ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE N° 29 – Dezembro – 2005

Onde fala um analista ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE EXPEDIENTE Publicação Interna Ano XII - Número 29 - Dezembro de 2005

Título deste número: Onde fala um analista

Editor: Otávio Augusto Winck Nunes e Valéria Rilho

Comissão Editorial: Inajara Amaral, Lúcia Alves Mees, Marieta Rodrigues, Otávio Augusto Winck Nunes, Siloé Rey e Valéria Machado Rilho

Colaboradores deste número: Marta Pedó e Noeli Lisboa

Consultoria Lingüística: Dino del Pino

Capa: Cristiane Löff

Linha Editorial: A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Con- tém estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e varia- ções.

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS Fone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922 E-mail: [email protected] Home-page: www.appoa.com.br

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REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE / Associação Psicanalítica de Porto Alegre. - n° 29, 2005. - Porto Alegre: APPOA, 1995, ----. Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. | Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU: 159.964.2(05) 616.89.072.87(05) CDU: 616.891.7

Bibliotecária Responsável: Ivone Terezinha Eugênio CRB 10/1108 Onde fala um analista

SUMÁRIO

EDITORIAL...... 07 Formação Psicanalítica, instituição e possibilidades transferenciais ...... 73 TEXTOS Psychoanalytical formation institution and O que nos interroga na supervisão? ..10 transferential possibilities What questions us in supervision? Volnei Antônio Dassoler Ieda Prates da Silva Reflexões sobre a prática psicanalítica A análise de controle...... 19 em instituições ...... 80 The control analysis Remarks on the psychoanalytical practice in Isidoro Vegh institutions Denise Teresinha da Rosa Quintão Sem supervisão nem controle ...... 26 Without supervision or control Discurso psicanalítico e formação...... 89 Ricardo Goldenberg Psychoanalytical discourse and formation Mauro Rabacov e Paulo Becker Pode-se contar uma cura analiticamente ...... 32 RECORDAR, REPETIR, Can one tell analytically a cure? ELABORAR Jean-Jacques Rassial A estruturação do ensino no Instituto Psicanalítico de Berlim...... 95 Pesquisa em psicanálise ...... 42 The teaching structuring in the The research in Psychoanalytical Institute os Berlim Maria Cristina Poli et al.

“O que a psicanálise nos ensina, como ENTREVISTA ensiná-lo?” (na Universidade)...... 48 Quando fala um analista ...... 116 “What does psychoanalysis teach us, how to When an analyst speaks teach it?” (At the university) Alfredo Jerusalisnky Siloé Rey VARIAÇÕES A transmissão e o ensino da teoria O desejo de regulamentar...... 126 psicanalítica: efeitos informativos ou The desire of ruling formativos no percurso de formação ..57 Mauro Mendes Dias Transmission and teaching of psychoanalytical theory: information or formation effects in the Freud implica: o analista na mídia ... 132 course of formation? Freud implies: the analyst in the media Carla Regina Cumiotto Clara Maria Von Hohendorff

Desejo de analista ...... 67 Produções em psicanálise e seus Psychoanalyst desire impasses ...... 140 Otávio Augusto Winck Nunes Psychoanalytical production and is impasses Ana Costa

EDITORIAL

uma época em que assistimos à tendência mundial de profissionalização Ne de burocratização da psicanálise, acreditamos não ser demais lembrar seus fundamentos e, principalmente, o quanto ela consiste numa prática sin- gular. Prática singular que não se confunde com o exercício privado da psicanálise. Pois, longe de ser uma psicoterapia orientada pela teoria psicanalítica, a psicanálise consiste numa prática discursiva sustentada por um psicanalista, esteja ele onde estiver. Prática, essa, comprometida com a verdade que o discurso porta. Não a verdade comprovada da ciência; muito menos aquela enunciada por um lugar de autoridade. Também não se trata de defender a banalização da ver- dade, a partir do quê todas as verdades se equivaleriam. O critério de verda- de, em psicanálise, é muito preciso: o efeito de verdade se produz quando o sujeito arca com as conseqüências da enunciação da qual parte seu enunci- ado, o saber inconsciente. Por essa razão, para quem se pretenda analista, passar pela experiência do inconsciente é fundamental. Única forma de transmissão desse encontro com a verdade, tal como a psicanálise a define. Pelo mesmo motivo, a interpretação constitui a prova da verdade sobre a qual o psicanalista se sustenta na sua prática. Isso, mais do que postular o conceito de ética em psicanálise, faz dela o exercício mesmo de uma ética muito específica. 7 EDITORIAL

Se assim não fosse, como entender a afirmação lacaniana de que “a impotência em sustentar autenticamente uma práxis reduz-se, como é comum na história dos homens, ao exercício de um poder”1? A validade de tal enunciado, podemos verificá-la não só na psicanálise em intensão, como também na psicanálise em extensão. Lacan, em seu ensino, não se furtou de apontá-la, seja na lida com a transferência, no transcurso de um tratamento, seja nos desdobramentos institucionais da psicanálise. Afinal, conduzir uma cura ou encarregar-se da transmissão psicanalítica tendo o analista como modelo é, antes de mais nada, exercício de poder. Já Freud, por sua vez, não deixara de pronunciar-se a esse respeito ante os rumos que tomava o movimento psicanalítico. Acreditando que uma comunidade de analistas era necessária para manter vivo e transmitir o discurso psicanalítico, temia por sua viabilidade, caso cada Sociedade viesse a editar suas próprias normas. No entanto, o fundador da Sociedade Psicanalítica de Viena não se poupou de criticar veementemente quando, a partir de 1925, seguindo-se o modelo burocratizado inaugurado pelo Instituto de Berlim, foram padronizadas as normas para a formação de analistas a serem reproduzidas pelas demais sociedades filiadas à IPA. Deu-se início, então, a um dos debates mais controvertidos da história da psicanálise, a formação psicanalítica para não-médicos. E mais. Seguramente não foi a modéstia que o levou a nos legar precisamente aqueles casos clínicos que testemunham curas “fracassadas”. Antes, caberia indagar: Qual era o impasse que tais transferências denunciavam? E o que podem nos dizer as recorrentes dissidências, rupturas, fundações e dissoluções institucionais, que fazem a história da psicanálise desde sua invenção até nossos dias? Eis aí o confronto inevitável que a análise coloca a todo aquele que se aventura a alcançar seu desenlace. Ocasião de questionamento radical de sua filiação, pois, ali onde o sujeito esperava contar com a verdade originária, o que encontra é a arbitrariedade do Outro, que o introduziu no discurso por um determinado traço, ao invés de outro. Diante da inevitabilidade de situar uma nova filiação, impõe-se a escolha: ou a tentação do poder, ou a sustentação de uma ética. Assim sendo, não é de surpreender o caráter de insistência que o tema da formação adquire, principalmente no seio das instituições psicanalíticas.

1 Lacan. A direção do tratamento e princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 8 1998. p. 592. EDITORIAL

Nossa aposta é de que tal retorno não se restrinja à mera repetição sintomática, para fins de puro deleite de analistas que teriam optado pela entrega a uma empresa inatingível a formação analítica. Conta-se que o tema retorne na dupla vertente de denunciar o impossível de tudo dizer, ao mesmo tempo em que nos debruçamos sobre a elaboração desta temática. Se a análise e a formação em psicanálise são intermináveis, é porque o inconsciente também o é. Porém, isso não significa que não possamos distinguir diferentes tempos lógicos em tais percursos, a saber, instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir. Na mesma medida em que a origem de um sujeito é brutalmente interrogada no desenlace da análise, também o é a formação de um analista ao se fazer cargo da transmissão da psicanálise. Desde a concepção radical de sujeito do inconsciente, herdada de Freud e Lacan, talvez não seja por demais forçoso supor que, tal qual o indivíduo, o coletivo de uma instituição analítica percorra os três tempos lógicos. Dezesseis anos se passaram desde a fundação da Appoa, em 1989. No curso de nosso primeiro ano de trabalho, a jornada A questão da formação do analista (vide Boletim da Appoa n° ¾), ocorrida em julho de 1990 foi a organizadora de estudos e debates associativos. Este ano, em maio de 2005, por iniciativa do Cartel do Interior da Appoa, estivemos novamente reunidos em torno do mesmo tema, em uma jornada interna, intitulada Transmissão e Formação. Os trabalhos então apresentados encontram-se reproduzidos a seguir, acrescidos de outros que, posteriormente, vieram a eles se juntar. Se estamos no momento de concluir ou no tempo de compreender, só o tempo dirá. Afinal, o tempo não pára.

9 TEXTOS O QUE NOS INTERROGA NA SUPERVISÃO?1

Ieda Prates da Silva2

RESUMO Este trabalho se propõe a apresentar algumas considerações sobre o lugar da prática de Supervisão na formação analítica e sua importância na clínica. A função do terceiro, que o supervisor vem a ocupar, possibilitando uma aber- tura na escuta analítica, faz do espaço da supervisão, juntamente com a aná- lise pessoal, o estudo teórico e a interlocução institucional com os pares, as condições necessárias para o exercício da psicanálise.Trata-se de um traba- lho conjunto, em transferência, e que permite avançar nos impasses da clíni- ca. Ao mesmo tempo, ao possibilitar ao analista em formação o encontro com outros estilos, proporciona um alargamento transferencial que contribui para o processo de desidealização, seja do espaço de supervisão, do lugar do analista ou da própria psicanálise. PALAVRAS-CHAVE: supervisão, formação analítica, transferência.

WHAT QUESTIONS US IN SUPERVISION? ABSTRACT This work intends to present some considerations upon the place of the supervision practice in the psychoanalytical formation and its importance at the clinic. The function of the third, that the supervisor comes to take, enabling an opening in the psychoanalytical listening, turns the space of supervision, along with personal analysis, theoretical studies and institutional exchanging with peers, the necessary conditions for the psychoanalysis practice. It is a joint work, within , that allows advances in clinical impasses. At the same time, as it enables the analyst in formation the encounter with other styles, provides a broadening of transference that contributes to the process of idealization decay, be it in the space of supervision, the place of the analyst or of his own psychoanalysis. KEYWORDS: supervision, analytical formation, transference.

1 Trabalho apresentado na Jornada Interna da APPOA sobre Transmissão e Formação, em 14/ 05/2005. 2 Psicanalista, Membro da APPOA, Psicóloga da equipe do Serviço de atendimento à criança e ao adolescente Françoise Dolto/NH. E-mail: [email protected] 1010 O QUE NOS INTERROGA...

os textos aos quais tive acesso sobre o tema da formação, destacou-se No fato de que as questões da análise pessoal, do lugar da instituição analítica, do estudo e da produção teórica assumem relevo maior na literatura psicanalítica sobre a formação do analista, do que a questão da supervisão.Por isto, talvez, ao lançar-me a pensar sobre este aspecto da formação, a primei- ra sensação que tive foi a de que me faltavam elementos para produzir um texto. No entanto, algo me instigava a fazê-lo, desde a minha experiência, desde meu percurso na psicanálise. É desde esta posição de falta que me interrogo e me proponho a compartilhar com os colegas algumas destas con- siderações. Enquanto realizava essas leituras, veio-me à lembrança um episódio da época em que eu era ainda estudante de psicologia. Lá pelo terceiro ano do curso, antes dos estágios, fui fazer um trabalho de entrevista para uma das disciplinas. O entrevistado era um menino de uns 11 ou 12 anos de uma escola próxima à minha casa. Realizei algumas entrevistas, através da escola, mas a coisa foi tomando proporção muito grande, e me vi por demais envolvida com a história e o sofrimento daquele menino. Ele descobriu onde eu morava e passou a procurar-me, querendo que eu continuasse a vê-lo, a escutá-lo; enfim, sempre tinha coisas a me dizer. Fiquei apavorada e não sabia como parar aquilo. Então fui conversar com as professoras, na Universidade. Lembro que havia mais de uma delas nessa reunião, e acho que alguns colegas também, não tenho certeza, já faz muito tempo. Quando comecei a falar da situação do menino – que me parecia ser de muito sofrimento – caí em prantos. Senti-me envergonhada por aquele choro e pela minha inaptidão, pela minha dificuldade de lidar com a situação daquelas entrevistas, pela incompetência de executar o trabalho da disciplina de forma “profissional”. Uma das professoras, que não era psicanalista, logo depois de me ouvir, disse que esperava que os anos e a formação em psicologia não me privassem disto, a que ela chamou de sensibilidade, de capacidade de se emocionar e de se deixar tocar pelo sofrimento alheio. Mas afastei rapidamente esta lembrança, para seguir lendo e tentando escrever sobre a temática da supervisão. Eis que ela, a lembrança, retornava por diversas vezes, e se impôs, por fim, que eu a tomasse a sério. Começando a pensar sobre o que aconteceu ali, e sobre o porquê dessa cena me retornar justamente agora (pois era algo que eu nunca mais havia recordado, a não ser neste momento em que começava a escrever), concluí que essa foi minha primeira experiência de supervisão. Vou tentar explicar. 11 TEXTOS

Eu me vi, naquele momento, com dificuldades para falar sobre o trabalho que realizara: fui tomada, de um lado, pelo choro e pela sensação de incapacidade por não ter conseguido manter a neutralidade necessária a um “bom psicólogo”, e de outro, pelo sentimento de impotência frente ao sofrimento daquela criança, pela qual eu nada podia fazer. Porém, a fala daquela professora me produziu um efeito de surpresa. Primeiro, por vir de um lugar inesperado. Segundo, por recolocar a questão de modo totalmente diferente de como eu a tomara. Aquilo que parecia contraindicar-me completamente para o trabalho clínico, ela apontava como algo importante, e que eu não deveria perder. O que perco, ali, é um enorme peso superegóico. Sua intervenção produz o efeito de aliviar minha angústia e de me permitir pensar. A primeira coisa que penso, meio confusamente, é que ela não tem razão, porque não é possível que eu siga sofrendo assim a cada vez que for escutar alguém. Mas, paradoxalmente, ela tem alguma razão, pois me leva a pensar em outras direções. Por exemplo, que eu talvez tivesse por demais idealizado o lugar do psicólogo: seu lugar de saber e de poder. Ela mostra-me, também, que, quando não sabemos o que fazer na clínica, temos que recorrer a outro, outro que esteja em posição de nos escutar e de nos falar. Não que ele vá nos dizer o que fazer, ou como fazer, mas que esteja em posição de ver a questão por outro ângulo, por mais que sejamos incisivos no que falamos ou no que mostramos. Outra coisa que aprendo naquela situação é a relativizar a verdade: ela já não parece estar toda num único lugar. Igualmente, onde eu esperava encontrar uma posição avaliativa, do tipo se agi certo ou errado, onde errei e como fazer para não seguir errando, etc., o que recebo de volta é uma frase que tem valor de descoberta para mim: estarei sempre incluída quando escutar o sofrimento do outro. A questão é de que forma me incluo aí; se me incluo a partir de meus fantasmas, ou se me incluo tomada pelo que transferencialmente o paciente irá reeditar na relação terapêutica. O fato é que, depois desse episódio na Universidade, algo se destranca e consigo fazer um corte naquela situação em que me enredava. Não importa o que moveu aquela professora a me dizer tal coisa, nem se ela estava certa ou não. O que me parece relevante é que sua intervenção produziu um deslocamento em minha posição de escuta: de escuta do menino, mas também de mim mesma; há uma mudança na forma como escutava a mim mesma naquela situação, o que me retirou de uma posição de autocensura, para uma posição de interrogação: “O que me cabe aqui? O que me é 12 O QUE NOS INTERROGA...

possível?” Por todos estes aspectos é que, a posteriori, tomo-a como uma experiência de supervisão. A palavra supervisão, de acordo com o Dicionário Aurélio, significa “ação ou efeito de supervisar ou supervisionar; dirigir, orientar ou inspecionar em plano superior”. (Ferreira, 1975, p. 1339). Tal significado não parece apropriado à prática, consagrada no meio psicanalítico, de um espaço privilegiado e particular de discussão clínica entre dois colegas, sustentada por uma relação de transferência de trabalho, em que o lugar de sujeito-suposto-saber, atribuído a alguém fora da cena analítica, possibilita um espaço terceiro entre o analisante e o analista. Supervisão é um termo comumente utilizado no meio pedagógico com esse caráter de inspecionar, supervisar, dirigir e orientar a prática de outro, ocupando o supervisor um lugar de mestria, em posição de saber ou de poder (ou numa superposição de ambas) e, parece, assim carregado de sentido superegóico. Esvaziar a palavra deste sentido comum permite apontar para outras significações: por exemplo, super-visão, no sentido de uma visão ampla, distanciada, “a boa distância”, que faz borda entre um dentro e um fora, inseparáveis por um lado, e inconciliáveis por outro. Trata-se de garantir a função do terceiro. Retornarei a este ponto mais adiante no texto. A denominação utilizada para esta prática, em francês, é controle (contrôle) ou análise de controle. Controle, também segundo o Aurélio, diz respeito ao

...ato ou poder de controlar; domínio, governo. Fiscalização exercida sobre as atividades de pessoas, órgãos, departamentos, ou produtos, para que tais atividades ou produtos não desviem das normas preestabelecidas. [...] Autodomínio físico e psíquico. Comedimento, moderação. (Ferreira, 1975, p.377)

Portanto, em nossa língua, a palavra controle está, mais ainda do que supervisão, imaginariamente tomada do lado normativo, de domínio de um saber ou de um poder. Valabrega (1983) contrapõe-se ao uso da palavra e da prática de controle estabelecido nas instituições analíticas, denunciando justamente seu caráter de rigidez, de hierarquia, de poder do “controlador” sobre o “controlado”, de intervenção excessiva do controlador sobre a análise em andamento (cujo analista está sobre seu controle). Indica que outros colegas seus, franceses, preferem a expressão análise assistida. E ele ironiza: “Por que não análise vigiada?...” (p. 78) E segue: 13 TEXTOS

De fato, todas estas designações escondem uma prática segundo a qual – às vezes sem que se perceba o risco – uma análise em curso pode vir a ser executada por pessoa interposta e não mais, como convém, apenas pelo analista do Sujeito em questão, ou seja, pelo analista responsável, mas pelo terceiro controlador, que atua então por meio de interpretações indiretas, e depois progressivamente impostas, até mesmo ordenadas, o que é muito mais grave (p. 78).

Sem entrar no mérito da questão do nome que se adote – embora nós, psicanalistas, saibamos bem que a questão do significante nunca é irrelevante –, obviamente não é este o modelo de supervisão que tenho em mente, tampouco é esta a prática que tenho vivido em minha experiência, seja como supervisionanda, seja como supervisora. Então, qual é o modelo, ou melhor, o que está em causa na prática da supervisão? E qual é seu lugar e sua importância na formação do psicanalista e na sustentação do trabalho clínico? A escassa produção escrita sobre o tema – pelo menos nas leituras que pude fazer – levaram-me a interrogar se a supervisão ocuparia imaginariamente um lugar menor na formação analítica, diferentemente da análise pessoal, do exercício da clínica e do estudo teórico, mais enfaticamente abordados quando se trata do tema da formação. A supervisão se converteria então num recurso eventual, buscado em momentos de grande impasse na clínica, ou quem sabe, destinada apenas aos iniciantes? Ou, o que dá na mesma, buscada como quem executa uma prescrição, cumpre um ritual, submete-se a ela como uma tarefa que a instituição ou o meio psicanalítico cobra do aspirante a analista? Se pensamos que a supervisão opera efeitos de formação por outra via que não a da prescrição – e creio que estamos todos de acordo quanto a este ponto – é por tomá-la como conseqüência direta da implicação e da responsabilidade do analista em formação (e qual analista não está, a rigor, em contínua formação?) com a sua clínica; como conseqüência do seu desejo de psicanalista; e como compromisso de conferir à sua atividade clínica uma “significação e uma força verdadeiramente analíticas” (Valabrega, 1983, p. 49). Podemos lembrar, como primeiro ponto, a importância ou mesmo a necessidade, na trajetória de formação de um psicanalista, de que outros analistas, além do seu próprio, participem deste percurso de formação. A diversidade de estilos e de escuta, os diferentes cruzamentos transferenciais, possibilitam uma formação em que a identificação não seja ao analista ou ao supervisor, mas à psicanálise. Uma posição em relação aos princípios, à 14 O QUE NOS INTERROGA...

teoria e à ética psicanalítica, na qual o sujeito se inclui e se diferencia ao mesmo tempo, construindo o seu próprio estilo. Se inclui porque ele faz parte de uma série, herda um legado e uma dívida de transmissão. Diferencia-se porque está desde o início responsabilizado pelo ponto em que se encontra em seu percurso de formação, e a forma como sustentará e dará mostras deste percurso será única, singular. A supervisão constitui-se como ferramenta crucial para preservar o lugar terceiro no processo de análise. Primeiramente, esta necessidade me era clara na situação do par analisante-analista, não só pela escuta de impasses que percebemos em determinada situação ou caso clínico, mas principalmente pela escuta de impasses despercebidos por nós, os quais nos escapam quando a transferência nos enlaça sem fazer ruído. Mas não só lugar terceiro em relação a este par, como também – e só agora me dou conta mais claramente disso –, terceiro em relação à tendência à identificação com seu próprio analista. Valabrega (1983) propõe o termo análise quarta no lugar de controle, considerando que a dimensão terceira já está presente na díade analisante- analista, e que o supervisor (na terminologia que estou usando e que é a mais comum entre nós) entra como o quarto elemento: o primeiro seria o analisante; o segundo, o analista; o terceiro seria o analista do analista; e o quarto, portanto, o supervisor (p. 50). É certo que, para que esteja em curso efetivamente uma análise, a dimensão terceira estará ali presente. Mas justamente para garantir as condições transferenciais de operação deste lugar terceiro é que a supervisão, além da própria análise do analista, ocupa, em meu entender, lugar central na formação psicanalítica. Transcrevo agora uma frase do autor, em que aparece algo curioso, que tomei por um lapso de escrita, ou de tradução, não importa: “Os analistas quartos têm por função descobrir uma vida [via?] de acesso ao candidato e ajudá-lo a identificar os pontos de contato e interferência da sua prática com a sua própria análise” (1983, p. 51). Digo que não importa de quem é o lapso, porque Isso (o inconsciente) fala ali: vida no lugar de via aponta, em minhas associações, para o vívido-vivido de uma supervisão. Vívido diz respeito à dimensão de resgate da vitalidade da clínica na prática de supervisão, ao nos colocar em causa através de nosso discurso em transferência. E é no vivido da experiência de supervisão que algo de nossa clínica nos interroga, através do que falamos conscientemente do caso (e o caso em questão não é o paciente, e, sim, o próprio tratamento), mas também, e principalmente, 15 TEXTOS

através dos lapsos, das repetições inadvertidas, dos “brancos”, da angústia ou da emoção que nos atinge naquele momento; o que vem a ser trabalhado, no espaço da supervisão, ao nível da relação transferencial, obviamente; mas que não deixa de provocar desdobramentos na própria análise do supervisionando, produzindo efeitos de formação. Gostaria de introduzir algumas contribuições de um texto de Ferenczi, intitulado Elasticidade da técnica psicanalítica, que é a publicação de uma conferência proferida na Sociedade Húngara de Psicanálise, em 1928. Ele afirma a inutilidade da transmissão de regras ou preceitos técnicos. Mas reafirma, com Freud, a regra fundamental por parte do analisante: associar livremente; e a segunda regra fundamental, que recai sobre o analista: “quem quer analisar os outros deve, em primeiro lugar, ser ele próprio analisado” (Ferenczi, 1992, p. 26). Não fala da supervisão, mas há algumas passagens do texto que me fizeram pensar nesta questão. Sustenta que as condições de praticar a psicanálise se apóiam numa longa formação, e não se restringem apenas a pessoas especiais, embora reconheça que “haverá sempre os artistas de exceção, de quem esperamos os progressos e as novas perspectivas” (p. 26). Aborda a liberdade de decisão e a responsabilidade do psicanalista com o andamento do tratamento, dizendo que o analista deve- se guiar na clínica pelo que ele nomeia de tato psicológico: “...de saber quando e como se comunica alguma coisa ao analisando, quando se pode declarar que o material fornecido é suficiente para extrair dele certas conclusões; como se pode reagir a uma reação inesperada ou desconcertante do paciente; quando se deve calar e aguardar outras associações; e em que momento o silêncio é uma tortura inútil para o paciente, etc.” (p. 27). Em seguida se pergunta: “Mas o que é o tato? O tato é a faculdade de ‘sentir com’ (Einfühlung)” (p. 27). Refere que é a experiência clínica, de um lado, e a própria análise, de outro, que possibilitam ao analista esta faculdade de se deixar levar pelas associações do analisante, mas permanecendo atento à força da resistência. Penso que ele está se referindo aqui ao trabalho em transferência, à possibilidade de o analista se incluir na cena. E justifica o título do artigo, Elasticidade da técnica analítica, com a seguinte metáfora:

É necessário, como uma tira elástica, ceder às tendências do paciente mas sem abandonar a tração na direção de suas próprias opiniões, enquanto a falta de consistência de uma ou outra dessas posições não estiver plenamente provada (p.32).

16 O QUE NOS INTERROGA...

O autor recomenda modéstia e humildade ao psicanalista, lembrando que “a modéstia do analista não é uma atitude apreendida, mas a expressão da aceitação dos limites do nosso saber” (p. 31). Parece-me que o que está em questão aqui é se deixar guiar pela transferência e, ao mesmo tempo, poder situar-se em relação a ela. E isto só poderá ser sustentado no alargamento de um espaço terceiro. A supervisão não elimina o lugar solitário da posição do analista, nem tampouco a radicalidade da responsabilidade para com sua clínica. Mas produz um alargamento transferencial que possibilita deslocamentos na escuta, operando efeitos de formação analítica. Em supervisão, falamos da clínica e, ao falar da clínica, é nossa análise que fala ali. Não me parece que seja na posição de analisante que falamos no espaço da supervisão, nem de analista, e sim numa posição de deixar falar o analisante através de nós (vale aqui a polissemia do significante), através de nossa transferência: tripla transferência, com o analisante, com o supervisor e com o nosso próprio analista. Ou seja, falamos desde um ponto de ignorância em relação ao saber inconsciente. É aí que o processo de análise e a prática de supervisão confluem, produzindo efeitos de formação analítica. Peres (1999) traz outro elemento interessante, ao retomar o dizer de Christian Hoffmann de que o lugar do supervisor se equipara ao lugar do auditor no chiste:

[...] O chiste coloca o jogo de palavra e o não-senso ao abrigo da crítica da razão; ele necessita de uma outra pessoa a quem se dirigir [...] O chiste é um processo que acontece entre três pessoas: a primeira que fala, o ‘eu’, a segunda sobre quem se fala, e a terceira que escuta. Assim, o chiste abala a certeza do sentido e o domínio do julgamento do eu e confia ao Outro a decisão de finalizar o trabalho do chiste (p. 172).

Ou seja, um sentido novo, mas que não é da ordem do entendimento, e, sim, da ordem do significante, emerge ali, possibilitando novas posições de escuta e de intervenção na clínica. O chiste põe em evidência a estrutura mesma do inconsciente. Esta parece ser a função da supervisão: manter aberta a escuta às formações do inconsciente. Portanto não se trata da transmissão de um “bom modo de fazer”, ou de um saber sobre a clínica. Também não se trata de uma identificação ao estilo de outro analista, sustentado em transferência num lugar de sujeito-suposto-saber. Aliás, estilo não é algo que se possa copiar ou imitar. Diz respeito à singularidade de cada um na sua posição frente à castração do Outro. 17 TEXTOS

Termino, sem concluir, fazendo minhas algumas palavras de Peres (1999): A psicanálise é uma prática do singular e a instituição psicanalítica – (e agora acrescento eu) igualmente o espaço de supervisão – deve ser um lugar para abrigar esta singularidade. Como o psicanalista, a instituição também deve manter um estilo e, por isso mesmo, é fundamental que ela não se universalize e que possamos, cada um, fazer o percurso solitário do encontro consigo próprio. Porém, é pelo reconhecimento do terceiro que esse encontro se materializa em descoberta” (p.173).

Que, em nossa práxis, possamos manter aberto e vigorante este lugar terceiro.

REFERÊNCIAS: FERENCZI, Sándor. Obras completas – psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992. FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. PERES, Urânia T. Mosaico de letras: ensaios de psicanálise. Rio de Janeiro: Escuta, 1999. VALABREGA, J-P. A formação do psicanalista. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

18 TEXTOS A ANÁLISE DE CONTROLE1

Isidoro Vegh2

RESUMO O texto busca formular os motivos pelos quais a análise de controle - mesmo que não obrigatória – torna-se necessária para a formação do analista. Dentre as razões contingente-temporais está a análise de controle enquanto acompanhamento do jovem analista que ainda não concluiu sua análise pessoal. E, como razão estrutural, associa-se ao quarto elo do synthome, ou seja, àquilo que falha na estrutura e que se resolve somente no real. Para um analista, este real pode ser sua prática clínica. PALAVRAS-CHAVE: análise de controle, formação do psicanalista, letra.

THE CONTROL ANALYSIS ABSTRACT The text intends to equate the motives through which control analysis – even if no obligatory – becomes necessary to the formation of the analyst. Among the time-contingent reasons there is the control analysis as follow up of the young analyst that has not yet concluded his personal analysis. And, as a structural reason, it is connected to the fourth link of the synthome, that is, to what fails in the structure and that finds a solution only in real. For an analyst, this real could be his clinical practice. KEY-WORDS: control analysis, formation of the psychoanalyst, letter.

1Exposição realizada no Colóquio de verão Resistencias al discurso analítico, nos dias 13, 14, e 15 de fevereiro de 2000. Traduzido por Karina Djambolakdjian Torossian. 2 Psicanalista, membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires. 19 TEXTOS

ORIGEM DE UM ERRO ui convidado a deter-me num obstáculo que nos concerne a partir de um Fconsiderado painel Análise de controle. Se conseguirmos reconhecer, na paróquia que compartilhamos, algo que entre nós tem-se convertido em uma inibição, provavelmente o transformemos em sintoma e possamos, com isso, fazer algo melhor. Responder a um erro, assumindo posição simétrica, não é senão ficar imerso num erro simétrico: a IPA, ainda hoje, continua exigindo de seus candidatos controles obrigatórios, que devem ser aprovados após se- rem realizados com os analistas indicados; aquilo que tem relação com o desejo do analista não se pode constituir como um procedimento burocrático, mas daí a crer que isso se resolve remediando a sua prática é deslizarmos para outro erro: o erro que cometemos foi deixar de lado – pelo menos isso ocorreu com muitos – a prática de controle, um dos pivôs que Freud foi o primeiro a introduzir. Isso é história: conforme conta Jones, na bibliografia clássica. Steckel, que era paciente de Freud – naquela época as análises duravam poucos meses, o único objetivo que possuíam era desfazer os obstáculos que impe- diam o analista em aceitar os principais postulados da teoria analítica – termi- na ou suspende (nessa época não se discriminava) sua análise com Freud, e lhe pede para falar de seus pacientes.Isso ocorre por volta de 1904. Freud, como em tantas outras ocasiões, aceita e descobre que era um caminho vá- lido para a formação do analista. Lacan, que nesse aspecto foi clássico, o manteve: do mesmo modo, como manteve o didático. O que para nós pode também ser válido. Que a análise de controle não seja obrigatória, não quer dizer que não seja necessária; estou de acordo que não a façamos de forma burocrática, mas que a propiciemos me parece ainda melhor.

SUAS RAZÕES Se quisermos avançar além do fato proposto por Freud e que Lacan avalizou, quais seriam as razões estruturais para que um jovem analista, além de fazer seu didático, no qual isso todos concordamos, também faça a análise de controle? Não são iguais, mas nos convidam a apontar suas diferenças. Há razões contingentes e temporais, e outras são necessárias e estruturais. Entre as razões contingente-temporais, que são as mais simples de reconhecer, é raro, quase não ocorre, que alguém inicie sua prática recém 20 A ANÁLISE DE CONTROLE

ao final de sua análise. Lacan (1968), nas teses Proposición del 9 de octubre, ensina que o final da análise se constitui quando o analista passa da posição de analisante à de analista. Isso, em termos de direito, mas de fato não ocorre. Eu não fiz o meu percurso assim, e acredito que a maioria também não. O habitual é que o jovem analista inicie sua prática antes de ter terminado a análise. Esta é uma razão de ordem prática, que convida o analista a levar para a análise de controle seus obstáculos. Mas isto seria permanecermos num aspecto da questão. O outro, e mais importante, e que inclusive pode levar alguém que termina sua análise a fazer, ainda, uma análise de controle, tem razões necessárias, que também são estruturais. O que significa dizer que são razões estruturais? Fácil é dizê- lo, o problema é sustentá-lo: quando Lacan avança na sua teoria e propõe o synthome, o quarto anel, como parte da estrutura, é sua maneira de dizer que há algo na estrutura que falha, e que se resolve somente no real. Para um analista, esse real poderia ser sua própria prática. Razão estrutural, a falha da estrutura do analista, insolúvel em qualquer análise pelo caminho simbólico, só é remediável no caso, além do que pode fazer com seu gozo parasitário desde a perspectiva simbólica, de que resolva colocá-lo em causa com alguma articulação viável no real. Esta é uma razão estrutural para a qual a prática do analista aparece como uma oportunidade. Pode tender ao pior, quando ocorre o exercício de um gozo perverso, seja porque o sofra como inibição ou que o exerça nos analisantes; ou pode ser uma oportunidade melhor, caso enlace seu gozo parasitário para a criação. Há muitos anos, Theodor Reik disse que “não há análise sem invenção”.

A ESTRUTURA Qual é a estrutura da análise de controle? Na sua apresentação descritiva, o analista conta o que ocorre em sua prática com um paciente a alguém que se situa na função de controle. Apresenta, então, o relato do analista, o paciente ao qual alude esse relato e o analista-controle. A que se refere o relato do analista? Ao dizer, ao fazer e ao sentir de seu paciente. Alguém poderia me perguntar: “e por que não ao pensar?” Podemos acrescentar, o que ocorre é que o pensar, como nos ensinou Lacan, é um dizer interiorizado. O analista relata o dizer, o fazer e o sentir de seu analisante; pode ser para formular sua pergunta, algo que no relato lhe chega como interrogação. Isto não é simples e serve para detectar os tempos de formação: à medida que avança na sua experiência, é mais realizável a formulação de sua pergunta. Quando se é iniciante, não se sabe nem o que interrogar. Nesses 21 TEXTOS

casos, ao invés da pergunta como enunciado, irrompe a pergunta em ato, sob a forma de um tropeço. É tarefa do analista de controle dar a esse tropeço o valor de uma pergunta. Seria uma maneira de reconhecer, em ato, os limites de uma escuta ou de uma intervenção.

AS INTERVENÇÕES Quais seriam as intervenções de controle? Como intervém o analista em função do controle? Vou dizer a minha posição, aceito que possa haver diferenças, mas é o que a minha prática me ensina, como a penso hoje. Parece- me que a análise de controle surge do relato que o analista faz de um analisante. Pode ocorrer – quando se estende no tempo – que o analista, algumas vezes, conte coisas de sua própria história. Parece-me que, nesse ponto, é pertinente que a análise de controle escute, faça silêncio, e somente intervenha através do relato do paciente. Quando isso não é respeitado, tende a aparecer o que poderíamos chamar de uma clínica de controle, cuja manifestação clássica - está descrita em arquivos da IPA, há anos isto tem sucedido - é a produção de conflitos no analista que controla, entre a sua análise e o controle: começam a jogar, cada um como resistência perante o outro. Parece-me uma atitude de prudência que o controle somente intervenha – se é que o analista, alguma vez, contar algo que corresponda a sua história – através do relato do analisante, como uma manifestação transferencial, que não vai ser denunciada em função da história, nem das marcas do analista, mas situada no relato do analisante. Tratar-se-á de tomar aquilo que o analista conta como sua resposta ao efeito da trama transferencial. O que o analista diz na cena de controle, devemos lê-lo como efeito que se apresenta frente ao discurso do analisante. Qual é a primeira tarefa na análise de controle? É estimular o analista para a confiança do discurso. De qual discurso, do seu, do analisante? De ambos. Ajudando-o a que descubra que, à medida que ele é sensível ao dis- curso de seu analisante, traz nesse as respostas que custa a reconhecer. Não se trata de respostas que o controle fornece na sua exterioridade, mas daquelas que o controle o ajuda a descobrir em seu próprio relato; por exem- plo, na seqüência de seus enunciados. Ajudá-lo a valorizar suas representa- ções imaginárias, seus sentimentos, apreciar sua leitura, incluindo seus erros e advertir seus afetos com afetações do real. Alguém poderia contestar: Voltamos à contratransferência? De forma alguma, valorizá-los significa reconhecê-los, aceitá-los, recebê-los com os 22 A ANÁLISE DE CONTROLE

braços abertos, agradecer que tudo isto ocorra. Para quê? Neste aspecto é onde nos diferenciamos profundamente do que foi a análise de controle para o pós-freudismo, para cotejar com a letra isso que o analista recebe como efeito, sem excluir nada do que lhe ocorre na sessão: “me chateio, estou cansado, tenho vontade de suspender a análise, eu amo esse paciente, o outro me dá pena”. A pergunta: O que disso é um efeito que a letra do analisante produz em mim, quando na transferência se organiza no discurso? Qual é o problema dessa letra? Por que a análise de controle é necessária? Porque, também, o analista joga com a dificuldade que é, para qualquer pessoa, o encontro com o inconsciente. A única coisa que o inconsciente quer é retornar; no entanto, há resistências que se opõem a esse retorno. E quais são as resistências primordiais que registramos numa análise de controle? A primeira e essencial é aquela que diferencia a psicanálise de qualquer outro tipo de terapia. Levando em consideração que qualquer outra forma de terapia tende a coincidir, de um modo aproximado, com a escuta da vida cotidiana, a escuta do sentido. O primeiro obstáculo a frisar é a tentação do sentido, ajudar o analista para que tenha confiança na letra que carrega, mesmo sem sabê-lo, é advertir que ela é mais valiosa que a coagulação do sentido. Segundo: convidar o analista, ali no ponto em que possui uma teoria de seu paciente – e todo analista está tomado por uma – a exercitar-se na flexibilidade de sua certeza. “Será assim? Não poderia isso ser modificado com a novidade que aparece? Poderia ter me enganado? O paciente reclama, talvez ele tenha razão?” Então, em segundo lugar, ajudar o analista a revisar suas teorias sobre o paciente, e a fazê-lo com tranqüilidade. Conforme me ensinou um amigo, desde a sua perspectiva de homem sábio: “Se eu mudei nesse aspecto, não é certo que somente uma pessoa que carece de inteligência não muda nunca sua forma de pensar?” É, por acaso, uma virtude manter sempre a mesma opinião? E a terceira questão: a mais complicada e difícil, é guiar o analista a detectar – não o interpretando, mas através do cotejo de seu tropeço com o que sua própria letra lhe indica como caminho – o seu gozo parasitário. Conto um caso: trata-se de um analista, inteligente, capaz, com talento para encontrar-se com o inconsciente, anos de prática e, à medida que a análise de controle avançava, fazia-se notório o traço de seu obstáculo. Sempre que falava de um paciente dizia: eu faço o corte aqui e aqui, e fazia gestos nada amigáveis com suas mãos. Era notório que havia uma fruição nesse corte, ao qual o analista estava acostumado. Tinha o seu lado positivo: há 23 TEXTOS

analistas que fazem seu tropeço ao contrário, pela sua posição fóbica, não podem produzir um corte. Neste caso, ele não sofria disto. A sua dificuldade era descobrir que, pela sua história, nesses cortes, infiltrava-se um gozo parasitário que ele não conseguia reconhecer. Tratava-se de mostrar-lhe, na sua própria letra, que esse excesso era algo que lhe concernia. Até que um dia me falou: “Certas repetições que descobri na análise de controle levaram- me a revisar aspectos meus importantes em minha análise”. Não me disse quais, mas aposto que tem relação com isso. Jamais fiz uma intervenção que sublinhasse a sua história pessoal. Como se fazem as intervenções no relato? Inicialmente é sublinhando a letra, que incita à confiança ao discurso como ao duelo de sentido. Quando se toma o gosto pela escuta da letra, torna-se ingrato o retorno ao sentido. Também se intervém abrindo as perguntas no fechamento das teorias. E, finalmente, introduzindo as letras que demarquem o gozo. Por exemplo, conto uma, e não mais, para não descartar muito o meu baralho. Às vezes é suficiente uma intervenção como esta: “Que história a desse paciente. Que triste o que lhe sucedeu!” Assim, como de passagem. E produz-se um giro no discurso do analista. Tentava, onde fazia o gesto com a mão tensa, que notasse que batia na dor, é verdade que o paciente tem que cortar com o modo como responde a essa dor; no entanto, não reconhecendo primeiro a dor, não irá consegui-lo.

