante restam vestígios no corpo de um gozo, de um lugar vazio no significante (Lacan, [1972-1973]1985). A linguagem, para Lacan, na sua ordenação nos quatro discursos, é uma estrutura que permite que algo se comunique no laço social, na me- dida em que não há possibilidade de fala sem que se esteja banhado pelo sentido e sem desfilar os semblantes sob o apito do fantasma – realidade única de cada falasser. Diria Borges que “ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e temores” ([1941]2007, p.77). Todavia, a alíngua não está submetida a uma organização que serviria para um diálogo entre dois falantes, pois, é uma matéria sonora que corre paralela à estrutura ([1972-1973]1985). Restam, também, indícios da incidência do olhar, cuja captura é quase inevitável, visto seu poder de empuxo. São resquícios do efeito da alienação ao Outro, que vêm a se depositar no corpo monumento da histérica – mas que pode ser um corpo mausoléu, ornamentado com os símbolos dos ante- passados, como podemos ver nos casos em que se apresentam fenômenos psicossomáticos. Conforme Lacan ([1972-1973] 1985), a alíngua seria o que primordialmente afeta o ser falante nas suas mais arcaicas percepções, pois transmite consigo os afetos, numa dimensão inacessível à fala enunciativa. Deste modo, não poderemos dispensar esta hipótese conceitual de Lacan para nos apropriarmos com rigor da clínica psicanalítica dos eventos do cor- po. O termo alíngua foi apresentado por Lacan pela primeira vez em seu seminário O saber do psicanalista. Ao expor seu neologismo, disse: “o in- consciente tem a ver de início com a gramática, também tem um pouco a ver, muito a ver, tudo a ver, com a repetição, isto é, com a vertente inteiramente contrária ao que serve no dicionário” ([1971-1972]1997, p.15). Seria, talvez, possível, a apreensão do instante do inconsciente atra- vés de uma estratégia que chamaríamos de uma jogada poética, como en- tendeu Soler (2012), em que o significado rateia, manca, troca uma pa- lavra por outra, e torna o sujeito um evento de discurso, cujo corpo é de linguagem, tal como um poema que se escreve, “apesar de ter jeito de ser 113 Revista 47-2.indd 113 28/10/2015 14:14:37 Manuela Lanius sujeito” (Lacan, [1976]2003, p.568). A jogada poética vislumbra o despoja- mento da nomeação, mantendo a imprecisão do significante – que jamais serve sozinho como representante de um sujeito – nos remetendo à falta, justamente por denunciar a falha do signo na sua pretensão de fechar-se como absoluto. A partir de nossa leitura, entendemos que Lacan nomeou de alíngua o que se diz-a-mais ([1971-1972]2003). É o som do fonema, desconfigura- do de sentido, mas que, por seu tom e ritmo, sua musicalidade, marca um compasso de presença e ausência, produzindo a inscrição da memória da coisa subtraída como traço no falasser, pela peculiaridade da contingência com que foi ouvido. De acordo com a leitura de Soler (2012) a alíngua é o que afeta o falasser, seu efeito é justamente afetar o gozo. Importante nos atermos às palavras usadas por Lacan ao conceituar o inconsciente. Ele nos alerta para que o inconsciente subverte a gramática, desrespeita os significados e que se faz notar pela sua insistência, na re- petição. Nos remete, pois, ao seu escrito de 1957, A instância da letra ou a razão desde Freud (1998), no qual discorre sobre a autoridade da letra e sua persistência na cadeia significante. Neste momento do ensino de Lacan, a acepção da letra está intimamen- te ligada ao significante, carregada por este e aparente no que faz repetição como sintoma ou traço, no sentido freudiano do conceito de repetição. Se, como pudemos entender, as letras estão todas colocadas desde o começo, elas muitas vezes não se dão a ler, mesmo que à mostra aos olhos de to- dos. Analista e analisante seriam, pois, os hábeis investigadores e leitores, capazes não apenas de reconhecê-las, mas de ler as letras que se mantêm suspensas, fixas, sem circular, sem fazer uso de seus poderes, ou seja, não funcionam como cartas. Se lidas, as letras retornam a circular como signifi- cantes de uma cadeia geracional, desvirando-se de sua “face de Medusa” petrificadora (Lacan, [1956]1998). Lacan estava seguro de que, para efeitos de transmissão da psicaná- lise e da formação que ambicionava, era imprescindível que veiculasse seu ensino através da palavra falada e do escrito. Deste modo, discorreu sua fala em seus seminários, mas também se ocupou de seus escritos, cada qual com sua função. Para Lacan, um psicanalista deve estar atento à leitura na homofonia da fala das disjunções entre a gramática e o que se comunica, no que se escuta para além do sentido explícito, como a produção de uma espécie de conjunção fonemática que amplia a decifração de um texto, bem como pode levar à ruptura do sentido. Em nosso entender é o que há de mais relevante na prática clínica: a leitura, ou melhor, o que se lê do que está por entre as linhas, no que se ouve do que se diz, e o que se pode ler do texto na 114 Revista 47-2.indd 114 28/10/2015 14:14:38 Corpo à mostra: ecos do dizer no corpo sua literalidade (Lacan, 1957). O enlace destas duas modalidades de trans- missão produziu tanto um efeito de saber, como um efeito de furo. Trabalhamos com a hipótese lacaniana de que alíngua seria a alu- vião da linguagem recebida pelo sujeito através da matéria sonora e que repercute numa escrita própria, marcando com profundidade caminhos sin- gulares para a passagem dos significantes que irão uns aos outros se enca- deando, e que ressoará nas variadas formações do inconsciente e demais formações psicopatológicas (Lacan, [1972-1973]1985). O que é incorpora- do ao simbólico, do corpo, fará suporte ao sujeito como rede de significan- tes, e retornará como representante deste em suas manifestações. São estas marcas que compilarão a memória histórica de cada um. Deste modo, seremos fidedignos ao que Lacan nos expôs, na aná- lise das lembranças encobridoras, da arquitetura corporal, das inscrições no muro do corpo, e do estoque de cada falasser, de onde este retira o material-palavra, matéria-prima, primordial, para representar-se a si mesmo e ao mundo. O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser resgatada; na maioria das vezes, já está escrita em outro lugar. Qual seja: nos monumentos: e esse é o meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose em que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode ser destruída sem perda grave; nos documentos de arquivo, igualmente: e esses são as lembran- ças de minha infância, tão impenetráveis quanto eles, quando não lhes conheço a procedência; na evolução semântica: e isso corresponde ao estoque e às acep- ções do vocabulário que me é particular, bem como ao estilo de minha vida e a meu caráter; nas tradições também, ou seja, nas lendas que sob forma heroiciza- da veiculam minha história; nos vestígios, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções exigidas pela reinserção do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram, e cujo sentido minha exegese restabelecerá. (Lacan, [1953]1998, p.260-261). Operando com a fala, a psicanálise não se faz sem o sujeito encarnado, o que reprova a ideia de que a psicanálise não se ocupa do corpo. Sim, se 115 Revista 47-2.indd 115 28/10/2015 14:14:38 Manuela Lanius ocupa do padecimento do corpo marcado pelos efeitos da linguagem, e mais ainda, ocupa-se do saber em xeque naquilo que se perpetua, como uma figura em abismo na instância de algo do significante que não encontra vias de inscrição e que se deflagra na imago corporal.