ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE n. 49, jul./dez. 2015

CORPO: ficção, saber, verdade VOLUME 1

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE Porto Alegre

Revista 49.indd 1 10/05/2017 14:44:47 ISSN 1516-9162 REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

EXPEDIENTE Publicação Interna n. 49, jul./dez. 2015

Título deste número: Corpo: ficção, saber, verdade. Vol. 1

Editores: Deborah Nagel Pinho e Marisa Terezinha Garcia de Oliveira

Comissão Editorial: Clarice Sampaio Roberto, Cristian Giles, Deborah Nagel Pinho, Glaucia Escalier Braga, Joana Horst, Maria Ângela Bulhões, Marisa Terezinha Garcia de Oliveira e Otávio Augusto Winck Nunes

Colaboradores deste número: Comissão de Aperiódicos, Marta Pedó, Maria Lucia M. Stein e Luiza Bulhões Olmedo

Editoração: Jaqueline Maciel Nascente

Consultoria linguística: Dino del Pino

Capa: Clóvis Borba

Linha Editorial: A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.

Associação Psicanalítica de Porto Alegre Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS Fone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922 E-mail: [email protected] - Home-page: www.appoa.com.br

R454

Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação Psicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, -

Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU 159.964.2(05) CDD 616.891.7 Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837 Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psicologia (http:// www.bvs-psi.org.br/) Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br Impressa em março 2017. Tiragem 500 exemplares.

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Revista 49.indd 3 10/05/2017 14:44:47 Revista 49.indd 4 10/05/2017 14:44:47 SUMÁRIO

EDITORIAL ...... 07 Corpos inanimados: impostura e laço social TEXTOS Inanimate bodies: imposture and social bounds Um Outro corpo Norton Cezar Dal Follo da Rosa Junior.... 80 Another body Otávio Augusto Winck Nunes ...... 09 Gênero e número Genders and numbers Diário de inverno: memórias Paulo Gleich ...... 88 das inscrições no corpo Winter journal: memories of Adolescência: the inscriptions on the body a sexuação em três tempos Lucia Serrano Pereira ...... 17 Adolescence: the sexuation in three stages Fernanda Pereira Breda ...... 97 Otro cuerpo: entre o real e o ficcional na arte de Mario Ayguavives Corpo e discurso: os efeitos da Otro cuerpo: between the real and the escritura psicofarmacológica fictional in Mario Ayguavives’s art na infância contemporânea Ana Lúcia Mandelli de Marsillac ...... 26 Body and speach: the effects of psychopharmacological writing Ritmo e melodia: o corpo sob in contemporary childhood o efeito do significante musical Nilson Sibemberg ...... 106 Rhythm and Melody: the body Corpos elétricos: sem under the effect of the musical signifier Denise Mairesse ...... 35 nome-do-pai e colados ao i-pad Electric bodies: no father-name and glued to the i-pad Corpo real, corpo simbólico, Julieta Jerusalinsky ...... 116 corpo imaginário Uma menina silenciada Real body, symbolic body, imaginary body A silenced girl Ligia Gomes Víctora ...... 44 Adela Stoppel de Gueller ...... 126 O corpo no litoral da ciência Retratos de eventos de corpo The body in the littoral of the science Portrait of the body event Ana Costa ...... 57 Manuela Lanius ...... 135 Pecado e sacrifício Articulações metapsicológicas Sin and sacrifice no tratamento da dor crônica Sílvia Raimundi Ferreira ...... 66 Metapsicological considerations on the treatment of chronic pain Corpo individual, corpo social: Elaine Starosta Foguel ...... 145 passagens discursivas The body of the individual, the body of society: O corpo, farândola de ilusões discursive passages The body, round dance of illusions Alfredo Gil ...... 71 Henry-Pierre Jeudy ...... 152

Revista 49.indd 5 10/05/2017 14:44:47 ENTREVISTA Ecos no corpo Echoes on the body Henry-Pierre Jeudy ...... 164

RECORDAR, REPETIR, ELABORAR O que quer o hipocondríaco? What does the hypochondriac want? Contardo Caligaris ...... 173