DIFERENÇAS Encontramos-nos com uma diferença entre a análise de controle e o que seria o controle grupal, ou a supervisão grupal. Tinha meu prejulgamento, devo reconhecê-lo, perante as práticas grupais na psicanálise. Na Escola, surgiu um procedimento que atualmente alguns praticam, inclusive comigo. Eu o faço com quatro analistas. Cada um apresenta um caso por semana e conversam, eu também digo o que me parece; devo reconhecer que é uma prática valiosa, pelo menos até onde avalio a série que estou fazendo. Possui as suas vantagens: os analistas, como serão convidados falar de seus casos, escutam com atenção os colegas, não cochilam quando o outro fala. Nos seus comentários, começam a adquirir confiança no discurso, o que é essencial. No entanto, encontro um déficit: no controle grupal é difícil seguir a seqüência de uma análise, os tempos na direção da cura, a transferência em seus diferentes tempos lógicos e, assim, os modos de intervenção do analista. Acredito que isso pode-se registrar bem em uma análise de controle, do mesmo modo que o fato de ressituar, até o possível extremo, o gozo parasitário do analista. 24 A ANÁLISE DE CONTROLE

CONCLUSÕES Um breve relato, contra-exemplo do proposto. Diz uma história da tradição zen que havia dois professores, cada um dirigia um santuário. Costumavam ensinar a seus alunos a arte da resposta. Um dia encontram-se o aluno de um professor com o aluno do outro. Um pergunta ao outro que se dirigia à fruteira:”Onde vais?” Aquele lhe responde: “Onde os meus pés me levarem”. O primeiro, confuso, retorna e conta a seu professor o que o outro respondeu. O professor sugere: a próxima vez, quando ele te disser “Onde meus pés me levarem”, tu lhe dizes: “E onde irias se não tivesses pés?” Verás que será ele que ficará desolado. Eles voltam a se encontrar, e lhe pergunta novamente: “Aonde vais?” O outro responde: “Aonde o vento me levar”. Volta a ficar desorientado, regressa a seu mestre e lhe conta o ocorrido. O professor insiste: a próxima vez que disser “Onde o vento me levar”, tu respondes: “E onde irias se não houvesse vento que te levasse?” Retornam a se encontrar: “E onde vais?” O outro responde: “À fruteira”. Se a análise de controle propõe respostas e receitas, ela obterá o fracasso. Porque não se trata da transmissão de conhecimento, como no exemplo que acabo de dar. Tampouco de um ensino artesanal, de um savoir- faire, mas sim de um savoir-y-faire, de um saber fazer aí: saber fazer aí com o quê? Com o seu ser. Se o instrumento de um violinista é o seu violino, é imprescindível que soe bem (isto o dizia Michèle Montrelay numa entrevista). É necessário que o analista tenha uma boa relação com o seu ser, com suas bondades, e ainda com suas maldades e que as aceite com carinho. Não para um retorno à contratransferência, mas para cotejá-las com a letra, pois se não há confiança em relação ao que o seu próprio ser lhe brinda, a prática da análise é irrealizável.

REFERÊNCIAS: LACAN, Jacques. Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de I’Ècole en Scilicet. Paris: Èditions du Seuil, 1968. p. 14. MONTRELAY, Michèle. Entrevistas sobre el control. In: ______. El control, cuestión para psicanalistas. Buenos Aires: Nueva Visión, 1961.

25 TEXTOS SEM SUPERVISÃO NEM CONTROLE (algumas notas)

Ricardo Goldenberg1

RESUMO Ao inventar a psicanálise, Freud instituiu um discurso novo com conseqüências reais para os participantes. Os conceitos que usamos para falar da experiência que este discurso faz possível nem sempre acompanham a sua novidade. Não se trata de sermos modernos, afinal a prática em questão já tem um século, mas muitas vezes carregamos junto com as palavras que usamos as suas acepções perimidas, o que não pode deixar de afetar a nossa prática. É o caso da supervisão ou do controle. Examinar este anacronismo é o que me ocupa neste artigo. PALAVRAS-CHAVE: controle, supervisão, abstinência, desejo de analista.

WITHOUT SUPERVISION OR CONTROL (a few notes) ABSTRACT Inventing psychoanalysis, Freud established a new discourse with real consequences to the participants. The concepts used to tell the experience that this discourse makes possible not always accompany it novelty. It is not to be modern, as the practice under question is already one century old, but several times we carry along with the words we use the obsolete concepts, what cannot be without effects upon our practice. That is the case of the supervision or control. To examine this anachronism is what occupies me in this article. KEY-WORDS: control, supervision, abstinence, desire of the analyst.

¹ Psicanalista, membro da APPOA e do Percurso Psicanalítico de Brasília. Doutor pela PUC/ SP. Autor de vários artigos e livros, entre eles No círculo cínico ou Caro Lacan, por que negar a psicanálise aos canalhas?(Relume –Dumará, 2002). E-mail: [email protected] 2626 SEM SUPERVISÃO NEM CONTROLE

o seu, hoje famoso, Psicanálise, profissão impossível, Janet NMalcolm(1981) se ocupou apenas de um dos pés do denominado tripé da formação psicanalítica. Parece uma boa idéia seguir seu exemplo na abor- dagem dos outros dois. Em outro lugar tratarei do estudo teórico da doutrina. Aqui me interessa encaminhar algumas notas sobre a bem conhecida prática de receber (d)o colega para conversar sobre as análises que ele conduz. Acreditamos saber o que se espera de nós nesta tarefa e também o que se espera de quem nos procura, e tal crença nos impede de reconhecer na ativi- dade em questão a mesma impossibilidade que atribuimos à psicanálise. Não cabe aqui nos alongarmos sobre o status teórico de tal impossibi- lidade, baste observar que tem a vantagem de nos levar a entender que há no exercício da associação livre-regra de abstinência2 algo profundamente pro- blemático a ser pensado. Não digo que as palavras nos faltem, o que quero dizer é que nenhuma língua aprendeu ainda a nomear cabalmente este afa- zer, sem tentar assimilá-lo a práticas conhecidas e de longa data aboletadas nos discursos do mestre e do universitário. A experiência em si comporta, portanto, um quê de indizível, já reconhecido por alguns, como Valabrega(1992), mas nunca tematizado como tal. Como indizível não quer dizer inefável, uma vez reconhecida esta limi- tação lexical nas nossas línguas, sempre será possível descrever tal tarefa mediante perífrases, circunlóquios ou por analogia, alegoria ou através de metáforas. O risco é que, por falta de perceber a impossibilidade que existe no seu cerne, acabemos curvando-nos à tirania imposta pelo lugar-comum e façamos da prática do terceiro pilar da formação psicanalítica ora o controle da análise de outra pessoa, ora a supervisão do trabalho do colega. Como não se trata nem de uma coisa nem da outra, mas não temos outro termo adequado para nomear aquilo de que se trata, doravante se verão proliferar as aspas de ironia sobre as palavras em questão. 1) Da crítica do conceito de contratransferência, de finais da década de 50, e da Proposição de outubro de 1967 sobre o analista da escola, surgiu um nefasto mal-entendido, de cujos efeitos padecemos até hoje. Falo do autori- zar-se por si mesmo do psicanalista lacaniano. O experimento transferencial a que deu lugar a Proposição..., denominado o passe, já atravessou duas gerações e ainda espera uma crítica digna do nome (a dissolução da Escola Freudiana de Paris em 1980 não mudou nada, apenas desqualificou os cole- gas que dele participavam e jogou para as calendas, como uma promessa, o

2 O par complementar não é associação livre-atenção flutuante, já que esta última depende da abstinência do analista; me explico um pouco mais adiante. 27 TEXTOS

advento de verdadeiros lacanianos que levassem esse experimento até as últimas conseqüências). Quanto à contratransferência, do que se tratava era de pôr em questão a noção de intersubjetividade, que, justiça seja feita, nunca fora criticada por ninguém antes de Lacan. O anátema que caiu sobre a contratransferência como instrumento clínico, entretanto, decorre menos daquela crítica que de sua transformação em consigna pelos discípulos. Já não é sem tempo de suspender tal consigna. A tentativa atual de se contrapor àquela demonização mediante uma re-psicologização da psicanálise parece-me, entretanto, um retrocesso lamentável a uma conceitualizão perimida da clínica psicanalítica. Não é dos menores paradoxos que a psicologia esteja retornando pela mão de lacanianos arrependidos. Na minha opinião, a renovação do conceito de transferência mediante a confecção dos conceitos de desejo do analista e de sujeito-suposto-saber continua absolutamente vigente e é capital para a dis- cussão frutífera sobre a supervisão e as suas vicissitudes. 2) Como, no caso da psicanálise, está em jogo aqui a especificidade do objeto de que se trata, e se digo que a supervisão também gira em torno do petit a é antes para chamar a atenção sobre a natureza do pedido de auxílio dirigido ao colega do que para fazer uma profissão de fé lacaniana; eu escuto tal pedido menos como um apelo a minha longa experiência clínica que como a necessidade de uma testemunha solidária. Solidária com o fato de meu colega suportar mal a solicitação pulsional de seu inconsciente feita por um determinado paciente. Quero dizer, um psicanalista que se descobre tomado na transferência por uma exigência pulsional vinda do seu analisante, angus- tiante para ele, se dirige a um colega que supostamente passou por uma aflição semelhante e pode ter idéia menos de como sair do sufoco que daqui- lo pelo que o outro está passando. E não recuaria aqui por causa do cheiro de enxofre frente à palavra Einfühlung, traduzida em geral como empatia, mas que inclui dentro dela a idéia de saber ver com os olhos do outro. E quando menciono a solidariedade não estou sugerindo contribuir com o desconhecimento próprio do meu ego para o do meu alter-ego. Ao contrário, ao pensar nele como um par, tenho em mente antes nossa comunidade de experiência que o espírito de corpo da confraria. Esta vivência comum me torna apto para assisti-lo num conflito pelo qual eu mesmo passei inúmeras vezes, com maior ou menor sucesso, sem julgá-lo nem me propor como cúmplice. Ou seja, sem tratá-lo como um estranho. 3) Há pouco fiz observar a um psicanalista, que me indicava com preci- são o ponto em que, durante a sessão do seu paciente, seu próprio sintoma 28 SEM SUPERVISÃO NEM CONTROLE

impunha um desvio a sua intenção, para fazê-lo retornar às trilhas da repeti- ção de sempre; fiz com que notasse, dizia, que a regra de abstinência não se enuncia de modo idêntico para todo mundo. A abstinência não é relativa a um código moral ou deontológico geral, mas à fantasia fundamental de um psica- nalista, que aciona seu sintoma como defesa contra uma pulsão desencadeada, na transferência, pelas demandas inconscientes do paciente. Neste caso, abster-se era abster-se de recuar de uma intervenção que ele mesmo reputava que devia ser feita. O desejo do analista há de permitir-lhe superar sua relutância para intervir mesmo assim; apesar de si mesmo, diga- mos. Da análise do analista dependem tanto a sua escuta como a confiança no escutado (a famigerada autorização), mas é do desejo do analista que depende que possa fazer o que deve ser feito, à revelia do que seria, em qualquer outro contexto, mais forte que ele. Em suma, uma vez que alguém se acredita habilitado para ocupar a poltrona do analista, não se pode permitir ceder à sua inibição frente ao paciente (e note-se que não agito a bandeira da falta de análise: o critério de uma análise finda não é o desaparecimento da neurose do analista, senão a sua aptidão para reconhecer como e quando inclui seu paciente nela, acrescida da habilidade para tirá-lo dali). Acostumados como estamos a falar da direção do tratamento, supo- mos que é o analista que dirige a análise, mas, a bem da verdade, ela não precisa de direção a não ser quando emperra. Enquanto estiver impulsada pelo seu próprio movimento, o analista, se bem não seja supérfluo e deva estar presente, há de permanecer silencioso (morto, dizia-se antigamente). Sua presença deve fazer-se sentir, entretanto, no momento em que a análise se detém, já que, devido à transferência, ele faz parte do obstáculo, ainda que nem sempre seja o causador do impasse. Freud indicava o momento da re- sistência senão como o mais propício, como aquele em que a interpretação era inevitável. Em geral, associa-se o pedido de supervisão a um momento de resistência e de impasse. Eu diria, antes, que se procura assistência quan- do falha a direção, no momento em que a análise precisa dela por estar desgovernada. 4) Que os problemas de direção acontecem quando o condutor se atra- palha com o trânsito da demanda inconsciente que o paciente lhe dirige é ponto pacífico. O que não é tão pacífico é como chegar a um acordo sobre o lugar e a função do instrutor nessa auto-escola. No fim das contas, não é seu inconsciente que está sendo solicitado mas o do consultante. A expressão popular consultar-se com alguém me parece apropriada para definir a super- 29 TEXTOS

visão e o objeto de que trata. Consultar a si próprio através do Outro para perceber de que objeto (a) se é o depositário. Como relação de aprendizagem, a consulta de controle depende da experiência prévia do consultante com seu inconsciente. Pode-se, com efei- to, aprender de si mesmo na supervisão, se já se aprendeu a reconhecer o próprio inconsciente vindo do interlocutor, no tempo em que se era analisante. Já o papel do consultor é mais ambíguo; não se pode fazer de morto, mas tampouco é o interpretante. E, como dizia acima, para se habilitar como teste- munha, deve estar estabelecida uma relação de mútuo respeito, para não dizer reconhecimento, entre ambos participantes. 5) Um analista que se analisa comigo e que no fluxo da associação livre me fala de um problema com um paciente dele não está fazendo uma supervisão. Sabe que darei ao que me conta o mesmo ouvido que daria se o tema fossem as reclamações da sua mulher. E como outras vezes ele tomou a liberdade de me pedir uma hora extra, para falar talvez sobre este mesmo paciente, está claro que não confunde os lugares e que espera de mim duas respostas diferentes. Cabe-me o cuidado de não tomar uma demanda pela outra, embora, de certo modo, a transferência seja uma só3 . Que seja uma só pode significar que estaremos reproduzindo no meu consultório a mesma montagem instalada entre ele e seu paciente, em cujo caso o que se espera de mim é antes uma atuação que um comentário. Na época da inflação galo- pante, depois de passar o novo valor dos honorários, no final de uma sessão na qual se tratara de modo geral de valores, ouvi a título de queixa: “Eu não posso aumentar assim para os meus pacientes...” A minha resposta nada meditada foi: “Eu posso.” Já em posição de supervisor, quer se trate de paciente meu ou não, nunca esqueço que a análise em pauta não é a do meu interlocutor, mas a do paciente dele. A idéia de um único inconsciente numa análise, e não de dois entrelaçados, é uma noção clínica plena de possibilidades. Por isso, quando minha “supervisionada” me conta seu cochilo durante um atendimento, prefi- ro tratar o sono da analista como a mensagem invertida da analisanda, antes que me deter, o que poderia talvez ser o caso se ela estivesse numa sessão de análise comigo, no traço materno que ela pinçou naquela mulher para manifestar-lhe seu repúdio adormecendo: “Tô nem aí com as tuas lamúrias”. Tomar o acontecimento como uma emergência da análise da paciente antes

3 Sempre teremos a solução fácil de mandá-lo supervisar com um colega, mas se ele mesmo não pensou nisso, eu devo ter uma boa razão relacionada com a análise dele para recusar- lhe a atenção que me pede. 30 SEM SUPERVISÃO NEM CONTROLE

que como um ato falho próprio da sua analista. Por outro lado, embora deva- mos ser cuidadosos com a transitividade neste campo libidinal (isso de que “os amigos dos meus amigos são amigos meus”), é necessário considerar que, em se tratando da supervisão de um analisando meu, pelo milagre da transferência, eu não deixo de estar presente na análise do paciente do meu paciente.

REFERÊNCIAS: MALCOLM, Janet. Psychoanalysis: the impossible profession. New York: Knopf, 1981. VALABREGA, Jean-Paul. In: A análise quarta. A supervisão na psicanálise. São Pau- lo: Escuta, 1992.

31 TEXTOS PODE-SE CONTAR UMA CURA ANALITICAMENTE?1

Jean-Jacques Rassial2

RESUMO O texto apresenta duas idéias principais: a racionalidade da psicanálise e a qualidade da interpretação analítica. Leva em consideração a narração de uma cura através da prática de supervisão ou análise de controle. Problematiza, também, qual é o resto de um caso quando do seu término. PALAVRAS-CHAVE: análise de controle, cura, transferência, desejo de analista.

CAN ONE COUNT ANALYTICALLY A CURE? ABSTRACT The text presents two main ideas: the rationality of psychoanalysis and the quality of analytical interpretation. It takes into consideration the narrative of a cure through the practice of supervision or control analysis. It questions, also, which is the rest of a case by the time of its end. KEY-WORDS: control analysis, cure, transference, desire of the analyst.

1 Conferência pronunciada na APPOA, em 25/08/2005. 2 Psicanalista; Membro do Espace Analytique; Professor da Universidade de Aix-en-Provence/ 3232 França. PODE-SE CONTAR UMA CURA...

gradeço aos organizadores do programa de trabalho da APPOA por me A permitirem trabalhar uma questão que eu não conheço bem, ou seja, não é uma questão sobre a adolescência ou sobre o estado limítrofe. A questão da relação entre a psicanálise e o fato literário, o fato de uma palavra que se torna uma palavra de comunicação literária. Mas, entretanto, essa questão da narração ainda tem a ver com as questões com quais trabalho. Ao menos, tento trabalhar há um tempo que é a dupla questão do que é a racionalidade da psicanálise e, mais precisamente, sobre a qualidade da interpretação. Uma das maiores dificuldades que temos para fazer valer a psicanálise junto à comunidade científica é a qualidade racional da interpretação psicanalítica. É que ela está sob tensão. Ela está sob a tensão, por assim dizer, do que se diz e do que se escreve; do que se diz na sessão, na medida em que esse dizer reenvia fundamentalmente ao que será para cada sujeito a escrita do seu fantasma. Pois, afinal de contas, na própria sessão, quem somos? Somos escutadores? Os que escutam, os que estão centrados na escuta? Mas, afinal de contas, a escuta flutuante ensina a ouvir sem escutar. Ouvimos entre estas posições. Então nosso embaraço – é uma palavra de Conrad Stein – do que faz nossa posição de escuta flutuante, e mais, ao mesmo tempo, nossa preocupação é de marcar o que não cessa de não se escrever e aquilo que cessa de não se escrever. Nosso projeto é de escritura. É um processo de ir procurar não os significantes, mas no significante buscar o que faz letra. Formulei a questão no título desta conferência, se pode-se contar uma cura que se conduziu. É uma antiga questão que foi, por assim dizer, muito radicalmente proposta por Lacan, pois é precisamente o que produziu esta inversão que constitui o passe. Se vocês se lembram da criação do passe, ela foi precedida por uma proposição de François Perrier de pedir aos analistas para falarem de suas clínicas, para falarem de curas que eles dirigiam. O que se seguiu, provocando certa animação coletiva, foi o procedimento antigo de titularização dos analistas da I.P.A. que constituía em escrever um relatório clínico, uma dissertação clínica. Era-se nomeado analista a partir de uma dissertação clínica. Assim, Lacan vai inverter as coisas a pedido dos analistas, que desejavam ser nomeados analistas pela Escola, por um dispositivo que não vou falar aqui: conte, faça o relato, mostre a letra de sua própria cura. O que é uma inversão essencial. O que é necessário notar é que Lacan nunca fez nenhum relato de cura, nem da sua, aliás, nem daquelas que ele conduziu, nenhum. O único verdadeiro relato de cura que temos é o do caso Aimée; 33 TEXTOS

mas, como sabemos, é um caso que ele trabalhou sob o título de psiquiatra. Antes de se colocar na situação de analista. Vocês sabem que Lacan considerou o passe um fracasso. Ele considerou o passe um fracasso, essencialmente, porque desses relatos, ele diz, nada aprendi. O relato de Lacan do que seria a presentificação de um trabalho de análise vai ainda mais longe com uma proposição paradoxal, quando nos diz que se ele continuasse a fazer apresentação de pacientes – apresentação que todos dizem serem inesquecíveis – e ele sugeriu os matemas como procedimentos de transmissão da clínica bem mais eficazes, bem mais interessantes que a apresentação de pacientes, que ele colocava em paralelo, o que pode parecer de todo modo surpreendente. Isso não impediu que alguns fizessem apresentação de casos, de relatos de cura. Há muito tempo, há vinte anos, precisamente vinte quatro anos, escrevi um artigo contra a apresentação de casos, numa época histórica. Era para responder à primeira proposição de um colóquio, o colóquio da Escola da Causa Freudiana, proposição que foi redigida por Michel Silvestre, solicitando que os analistas falassem de cura. Era para fazer apresentação clínica, inversamente ao que Lacan propunha. Reagi através de um artigo publicado, que se chama Le cas et la cause, em que critiquei isso, o que não me impediu de fazer a apresentação clínica. Por que e o que se diz quando se faz um relato, après-coup, de uma cura analítica. O que está em jogo, o que se passa? Creio que somos informados por dois exemplos ilustres, o primeiro seria com os casos de Freud. Lendo as cinco psicanálises de Freud, saímos delas com um sentimento curioso, um definitivo, o de estarmos muito pouco informados sobre a pessoa analisada e muito mais, de maneira inclusive inesquecível, sobre a psicanálise e sobre o que poderíamos chamar de a heurística freudiana, sobre a proposta freudiana da produção do saber. É sobre isso que nós somos informados. Exceto no caso Schreber, em que não houve encontro clínico; mas se vocês tomam o conjunto das outras situações, é muito interessante pesquisar documentos externos desses quatro casos. É muito interessante notar, por exemplo, quando Lacan fala do pequeno Hans, que ele vai pesquisar dados e informações muito além do que se encontra em Freud. O caso sobre o qual somos, muito curiosamente, mais informados, e mais informados sobre a posição freudiana, é o caso d‘O homem dos ratos. Mas isso graças ao fato de dispormos do diário de Freud. Diário que, de certa maneira, se interrompe quando a cura se torna verdadeiramente analítica. Poder-se-iam tomar todos os casos, particularmente o do Homem dos lobos. O que eu sublinho aí, é o interesse desses escritos de Freud; eles 34 PODE-SE CONTAR UMA CURA...

não têm interesse clínico, não têm fundamentalmente interesse clínico. O interesse dos textos de Freud sobre os casos que ele analisou, de todo modo, esses casos princeps, é essencialmente um interesse teórico – por um lado, devido aos aportes que cada um produz e que permitiram que Lacan produzisse; e, por outro lado, um interesse epistemológico. Como, a partir de um encontro clínico, se efetua o trabalho do pensamento de Freud. A segunda referência que gostaria dar é um texto, um livro que vocês conhecem sem dúvida, mas que devem ter esquecido, é On tue un enfant, de Serge Leclaire. É um texto absolutamente notável, muito bem escrito, literariamente soberbo, em que Leclaire leva ao extremo sua relação com o relato clínico. É o caso em que Leclaire evocava o Homem do unicórnio. Mas aí, de maneira explícita em On tue un enfant, a partir de alguns casos, ele produz uma obra literária em que não se sabe mais quem está falando. Irei avançar progressivamente. É um texto que parte de uma posição de fim de cura, ou seja, de uma deposição subjetiva, de um descer do analista. Produzi na Associação Freudiana, há alguns anos, um texto sobre o passe que intitulei Deposição (Déposition), porque em francês a palavra déposition tem duplo sentido, de um lado, é o fato de deixar, de abandonar uma posição subjetiva, mas também é um testemunho particular. Diante da polícia se faz uma deposição, quando se relata um acontecimento, um fato que aconteceu. É a partir de uma deposição subjetiva e de um descer do analista que se pode escrever realmente uma relação de caso, a qual, diria, é paradoxalmente sem sujeito. O que está em jogo nesta trama não é nem a subjetividade do analisante nem a subjetividade do analista. Mas, ao contrário, é precisamente a partir de algo que seria uma des-subjetivação, tratar-se-ia mais de algo que se poderia chamar de dessubjetivação. Vou utilizar uma fórmula ambígua, para dizer, pode-se escrever. Ponho essas dificuldades com algo que aparenta uma resposta. Voltarei depois sobre as possíveis respostas. Queria passar por um pequeno estudo em três pontos, para explicar por que a maioria dos relatos de curas são muito ruins; por três razões. Chamo-os assim por: a transferência, a interpretação e o fim da análise, ou os fins da análise. Ou seja, é o que obstaculiza essa relação. Poder-se-iam dizer banalidades a respeito da transferência, poder-se-ia dizer, por exemplo, que a transferência impede a objetividade; isto é uma besteira; ao contrário, a transferência é que faz de cada um, um objeto. Não é isto que se questiona com base na transferência. O que se questiona, o que torna difícil a possibilidade de se escrever sobre a transferência é a dimensão de deslocamento. 35 TEXTOS

Gosto muito da teoria que Conrad Stein faz sobre a prática do controle. Afinal, o primeiro lugar do qual se fala de um caso é no controle, na supervisão. Isso faz parte de raro ponto pacífico entre os analistas: a questão da necessidade do controle. É até um pouco surpreendente que os analistas se encontrem apenas nesta palavra. Supervisor é uma palavra um tanto estranha, um vidente que nem um super-super-homem. Em francês é a mesma coisa, a palavra contrôle é um tanto curiosa. Os nossos colegas de psicologia projetiva, por exemplo, demonstraram notavelmente como os procedimentos de controle de alguma situação são diretamente associados a uma defesa obsessiva. Então, como se poderia fazer para que, justamente um relato de cura que se faz num controle, não seja nem a produção de um super-mestre e que ao mesmo tempo não seja colusão obsessiva. Conrad Stein propôs uma solução. Seria que o analista controlador ouça ou escute o relato do analista exatamente como o relato de um sonho. E, evidentemente, se sabe que o que você está contando no sonho não conta, de modo algum, a história que você está contando, mas apenas pelos significantes que está usando. Se queremos dar ao controle, à supervisão, sua verdadeira função, ela fica muito distante daquilo que se faz, por exemplo, nas supervisões das práticas clínicas, ou seja, ajudar o clínico a não cometer muitas besteiras. Todos os controladores que executam seu trabalho corretamente fazem como Lacan, ou como Piera Aulagnier, ou como os meus dois próprios controladores, Octave Mannoni e François Perrier. Eles dizem “O que o senhor está fazendo é muito bom”. Eles são loucos, para eles não é isto que conta, não é isto que está em jogo, em questão no controle. No controle, a posição de controlador – agora tenho certa prática – requer uma certa prática. Há a primeira aposta, que é a de escutar o discurso do analista como se estivesse escutando o relato de um sonho. Como disse antes: releiam Leclaire. Não apenas O sonho do unicórnio, mas também On tue un enfant; são relatos de sonhos. Quer dizer, eles nos mostram como, no encontro clínico, quando se fala a respeito dele, depois, se compreendem todos os ingredientes do sonho. Por exemplo, o que é sério numa apresentação clínica, vocês poderiam chamar isso como? Quando alguém lhes conta uma situação clínica, no momento em que vocês sentem bem, que não há a necessidade de interpretar, quando o que vocês estão ouvindo são restos diurnos, ou seja, há um pouco de realidade que se acrescenta ao sonho, para que acreditemos que este sonho não é tão sério assim. A segunda questão: então retomo desta vez, não Conrad Stein, mas François Perrier, no que ele chama a psicanálise sem eixo, e de onde surgiu 36 PODE-SE CONTAR UMA CURA...

o tema que se chama análise quarta ou quarta análise. Aquilo que faz sair o analista, sair dessa armadilha a três na qual ele caiu, que o terceiro é ele mesmo, sendo que os três elementos da armadilha são o analista (ele mesmo), seu paciente e seu analista. Vou contar a vocês a minha primeira sessão de controle com Perrier. Entrei no seu consultório, pela segunda vez; o primeiro encontro fora para combinar o controle. Ele me mostrou a poltrona do analista – “Sente-se”. Sentei um pouco sem jeito, ele deitou no divã, eu estava no início da minha prática. E, ao cabo de cinco minutos de silêncio constrangedor, então ele me disse: “Então, você é um analista; sim ou é um merda?’. Então, digo a vocês que isso foi muito eficaz, para que compreendesse não buscar no controle uma ajuda técnica para me proteger da psicanálise. Vocês vêem, entretanto, que isto dificulta a própria noção de relato de caso, o que vai se trabalhar aí é com a transferência; o desejo do analista, e de forma alguma com a qualidade da prática terapêutica. A segunda idéia que queria desenvolver sobre o que cria um obstáculo para o relato de caso, brevemente, porque isto é verdadeiramente o tema com o qual trabalho. Se quiserem, volto aqui para falar a respeito, é a questão da interpretação. E ainda diria que é relativa à bela questão com a qual trabalhava o grupo Confrontation há, também, quase trinta anos agora – em setenta e seis –, que é: como a interpretação vem ao psicanalista? Poder-se- ia falar bastante sobre isto.Trago um pequeno exemplo pessoal, de uma das minhas grandes interpretações, que veio, como todas as boas interpretações, como um lapso. Justamente trabalhei isto numa sessão interanalítica, não faz muito tempo, quando mudei de instituição; fui para Espace Analytique. Queria trabalhar essa questão da interpretação e lembrei-me de uma paciente, nenhuma importância nessa paciente, o que importava é que não entendia absolutamente nada. E justamente porque não entendia nada, porque ela me deixava surdo, que pude dizer alguma coisa, que orientou a cura. Então, poderia desdobrar as coisas, mas queria somente, justamente, dar a fórmula. Era uma paciente depressiva, que repetia as experiências desastrosas, isto é que passava seu tempo, diria, a gozar das falhas do seu narcisismo. Um dia me disse: “– Preciso tirar férias, preciso fazer alguma coisa”; ela usou a fórmula “– Eu preciso tomar um ar”. Escutei, evidentemente, enviesado, e disse: “– Você está tomando água”. Tomar água, em francês, é ir água abaixo, é afundar, como um barco que tem um furo, um buraco, está fazendo água. De alguma forma, inverti para ela a sua esperança maníaca de tomar um ar, se arejar, dando a isto o sentido melancólico de fazer água. O que aconteceu então, 37 TEXTOS

sem me dar conta, exceto muito tempo depois, que, ao invés de respeitar a alternância maníaco-depressiva – aqui, preciso bem que ela não era uma verdadeira melancólica, era uma histérica, mas com aquela tonalidade maníaco-depressiva de que os histéricos gostam bastante, principalmente porque para os histéricos a culpa sempre é do outro, e não para os melancólicos – então, isto permitiu, de uma só vez, desfazer um nó, desatou essa solução maníaco-depressiva, e por uma razão. Pela surdez, de minha parte, de remeter justamente a uma experiência importante da infância, quando ela estava na beira da praia e o pai dela quase se afogou; foram buscá-lo, e ele foi salvo, mas que era um episódio absolutamente central da sua história. Tenho certeza absoluta de que se tivesse escutado perfeitamente tudo que ela estava me dizendo eu não teria ousado essa interpretação; aliás, ela nunca teria passado pela minha cabeça. Essa é uma das dificuldades que temos. Há outro exemplo desses, muito lindo, que foi dado pelo Nasio, que esqueci; mas se prestarem atenção a sua própria prática, vocês, muito provavelmente, terão uma experiência desse tipo, em que as interpretações analíticas sempre vêm apenas pelo que Lacan chama de acaso, isto é, o tiquê. E justamente o prático, o clínico da psicanálise, o clínico – para mim clínico é um palavrão. Para mim não é gentil dizer para alguém que ele é um clínico. Um clínico seria um autômato, no sentido de automático, que repete constantemente o que já sabe, mas a interpretação nunca vem assim, vem por acaso, vem quando menos se espera. Então, como você quer assim contar uma cura? Então, nesse sentido, isto que é extraordinário no texto do Serge Leclaire, nos contar, para falar realmente de uma cura... poder-se-ia contar... Apenas três frases trocadas em oito, dez anos. Vocês sabem muito bem que a amnésia da cura funciona tanto para o analista quanto para o analisando. Quando vejo certos relatos de cura muito completos, se quiser ser maldoso, vou dizer que isso não tem nada a ver com psicanálise. E se quiser ser gentil, direi que isso foi totalmente inventado. Não sei se vocês se lembram dessa anedota de Steckel. Steckel apresenta um dia o seminário de quarta-feira, de Freud; nos seminários de quarta à noite, Steckel apresentou um artigo que ia no sentido de Freud, para mostrar a força determinante no nome próprio. Então, Freud, no fim da exposição, lhe disse “É inesquecível”; porque ele mostrava como o nome de família de alguém podia engajar todo o destino desse alguém. Mas Freud perguntou: “– Você não ficou constrangido, incomodado, de ter entregue esses nomes próprios, tirado esses nomes do anonimato?”. E Steckel disse: “– De jeito nenhum, eu inventei todos”. Então, vocês entendem agora melhor porque Freud chamava Steckel de perverso. 38 PODE-SE CONTAR UMA CURA...

A terceira razão do obstáculo para o relato da cura, depois tentarei ser um pouco mais otimista, é a questão do fim da cura. Tenho uma teoria a propor para vocês. Vou ser curto, em duas palavras: escrevi um artigo a respeito na revista Figures de la Psychanalyse sobre essa hipótese. O fim da cura é a passagem do segundo ao terceiro gênero de conhecimento, no sentido de Spinosa. Vou dar um outro argumento mais fácil. O fim da cura são duas coisas conjuntas: em primeiro lugar, a deposição subjetiva e o descer do analista, como disse há pouco; segundo, um triplo ganho, um ganho de laicidade. O que seria o ganho de laicidade? É descobrir que o Outro é barrado, ou seja, ele não existe, ele é um simples efeito de linguagem. Para vocês verem as conseqüências que se pode tirar disso. E, segundo, se tem um ganho em charme. Se alguém não tiver charme nenhum, vocês podem ter certeza que sua análise falhou. E o que é um ganho de charme? Um ganho de charme é um saber sobre o objeto, um objeto nos agrada somente quando ele não está aí, que o segredo do objeto está na sua presença-ausência. Não se precisa fazer uma análise para se saber isso. É só ler o Diário de um sedutor de Kierkegaard. Vocês sabem como Kierkegaard descobriu o seu amor por Cordélia? O ponto de certeza que ele tem sobre esse amor é que sempre que ele cruza com ela, ele não a reconhece. Ele só reconhece a moça que a acompanha. Isto é um ponto de saber extraordinário sobre o objeto, principalmente se você fizer considerações reflexivas a partir disso. É isso que dá o ganho em charme. E há um terceiro ganho, o primeiro é sobre o Outro que não existe, o segundo é sobre o objeto presente-ausente e o terceiro é sobre o significante. O que é o ganho sobre o significante? É o ganho do humor. O fato de poder brincar, justamente pelo fato de um significante estar sujeito a enganos, a muitos enganos. Ele justamente fez um jogo de palavras falando essa frase o Ça trompe énormément, que é um jogo de palavras de Lacan. Tromper é enganar ou tromba do elefante. Isso é que é o humor. É colocar-se num ponto trágico, onde se funde o significante. Esse ponto trágico que, para não dizer em outros termos, é o assassinato da coisa. Então, o fim da cura, digo apenas poucas coisas, mas poderia se resumir em algo extraordinário. É o apogeu da divisão, o ponto de apogeu em que a divisão afeta tudo: afeta o sujeito, afeta o analista, afeta o outro, afeta o objeto, afeta o significante. Quando se faz o relato de uma cura, como se pode escrever esse ponto de divisão última? Só se pode escrevê-lo por uma suspensão, uma reticência. Vou tentar concluir com a tentativa de posicionamento. Quais são as condições, então, para poder contar uma cura? Vocês vêem que a partir daí a 39 TEXTOS

palavra contar muda de sentido. Como fazer o conto – a conta de uma cura. Em francês, cont o mesmo significante para o conto, o relato, e a conta numérica, o balanço. Isto é, uma história de cálculos. Falei sobre o primeiro ponto, constatar que o relato de cura, e não se pode recuar diante disso, não nos ensina muito a respeito do sujeito analisado, mas ensina a respeito da teoria e da posição do analista e, em particular, como – esse é um ponto que Freud propõe – como o passe do analista se apresenta em cada fim de cura que ele analisa. Não é difícil começar uma cura. Não é complicado ficar numa posição de analista diante de alguém que chegue no seu gabinete. Safouan diz muito bem que a responsabilidade da cura analítica é, em primeiro lugar, a do analisando. Não é preciso um analista para fazer uma análise. Examine Freud em relação a Fliess. É possível fazer uma excelente análise com um péssimo analista. Isso acontece mais vezes do que se pensa. O que faz então a especificidade, a competência de um analista? Para usar um termo de Lacan, o que faz a sua performance? É a possibilidade de permitir a alguém terminar a sua cura. O que faz com que muitos analisandos, por exemplo, que sentem necessidade de uma segunda fatia, de uma terceira, quarta, quinta para encontrar alguém que lhe permita terminar a sua cura. Anelise Stern contou seu encontro com Lacan. Ela já tinha feito antes uma primeira análise com, não me recordo mais com quem, do IPA, uma segunda análise com Dolto e, depois de vinte anos, ela foi ver Lacan. Ela já era praticante, uma psicanalista notável. Foi encontrar Lacan e disse que queria fazer uma análise. Então, Lacan olhou pra ela um momento e disse a ela “Você não precisa de análise. Você precisa de desanálise”. Isso foi a cura para Lacan, ele mostra isso bem. O que resta do caso? No final da cura? O que resta da história da relação enquanto ela foi analítica? O que pode ser salvo do esquecimento pelo analista? Algumas sessões, muito poucas, uma fórmula, algumas palavras, uma série de significantes ou até mesmo uma série de letras ou até uma cifra, o que seria a cifra do destino. É um termo que Lacan utiliza em algumas ocasiões. Isto é, um ponto que testemunharia, poder-se-ia dizer assim, de um sujeito sem subjetividade. Como o significante pode representar o sujeito para outro significante? Então, isto supõe, segundo ponto, um estilo. Vou terminar neste ponto e não vou demorar. Essa questão supõe uma relação à escritura totalmente particular. Isto é, ter pela escritura, que estaria colada ao real do simbólico, não ao real enquanto tal, senão estaríamos aqui numa escrita delirante, mas na escritura do simbólico. Há uma frase que, para mim, diz 40 PODE-SE CONTAR UMA CURA...

tudo, o essencial, justamente pelo seu aspecto enigmático, distinguindo bem o real do simbólico. Mas também é necessário, na escritura, que não esqueçamos a qualidade de lixo da letra. Há um belíssimo texto de Lacan, intitulado Lituraterre, que evoca essa dimensão litoral, mas, também, de dejeto, de lixo da letra. Não me surpreendi que Allouch tenha preferido uma dimensão a outra. Então vou citar esta frase, que não é de Lacan, mas de Mallarmé, de um texto chamado Quanto aos livros. Então vamos tentar traduzir esta frase: “Branco no preto, o alfabeto dos astros apenas assim se inscreve. O homem persegue preto no branco”. Apenas o alfabeto dos astros, que mostra o real, o real do infinito, segundo Pascal. Por seu lado, o homem está num terreno muito mais baixo, que é o terreno da escritura. Mas esta escritura vale apenas com a condição deste saber: que o real encena em outro lugar, mas que a escrita é tentativa de marcar o traço. Vejam, então se quisermos escrever casos, a tarefa é bem difícil.

41 TEXTOS PESQUISA EM PSICANÁLISE¹

Maria Cristina Poli2

RESUMO A pesquisa em psicanálise se pauta pelos mesmos critérios éticos e epistêmicos que dirigem o exercício clínico. Realizada no âmbito das faculda- des de psicologia, ela constitui um espaço de alteridade, marcando a presen- ça da psicanálise na universidade. Dentro das instituições de formação, por outro lado, a pesquisa em psicanálise pode-se situar como um dos destinos possíveis do desejo do analista. PALAVRAS-CHAVE: psicanálise, pesquisa, instituição, universidade, forma- ção.

THE RESEARCH IN PSYCHOANALYSIS ABSTRACT The research in psychoanalysis is guideline for the same ethical and epistemic criterion that guides the exercise clinical. Realized in the scope of the psychologies school’s, it constitutes the alter space marking the presence of the psychoanalysis in the university. Inside of the formation institutions, on the other hand, the research in psychoanalysis can be placed as one of the possible destinations of the desire of the analyst. KEY-WORDS: psychoanalysis, research, institution, university, formation.