VARIAÇÕES O corpo desaparecido The missing body Maria Rita Kehl ...... 184

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psicanálise ocupa-se da temática do corpo desde o seu princípio. Encon- Atra-se em Freud, nos seus primeiros escritos, a indicação de que, como humanos, tem-se uma relação em nada natural com o corpo. A linguagem, então, através das formações do inconsciente, faz ali sua marca. As bases lançadas por Freud serviram para que Lacan, na sua releitura da obra freu- diana, encontrasse elementos para propor novos desdobramentos conceitu- ais. Nesta perspectiva, a proposição do laço discursivo, como o que faz laço social, é de fundamental importância para situar a temática do corpo, pois indica, assim, a posição do sujeito na relação com a linguagem. As relações que tecemos com o corpo são paradoxais. Da certeza de possuí-lo e não poder dispensá-lo, aos estranhamentos que muitos de seus sinais produzem, resta o caminho de tentar domesticá-lo, na busca vã de controlar o incontrolável: o estranho que nele se anuncia, vez por outra, em suas afetações. Sempre retorna a certeza de tê-lo, mas será que o ser se aloja ali? Dessa pergunta muito se ocupou a filosofia, pelos caminhos da clivagem corpo/alma, da qual o espírito cristão se apossou. Neste, o lugar do corpo segue a via do sacrifício, tão bem encarnado na figura do mártir. Herdeira dessa clivagem, a ciência – na sua máxima realização pelo cartesianismo – ajudou a cavar um fosso inexistente, nomeado como corpo e linguagem. As vias empreendidas a partir daí não cessaram de ampliar essa questão. Dessa forma, invertem-se as condições do controle: o corpo é esse Outro que nos domina! A alma aplainou-se, perdendo a condição de pensamento, fazendo do biológico e do orgânico o definidor de destinos. O destino, não mais lido

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nos astros, desloca-se para as salas de exames médicos, onde há o risco de que o sujeito fique de fora, deixando que a máquina pense sozinha. A atualidade do estudo da temática do corpo para a psicanálise, no seu diálogo com outros campos de saber (como a sociologia, a filosofia, a litera- tura, a medicina), resulta das questões que a escuta da clínica nos coloca. Seja através das inibições, angústia, compulsões, ou mesmo do exercício sexual, faz-se importante indagar sobre o que surge como efeito de inscrição do corpo no discurso, no discurso, ou mesmo do impossível em causa nessa inscrição. Assim, situar o corpo no enlaçamento real/simbólico/imaginário im- plica o trabalho do sujeito em torno do que constrói como ficção, como saber e como verdade.

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TEXTOS UM OUTRO CORPO1

Otávio Augusto Winck Nunes2

Resumo: O presente trabalho é resultado do diálogo entre a leitura do livro O apo- calipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe (2013), e a lição do dia 21/01/1970 do seminário O avesso da psicanálise, de ([1970]1992). Nele, são debatidos temas sobre o feminino do corpo, em seus desdobramentos, que incluem o sexo e a morte. Palavras-chave: corpo, feminino, sexo, morte.

ANOTHER BODY Abstract: The present article is a result of the dialogue between a review of the book “The workers’ apocalypse”, by Valter Hugo Mãe (2013), and the lesson that dates of January 21st 1970 of the seminary “The reverse of ”, by Jacques Lacan ([1970]19992). This piece will present a debate on themes related to the female body, including sex and death. Keywords: body, feminine, sex, death.

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre. 2 Psicanalista; Membro da APPOA e do Instituto APPOA; Mestre em Psicologia do Desenvolvi- mento/UFRGS; Mestre em Psicanálise e Psicopatologia/Université de Paris7. E-mail: otavioau- [email protected]

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As palavras, também, têm caminhos por dentro. Há que percorrê-los. Valter Hugo Mãe

o longo do trabalho preparatório deste congresso fui recolhendo, a partir Adas leituras que fizemos, algumas questões que gostaria de compartilhar, principalmente a lição do dia 21/01/1970 do seminário O avesso da psicanáli- se, de Jacques Lacan ([1970]1992), em diálogo com o livro O apocalipse dos trabalhadores, de Valter Hugo Mãe (2013), que me acompanhou ao longo desse tempo. Mãe é um talentoso escritor angolano, dono de uma escrita ímpar, efetivamente, muito singular. A obra que escolhi dele me parece ser aquela em que o humor está mais presente, apesar de o autor escrever, ine- vitavelmente, sobre o trágico do humano. É desse livro a epígrafe acima que, em sua simplicidade, revela a extensão no nosso campo. Maria da Graça é uma mulher a dias! A poética sonoridade da expressão, ao conjugar o tempo à condição da mulher, na nossa língua, quando atraves- sa o oceano, de volta a sua origem, não encontra lá essa mesma alusão. Nos litorais da língua, mulher a dias, em Portugal, é como a Val, personagem de Que horas ela volta?3, é a diarista, a faxineira, a imprescindível presença que se ocupa dos restos, nossos, e dos outros, ocupa-se de tudo que já perdeu valor. Maria da Graça encarna a despossuída, a desqualificada, mas ao me- nos pode sonhar. Maria da Graça sonha e muito. Sonha repetidas vezes que está às portas do céu. Lá, ela depara-se com o porteiro pouco receptivo para a função, que é São Pedro. Com ele, tenta estabelecer um diálogo, pedindo, tentando convencê-lo a deixá-la entrar. Sua insistência não resolve, ele não abre as portas. Ela briga, reivindica, se revolta. Não entende a recusa dele em aceitá-la ao lado do divino. No grande bazar que é a antessala do céu, Maria da Graça acompanha toda espécie de confusão, de balbúrdia, de agitação, em que os mercadores locais oferecem uma série de souvenirs, de gadgets, como o que da vida se carregaria, para que, ao atravessar a porta aberta por São Pedro, não lhes falte nada no outro lado.

3 Filme de Anna Muylaert, 2015. 10

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Mas o porteiro do céu a impede. Para além da morte, Maria da Graça parece querer, numa interpretação rápida, um lugar perto de Deus/pai. Tal- vez, seja esse o desejo expresso no sonho e não satisfeito por Maria da Gra- ça, mesmo que para isso a morte seja necessária. Se a esperança é a última que morre, considerando a perspectiva impossível de encontrar o amor em vida, a morte pode ser a única salvação. Assim começa o romance de Valter Hugo Mãe, Maria da Graça sonhando entrar no céu, a todo custo, atônita com as lembranças, as culpas da vida. Mas é impedida, é barrada na porta do suposto paraíso. Maria da Graça trabalha para seu Ferreira, septuagenário, que tenta lhe ensinar a apreciar as belas artes, o refinamento da música clássica, dos cantores de ópera, dos pintores. Em que pese a sensibilidade de seu Ferreira às artes, não há uma justa transposição dessa sensibilidade no trato com sua mulher a dias. Todos os dias durante o trabalho, no afã de se fazer homem, seu Ferreira avança o sinal e, esteja Maria da Graça no aposento da casa em que ela estiver, ele se atira sobre o corpo dela, como se fosse extensão do seu, para encontrar o júbilo narcísico que procura. Ela não rejeita o ato, pelo contrário, ela aceita a invasão de seu corpo. Não considera ser violência. Pior, culpabiliza-se arrependida, pois ainda assim sente-se uma puta, prin- cipalmente por ter um marido, Augusto, a quem deve alguma satisfação. E, todos os dias, ao terminar seus afazeres domésticos e sexuais, seu dinheiro está no mesmo lugar, o pagamento pelos serviços prestados. Maria da Graça gostaria de supor que é de amor que se trata. Mas não encontra indício, sinal, nenhum rastro de amor. Assim, sonha repetidamente com a morte, onde pensa que irá encontrá-lo. E eis que ela, a morte, surge. Por uma via inusitada, é verdade. Maria da Graça tem uma amiga, Quitéria, sua companheira de infortú- nios. Quitéria, apesar de se fazer de prostituta, ponto em que se identificam, sonha encontrar um amor, mas do lado de cá da vida. É o tipo de amiga que faz uma função complementar, aconselha, briga, fala mal, e, apesar das dis- cordâncias e desavenças, acolhe, incentiva. Muitas vezes trabalham juntas, e faz por sua amiga aquilo que considera seu melhor, ou seja, insiste que Maria da Graça busque um amor ainda em vida. Quer fazer que Maria da Graça deseje o seu desejo. Mas como isso não é tarefa fácil, instiga sua amiga a continuar sonhando. O que Maria da Graça faz – sonhando com a morte. E aí ocorre o encontro para alimentar os sonhos, Quitéria convida Maria da Graça para acompanhá-la num de seus afazeres: ser carpideira. E lá se vão as duas, de velório em velório, a chorar pelos mortos dos outros. Chorar por uma perda que não é a delas, por um ente querido dos outros, por uma separação que não lhes diz respeito, por uma vida que encontrou o fim, e não

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é a delas. São pagas pela dor, pela perda dos outros. As duas amigas são pa- gas pelo sexo e pelas lágrimas da morte. Mimetizam-se e gozam ao sustentar o gozo da perda alheia. Não é exagerado dizer, seriam como prostitutas tanto no sexo quanto na morte. De um lado, a pequena morte, como diria Lacan ([1970]1992), o gozo sexual, intervalar, finito; do outro lado, o gozo irreversível e infinito da mor- te. Especificamente, o sexo e a morte como funções que se sustentam e interrogam o corpo feminino, como Maria da Graça e Quitéria exemplificam. Sexo e morte apresentam uma estranha equivalência ao não poderem ser representados no inconsciente, para lembrar Freud. Podemos pensar que nessa equivalência, entre os irrepresentáveis do sexo e da morte, aparecem os elementos que insistem em entrar no laço discursivo, mas ficam à sombra do impossível. Não seria justamente essa uma das questões problemáticas pelas quais, na psicanálise, estamos envolvidos em nosso cotidiano – o irrepresentável do gozo, aquilo que excede a representação? O intervalo de tempo entre o início e o fim, entre o início da vida e a morte, com aquilo que faz corpo e de como nos servimos dele? Não será a esse órgão que se precisa apalavrar? Parece- -me que é essa a indicação de Lacan ao dizer que do órgão/corpo a gente se serve como pode. Expressão correlata do que dizia em relação ao pai, dele se servir e poder dispensá-lo. A título de curiosidade, a palavra grega para dizer corpo aparece pela primeira vez na escrita de Homero (Foucault, 2013) servindo para designar cadáver, ou seja, como aquilo que está sem vida, em exterioridade. Então, do cadáver, do corpo morto se chegou ao corpo vivo. Na psicanálise, poderia se dizer que é do registro simbólico que é pos- sível a construção da unificação corpórea, frente a um imaginário esfacelado; é desde um ponto exterior, que se faz interior, desde um ponto do campo do Outro que se constrói a ficção do corpo. O registro simbólico isola o corpo, é o que lhe dá uma unidade ficcional. A experiência do estádio do espelho, como o que dissemos a respeito da origem da palavra corpo, diz que o corpo está em Outro lugar. O simbólico, portanto, tenta construir uma unificação que não é garantida para sempre, a todo momento é posta à prova. Porém, é suficien- te para o ser ter um corpo. Ocorre que não sabemos o que se passa no corpo, estamos dele alienados, pois há o que lhe faz furo, o que escapa ao saber, o que excede ao recobrimento significante, e que insiste no seu retorno. Nessa perspectiva, pensar o corpo em sua relação com o feminino, ao assumir uma posição objetal frente ao Outro, como condição subjetiva pri- meira, é a indicação de Lacan, desde o momento de sua obra em que o gozo passa a ocupar um lugar privilegiado. Considerar que há um momento de instalação do fantasma do sujeito, através do significante, com a implicação 12