¹ Este artigo é uma versão modificada do capítulo “Pesquisa em psicanálise” publicado no livro Temas em Psicologia Clínica, organizado por Blanca Susana Guevara Werlang e Margareth da Silva Oliveira (Ed. Casa do Psicólogo, 2005). ² Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Professora e pesquisadora da Faculdade de Psicologia da PUCRS, onde coordena o grupo de pesquisa em psicanálise; Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. É autora do livro Clínica da exclusão: a construção do fantasma e o sujeito adolescente (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005), entre outros. E-mail: [email protected] 4242 PESQUISA EM PSICANÁLISE

om base nos trabalhos fundadores de Freud e Lacan, os princípios Cnorteadores da pesquisa em psicanálise não são diferentes daqueles que estabelecem seu exercício clínico (Birman, 1992; Elia, 2000; Lo Bianco, 2003). Trata-se, em ambos, da constituição de um campo de experiência no qual os fundamentos epistêmicos – e, por derivação, metodológicos – são os mesmos que sustentam a prática de uma ética: a ética da psicanálise (Lacan, 1959-60/1988). Neste ponto, portanto, “método de pesquisa em psicanálise” não se confunde com o uso de um determinado instrumento ou técnica de produção de conhecimentos. Se, de modo geral, no campo de experiência constituído pela ciência positivista são os objetos passiveis de medida e veri- ficação que definem a realidade e os critérios de verdade, a experiência psi- canalítica se pauta pela inclusão primeira do desejo do pesquisador na cons- tituição do enigma que seu trabalho busca desvelar. A esta inclusão do dese- jo denominamos transferência, fundamento de todo trabalho de pesquisa em psicanálise e que permite situar a noção de realidade com a qual operamos. Ela se baseia na premissa de que o mundo vivido é sempre discursiva e pulsionalmente produzido; ele é, pois, realidade psíquica ou fantasia. Com o termo fantasia não designamos, portanto, um desvio enganoso de uma realidade factual. Nada mais estranho à produção psicanalítica do que a oposição entre uma verdade objetiva e uma falsidade subjetiva. Se a fantasia constitui o cerne do trabalho de pesquisa em psicanálise é porque ela condiz com o principio ético de considerar a realidade sempre a partir da inclusão do sujeito na experiência. Por ética entendemos aqui a necessária referência do sujeito a um ethos – um lugar, uma morada simbólica (Figueiredo, 1995) – que delimita o a priori de sua relação com o mundo e com os outros. Trata-se, pois, de considerar as assertivas de verdade que constituem um dado universo epistêmico como narrativas produzidas por um sujeito: sujeito em relação – com o Outro do universo discursivo que situa os referenciais simbólicos de interpretação e leitura. Mas, também, com os outros, desde o mais próximo e diretamente afetado pelo que se produz, ao mais distante – os que virão e que herdarão os efeitos disso que é dito. Há, pois, por parte do pesquisador em psicanálise, um duplo compromis- so: de considerar as condições simbólicas e contextuais – internas e externas ao campo psicanalítico – a partir das quais engaja seu desejo na produção e desvelamento de um enigma. E, também, de assumir o risco calculado do im- pacto do caminho escolhido (método) no desenvolvimento e na conclusão de seu trabalho sobre aqueles que, direta ou indiretamente, estão implicados no campo de experiência constituído pela pesquisa. Assim, mesmo que as produ- 43 TEXTOS

ções discursivas sobre as quais, e com as quais, a psicanálise opera tragam sempre a marca do singular e do contingente, mantém-se o compromisso – ético e epistêmico – de elas serem portadoras da verdade. Verdade do sujeito, isto é, interna à experiência que a produz, mas que pode ser transmitida e, portanto, compartilhada por uma comunidade, sociedade ou cultura. Já há alguns anos, psicanalistas do Brasil e do exterior têm-se engajado na atividade de produzir pesquisas, dentro da universidade, que possam par- tir destas premissas (Rosa, 2001). Em parte, a dificuldade de nossa tarefa consiste na exterioridade constitutiva – e necessária – da formação do psica- nalista em relação ao sistema de atribuição de gradus da universidade (Freud, 1919 [1918]/1969). Os anos de formação em psicanálise realizados no âmbi- to das instituições analíticas e sustentados pelo tripé proposto por Freud – análise pessoal, supervisão da prática clínica e estudo teórico – não são nem substituíveis, nem transponíveis para o espaço de formação acadêmica. Por muito tempo, esta exterioridade mútua entre os campos da formação de psi- canalistas e dos estudos universitários se constituiu como tabu, apresentan- do-se como impossibilidade de qualquer contato, pelo temor do contágio. A peste freudiana parecia tão pouco adequada à ciência quanto o saber orde- nado e enciclopédico poderia ser aos defensores da ortodoxia na psicanálise. Mesmo que, em grande parte, o mal-estar não tenha sido transposto, encontra-se hoje, em diferentes experiências de psicanalistas que trabalham em universidades, a possibilidade de abertura para um espaço interno de alteridade; que repercute tanto na academia quanto nas instituições analíti- cas. Gostaríamos de destacar deste mútuo arejamento um significante em comum: a clínica. Pois é neste campo privilegiado – se bem que não exclusi- vo – de exercício da psicanálise que algo do acima mencionado desejo do pesquisador pode também fazer eco. Referimo-nos à possibilidade de que o trabalho na clínica – lato sensu – possa ter reconhecida a sua vocação emi- nentemente investigativa (Lo Bianco, 2003). A clínica psicanalítica, assim como a pesquisa, é produtora de experi- ência, constituinte de narrativas, de realidade psíquica. Assim também, nas diferentes abordagens da psicologia, a forma de trabalho do profissional – seu método ou sua técnica – são inseparáveis do “fato clínico” produzido (Cyssau, 1999). Talvez por isso, a psicologia clínica tenha precisado, por tan- to tempo, buscar na exterioridade de seu campo próprio a legitimidade cientí- fica de sua produção. Ou, então, valer-se destes mesmos métodos, de outras ciências, para pesquisar no exterior da prática clínica, isto é, sem produzir intervenção. 44 PESQUISA EM PSICANÁLISE

O impacto da pesquisa em psicanálise é que, aí, isto não é possível. Se o trabalho de Freud fundou efetivamente uma forma de pesquisa e interven- ção inovadora em relação ao modelo médico, por um lado, e à pesquisa ex- perimental, por outro, foi justamente por produzir unidade, alterando seus ter- mos. A inclusão e o reconhecimento do lugar do clínico, assim como a do investigador, na sua produção, são fundamentais para a legitimidade científi- ca, não apenas da psicanálise, mas da psicologia clínica, de modo geral. Isto, porque se trata de reconhecer que o objeto sobre o qual se opera é um repre- sentante da representação, tal como Freud postula. A investigação dos fatos psíquicos comporta sempre esta dimensão da duplicação inerente à repre- sentação: um olhar-se no espelho. A arte da pesquisa está em recortar aí um olhar oblíquo, que não visa ao si mesmo composto na imagem; o trabalho de pesquisa começa quando – diante do duplo – arrisca-se perder a noção de qual é o referente, qual é o outro. O sujeito é o entre dois, nem um nem outro, que surge da experiência desta perda.3 Neste sentido, pesquisa clínica é quase um pleonasmo que denota seu rigoroso critério de verdade: a medida da distância, sempre presente, entre im- plicação, de um lado, e exclusão do sujeito, do outro. A busca pela objetividade, neste contexto, falseia a experiência, colocando no exterior o ponto de fuga que internamente a organiza. Concordamos, assim, com Giami (2004) quando ele refere que: o que nos parece criticável, constituindo o ponto cego deste tipo de procedimento [a aplicação em exterioridade de métodos de pesquisa de tipo objetivante], não é tanto a escolha de funcionar em exterioridade como a crença segundo a qual essa exterioridade seria fonte de objetividade (p. 39).

Em defesa de um procedimento de pesquisa fundamentado na experi- ência clínica do investigador, o autor complementa: “A dimensão de interven- ção presente nesse procedimento tende a lhe conferir uma maior validade, pois seus resultados podem proceder de modificações que remetem direta- mente à experiência dos sujeitos” (p. 48).

3 No livro As palavras e as coisas, Foucault (1966/1990) demonstra esse princípio, de uma forma extremamente bela e rigorosa, através do recurso ao quadro de Valazques As meninas. Como demonstra o filósofo, o objeto de investigação (o x da questão, o que faz enigma) é recortado por um complexo jogo posicional, situado a partir da troca de olhares entre artista e espectador. O engano, trompe-l’oeil, da representação especular é fundamental na constituição de uma temporalidade própria à descoberta, isto é, ao levantamento progressivo do vel. Da pergunta inicial sobre o que estaria encoberto pela tela que se furta ao olhar, passando pelo estranhamento do sentir-se olhado, contemporâneo à elaboração de hipóteses, a investigação vai paulatinamen- te desviando-se de um suposto objeto que teria sido representado para a atualização de uma situação que se organiza em torno de um ponto cego compartilhado. 45 TEXTOS

Na pesquisa em psicanálise, especificamente, como já indicamos aci- ma, temos nesse ponto também o seu critério ético. Como já tivemos oportu- nidade de escrever em outro lugar:

nosso trabalho de escutar o inconsciente é aquele que reconhe- ce ao sujeito um lugar na linguagem no qual o processo de alie- nação/separação indica uma direção ética: não à exclusão do sujeito, isto é, não a um sujeito sem Outro, não alienado ou fora da linguagem; mas também, não a um sujeito sem corpo, sem lugar de expressão singular no circuito das pulsões. (Poli, 2005, p. 11-12)

Assim, a ética da psicanálise é exclusiva dessa forma de fazer pesqui- sa – condicionando, portanto, a investigação à formação ou ao desejo de formação em psicanálise (Garcia; Silva, 1992). Nesse sentido, podemos pen- sar também que essa prática não deveria ser exclusiva dos psicanalistas que trabalham na universidade; também as instituições podem se ocupar em dar lugar a esse desdobramento do desejo do analista. Já o estatuto científico da pesquisa em psicanálise compartilha, em parte, com as clínicas psicológicas a delimitação de seu objeto à ordem das representações e, portanto, ao estudo e à investigação das condições de sua produção. Por isso, normalmente, é nas faculdades de psicologia que os psi- canalistas se inserem. Contudo, também aí, uma pesquisa levada a cabo em uma instituição de formação em psicanálise poderia se ocupar de sustentar aquilo que Lacan (1956-57/1994) denomina de uma “ciência do sujeito”. Isto é, um trabalho que opere no ponto irredutível da clivagem entre o saber e a verdade (Lacan, 1966/1998).

REFERÊNCIAS: BIRMAN, Joel. A clínica na pesquisa psicanalítica. In: 2º Encontro de pesquisa acadê- mica em psicanálise: Psicanálise e Universidade. São Paulo: PUC-SP, 1992, p. 7-37. CYSSAU, Catherine. Fonctions theóriques du cas clinique: de la construction singulière à l’exemple sèriel. In: VILLA, F. ; FEDIDA, P. Le cas en controverse. Paris: PUF, 1999. ELIA, Luciano. Psicanálise: clínica & pesquisa. In: ALBERTI, Sonia; ELIA, Luciano (org). Clínica e pesquisa em psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. FIGUEIREDO, L. C.. Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética nas práticas e discursos da psicologia. Petrópolis, São Paulo: Vozes, EDUC, 1995. FOUCAULT, M. (1966) As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências huma- nas. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 46 PESQUISA EM PSICANÁLISE

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47 TEXTOS “O QUE A PSICANÁLISE NOS ENSINA, COMO ENSINÁ-LO?”1 (NA UNIVERSIDADE)2

Siloé Rey3

RESUMO O texto propõe a interrogação sobre a transmissão da psicanálise no território dos cursos de graduação das universidades. Interroga o que é possível haver de transmissão entre campos com tensionamentos estruturais: a universidade ocupando-se da transmissão da verdade científica e a psicanálise apontando a dimensão impossível de um saber total, que produza o recobrimento do real da experiência. PALAVRAS-CHAVE: psicanálise, universidade, transmissão.

“WHAT DOES PSYCHOANALYSIS TEACH US, HOW TO TEACH IT?” (AT THE UNIVERSITY) ABSTRACT The text proposes the interrogation upon psychoanalysis transmission in the field of the university undergraduate courses. It questions what is possible to happen as transmission between fields with structural tensions: the university dealing with the transmission of scientific truth and psychoanalysis pointing to the impossible dimension of a total knowledge that produces the covering of the real of the experience. KEYWORDS: psychoanalysis, university, transmission.

1Questão com a qual Lacan introduz a comunicação apresentada à Sociedade Francesa de Filosofia, na sessão de 23 de fevereiro de 1957 “A psicanálise e seu ensino”, in Escritos/; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 438-460. 2 Trabalho apresentado na Jornada Interna da APPOA “Transmissão e Formação”, maio/2005. 3 Psicanalista; Membro da APPOA; Especialista em Psicologia Clínica; Docente da ULBRA; Mestre em Psicologia Social – PUC/RS. Consultora INEP/MEC para Avaliação das Condições de Ensino- SINAES. E-mail:[email protected] 4848 “O QUE A PSICANÁLISE NOS...

abemos que a universidade não forma analistas, uma vez que não é pos Ssível incluir o percurso da análise pessoal no que se propõe a academia. Mas também a relação da psicanálise com a universidade apresenta outros pontos estruturais de tensionamento. À medida que a ciência define a verda- de em sua correspondência com a realidade, exclui a dimensão subjetiva e rejeita o campo das ilusões, produz-se, segundo Freud, o ponto de corte e a descontinuidade entre a psicanálise e a ciência e também entre a psicanálise e a universidade, já que a universidade escolhe o modelo científico de operar com a verdade. A ciência aposta num conhecimento que possa recobrir o real da experiência e a psicanálise coloca em evidência a dimensão da verdade que determina a incompletude do saber. Na universidade, dizemos que o que é possível é o ensino da psicaná- lise como corpo teórico, mas também sabemos que não há transmissão sem clínica e precisamos falar da clínica quando buscamos articular a teoria com o vivo da experiência, na esperança de que a abstração conceitual com a qual lidamos possa ser apreendida por aqueles que não a tem. Por outro lado, desde esse lugar que a academia nos coloca, sustentamos a dimensão transferencial, muitas vezes massiva, própria da relação ensinante-aluno, o que nos implica numa posição ética. Então, o que me pergunto é o que é possível haver de transmissão neste contexto e venho compartilhar algumas inquietações nessa nossa jornada, para ver o que consigo avançar. O texto de 1919, em que Freud (1981) aborda o ensino da psicanálise na universidade, foi publicado primeiramente em Budapeste, em húngaro, sem que nunca se tenha encontrado o original alemão. Seu título era uma pergunta: Deve-se ensinar psicanálise na universidade? Foi um escrito que teve que ser redescoberto, por ocasião da publicação das obras completas, o que não deixa de ser interessante, pelo caráter de exclusão de circulação, de recalcamento desse pequeno artigo. Justamente, o primeiro argumento de Freud para trabalhar as relações da psicanálise com a universidade é de que, apesar da “satisfação moral para todo analista”, o psicanalista pode prescin- dir da universidade. E mais, vai dizer ainda que as associações psicanalíticas “devem sua existência precisamente à exclusão de que a psicanálise foi obje- to pela universidade” (p. 2454). Como seria a psicanálise se a universidade não tivesse produzido essa exclusão é uma pergunta na qual Freud não se detém, na maneira como, então, encaminha a institucionalização da psicaná- lise e sua forma de transmissão. Sustentada na análise pessoal e em seus complementos, o estudo teórico e a supervisão, a formação do psicanalista se dará no espaço da instituição psicanalítica. No entanto, neste escrito, vai 49 TEXTOS

se ocupar de esclarecer quais as possibilidades de inserção da psicanálise na universidade, caracterizando aquilo que hoje chamamos de psicanálise em extensão. Salienta a importância do ensino da psicanálise para a forma- ção do médico e do homem de ciência na consideração dos aspectos da psicologia, além da preparação para o estudo da psiquiatria. Seu terceiro ar- gumento para a inclusão do ensino da psicanálise na universidade é o de que a investigação psicanalítica não se restringe apenas às funções psíquicas patológicas, senão que também concerne à resolução de problemas artísti- cos, filosóficos ou religiosos, contribuindo com enfoques novos e revelações de importância para a história da literatura, a mitologia, a história das culturas e a filosofia das religiões. Expressa aí sua aspiração de que a psicanálise possa articular a ciência à filosofia, no sentido da “universitas literarum”. Con- clui que seu ensino na universidade só pode ter “um caráter dogmático-críti- co, por meio de aulas teóricas, pois nunca, ou só em casos muito especiais, oferecerá a oportunidade de realizar experimentos ou demonstrações práti- cas” (p.2455), advertindo que nesse contexto o estudante não aprenderá ca- balmente a psicanálise. Isso tudo Freud já tinha claro lá em 1919, mas vamos agregar o cenário contemporâneo, que tem me problematizado no ensino da psicanálise na universidade. Não vou falar da universidade pública, estruturalmente diferen- te da universidade privada, onde a presença da psicanálise, especialmente em programas de pós-graduação, já tem uma tradição de inserção. Minha experiência é quanto à difusão da psicanálise em cursos de graduação em psicologia nas universidades privadas, este verdadeiro fenômeno de merca- do que é a explosão do ensino pago (e bem pago, para os empresários do setor, é claro) na última década do século passado, em nosso país. Também não me deterei nas diferenças a respeito das universidades comunitárias e confessionais, que com certeza apresentam suas especificidades, mas que não me parecem relevantes no que aqui quero trabalhar. Grosso modo, pode- mos caracterizar que nessas instituições, há ênfase num ensino sustentado pela técnica, direcionado à clientela excedente da universidade pública, alu- nos que precisam, via de regra, trabalhar para custear seus estudos e que freqüentam os cursos de psicologia noturnos das universidades, muitos se alimentando da promessa de que o ensino superior garantirá a inserção soci- al mais favorável. Outra característica de tais instituições é a quase inexistência de investimentos em pesquisa, colocando em questão o nome universidade já que a sistematização do conhecimento produzido pela instituição fica prati- camente inviabilizada. Não é que não se produza conhecimento, a denegação 50 “O QUE A PSICANÁLISE NOS...

está bem situada aí, uma vez que, sem dúvida, cumprem uma função social importante, inserindo-se nas comunidades do interior ou da periferia das gran- des cidades, em intervenções que efetivamente alteram a realidade social e o ritmo de desenvolvimento da região. Todas estas práticas, as importantíssi- mas clínicas-escola dos diferentes cursos, as intervenções em escolas, em creches e em todos os aparelhos sociais que atendem especialmente as ca- madas pobres da população, sofrem um efeito importante de qualificação quando a universidade chega, e tudo isso produz conhecimento. O problema está na sistematização desse conhecimento, que não é reconhecido pelo sis- tema institucional e que, portanto, não o viabiliza. Bem, e se não há pesquisa também não há pós-graduação, campo bem mais favorável para a inserção da psicanálise na universidade. Mas, voltando às incompatibilidades estruturais da psicanálise e da universidade, as oriundas da promessa veiculada pela técnica, que é o que está em jogo nesse ensino, implicam uma ética em que tal conhecimento seria o bem do destinatário da intervenção. Através deste expediente, bus- cam ludibriar o terremoto das referências simbólicas, que se esvaem sob os pés na velocidade dos tempos atuais, em que o valor dos grandes textos está degradado e é a casca da imagem o que sustenta a falta a ser. Também a degradação da política – que se reflete na falência da função da ideologia como veiculadora dos ideais sociais e na fragilidade do movimento estudantil, praticamente inexistente nas universidades privadas – situa o aluno desde a ética do consumidor, com seus direitos de satisfação garantida e nenhuma necessidade de implicação pessoal na sua formação. A demanda da felicida- de, sem pagar o preço da “satisfação da tendência pela sublimação”, que Lacan refere no Seminário 7, e o devaneio burguês de que o acesso aos bens aplacaria o mal-estar subjetivo colocam o discurso da psicanálise na contra- mão da promessa de que o consumo e a imagem bastam. Parece ser consenso entre nós que a sobrevivência da psicanálise, num mundo em que proliferam terapêuticas obturadoras de mal-estar, está diretamente relacionado àquilo que caracterizamos como psicanálise em ex- tensão. Tal dimensão, talvez mais cara ainda à concepção lacaniana que ressitua o social ao lugar constituinte da subjetividade humana (“o inconsci- ente é o discurso do Outro”), é efeito da consolidação da psicanálise na cultu- ra contemporânea. Há vários artigos de psicanalistas do campo lacaniano, especialmente do Rio de Janeiro e São Paulo, que referem a inserção do movimento historicamente, no Brasil, a partir da universidade. Talvez o exem- plo de São Paulo seja o mais paradigmático dessa situação, na qual a tradi- 51 TEXTOS

ção da psicanálise em universidades como a PUC e a USP contrasta com a pouca expressão da presença da instituição psicanalítica naquela cidade. Otavio Souza (2000) afirma que houve um boom da psicanálise na universidade brasileira, nos últimos anos do século passado, atribuindo esse efeito ao ensino de Lacan e ao desdobramento tardio, aqui no Brasil, de sua ruptura com a IPA. Assim, a universidade acabou sendo também o lugar de acolhimento dos analistas que rompem com suas instituições psicanalíticas. Este aspecto, no entanto, não corresponde exatamente a como se configura a situação em nosso estado, especialmente em nossa cidade. Aqui, vemos que a força da transmissão psicanalítica está mesmo do lado de suas institui- ções. A nossa é exemplo disso, com sua forte inserção na cultura da cidade, inclusive nos espaços que são abertos dentro da universidade, para que ela se faça representar. Parece que nessa modalidade seguimos mesmo a tradi- ção, pois Lacan foi o único dentre os grandes nomes da psicanálise a tomar a iniciativa de levar o ensino da psicanálise para a universidade, de modo a expor a teoria ao confronto com outras modalidades de saber. O argumento de nossa jornada justamente aponta para esse “grande prestígio social” lembrando nossa inserção em serviços de saúde mental, escolas e organizações das mais diversas, embora também possamos nos perguntar que psicanálise é essa que já conta com tal prestígio. Nas universi- dades que estou descrevendo, transitam, entre psicólogos sociais, humanistas e cognitivo-comportamentais, professores com diferentes formações, que fa- lam em nome da psicanálise e que parecem caracterizar muitas psicanálises, em que encontramos aqueles que se dizem psicoterapeutas de orientação analítica, embora, em geral, sustentados mais em concepções da psicologia do ego do que na psicanálise, os kleinianos, os freudianos “ortodoxos” e os lacanianos também estão fazendo presença. Neste cenário, as diferentes concepções de psicanálise irão produzir seus efeitos. Didier-Weill (1998), no seu artigo sobre o passe, descreve a posição de militância, facilmente identificável entre os docentes das instituições universi- tárias, em que se joga com os espaços da psicanálise como se se estivesse jogando banco imobiliário, na tentativa de tomar esta ou aquela cidade, este ou aquele hospital ou instituição, esta ou aquela disciplina do currículo. “Podemos num primeiro momento opor dois tipos de transmissão: aquela que é própria ao significante S(A) quando ele é articulado, transmissão que faz com que ele se transmita sozinho, e aquela que depende de militância. Dizer que S(A) transmite-se sozinho é perigoso para quem? Para todos aque- les que pensam que Freud e Lacan não podem transmitir-se sem aparelhos 52 “O QUE A PSICANÁLISE NOS...

de militância, e que se não houver militância Freud e Lacan estarão em peri- go. O ato de militância baseia-se na idéia de que o pai está fundamentalmen- te em perigo: se não se milita por ele, ele decairá, definhará” (p.75). Evidentemente que o que joga aí, além da salvação do pai, são outros motivos, como a garantia de espaços de trabalho, distribuição de disciplinas ou recursos de pesquisa. Exemplo sintomático disso tenho encontrado na presen- ça de divãs em salas de atendimento de clínicas-escola de cursos de psicologia Brasil afora, justificados invariavelmente porque “foi um professor lacaniano que pediu, ou um professor freudiano que exigiu”, na maioria das vezes para a práti- ca de alunos que nunca passaram pela experiência. Nesse quadro, minha ques- tão refere-se ao que conseguimos fazer com a psicanálise na universidade: um mínimo de transmissão ou recrudescimento de resistência? Freud também falou sobre isso, embora falasse de algo intrínseco ao saber psicanalítico. Achava que a psicanálise pagaria o preço da resistência cultural pela natureza de suas descobertas: “provocar oposição e despertar rancor”, dizia, é o destino inevitável da psicanálise. Roudinesco (1988) conta que Jung refere em sua autobiografia que Freud disse simplesmente, ao avis- tar Nova York, “Eles ficarão surpresos ao saberem o que temos para lhes dizer”, o que é interessante e bem diferente do difundido “Eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste”. Kupermann (1995), no entanto, faz notar que “a imagem da peste - algo virulento, contagioso, transgressivo e perigoso socialmente - acompanha desde então a psicanálise e condensa, enquanto metáfora, as representações que dela fazia Freud, bem como as projeções de seu destino na cultura” (p. 16). Mas, como este autor observa, as coisas não se passaram exatamente dessa maneira. Em bem menos de um século, a peste foi neutralizada, ou seja, a psicanálise foi assimilada culturalmente, sendo reconhecida enquanto saber e prática psicoterapêutica, tornando-se respeitável e normal. Conside- ra que o processo de institucionalização da psicanálise, isto é, as formas pe- las quais ela se organiza e se mantém na cultura – incluindo suas relações com os poderes instituídos – é responsável pela perda de seu vigor original, pela anestesia da tensão com o contexto cultural:

Afinal, como considerar transgressora uma prática adequada soci- almente? A história revela que não apenas a psicanálise não é uma prática intrinsecamente revolucionária, como demonstrou Castel, como pode também se tornar, em algumas de suas formas, uma prática verdadeiramente adaptativa, um instrumento para o exercício do poder e a manutenção do status quo (p. 16). 53 TEXTOS

Tudo isso nos remete para a questão da formação do analista, condi- ção para o projeto de fazer da psicanálise uma instituição (etimologicamente o sentido de instituição é “fazer com que se mantenha em pé”). O princípio de que o analista deve ter experimentado os efeitos da análise, que salienta o processo da análise no processo de formação, indica que, a partir de sua experiência pessoal, o analista deve ter se convencido da existência do in- consciente. Em A psicanálise e seu ensino, Lacan (1957) constrói um texto bastan- te crítico e irônico, como sempre é do seu estilo, em que busca traçar as vias da formação do analista “no restabelecimento de uma cadeia simbólica de três dimensões: de história de uma vida vivida como história, de sujeição às leis da linguagem, as únicas passíveis de sobredeterminação, e de articulação intersubjetiva pela qual a verdade entra no real” (p.439). Esta síntese que Lacan faz da dimensão da análise na formação do analista, contemplando a consideração do inconsciente e a transferência, nos coloca em outro eixo para com relação à função da universidade na formação do analista, a que voltaremos em seguida. Justamente, na consideração do inconsciente, Lacan pergunta aos filó- sofos, a quem dirige sua fala: “qual é em sua opinião esse algo que a psicaná- lise nos ensina ser-lhe próprio, verdadeiramente o máximo, o mais verdadei- ramente?” (p. 441). Duas páginas adiante, ele mesmo responde “... ninguém mais pensa em respondê-la com esta simples palavra, o inconsciente, em razão de que há muito tempo essa palavra já não constitui problema para ninguém...” (p.443). Didier-Weill (1998) lembra que Freud, ao evocar sua relação com seus alunos, sem nomeá-los, diz algo assim: Temos a impressão de que aqui- lo que eu elaboro na psicanálise, um aluno só anseia por aceitar, em dar seu assentimento, mas de fato eu, Freud, sinto nisso uma espécie de frieza, de inafetividade, de tal maneira que o sim que é dado deste modo à teoria do inconsciente é um sim que parece não se prestar a nenhuma conseqüência (p.67).

Weill exemplifica tal posição com “o caso Hartmann” (e Kupermann, no artigo de 1995, com o “caso Amílcar Lobo”), que depois de dizer sim ao inconsciente freudiano produz uma teoria que diz não a esse mesmo inconsciente:

54 “O QUE A PSICANÁLISE NOS...

Podemos supor a estupefação do aluno, que imaginava que basta- ria dizer sim para que este sim fosse em si mesmo uma prova. Chegamos assim à idéia, analiticamente formulada, de que o enun- ciado do sim não prova que haja uma enunciação do sim (p. 69).

Aí vemos que as coisas no âmbito do que seja a transmissão em psica- nálise não são bem simples. Jerusalinsky (1990), ao sistematizar o texto que apresentou na primeira jornada de nossa instituição sobre a questão da for- mação do analista e da transmissão da psicanálise, há 15 anos atrás, que se chamava justamente “O ensino da psicanálise”, ainda destaca a dimensão trágica da perspectiva pedagógica em psicanálise, exemplificada no então recente suicídio de Bruno Bettelhein:

Como diz Lacan, no seminário da transferência, se algo apren- demos, nós analistas, é precisamente a compreender que o sin- toma está no miolo do deciframento do destino, e que esta posi- ção do sintoma faz do destino o que realmente ele é: uma minimização do drama. Ou seja, o que nesse seminário Lacan lembra diz respeito ao que pode ser o efeito de transmissão da psicanálise. Não um efeito de uma técnica, do aprendizado de uma técnica, mas um efeito sobre o mesmo sujeito sobre o qual se opera a transmissão. Efeito que se caracteriza pelo fato de que ele venha a poder situar o seu sintoma neste ponto nodal de seu destino... Este problema não têm aqueles que optam por uma perspectiva puramente pedagógica. Porque esses não são confrontados com esta posição miolar do sintoma. Simplesmen- te farão uma explicação dela através da adaptação (p.17).

É justamente nesta posição pedagógica que se situa o recrudescimen- to da resistência à psicanálise, destacando-se apenas algo do ensino dogmático, esquecendo-se do complemento “crítico”, que Freud achava pos- sível como ensino na universidade. Ainda em referência a tal vertente peda- gógica, talvez valha a pena situar aquilo que Lacan chamou de discurso do universitário, já que Jerusalinsky é taxativo ao afirmar: ”Assim como poderia se pensar que na época de Freud, o que fazia obstáculo ao ensino da psica- nálise era a religião e a ciência, penso que hoje em dia é precisamente o discurso universitário...” (p. 17). Ainda neste artigo, refere que em uma aula que deu em Vincennes, na Universidade, Lacan é interrompido por um grupo de estudantes, autodenominados marxistas, que lhe demandam uma posição política de rejeição da psicanálise, à qual acusam de ser uma disciplina bur- guesa e individualista. Lacan recusa-se ao que lhe é demandado, negando- se a positivar esse saber, respondendo com o ato de falar sobre o discurso do 55 TEXTOS

universitário. No seminário O avesso da psicanálise, e como efeito do maio de 1968, Lacan vincula a estrutura do discurso ao aforismo freudiano das profis- sões impossíveis: a de governar, articulando o discurso do mestre; a de edu- car, articulando o discurso do universitário; a de analisar, dando suporte ao discurso do analista, agregando o impossível de fazer desejar, caracterizan- do-o como o discurso da histérica. O impossível demandará que o discurso o recubra. Assim, a escrita dos discursos, os matemas, é uma tentativa de Lacan de transmitir o real da estrutura que o discurso suporta. Se o discurso univer- sitário articula a possível relação entre saber e educar, ou seja, se há alguém que pode ocupar o lugar totalizante do saber, deixará em posição de aliena- ção absoluta o outro que se pretende educar. E aí não há transmissão. Só que Lacan relacionou os quatro discursos à direção da cura, mar- cando dessa maneira que, assim como na universidade, ele pode se operar em qualquer laço, inclusive na relação analítica. Então, talvez também seja possível articular um discurso que transmita o significante da falta do Outro, que inscreva um S1 na posição de agente, nisso que fazemos na universida- de, transmitindo um estilo, como dizia Lacan ou como queria Freud que “eles fiquem surpresos com o que temos a lhes dizer”.

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56 A TRANSMISSÃO E O ENSINO DA TEORIA PSICANALÍTICA: TEXTOS EFEITOS INFORMATIVOS OU FORMATIVOS NO PERCURSO DA FORMAÇÃO?¹

Carla Regina Cumiotto²

RESUMO A formação do analista passa por três referências primordiais: a análise pes- soal, a supervisão e a formação teórica. Este texto objetiva pensar os efeitos de ensino ou de transmissão da teoria psicanalítica no percurso da formação. Para tanto, problematiza a questão do querer conhecer a psicanálise sem saber do inconsciente, discutindo a demanda atual do discurso social e as especificidades dessa demanda em cidades do interior. PALAVRAS-CHAVE: formação, psicanálise, ensino, transmissão.

TRANSMISSION AND TEACHING OF PSYCHOANALYTICAL THEORY: INFORMATION OR FORMATION EFFECTS IN THE COURSE OF FORMATION? ABSTRACT The formation of the psychoanalyst crosses three different primordial references: personal analysis, supervision and theoretical formation. This text intends to think the effects of teaching or transmission of the psychoanalytical theory in the course of formation. For that, it explores the question of wanting to know psychoanalysis without knowing about the unconscious, discussing the nowadays social discourse demand and the specificities of this demand in non metropolitan cities. KEYWORDS: formation, psychoanalysis, teaching, transmission.

1 Trabalho apresentado na Jornada interna da APPOA Transmissão e Formação, em maio/2005. ² Psicanalista; Membro da Appoa; Professora do departamento de psicologia da Universidade Regional de Blumenau. E-mail: [email protected] 57 TEXTOS

partir de Freud, sabemos que a formação do analista passa fundamen- A talmente por três referências: a análise pessoal, a supervisão e o estudo da teoria psicanalítica. Lacan inclui ainda a importância da instituição psica- nalítica, assim como a importância da psicanálise comprometida com as ques- tões da sua época. Sendo assim, visamos refletir acerca dos efeitos da for- mação teórica na trajetória de formação de um sujeito, sejam eles de ensino ou de transmissão. Nos últimos anos, temos presenciado em Blumenau uma geração de psicólogos recém-formados que vêm se interessando pela psicanálise. Mui- tos destes conheceram a teoria através da universidade, a partir da qual bus- cam grupos de estudos ou seminários para iniciar a sua formação. Devido ao fato de ministrarmos a disciplina de psicanálise no curso de psicologia, assim como por outras razões transferenciais, muitos desses su- jeitos recorrem a nós para conversar sobre o início da formação e da vida profissional. Entretanto, as questões propostas chamam atenção por insisti- rem na pergunta sobre onde fazer especialização em psicanálise. Embora os situemos mais uma vez por onde passa a formação do analista – análise pessoal, formação teórica e supervisão – eles freqüentemente enveredam apenas pela busca do conhecimento teórico. Aprofundando um pouco mais a conversa, nos contam que estão estudando bastante. Entretanto, em nenhum momento esses jovens se mostram angustiados ou temerosos com o início da prática clínica, assim como não ocorre a eles iniciar uma terapia ou análise como algo necessário para a prática clínica e para sua formação pessoal. O que de imediato nos provoca a seguinte questão: por que essa valorização da formação teórica em detrimento da análise pessoal? Ao discutir a questão com colegas, alguns nos indicam que cada um tem o seu tempo, que não é possível antecipar a demanda de análise; portan- to, trata-se de uma questão singular de cada sujeito e de sua responsabilida- de nesse início de formação. As demandas em relação à teoria psicanalítica são variadas. Há pes- soas que se interessam por psicanálise e querem apenas conhecer a teoria, sem necessariamente desejarem trabalhar na área ou quererem ser analis- tas. Porém, outra questão é quando um sujeito se aventura a clinicar autoriza- do, não pelo percurso pessoal, mas, pelo quanto de psicanálise estudou. Pensamos que o sujeito pode vir a conhecer psicanálise, mas dela nada saber. E sobre este aspecto, nos perguntamos acerca dos efeitos provoca- dos por este modo de apropriação da teoria, no qual percebemos a valoriza- ção e até mesmo a sobreposição da teoria em detrimento da análise e da 58 A TRANSMISSÃO E O ENSINO...

supervisão, no percurso de formação do analista. Nesse contexto, se situam as mais variadas propostas de formação em psicanálise divulgadas e difundi- das no social, como o próprio nome convoca, antecipa e promete de ante- mão. Sabemos que a formação somente se constitui a posteriori, na medida em que é a partir do processo de análise que se poderão reconhecer os efei- tos da formação, que, enquanto tais, são inconscientes. Uma dissociação entre teoria e prática que tem como efeitos uma teoria não subjetivada, em que muitas vezes escutamos alguém falar de psicanálise e temos a sensação de que não há sujeito algum nessa fala. Outra questão se refere aos efeitos produzidos pelo conhecimento da teoria e sua relação com o saber inconsciente: tanto para o sujeito que deseja apenas conhecer psicanálise como para aquele que está em análise, qual é a relação entre conhecer a teoria psicanalítica e deixar-se trabalhar pelo saber inconsciente? Estamos pensando aqui em situações de análise em que o analisante traz jargões teóricos que escutou e que às vezes não estão de acordo com o que está experienciando em sua própria experiência de análi- se. O que pensamos produzir efeitos, até porque ele está transferenciado com a teoria psicanalítica. Deste modo, parece-nos relevante questionar: qual a relação do ana- lista com a teoria psicanalítica? Se, por um lado, o analista está referenciado à teoria, por outro, quando estiver escutando um paciente, terá que escutar o Outro do seu paciente e não o Outro do discurso psicanalítico. Assim observa Maria Rita Kehl (1998), quando nos adverte de que não podemos fazer pacto com os pressupostos da teoria e permitir que “o Outro do discurso psicanalí- tico fale pelos nossos analisandos” (p. 26). Isso poderia nos parecer óbvio. Entretanto, não estamos tão seguros dessa obviedade, já que requer do ana- lista desprendimento da própria teoria em que está transferenciado. Outro aspecto a ser ressaltado é a importância dada à teoria na psicaná- lise lacaniana, primordialmente no que se refere à formação do analista no Bra- sil. No livro Lacan e a formação do analista no Brasil (1992), vislumbramos que, num primeiro momento, a teoria lacaniana veio para o Brasil via universidade e- ou grupos de estudo, isto é, pela via teórica, e só depois houve a prática clínica a partir da psicanálise lacaniana. Nesse livro, os autores pensam acerca dos efeitos produzidos por esse modo de relação com a teoria, seja desde a impor- tação de um saber, ou ainda, pela ruptura entre teoria e prática. Então percebe- mos que “[...] o saber apresentado como a priori, a prática clínica é, no melhor dos casos, apenas uma maneira de confirmar as hipóteses colocadas por esse saber anterior da teoria” (Teixeira, 1992, p.52). Portanto, 59 TEXTOS

Desde a sua chegada no nosso país, há cerca de duas décadas, até os dias atuais, sua teoria tomou a dimensão de uma verda- deira moda intelectual, seus aforismos tornando-se uma presen- ça quase obrigatória nas citações dos analistas brasileiros (Teixeira, 1992, p. 5).

Dado o contexto, podemos pensar que o modo como a psicanálise é apresentada ao sujeito produz efeitos na sua formação. Consideramos que o primeiro contato com o analista, ou com a teoria, consistem numa espécie de S , numa primeira marca na trajetória de formação desse sujeito. Entende- 1 mos que o modo como o analista acolhe e responde a uma questão teórica produz efeitos na trajetória de uma formação. Nosso encontro com a psicanálise também se deu pelo conhecimento da teoria, através da universidade, em agosto de 1989. Durante as aulas, entre tantas questões suscitadas, uma nos intrigava em especial: A partir da psicanálise, quais as possibilidades de trabalho em instituições? Certo dia, após avistarmos um cartaz divulgando a jornada de abertura da APPOA, cujo tema era A Questão da Formação do Analista – justamente o tema que estávamos discutindo naquele momento – fomos até Porto Alegre conhecer o que se falava sobre psicanálise naquela instituição. E após uma conferência de Contardo Calligaris, nos dirigimos a ele e perguntamos: “O que a psicanálise poderia fazer em uma instituição?” Questão a que ele responde: Demarcar o impossível. Resposta que foi prontamente revidada com o pergunta: “Só isso?”, indagação à qual ele responde com um riso! Desde aquele dia, a questão retornou para nós e nos pôs a trabalho. Hoje sabemos que não é nada pouco demarcar o impossível, mas naquele momento não tínhamos noção disso. Portanto, tomamos o riso como uma interpretação interessante. Claro que ficamos nos debatendo: Por que o riso? O que era isso: “Demarcar o impossível?” Já se passaram alguns anos e ainda achamos que é possível fazer novas aberturas, novos enlaces em torno dessa questão. Trouxemos essa experiência por pensarmos que o modo como o analista acolhe e responde a uma questão teórica produz efeitos na trajetória da formação de um sujeito. É claro que não há um modo ideal de responder, mas, há modos de acolhimento e de respostas que propiciam a transmissão, assim como há modos que apenas propiciam o ensino. E é esta distinção que nos interessa discutir no presente trabalho. Embora saibamos que ”não há ensino da psicanálise que não vise em primeiro lugar à divisão subjetiva do dito candidato, ou seja, que não há ensino da psicanálise sem formação do analista” (Ata da APPOA, 1990), muitas vezes 60 A TRANSMISSÃO E O ENSINO...

parece que o ensino fica na dimensão de uma difusão do conhecimento psicanalítico. Entretanto, sabemos que a transmissão se produziria justamente na ordem do saber inconsciente. Ao distinguir saber e conhecimento como dois registros distintos, Costa (2001) afirma que

[...] o conhecimento pode permanecer como uma representação exterior à experiência e que o saber é uma apropriação da representação pela experiência (apropriação que sempre traz uma medida de criação) (p.48).