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do corpo, que lhe produz uma marca, e cujo efeito dessa operação é a pro- dução do gozo. Essa é a condição inicial, momentos constitutivos que são necessários para se ter corpo. A partir dessa marca inicial é que se estabelece o traço unário, relativo à origem do sujeito e, também, relativo à inscrição do saber inconsciente. Lacan designou nessa operação dois elementos: S1 como o significante mestre, no campo do sujeito, e S2 como o saber inconsciente, no campo do Outro. Do lado do sujeito, o traço recortado da relação ao Outro, que diz res- peito à identificação e, também, à diferenciação, que vale como ato de sepa- ração, uma separação do Outro. O traço unário, tomado em seu desdobra- mento na relação ao saber, aparece como a repetição que insiste e vem a ser meio de gozo, na medida em que excede aquilo que é relativo ao saber inconsciente, ao campo das representações. Nessa articulação, por paradoxal que seja, há perda de gozo. O gozo situa, demarca não só seu próprio usufruto, mas, por não produzir inscrição significante, indica uma perda de gozo no seu fracasso de não se inscrever, o que se repete como perda de gozo, correspondendo à entropia, como diz Lacan ([1970]1992). Então, é da insistência da cadeia significante que se de- pura o objeto a. Objeto que, pela presença, aparece como gozo, produzindo angústia e que, em contrapartida, na sua vertente de causa de desejo, está presente como falta. Nessa lógica, Lacan situa o momento em que há equivalência entre a posição do sujeito e do Outro, ao lembrar o tema freudiano do Bate-se numa criança, gozo de quem? Modo do Outro se apresentar ao sujeito e engendrar, pela linguagem, uma forma de gozo. A partir daí, é preciso situar o efeito da dimensão dialética que permitirá ao sujeito, junto ao Outro, dele se despren- der, produzindo então uma delimitação narcísica. A força da marca do Outro é condição e possibilidade de inscrição do Eu, com o registro da perda do gozo, pois é o Eu que dará vestimentas, roupagens ao gozo. É interessante que nesse momento de sua produção Lacan retome uma de suas premissas, do início do seu ensino, que o sujeito recebe sua mensa- gem do Outro de uma forma invertida, também com relação ao gozo e assim com relação ao que faz corpo, corpo do Outro, que situa então o corpo como discurso. Temos então acesso ao corpo, na medida em que há a marca do significante, vindo do Outro, que produz gozo. Gozo de um corpo que pode ser sem rosto – em que é necessária a inscrição do significante, como meio de gozo, para que o corpo possa ser apreensível, desde esse ponto de “fora”, o ponto de extimidade – do íntimo exterior ou do exterior íntimo, a partir do qual se pode ter um corpo.

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Essas interrogações me aproximaram de uma questão bastante presen- te na clínica, nos mais diversos aspectos, na medida em que coloca o corpo na dimensão simbólica, imaginária e real. Entre sexo e morte, uma articula- ção que implica a passagem pelo corpo feminino, em sua construção fantas- mática de sujeito, apresentando-se como objeto – situação em nada simples, em que a entrega do corpo é realizada na busca do amor e que, não raro, tem um limite, a marca do impedimento, tornando impossível sua realização, como Maria da Graça, de onde partimos. Ela, em posição de resto, revela um impedimento em que o brilho do objeto fálico, que emerge de um plano à frente da imagem do corpo, não está presente. Seria o amor que poderia, jus- tamente, conter o caráter pulsional de seu corpo, para incluí-lo numa erótica, como um tempo de espera à produção desejante? Tomo um fragmento clínico que ajuda a pensar nessa questão. Mateus procura análise num momento de crise. Conquistou, rapida- mente, uma ascensão profissional privilegiada, gozando de certo prestígio e reconhecimento não muito comuns na sua área, que muito o orgulhava, por ser bastante jovem. Mas começa a perder, também, a posição alcançada na mesma velocidade da conquistada, tendo em vista o consumo excessivo de drogas, principalmente cocaína. Situa como sendo essa a questão que o traz para a análise, como a situ- ação que o angustia muito, pois a partir do incremento do uso de drogas não registra mais suas perdas. Ao longo do tempo, em que vai se desdobrando seu breve percurso analítico, Mateus conta ser portador do HIV, e das dificul- dades que isso lhe traz, principalmente no que diz respeito às medicações, traduzido por enjoos e desconfortos corporais sofridos pelo uso do coquetel. Numa sessão, ao contar um pouco sua história, relata sua “fantasia” de origem. A mãe, bem jovem, namorava há bastante tempo um rapaz. Após uma briga, ocorre um rompimento brusco com o namorado, ela se envolve com outro homem e engravida. Não reata o namoro em função da gravidez. Mateus nasce e fica aos cuidados dos avós maternos até que sua mãe consi- ga se estabelecer profissionalmente. Nesse intervalo de tempo, ela conhece outro homem com quem casa e que assume uma hesitante paternidade de Mateus. No desenrolar da análise, Mateus conta também como foi seu contágio pelo HIV. Ele e sua mãe brigam. Ele sai de casa, sem destino, pega um táxi e, através do motorista, encontra abrigo na casa de um traficante. Ao longo dos dias em que fica hospedado nessa casa, mantém relações sexuais com o anfitrião e sai de lá contaminado. A história um tanto sinistra atualiza a fanta- sia de gravidez de Mateus. Diferente da gravidez materna, a sua “fantasia de gravidez” tem um destino diferente, é uma gravidez que não sai do seu corpo, 14

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da qual não consegue se separar. Além do inicial problema apresentado pelo uso das medicações, os enjôos, o mal maior de Mateus é se ver impedido, imaginariamente, de amar e de ser amado, em razão do muro interposto pelas letras do HIV. O momento da sessão foi angustiante, como não podia deixar de ser, Mateus se apercebe da lógica presente em seu relato, em que atualiza em repetição a fantasia mortífera frente ao desejo materno. Mas, também, frente ao amor não realizado. Lacan ([1955-1956]1985), numa passagem do seminário As psicoses, toma um artigo, para fazer referência ao caso de um paciente, que diagnosti- ca como histérico e que apresenta uma fantasia de gravidez. E diz que o mais estranho em relação à fantasia da procriação é que o simbólico não é capaz de recobrir toda essa experiência, pois há um enigma: o que faz com que um ser saia de outro ser, em que a sucessão dos seres romperia a ordem sim- bólica? A marcação efetuada pelo significante, no exercício de sua função, é o que pode fazer o sujeito em sua singularidade, na medida em que coloca o sujeito para além da morte, sendo imortalizado pelo nome, e dá o ser como morto. Mesmo que na fantasia de procriação encontre-se, como mensagem invertida, o limitado da vida. A respeito dessa fantasia, a interrogação importante, tanto para a mulher como para o homem, é a mesma: o que é ser uma mulher? Pergunta sempre difícil de responder, em contrapartida a uma aparente facilidade na resposta do que é ser homem, pois esta vem quase sempre apoiada na dimensão ima- ginária do corpo. Na verdade, o que interroga, o estranhamento, me parece, é pensar em como a castração atua sobre o corpo feminino, castração sim- bólica que opera sobre o real, que é o que poderia dar ao sujeito um corpo. O que gostaria de assinalar é a entrada desse elemento novo, desse acontecimento, que coloca em causa a suposta unidade corporal; esse ele- mento novo/estranho que fura, como real, o que estava ficcionalmente unido. Na medida em que o real, pelas letras, irrompe, ele faz furo no corpo ficcio- nalizado, assim, as letras tornam-se elementos estranhos ao texto, não con- seguem mais serem lidas, produzindo, portanto, uma vacilação nos registros. A antecipação imaginária do impedimento de amar e de ser amado é recorrente e difícil de ser deslocada, como Mateus sustenta. O corpo porta a marca, pelas letras, da morte, não só pela sua finitude, mas pela dificuldade de inscrever o desejo. Ocorre pela via do sexual a colocação em ato do fan- tasma. Parece-me que é o que Lacan aponta em relação à segunda morte, que está antes da primeira, que seria a morte do desejo. Se o amor poderia fazer do corpo um elemento portador da referência fálica, indicando a possi- bilidade de se deslocar de uma posição sacrificial, de uma entrega total ao Outro, aqui está impedido pela sua desqualificação fálica. O amor como elo