Tal afirmação nos incita à questão: Quais as condições necessárias para que ocorra a passagem do conhecimento ao saber, e do ensino à transmissão da psicanálise? Entendemos que mesmo o percurso teórico tem certo tempo a ser percorrido: um tempo lógico e cronológico na averiguação dos conceitos. E sobre isto nos perguntamos se, naquele momento em que lançamos a pergunta a Calligaris, ele tivesse se debruçado a sustentar teoricamente sua afirmação, teríamos nos debatido tanto em torno da questão? Ou apenas teríamos acessado um conhecimento da teoria, mas sendo impossível sofrer os efeitos de uma transmissão, dada a nossa impossibilidade na ocasião de aceder a um saber sobre a questão? Até mesmo porque a transmissão, como nos diz Costa (2001), dá-se por uma falha, por um impasse no saber. Deste modo, ao nos constituirmos no e pelo discurso, não nos parece irrelevante a atual demanda de informação e de conhecimento – preferencialmente sem nada saber – tão característico da atualidade. Consideramos que essa demanda por informação e conhecimentos, de preferência, quanto mais rapidamente se der, melhor; e, ainda, sem a ocorrência de angústia ou de sofrimento, quando referida à teoria psicanalítica, produz justamente efeitos contrários aos esperados, já que, inevitavelmente, tem como resultado a produção de inibição e fascínio. Nos últimos anos, é freqüente observarmos jovens psicólogos que, a partir de experiências de ensino, autorizam-se egoicamente a se apresentar como analistas, tanto nos meios de comunicação como em consultórios. Trata- se de sujeitos que estão realizando percurso teórico, mas, o que nos chama a atenção é que muitas vezes tal percurso não desperta angústia nem desejo de saber de si, do seu inconsciente, apesar de acharem tão interessante estudar o clássico ato falho de Freud na troca de Signorelli por Botticelli ou o clássico sonho de injeção de Irmã. 61 TEXTOS

Nesse sentido, intriga-nos perceber que esses encontros com a teoria psicanalítica não produzem efeitos de divisão subjetiva nos envolvidos, embora seja claro que não se trata de analisar as particularidades de cada sujeito. O que nos interessa é problematizar o ensino e a transmissão da psicanálise, tendo como referência a atual demanda de conhecimentos na atualidade e o que temos vivenciado, nos últimos anos, em nossa região relativamente à teoria psicanalítica. Mesmo em se tratando de grupo de estudos com um analista, o discur- so psicanalítico pode estar sendo apresentado nos moldes do discurso uni- versitário. Nesse discurso,

o S é colocado no lugar de agente de discurso, porém trata-se de 2um saber que busca a sua sustentação num S , colocado no lugar de verdade S . Aqui é sem dúvida o mestre,1 mas trata-se de um mestre morto1 e ao mesmo tempo conservado, mumifica- do (Lacan), sobre qual todos os enunciados buscarão uma an- coragem que lhes garantiria supostamente a sua legitimidade (Teixeira, 1992, p. 7).

Segundo esse autor,

[...] o outro nesse discurso só pode ser colocado numa posição objetal; ele é objetificado por esse saber que pretende dizer tudo a seu respeito. Por fim, uma vez que a produção desse discurso é o S, o sujeito barrado com o seu sintoma, não é surpreendente que os efeitos da sua difusão sejam predominantemente histéricos: transferências amorosas instantâneas que se convertem com a mesma rapidez em reações de ódio, desprezo (o amódio) pelo pequeno mestre de plantão, o qual facilmente é substituído por outro, mais moderno, mais erudito ou mais sedutor (Teixeira, 1992, p. 8).

Se, por um lado, observamos que algumas vezes há certa passividade do sujeito que procura a atividade de ensino a fim de obter algum conhecimento da psicanálise, por outro, essa posição também está relacionada com o modo como o analista maneja e conduz atividades de ensino. Então, mesmo em se tratando de discussão teórica, como conduzir, deslocar ou efetivamente não responder a uma pergunta, de modo que possamos lançar o sujeito a trabalho? Como conduzir de modo que o sujeito em formação e a alteridade do texto não fiquem de fora desse “conhecer” a psicanálise? Embora seja próprio do neurótico demandar que alguém lhe diga como fazer, pensamos que, em cidades do interior, a demanda de conhecer a 62 A TRANSMISSÃO E O ENSINO...

psicanálise a partir da palavra do mestre (freqüentemente por pessoas vindas de outras cidades) atualiza a experiência na qual o mestre é colocado na posição de estrangeiro, suposto detentor do saber sobre as maravilhas do Outro mundo; portanto, um estrangeiro suposto detentor de um saber para o colonizado. Pensamos que aí reside tanto o horror quanto o fascínio sobre o colonizador, nesse caso, o mestr(e)strangeiro. De outro modo, temos outra situação no interior, na qual o analista sofre uma série de efeitos imaginários sobre sua pessoa, já que, muitas vezes, até mesmo por falta de pares, ele foi professor, é o supervisor, é vizinho, etc. Ou seja, inevitavelmente sofre efeitos em torno de sua pessoa e enquanto representante da psicanálise na cidade. A questão consiste, portanto, em: como lançar esse a mais na transferência, de modo que gere trabalho e que a pessoa do analista se apague, para surgir a letra, as palavras do texto psicanalítico? Pensamos que aí reside a importância da alteridade da instituição à qual pertencemos, seja através dos grupos de estudo, dos cartéis, etc., a fim de que possam servir de terceiro, de alteridade frente a essas demandas nas quais somos convocados, muitas vezes de forma maciça, no interior. Sobre esse aspecto Jerusalinsky (s. d.) nos diz:

Quem demanda aprender costuma interpelar o ensinante em relação a um texto. Nesse ponto não é relevante o saber de quem fala (o analista ensinante) senão o saber de um texto. É, nesse caso, suficiente que o analista ensinante dê provas de que sabe pôr a trabalhar a quem demanda saber, na dupla direção em que achará o saber pelo qual, aprendente e ensinante, interrogam: a) o saber que contém o texto e suas fraturas, b) o saber inconsciente do qual somente a análise poderá dar conta.

A partir desse apontamento, entendemos, que se a ética da psicanálise na condução de uma análise é a ética do desejo, do confronto com a falta, a condução de um grupo de estudos em psicanálise passaria pela possibilidade do analista em impulsionar o trabalho de quem demanda saber. Por isso, a importância da transmissão das fraturas do texto, pois parece que aí reside um elemento fundamental, que consiste na relação do analista com a teoria e com o saber inconsciente. Segundo Calligaris (1990), o lugar da teoria na história da psicanálise, assim como da supervisão e da análise, foram se modificando ao longo do tempo, de acordo com a compreensão da formação do analista em diferentes épocas. O autor nos diz que 63 TEXTOS

uma associação psicanalítica não pode se propor ativamente a formar analistas, ela só pode se propor a criar as condições necessárias para que o analista aconteça, e se verifique como formação do inconsciente (p. 2).

Nesse mesmo texto, Ballint, citado por Calligaris (1990), divide historicamente as modalidades de formação do analista em cinco momentos: instrução, demonstração, análise propriamente dita, superterapia e pesquisa. No tempo da instrução (1902-1910), no qual surgiu a Sociedade das quartas- feiras, nos parece que a autorização para praticar a psicanálise consistia em ler o que Freud publicava. Entender o que dava para entender e se lançar à aplicação do método psicanalítico. E pensamos que esse tempo parece retornar com muita força atualmente, no qual muitas instituições psicanalíticas se fundam e muitas propostas de formação proliferam. Esse movimento inicial não tinha como ser diferente, pois se tratava tanto da divulgação da psicanálise quanto da própria invenção dos conceitos. Mas hoje, qual é a especificidade da demanda de querer conhecer e estudar a teoria psicanalítica? Parece-nos que o conhecimento da teoria sustenta uma espécie de ilusão, de que uma quantidade relativa de conhecimentos dela seria suficiente para que alguém pudesse se apresentar como analista. Não se trata apenas de uma questão singular dos envolvidos, mas de questão relativa ao modo como o discurso social convoca os sujeitos. Se, por um lado, a psicanálise vem ano após ano sendo referência no discurso social, um saber que é convocado a responder a questões relativas à atualidade, por outro, é freqüente ver em nossa região os sujeitos se manterem na posição de alunos, isto é, numa posição passiva diante do saber, e a teoria muitas vezes vista como sendo saber absoluto, o saber do mestre-analista-coordenador do grupo. Podemos pensar que essa alienação é estrutural: a idéia de que o Outro é que sabe. Mas, a aposta é que durante o percurso de formação vá havendo a separação entre o texto psicanalítico, a palavra do analista-coordenador do grupo e a palavra do sujeito. Portanto, espera-se que ele saia da condição de ouvinte e possa se apropriar da teoria. Que ele possa colocar-se nessa brecha provocada pela separação entre o texto, a fala do coordenador e o que ele produziu nesse intervalo. Entretanto, quais os deslocamentos necessários para que essa passagem ocorra? Costa (2001) assinala que uma das operações necessárias para que o conhecimento se transforme em saber é a passagem pela experiência. Uma inscrição que passa por um suporte corporal (escutar, falar, registrar) e pelo 64 A TRANSMISSÃO E O ENSINO...

testemunho do outro. Na medida em que é “no ato de testemunhar ou de narrar, ato de fala endereçado a um outro, que o vivido se constitui como experiência” (p. 22). Em outras palavras, a passagem do conhecimento a saber implica a transformação do vivido em experiência. Ao refletir sobre a formação do analista, Maria Ângela Brasil, em reunião do cartel do interior (2003), nos diz que não cabe ao analista autorizar, referendar seu paciente à posição de analista. Não obstante, ele tem a responsabilidade de interferir diante de uma autorização antecipada. Entendemos que, mesmo na transmissão da teoria psicanalítica, o que está sendo transmitido é a experiência psicanalítica pela qual esse analista passou, isto é, sua relação com a teoria e com a sua análise pessoal. E parece-nos que disso depende até onde fomos com a nossa experiência do inconsciente e até onde podemos arcar com os efeitos do que dizemos; entretanto, advertidos de que esses efeitos só se darão a posteriori, na medida em que nos escapam. E é justamente naquilo que nos escapa, no que não está tão “bem dito”, que residem os efeitos de transmissão. Pensamos que é nesse mal-dito que se dá uma transmissão, na medida em que a transmissibilidade da psicanálise aparece, nessa perspectiva possível se o analista não tem um único mestre (aquele que não engana: Freud, Lacan), mas sim este mestre sem misericórdia que é o impossível, o real [...] (Weill, 1994, p. 51).

Pois,

quanto a esse mestre que é o real, vamos concluir lembrando que ele é aquele mesmo pelo qual Lacan e Freud se deixaram ensinar. Pois o próprio de um criador e de um psicanalista é o de não ser ensinável só por um ensino já articulado, mas ter a aptidão de se deixar siderar pelos significantes inarticulados que povoam esse maldito real [...] e que cada analista tire as conseqüências em si deste outro Mestre, desse Herr, desse impossível que é o seu próprio, e será levado, como Lacan afirmou em seus Escritos, a uma conseqüência em que lhe será preciso colocar algo de seu (Idem, 1994, p. 52).

Desta forma, podemos concluir afirmando que mesmo no momento em que o conhecimento da teoria esteja colocado e convocado a aparecer, ainda ali, é necessário que o analista e os sujeitos envolvidos nesse ensino possam se surpreender e não saber do que estão falando. 65 TEXTOS

REFERÊNCIAS: ATA DE FUNDAÇÃO. Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Ale- gre, ano I, n. 1, mar. 1990. CALLIGARIS, Contardo. Uma história crítica. Boletim da APPOA. Jornada de abertura das atividades da APPOA: A questão da formação do psicanalista. COSTA, Ana. Corpo e escrita. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. JERUSALINSKY, Alfredo. Acerca dos gozos na transmissão da psicanálise. Texto iné- dito. TEIXEIRA, Angela Baptista do Rio. Retorno da França. In: Lacan e a formação do analista no Brasil. Bahia: Agálma, 1992. TEIXEIRA, Marcus do Rio (org). Lacan e a formação do analista no Brasil. Bahia: Agálma, 1992. WEILL, Alain Didier. Inconsciente freudiano e transmissão da psicanálise. Rio de Ja- neiro: Zahar, 1994. KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

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DESEJO DE ANALISTA

Otávio Augusto Winck Nunes1

RESUMO O presente artigo discute a transformação da demanda de análise no desejo de formação analítica. Propõe que o passe, dispositivo institucional criado por Lacan, seja analisado diferentemente da proposta feita por ele: a partir da escuta dos dois sentidos que a partícula pas, contida na palavra passe, apresenta em francês: o primeiro, de passo, em que a transmissão e a possibilidade de formação ocorre por uma descontinuidade entre o analisante e o analista; e o segundo, o de não, a transmissão não ocorre, pois há uma identificação entre o analista e o analisante. PALAVRAS-CHAVE: formação, transmissão, passe, desejo.

PSYCHOANALYST DESIRE ABSTRACT The present essay discusses the transforming of an analysis demand into the desire for a psychoanalytical formation. It proposes the pass, institutional device idealized by Lacan, to be analyzed differently from his proposal: from the listening of the two meanings that the particle pas, within the word pass, presents in French: the first, of pass, in which the transmission and the possibility of formation occurs through a discontinuity between the patient and the analyst; and the second, that of no, transmission does not take place, once there is an identification between the analyst and the patient. KEYWORDS: psychoanalytical formation, transmission, pass, desire.

1 Psicanalista; Membro da APPOA; Mestre em Psicologia do Desenvolvimento/UFRGS; Mestre em Psicopatologia e Psicanálise/Paris 7. E-mail: [email protected] 67 TEXTOS

“[...] há seres assim, não levam dentro de si senão isso, a certeza de uma pacífica e não interrogativa continuidade.” (José Saramago , 1991, p. 242). eria impossível começar este trabalho sem lembrar a Jornada da APPOA, Socorrida em abril de 1990, alguns meses após a sua fundação. A primei- ra jornada de trabalho organizada pela, então nascente, instituição psicanalí- tica orientada pela ética freudiana e lacaniana, colocava em causa justamen- te um dos pontos capitais de sua preocupação até hoje: A questão da forma- ção do psicanalista. Naquela Jornada em que, provavelmente, muitos de nós, estávamos presentes, num misto de curiosidade e interesse, foram trazidas ao debate, não apenas uma, mas muitas questões que ainda ecoam em nos- sas mentes e que nos fazem trabalhar. Destaco apenas uma, entre outras, das eternas preocupações institucionais, face às variadas e diversas leituras que o aforisma lacaniano possibilitou e que é motivo de um sem número de equívocos, há décadas: O analista se autoriza de si mesmo. Mesmo que se complete o enunciado com o diante dos outros. Esta última parte – que alguém está sempre pronto para lembrar – parece ser a tentativa de colocar as coisas nos seus devidos lugares. Um adendo que, sem ter a mesma força enunciativa do autorizar-se de si mesmo, procura corrigir o desvio na rota formativa, tentando evitar os lapsos que a pretensa lógica de autonomia individualista propõe, ou mesmo minimizar os efeitos danosos provocados pelo entendimento de que a formação analítica é muito fácil. A propósito disso, lembro que, justamente no final dos anos 80 (portanto antes da fundação da APPOA), escutava o seguinte comentário: As pessoas estão se autorizando cedo demais. Não seria o caso de discutir aqui a pertinência da afirmação naquele momento. No entanto trago esta lembrança mais com o intuito de ilustrar que tipo de leitura e de escuta foram feitas, num determinado momento, a respeito da formação analítica e de sua transmissão. Como disse anteriormente, do início do trabalho da APPOA até hoje, 15 anos depois, além de alguns sinais inevitáveis que marcam a passagem do tempo, penso, que é muito oportuno (e nada envelhecido), que se relance a discussão sobre a formação e a transmissão. Mas formação e transmissão de quê? No título da Jornada de hoje não está presente a palavra psicanalista, ela está suposta, assim como psicanálise. O título, em princípio, completo seria Formação de Psicanalista e Transmissão da Psicanálise, termos, por 68 DESEJO DE ANALISTA

sinal, muito caros a todos nós. Há quinze anos, para a primeira Jornada da APPOA, talvez a preocupação inicial da instituição fosse sustentar um posicionamento ético frente à formação. Para esta Jornada, transmissão foi incluída. Com isso, quero assinalar somente que o fato de não aparecer psicanalista no título não indica necessariamente que houve aí um recalque. Ou mesmo que ocorreu uma simples substituição de uma palavra – psicanalista – por outra – transmissão – que, de qualquer forma, não são equivalentes. Penso que houve, com efeito, um acento relativo àquela que permaneceu, formação, e de uma decorrência dela, a transmissão. Na verdade, são dois eixos que se articulam e que se entrecruzam, formando, então, o trabalho nosso de cada dia, a dita psicanálise em intensão e, também, o trabalho cotidiano da instituição, a psicanálise em extensão. Tal como Lacan estipulou na Proposição de 9 de outubro de 1967, e que foi reafirmado na Ata de Fundação da APPOA, em 1989. Sob este trabalho de reunião de dois eixos é que me propus a discutir a seguinte questão, que penso seja, também, um desdobramento destes eixos: em que momento se poderia precisar que uma demanda de análise, transfoma- se em desejo de analista? Parece-me que esta questão poderia ser compartilhada aqui não só pelo próprio que a discussão suscita, mas também pela experiência de escuta que cada um tem em sua prática. Já que não me parece tão incomum que, em nossos consultórios, apareça, entre as mais inusitadas queixas e sofrimentos, aquele sujeito que, num determinado momento de sua vida ou de sua análise, enuncie o desejo de ser analista. Gostaria de acentuar aqui o efeito provocado pela escuta da expressão: de ser analista. Penso que esse momento é extremamente delicado para o analisante, pois não é sem certa titubeada ou hesitação, ou ainda grande excitação, que se torna possível enunciar esse desejo, direta ou indiretamente. Mas o momento não é, também, menos incômodo para o analista. Um certo ar de preocupação, um leve pigarrear, por vezes a pergunta que se faz em pensamento: O que foi mesmo que fiz para acontecer isso? Ou ainda: Já é o momento? Mesmo que isso revele, muitas vezes, uma boa dose de satisfação. Digo satisfação, pois foi Lacan mesmo que afirmou que o final de uma análise produziria um analista, quer o analisante a exerça ou não. Então, se o desejo de ser analista é enunciado, poderia ser indício de que a cura está no bom caminho. Lacan (1967) mais precisamente diz que a psicanálise em intensão, ou a chamada análise didática, prepara operadores para a própria psicanálise, ou seja, prepara um operador enquanto aquele que tanto pode operar com o 69 TEXTOS

corte, e acrescento do significante, quanto aquele que define, matematicamete, a realização de uma determinada função. Mas isto levanta outra questão. Tendo , então, uma análise se revelado didática, na medida em que produziu outro analista, esta produção faria do analista – encarregado desta cura – um analista didata? É uma interrogação, pois isto seria mais um ponto, entre tantos os que são necessários debater. Principalmente se levamos em conta as diferenças existentes entres os pressupostos lacanianos e os de outras vertentes psicanalíticas. De qualquer forma, não deixa de ser enigmático que Lacan faça coincidir o término da análise com a passagem do psicanalisante a psicanalista, quando ele mesmo nos ensina que uma análise só se revela didática no aprés-coup. Dito de outra maneira, a proposição de o analisante ser analista vai decorrer de um efeito produzido pelo próprio da análise, do trabalho transferencial produzido entre analista e analisante, num determinado ponto de tensão. Se indica o fim de uma análise e ao mesmo tempo a passagem de uma posição a outra – analisante-analista – parece-me uma situação muito específica. O que não quer dizer que não exista, mas assegurar que isso ocorra generalizadamente é, no mínimo, precipitado. Ainda assim, a passagem de analisante a analista ocorre, e não é um passe de mágica. Trata-se de outro passe, que inclui a formação de psicanalista e a transmissão da psicanálise. E aqui não me refiro ao dispositivo do passe criado por Lacan, na sua vertente institucional, mas, sim, ao ato analítico que transpõe o analisante para a posição de analista. O passe, como estou me referindo, implicado com a relação transferencial, vai ser tomado no seguinte aspecto. Primeiro, gostaria de propor a leitura e também a escuta possível que o significante passe contém na partícula pas, em francês, o que me parece bastante viável. De um lado é o pas da negação e, de outro, o pas de passo. Como vocês sabem, Lacan já havia utilizado esse jogo de palavras no seminário da Identificação, de outra forma, relativo ao traço unário e aos nãos do pai. Proponho que na vertente do não, da negação contida no pas-se, ou seja quando não há o passe – e isso não tem a ver com a sua institucionalização – o impedimento para a formação de analista poderia estar ligado ao resultado do desenlace transferencial que privilegiaria uma resposta identificatória do analisante ao analista. O analista indicado como modelo ideal, como o detentor e sustentador de uma posição de saber, ou a identificação à parte sadia do eu do analista (Lacan, 1967). Situação criticável e, também, equivocada, pois 70 DESEJO DE ANALISTA

retira da análise o seu estatuto transgressor, e Lacan se pergunta: “De que serve, portanto sua passagem pela experiência?”(p. 259). Este entendimento reduz a transferência a uma mera reprodução da técnica analítica, em que a formação de analista já estaria assegurada antecipadamente. Uma imagem que ilustraria bem essa situação seria a corrida de revezamento, corrida em que o corredor que detém o bastão, ao final do seu percurso, passa para o corredor seguinte o mesmo bastão, e assim sucessivamente, todos percorrendo a mesma distância. A formação do analista não pode se dar por uma resposta fantasmática do analisante, ocorrida durante o processo transferencial, com o intuito de ser uma resposta para preencher a falta do Outro. Por outro lado a partícula pas do passo, que permite o passe, está circunscrita a uma outra configuração. Pode ocorrer a formação de analista, a partir de uma análise, e a transmissão da psicanálise, pela ética do desejo, quando o passo é dado em falso, quando há um impasse, um tropeço. Vou lembrar uma afirmação de Freud que está no texto A questão da análise leiga (1926; pós-escrito, 1927) onde ele fala do seu percurso tortuoso até chegar à psicanálise, que me parece ilustrar muito bem os impasses próprios da psicanálise, desde a sua origem:

Tornei-me médico por ter sido compelido a desviar-me do meu propósito original, e o triunfo da minha vida está em haver, após uma viagem longa e indireta, encontrado meu caminho de volta à minha senda mais antiga(p.287).

Não deixa de ser interessante, também, como o próprio Freud apresenta a sua posição de sujeito, em como ela irrompe a partir da reduplicação do desejo sobre a demanda, ponto de sua enunciação. Por outro lado se é correto que as únicas formações são as do inconsciente, a formação do analista ocorrerá pelo que é próprio ao ato analítico, o exercício que promove a divisão subjetiva. Lacan (2004) é muito preciso nesse ponto, situando que “a passagem de analista a analisante tem uma porta cuja dobradiça é o resto, que constitui a divisão entre eles, porque a divisão não é outra senão a do sujeito, da qual esse resto é a causa” (p.259). Enfim, não são poucos os autores que, a partir de Freud e de Lacan, indicam e sustentam que a formação do analista e a transmissão da psicanálise ocorre num ponto de tensão, e que a enunciação do desejo se constitui nesse tensionamento entre o sujeito e o Outro, próprio da relação analítica. Ponto de tensionamento que o sujeito e o analista sustentam, pelo efeito do significante, 71 TEXTOS

que instaura uma abertura, uma fenda, por situar o significante da falta do Outro, deslizando para o questionamento: “Que queres”? Para finalizar este trabalho, em que esboço uma hipótese relativa ao desejo de analista, gostaria de retomar a citação de Saramago com a qual o inicio, para o ponto que não podemos esquecer, que releio agora: “ (...) há seres assim, não levam dentro de si senão isso, a certeza de uma pacífica e não interrogativa continuidade.”(p.242) Quando utilizamos, em psicanálise, palavras como descontinuidade, tropeço, resto, equívoco, não fazemos isso simplesmente por serem figuras de linguagem ou, ainda, como mero exercício poético. Temos que recorrer a estes significantes por não termos outros que representem a dissimetria própria à experiência psicanalítica, na qual cada sujeito se inscreve, tornando-a uma interrogativa descontinuidade.

REFERÊNCIAS: FREUD, Sigmund. A questão da Análise Leiga- Pós-escrito(1926[1927]). In:_____Obras Completa. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XX. LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

72 TEXTOS FORMAÇÃO PSICANALÍTICA, INSTITUIÇÃO E POSSIBILIDA- DES TRANSFERENCIAIS.

Volnei Antonio Dassoler1

RESUMO O artigo apresenta algumas especificidades que caracterizam a formação psicanalítica desde o ponto de vista lacaniano, situando os impasses atuais que envolvem a autorização do analista e a natureza das relações deste com as instituições para as quais pode dirigir algum tipo de pedido de reconheci- mento ou filiação. PALAVRAS-CHAVE: formação psicanalítica, instituição, ética.

PSYCHOANALYTICAL FORMATION INSTITUTION AND TRANSFERENTIAL POSSIBILITIES ABSTRACT This article presents the specifications characteristic of a psychoanalytic training from a Lacanian perspective. Herein are discussed the important issues that exist nowadays involving the authorization of the analysts and the nature of the relationship between the analysts and the institutions in order for them to be able to request recognition or affliliation. KEY-WORDS: psychoanalytic training, institution, ethics.

1 Psicanalista; Membro da APPOA; Especialista em teoria psicanalítica (Unisinos); Psicólogo do Caps AD, Santa Maria-RS. [email protected] 73 TEXTOS

credito que falar de formação, transmissão e ensino no campo psicanalí- Atico permite revisitar de forma ativa as relações que cada um estabelece com as questões que compõem seu percurso formativo; tarefa esta que deve- mos tomar como um desafio necessário, pois compartilhamos a idéia de que a formação nunca está acabada, fato que conduz analistas e instituições no trabalho cotidiano de refundação da psicanálise no próprio exercício da mes- ma. Pommier (1992), no livro A neurose infantil da psicanálise, afirma que a questão da formação foi um ponto cego desde o começo, constituindo, ainda hoje, elemento de polêmica e vulnerabilidade. Ideologias reducionistas, delíri- os individuais e anacronismo histórico se oferecem como riscos nada despre- zíveis. Podemos afirmar, então, que a formação analítica e o lugar da institui- ção sofreram, neste pouco mais de um século, deslocamentos significativos que devem ser lembrados a fim de se evitarem os danos do “esquecimento”. Chemama (1990), no capítulo sobre a transmissão da psicanálise do livro Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano, afirma que as respostas para este tema podem se apresentar em diversas facetas que vão da submissão ao enquadramento burocrático à desobrigação da instituição sobre o rigor teórico ou sobre a responsabilidade ética de seus membros. A fórmula mais antiga e conhecida de regulamentação tem na IPA sua principal representante, indicando os marcos do que seria a análise didática. Observamos que a tríade supervisão, análise e percurso teórico mantém-se hegemônica como proposta de percurso, independentemente da natureza das escolas. Durante algum tempo, especialmente até as décadas de 1950-1960, este processo mostrou-se auto-suficiente, dando conta de atender a deman- da dos que se apresentavam como “candidatos” e conseguindo, ao mesmo tempo, conciliar o interesse com a preservação da hierarquia associativa. Estes procedimentos delimitam o que é denominado de formação e sustentam a função do analista. São três lugares fundamentais que, a partir da proposta lacaniana, comportam não mais um mecanismo burocrático, mas uma formação que considere lógica e cronologia individual. Assim, é natural dizer que a formação não tem um momento para ser concluída, mas que precisa evidentemente estabelecer mecanismos que explicitem a evolução e os desdobramentos desta trajetória. Lacan surge no cenário psicanalítico combatendo esta espécie de acor- do antecipado, ao assinalar a diferenciação entre análise pessoal e didática. Ao mesmo tempo, indicou os efeitos imaginários de um pacto que deixaria de fora ou renegaria radicalmente as manifestações da dinâmica psíquica. 74 FORMAÇÃO PSICANALÍTICA,...

Acompanhamos com detalhes os desdobramentos deste embate que, para nós, se presentifica na construção e na solidificação do pensamento lacaniano, trazendo consigo reformulações significativas que incluem o cam- po técnico conceitual e a formação propriamente dita. Ruptura drástica e dra- mática que inspira a proposição de uma escola que ele apresenta como “re- torno a Freud”. Apesar de todas as controvérsias e brigas institucionais, Lacan e seu pensamento forçaram a reflexão sobre o funcionamento das estruturas institucionais, acarretando mudanças importantes no cenário psicanalítico mundial. Observamos que o êxito obtido por este empreendimento deve nos inspirar para avançar na confrontação com os impasses do nosso próprio campo, em especial aqueles que se referem aos mecanismos de formação, de autorização e com a preocupante diversidade e multiplicidade de inscri- ções institucionais que torna secundária a oposição com a tradição burocráti- ca denunciada por Lacan. Tal situação é comentada no artigo Legalidade da psicanálise (Ana Costa, 2003) no Correio da APPOA, em que assinala que, de 1953 aos dias de hoje, importantes variações aconteceram com a transposição da idealização do lacanismo. O charme da rebeldia e da alternativa lacaniana passaram, e a existência desta posição não se sustenta mais na oposição exclusiva ao legalismo ipista. Penso que a frase “L`analyste ne s`autorise que de lui même” precisa obrigatoriamente ser contextualizada e associada ao afastamento de Lacan do seio da IPA. Esta exclusão solitária, mas ao mesmo tempo solidarizada por diversos de seus alunos e colegas, é necessária para compreender as inúmeras tentativas que ele faz para se ressituar no âmbito psicanalítico, na busca pela legitimação das suas próprias contribuições. Quer dizer, esta fra- se indicava tanto uma proposta e uma orientação sobre a formação do analis- ta sustentada pelos seus pressupostos, mas também continha a necessidade de Lacan de encontrar uma forma de obter seu reconhecimento que carre- gasse consigo o valor da legitimidade. A frase serviu inicialmente para Lacan se posicionar frente às dificuldades que enfrentava. Sobre esse momento de autorizar-se por si mesmo, Pommier (1992), no livro A neurose infantil da psicanálise, admite que Lacan reconheceu aí uma falha na doutrina que demandava ser trabalhada e acrescenta que a verificação de certo saber não permite validar a qualificação. A formação ana- lítica, sendo formação do inconsciente, não é um projeto que se faça sem o 75 TEXTOS

Outro e sem os outros. Para isto, basta lembrar o esforço de Lacan, registra- do na Proposição de 9 de outubro de 1967, ao criar uma escola em cujo funcionamento o poder não fosse atestado pela hierarquia ou pelo culto da vaidade e, sim, pelo comprometimento com o trabalho da psicanálise. Reconhecemos que o campo transferencial do analista em formação se diferencia e se complexifica em relação aos tratamentos convencionais, pois a experiência analítica sofre os desdobramentos da sua inscrição no campo institucional, que remetem e incluem as inúmeras articulações transferenciais desta participação, além de exigir definições ou posições que podem ser denominadas de políticas. No livro Mal estar na atualidade (Birman, 2003), o autor indica que

[...] os efeitos da transferência se inscrevem imediatamente no campo social, onde seus destinos se escrevem em formas soci- ais de materialidade bem precisas: identidade do analista, reco- nhecimento do analista pelos seus pares, inserção do psicana- lista no mercado social de emblemas e insígnias e no mercado social da clínica psicanalítica. Por isso mesmo, nesse registro da transmissão da psicanálise, o político – como eixo de interpreta- ção – relança e refunda os eixos ético e teórico, produzindo ou- tras consistências e destinos para a psicanálise.

Focando particularmente as questões relativas à formação na pers- pectiva lacaniana, podemos dizer que existem dois pontos nevrágilcos: o primeiro seria a passagem de analisante a analista, com o reconhecimen- to informal desta pelos pares – como parte da própria autorização. O se- gundo seria uma nominação qualificatória oriunda e prevista pelas insti- tuições. Estes princípios trazem como conseqüência a existência de ana- listas praticantes com pertença a grupos analíticos, enquanto outros se conduzem profissionalmente sem participação efetiva e regular na comu- nidade psicanalítica. Esta situação, se não é majoritária, é suficientemen- te presente para merecer nossa reflexão. Podemos afirmar ser possível esperar efeitos de análise na vida institucional, já que não estamos imunes ao sintoma que tentamos tratar. Parece-me, nesse sentido, que devemos supor que a circulação e a par- ticipação não se restringem ao objetivo exclusivo de aquisição do que seria da ordem do conhecimento, ou seja, aprender a teoria de uma prá- tica psicológica. Mesmo sabendo que a psicanálise se origina e se sustenta basica- mente desde o projeto clínico, é fundamental que ela produza efeitos, no 76 FORMAÇÃO PSICANALÍTICA,...

discurso social, que garantam sua viabilidade. Isso está contemplado e sugerido por Lacan, que indubitavelmente, no mais além da análise pes- soal e do aprofundamento teórico, indica que necessitamos de lugares de avanço conceptual que preservem o vigor analítico. Por isso, o valor do lugar institucional. Historicamente, encontramos registros do estabelecimen- to de lugares simbólicos para o avanço e a garantia da psicanálise (artigos, textos, publicações, congressos, cartéis, supervisão, seminários, etc.) pre- servando o lugar do inconsciente no campo social. Parece-me que o desafio de uma instituição é comportar, propor e bancar tanto a continuidade (garan- tia da manutenção de pressupostos fundamentais) quanto o estabelecimento de um ambiente de pluralidade discursiva que permita aos seus membros o espaço para a produção e a criação. Um analista pode prescindir da filiação formal a instituições, mas é determinante que reconheça a existência de dívida para com as mesmas, já que é neste espaço e com esta organização que prioritariamente e, no mais das vezes, eficientemente, se criam as condições para que externo-interno, público-privado, teoria-prática e ensino-transmissão forjem a continuidade es- sencial que permite a transmissão da psicanálise. Retomando a questão sobre a passagem de analisante a analista, podemos afirmar que se trata de uma aposta ética e intransferível, sendo, portanto, da alçada subjetiva. Este caráter dificulta que possa ser identifi- cado, pelo analisante, seu analista ou até pela instituição. Esta particula- ridade favorece que algumas análises se precipitem em autorizações an- tecipadas. Excluindo esse risco, e considerando que o percurso tenha alcançado um termo suficiente para a autorização, ainda sim a situação não está resolvida. Passamos ao ponto do reconhecimento, quer dizer, é preciso que esse analista que se autoriza por si possa ser confirmado pelos outros com os quais compartilha o laço social, o trabalho e o inte- resse pela psicanálise. Neste circuito se apresenta a responsabilidade da instituição em nominar analistas alguns de seus membros, nos quais re- conhece comprometimento ético na relação com a psicanálise, mesmo que este procedimento não seja prerrogativa para o exercício profissio- nal. Aceder ao lugar de analista se dá através da própria experiência pelo divã. Tal empreendimento bem sucedido credencia alguém a se ocupar com o inconsciente de outros. O reconhecimento pela escola não é simul- tâneo. Esta circunstância sustenta claramente que tal reconhecimento não é pedido ou demandado, ele é dado. Admitir que tal procedimento é alheio à vontade pessoal do analisante não impede que o mesmo enderece, ou 77 TEXTOS

se enderece, aos colegas ou à instituição esta expectativa. Lembremos que o desejo em Lacan é o desejo de se fazer reconhecer; portanto, não há nada de errado em buscar tal reconhecimento. No seminário As forma- ções do inconsciente (1999) ele assegura que “o discurso inconsciente não é a última palavra do inconsciente, ele é sustentado pelo que é a mola última do inconsciente, e que não pode ser articulado senão como desejo de reconhecimento”(p.267). A instituição não se obriga a corresponder à de- manda, mas aceita e reconhece este efeito como possível dentro da trajetória de formação. Observamos aí a presença de um impasse importante na relação dos membros com a instituição psicanalítica. A função analista não se garante pela nominação nem opera desde uma titulação advinda da instituição. É líci- to e razoável supor que uma instituição analítica se funda sobre o texto vivo e que ela não existe sem psicanalistas. O desejo da psicanálise se sustenta a partir do desejo do analista; portanto, é com este elemento ou as voltas com as tentativas de dar conta do que sustenta sua manifestação que ambos interagem e sobrevivem. Penso que o analista pode ter sua formação alheia a uma instituição e manter um convívio que não configure filiação institucional. Entendo, no en- tanto, que, se o compromisso do analista não for apenas com a sua prática individual, teremos razões para a existência da instituição. Quer dizer, a exis- tência de analistas pode dispensar a instituição, mas a permanência da psica- nálise torna a instituição imprescindível. Nesse sentido, a adesão e a partici- pação não são, então, condições, mas uma escolha e, como tal, acarretam todas as implicações éticas que concernem a este ato.

REFERÊNCIAS: BETTS, Jaime Alberto. A direção da transmissão em psicanálise: passes e impasses na formação do analista. Revista da Appoa, Porto Alegre, Artes e Ofícios, n. 25, p. 85- 94, out. 2003. BIRMAN, Joel. Mal estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. BRASIL, Maria Ângela. O porquê da instituição. Boletim da Appoa, Porto Alegre, n. 3- 4, p. 22-24, nov. 1990. CHEMAMA, Roland. Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano. Porto Alegre: CMC Editora, 2002. COSTA, Ana. Legalidade da psicanálise. Correio da Appoa, Porto Alegre, n. 129, out. 2004. 78 FORMAÇÃO PSICANALÍTICA,...

LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967. Letra Freudiana, documento para uma escola. Rio de Janeiro, n. 1. LACAN, Jacques. O Seminário. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: JZ. Editor, 1999. POMMIER, Gerard. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro: JZ. Editor, 1990. ______. A neurose infantil da psicanálise. Rio de Janeiro: JZ. Editor,1992.

79 TEXTOS REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA PSICANALÍTICA EM INSTITUIÇÕES1

Denise Teresinha da Rosa Quintão2

RESUMO A história da psicanálise vem mostrando uma gradual inserção da prática psicanalítica em diferentes contextos, para além do modelo tradicional inaugurado por seus precursores. O trabalho psicanalítico em instituições vem acompanhado de interrogações, marcadas por incertezas e por descobertas de espaços e condições de escuta dos sujeitos com os quais trabalhamos. Este artigo visa problematizar algumas questões que surgem destas experiências e que permitem examinar aspectos relativos à formação do psicanalista. PALAVRAS-CHAVE: prática psicanalítica, instituições, formação, (re)invenção. Reflections upon the psychoanalytical practice in institutions

REMARKS ON THE PSYCHOANALYTICAL PRACTICE IN INSTITUTIONS ABSTRACT The history of psychoanalysis has been showing a gradual insertion of the psychoanalytical practice in different milieus, beyond the traditional model established by its precursors. Psychoanalytical work in institutions comes followed by interrogations, marked by uncertainties and by discoveries of listening spaces and conditions of the subjects that we work with. This article intends to analyze some questions that emerge out of these experiences and that allow to examine aspects regarding the formation of the psychoanalyst. KEYWORDS: psychoanalytical practice, institutions, formation, (re)invention.