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para fazer frente ao caráter mortífero da pulsão, em sua dimensão de repeti- ção, fica impedido de operar. Poderíamos incluir como outro elemento o confronto com o real da le- tra, momento de uma insistência, pela repetição, que alude a um gozo sem destino, em que a perda de gozo pelo seu próprio movimento fracassa como inscrição, numa dificuldade em relação à separação do Outro. Cumpre desta- car, num primeiro momento, então, que o real da letra – HIV – funciona como muro, como o impedimento ao amor. Haveria aí um caminho a percorrer que permitisse o endereçamento da letra para, através dele, se fazer uma suposição de saber e, com isso, a produção do laço amoroso, como proposto na análise. Não seria esta a pos- sibilidade de construção do corpo? Quando Maria da Graça descobre que seu Ferreira a amava, é tarde de- mais. Não há mais tempo para o amor desprendê-la da sua posição objetal. Ela cai, ou melhor, se joga no vazio, seguindo os passos de quem amava. São Pedro dessa vez não impede o encontro. E se o corpo é um texto a ser lido, volto ao que destaquei no início: as palavras – como o corpo – têm caminhos por dentro, há que percorrê-los.

REFERÊNCIAS FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n - 1 edições, 2013. LACAN, Jacques. O seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise [1970]. Rio de Janei- ro: Jorge Zahar Editor, 1992. MÃE, Valter Hugo. O apocalipse dos trabalhadores. São Paulo: Cosac-Naify, 2013.

Recebido em 19/08/2016 Aceito em 30/09/2016 Revisado por Joana Horst

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DIÁRIO DE INVERNO: TEXTOS memórias das inscrições no corpo1

Lucia Serrano Pereira2

Resumo: Este texto percorre questões relativas à relação corpo e linguagem a partir da produção ficcional de Paul Auster, em Diário de inverno. Nesta direção, se inclui o trabalho do estilo, os efeitos de ressonância situados por Lacan na abordagem do sinthoma, os enlaces que dizem da operatória da criação no en- contro real-simbólico-imaginário. Palavras-chave: estilo, ressonância, corpo, ficção.

WINTER JOURNAL: memories of the inscriptions on the body Abstract: This text approaches issues regarding the relationship between body and language from Paul Auster’s fictional work in Winter Journal. In order to do so, the work on the style is included, as well as the resonance effects situated by Lacan in the understanding of the sinthome, and the intertwining pertaining to the operatory of creation in the encounter of the real-symbolic-imaginary. Keywords: style, resonance, body, fiction.

1 Trabalho apresentado no VI Congresso de Convergencia, 2015, em Madrid e no Congresso Internacional da APPOA: Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA; Mem- bro da Association Lacanienne Internationale; Pós-doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Doutora em Literatura Brasileira (UFRGS); Autora dos livros Que queres tu de mim? (Unisinos 2011); O conto machadiano, uma experiência de vertigem (Companhia de Freud, 2008); Um narrador incerto entre o estranho e o familiar, a ficção machadiana na psicanálise (Cia de Freud, 2004); e do audiolivro A cartomante e a vertigem (Ideias a Granel, 2010). Organizadora do livro A ficção na psicanálise: passagem pela Outra cena (APPOA, 2014). E-mail: [email protected]

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rimavera, Livraria Barnes & Nobles em Nova Iorque, Paul Auster entrou Pem meio a grande público, ambiente efervescente, onde nos encontráva- mos rodeados de livros e expectativa, para o reading de lançamento do Win- ter Journal, seu Diário de inverno (2012), que há pouco foi editado no Brasil. Ele vai diretamente à leitura das páginas iniciais, e o primeiro impacto se instala com sua presença: o texto, na voz do autor. Narrativa de diário, em tom baixo. Narrativa incomum, toda em segunda pessoa, criando um clima de intimidade compartilhada. Paul Auster (2012, p. 1)3 inicia: Você acha que nunca vai acontecer com você, que não pode acontecer com você, que você é a única pessoa no mundo com que nenhuma dessas coisas jamais há de acontecer, e então, uma por uma, todas elas começam a acontecer com você, do mesmo modo como acontecem com as outras pessoas. Você? Ele, eu?. Um efeito de endereçamento que embaralha o quem fala. O narrador se coloca desde o inverno da vida, a estação na qual se en- contra, caso a medida fosse a do tempo da vida dividido nas quatro estações. Mas um inverno sem nostalgia, afirma o autor. Não é a primeira abordagem de memórias, de Paul Auster, se lembra- mos A invenção da solidão, publicado em 1999, pouco depois da morte de seu pai. A narrativa de agora é um olhar retroativo, mas a forma da escrita segue uma lógica associativa, e isso é importante nos efeitos que produz. Esco- lhe como narração a voz que se dirige ao interlocutor. Nem a autobiografia tradicional da narrativa em primeira pessoa, nem a distância excessiva da terceira. O tu se impôs como garante de um partilhar entre eu (o escritor) e tu (o leitor) – ele refere em entrevista (Auster, 2013). Em um parágrafo, fala desde os seis anos, em outro, está em sessenta e quatro (idade em que começou este texto), dali vai para a adolescência, os trechos desenham curvas, idas e vindas, intersecções. Mas o que faz a surpresa narrativa neste livro é o “desde onde” tudo se amarra, se enlaça.