1 Trabalho apresentado na Jornada Interna da APPOA – Formação e Transmissão – ocorrida em maio de 2005. 2 Psicanalista. Psicóloga especialista em Psicologia Clínica e Organizacional e do Trabalho (CRP/RS). E-mail: quintã[email protected] 8080 REFLEXÕES SOBRE A...

presente artigo é resultado de um trabalho de preparação para a Jornada OInterna da APPOA/2005 sobre a temática da Formação e Transmissão da Psicanálise, ocorrido no interior da instituição pelo Cartel do Interior. Chama a atenção que o significante interior assume aqui sua polissemia, ao mesmo tempo em que tratamos das experiências provenientes de nossa prática clínica ocorrida no exterior da instituição psicanalítica. Pretendo expor algumas reflexões oriundas da experiência clínica em um contexto institucional que, em muitos momentos, pareceu-me “desviante”, a ponto de me perguntar, muitas vezes, se seria possível atribuir caráter psi- canalítico a um trabalho permeado por atravessamentos advindos de muitas direções – internas e externas à instituição (aquela em que trabalhamos). Mais especificamente, este trabalho se propõe a apresentar elementos que possam servir apenas como referência para pensarmos a inserção da ativida- de do psicanalista no social, ou o que faz retornar de nossas experiências a fim de pensar os caminhos de nossa própria formação. Uma pergunta que me surge, primeiramente, é quais os motivos que levam o psicanalista a trabalhar em instituições? Certamente as respostas que possamos ter não são suficientes para dar conta das motivações individuais, mas é possível tecer algumas especulações. Um aspecto pode ser a procura de inserção no mercado de trabalho, e isto ocorre de várias maneiras: pela via da empregabilidade através de concurso público nos cargos condizentes com as profissões de origem (psicólogo, médico...) ou pelo regime da CLT; prestação de serviços como profissional liberal e autônomo, ou mesmo como pessoa jurídica. Um outro motivo pode ser a busca de oportunidade para desenvolver trabalho clínico pois, para os iniciantes em uma prática, a tendência é a de atender número reduzido de pacientes em consultório particular, buscando outras alternativas para adquirir experiência - e sustentabilidade. Também é possível a procura de um espaço de trabalho que propicie a troca, in loco, com outros profissionais, vindo a participar de alguma equipe, amenizando a “solidão” da prática de consultório. Outro aspecto ainda pode ser a busca de novas experiências, que permitam vivenciar e–ou introduzir a psicanálise em outros contextos em que os sujeitos falantes se encontram. Inclusive os sujeitos falantes que não falam... De certo modo, o trabalho institucional tende a se constituir, em muitas situações, como suporte da prática e como possibilidade de autorização. É interessante, pois, ao considerarmos que uma instituição possa representar, para o psicanalista, um lugar como terceiro, isso nos remete a um significativo questionamento presente na instituição psicanalítica quanto ao seu papel e 81 TEXTOS

ao lugar ocupado na transmissão e na formação do psicanalista e a questão da autorização. Em vários momentos, percebi a preocupação em esclarecer de qual instituição poderia estar falando – aquela onde trabalhamos ou aque- la em que buscamos nossa formação. E vejo que o externo e o interno se- guem imbricados. Dou-me conta de que falo da busca, da procura... do sujeito psicanalista – e do seu desejo. Sigo trazendo um pouco de minha experiência, que durou cerca de cinco anos numa instituição. Fui contratada (com vínculo empregatício) como psicóloga por uma instituição que possui história de várias décadas no traba- lho com sujeitos portadores de deficiência mental, atuando tanto na área da educação especial quanto na área da saúde, e passei a fazer parte de uma equipe com uma proposta de trabalho interdisciplinar, tendo como referencial teórico a psicanálise. Foi necessário, na ocasião de minha entrada, um perío- do para a apropriação do funcionamento do trabalho institucional, assim como dos casos com os quais me ocupei. Neste período, creio que, por significar uma experiência nova em meu trabalho clínico, por se dar no espaço institucional e por se tratar de clientela (predominantemente de crianças e adolescentes), em sua maioria, portadora de um comprometimento importan- te em sua estruturação psíquica e no desenvolvimento global, as questões iniciais foram decorrentes, poderia dizer, do “impacto” que a escuta dos paci- entes e de alguns significantes presentes no discurso institucional impunha. Algumas destas questões foram, de início, essencialmente clínicas: onde está o pai para estes sujeitos assujeitados a um Outro – geralmente encarna- do na mãe – vide a predominância das mães na sala de espera, cenário, inclusive, para intervenções? Falo aqui de um pai não apenas aquele de car- ne e osso, que não comparece aos chamados para vir falar de seu filho, ou que vem e diz que não tem nada a dizer, ou que não sabe o que dizer, como aquele ausente ou desqualificado no discurso (da mãe, do filho). Perguntava- me: o que poderia fazer função frente à carência de significantes paternos que produzissem um sujeito. Certamente que no trabalho terapêutico nos vemos constantemente sendo convocados a operar desde este lugar de ter- ceiro, lugar também representado pela instituição. Todavia, o que se abria, para mim, naquele momento, era justamente aquilo que diz respeito à própria subjetividade do terapeuta frente a um trabalho em que a escuta do real (do inominável, do impossível) se impõe e que produz horror – talvez daí a idéia do “impacto” mencionada anteriormente. Deparei-me com os “excessos” que por vezes transbordavam a suportabilidade (em diferentes sentidos); dentre 82 REFLEXÕES SOBRE A...

eles, aquilo que se refere à questão da diferença – a escamoteada e a apa- rente, estampada – e isso me levou a buscar em autores como Walter Benja- min e Michel Foucault subsídios para trabalhar questões que problematizassem a relação do porta-dor de deficiência com o (Outro) social, assim como a leitura de Kafka e o exame, a partir de Benjamin, de alguns de seus persona- gens. Entendo que seja importante considerar tais aspectos, pois a especificidade desta clínica que passei a abraçar – e com a qual me encantar – impunha riscos subjetivos inerentes a este investimento. Trata-se da escuta de sujeitos – ou o “esboço” de sujeitos em constituição – em que o real não se mostra “disfarçado”, como na neurose. na qual os efeitos do recalcamento ressurgem de maneira substitutiva (sintoma) e, poderia dizer, talvez menos “impactantes” (não estou dizendo, com isso, que a escuta dos sujeitos neuróticos não produza efeitos na subjetividade do terapeuta).Talvez não seja por acaso a queixa freqüente de colegas que trabalham com clientela bastante prejudicada social, psíquica e cognitivamente, em muitas instituições e nas diferentes áreas, que adoecem com freqüência, necessitando “faltar” ao serviço, assim como é comum “torcer pela falta” do paciente, em alguns momentos, para se aliviar. A questão da falta do-no Outro, numa clínica onde a estruturação psicótica prevalece, torna-se significante, quer como ausência, por vezes presentificada, quer como significante, de modo a “nortear” a direção de uma cura num trabalho desta ordem. Também falas como “estou mal” ou “estou angustiada(o)” costumam ser ditas após alguns atendimentos – ou mesmo ao chegar na instituição. Ouvi de uma colega, que trabalha numa instituição com clientela semelhante à que eu atendia: “Quando chego em casa, parece que um caminhão passou por cima de mim, não consigo fazer nada, nem me concentrar para assistir televisão e, quando estou na frente da TV, só quero assistir “abobrinha”, pois não consigo nem pensar”. Esta sensação de exaustão é compartilhada por muitos. Normalmente, o número de atendimentos (e de casos) é proporcional à carga horária contratada, e as instituições dependem desta ”produção” para obterem os recursos para a própria sustentabilidade. Há também consenso de que a remuneração costuma ser aquém dos investimentos necessários para dar conta do que se impõe como demanda de trabalho – e também poder manter o espaço da análise pessoal, da supervisão dos casos, de estudo... É importante frisar que o suporte que o grupo de profissionais representa – uns para os outros – torna-se fundamental para a continuidade do trabalho, especialmente quando se consegue manter uma prática interdisciplinar. 83 TEXTOS

Pode-se perceber, nas entrelinhas dos discursos institucionais, uma demanda de “doação”, de fazer parte da “grande família” que luta pela causa – especialmente nas instituições que carecem de recursos e que atendem a uma clientela que representa categorias de excluídos sociais; neste caso, relacionadas à deficiência mental e à loucura, embora este fator não seja evidenciado (parece haver, de certa forma, a negação do sofrimento psíquico, tornando-se difícil falar sobre aquilo que “pesa”), para cuja manutenção necessitam do apoio financeiro da comunidade - e isso tende a descaracterizar, por vezes, o trabalho profissional. A instituição “captura” – ou faz suas tentativas... Percebi que utilizei várias vezes o termo terapeuta. Por um lado, acho que pensei nas diferentes áreas, tendo generalizado. Mas, não querendo me levar pelas aparências, acredito que esta seja também uma expressão menos comprometedora num sentido de denominar psicanalista – reconhecer-se e ser reconhecido como psicanalista – numa instituição. E isto se torna mais claro ao buscarmos, na história da inserção da psicanálise no espaço institucional, a ocorrência, em muitos casos, de sua entrada como instrumento de poder, constituindo um discurso que precisa ser “implantado”; esta observação pode ser estendida a muitas instituições, inclusive com outras caracterizações (de ensino, por exemplo). Refiro-me à introdução da psicanálise como um discurso fascinante, imposto e incorporado como um saber que, inclusive, se hierarquiza. Disso resultaram, no trabalho institucional, muitas conseqüências, e ele produziu, a meu ver, em algumas instituições, uma posição híbrida em relação ao reconhecimento da psicanálise enquanto prática – ou da prática dos psicanalistas – embora possa predominar a valorização à sua fundamentação teórica enquanto referencial que atravessa as diferentes áreas (psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional...) – todos são terapeutas. Isso parece confuso, mas é mesmo paradoxal. Na minha opinião (é apenas uma hipótese), acredito que a situação apresentada seja herdeira do próprio movimento psicanalítico – somos tribu- tários de sua história, quando as dissoluções de grupos e a fundação de no- vas instituições produziram rupturas e elegeram mestrias, e cujos discípulos - refiro-me aqui a uma posição subjetiva, transferencial – encarregaram-se de defender as idéias dos mestres. Parece-me que a tentativa de tornar a psica- nálise uma verdade instituída se deu mais como discurso, não conseguindo se sustentar por muito tempo – mas provocou alguns efeitos danosos cujas arestas ainda precisamos aparar. Creio relevante mencionar que esta noção de saber, a partir da estrutura do discurso do mestre, possivelmente se aproxime mais da noção de 84 REFLEXÕES SOBRE A...

conhecimento do que o sentido atribuído pela psicanálise. O saber, para o psicanalista, está do lado daquilo que não se sabe. Ana Costa nos lembra esta diferença no texto Construção e saber (Correio da APPOA, maio, 2005) indicando que o lugar em que a construção é colocada se dá “como um determinado saber sobre o real”, esclarecendo que se trata de saber e não de conhecimento, apontando que Lacan trouxe a grande contribuição de ter interpretado nossa relação com o impossível como construção de um saber. Conduzir um trabalho nos diversos locais em que nos inserimos profissionalmente requer estar atento a estas diferenciações, pois corremos o risco de tomar as teorias como sendo “A Psicanálise”, minimizando com isso sua condição de experiência. Ao dar-se continuidade ao trabalho que se pretende psicanalítico numa instituição – refiro-me a todos aqueles implicados nesta perspectiva –, pare- ce-me importante levar em consideração estas questões pois, ainda que se proponha a construir novas referências, ficam restos – o recalcado retorna sintomaticamente. Buscando a ajuda de Walter Benjamin para pensar estes aspectos apresentados, esse autor aponta que cada momento histórico abre a possibilidade de ser contado em diferentes versões, contextualizando-se as suas facetas político-sociais, que tendem a determinar o que pode ser lem- brado e o que deve produzir esquecimento. E, no contexto institucional, isso se mostra evidente, guardadas suas especificidades (sua própria história), estabelecendo-se alguns limites de intervenção. Pode-se supor que estes acontecimentos, mencionados generica- mente, tenham ocorrido de maneira mais intensa no momento em que uma geração de analistas em formação buscava consolidar-se em certo lugar de reconhecimento no social e em que as instituições tornaram-se palco para a implantação de suas idéias. Tenho a impressão de que o momento atual caracteriza-se mais por um trabalho efetivo (de interven- ção clínica, institucional, na cultura, nas produções interdisciplinares nos locais em que trabalhamos, na universidade...) e que o reconhecimento vem se dando mais pelos efeitos produzidos por este trabalho. Talvez possamos pensar efetivamente nos efeitos de transmissão e de formação – um predomínio do discurso do analista sobre o discurso do mestre, ou seja, do deslocamento de uma posição discursiva marcada pela idealização e o assujeitamento a um discurso que supõe um sujeito confrontado com o objeto de seu desejo, com sua falta e isso, na formação do psicanalista torna-se, de certa maneira, condição necessária para a escuta analítica, um confronto com a própria castração – ou o que possa se aproximar disso. 85 TEXTOS

Como fiz referência ao sujeito psicanalista, anteriormente, e ao trazer essa questão de alguns dos problemas que perpassam a transmissão e a formação, vale a pena lembrar do trabalho de Calligaris (2004) Cartas a um jovem terapeuta – reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos. Psicoterapeuta-psicanalista... Há algum tempo atrás, a aproximação destes dois termos nos levaria a divergências e a críticas ferrenhas, no campo teórico e prático (o que não significa que não mereçam atenção). O texto de Calligaris (re)atualizou uma série de questões acerca da formação do psicanalista, abordadas de maneira aparentemente singela, porém profunda, sobre os impasses colocados na singularidade desta escolha e naquilo que representam as responsabilidades assumidas pelo “autorizar-se” a escutar pessoas reconhecendo-se pessoa (efeito da experiência de castração), seja qual for o nome dado a isso – psicanálise, psicoterapia... Inevitavelmente, esta leitura tende a nos conduzir ao túnel do tempo e a (re)lembrar um pouco os (des)caminhos escolhidos, embora nem sempre conscientes, de nossa trajetória de formação. Vêm à mente as rupturas com as certezas adquiridas na formação acadêmica, as inseguranças, a dúvida quanto ao momento em que seria possível reconhecer na escuta dos sujeitos que atendemos uma qualidade analítica... Ou a pergunta compartilhada junto aos pares “o que eu sou?” se já não me reconheço nos pressupostos básicos da profissão originalmente escolhida. Lembro-me da entrevista realizada com a psicanalista Ana Irma Callegari em que esta dizia que não existe “o psicanalista”, mas se está psicanalista – ou não; tratar-se-ia de um lugar ocupado numa escuta, uma ética, e deste é possível escorregar; não se estaria psicanalista em todos os momentos – e que foi muito difícil, na época, entender o significado de suas palavras. Talvez por esta razão nos vemos repetindo, com freqüência, que a formação do psi- canalista não acaba nunca, pois é preciso reafirmar esta escolha e revisar os fundamentos deste lugar, a fim de sustentar uma escuta. Tal questionamento nos permite observar o quanto a psicanálise vem se inscrevendo na cultura e na prática interdisciplinar, cuja transmissão passa pela transferência com as instituições e com todos aqueles que buscam pro- duzir questões que problematizem a prática com uma referência ética. Gostei da expressão utilizada por um dos colegas do cartel “efeitos de formação”. Pode-se pensar na fundamentação teórica que embasa nossa for- mação mas, principalmente, nos efeitos que a experiência de análise propicia a nossa prática. E penso que, após um “mergulho” na psicanálise, o que impõe riscos e descobertas, podem-se produzir muitas coisas interessantes com isso. 86 REFLEXÕES SOBRE A...

Gostaria de retomar, novamente, alguns elementos mais específicos de minha experiência institucional, a qual se produziu a partir da necessidade de fazer a transposição de uma formação mais clássica do trabalho psicanalítico para iniciar, com alguns pacientes, uma aventura a cada sessão – no espaço da clínica, da escola (há um espaço contínuo entre os dois ambientes, que permite a circulação), nos fundos, junto às taquareiras, na pracinha, no shopping da cidade, no cinema, nas ruas... e inventar um jeito de fazer clínica – havia sessões que mais pareciam uma expedição, com o paciente ou juntamente com outros pacientes e outros terapeutas. De imediato, percebi- me jogada – ou num jogo – de perseguição ao significante (numa tarefa de resgate ou mesmo de construção). Algo que pudesse dar sentido a essas vidas que se apresentavam sem rumo, sem direção... Nestas “aventuras”, muitas coisas foram se construindo... Resolvi buscar no dicionário uma definição para os termos aventura e inventar devido à sua relevância: aventura – “sucesso imprevisto; perigo; risco; acaso; sorte; proeza de cavalaria, acometimento romanesco”; inventar – “fabricar, criar, imaginar, urdir, tramar, descobrir, achar”. No campo psicanalítico, muitas vezes nos perguntamos sobre as possibilidades e os limites de nossas intervenções, lembrando sempre que o efeito do ato do psicanalista só é possível ser reconhecido a posteriori (um preceito lacaniano fundamental). Acredito que, num trabalho institucional, reatualizamos estas questões, sendo necessário acrescentar outros ingredientes: como pensar a questão da demanda e da transferência, já que, na maioria dos casos, o endereçamento inicial dirige-se à instituição e não ao nome do psicanalista. E a questão do ato, como sustentá-lo, principalmente em situações nas quais os atravessamentos institucionais se impõem. É possível praticar a psicanálise num contexto onde se trabalha como empregado, já que esta condição tende a cercear, muitas vezes, a liberdade de expressão e a questão do ato me parece ocorrer mais dentro de uma condição de subversão ao instituído? Como sustentar um lugar de alteridade junto ao paciente e suas famílias, quando estes identificam as dificuldades da instituição para cumprir seus compromissos junto aos seus funcionários-terapeutas, por vezes aliando-se a estes “para ajudar” (quem ajuda quem?) e passa-se a observar, em seu discurso, gratidão, sentimento de desvalor, necessidade de pagar com presentes? Quando a instituição se fragiliza, isso é transferido ao analista, o qual precisa estar atento ao que se produz. As perguntas e as providências para a busca de respostas se atualizam continuamente... E, certamente, muitas são as questões que se abrem na prática em instituições. 87 TEXTOS

Mas, nos intervalos, trabalha-se, buscando brechas possíveis para a intervenção, podendo-se reconhecer no espaço institucional um lugar fecundo para o desenvolvimento do trabalho. Creio que vale lembrar que as instituições também “adoecem” e que seus sintomas produzem impactos mais amplos, que também precisam ser escutados. Nos momentos em que os problemas institucionais se tornam mais graves, a continuidade do trabalho corre riscos, podendo comprometer a sustentação de um ato clínico – de novo a palavra risco... Para o psicanalista, não se trata de ceder à impotência, mas de trabalhar com a noção de risco aberto para a descoberta de novas (im)possibilidades. Todavia, tal empreendimento precisa ser sustentado por seu desejo.

REFERÊNCIAS: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas; volume I. São Paulo: Brasiliense, 1994. CALLIGARIS, Contardo. Cartas a um jovem terapeuta – reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos. Rio de Janeiro: Elsevier Ed., 2004. COSTA, Ana Maria Medeiros da. Construção e saber. Correio da APPOA, Porto Alegre, maio, 2005. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

88 TEXTOS DISCURSO PSICANALÍTICO E FORMAÇÃO

Mauro Rabacov e Paulo Becker1

RESUMO O trabalho tenta ir além do ponto deixado por Freud. É questionada a ênfase absoluta que colocou sobre a transferência e a análise didática na formação. Procuramos estabelecer outro lugar para a transmissão do saber psicanalítico em relação ao ensino, pontuando o que ele representa de necessário para a mesma formação, diferenciando-o de outras posições do saber. PALAVRAS-CHAVE: transferência, saber, ensino, transmissão, formação.

PSYCHOANALYTICAL DISCOURSE AND FORMATION ABSTRACT The article tries to go beyond the point where Freud left it. The absolute emphasis he put upon transference and didactic analysis in formation is questioned. We intend to establish another place for the psychoanalytical knowledge transmission in relation to teaching, pointing to what it represents of the necessary for that formation, differentiating it from other knowledge positions. KEYWORDS: transference, knowledge, teaching, transmission, formation.

1 Psicanalistas; Membros da Escola Letra Freudiana, Rio de Janeiro. 89 TEXTOS

acan afirmou em mais de uma ocasião o que era necessário à formação: Lque ela fizesse vigorar o discurso do analista. Ele foi buscar na antiga escola grega a noção de uma base, no sentido militar do termo, onde não apenas se forjam as armas que vão instrumentalizar esse discurso, mas também um lugar que funcione segundo a sua lógica. Para realizar essa tarefa, produz-se um corte em relação à instituição freudiana que nos foi legada. Podemos dizer que Freud, para garantir a transmissão da psicanálise, apostou todas as suas fichas na transferência. O dispositivo da análise didá- tica é a prova cabal disto. De fato, há uma espécie de condensação do ensi- no, da práxis clínica e da direção da cura em torno deste ponto. Há uma chancela do analista-didata sobre uma formação que se desenvolveria por etapas. E por isso mesmo restou um lugar indeterminado para a transmissão da teoria e do saber psicanalíticos. Freud privilegiou o saber obtido na trans- ferência em detrimento do douto saber; sabiamente respeitou a oposição que existe entre um e outro, o que é diferente de fazer a defesa da ignorância. Legou-nos a necessidade de precisar as coordenadas deste lugar. O pará- grafo sobre a análise leiga, que citamos, o ilustra suficientemente:

Aquele que seguiu o ensino, e submeteu-se por sua vez a uma análise, assimilou tudo o que hoje se pode saber da psicologia do inconsciente, estudou a ciência da vida sexual, e aprendeu a espinhosa técnica da psicanálise, a interpretação, a maneira de lutar contra a resistência e o manejo da transferência, este já não é nenhum leigo nessa matéria (Freud, 1926, p. 213).²

Sofremos, portanto, os efeitos de pelo menos dois dos paradoxos que herdamos de Freud. Evidentemente, se seguimos textos seus, como, por exem- plo, Sobre a dinâmica da transferência (1912), verificamos que a direção da cura caminha obrigatoriamente para a extinção da própria transferência. A sua resolução é a sua extinção: quebrar justamente as identificações imagi- nárias que entram no processo analítico sob a forma da repetição, destituindo o analista de seu lugar ideal, e finalmente livrando-se dele. Sob esse ponto de vista, o analista é sempre, didata ou não, aquele que está na pior posição para assegurar, ou garantir, que já morreu. A função estruturante do pai morto está bem expressa no relato de Freud na Interpretação dos sonhos (1900): “Pai, não vês que estou queimando?”. A frase que desperta o sujeito com relação à natureza significante do nome do pai; a frase do filho morto aponta para o real irrepresentável e para a impossibilidade de saber o que é da mor- te. Esta é a posição essencial do sujeito, a ignorância sobre aquilo que carre- 90 DISCURSO PSICANALÍTICO...

ga de morto. Como poderia o próprio morto passar este atestado? Faz-se mister uma estrutura que possa afetar tanto o analisante quanto o analista. Uma indução lógica que leva à proposição do passe em Lacan: há uma disjunção entre o final da análise e a dita resolução da transferência, bem como do ensino. Quanto ao saber que se ensina, não é fácil superar o paradoxo e a indeterminação. O caminho mais adequado parece ser fazê-lo trabalhar per- manentemente, explorá-lo na sua intensão e extensão, afastando qualquer idéia de suficiência. Assumimos como coordenadas os Grundbegriffen, os conceitos fundamentais da psicanálise, todos eles portando em si mesmos o aludido paradoxo com relação ao saber, ou seja, uma disjunção do saber do sujeito com relação a cada um deles: a pulsão, a repetição, a transferência e o inconsciente. De imediato, o saber pode se apresentar consistente na forma da frase “sabemos que não sabemos”. Esta pequena abertura ao inconsciente, que se fecha em seguida, demasiadamente rápida, se tomada simplesmente como enunciado, inaugura uma grande confusão. Pois, a partir dela, alguma filoso- fia que tem como base a de Sócrates e os sofistas, por exemplo, pode anco- rar uma satisfação hipomaníaca que não deixa de conjugar $ e saber, com o conforto aparente de uma falta que, aí, aparece inteiramente no registro do imaginário. É preciso relembrar que Freud é taxativo: ao psicanalista não inte- ressa nenhuma visão de mundo, nenhuma Weltanschaung, filosófica, espiri- tual ou qualquer que seja. Ao se interessar pelo significante, Freud provavel- mente marcou para sempre a impossibilidade de qualquer sistema completo de pensamento e ou do espírito. Isto também serve para o discurso religioso: o sujeito sabe que não sabe, mas Deus, ou qualquer apresentação do Outro absoluto, sabe, inclusive que o sujeito não sabe. Enfim, uma falta localizada na dimensão imaginária do saber, mas que não confronta o sujeito com a sua divisão, com a questão do saber inconsciente. Neste ponto do nosso questionamento, é necessário recorrer a Des- cartes. Ao descentrar o pensamento da existência, há uma separação entre o sujeito da dúvida, que oscila entre pensar e existir, e o sujeito da enunciação, certeza advinda do campo do Outro, que se apresenta inicialmente como um pensa-coisas, o Isso freudiano; Isso pensa, afirmação portadora de uma ver- dade extraída de uma falta inerente à própria dúvida. Qualquer saber, en- quanto puro enunciado, não poderia se desprender da dúvida: poderia no máximo negá-la. O primado da enunciação, o “penso”, constitui a certeza como advinda do Isso. 91 TEXTOS

Quando se tenta estabelecer um enquadre universitário para o saber psicanalítico – coisa contra a qual Freud se colocou explícita e frontalmente – aí advém uma verdadeira torre de babel. Ele escapa sempre deste enquadre, o que se verifica no fato de que todo curriculum pode ser universalizado, todo saber enunciado pode ser apropriado, todo ensino é passível de se repetir a si mesmo. Pode-se até palpar o caráter oportunista dos curiosos que querem utilizar os currículos universitários para legitimar práticas que se confundem com as de natureza religiosa. Pode-se encontrar também o discurso sofistica- do e vazio, em farta produção de artigos sobre pontos diversos do tratamento psicanalítico, tratados superficialmente. Apropriação ligeira de alguma coisa ouvida não se sabe bem aonde. Mas é na apropriação da psicanálise pelo discurso científico que as aberrações podem se tornar mais terríveis, porque convincentes, dada a pregnância deste discurso em nossa época. O horror ao ato analítico e à responsabilidade nele implicada pode levar a uma quimera, que afinal se re- vela pseudocientífica, de substancializar esta intervenção, promovendo uma fusão entre a representação do S e a coisa. Quer dizer, não só reduzindo o discurso ao enunciado, deixando o sujeito da enunciação de lado, mas efeti- vamente suprimindo qualquer possibilidade de subjetivação. Nesta base, as intervenções podem ser padronizadas, clonadas, e até virtualizadas. Sim, se o desprezo pelo ato da enunciação sob transferência atinge sua dimensão máxima, chegamos ao setting virtual. Nem mesmo se considera o que pode representar, em termos da transferência analítica, a omissão do nome pró- prio, e a impossibilidade total de ela se dar in absentia, como pontuou Freud em seu texto antes mencionado, Sobre a dinâmica da transferência (1912). Construir uma escola sob a égide do discurso analítico comporta o seu impossível. Em primeiro lugar, é necessário forjar dispositivos que façam obs- táculo aos efeitos imaginários de grupo, tão bem descritos por Freud em sua Psicologia das massas (1921). O laço do sujeito no grupo e também os dos grupos entre si – seguindo a lógica freudiana, dois já podem constituir um grupo – é essencialmente libidinal. O analista que tem como suporte a identi- ficação ao Outro goza da sensação de uma garantia da formação. De forma análoga ao que ocorre no processo analítico, esta identificação imaginária é uma das vicissitudes da resistência do analista. O desejo do analista como operador da clínica e a responsabilidade pelo seu ato se inauguram justa- mente onde falta qualquer Outro que possa fazê-lo em seu lugar. As instâncias institucionais têm, portanto, que manter a lógica do um a um, do cada um. Surge então a necessidade de uma política própria da psica- 92 DISCURSO PSICANALÍTICO...

nálise, que dê conta das singularidades do nosso campo. Ao pensar segundo esta mesma lógica a questão da passagem de analisando a analista, com o dispositivo do passe, Lacan apresenta uma estrutura homóloga às formações do inconsciente. Não há um sujeito em posição de chancelar esta passagem, pois isto cria um inevitável empuxo à identificação imaginária com ele. O passante, o passador e a comissão do passe constituem lugares de testemu- nho, respectivamente, da sua própria análise, daquele que escuta e transmi- te, e dos efeitos mesmos desta passagem. Como o efeito de riso que sobre- vém ao escutar um chiste: quem fala e quem escuta gozam do testemunho do Outro inconsciente, para que a mensagem passe numa estrutura ternária. Por outro lado, a apresentação de uma sessão clínica também pode ser questionada pela mesma via; pode-se fazê-la transmitida por terceiros, que auscultaram aquele caso em termos do puro discurso e sua intervenção, ou através de oficinas em que o caso é trabalhado à parte, com ou sem a participação do analista. Assim, minoram-se os efeitos imaginários de uma exposição que deva agradar a uma platéia, que, por sua vez, retribuiria o expositor com a confirmação do já sabido, em posição de emitir um juízo de natureza estética. Pois se trata, antes de tudo, de recolher os efeitos, não importando a performance e o desempenho. De novo, o que se tem que fazer valer é a transmissão de algo que se escuta dos significantes que marcam aquele caso singular, entrando em jogo inevitável e desejavelmente a posi- ção do analista. Nada aí pode ser valorizado a partir de um registro meramen- te factual; a dimensão histórico-factual vai interessar só na medida em que transmite as coordenadas essenciais nas quais o analisante e o analista se situam. Da mesma forma, a supervisão clínica há de questionar a posição do analista, apresentando uma intersecção inevitável quanto à sua própria aná- lise. De fato, no limite, a supervisão é a própria análise, prática mais freqüente no campo lacaniano. Pois o analista está sempre implicado nos casos que relata. O que pode ser postulado como necessário quando se trata de ensinar a teoria psicanalítica? Não podendo ser da ordem do pré-requisito curricular, de que ordem seria? A teoria psicanalítica é o tesouro significante do Outro, é o lugar onde o grande Outro simbólico se presentifica como necessário. Pois somos avisados desta dimensão original do grande Outro, nos afastamos da pretensão pós-moderna de um sujeito que nada deve à sua origem. Um seminário, por exemplo, tem que se oferecer como uma experiên- cia de transferência de trabalho, evitando a transmissão de um saber que se 93 TEXTOS

coloca a priori, o modo acadêmico de transmitir. Para que a teoria não cesse de se escrever, os analistas têm que refazer o seu percurso. Isso significa reinventá-la, pois a nova volta se conta como mais uma, diferente da anterior. É fundamental, portanto, que o analista escreva também essa sua experiên- cia. “Seguiu o ensino”, disse Freud. Com tal postulação, acreditamos avançar um pouco sobre esse “seguir” ou “percorrer”. A linha de fuga aqui poderia resultar na defesa da ignorância auto-suficiente. O discurso analítico obriga a uma política que dê conta deste coletivo, que, por sua estrutura mesma, é sempre suscetível de cair na paixão das massas, de um lado, e na acomodação ou mesmo indiferença, de outro. Na raiz desta paixão, está o imperativo categórico do discurso do mestre, como uma resposta para esta incidência avassaladora do real. Os mecanismos institucionais têm que construir a rede simbólica suficientemente permeável à surpresa e ao incômodo, ao mesmo tempo suficientemente impermeável para que sirva como proteção. As palavras aqui utilizadas vêm no sentido em que Freud as empregou no seu projeto. Uma escola tem que oferecer uma garantia suficiente, necessariamen- te não-toda.

REFERÊNCIAS: FREUD, S. La interpretación de los sonhos (1900). In: ___. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. v. 4. ___ . Sobre la dinámica de la transferencia (1912). In: ___. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. v. 12. ___ . Psicologia de las massa y análisis del yo (1921). In: ___. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. v. 18. ___ . Pueden los legos ejercer el análisis? (1926). In: ___. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. v. 20.

94 RECORDAR, A ESTRUTURAÇÃO DO ENSINO REPETIR, NO INSTITUTO PSICANALÍTICO ELABORAR DE BERLIM

O Instituto Psicanalítico de Berlim foi criado por Max Eitingon, e Ernst Simmel no âmbito da policlínica de mesmo nome e teve sua inauguração em 14 de fevereiro de 1920, em instalações arranjadas por Ernst Freud na Potsdamer Strasse. A experiência da instituição psicanalítica foi contada por seus protagonistas e reunida numa monografia sob o título Zehn Jahre Berliner Psychoanalytisches Institut (Viena, 1930). Esse trabalho, publicado pela Verlag por ocasião das comemorações do décimo aniversário da fundação da Policlínica de Berlim, teve o prefácio de Freud, que desejava dar ao aniversário uma solenidade particular, reconhecendo e apoiando publicamente a importância da experiência de formação e transmissão da psicanálise, embora ele tivesse conhecido uma realidade diferente no instituto de Viena. Em 1922, por ocasião do VII Congresso Psicanalítico Internacional de Berlim, o relatório, que continha textos de Karen Horney, Sándor Radó, Franz Alexander e , entre outros, foi lido por Max Eitingon com o objetivo de difundir a experiência que naquele instituto se desenvolvia e, ao mesmo tempo, afirmar politicamente algumas posições do grupo sobre a formação de analistas. , que fez o prefácio da reedição do relatório por ocasião do 50º aniversário da fundação da Policlínica, afirma: “O mundo analítico não deve esquecer que o laço estreito entre tratamento, ensino e pesquisa que caracteriza hoje a aspiração de cada instituto analítico, encontrou sua primeira realização, há cinqüenta anos, em Berlim”. Importante ressaltar que os anos 20 foram decisivos para as sociedades psicanalíticas filiadas à IPA, relativamente à formação e à transmissão, pois, a partir de 1925, foram votadas as normas que seriam adotadas pelos institutos. No presente relatório, Eitingon, ao apresentar as atividades da policlínica e as de ensino do instituto, antecipa aquilo que, logo adiante, serão as regras de formação para todos os demais, assim como acende as primeiras centelhas dos debates mais acirrados deste período da história da psicanálise: a formação psicanalítica para não-médicos e a psicanálise com crianças. 95 RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

Neste período, Freud se lança na defesa dos praticantes da psicanálise sem formação médica, buscando com isso dar a sua teoria uma autonomia em que os ideais de felicidade, de cura e da pulsão de conservação não seriam excluídos, mas reinterpretados no quadro de uma prática especificamente analítica e submetida à teoria do inconsciente. É neste período que ele afirma o primado do inconsciente sobre a consciência, do isso sobre o eu, da pulsão de morte sobre o ego, do desejo sobre a adaptação, da psicanálise sobre a psicologia. Freud estava na contramão da burocratização da psicanálise fundada no modelo de Berlim, e, na política interna do movimento, era voto vencido. Na polêmica da análise de crianças, Freud talvez tenha sido menos incisivo publicamente, ao defender as concepções de sua filha, pela posição incômoda em que esse debate o colocava, mas via na ofensiva kleiniana uma aproximação do modelo médico. Apresentamos aqui parte do relatório, através dos artigos de Karen Horney, Hanns Sachs, F. Alexander, Sándor Radó, Siegfried Bernfeld, Felix Boehm e Jenö Hárnik. Entretanto, dentre estes, somente os quatro primeiros encontram-se reproduzidos a seguir. Karen Horney inicia seu texto chamando a atenção para o elevado número de pessoas que buscavam formação no instituto, já nos seus três primeiros anos de existência. O curso oferecido era dividido em: análise didática, formação teórica e formação de prática policlínica. Menciona a inexistência de critérios claros para a admissão dos candidatos e afirma sua convicção de que uma boa formação médica é a melhor preparação para a profissão¹ psicanalítica, no entanto, considera que não deveriam ser excluídos aqueles cuja bagagem cultural e profissional em outros campos são qualificadas. Mesmo assim, o instituto organiza formas de admissão, de formação e normas gerais diferenciadas para os médicos e não-médicos. Hanns Sachs, primeiro de todos os didatas, enviado de Viena a Berlim, em seu texto sobre Análise didática, afirma que a “análise precisa de qualquer coisa correspondente ao noviciado da Igreja” pois ela permite ao candidato concentrar sua atenção sobre o que está escondido aos “olhos dos leigos”, isto é, o inconsciente. É recorrente nos artigos de Sachs esta referência à psicanálise, seja como vocação, paixão e não como uma especialização. Tal idéia era compartilhada pelos analistas dessa época heróica, para quem tal prática representava uma escolha de marginalidade que não os conduzia nem às láureas universitárias, nem mesmo à respeitabilidade dada pelo exercício de uma profissão liberal. A paixão e a vocação do início deram lugar a uma formação médica submetida a uma regulamentação, depois de Berlim. ¹ Grifo meu. 96 A ESTRUTURAÇÃO DO ENSINO...

O artigo sobre O curso teórico, escrito por F. Alexander, lança de maneira interessante e pertinente o debate entre a necessidade de subtrair a psicanálise de um dogmatismo escolástico, que enfraquece o fio cortante de sua verdade, e a necessidade de transmitir os conceitos psicanalíticos sobre os quais o ensino de base pode se apoiar. Essas questões de Alexander permanecem na atualidade da psicanálise e de sua transmissão. É interessante notar que Radó, no artigo sobre O curso prático, não faz referência à noção de transferência em sua descrição das curas controladas e do trabalho da análise de controle. Essa visão da questão situa a escola de Berlim no extremo oposto à de Budapeste, onde o controle, longe de ser considerado como forma de supervisão técnica, era chamado de análise de controle, o que lhe restitui sua verdadeira essência de experiência a dois, que coloca em causa não somente o funcionamento do paciente, mas também a escuta e seus obstáculos. Bernfeld elabora um pequeno artigo em que explica o funcionamento de um curso de psicanálise específico para pedagogos, dado o interesse daqueles que se ocupavam de crianças nas escolas. Era um grupo composto por educadores de jardim de infância e de escolas primárias, assistentes sociais e educadores de escolas especiais. Ele chama a atenção para o alto grau de desistências das pessoas que ingressavam neste curso, na medida em que as dificuldades impostas pela psicanálise aumentavam. O curso era organizado na forma de seminários, com duração de vários semestres, denominado Discussão de questões práticas da pedagogia psicanalítica. O gerenciamento financeiro da policlínica é explicado no artigo de Felix Boehm. Esta funcionava através de fundos oriundos de doações dos membros do instituto e da ajuda de amigos. Inicialmente, o dinheiro foi aplicado em equipamentos e no crescimento da policlínica, mas, a partir de 1924, os fundos para equipamento foram transformados em fundos para bolsas de estudo. Quando se tornou impossível manter a policlínica e as bolsas de estudo exclusivamente através dessas doações, foi estabelecida uma mensalidade para os membros do instituto (1927). E, finalmente, o último artigo trata das formas de divulgação do instituto junto ao grande público. Jenö Harnik menciona o interesse das universidades livres de Berlim em convidar os melhores instrutores para palestras e cursos por elas organizados. Ainda assim, frisa a importância de abrir o instituto para outros interessados em conhecer a psicanálise, ressaltando a abertura que já acontecera para os pedagogos. Considera que a melhor forma de divulgação é através da biblioteca do instituto, que passou a atrair um grande público pela qualidade de seu acervo de livros e de revistas especializadas em 97 RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

psicanálise. Essa biblioteca teve, em pouco tempo, um crescimento importante graças às doações feitas pela Sociedade Psicanalítica Alemã. A experiência de Berlim, como disse Anna Freud, marca definitivamen- te o movimento psicanalítico como modelo de formação. É um modelo que suscitou permanentes discussões, por sua afirmação, talvez excessiva, de um “ideal de analista” e de um “ideal institucional”. Esses conflitos e contro- vérsias no movimento psicanalítico, após a Segunda Guerra mundial, foram determinantes para os rumos que a psicanálise teve. Na Sociedade Psicana- lítica de Paris, o primeiro conflito mais forte deu-se em torno da análise leiga, que dividiu o grupo entre aqueles que apoiavam a ordem médica, liderados por Sacha Nacht, e os que se opunham a estes, os universitários que tinham Daniel Lagache como figura principal. Lacan se aproxima deste grupo e pas- sa a formular uma série de críticas ao modo burocrático que a SPP vinha imprimindo na formação de analistas. Crítico da análise didática e da estrutu- ra burocrática do Instituto pertencente a esta Sociedade, Lacan insistia no retorno a Freud, apontando os desvios teóricos feitos para que a teoria do inconsciente do mestre vienense se moldasse aos ideais institucionais herda- dos da experiência de Berlim. Ao fundar, com Lagache, a Sociedade France- sa de Psicanálise (SFP, 1953-1963) – tendo como colegas de fundação Françoise Dolto, Jean-Laplanche, Didier Anzieu, Jean-Bertrand Pontalis, Serge Leclaire, Octave Mannoni, Maud Mannoni e Mustapha Safouan entre outros tantos – Lacan intensificou o seu sentido de retorno a Freud e também lançou ao movimento psicanalítico novas possibilidades institucionais. Com a disso- lução da SFP, Lacan funda a Escola Freudiana de Paris e é nesta escola que será experimentada a radicalidade da teoria freudiana, no interior mesmo da própria escola. Poderíamos afirmar que, como herança, temos a força inau- gural de Berlim e a experiência de fazer da vida institucional a própria psica- nálise em extensão, através de Lacan.

Ana Maria Gageiro

98 A ESTRUTURAÇÃO DO ENSINO...

A ESTRUTURAÇÃO DO ENSINO²

A) DA ORGANIZAÇÃO Karen Horney

á nos três anos iniciais, o número dos que queriam fazer uma formação de Jterapeuta psicanalítico no Instituto aumentou a tal ponto que se julgou inoportuno apelar à iniciativa de alguns para a admissão dos candidatos e para a escolha do conteúdo do ensino. Como o campo das atividades se ampliava constantemente, desenvolveu-se de modo totalmente orgânico, ao contrário, a necessidade de dividir as diferentes tarefas de maneira ordenada e fazer uma estruturação sistemática da formação. Foi por isso que, em 1923, constituiu-se, sob a direção de Eitingon, uma comissão que, na qualidade de instância central, devia dedicar-se a essas tarefas. Certos regulamentos urgentes em prática foram facilmente decididos, tais como o estabelecimento de um programa dos cursos ou a decisão de que, no futuro, apenas a comissão, e não uma única pessoa, seria responsá- vel pela admissão de um candidato. Mas não havia concordância nem sobre os critérios de admissão nem sobre os detalhes referentes à formação. Essa situação originou uma deliberação aprofundada, que deu lugar, então, às nos- sas primeiras “Diretrizes para a formação de terapeuta analista”. Alguns de seus princípios fundamentais, confirmados pela experiência, são mantidos até hoje; outros nos parecem agora insuficientes e pobres. Manteve-se a tripartição fundamental da formação: análise didática, formação teórica e for- mação de prática policlínica. Porém certos detalhes das três partes tiveram de ser modificados, ou seja, aperfeiçoados. De acordo com as experiências, formularam-se, em 1929, após discussões detalhadas, repetidas e aprofundadas, novas “Diretrizes”, detalhadas a seguir. Diferentes artigos exporão como evoluiu nossa concepção da análise didática, da gestão dos cursos e, sobretudo, da formação prática. A autora se limitará aqui a relatar a maneira como evoluiu nossa posição em relação às condições de admissão. Para começar, primeiramente um ponto que deveria, em geral, ser con- siderado como um ganho: a noção de “aptidão pessoal”, que não aparece nas

²Texto extraído da publicação On forme des psychanalystes – Relato original sobre os dez anos do Instituto Psychanalytique de Berlin 1920-1930 (Paris: L’Espace Analytique e Denöel, 1985). Tradução de Patrícia Chittoni Ramos Reuillard (Ufrgs). 99 RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

primeiras “Diretrizes”. Diferentes fatores levaram-nos a atribuir-lhe justamen- te uma importância particular. Por um lado, a experiência confirmava, como esperávamos, que nem todos os candidatos com uma formação anterior e de mesma qualidade esta- vam qualificados para a prática. As decepções sofridas eram as mesmas, no fundo, que aquelas sobre as quais Freud nos havia sempre alertado, quando aconselhava a não superestimar a eficácia da análise. A análise não pode fazer de qualquer ser humano um analista ideal ou mesmo, simplesmente, medianamente eficaz. Víamos que uma característica decididamente ausente ou a falta de um dom psicológico não podiam ser compensados nem mesmo por uma boa análise didática. Tínhamos até mesmo de confessar – embora a con- tragosto – que pessoas com neuroses muito graves podiam ser efetivamente curadas pela análise didática, mas que ainda assim não atingiam o grau de equilíbrio psíquico requerido para o exercício da profissão psicanalítica. Era pre- ciso ter muita coragem para extrair as conseqüências da conscientização de nossos limites e formular, como condições a priori da formação, nas novas “Dire- trizes”, a presença de certas qualidades. Isso suscitava imediatamente, porém, um novo problema: como reconhecê-las? Como o dom do conhecimento intuiti- vo dos homens não parece existir com mais freqüência nos analistas do que nos outros seres humanos, restava – nos casos em que o julgamento, afinal relativo, de alguns não parecia bastar – recorrer ao procedimento habitual para os analis- tas terapêuticos cuja indicação é incerta: a análise de experiência. Um segundo fator obrigou-nos a atribuir um peso particular a esse exame de aptidão pessoal. Diversos elementos, certamente indesejáveis, apresenta- ram-se, às vezes, durante a formação: mulheres de meia-idade que não se sen- tiam mais suficientemente realizadas no âmbito familiar; pessoas que haviam fracassado nos estudos ou na profissão e que achavam que ali podiam encon- trar uma que, diferentemente de todas as demais profissões intelectuais de res- ponsabilidade, parecia acessível sem formação preparatória específica. Por outro lado, porém, não se podia ser exclusivo demais quanto às ques- tões de formação preparatória. É verdade que alguns de nós pensávamos que uma boa formação médica, com seu aprendizado da relação com as pessoas doentes e com seu conhecimento das possibilidades e da natureza dos distúrbi- os somáticos, era, apesar de todos seus defeitos, a melhor preparação para a profissão psicanalítica; mas não se podia tampouco desconhecer a existência de certas personalidades cujo grau de cultura ou trabalhos profissionais em ou- tros campos de atividade eram tão promissores que não parecia útil excluí-las da formação psicanalítica só porque não tinham uma formação médica. 100 A ESTRUTURAÇÃO DO ENSINO...

As diretrizes reproduzidas aqui mostrarão que as condições de admis- são assim modificadas podiam ser caracterizadas apenas em grandes tra- ços. Resta esperar que um exame escrupuloso e crítico das futuras experiên- cias nos indicará não somente o caminho para solucionar essas dificuldades, mas também qual a preparação que melhor satisfaz às exigências da profis- são.

Apêndice Diretrizes para a atividade de ensino do Instituto

A) Generalidades Os objetivos das atividades didáticas e de ensino são os seguintes: a) formação teórica e prática em psicanálise; b) estímulo à pesquisa psicanalítica; c) difusão dos conhecimentos psicanalíticos.

B) Organização O direcionamento dado à formação, assim como a regulamentação das questões atinentes, são confiados a uma comissão de ensino que compreen- de sete membros, designada pela Sociedade Psicanalítica Alemã. A organização e o controle dos outros ensinos psicanalíticos (ver D) cabem igualmente à comissão de ensino.

C) Admissão e formação dos candidatos I. CONDIÇÕES DE ADMISSÃO PARA OS MÉDICOS A admissão dos candidatos médicos apresenta as seguintes condições: 1o Aptidão pessoal A constatação da aptidão pessoal cabe à comissão de ensino e leva em consideração: a maturidade da personalidade, a credibilidade do caráter e o dom psicológico. As pessoas com distúrbios neuróticos muito graves são excluídas. 2o Formação científica preparatória Os estudos de medicina sancionados por um diploma são considera- dos como formação científica preparatória. (Para a continuação necessária da formação médica em andamento e sua associação útil com a formação psicanalítica, ver C, III). A comissão decide sobre a admissão dos candidatos em formação depois de terem se apresentado pessoalmente a três de seus membros. 101 RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

Antes de o candidato começar sua formação, ele se compromete e não praticar por sua própria conta e a não se declarar psicanalista profissional antes do final da formação completa e sem autorização da comissão de ensino. II. CONDIÇÔES DE ADMISSÃO PARA OS NÃO-MÉDICOS Respeitadas as condições particulares abaixo enumeradas, candi- datos não-médicos são também admitidos na formação, pois a colabora- ção de cientistas com uma outra formação é indispensável para o desen- volvimento da psicanálise. Como toda pesquisa científica se elabora ine- vitavelmente a partir da base empírica da terapia psicanalítica, a forma- ção desses candidatos não-médicos deve igualmente ser uma formação completa, comportando a prática terapêutica, que os prepara para o exer- cício da terapia psicanalítica. Conforme esse princípio, a admissão dos candidatos não-médicos apre- senta as seguintes condições: 1o Aptidão pessoal A constatação da aptidão pessoal cabe à comissão de ensino e é feita de acordo com os mesmos critérios que para os médicos. 2o Formação científica preparatória Os estudos universitários sancionados por um diploma em uma área que – por seu método ou por seu objeto – apresente pontos em comum com a psicanálise são considerados como formação científica apropriada. A título excepcional, pode-se admitir um candidato com uma formação preparatória adquirida em outra circunstância, se puder atestar trabalhos ci- entíficos ou uma prática profissional de valor3. 3o Capacidade científica A constatação da capacidade científica cabe à comissão de ensino e é feita a partir de trabalhos, científicos ou práticos, promissores no campo da ciência psicanalítica e de suas aplicações. Antes de começar sua formação, o candidato não-médico deve, além do comprometimento válido para o candidato médico (ver C. 1, 2, última fra-

3 Para os candidatos que atestam a formação científica requerida ou sua capacidade por meio de trabalhos de prática profissional, pensa-se, primeiramente, em pessoas que se distinguiram por seus trabalhos nas áreas pedagógicas ou sociais. 4 Eis as restrições estabelecidas pela Sociedade Psicanalítica Alemã para a atividade terapêutica dos analistas não-médicos: a) O diagnóstico e a indicação devem ser estabelecidos, em todos os casos, em concordância com um médico psicanalista ou um especialista. b) As psicoses e os casos limites psiquiátricos devem ser tratados somente por analistas médi- cos. c) As neuroses com complicações orgânicas e os casos limites orgânicos também devem, em princípio, ser reservados ao analista médico. 102 A ESTRUTURAÇÃO DO ENSINO...

se), assumir o compromisso suplementar de observar, no exercício de sua futura prática psicanalítica, as restrições estabelecidas pela Sociedade Psi- canalítica Alemã4. III. FORMAÇÃO DOS MÉDICOS A formação psicanalítica dos candidatos médicos compreende: 1. aná- lise didática; 2. formação teórica; 3. formação prática. 1. A análise didática vem em primeiro lugar na formação psicanalítica e é também a parte mais indispensável. A duração da análise didática depende da personalidade do candidato; pode ser avaliada, segundo as experiências do Instituto, em um ano no mínimo, contando uma hora de trabalho de análise por dia. É a comissão de ensino que decide se o resultado da análise didática é suficiente ou não, podendo exigir, se julgar necessário, uma prorrogação da análise didática durante a formação posterior, ou a interrupção desta forma- ção até a conclusão da análise didática. A análise didática deve, na medida do possível, já estar completamente terminada – em todo caso, em suas par- tes essenciais – antes do início da parte terapêutica da formação. O emprego mais vantajoso do tempo seria começar imediatamente a análise didática após a obtenção do diploma universitário e prossegui-la durante a residência em medicina. O analista didático só pode ser escolhido entre aqueles autorizados pela comissão de ensino. Um analista não tem o direito de tomar candidatos sob sua responsabilidade para uma formação, ou seja, sem que haja autori- zação, a cada vez, da comissão de ensino. 2. A formação teórica transmite aos candidatos, em cursos ou se- minários obrigatórios, a matéria do saber psicanalítico (ver E. Programa de estudos). Simultaneamente às aulas obrigatórias, cursos e seminários alternativos sobre diferentes temas específicos ocorrem a cada semestre à escolha dos candidatos. Todas as formações acontecem à noite (das 20 às 23 horas). Essa disposição poderá permitir aos candidatos que se aperfeiçoem ao mesmo tempo em outra formação clínica indispensável (medicina interna, orgânico-neurológica e, especialmente, psiquiátrica). Além disso, recomenda-se aos candidatos – caso ainda não o tenham feito durante seus estudos de medicina – que adquiram, no decorrer da formação teórica, os conhecimentos requeridos em ciências humanas (em particular, nas áreas de história da civilização, de psicologia dos povos, de sociologia e de teoria da ciência). 3. Os candidatos efetuam a formação de prática analítica na qualidade de estagiários (assistentes voluntários) na policlínica do Instituto Psicanalítico de Berlim. Na policlínica, eles fazem, sob orientação e controle, tratamentos 103 RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

analíticos de pacientes e têm a oportunidade de complementar, no “seminário técnico” obrigatório, seus conhecimentos teóricos e sua capacidade prática, a partir dos casos que eles mesmos trataram. Dá-se o curso por concluído quando a formação prática é bem-su- cedida; o candidato pode então começar a ter uma atividade independen- te, enquanto analista profissional. Assim que dispuser de um certo núme- ro de experiências próprias, poderá candidatar-se a membro da Socieda- de Psicanalítica Alemã, o que lhe serve ao mesmo tempo para justificar sua formação e assegurar a possibilidade de um aperfeiçoamento analíti- co contínuo. A experiência mostra-nos que uma formação psicanalítica completa exige de três a quatro anos. Cada parte da formação completa pode também ser realizada fora do Instituto Psicanalítico de Berlim, em locais autorizados pela Sociedade Psicanalítica Alemã.

IV. FORMAÇÃO DOS NÃO-MÉDICOS A formação dos candidatos não-médicos ocorre essencialmente den- tro dos mesmos critérios que os estabelecidos para os médicos, mas os can- didatos precisam adquirir também uma série de conhecimentos necessários para sua atividade futura de terapeuta analista, e isso nas áreas da biologia, da psicologia, da sexologia, da patologia e da psiquiatria. Para isso, apelar- se-á a todas as possibilidades de formação oferecidas por locais como a uni- versidade e os estabelecimentos de ensino superior. 2. Além disso, os candidatos não-médicos devem eles próprios ter a ex- periência do contato médico-paciente, sobretudo com os doentes mentais. O Instituto deve lhes proporcionar, na medida do possível, essa oportunidade.

V. ADMISSÃO E FORMAÇÃO DOS CANDIDATOS PARA A ANÁLISE DE CRIANÇAS São válidos, em princípio, para a admissão e a formação dos candida- tos analistas de crianças os mesmos regulamentos que aqueles vigentes para os terapeutas psicanalistas. Um estatuto particular para os regulamentos es- peciais referentes à formação de análise de crianças está sendo preparado.

D) Outras formações psicanalíticas 1. Cursos especiais serão oferecidos para os membros de certas cate- gorias profissionais (pedagogos, pastores, profissionais da área social, juris- tas, médicos, etc.) que desejarem adquirir conhecimentos psicanalíticos no 104 A ESTRUTURAÇÃO DO ENSINO...

âmbito e em vista da atividade profissional que exerçam no momento. A partir das experiências adquiridas, será decidido posteriormente de que maneira e em que medida se poderiam abrir possibilidades de formações espe- cíficas mais aprofundadas para os objetivos profissionais dessas categorias. 2. Além disso, são organizadas conferências públicas destinadas a um público culto. E) Programa de estudos 1. Análise didática 2. Formação teórica (cursos obrigatórios)

3. Formação prática a) Trabalhos de prática terapêutica (análise de controle). b) Seminário técnico.

B) A ANÁLISE DIDÁTICA 105 RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

Hanns Sachs As Igrejas sempre solicitaram dos adeptos que desejavam comprome- ter toda sua vida com o além e o sobrenatural, ou seja, os futuros sacerdotes e monges, um período de experiência, um noviciado. Nesse período de transi- ção, eles devem aprender a ver os acontecimentos do mundo com olhos dife- rentes daqueles dos leigos, devem aprender a lançar seu olhar para além do visível, para o que permanece oculto. A psicanálise não solicita àqueles que querem exercê-la que dêem menos atenção às realidades da existência ou que não vejam nelas senão símbolos, pois ela, ao contrário, é fundada sobre a expe- riência e, até em seus menores detalhes, sobre a observação mais estrita. Essa observação, no entanto, deve incidir em primeiro lugar sobre objetos que tam- bém estão – mesmo que seja por outras razões e de uma maneira que difere do transcendental – ocultos e secretos “aos olhos dos leigos”. Trata-se do inconsci- ente, dos componentes pulsionais recalcados, assim como dos acontecimentos e fantasias relativas, do não-reconhecimento – em outras palavras, do recalque – sobre o qual repousa, em grande parte, o desenvolvimento cultural, a educa- ção e o desenvolvimento de cada indivíduo. Os futuros analistas devem aprender a ver algo que facilmente es- capa, de modo geral e regular, aos outros homens e devem ser capazes de conservar essa capacidade de observação, mesmo nas situações em que o resultado parece estar em contradição flagrante com seus próprios desejos e afetos. Como os óculos analíticos não podem ser colocados durante a hora de análise e depois ser tirados, trata-se sobretudo de apren- der a suportar duradouramente e sem danos essas observações, que tra- zem à tona tantos abismos, torpezas e perigos que se dissimulam nas relações humanas. A análise didática deve garantir que o saber recém- adquirido permaneça, a despeito dessas dificuldades, corretamente ad- ministrado e utilizado. Como vemos, a análise precisa de algo que corresponda ao noviciado da Igreja. A aquisição de conhecimentos teóricos, de um saber livresco, por mais completo que seja, não basta. Ela demanda daqueles que a praticam um olhar constantemente voltado para coisas das quais, por necessidade interior e exigência moral, ele se desviaria normalmente, como, por exemplo, a sexualidade infantil, o complexo de Édipo e a ambivalência nas relações humanas. O único caminho mais ou menos seguro para esse objetivo é a análise didática, que deve, por essa razão, ser considerada como um recurso insubstituível, uma parte constituinte da formação analítica. É por meio do reconhecimento de seus próprios movimentos inconscientes e de uma famili- 106 A ESTRUTURAÇÃO DO ENSINO...

aridade constante com estes que o analista se torna capaz de explorar o inconsciente de outros homens e de avaliar corretamente a influência que ele tem sobre seus comportamentos e sofrimentos. Quando o Instituto berlinense foi criado, os fundadores enfatizaram desde o início o cumprimento dessa importante condição. Por meio dessa disposição sistemática, a análise didática – que analistas experientes exerci- am por assim dizer “ao lado de suas funções” – foi introduzida aqui pela pri- meira vez como um ramo independente da análise. Este não é o lugar para discutir ou mesmo enumerar os problemas que surgiram dessa evolução; apenas dois exemplos devem ser extraídos dela: o primeiro tange à questão da escolha do candidato, portanto, àquela da forma- ção preparatória, das capacidades e dos traços de personalidade que devem ser considerados como particularmente favoráveis ou, no caso, desfavorá- veis, para o exercício da profissão singular de analista; a isso se acrescenta o problema de um julgamento mais rápido e seguro dessas questões. O segun- do exemplo concerne ao fim da análise; a isso, no caso da análise didática, é particularmente difícil de responder, porque a referência habitualmente sufici- ente – o distanciamento duradouro dos sintomas – ou está ausente aqui, ou permanece insuficiente. Provavelmente, nem todas as dificuldades podem ser superadas nes- sa área, algumas delas talvez nem sejam reconhecidas. Mas o fato de que a análise didática é de uma importância capital, tanto para o movimento psica- nalítico quanto para a ciência, é geralmente reconhecido; sua valorização se encontra entre os mais importantes aportes do Instituto de Berlim.

C) A FORMAÇÃO TEÓRICA Franz Alexander A formação teórica constitui a segunda parte da formação de terapeuta psicanalítico. Depois de o candidato ter superado por meio de sua própria análise (a análise didática) as resistências instintivas típicas que as descober- tas psicanalíticas provocam na maior parte dos seres humanos, ele começa sua formação teórica. Esta é, em seguida, prosseguida na última parte do curso, pela formação prática, que é a aplicação dos conhecimentos às pesso- as doentes. A função da formação teórica é fazer com que o candidato conhe- ça as experiências e as representações fundamentais essenciais do sistema psicanalítico. Ainda é recente a introdução de um programa de estudos aprofundado de modo sistemático no Instituto Psicanalítico de Berlim. Nos primeiros anos de existência, o Instituto não tinha à sua disposição nem bas- 107 RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

tantes professores nem suficiente experiência para conduzir uma atividade didática sistemática. As primeiras tentativas de introduzir um sistema de estu- dos de acordo com um plano estabelecido foram feitas, portanto, com UM certo ceticismo por todos os professores do Instituto. É verdade que, pouco a pouco, reuniu-se um número suficiente de professores qualificados; do mes- mo modo, passou a haver um interesse cada ano maior por nossos cursos, em particular entre os jovens médicos, sobretudo os jovens psiquiatras. No entanto, duvidávamos do fato de que as bases fornecidas pela experiência e pelas concepções teóricas de nossa tão jovem ciência já pudessem se pres- tar a um ensino sistemático, conforme um plano estabelecido. Havia incon- testavelmente boas razões para duvidar. Desde o início, o criador da psicaná- lise evitou cuidadosamente – de início, talvez de maneira mais intuitiva; mais tarde, estando consciente do objetivo a alcançar – que essa jovem ciência se imobilizasse prematuramente por uma sistematização. Assim, ele levou em conta não apenas o caráter nitidamente empírico da psicanálise, mas tam- bém e mais particularmente, a novidade da ciência que fundou. A psicanálise, primeira psicologia científica – na medida em que se entende por psicolo- gia o conhecimento dos conteúdos psíquicos do ser humano e do apare- lho psíquico como sistema coerente – não podia se apoiar em tradições científicas preexistentes; ela precisava primeiramente criar seu próprio método e seus conceitos fundamentais. Nem as ciências naturais, nem a psicologia pré-freudiana podiam, por sua metodologia, crítica do conheci- mento e conteúdo, fornecer pontos de apoio para esta ciência nascente, que se revela um tipo de conhecimento aprofundado dos homens, que não repousa mais, como nos poetas, numa empatia puramente intuitiva, mas sobre observações de detalhe empíricas, adquiridas de modo metó- dico. Uma história de paciente vista sob um ângulo psicanalítico – a base empírica, portanto, de nossa ciência – pode ser comparada, no máximo, com uma boa biografia. Entretanto, é uma biografia vista no microscópio. A comparação com uma anamnese psiquiátrica continua sendo superfici- al, pois as descobertas psicanalíticas são adquiridas por um caminho di- ferente, em princípio, e porque as anamneses psiquiátricas não aspiram em primeiro lugar a uma compreensão tão completa quanto possível dos encadeamentos psicológicos encontrados na evolução do paciente. É fá- cil compreender que a condição de vida de uma ciência tão nova (que, em suas pressuposições, método e conteúdo, não podia aprender muito com os outros ramos mais antigos da ciência) consistiu em manter seus con- ceitos científicos em uma plasticidade variável e uma capacidade de adap- 108 A ESTRUTURAÇÃO DO ENSINO...

tação ao material empírico que se acumulava depressa e, portanto, não deixar esses conceitos se imobilizarem cedo demais em uma precisão escolástica. Os interesses do desenvolvimento científico e do ensino tinham, pois, direções opostas primeiramente. É verdade que existem, na natureza, coisas que só os conceitos e representações teóricas simples, precisas, que já se tornaram constantes, podem ensinar. Mas, por outro lado, a psicanálise de- senvolveu-se num ritmo extraordinariamente rápido. Certos conceitos funda- mentais e certas representações, relativos tanto ao conteúdo psicológico quan- to à dinâmica, foram a tal ponto confirmados por um material abundante que os traços fundamentais da teoria puderam logo se consolidar conforme uma coerência exata e transparente. Os princípios da teoria do sonho, a parte mais coerente e mais evidente da teoria psicanalítica, puderam ser estendi- dos a muitos processos psíquicos patológicos e normais. A aplicação conse- qüente dos pontos de vista tópico, dinâmico e econômico tornou inevitável uma certa sistematização e, por isso, adiantou o momento do ensino sistemá- tico. Uma sistematização progressiva e prudente e, paralelamente, o ensino sistemático, tornaram-se pouco a pouco não somente possíveis, mas tam- bém altamente necessários. A condição de vida anterior de nossa ciência – a observação sem pressuposições, não influenciada por conceitos rígidos e com o mínimo possível de sínteses sistemáticas – deu lugar a novas exigên- cias científicas. Em psicanálise, como em qualquer ciência, os conceitos tirados das observações começaram a viver sua existência própria de golem. Eles reclamaram seus próprios direitos. Um desenvolvimento conceitual acrescentou-se ao desenvolvimento empírico e agora ambos se fecundam mutuamente. Mas, ao lado dessas regras imanentes à for- mação de toda ciência, foi também a posição da psicanálise entre as ci- ências que necessitou uma conceptualização mais rigorosa, já que um ensino foi possível por isso mesmo. Os dias das escolas paralelas estão portanto contados. Os primeiros achados empíricos fundamentais de Freud logo sofreram sistematizações arbitrárias. Somos realmente incitados a falar assim de uma época de cavalaria científica saqueadora na área da análise psicológica dos fenômenos psíquicos. Fatos isolados, tendencio- samente tomados ao acaso, foram generalizados e passaram a embasar uma teoria psicanalítica minimizada, cujas descobertas analíticas foram violadas pela teoria a partir de critérios ideológicos, filosóficos ou morais. Por muito tempo, a psicanálise de espírito freudiano não pôde se compa- rar, no que tange à coerência e à simplicidade, com as teorias dessas 109 RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

escolas paralelas. Foi preciso muito trabalho científico correto para triun- far do material empírico de um modo teórico aceitável e para chegar a critérios sintéticos coerentes. Paralelamente à reunião das observações isoladas, a possibilidade de aplicar a psicanálise se estendeu, a partir do domínio da patologia, a outros novos domínios da atividade psíquica humana. Sua aplicação era justamente a pedra de toque da justeza das abstrações conceptuais. A psicanálise adqui- riu, cada vez mais, o caráter de uma psicologia geral. Assim, o domínio inicial, o da terapia, tornou-se, mesmo permanecendo predominante devido à sua importância, uma possibilidade de aplicação dentre muitas outras. Nessa fase, a necessidade de um ensino sistemático, sob uma forma igualmente utilizável nas áreas vizinhas, passou a ser cada vez mais perceptível. Nesse momento de seu desenvolvimento interno e considerando seu lugar entre as outras ciências, tentamos, há somente três anos, não sem muitas dúvidas, realizar um programa de ensino sistemático para a formação psicanalítica. Apesar do curto lapso de tempo passado, pode-se considerar hoje que essa tentativa teve êxito além de toda expectativa. É verdade que o programa de ensino ainda passa por contínuas modificações hesitantes, mas, ao longo desses três anos, os princípios de um programa de ensino foram adquiridos. Esse programa está apto, em condições ainda bastante primitivas e com recursos financeiros extraordinariamente reduzidos, a introduzir em dois anos o candi- dato analisado aos fundamentos teóricos da psicologia e da terapia psicana- lítica. A formação teórica consiste de 6 trimestres, três por ano. Cada trimes- tre oferece 3 cursos obrigatórios e, além disso, cursos facultativos que se correlacionam, tanto quanto possível, com o ensino do trimestre em curso. A matéria de ensino dos trimestres consecutivos é repartida em função de uma apresentação sistemática do conjunto dos conhecimentos. Essa repartição é submetida a diferentes critérios. Um deles corresponde mais ou menos à for- mação médica. Apresenta-se primeiramente aos candidatos uma espécie de anatomia e de fisiologia do aparelho psíquico. Um curso de introdução apre- senta, no primeiro trimestre, uma psicologia psicanalítica da normalidade, complementada por um curso sobre a interpretação dos sonhos e por um outro sobre a teoria das pulsões. No segundo trimestre, já se estudam os elementos da psicopatologia (teoria geral das neuroses). O terceiro trimestre apresenta os conhecimentos específicos referentes à teoria das neuroses, inicialmente nas áreas nas quais a psicanálise teve e continua tendo suas primeiras e mais importantes experiências: a histeria, a fobia, a neurose ob- 110 A ESTRUTURAÇÃO DO ENSINO...

sessiva. O segundo ano começa, no primeiro trimestre, pelas aplicações mais recentes da psicanálise aos domínios da psicopatologia, pela apresentação dos distúrbios de personalidade, da delinqüência e das psicoses. Durante esse trimestre, já se inicia a apresentação sistemática da técnica do trata- mento psicanalítico. Esse curso continua no segundo trimestre. Desde o iní- cio, em cada trimestre, estudam-se sob forma de seminários os textos funda- mentais de Freud que correspondem à matéria de ensino do trimestre em curso. Assim, há três seminários sobre Freud no primeiro ano de formação: Os Três ensaios sobre a Sexualidade, Histórias de pacientes, 1a parte, Histórias de pacientes, 2a parte. O segundo ano comporta igualmente três seminários sobre Freud: Textos teóricos, 1a parte, Textos teóricos, 2a parte, Textos sobre a técnica. Enquanto o primeiro ano oferece essencialmente os fundamentos empíricos da terapia analítica, o segundo ano se encontra principalmente sob o signo da técnica do tratamento. Ao lado desses cursos, cuja orientação é sobretudo terapêutica, integramos em nosso programa três cursos obrigatóri- os que tangem mais às ciências humanas: no terceiro trimestre do primeiro ano, um curso sobre a aplicação da psicanálise à literatura e à arte; no segun- do trimestre do segundo ano, um curso sobre a etnologia psicanalítica e a psicologia coletiva; e no terceiro trimestre do segundo ano, um seminário so- bre a arte da interpretação e a simbólica. Introduzimos esses cursos porque a experiência provou que os candidatos que possuem uma cultura humanista excedem em muito, na maioria das vezes, aqueles que têm apenas uma for- mação puramente médica ou biológica, quanto à compreensão psicológica do homem atingido em seu psiquismo, em particular, quanto à compreensão dos processos psíquicos inconscientes. De fato, ao lado do sonho, as mani- festações mais próximas do inconsciente são encontradas na literatura e na arte, principalmente na arte folclórica, nos costumes e nas superstições dos povos primitivos. Aquele que teve uma formação literária ou em ciências hu- manas encontra-se também numa empatia mais próxima da vida psíquica de outrem do que aquele que, com a formação médica atual, não aprendeu nada, por assim dizer, da vida psíquica dos pacientes e da psicologia em geral. Nosso projeto prevê a estruturação posterior desse aspecto da forma- ção, já que a dificuldade principal consiste na falta de especialistas qualifica- dos nas áreas afins, pois outros profissionais, além dos cientistas 111 RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

especializados com uma formação analítica completa, são considerados como professores. Outro problema espinhoso do futuro do ensino é a ligação mais íntima com a medicina orgânica. Ora, a esse respeito, faltam não só os pro- fessores, mas também os conhecimentos científicos. Nosso saber, nessa área, ainda se encontra em seu estágio bem inicial e não está apto a ser ensinado. Somente quando a colaboração com as outras partes da medicina se tornar mais intensa essa lacuna tão sensível do ensino psicanalítico poderá ser pre- enchida. O terapeuta do futuro, o médico que recebeu uma formação equiva- lente em medicina-biologia e em psicanálise, é a imagem ideal de nossa ativi- dade de ensino. Esse tipo idealizado, tentamos realizá-lo nos candidatos den- tro do que julgamos possível hoje em dia. Os princípios fundamentais da formação teórica resumem-se a alguns pontos. Nos candidatos com formação médica (estes constituem, com efeito, a maioria de nossos candidatos ao ensino), nós nos esforçamos: 1. para desenvolver seu senso da psicologia, o que falta na maioria das vezes; 2. para que os candidatos conheçam, de forma tão aprofundada quan- to possível, os textos fundamentais de Freud; 3. para transmitir os fundamentos estabelecidos dos princípios psica- nalíticos tirados da experiência e do sistema conceitual, de uma forma clara, coerente, que corresponda ao estado atual de nossa ciência, mas tão pouco rígida quanto possível, de sorte que permita o desenvolvimento posterior.

A) A FORMAÇÃO PRÁTICA Sándor Radó A formação prática dos futuros analistas confrontou nosso Instituto com uma tarefa difícil. A particularidade da psicanálise torna impossível, com efei- to, a transferência dos bons e velhos métodos de instrução pessoal usados no ensino das artes práticas para esta nova disciplina. Tomemos, para ilustrar nossa situação, o exemplo da cirurgia. Nela, o iniciante deve primeiramente assistir como observador passivo às operações do mestre. A seguir, tem a permissão de participar do trabalho deste como auxiliar. Numa fase posterior, os papéis são invertidos: o próprio discípulo faz as intervenções, mas o mes- tre permanece presente, como auxiliar. É somente numa quarta etapa que se rompe a dependência do jovem cirurgião em relação a uma assistência supe- rior e que se conclui seu reconhecimento enquanto trabalhador independen- te. No caso da análise, não se pode imitar isso. A terapia analítica é um proce- dimento a dois e deve limitar-se forçosamente aos dois participantes – o ana- 112 A ESTRUTURAÇÃO DO ENSINO...

lisando e o analista. Aqui, o iniciante não pode observar o trabalho daquele que tem a experiência, nem como espectador nem como auxiliar; e aquele que tem experiência não pode estar a seu lado como auxiliar durante suas primeiras tentativas terapêuticas. O ensino analítico precisa então renunciar ao contato do mestre e do aluno no trabalho comum, cuja importância é pri- mordial como meio de ensino; ele deve, portanto, visar a alcançar esse velho objetivo por meio de novos caminhos adaptados à natureza da análise. Este é o problema central do ensino, um problema que nosso Instituto se esforça para resolver há uma década, através de um trabalho prudente, “em uma tentativa empírica”. No início, o Instituto encontrou um fundamento sólido criado por Freud para o desenvolvimento do ensino analítico. Penso naturalmente na análise didática que – para além de seu objetivo mais próximo, motivado por razões diferentes e mais profundas – é ao mesmo tempo a parte inicial da “formação prática” em um sentido mais restrito. A análise didática serve o propósito – como foi explicado – de afinar no futuro analista seu próprio órgão psíquico, na medida em que este é o instrumento do trabalho psicológico, aquele que lhe servirá em sua futura atividade. Ela deve enriquecer a personalidade pela elucidação de seus componentes ocultos e fortalecê-la em sua estrutura. Esta é a função da análise. Além disso, demonstra àquele que está aprendendo – este é o resultado de seu processo didático – qual o desenrolar do tratamen- to, o que não se pode mostrar de outra maneira. Ela faz com que ele vivencie seu funcionamento em sua própria pessoa e lhe dá a ocasião de “tomar” de seu analista “a técnica em suas sutilezas” (Freud). Houve um tempo em que a formação analítica consistia apenas na aná- lise didática, e o aluno precisava buscar todo o resto estudando a literatura especializada. Tratar os casos apropriados no início de sua prática terapêuti- ca também era uma questão de sorte. Só a fundação da Policlínica de Berlim e sua pronta estruturação como lugar de ensino analítico permanente pude- ram modificar essa situação. O Instituto organiza análises didáticas, complementa a formação pelo acréscimo de uma formação teórica e coloca os candidatos, quando sua preparação está suficientemente avançada, como estagiários em seu estabelecimento policlínico. O crescimento do efetivo de- vido a esses novos colaboradores é oportuno para a policlínica, que aumenta desse modo sua eficácia terapêutica. Os candidatos, por outro lado, nela en- contram todo o conforto desejado para uma aprendizagem prática: salas de atendimento convenientes, uma biblioteca especializada e, acima de tudo, um material muito rico de pacientes. A policlínica recebe para consulta um 113 RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

número muito grande de pessoas em busca de ajuda, e a direção se ocupa da escolha dos casos que melhor correspondam às necessidades respecti- vas daqueles que estão aprendendo. Duas necessidades foram, acima de tudo, decisivas acerca da estruturação interna do estágio. O diretor da policlínica, primeiro responsável pela Instituição, devia inevitavelmente poder tomar conhecimento do trabalho dos iniciantes e acompanhá-los de modo eficaz. Essa exigência de organização correspondia perfeitamente aos interesses didáticos dos estagiários, que não conseguiam se sentir à vontade no isolamento, exigido pela técnica, de seu trabalho terapêutico. O candidato adquire o conhecimento prático da técnica ao longo da análise di- dática, depois deve aplicá-lo em uma nova situação, que o faz passar do papel passivo do analisando ao papel ativo do analista. Essa mudança está relaciona- da a dificuldades sobre as quais Eitingon já se pronunciou detalhadamente5. O jovem analista deve adaptar o método que experienciou consigo mesmo na análise didática às condições individuais de seus casos; depende para isso, em larga medida, do conselho e da assistência de um profissional experiente. Como a análise não admite de forma direta nenhuma vigilância e nenhuma ajuda, fez- uso de um procedimento indireto que satisfaz as duas necessidades simultane- amente. Os estagiários devem, em curtos intervalos, fazer um relatório ao dire- tor da policlínica sobre o desenrolar de seus tratamentos e este os aconselha, então, acerca de todas as questões que surgem. Essas discussões geralmente ocorrem na ausência do paciente, mas, se for preciso, sínteses são organizadas com sua presença. Essa instituição consolidou-se sob a designação de “análise de controle” e revelou-se a melhor forma de concretizar o ensino prático. O au- mento dos estagiários logo tornou necessário, para aliviar o diretor do Instituto, encarregar progressivamente vários outros professores da função de analista controlador. À análise de controle se acrescentou, após alguns anos, o “seminário técnico”, como segunda instituição regular da formação prática. Destina-se a intensificar a formação prática dos candidatos em uma outra direção. O ana- lista estuda o caso individual com um cuidado que normalmente não se pode imaginar em medicina; mas esse aprofundamento lhe custa um gasto enorme de tempo e o obriga a reduzir o número de seus casos. A experiência do analista prático se aprofunda, mas, dado o número reduzido de casos, au- menta muito lentamente. Então, como o iniciante pode conseguir em tempo útil uma visão global sobre a diversidade infinita dos casos, considerando que isso é

5 Na conferência sobre questões do ensino durante o IX Congresso Psicanalítico Internacional. 114 Ver o relatório em Internat. Zeitschrift f. Psa., t. XI (1925), p. 515. A ESTRUTURAÇÃO DO ENSINO...

indispensável para aprimorar o julgamento e assegurar a orientação? Nossa resposta: pelo modo como os estagiários tomam conhecimento mutuamente de seu trabalho. Eles se encontram com essa finalidade todas as semanas no “se- minário técnico” e nele expõem seus casos, discutidos detalhadamente a seguir – sob a orientação de um analista experiente – por todos os participantes. São debatidos em particular: a indicação, a estrutura do caso e o procedimento téc- nico utilizado. O seminário tornou-se, desde que foi instituído, tão indispensável que mal podemos imaginar a época em que podíamos passar sem essa institui- ção. É evidente que a técnica de trabalho do seminário diferenciou-se constan- temente e melhorou à medida que a experiência se intensificava. Houve uma modificação na disposição formal do seminário, ao final de um ano, pois o au- mento do número dos participantes nos obrigou a dividir a plenária sobrecarregada em um certo número de pequenos grupos autônomos que são dirigidos a cada ano por diferentes professores alternadamente. Assim, os estagiários podem tomar conhecimento da maneira individual de trabalhar de vários analistas expe- rientes. Além disso, impôs-se, no interesse dos novos integrantes, limitar a par- ticipação no seminário ao tempo da formação no sentido estrito. Ao jovem ana- lista cuja formação é considerada como concluída abrem-se as sessões científi- cas de nossa Sociedade Psicanalítica Alemã, as quais lhe asseguram tanto o contato estreito com aqueles que aspiram ao mesmo objetivo quanto o aperfei- çoamento posterior. Esta é, então, a organização atual de nossa formação prática. Em razão das experiências feitas até agora, pode-se pensar que os resultados obtidos graças a ela não perdem em nada para o que é realizado fora pela formação clínica usual e são em um ponto – o da análise didática – únicos em seu gênero e incomparáveis. Mesmo que possamos considerar nosso sistema didático prá- tico em suas formas fundamentais como duradouro e garantido, aspiramos con- tinuamente a desenvolver nossa organização e complementar suas realizações. Assim, planejamos proximamente a fundação de um grupo de trabalho no qual os estagiários avançados devem aprender a tratar de maneira científica inde- pendente seu material de observação clínica. Mas a modalidade posterior de nosso desenvolvimento depende antes de tudo da eventual anexação a nosso Instituto de um serviço psiquiátrico fechado. Poderíamos esperar de um serviço fechado não somente um enriquecimento extraordinário de nosso empreendi- mento de ensino, mas também a extensão progressiva de nosso Instituto em um instituto de pesquisas psicanalíticas.

115 ENTREVISTA QUANDO FALA UM ANALISTA

Alfredo Jerusalinsky1

comissão da Revista reuniu-se num fim de tarde ventoso e ensolarado, Atípico do mês de novembro de Porto Alegre, para entrevistar o psicanalista ALFREDO JERUSALINSKY. Pela importância que Alfredo Jerusalinsky tem na produção psicanalítica, desde muito tempo, talvez esta entrevista até dispensasse sua apresentação. Pois muitos de nós, ao longo dos anos, acostumamo-nos a associar seu nome a uma constante, estimulante e provocativa presença entre os referenciais que temos utilizado acerca da psicanálise. Não se trata de meros elogios. Sua contribuição à psicanálise é incontestável. Sendo assim, não é de estranhar que se tenha proposto a Alfredo Jerusalinsky participar deste número da Revista, cuja temática é formação, reconhecimento e transmissão. Afinal, seu testemunho iria, certamente, colaborar, e muito, para esclarecer pontos espinhosos a respeito desse tema. Assim, a comissão da Revista imbuiu-se da tarefa de formular questões guiadas pelo seguinte espírito: tudo o que você queria saber de Alfredo Jerusalinsky e nunca teve coragem de perguntar! Claro, o desafio era grande; por isso uma alteração no rumo da entrevista, logo após seu início, não chegou a provocar surpresa. Não foi truque, nem magia. Por sinal, temas caros a Alfredo Jerusalinsky – como o leitor poderá conferir no seu texto O ensino da psicanálise, publicado no Boletim de n. 3/4 da APPOA, de novembro de 1990, que versa justamente sobre o tema relacionado à questão da formação do analista. O ato analítico necessita de uma posição diferente daquela do mágico; e é isso que o leitor encontrará nas próximas páginas.