3 Todas as citações do livro de Paul Auster foram traduzidas pela autora.

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O transporte que Auster (2012) escolhe: memórias tramadas a partir do corpo, um ângulo inusitado, criando um roteiro surpreendente. “Talvez seja melhor deixar de lado suas histórias por ora e tentar exami- nar a sensação de viver dentro desse corpo [...]” (Auster, 2012, p. 1). Uma espécie de fenomenologia da respiração, ele diz. Mas é claro, faz histórias, como as pequenas mônadas de Walter Benja- min (1985) em seus fragmentos biográficos, que têm essa propriedade: é de si, mas não para o si mesmo, é bordejo com o campo do Outro. No início, a proximidade desse pequeno corpo do chão, corpo que per- tencia a você aos três ou quatro anos, onde o que compõe o cenário do mun- do pode ser, na contingência, uma formiga: “[…] o pequeno mundo de formigas e moedas perdidas, elas são o que você lembra melhor” (Auster, 2012, p.3); e mesmo seu próprio movimento corporal – o escorregar, o balançar, o se esquentar, todas as sensações tão comuns e ao mesmo tempo surpreendentes; o como esse corpo aborda ou é abordado pelo mundo. Em um salto, o adulto:

[…] o inventário das suas cicatrizes, em particular aquelas de seu rosto, visíveis a você cada manhã quando você olha no espelho do banheiro para se barbear ou pentear o cabelo. Você raramente pensa sobre elas, mas seja lá o que você faça, você entende que elas são marcas de vida [...] letras do alfabeto secreto que conta a história de quem você é, cada cicatriz é o traço de uma ferida cura- da e cada machucado foi causado por uma colisão inesperada com o mundo (Auster, 2012, p.5).

Marcas singulares de sua história, os prazeres e as dores, as paixões, os circuitos que se impõem, repetitivos, e que posicionam seu estar no mun- do. Em um momento, ele diz da bebida e do fumar – “há momentos em que parece impossível deixar seus amados pequenos cigarros e frequentes copos de vinho que deram a você tanto prazer por anos” (Auster, 2012, p.5). Ele diz que se (você) fosse parar (de beber, de fumar) depois de tanto tempo, a fantasia é a de que o corpo poderia se despedaçar, seu sistema todo parar de funcionar. E aí a declaração desse circuito com a fragilidade, desta com a dor, e os recursos que encontra para enfrentar, seguir se mo- vendo no mundo:

[…] não tem dúvida de que você é uma pessoa falha e ferida, um homem que carregou uma ferida em si desde muito cedo. Por que

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outra razão você teria gasto a totalidade de sua vida adulta san- grando (bleeding) palavras em uma página? (Auster, 2012, p.15).

Sangrando palavras em uma página ... O corpo no linguageiro. Sabemos bem que a questão do estilo não é equivalente ao senso co- mum da expressão do autor, em se tratando da arte, dos escritores. Lacan trabalhou sobre o estilo muito perto da questão dos efeitos de uma análise, do que sobrevém de uma travessia, da perda do objeto e de certa recuperação, ele diz, gerando algo do gozo de um exercício. É interessante como Giorgio Agamben (2005), no texto O autor como gesto, diz da questão de um estilo: a abertura de um espaço no qual o sujeito que escreve não termina de desaparecer. É uma referência à ideia de que a marca do autor está na singularidade relativa à sua ausência. O gesto, alusão também ao corpo, de onde deslizam as letras quando as pulsões empurram. Como se desdobra o Diário de inverno, em que Auster diz de seu fazer de escritor relativo a sangrar? Ele toma na narrativa o caminho das cicatrizes, dos encontros incrivel- mente banais do corpo no mundo, os encontrões, os acidentes. O que se inscreve como acidente são os choques inesperados, coisas que não preci- savam acontecer, mas que aconteceram. Isso que não fecha, que mantém o litoral entre o corpo e a palavra. Ele ancora seu escrito nos efeitos em que a contingência posicionou esses encontrões. A escolha de Paul Auster em escrever o que resta destes encontrões imprevisíveis traz de alguma forma a dimensão do real. Real como Freud propõe, eventos, acontecimentos que resistem à representação, no que de trauma eles carregam. O narrador que fala do precário, do que não foi pos- sível abarcar, e que produziu cicatrizes, da escrita que conta a memória da vulnerabilidade sua/minha/do outro. De um lado, pode parecer que o material dessa escrita está bem acessível, são coisas que ele pode situar, recordar, nesse sentido, pouco mistério com relação à tarefa; por outro, talvez, possa- mos considerar que há também nesse transporte um fazer do escritor em ler junto a esses encontrões, ou escrever a partir do que o próprio tropeço faz trabalhar, aquilo que não pode ser apresentado ou representado diretamente, nesta direção mesma em que o simbólico não consegue recobrir o real. O encontrão diz, ao mesmo tempo, de encontro e de um atrito, de resistência. E escrevê-lo implica enfrentar esse choque. Quero destacar uma das vias do encontro/choque/atrito na relação cor- po/linguagem através de um termo que achei fecundo. Quando Lacan (2007) introduz em seu seminário O sinthoma a questão de como liberar algo do sin- 20

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thoma (fazer algo com ele), sublinha o fato de que para a operação analítica é preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe. É preciso que o corpo lhe seja sensível; isto é relativo ao que está desenvolvendo no seminá- rio: as pulsões são no corpo o eco do fato de que há um dizer. Apontamento que vinha desde o seminário O saber do psicanalista:

[…] não há nada a fazer nem com o sentido nem com a razão; é pre- ciso buscar a ‘réson’ (alusão a ressonância) recorrer a réson para o de que se trata, a saber, o Real (Lacan, manuscrito não publicado, p.47-48).