1 Psicanalista, membro da APPOA, membro da ALI, Mestre em Psicologia Clínica/PUC-RS. Autor de Psicanálise do Autismo(Artes Médicas), Psicanálise e Desenvolvimento Infantil(Artes e Ofícios) entre inúmeros artigos. 116116 QUANDO FALA UM ANALISTA

REVISTA: Como nossa proposta de abordagem do tema da formação e da transmissão da psicanálise não se pretende prescritiva, já que é uma prática singular, gostaríamos de te convidar a dar um testemunho de como foi teu percurso de formação em psicanálise. ALFREDO: Como está sendo, então?

REVISTA: Sim, é melhor assim. Recolocando: como começou tua trajetória na psicanálise? O título desta entrevista bem poderia ser Tudo que você sempre quis saber sobre Alfredo Jerusalinsky e nunca teve coragem de perguntar. Mas, deixando a brincadeira de lado, como se deu teu encontro com a psicanálise? ALFREDO: Entendi a pergunta de vocês. Como começou minha relação com a psicanálise, eu me esqueci. Porque na medida em que, para acontecer que alguém advenha à condição de analista, é necessária uma transformação de sua filiação. O que implica que tem que acontecer, na sua análise, que outras marcas, que não as originárias, produzam uma nova posição desse que virá a ser analista, uma nova posição no seu fantasma, o que implica também que essas novas marcas caiam sob Uverdrangun, ou seja, no recalque originário. Esta é a razão fundamental pela qual eu não acredito no mecanismo de passe, já que esse dispositivo parte do suposto de que o analista poderia dar conta de sua origem enquanto tal. Se essas marcas da nova filiação não caírem sob recalque, não há condição de se produzir nova filiação. Ou seja, não poderão causar o efeito, essas novas marcas, de transformar cada palavra que este analista virá a pronunciar numa função do discurso analítico. Então, diante da pergunta de onde se origina minha relação com a psicanálise, o primeiro que devo responder, a resposta é: esqueci. Se não pudesse dar esta resposta, eu diria que, legitimamente, deveria ser colocado em dúvida até que ponto sou analista. Portanto, lamento desiludi-los, mas não vou contar a história de minha vida para responder a essa pergunta. Por outras razões poderia contá-la, mas não para responder a essa pergunta. A segunda questão é que a experiência de cada um na sua formação como analista é completamente singular. Duvido que o relato sobre o percur- so de formação de um possa servir de exemplo para a formação de outro. Não é uma expressão de modéstia, já que todo mundo sabe que modesto não sou; os que me conhecem. E, além do mais, não considero a modéstia uma virtude. A modéstia é sempre um engano. Não há nenhuma chance de a modéstia ser autêntica, ela é sempre falsa, declare-se ou não. Mal poderia ter esta posição, e isto ser uma expressão de modéstia; é muito mais uma ex- 117 ENTREVISTA

pressão de necessariedade lógica no que diz respeito à formação do analista. Portanto, quando se trata de falar da própria experiência em relação à forma- ção, eu acho que o melhor que um analista pode fazer é provocar, nos outros, através de seu dizer, uma interrogação acerca de como é que ele pode falar assim, assim como ele fala. Se ele não produzir interrogação nesta direção, se ele não causar um enigma suficiente para provocar essa curiosidade, não há chance de que o que ele possa dizer de sua experiência, portanto, de sua própria formação, tenha algum valor de transmissão. Eu diria que se não houvesse a exigência editorial de uma certa extensão, bem poderíamos parar por aqui essa entrevista (risos).

REVISTA: Poderíamos, então, pensar que haveria uma cena primária do psicanalista... ALFREDO: A cena primária do psicanalista é uma cena de três, em que sempre falta um. Ou seja, a cena primária descrita por Freud, classicamente, como a expectação imaginária do filho sobre o espetáculo da relação sexual de seus pais, relação na qual há uma oposição em jogo, oposição que se conjuga de diversos modos, masculino-feminino, amo-escravo, sádico-maso- quista, etc. Eu diria que na cena primária do psicanalista sempre falta um; e o que falta não é sempre o mesmo. O que implica para o analista a inevitável circulação nos discursos. Ele pode, por esta falta de um, ser lançado precisa- mente a não poder se estacionar em nenhum desses três lugares. Portanto, sua identificação sempre está em crise. Isso é o que lhe permite justamente descolar de qualquer identificação.

REVISTA: Isso tem como decorrência, então, uma instabilidade difícil de suportar, o que coloca o analista na posição difícil de circulação nos discursos, de posições que ele teria de ocupar frente a uma mesma situação que se apre- senta, a um mesmo paciente, a uma mesma fala que lhe é endereçada. Falavas do enigma produzido pela fala do analista. Então tem esta necessária condição da suposição do saber para que o outro possa receber essa falta no enigma. ALFREDO: Toda posição de estabilidade emocional – é dela que estamos falando – implica uma repetição de circuito pulsional. É uma constância de um circuito pulsional que podemos definir em termos lacanianos como encontrar a sua imagem no espelho. O problema do analista é que ele nunca encontra sua imagem no espelho. É por isso que pode suportar o relato de um, de outro, e de mais outro, etc., das dificuldades de posição na sua vida. E o que o torna sensível, precisamente, à escuta do sujeito do inconsciente, é 118 QUANDO FALA UM ANALISTA

precisamente essa impossibilidade de encontrar tal estabilidade que relança, então, o analista incessantemente à escuta do que o outro pode encontrar ou perder dessa imagem. Ao analista, para sê-lo, tem que lhe fazer enigma o que o outro diz acerca de sua instabilidade, ou estabilidade, ou seja, tem de fazer enigma à repetição do circuito pulsional em outro, já que, nele, no analista, essa repetição sempre está em crise. Razão pela qual nós analistas não somos pessoas tranqüilas, nem nos amores, nem, diríamos, pela biografia. No folclore popular, somos catalogados como aquelas pessoas mais estáveis. A imagem de um analista sentado, às costas de seu paciente – tem vários sentidos às costas de seu paciente –, por trás do divã, como alguém imóvel, totalmente aquietado, resolvido, é uma imagem que não se encaixa bem com a do analista; ao menos é o que a história demonstra: o exílio de Freud, o exílio de tantos analistas, as migrações, seus percursos por diversos auditórios e diversas cidades do mundo, esse feixe de circulação discursiva incessante, essa disposição a não se estabilizar num único modo de saber, essa curiosidade incessante do analista, de percorrer os diferentes âmbitos do conhecimento, essa curiosidade interminável que caracteriza quem é analista; isto, então, eu diria, dá essa sensação, que o analista transmite, de que tudo sempre está por se resolver. E, também, essa postura na qual ele transmite que a formação é interminável, tanto quanto pode sê-lo uma análise. Já que o analista é aquele que sabe que o inconsciente não tem fundo, não tem fim, isto é uma das coisas que o analista precisa saber.

REVISTA: Lembrei de um cartum do Quino em que chega um paciente ao consultório do analista dizendo que sofre de dupla personalidade. E aí o analista está pensando nas inúmeras que ele tinha que produzir, assumir, no seu trabalho... ALFREDO: Por isto nos encanta Woody Allen em Zelig. Zelig é um filme muito comentado pelos analistas. Uma vez, um analisando, analista, me confessou que nunca havia conseguido terminar de ver o filme porque sempre se angustiava na metade, levantava e ia embora. Bom, isto não fazia dele menos analista que qualquer outro.

REVISTA: Sobre o estilo do analista. É possível conciliá-lo com essa necessidade de o analista ter que assumir diversas posições? ALFREDO: Desde minha experiência como analista, diria que não, não dá para resolver. Até porque se viesse a se resolver, eu duvido que determinado analista pudesse sustentar a sua posição analítica, pudesse suportar a 119 ENTREVISTA

mudança incessante da narrativa da tragédia dos outros. É por isto que o analista precisa esquecer de sua história pessoal e, ao mesmo tempo, curiosamente, ele lembra da história de todos os pacientes, porque o recalque se aplica sobre sua posição subjetiva, e não sobre a dos outros. O analista, e nisto tem um certo parentesco com o literato, é um dos poucos que – vá se saber por quê! – quando escuta outro, não o escuta de modo especular, senão num rompimento incessante deste espelho. Motivo pelo qual o analista raramente responde ao que se esperava que respondesse. E eu diria que, quando responde o que se esperava que respondesse, fracassou no seu lado analítico, porque não conseguiu chegar nem uma vírgula além do já dito, quer dizer, não conseguiu fazer o Outro falar. Por que alguém pode assumir essa posição, digo, por exemplo, literatos e analistas? Não é fácil responder. Talvez, uma hipótese, porque algo de loucos eles têm na sua origem. Isto é, sem sabê-lo, eles são empurrados pelas circunstâncias da vida a chegar um pouco além do que é capaz de sustentá-los, a entrar neste terreno que Freud chama o inferno – e, quando a gente entra neste terreno, é porque não se tem outro remédio e não porque se quer. Aqueles analistas que, na história da psicanálise, configuram um paradigma são, precisamente, os que como Freud, Lacan, , Winnicot, Octave Mannoni, entre outros, notadamente estiveram lançados ao risco de tocar uma orla na qual o significante já estabelecido deixava de fazer a sua função, e tiveram que procurar um modo de sustentar esse novo significante numa posição em que o reconhecimento espontâneo e fácil não se esperava. É por isto que esses analistas despertaram resistência, digamos; condição, por outro lado, do ato analítico, já que este se cumpre em resistência. Resistência a quê? Resistência justamente ao significante, que não oferece garantia porque não conta com o reconhecimento prévio. Então, o analista é mais um aventureiro do que um mártir. Só que o analista precisa ser um aventureiro científico, para não deixar ao Popper o monopólio da ciência. Ele tem que oferecer seu ato ao risco, ao acaso, ao que for acontecer, ao que vier a acontecer. Não somente à sorte, e não somente ao acaso, mas, sim, ao que vier a acontecer. Sabe-se que virá um acontecimento a referendar ou desmentir aquilo que for lançado à roda. Ou seja, que este ato terá uma conseqüência, um desfecho, um desenlace. O analista, justamente, no campo científico que lhe compete, ele tem que oferecer seu significante a este vir-a-acontecer de ele ser lançado a um lugar que essa rede, esse lugar, virá a demonstrar sobre a verdade ou não disto que seu dizer ou significante sustenta. 120 QUANDO FALA UM ANALISTA

Razão pela qual, com toda precisão, Lacan pontuou que a interpretação, ela sabe-se de ter sido tal a posteriori, e não antes. Se houvesse esse antes, estaríamos no terreno que uma certa versão do kleinismo fenomenológico positivista desdobrou durante trinta anos no campo analítico; ainda desdobra alguma versão na psicanálise, como um código prévio, ou seja, como uma dupla leitura, uma dupla posição, de todo significante em que há um significado já sabido, o que repete uma versão, digamos, antiquada, da linguagem, em termos lingüísticos saussurianos. Justamente, a leitura de Lacan foi colocar, de modo muito claro, essa inversão do algoritmo saussuriano, que lança o significante a uma deriva horizontal, ou seja, de significante a significante, aonde os efeitos de atravessamento da barra, enquanto revelação do sentido, depende dos tropeços dessa marcha do significante, quer dizer, aonde o significante encontra algum obstáculo, uma borda, uma lacuna, um ponto de capitonê. A verdade da qual a psicanálise fala não é uma verdade fática, nem uma verdade probabilística ou imanente, nem ainda uma verdade transcendente; é a verdade da interpretação, que se revela tal em alguns dos efeitos que sofre a vida do paciente ou, mais precisamente, na tensão provocada no discurso que orienta sua vida. É ali que se revela que algo de verdade nesta intervenção houve. Embora fique, ainda, a se ver de que verdade se tratava, o que resta sempre pendente. É por isto que, no seminário O saber do psicanalista, do ano 71, Lacan nos diz que, no discurso analítico, o lugar da verdade está ocupado pelo S , ou seja, pelo saber; mas ele adverte que 2 não se trata da junção entre saber e verdade, senão da impossibilidade desta relação. Por tal razão, eu prefiro, sempre que escrevo discurso analítico, escrever o S barrado; me parece mais fiel ao que acontece com o analista. É 2 por isso também que Freud teve a capacidade, sempre admirada por todos, de rever sua teorização incessantemente. Porque ele sabia, consciente ou inconscientemente, que toda teorização está habitada por um equívoco. E é na busca deste equívoco que podemos avançar. É claro que eu sei que estou transformando esta entrevista, ou estou tentando transformar esta entrevista, num ato de transmissão. Parece-me que é o maior valor que ela pode ter. Lamento não satisfazer a curiosidade circunstante sobre minha vida.

REVISTA: Para o analista poder suportar tal instabilidade pulsional, isso vai depender também da desidealização da psicanálise, não? ALFREDO: Desidealização do psicanalista.

121 ENTREVISTA

REVISTA: É por aí exatamente que eu pensava na situação de pessoas bastante jovens, recém-saídas da Faculdade de Psicologia, na maioria dos casos, dispostas a fazer uma formação analítica. Facilmente se percebe, na forma em que se relacionam com a psicanálise, certo estereótipo do psicanalista. Falo em estereótipo porque o divã aí ocupa um lugar de representação do que eu penso que é este estereótipo, como fetiche. Utilizei a palavra desidealização do analista porque tem a ver com a análise deste que está fetichizando a posição do analista. Daí a pergunta: pode-se dizer que mudou, que há mudanças acontecendo com relação à formação dos analistas? Refiro-me aos analistas lacanianos. Pois percebe-se um movimento que, às vezes, assusta. Ouço pessoas falando, por exemplo: “Mas, como? Recém-formado vai abrir consultório, colocar divã e se autorizar analista?” O recém-formado não me parece uma questão procedente, já que desconheço o percurso de análise dessa pessoa. Não acho que seja essa a via pela qual questionar a formação analítica. Qual é a tua percepção com relação a estas coisas? ALFREDO: Bom, quem não gosta dos analistas jovens não será capaz de fazer uma boa transmissão. Eu gosto dos analistas jovens. Eles têm certa coragem, sobretudo no mundo atual, porque, efetivamente, podemos registrar um deslocamento da prevalência da demanda de mestria à prevalência da demanda de objeto de gozo na civilização. Na verdade, sempre houve uma dialética entre a demanda de mestria e a demanda de objeto de gozo em toda civilização, porque, como Lacan diz no Seminário 17, uma civilização é aquela que tem um amo. Portanto, demanda de mestria sempre houve, em toda civilização existe. E demanda de objeto de gozo também sempre houve, porque é ao redor desse objeto, da versão que desse objeto uma civilização qualquer produz, que se ordena a circulação pulsional – o que significa a possibilidade de simbolização necessária para que alguma versão do objeto seja possível. Isso sempre houve. Porém, o acento em algum dos pólos dessa dialética não foi sempre o mesmo. Se aparecesse Confúcio, hoje em dia, eu não sei se ele teria grande sucesso. O Dalai Lama, por exemplo, está escrevendo livro de auto-ajuda para sobreviver. Digo, para ressituar essa demanda de mestria na sua dimensão atual. Como bem sabemos, os livros de auto-ajuda se caracterizam por cultivar, de modo imperioso, as patologias narcisistas, o que, do ponto de vista da demanda social, não permite que o sujeito se situe em relação ao outro. Digamos que o que ordena essa patologia narcisista é o recurso de oposição contra o outro, o que deixa o sujeito na posição paranóica. Quando 122 QUANDO FALA UM ANALISTA

o sujeito vai procurar algo que o tranqüilize, na sociedade atual, vai procurar em um objeto de gozo, alguma versão dele, porque é isso que o coloca a resguardo dessa paranóia. É por isso que ninguém está tranqüilo na sua posição de chefe de empresa ou gerente de banco. Até há pouco tempo esses eram lugares que alcançavam para situar uma vida. Outro dia li um adágio de Confúcio que dizia: “Ama-me mais quando menos o mereça, porque é, então, quando eu mais precisarei”. E eu me perguntei imediatamente por que uma frase tão bela e verdadeira como essa, verdadeira para mim, não vigora hoje em dia? Porque certamente que não. Geralmente, o momento em que alguém mais precisa é o momento aproveitado pelos outros para afundá-lo, para acabar com ele. Hoje, a prática social mais generalizada é essa; motivo pelo qual prolifera a religiosidade, como tentativa de encontrar um hábito de pacificação desse confronto. A idéia é de encontrar, em algum lugar, alguém, mas que seja imaginário, e que ame a gente incondicionalmente, que ame sem medida. É como se os pregadores religiosos soubessem disso, porque eles insistem: “Deus te ama, Deus te ama, Deus te ama, Deus te ama”. Mas também essa é a razão, provavelmente, da compulsão por encontrar um objeto que nos proteja, ou seja, que ele mesmo configure o poder fálico suficiente com o qual nos coloca ao amparo de qualquer confronto. É como se o modelo da guerra fria se estendesse pelo universo, pelo mundo, se tornasse universal. Ou seja, contar com armas poderosas como para desencorajar o outro a empreender a guerra. Essas armas se situam na posse, ou na intimidade da relação com um objeto que garanta o gozar. Possivelmente, é por isso que o analista é o deus demandado a garantir o acesso a esse objeto de gozo, como um conselheiro da empreitada, uma espécie de assessor qualificado, quando ele mesmo é colocado no lugar de fetiche. Assim, o analista é fetichizado como aquele que encarna o saber sobre o gozo. E então ele precisa ser imitado. Na formação do analista, o pior que poderia fazer um analista é se oferecer como exemplo.

REVISTA: O cuidado em não ocupar esse lugar ideal ou do fetiche parece sempre estar em pauta para o analista lacaniano; é uma herança da transmissão de Lacan. Mas tal zelo não é garantia de que isso também não aconteça. ALFREDO: Diante da burocratização da formação do analista, Lacan opõe-se, propondo o analista como resto. Ele diz: “O analista é para oferecer o semblante que o outro precisa para falar”. Necessariamente, ocupa o lugar do morto. Tal enunciado – que não faz mais do que recolher a experiência 123 ENTREVISTA

freudiana, formalizá-la (dar-lhe nome) e fazer os analistas sofrerem todas as conseqüências da pretensão de ocupar esse lugar – nos coloca um problema no que se refere à transmissão, porque esta exige um lugar de mestria, pelo menos uma passagem por esse lugar. E o lugar de mestria, não por acaso, em algumas línguas, está associado ao lugar de amo, porque, para se constituir no lugar de mestria, o analista precisa demandar uma repetição do saber que ele transmite. Como produzir a repetição que, embora carregando os princípios fundamentais da ética de que se trata, respeite, ao mesmo tempo, a singularidade? Para tal, surge o conceito de mestre não-todo. O cuidado, digamos, empurrado goela abaixo no psicanalista, para barrar seu narcisismo, obrigando- o a retornar desse lugar do mestre ao lugar do morto. É por isso que o destino de todo mestre é morrer antes de morrer, se é que sua transmissão teve algum sucesso. Senão, ele faria obstáculo a que cada um se apropriasse dos significantes que sustentam o discurso que pretende transmitir; ele impediria que cada um o plagiasse, o deformasse, se lhe opusesse, despedaçando-o a piacere, de acordo com sua possibilidade singular de sustentar esse discurso. Assim, produzir uma prática de mestria que assinale as equivocações como erros é contrária à transmissão da psicanálise. É uma falsa mestria, na psicanálise, corrigir as equivocações como se fossem erros.

REVISTA: Entendo a recusa em te colocares como exemplo, evitando oferecer o que poderia ser tomado como ideal de analista. Mas é que encontramos certa dificuldade na abordagem do tema da formação e transmissão. Não obstante ser um tema recorrente em psicanálise, não encontramos a resposta que esperávamos no que se refere, por exemplo, à disposição dos autores em escrever sobre o assunto. Será que é o tema que provoca isso? Como falar de formação em psicanálise sem cair ou na forma prescritiva ou na idealização do analista? Daí surgiu a proposta de pôr o acento em uma experiência de formação; no caso, a tua. E, para nossa surpresa, seguindo na direção de tua resposta, estaríamos a te demandar, com esta entrevista, justamente aquilo que estávamos preocupados em evitar. Afinal, como falar de formação? ALFREDO: A psicanálise é um sintoma de discurso. É o único discurso, dos quatro, assinalados por Lacan, que não diz absolutamente nada. O que quer dizer que se o psicanalista escuta os outros, ele não tem nada para dizer. Portanto, os psicanalistas não podemos senão ser sintomas de nosso tempo, caixa de ressonância do que não se diz. Se assim não for, não cumprimos nosso papel de analistas. E, como sintomas, somos, então, 124 QUANDO FALA UM ANALISTA

inevitavelmente, retorno do recalcado, o que implica uma insistência em encontrar materializado o ideal . O paradoxo é que, embora trabalhemos para cair desse lugar, que geraria a esperança para todo mundo de encontrar a felicidade total, retornamos, lançados pelas lanças do discurso, depois de algumas voltas, e não muitas, novamente, ao lugar idealizado: “Ah! Pelo menos, há um que sabe, um que não está submetido à regra da castração”. É nesse ponto que cabe um questionamento da idéia entre analistas lacanianos, mais ou menos generalizada, de que o lugar do analista é o lugar feminino. Vocês me pediram para testemunhar de minha experiência. Da minha experiência, não mesmo. Há um retorno incessante a esse lugar do ao menos um, da idealização daquele que nos demanda, pois é necessária à posição do analista a queda deste lugar. O que faz com que o analista sempre passe do masculino ao feminino incessantemente. Pelo mesmo motivo é que se diz que o sexo do analista não importa, ou não é decisivo para o ato analítico. Como se vê, há boas razões para se afirmar isto. O que não exclui que, na transferência imaginária inicial de uma análise, a escolha de um analista anatomicamente feminino ou masculino – pois sobre a sexualidade do analista, espera-se que o analisante saiba o menos possível – possa facilitar essa transferência imaginária ou dificultar as coisas. Explica por que, às vezes, se escolhe, para tal paciente, um analista masculino ou um analista feminino na sua anatomia, na sua aparência, no seu semblante. O que o analista é, na sua posição de morto, ou seja, encarnando o objeto a que, nele, faz resto e repetição, bom, ninguém sabe. Espera-se que o analista não venha a revelá-lo, justamente para poder sustentar o semblante que faz mistério. É por isso que, para a psicanálise, não há ato sexual. Por nenhuma outra razão; não por razões morais. Nós, analistas, não condenamos o ato sexual, nem o exercício da sexualidade nas suas mais diversas manifestações. Agora, não é no cultivo da transferência imaginária que a análise é possível, ou se desdobra, ou acontece. Uma análise irá acontecer, justamente, quando a transferência interroga, interroga o inconsciente do analisante; e é então pela queda da máscara, suporte da transferência inicial, que uma análise pode ter lugar. Portanto, sustentar a idealização do analista como lugar de identificação é obstáculo e resistência para uma análise. Também para a formação do analista, que é conseqüência de uma análise fundamentalmente. Eu diria que o fim da análise de um analista consiste em vir a descobrir que, nesta cena primária do analista – que Calligaris refere, muito acertadamente – ele nunca poderá preencher os três lugares. É no quarto lugar, que é o lugar do morto; nem vê, nem trepa, nem femininamente, nem masculinamente. Fim. 125 VARIAÇÕES

O DESEJO DE REGULAMENTAR1

Mauro Mendes Dias2

á um desejo em jogo no ato de regulamentar. Ele se articula no conjunto Hdos procedimentos encaminhados conforme a lei. Tão mais difícil de ser situado, quanto mais a sujeição às regras se afirma como um ponto ideal de ser atingido. Uma tríplice complexidade está presente na análise desse desejo. Em primeiro lugar, pelo fato de contar com agentes habilidosos no meio jurídico- político, especializados nos tratos das legislações. Contudo, não é a título dessa qualificação que o problema se afirma, mas, sim, pela apropriação que tais agentes realizam, e pelos efeitos promovidos pela combatividade crítica que eles mesmos promovem. Sendo assim, qualquer expressão de contestação acaba tendo que se valer dos mesmos meios jurídico-políticos, caso não queira ser encerrada nas diferentes designações criadas para aqueles que são contrários à legitimidade que a regulamentação encontra na atualidade. Parto, assim, do princípio de que é preciso conferir uma potência a esse discurso, de forma a não ocupar um lugar predeterminado pelo Outro. De maneira a prosseguir na análise do segundo tópico, é necessário introduzir uma interrogação. A partir de que se pode afirmar que existe legitimidade em curso na atualidade, da regulamentação, do desejo de regulamentar? Para responder a essa pergunta é preciso considerar que a regula- mentação hoje não é a mesma de alguns anos atrás. Há a presença de um

1 O texto agora publicado foi apresentado no dia 27 de Julho de 2001, no debate organizado pelo Movimento Psicanalítico da escola A Casa Freudiana e a Seção Espírito Santo CRP-04, na Rede Gazeta, cidade de Vila Velha (ES). A coordenação da mesa ficou a cargo da psicanalista Simoni Hülle, seguida das exposições de Erik Porge, Mauro Mendes Dias, Samyra Assad e Vânia Otero. 2 Psicanalista; Membro fundador da Escola de Psicanálise de Campinas, onde coordena o Grupo de Trabalho sobre as Psicoses, e responsável pelo Seminário sobre Histeria, promovido em con- junto com o Instituto de Psiquiatria de Campinas; Autor de Moda: divina decadência (Ed. Hacker, São Paulo, 1998), Cadernos do seminário: neuroses e depressão (Ed. Instituto de Psiquiatria de Campinas, 2003) e Por causa do pior, em parceria com Dominique Fingermann (Ed. Iluminuras, São Paulo, 2005). E-mail: [email protected] 126126 O DESEJO DE REGULAMENTAR

fenômeno novo, que exige a retomada do problema. Trata-se da regulamen- tação na era da globalização. Esse fenômeno não se restringe a uma condi- ção de internacionalização, de queda das fronteiras jurídicas, políticas e cam- biais, com o objetivo de compartilhar soluções entre as nações. Como alertou o Prof. Milton Santos,

a globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista. Nesse novo sistema de forças, somos levados a pensar que o mundo se encaminha para uma homogeneização, quando, na verdade, trata-se de fazer agir assim a vocação de um padrão único, responsável, de um lado, pela mundialização da técnica, e de outro, pela mundialização da mais valia. Em virtude disso, todos os países, lugares e pessoas passam a se comportar, isto é, a organizar suas ações, como se tal crise fosse a mesma para todos, e como se a receita para afastá-la devesse ser a mesma (Santos, 2000, p. 23). É nesse sentido que a regulamentação se introduz como meio que permitirá garantir uma solução para algo que possa ser considerado, agora, como um problema de todos nós. Ou seja, a globalização introduz esse elemento segundo o qual, de repente, algo que não era sequer considerado como problema, passa a envolver a todos. Vale perguntar: Que agenciamento é esse que homogeneiza um problema e uma solução? Encontramos aqui posto em cena o que Jacques Lacan (1984) intitulou de discurso do capitalista. Deve-se notar que a homogeneização introduz-se como a realização da recusa do sujeito do inconsciente, desfazendo qualquer menção à particularidade. O que passa a interessar, a partir de então, são as diferentes instâncias que se apresentam como garantidoras da solução eficaz ao problema em questão. O meio de agilizar essa eficácia diz respeito à instrumentalização da lei através de um saber fazer, uma legislação própria para atender ao objeto produzido nesse circuito; no caso, a regulamentação. Nesses termos, a regulamentação é o outro nome do objeto produzido pelo discurso capitalista, com o objetivo de suturar todo e qualquer impasse para o sujeito com seus atos. Ela se apresenta como desejável, na medida em que promove um tipo de gozo, segundo o qual o voto de recusa ao inconsciente é renovado: seja através da dissolução da singularidade em uma identidade de classe, seja pela subtração da lei do desejo à condição de código jurídico. O avanço desse tipo de problematização tende a despertar, entre muitos, de saída, uma objeção. Ela se apóia na necessidade de relembrar quanto ao 127 VARIAÇÕES

perigo de uma diminuição drástica da importância das questões reais, que são vividas e sentidas pelo indivíduo na realidade cotidiana. Antes mesmo de nos desviarmos, pelo hábito de cultivar uma prudência asséptica e acrítica, é preciso considerar que a tomada de posição através do inconsciente implica uma distinção. Somos levados, ato contínuo, à terceira interrogação. Como situar a tendência de aderir a movimentos que, tais como o da regulamentação, se valem dos princípios normativos da lei? Curiosamente, encontramos nesse ponto o que na grande maioria das vezes é considerado como crítica avançada. Partimos aqui de uma constatação: a recusa ao inconsciente, própria do discurso capitalista, faz agir uma posição que é solidária do cultivo da anulação do sujeito. Em conformidade a isso, tende-se a promover a idéia de que o apagamento do sujeito contribui para que os tensionamentos próprios do narcisismo desapareçam. Por isso mesmo, o artista, em nossa época, cria e cai no engodo de que ele é capaz de se apagar inteiramente em detrimento da obra que produz. Tal condição, de uma obra sem sujeito, de um autor sem nome próprio, é solidária do apagamento em operação no desejo de regulamentação, no qual o que interessa é a dissolução do sujeito na mercadoria legislante. Equivocamo-nos ao acreditar que a regulamentação das práticas, com sua ênfase nos cânones jurídicos, eliminaria as querelas da vida associativa, assim como garantiria melhor qualidade da atuação profissional. Trata-se, aí, da constituição de um fantasma, de uma promessa de gozo, que nossa época soube implantar no lugar da barra sobre o sujeito do inconsciente, promoven- do uma escrita que desperta admiração: ISO 9002. Na psicanálise, o problema nos chega através de uma carta de Freud a Marx Eitingon (03/04/1928), na qual ele afirma: “Encontro-me na posição de um comandante sem exército” (Pontalis, 1988, p. 136). Essa carta faz eco a outra, escrita um ano antes (22/03/1927), na qual Freud, dirigindo-se ao mesmo interlocutor, expressava sua preocupação quanto à provável impossibilidade da constituição de uma comunidade analítica, caso cada uma das sociedades tivesse plena liberdade de editar suas próprias normas. Essa preocupação teve origem antes do processo movido contra Theodor Reik, que deu origem ao texto sobre Análise leiga, em 1926. Em 1925, A. A. Brill, então presidente da Sociedade de Psicanálise de Nova Iorque,

publicou um artigo em um jornal nova-iorquino para expressar sua desaprovação da análise praticada por não médicos, e, em seguida, anunciou sua intenção de romper com Freud, caso a 128 O DESEJO DE REGULAMENTAR

atitude dos vienenses perante a América não se modificasse (Pontalis, 1988, p. 135). Sabe-se das conseqüências que tal tipo de posição acarretou na psicanálise americana filiada à IPA. A não-aceitação de candidatos que não tivessem formação médica continuou em vigor até há pouco tempo. Essa posição, que se acentua em 1925 em Nova Iorque, é originada através do entendimento precário da significação do leigo para Freud? O leigo não é apenas aquele que não é médico: “Todo analista é leigo, no sentido de que nunca pode se identificar com um saber” (Pontalis, 1988, p. 139). Isto porque a psicanálise “não pode deixar de constituir uma ruptura em relação a qualquer aprendizagem, a qualquer domínio que vise a se apropriar setorialmente da realidade” (id., ibid.). Na história da psicanálise, a regulamentação incidiu sobre a necessidade ilusória de garantir credibilidade à função do analista, uma vez que ele fosse originário de um campo que goza do respeito científico. Da mesma forma, tratava-se de garantir, pela instituição analítica, com seus diferentes trâmites e hierarquia, o não-abandono da análise aos analistas selvagens. Hoje, depois, e por causa de Lacan, temos condições de nos aproximar da significação da frase de Freud, que, no tocante a essa questão, afirma: “Temos necessidade, para chegar a um acordo geral, de uma autoridade de que não dispomos” (Pontalis, 1988, p. 136). A autoridade de Freud não foi suficiente para barrar um movimento de regulamentação promovido por seus próprios discípulos, em nome de preservar a psicanálise. Ela se modalizou em três condições mais expressivas: 1) objeção à entrada de não médicos para a formação; 2) constituição de uma classe de analistas didatas; 3) criação de uma doutrina do ego. Constata-se, nesses três termos, a presença de um elemento comum. Ele se refere à condição de garantia quanto à promoção de efeitos. Nesse sentido, o que se mantém conservado guarda, ao mesmo tempo, a possibilidade de se manter preservado. Seria esperado encontrar aqui os limites próprios à regulamentação, tal como praticada pelos discípulos de Freud. Não deixa de chamar atenção que nessa institucionalização da psicanálise se conserve a presença de uma resistência à mudança. Tanto mais surpreendente quando acompanhamos a posição de Freud, favorável à análise leiga, mantendo-se até o final de sua vida. Se Freud era favorável, e mesmo defensor, a que qualquer pessoa, não apenas médicos, pudesse praticar a psicanálise, desde que se comprometesse com os trâmites dessa experiência, por que os seus discípulos mais fiéis e colaboradores próximos mantiveram uma posição quanto à regulamentação, que ia na direção contrária? 129 VARIAÇÕES

Freud, do cultivo da posição que, sem que ele mesmo soubesse, contribuía para tanto. Sua concepção de cura é solidária da presença de um elemento simbólico, a castração, na qual apóia efeitos decisivos tanto para o homem, quanto para a mulher, em termos da conclusão do tratamento analítico. Portanto, mais além de se deixar levar por uma tendência a culpabilizar um desvio realizado pelos discípulos, tão somente para abordar o que segue indicado, será preciso conectar o desejo de regulamentação à posição de Freud. Que ele fosse contrário a algumas práticas de regulamentação, dentre elas a da não-aceitação de não-médicos, apenas reafirma que a análise dessa questão, hoje, merece ser referida a um desejo do próprio Freud, e não mais a um exagero das regras. Desejo esse que se firmou com o objetivo de preservar e manter viva a experiência da psicanálise. Desejo esse que vai da distribuição de anéis aos discípulos mais fiéis, até à sustentação de um elemento a ser agido pela cura como garantidor da promoção de efeitos decisivos, no que se refere à superação da neurose de transferência. É nesse tipo de desejo, presente em Freud, que gostaria de situar as referências daquilo que, pelos outros, será transformado em regulamentação. Não se trata de cultivar aqui uma genealogia da regulamentação. Trata-se, sim, de situar a posição a ser adotada quanto à regulamentação da psicanálise, conectada agora à concepção de final de análise e ao desejo do psicanalista. A posição quanto à regulamentação da psicanálise atualiza a maneira pela qual o psicanalista faz passar a descoberta freudiana. É nesse sentido que a Proposição de 9 de outubro, de Jacques Lacan (2003), assim como a introdução do significante escola, na psicanálise, ganham valor. Pois cada uma delas é uma forma não somente de introduzir uma experiência institucional diferente na psicanálise, mas também de criar condições para a agilização de um desejo e de uma experiência que não fossem coincidentes, em seus avanços e em suas limitações, aos do pai da psicanálise. Portanto, mais além de adotar atitude respeitosa para com Freud, trata-se de se valer de sua descoberta e de sua experiência, de maneira a relançar o desejo como prática da diferença. Quando, hoje, somos concernidos ao debate, a partir de uma mobilização inicial promovida por uma proposta de religiosos que resolveram se intitular psicanalistas e, ao que parece, legislar sobre essa prática, mais um elemento merece ser levado em consideração. Acaso não fica evidenciada a força que o laço religioso é capaz de promover, a despeito dos argumentos éticos que se possam contrapor? Será preciso mesmo gastar tanto tempo em discussões, para reconhecer que se 130 O DESEJO DE REGULAMENTAR

trata, nesse caso, de charlatanismo? Ou estariam os psicanalistas tão pouco à vontade com suas autorizações, a ponto de não poderem tomar de imediato as atitudes que são necessárias em tais casos? Estamos no momento em que o desejo de regulamentação é reintroduzido. Ele não se refere apenas ao grupo citado, mas também aos psicanalistas. Para alguns, é, enfim, a oportunidade de legitimar juridicamente um desejo regular e uma regulação do desejo ? posição solidária ao discurso capitalista, uma vez que fica garantida, assim, a produção em massa de uma legião de descontentes, ávidos consumidores das promessas de felicidade que os objetos técnicos anunciam. Tentei demonstrar que a regulamentação é solidária de um fantasma das origens, que se conecta ao desejo de Freud em criar condições para garantir a permanência de sua descoberta. Continuamos responsáveis por essa questão. Contudo, de maneira a não repetir as mesmas limitações, será preciso relançar a descoberta freudiana, pela subversão que a experiência da análise é capaz de promover. Experimentar a queda antes de regulamentar sobre a perpetuidade. Isto, porque só é possível comprometer-se com a psicanálise, quando se renuncia primeiramente a um outro objeto, a uma outra linguagem, a um outro amor, cujos limites só descobrimos, chegado o momento, por ter insistido neles apaixonadamente (Pontalis, 1988, p. 140).

Encontramo-nos em um desses momentos especiais, em que se pode optar pela comemoração da perda do que havia sido conservado na origem. É quando o desejo de regulamentar pode ser atravessado pelo momento de concluir.

REFERÊNCIAS: LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967. In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. ______. Do discurso psicanalítico, Bulletin de l’Association freudienne, n. 10, 1984. PONTALIS, J-B. Perder de vista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. SANTOS, M. Por uma globalização. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.

131 VARIAÇÕES FREUD IMPLICA: O ANALISTA NA MÍDIA1

Clara Maria von Hohendorff2

ostaria de retomar, numa volta a mais, a questão que trabalhei no texto GPsicanálise e mídia: uma relação improvável? publicado no Correio da Appoa, em janeiro de 2005. Naquele texto dizia que talvez possamos pensar que uma difusão psicanalítica da psicanálise seria a subversão do Freud ex- plica pelo Freud implica. Salvo exceções, os psicanalistas têm certa implicân- cia com a mídia e estão pouco acostumados a lidar com ela. Constatamos que o que a psicanálise tem a dizer sobre os laços discursivos e seus efeitos subjetivos muitas vezes se perde ou se dilui na pressão dos sessenta segun- dos para a resposta ou no número preestabelecido de linhas de uma coluna. Nesta jornada, é do lado da implicação que eu gostaria de trabalhar esta questão. Ou seja, o compromisso do analista com a enunciação desde onde ele se autoriza a falar. É em função dessa implicação que a apresenta- ção da psicanálise na mídia necessariamente precisa ser feita por um analis- ta com prática clínica e a necessária passagem pelo divã, não pode ser feita por um teórico da psicanálise. Nos primórdios da sua história, quando a psicanálise ainda não estava difundida na cultura, cabia ao próprio Freud apresentá-la a seus pacientes, antes de iniciar o tratamento. Hoje em dia, a difusão da psicanálise passa também pela mídia, com as vantagens e mazelas inerentes a cada meio de comunicação. Para pensarmos a presença do analista na mídia, e suas implicações, é necessário situar as características dos meios de comunicação de massa. Em termos gerais, a comunicação de massa é um tipo especial de comunica- ção, que pode ser qualificada de acordo com a experiência comunicadora e a natureza da audiência, e onde as mensagens são endereçadas a todos e a ninguém em particular. A audiência é heterogênea e anônima, tendo como

1 Texto apresentado na Jornada Interna da APPOA Transmissão e Formação, 14 de maio de 2005. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Regional de Blumenau (FURB). E-mail:[email protected] 132132 FREUD IMPLICA: O ANALISTA...

público pessoas de todas as idades e das mais variadas camadas sociais. Beltrão e Quirino (1986) identificam como funções básicas da comunicação de massa ações como informar, persuadir e divertir. Informar, transmitindo dados para o conhecimento dos indivíduos e propagando a cultura; persua- dir, fornecendo argumentos capazes de mudar a opinião e orientar a conduta do receptor; e divertir, oferecendo recursos para o entretenimento e a distra- ção das pessoas. Os psicanalistas têm sido constantemente solicitados pela mídia para informar, leia-se “explicar”, o comportamento humano nos mais variados con- textos e circunstâncias. Nos meios de comunicação de massa, a presença da psicanálise tem sido expressiva e variada. Contudo, isso não significa que a relação entre a psicanálise e a mídia seja harmoniosa, nem que o discurso psicanalítico esteja sempre presente. Afinal, a psicanálise perde a sua especificidade quando os analistas assumem as posições normativas, pre- ventivas ou prescritivas que a mídia reiteradamente lhes pede. Maria Rita Khel (1996) diz que a mídia solicita aos analistas a legitimação de um “Freud explica” que consolide, com o prestígio recém-conquistado do saber analíti- co, as formas ideológicas do senso comum. No seu livro Videologias, Khel (2004) indica que a passagem do conceito de indústria cultural para o de sociedade do espetáculo talvez não represente uma mudança de paradigma: talvez seja conseqüência da própria expansão da televisão. A televisão é a mais espetacular tradução da industria cultural. Todo evento que se faça representar na linguagem de televisão, inde- pendente de sua complexidade, deve ser traduzido na mesma linguagem, obedecer às mesmas leis. São regras de rapidez e fluidez, destinadas a man- ter a atenção do espectador e impedir que ele mude para o canal concorren- te. São regras que dizem respeito ao aspecto de novidade permanente que todos os acontecimentos devem portar, a mesma novidade que determina o discurso publicitário (Khel, 2004, p. 156). Como podemos perceber, o anonimato e a formatação esterilizante da comunicação de massa vai na contramão da singularidade da experiência psicanalítica. Essa constatação poderia levar a pensar, apressadamente, que o analista deve evitar apresentar-se na mídia. Contudo, na Ata de Fundação da Appoa (1990), encontramos que “A apresentação da psicanálise ao mundo é crucial, antes de mais nada, pelos efeitos possíveis do discurso psicanalítico na pólis, efeitos que constituem as condições sociais da sua prática”. Portanto, não é o caso de fugir das deman- das da mídia; a questão é como lidar com elas. 133 VARIAÇÕES

Barros (1996) trabalha as diferentes formas de transmissão e de difu- são através de três exemplos bastante esclarecedores: a peste, a propagan- da e a psicanálise. A peste se transmite, mas também se difunde. Os epidemiologistas criam curvas de freqüência e mapas para conhecer os pontos de concentra- ção e dispersão da doença. Esse conhecimento não ajuda quem transmite a peste nem quem é contaminado, mas ajuda a dar parâmetros simbólicos den- tro do discurso científico para a peste, além das significações sociais que a peste possa ter. A propaganda é outro caso de difusão. Aqui, o que importa é a repetição exaustiva de uma afirmação ou slogan, até funcionarem como meros signos que determinarão um comportamento quase automático de consumo muito próximo da obediência hipnótica. Este é outro caso da exclusão do sujeito. A psicanálise também se transmite e se difunde, mas exige uma inclu- são do sujeito, a tal ponto que podemos dizer que sua difusão é eticamente dependente da sua transmissão, o que não é o caso nem da epidemia nem da propaganda: “na epidemia a transmissão se dá no real e o saber capaz de abordar a difusão é estranho ao sujeito, e, na propaganda, a transmissão se dá por um mandato super egóico e a difusão tem a estrutura dos fenômenos de massa” (Barros, 1996 p.211). A passagem do individual ao coletivo, produzida pela mídia, remete facilmente à massificação e ao anonimato. Quando o psicanalista está muito imbuido do furor explicativo, que tem como interlocutor o sujeito da consciên- cia, ele se afasta da possibilidade de uma difusão psicanalítica da psicanáli- se. Pois, como diz Jaime Betts,

...difundir a psicanálise é tocar nos problemas cruciais de uma determinada comunidade de linguagem, é tocar nos nós discursivos em que a subjetividade e o social se articulam em torno de um real inapreensível, delimitado por um consenso discursivo mínimo necessário sem o qual irrompe o caos (Betts, 2003, p.88).

Para quem fala o analista, quando está na mídia? Sabemos que na clínica ele se dirige ao sujeito do inconsciente; e na mídia? Em 1974, a televisão francesa fez uma entrevista com Jacques Lacan sobre a psicanálise. Esta entrevista está transcrita no livro Televisão (Lacan, 1993). No início da entrevista Lacan faz um comentário que permite pressu- por que foi sugerido a ele que levasse em conta que estava falando na mídia 134 FREUD IMPLICA: O ANALISTA...

tevê, e que portanto adequasse sua fala ao vasto e heterogêneo público telespectador. Lacan deixa entender que fracassou em “falar para que idiotas me compreendam” (Lacan, 1993, p. 11). Explica esse fracasso como tendo sido bem-sucedido, “Pois não há diferença entre a televisão e o público diante do qual falo há algum tempo, o que chamam de meu seminário” (Lacan, 1993, p.11). Para ele, nos dois casos, trata-se de um olhar.

Um olhar ao qual não me dirijo em nenhum dos dois casos, mas em nome de que, este olhar, falo. Não pensem por isso que falo aos quatro cantos (a esmo). Falo a quem aí se reconhece, aos não idiotas, aos analistas que suponho ser a minha assistência (Lacan, 1993, p.12). A experiência prova, mesmo limitando-se ao fato de um amonto- amento, pois é isso meu seminário, prova que o que eu digo interessa a bem mais gente do que aqueles que, com alguma razão, suponho analistas. Por que então falaria eu aqui em um tom distinto do meu seminário?(Lacan, 1993, p.12).O que chama atenção é que Lacan fala aqui em tom, não em conteúdo.

McLuham (1969), teórico da comunicação, cunhou a frase o “meio é a mensagem” porque, em termos da teoria da comunicação, é o meio que con- figura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas. Como o meio é a mensagem, fazer uma palestra e dar uma entrevista na tevê sobre o mesmo assunto não são a mesma coisa e não têm o mesmo efeito de transmissão e-ou difusão. Como vimos acima, esta não é a posição de Lacan. Por que psicanaliticamente não há diferença de tom? Será que ele fala do mesmo lugar? Como analisante? O sujeito recebe sua mensagem de forma invertida, seria esta questão do olhar que Lacan aponta? Encontramos na Ata de Fundação da Appoa que Lacan estabelece uma relação íntima entre a psicanálise em extensão e em intensão, onde o mais vivo da experiência psicanalítica é o sustentáculo de qualquer apresen- tação da psicanálise ao mundo. Para pensarmos essa questão, vou utilizar uma anedota que foi veiculada na internet com o título: Como a mídia brasilei- ra noticiaria hoje a história de Chapeuzinho Vermelho? Chapeuzinho vermelho é um conto de fadas. Bruno Bettelheim (1980) nos mostrou como os contos de fadas lidam, de forma literária, com os problemas básicos da vida. Ou seja, há algo de universal, nos contos de fadas, que garante a sua perenidade na cultura. Como lembraram Diana e Mário Corso (2005), no seu artigo para Zero Hora sobre Hans Cristian Andersen, “Mesmo que você nunca tenha lido Andersen, você o conhece”. 135 VARIAÇÕES

JORNAL NACIONAL Willian Bonner: “Boa noite. Uma menina chegou a ser devorada por um lobo na noite de ontem...”. (Fátima Bernardes): “.... mas a atuação de um caçador evitou uma tragédia”. FANTÁSTICO Glória Maria: “... que gracinha, gente. Vocês não vão acreditar, mas essa menina linda aqui foi retirada viva da barriga de um lobo, não é mesmo?.” CIDADE ALERTA Datena: “...onde é que a gente vai parar, cadê as autoridades? Cadê as autoridades ?! A menina ia para a casa da avozinha a pé! Não tem transporte público! Não tem transporte público! E foi devorada viva... Um lobo, um lobo safado. Põe na tela !! Porque eu falo mesmo, não tenho medo de lobo, não tenho medo de lobo, não.” FOLHA DE S. PAULO Legenda da foto: “Chapeuzinho, à direita, aperta a mão de seu salvador”. Na matéria, box com um zoólogo explicando os hábitos alimentares dos lobos e um imenso infográfico mostrando como Chapéuzinho foi devorada e depois salva pelo lenhador. O ESTADO DE S. PAULO Lobo que devorou Chapéuzinho seria filiado ao PT ZERO HORA Avó de Chapeuzinho nasceu no RS VEJA Chapeuzinho exclusivo: “Acho que não foi tão perigoso assim”. ISTO É Gravações revelam que lobo foi assessor de influente político CLÁUDIA “Como chegar à casa da vovozinha sem se deixar enganar pelos lobos no caminho”. NOVA Dez maneiras de levar um lobo à loucura na cama CARAS (Ensaio fotográfico com Chapéuzinho na semana seguinte) Na banheira de hidromassagem, Chapeuzinho fala a CARAS: “Até ser devorada, eu não dava valor para muitas coisas da vida. Hoje sou outra pessoa” 136 FREUD IMPLICA: O ANALISTA...

PLAYBOY (Ensaio fotográfico no mês seguinte) Veja o que só o lobo viu G MAGAZINE (Ensaio fotográfico com lenhador) Lenhador mostra o machado Claro que esta piadinha da internet, com o conto do Chapeuzinho Vermelho, visa brincar com a linha editorial destes veículos de comunicação, mas o que me interessa é mostrar que na mídia, mais do que o fato, talvez o que importe seja a versão. Será que a fala do analista, na mídia, seria apenas uma versão a mais entre tantas outras? Pode acontecer que a fala do analista seja apenas uma informação a mais. Fico pensando nas mesas-redondas que são compostas por um coquetel de especialistas. Ana Costa em conversa informal sobre este tema dizia que “a mídia, através da pergunta, já estabelece o lugar da respos- ta”. Lembro de uma ocasião em que fui perguntada até que idade era normal uma criança fazer xixi na cama. Na formatação da pergunta o que importa é que seja dado um número. Na sociedade do espetáculo, a informação passou a ter o caráter de mercadoria (Khel, 2004). Mas quando o analista se implica, quando, na mídia, o analista consegue intervir sobre o discurso do senso-comum, fazendo sur- gir um estranhamento capaz de, como na clínica, demover as certezas tão caras ao neurótico, o leitor-telespectador poderá encontrar uma brecha, um enigma que o leve construir sua própria versão. Nisso talvez possamos pen- sar numa semelhança com o conto de fadas em relação a seus efeitos.

Ouvir um conto de fadas e incorporar as imagens que ele apresenta pode ser comparado a espalhar sementes, onde só algumas ficarão implantadas na mente da criança. Algumas ficarão trabalhando na sua mente de imediato; outras estimularão processos no seu inconsciente. Outras ainda precisarão descansar muito tempo até a mente da criança alcançar um estado adequado para sua germinação, e muitas não criarão raízes (Bettelheim, 1980, p.109).

Segundo Bettelheim (1980), não servirá de nada aproximar-se da nar- rativa dos contos de fadas com intenções didáticas. No conto de fadas, a compreensão do narrador sobre os vários níveis de significação da estória facilita à criança extrair pistas dessas estórias, para entender melhor a si pró- pria. Também na difusão da psicanálise é necessário que o analista esteja implicado, como diz Jaime Betts,

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o mais vivo da experiência psicanalítica se transmite no ensino e na difusão quando a fala de quem transmite encontra um verda- deiro interlocutor, isto, é quando o passe do mais vivo da experi- ência analítica de quem fala encontra no outro uma escuta que interroga a ambos no aprés-coup, produzindo efeitos de divisão subjetiva ( Betts, 2003 p. 89).

Talvez na mídia seja isto que o analista possa fazer, apontar, valorizar a divisão subjetiva para além da explicação e da informação. Numa das dis- cussões de preparação desta jornada, a psicanalista Maria Ângela Brasil lem- brava que na mídia, seja qual for o assunto em pauta, o analista pode: apon- tar a singularidade apesar da massificação, apontar a existência de um cam- po de saber que pode dar conta de um sofrimento; desmistificar que haja uma verdade única e absoluta; valorizar, legitimar a investigação. A mídia tem uma dinâmica própria de funcionamento que merece ser um pouco mais conhecida pelos analistas. A mídia almeja a conformidade, o slogan, pede a palavra total, a fala congelada, como no exemplo da pergunta: até que idade é normal uma criança fazer xixi na cama? E isso com 60 segun- dos para responder! A mídia toma o discurso da ciência ou, melhor, de alguns cientistas, como uma ideologia. Vide as reportagens do Fantástico, que recentemente apresentou uma série sobre o instinto humano. Ou mesmo todo o discurso sobre o estresse, que virou um slogan, sinônimo de sobrecarga. A tentação que a mídia oferece, através das explicações, é a ausência de enigma, é a facilitação que poupa o sujeito de ter que se haver com o seu desejo e cons- truir a própria versão para o seu sofrimento. Quando o analista aceita apresentar-se na mídia, é importante que ele tenha algum conhecimento da dinâmica dos meios de comunicação de mas- sa, ou seja, que conheça as regras desse jogo, não para submeter-se a ele, mas para poder fazer melhor uso desse espaço de difusão. Afinal, guardadas as proporções, no consultório os pedidos que recebemos são os mesmos que a mídia nos faz, mas a dinâmica do jogo é diferente, já que no consultório acolhemos, mas não respondemos à demanda. Terminando, mas não concluindo, penso que a continuidade do trabalho em torno desta questão poderia ser a interrogação dos efeitos que podemos esperar da difusão da psicanálise, ou seja, que tipo de demanda a presença do psicanalista na mídia produz nas pessoas? E qual o desejo, qual a sedução em jogo para os analistas, entre os quais me incluo, quando nos expomos na mídia? O título provisório seria Quando o analista não se implica, ele complica. 138 FREUD IMPLICA: O ANALISTA...

REFERÊNCIAS: ASSOCIAÇÂO PSICANALÌTICA DE PORTO ALEGRE. Ata de Fundação. Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, v. 1, n. 1, mar. 1990. BARROS, Romildo do Rêgo. Ética: a psicanálise e sua transmissão. In: FRANÇA, Maria Inês (org.). Ética, psicanálise e sua transmissão. Petrópolis: Vozes,1996. BELTRÃO, Luiz; QUIRINO, Newton de Oliveira O. Subsídios para uma teoria da comu- nicação de massa. 2. ed. São Paulo: Summus, 1986. BETTS, Jaime. A direção da transmissão em psicanálise passes e impasses na formação do analista. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n. 25, 2003. BETTELHEIM, Bruno A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. BUCCI, Eugênio; KHEL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004 (Estado de sítio). CORSO,Diana; CORSO,Mario. Andersen, a tradição reescrita com olhos infantis. Zero Hora, Porto Alegre, 2 abr. 2005. Caderno Cultura. HOHENDORFF; Clara Maria von. Psicanálise e mídia: uma relação improvável? Corrreio da APPOA, n. 132 Jan.2005, p. 20. KEHL, Maria Rita. Psicanálise, ética e política. In: FRANÇA, Maria Inês (org.). Ética, psicanálise e sua transmissão . Petrópolis: Vozes,1996. LACAN, Jacques. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. MCLUHAN, Marshal. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1969.

139 VARIAÇÕES PRODUÇÕES EM PSICANÁLISE E SEUS IMPASSES

Ana Costa1

ste trabalho tem por objetivo acompanhar alguns impasses que se Eproduzem entre o exercício e a transmissão da clínica psicanalítica, levando em conta o campo da escrita. Partiremos da seguinte premissa: denominamos escrita tanto o que se pratica, como as construções que se fazem dessa prática para transmissão à comunidade de pares, e também para a formação de psicanalistas. A designação de escrita toma, a partir da psicanálise lacaniana, sentido mais amplo do que simplesmente uma indicação de produções textuais. Ela diz respeito à inscrição de um saber que primeiramente se constitui como exercício da repetição – o saber inconsciente. A repetição gera, pela sua insistência, um sentido de fracasso na inscrição desse saber. No entanto, a partir da análise pessoal, esse saber pode ser inscrito, servindo de motor à produção. Assim, seguindo o modelo do trabalho do sonho, trata-se da busca da escrita do inconsciente. Uma escrita que – parafraseando Lacan – não cessa de não se escrever, sendo o fundamento de um deslizamento infinito. Nesta característica centra-se toda dificuldade de sua inscrição, ou seja, de sua apreensão e reconhecimento. Pelas colocações acima podemos diferenciar dois termos: escrita e inscrição. Esses termos passaram a fazer parte das proposições da psicanálise, sem que seja necessário justificá-los. No entanto, como são termos que em diferentes códigos culturais adquirem sentidos diversos, vale a pena explicitá- los. Freud, quando estabelece o campo das formações do inconsciente, trata o sonho como um rébus, ou seja, aproxima-o da escrita pictográfica, tal qual a escrita hieroglífica, ou mesmo a chinesa. Deste modo, as formações do inconsciente não têm o mesmo estatuto que outros códigos de linguagem, não sendo completamente assimiladas pelos mesmos. Nesse sentido, seu retorno como repetição pode ser colocado ao lado da busca de inscrição no código que é compartilhado. Podemos afirmar que Freud toma essa escrita como uma manifestação – na língua – da gramática pulsional, ou seja, do

1 Psicanalista, membro da APPOA, autora de diversos artigos e livros, entre eles, Tatuagens e Marcas Corporais, pela Casa do Psicólogo, 2003. E-mail: [email protected] 140140 PRODUÇÕES EM PSICANÁLISE...

encontro discurso-pulsão. Por sua vez, a inscrição diz respeito às identificações: àquilo que estabelece o valor de circulação fálica. Seguindo-se na questão inicial, pode-se afirmar que não há solução de continuidade entre a prática da clínica e a prática da transmissão da psicanálise, mesmo que uma esteja sustentada pela outra e dela derive. No exercício da clínica estamos submetidos a determinantes que nem sempre são os que estão em causa quando se fala ou se escreve sobre a mesma. Nesse sentido, como apresentar uma clínica consistente com o que se pratica? Quais fundamentos estão colocados nas diferentes apresentações? Esses impasses sempre estiveram em causa, desde seu início, para aqueles que se dedicaram a esse campo. Tentaremos explicitá-los, acompanhando brevemente suas influências discursivas e alguns de seus desdobramentos.

HERANÇAS A inserção social da clínica psicanalítica é acompanhada de referênci- as que a excedem e que dizem respeito aos discursos que vão influenciá-la, ou bem a determinando, ou bem constituindo suas fronteiras com outros cam- pos, com os quais tem diálogo. Nesse sentido, essa inserção também padece dessa dupla referência escrita-inscrição. Os discursos que a determinam, pres- crevendo seus limites na referência a alguns valores, constituem a força de inércia, da qual é preciso extrair a experiência do inconsciente. Essa inércia se coloca do lado da resposta que se espera, que está contida no próprio discurso. No que diz respeito a este último, destacaremos suas condições de objetalização. Ou seja, não tanto aquilo de que o discurso trata, mas principal- mente o lugar que produz a alienação ao mesmo. Para que se explicite um ponto importante no que se refere ao motor dessa alienação, é preciso consi- derar sua referência temporal. De um lado, ele lida com uma temporalidade da antecipação, ou seja, interpela o sujeito na adequação a uma resposta anterior a qualquer experiência. E do outro lado, o resultante da experiência – no caso da psicanálise, a experiência do inconsciente em análise – cuja refe- rência temporal é o a posteriori. A transmissão da psicanálise precisa dar conta da inscrição da experiência do inconsciente no lugar em que o discurso social lida com as condições de alienação, ou, dizendo de outra maneira, com uma medida comum de gozo (determinado pelo que é socialmente prescrito como valor). Além disso, não se trata apenas de comunicar a experiência voltando a produzi- la, o que seria impossível, visto necessitar das condições peculiares do setting 141 VARIAÇÕES

analítico. Mas como compartilhar algo que provoca ruptura no nosso sentido corriqueiro de comunicação? Acompanhamos esses impasses em muitas produções do campo psicanalítico, seja na publicação de textos, seja no ensino em diferentes lugares. Por vezes, essas produções carregam a marca da necessidade de reconhecimento num circuito discursivo, por vezes tomam o caminho da exclusão como medida de proteção. Dentro das descrições da prática clínica encontraremos algumas fronteiras que influenciam a apresentação da psicanálise, na medida em que situam proximidades de experiências. Algumas dessas descrições vêm do desenvolvimento da psiquiatria; outras, dos desenvolvimentos de campos com os quais a psicanálise buscou diálogo. O limite de um artigo permitirá fazer somente uma breve apresentação da questão, que merecerá futuros desenvolvimentos. Pelo momento, destacaremos dois elementos que surgem com insistência no ensino da psicanálise, apesar de não definirem estritamente referência ao inconsciente: - a questão do diagnóstico que obedece a uma nosografia, herança da prática psiquiátrica; - a questão de descrições que se inserem num determinismo estrutural. Pode-se reconhecer nesses dois elementos uma derivação da tradição de descrições classificatórias, na qual a pertença a uma classe institui a supo- sição de uma “natureza” que excede a experiência. Esse tipo de inclinação - ainda vigente em muitos casos - institui uma exterioridade ao sujeito da expe- riência, na medida em que uma classe somente se organiza a partir de um classificador externo ao conjunto. É essa busca por classificar que a prática da clínica psicanalítica encontra desde sua fundação. Ou seja, a descrição e o exercício da prática clínica não estão isentos de uma busca classificatória. Classificar mantém a ilusão de uma condição intrínseca ao objeto classifica- do, ilusão esta responsável pela clivagem da experiência do sujeito classifica- dor; no caso, o psicanalista, que permanece à distância de sua descrição. Nas questões colocadas até aqui, dois termos merecem desenvolvi- mento maior: medida comum de gozo e intenção classificatória. Os dois fa- zem parte do que se convencionou denominar de discurso: uma organização que excede as individualidades e que se apresenta interpelando antecipada- mente as condições da experiência. Em relação a essa questão temos dife- rentes construções, que, em alguma medida, se entrelaçam. Dentre elas des- taca-se a análise de Michel Foucault, que influenciou também a análise de Lacan a propósito dos discursos. De Foucault nos interessa o que ele propõe como desdobramento do poder, na passagem do poder soberano para a 142 PRODUÇÕES EM PSICANÁLISE...

microfísica do poder. Ou seja, a passagem da encarnação do poder no rei, para um poder disciplinar, que intervém diretamente no corpo, nas funções corporais. É nessa passagem, sendo diretamente responsável por sua con- solidação, que surge a clínica psiquiátrica. Seguindo a análise de Foucault (1979), o discurso psiquiátrico situa a loucura como desmedida, e suas pres- crições buscavam contê-la e discipliná-la. Mais ainda: instituindo-se a partir da descentralização do poder soberano, e submetida a um poder disciplinar, este se dispersou entre seus executores menores, sendo, por essa razão, anônimo. Em tal contexto, o discurso psiquiátrico surge como um represen- tante desse poder disciplinar. Também nesse sentido parece-nos fundamen- tal pensar no surgimento da nosografia como uma intenção classificatória, intenção, esta, completamente compatível com o poder disciplinar. A classificação constitui-se na derivação de um sentido que temos de, ao nomear, diferenciar identidades. Para que isso tenha efetividade, ela obe- dece a um princípio de exclusão. Aquele que classifica posiciona-se fora da coisa classificada. O princípio da exclusão traz grandes dificuldades ao aco- lhimento de uma experiência singular. Em termos da psicanálise o terceiro excluído (esse que Freud situou na cena primária) – do qual podemos derivar o princípio de exclusão e constituição de classes – é a posição da produção mesma do fantasma. Logo, de algo que provoca repetição e gozo. As descrições clínicas mais abrangentes, com as quais ainda convive- mos, propõem três organizações psicopatológicas e têm aceitação que ante- cede a Freud. Os diagnósticos de neurose, psicose e perversão, enquanto propostas genéricas, são amplamente aceitos ainda hoje, apesar de ganha- rem especificidades de detalhes em cada corrente. Suas proposições deri- vam das preocupações com a nosografia psiquiátrica e, nesse sentido, são influenciadas pela intenção classificatória, implicando uma determinada posi- ção de exterioridade na relação entre o pesquisador e seu objeto. Para que se tenha dimensão clínica dessa posição de exterioridade lan- çaremos mão da noção de clivagem do eu, descrita por Freud. Ela se insere na relação do sujeito com a descrição de uma realidade. Esse ponto é importante na medida em que essa relação (eu-realidade) implicaria a tendência unificadora do eu. Nos casos de clivagem, Freud propõe dois caminhos: ou bem a manuten- ção concomitante de duas posições mutuamente excludentes (no caso da recu- sa da morte de alguém, por exemplo), ou bem o processo de constituição do fetiche (aceitação e recusa da castração a um só tempo). Em que interessam estas colocações na situação de que estamos tra- tando, do psicanalista com sua descrição? O que nos autoriza a escrever 143 VARIAÇÕES

sobre isso aqui se coloca na constituição mesma da matriz da experiência psicanalítica: a análise pessoal daquele que se torna psicanalista. As descri- ções que se inscrevem nesse campo implicam um trabalho a partir da passa- gem pela experiência do inconsciente. Assim, o analista que se coloca na posição de exterioridade, como no exame de um objeto que não lhe diria respeito, somente estará nessa posição mediante uma clivagem, na medida em que precisaria recusar os efeitos de seu próprio percurso pelo trabalho do inconsciente. Esses efeitos dizem respeito principalmente ao seu trânsito pela posição de objeto no seu próprio fantasma. É por relação a essa questão específica que a separação pesquisador-objeto pesquisado pode ser deriva- da da primeira clivagem sujeito-objeto na montagem fantasmática. Conside- rando essas influências e derivações, nas descrições da clínica psicanalítica, cabe levantar algumas indagações. A primeira delas é de se haveria uma nosografia possível para a descrição da clínica psicanalítica, ou se a nosografia sempre implica uma classificação. O outro elemento que destacamos – a medida comum de gozo – também faz parte da organização do discurso. Já mencionamos que ela se fundamenta numa determinada posição do objeto que esse discurso recorta. Essa posição do objeto no discurso situa a condição de alienação ao mesmo. O tema da inscrição no campo dos saberes, o qual lida com o registro do valor fálico social, deixa-nos outra interrogação: a transmissão da psicanálise transpõe ou não a busca de uma medida comum, própria às condições de alienação?

RUPTURAS, CONTINUIDADES, DERIVAÇÕES Tanto Freud quanto Lacan produziram avanços e rupturas em relação aos pressupostos que os antecederam. Com respeito a Freud, temos o rom- pimento com toda uma tradição médica, da qual ele foi produto, bem como com os limites do racionalismo iluminista. Ciente de sua inovação, Freud pre- cisou testemunhar os invariantes que acompanhava na clínica, por meio de casos modelares. Reconheceu na histeria uma organização peculiar, que marca o enlace entre corpo e fala, rompendo com o saber vigente, que insti- tuía a classificação. Não é somente que, por meio da histérica, Freud desco- bre um novo campo que denomina psicanálise. É que, no momento em que ele reconheceu que o saber do psicanalista – por sua referência a um saber inconsciente – não estava determinado a priori, ele rompe radicalmente com a tradicional posição do investigador em relação ao saber. Assim, a clínica psicanalítica torna-se a possibilidade de dar expressão a um saber inconsci- ente construído na transferência. A particularidade do mesmo é colocar em 144 PRODUÇÕES EM PSICANÁLISE...

causa uma hiância – esse saber inconsciente - que não estava antecipada no discurso. Desta maneira, a clínica freudiana constituiu-se numa transposição da clínica médica. Sua proposta permitiu afirmar-se o que se trata na psicanáli- se: uma experiência singular de trânsito pelo sintoma e análise das forma- ções do inconsciente. No entanto, para Freud e ainda no nosso ensino, esses referentes, de alguma maneira, precisam do suporte no caso clínico. Sabe-se da fobia pela análise do pequeno Hans; da histeria pela análise de Dora; da neurose obsessiva, no Homem dos ratos, e assim por diante. Colocada essa questão, cabe a pergunta: o que está em causa na pro- dução do caso clínico? A peculiaridade dessa produção na psicanálise mere- ce ser destacada. A construção do caso não está voltada a transmitir um modelo a ser seguido. Pelo contrário, resulta da tentativa freudiana de trans- mitir o que resultou de impasses nas suas conduções e acompanhamentos de análises. O que significa, entre outras coisas, que a transmissão da psica- nálise implica a necessidade de o psicanalista tirar conseqüências de sua inclusão na transferência. Assim, retomando a referência à questão da nosografia, podemos dizer que esta não se situa como intenção classificatória. Ela faz parte do suporte no caso clínico: uma construção resultante da monta- gem da transferência. Podemos afirmar, então, que uma intenção diagnóstica – em psicanálise – sustenta-se a posteriori, a partir do estabelecimento da neurose de transferência. Esta colocação freudiana implica o desejo do ana- lista. Com Lacan, produz-se uma série de rupturas, das quais o exercício da clínica ainda está tirando conseqüências. Assim como Freud, Lacan também foi buscar em diferentes campos a constituição de um saber que lhe trouxes- se o que ele pensou como uma extraterritorialidade, necessária ao exercício da psicanálise. Desde o início, Lacan interessou-se por indagar a posição do analista, implicando-o totalmente no saber produzido. Foi tomando-se em relação aos discursos de seu tempo e lugar que Lacan trouxe uma série de abordagens de outras áreas para o campo da psicanálise. A noção de estrutura é uma delas. Como se sabe, os principais campos de diálogo situaram-se na antropologia e na lingüística. Seu respeito ao trabalho de Lévi-Strauss e as influências que sofreu de seu pensamento são bastante conhecidas. Também o campo da lingüística estrutural vai interessá-lo sobremaneira. No seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan chega a propor que seu conceito de inconsciente diferencia-se do in- 145 VARIAÇÕES

consciente freudiano em função do advento da lingüística. Essa afirmação é suficientemente forte, na medida em que não é uma simples diferença de conceitos. Inconsciente freudiano diferente de inconsciente lacaniano implica dizer que, pela mudança nas posições do discurso, é de um outro Real que se trata. Tentemos dialogar com essa apresentação, sem tomá-la como um mo- delo ideal, como se fosse finalmente a verdadeira clínica. Se não reduzirmos as colocações de Lacan a uma auto-referência, constataremos que o advento da noção de estrutura reorienta a clássica noção de nosografia. Assim, a clínica psicanalítica acaba integrando na sua apresentação esse conceito e traduz as noções da nosografia para as estruturas clínicas. O quê esta última noção de estrutura acrescenta, ou em quê mesmo se diferencia da nosografia? Em primeiro lugar, como já indicamos, é preciso considerar que a clínica resulta de certa conjugação de invariantes, que são operadas a partir das condições de alienação ao discurso determinante do código cultural. Assim, sua construção depende de uma extraterritorialidade. Essa extraterritorialidade é constituída por certo enlace – que vem no lugar do inconsciente – entre o que não se sabe e as propostas culturais de supressão do insabido. Assim, hoje é impossível escutar uma neurose histérica que não coloque em causa a cirurgia plástica, ou qualquer outra promessa cultural de mascarada. Ou mesmo uma neurose obsessiva, sem pensar na relação às diferentes formas de anulação e tabu do contato dos circuitos de internet, por exemplo. Dentro dessas colocações, chegamos a uma definição de estrutura completamente avessa ao que é próprio desse conceito. Diria melhor que o que está em causa na clínica psicanalítica pode ser definido como estruturante, conseqüência que podemos tirar da proposta de Lacan, no seminário em que trabalha, a partir da produção de Joyce, com o conceito de sinthome. Acom- panhemos rapidamente diferentes tempos e orientações em Lacan. Subli- nharemos um primeiro, no qual o simbólico é responsável por uma estrutura, que insiste como repetição na cadeia simbólica. São muitos os textos repre- sentativos, destacando-se o seminário sobre a carta roubada. Desse período assinalamos ainda o modelo dos três tempos do Édipo, que tanto orientou abordagens clínicas. No seminário sobre as formações do inconsciente pode- se pensar na estrutura como a articulação entre demanda e desejo. É assim que a histérica precisa manter um desejo insatisfeito, e o obsessivo, um dese- jo impossível. O principal articulador da estrutura é a referência ao falo, en- quanto metáfora do desejo da mãe, que dá significação ao lugar de onde o sujeito está alienado à demanda. 146 PRODUÇÕES EM PSICANÁLISE...

Um outro movimento bem específico diz respeito à estrutura a partir do quarto nó. Ao fundamentar o conceito de estrutura num caso literário (Joyce), Lacan sai do que se tem como modelo de “clínica” clássica. Esse suposto nos lega o fundamento da clínica na psicose – na relação ao recalque originário. Nesse sentido, pode-se pensar que Lacan esvazia as “identidades” clínicas, tomando por suporte estruturante aquilo que faz laço na produção cultural, mediado pela transferência. A apresentação deste texto, percorrendo os diferentes desdobramentos das abordagens freudiana e lacaniana da clínica psicanalítica, traz o limite da brevidade de um artigo. A conclusão do mesmo só pode ser insuficiente, demandando trabalho mais abrangente e aprofundado. No entanto, pensamos ter situado o impasse como fazendo parte do trabalho mesmo (como o trabalho das formações do inconsciente) constituinte da transmissão da psicanálise. Nesse trabalho estamos referidos à força da inércia, que nos oferece a dupla ilusão de controle antecipado do impossível: de um lado, a prescrição classificatória, que constitui as determinações universalizantes do discurso social; de outro, a interpelação a uma medida comum de gozo. A construção, na transferência, de uma saída singular a esse impasse é o que constitui o cerne da clínica psicanalítica.

REFERÊNCIAS: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. _____.O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. FREUD, S. (1938) Escisión del “yo” en el processo de defensa. In: ___Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1972 LACAN. J. O seminário. Livro 20. Mais, ainda... Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. ______O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. ______O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. ______O seminário. Livro 23. Le sinthome (inédito) ______Variantes do tratamento-padrão. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

147 NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

I APRECIAÇÃO PELO CONSELHO EDITORIAL

Os textos enviados para publicação serão apreciados pela comissão editorial da Revista e consultores ad hoc, quando se fizer necessário. Os autores serão notificados da aceitação ou não dos textos. Caso sejam necessárias modificações, o autor será comunicado e encarregado de providenciá-las, devolvendo o texto no prazo estipulado na ocasião. Aprovado o artigo, o mesmo deverá ser enviado para a APPOA, aos cuidados da Revista, em disquete ou por e-mail.

II DIREITOS AUTORAIS

A aprovação dos textos implica a permissão de publicação, sem ônus, nesta Revista. O autor continuará a deter os direitos autorais para futuras publicações.

III APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS

Os textos devem ser apresentados contendo: – Folha de rosto: título, nome e créditos do autor (em nota de rodapé), contendo títulos acadêmicos, publicações de livros, formação profissional, in- serção institucional, e-mail; palavras-chaves (de 3 a 5 substantivos separa- dos por vírgula); abstract (versão em inglês do resumo); keywords (versão em inglês das palavras-chaves). – Corpo do texto: deverá conter título e ter no máximo 15 laudas (70 toques/ 25 linhas); usar itálico para as palavras e/ou expressões em destaque e para os títulos de obras referidas. – Notas de rodapé: as notas, inclusive as referentes ao título e aos créditos do autor, serão indicadas por algarismos arábicos ao longo do texto.

IV REFERÊNCIAS E CITAÇÕES

No corpo do texto, a referência a autores deverá ser feita somente men- cionando o sobrenome (em caixa baixa), acrescido do ano da obra. No caso de autores cujo ano do texto é relevante, colocá-lo antes do ano da edição utilizada. Ex: Freud ([1914] 1981). As citações textuais serão indicadas pelo uso de aspas duplas, acres- cidas dos seguintes dados, entre parênteses: autor, ano da edição, página.

V REFERÊNCIAS

Lista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em or- dem alfabética pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo: OBRA NA TOTALIDADE BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gra- mática inconsciente. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. LACAN, Jacques. O seminário, Livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1999.

PARTE DE OBRA CALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et al. O laço conjugal. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994. p. 11-24. CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O de- sejo. São Paulo: Comp. das Letras, 1993. p. 21-9. FREUD, Sigmund. El “Moises” de Miguel Angel [1914]. In: ______. Obras completas. 4. ed. Madrid: Bibl. Nueva, 1981. v. 2.

ARTIGO DE PERIÓDICO CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? Cadernos da APPOA, Porto Alegre, n. 71, p. 12-20, ago. 1999. HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 14, p. 43-53, mar. 1998.

ARTIGO DE JORNAL CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista com Maria Rita Kehl. Zero Hora, Porto Alegre, 5 dez. 1998. Caderno Cultura, p. 4-5.

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO KARAM, Henriete. Sensorialidade e liminaridade em “Ensaio sobre a cegueira”, de J. Saramago. 2003. 179 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária). Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Gran- de do Sul, Porto Alegre. 2003.

TESE DE DOUTORADO SETTINERI, Francisco Franke. Quando falar é tratar: o funcionamento da linguagem nas intervenções do psicanalista. 2001. 144 f. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada). Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Cató- lica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2001.

DOCUMENTO`ELETRÔNICO VALENTE, Rubens. Governo reforça controle de psicocirurgias. Dispo- nível em: . Aces- so em: 25 fev. 2003. partir de 5 linhas, deverão aparecer em parágrafo recuado e separado, acrescidas do (autor, ano da edição, página). ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA Comissão do Percurso de Escola DE PORTO ALEGRE Coordenação: Jaime Betts e Carmen Backes Gerson Smiech Pinho, Liz Nunes Ramos, Simo- MESA DIRETIVA ne Moschen Rickes e Valéria Machado Rilho. (GESTÃO 2005-2006) Presidência: Lucia Serrano Pereira 1a Vice-Presidência: Ana Maria Medeiros da Comissão de Eventos Costa Coordenação: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz 2a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees e Maria Elisabeth Tubino. 1a Secretária: Marieta Madeira Rodrigues Grasiela Kraemer, Ligia Gomes Víctora, Marcia 2a Secretária: Ana Laura Giongo Zechin, Otávio Augusto Winck Nunes e Regina 1a Tesoureira: Maria Lúcia Müller Stein de Souza Silva. 2a Tesoureira: Ester Trevisan Serviço de Atendimento Clínico Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ângela Lângaro Coordenação: Liz Nunes Ramos e Carlos Becker, Carmen Backes, Edson Luiz André de Henrique Kessler Sousa, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ângela Lângaro Víctora, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Becker, Francisco Settineri, Glaucia Escalier Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Beatriz de Braga, Grasiela Kraemer, Maria Cristina Petrucci Alencastro Kallfelz, Maria Cristina Poli, Nilson Solé, Otavio Augusto Winck Nunes, Sandra Sibemberg, Otávio Augusto Winck Nunes, Torossian e Siloé Rey. Robson de Freitas Pereira e Siloé Rey. Comissão de Publicações Conselho Fiscal: Jaime Betts, Liliane Seide Coordenação: Robson de Freitas Pereira Froemming e Liz Nunes Ramos Comissão de Aperiódicos Coordenação: Ieda Prates da Silva e Lucy COMISSÕES Linhares da Fontoura Comissão de Acolhimento Charles Lang, Clara von Hohendorff, Elaine R. Diana Lichtenstein Corso, Lucia Serrano Perei- Silveira, Liz Nunes Ramos, Roséli Cabistani, ra, Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Rossana Stella Oliva e Valéria Machado Rilho. Auxiliadora Pastor Sudbrack e Mario Corso. Comissão do Correio Comissão de Analistas-Membros Coordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Coordenação: Maria Auxiliadora Pastor Helena de Menezes Ribeiro Sudbrack e Maria Ângela C.Brasil Ana Laura Giongo, Fernanda Breda, Henriete Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Medeiros Karam, Liz Nunes Ramos, Maria Cristina Poli, da Costa, Lucia Serrano Pereira e Robson de Maria Lúcia Müller Stein, Robson de Freitas Pe- Freitas Pereira. reira, Rosane Palacci Santos e Norton da Rosa Comissão de Biblioteca Júnior Coordenação: Maria Auxiliadora Pastor Homepage: Clara Von Hohendorff, Manuela Sudbrack Lanius e Marta Pedó Gladys Wechsler Carnos Comissão da Revista Comissão de Ensino Coordenação:Otávio Augusto Winck Nunes e Va- Coordenação: Ana Maria Medeiros da Costa léria Machado Rilho Alfredo Néstor Jerusalinsky, Carmen Backes, Inajara Erthal Amaral, Lúcia Alves Mees, Marieta Eda E.Tavares, Edson Sousa, Jaime Betts, Madeira Rodrigues e Siloé Rey. Liliane Seide Froemming, Ligia Gomes Víctora, Comissão de Relações Interinstitucionais Liz Nunes Ramos, Lucia Serrano Pereira, Maria Coordenação: Marta Pedó Ângela Cardaci Brasil, Maria Auxiliadora Pastor Robson de Freitas Pereira, Edson Luiz André de Sudbrack, Mário Corso, Robson de Freitas Pe- Sousa e Maria Cristina Poli reira e Rosane Monteiro Ramalho. Revista da APPOA e Correio da APPOA conecte-se com os temas e eventos mais atuais em Psicanálise Para receber a Revista e o Correio da APPOA, copie e preencha o cupom abaixo e remeta-o para*:

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