Situando o termo da ressonância de forma simples: o efeito de vibração que pode se produzir quando elementos heterogêneos se articulam. A taça de cristal (um real receptor) que pode ser posta em vibração quando uma onda sonora a atinge. Ao mesmo tempo, é ressonância quando o toque do dedo gira na borda da taça e pode enviar o som. Alain Didier-Weil (2010), em seu Un mystére si lointain que l’inconscient, vai em direção a este termo, a propósito da interrogação do encontro, dos heterogêneos carne e significante. Ele se pergunta: que ressonância é com- parável entre a faca significante e o real da carne humana? E propõe uma leitura sobre a mão do oleiro e a argila, que, sabemos, é por onde Lacan (1988) nos fala desse encontro na operatória da criação, da arte:

Há um conflito entre a mão do oleiro e a resistência da argila: quan- do a massa informe da argila é amassada pela mão do homem ela é definitivamente alterada pela forma adquirida ou ela guarda um res- to inalterado que resistiu à ação da mão humana? E neste caso, foi a mão do oleiro que não soube fazer com que ela, a argila, dissesse “sim” ou é porque há no real da matéria um resto inalterável que fica para sempre virgem? (Didier-Weill, 2010, p.39-41).

Nisto nunca vai haver homogeneidade: o sujeito a se produzir é dividido. De um lado, há o que passa pela simbolização, diz sim, mas, de outro lado, há o que tende a ficar para fora da ação do significante, nessa argila. Didier-Weil (2010) propõe, com certa poesia: se poderia dizer que a argila quer se tornar bela pela forma que pode adquirir e, ao mesmo tempo, resta rebelde a toda forma possível. Diz, desse modo, de um real que é, ao mesmo tempo, aberto e fechado à simbolização, um ritmo para o advento do sujeito, como se o real dissesse silenciosamente: sim, tu podes te encarnar; não, tu não podes.

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Didier-Weill (2010) faz uma incursão nessa relação na arte, com a dança: da mesma forma que uma parte do real argiloso resiste à mão do oleiro, uma parte do palco resiste aos pés do dançarino, não se oferece a ser perfurada, esburacada pelo pé, resta virgem. E é por isso que, depois de ter voado, o dançarino cai sobre o palco (que retornou a ser virgem). Ele, o palco, demanda ser de novo esburacado, de uma forma nova, pela ponta do pé. É um dizer da dança que alude à encarnação do simbólico com relação ao real, passando pela consistência do corpo. No sinthome, na retomada da metáfora do oleiro e do moldar a argila, Lacan (2007) fala do corpo como o pote, a consistência que o corpo tem; o real como a ex-sistência, o vazio en- gendrado pelo simbólico fazendo o furo. Assim, essa dança, história de amor impossível entre o simbólico e o real, em como eles vão se tomar um ao outro. Talvez o que nos permita pensar também o passar a vida sangrando palavras numa página, da escrita do escritor. Podemos acompanhar, na narrativa de Paul Auster, nesses atos de es- crita, o movimento do saber fazer em torno do vazio, ou seja, de como o escritor se deixou tomar pela linguagem para fazer esse transporte. Forma e conteúdos imbricados, a narrativa é fragmentária, dentro/fora operando, Aus- ter joga com o movimento moebiano, notícias de como o corpo é atravessado e marcado pela linguagem. O como é que sangram essas palavras. Marcio Seligman-Silva (2013, p.386-387) diz em seu livro História, me- mória, literatura:

É evidente que não existe uma transposição imediata do “real” para a literatura, mas a passagem para o literário, o trabalho do estilo, e como a delicada trama de som e sentido das palavras que constitui a literatura é marcada pelo real que resiste à simbolização.

Real articulado com a categoria do trauma, no contexto que Seligman- -Silva (2013) desenvolve neste escrito, como uma ferida que não se fecha, ele está abordando mais de perto o redimensionamento da literatura frente à literatura de testemunho. Que não é o gênero do Diário de inverno enquanto encontro com a catástrofe, mas que, ao mesmo tempo, não é sem relação, pois se trata, guardadas as devidas diferenças, de algo relativo ao enfrenta- mento com o real. A primeira das crises de pânico que aterrorizaram Auster aconteceu dois dias depois da morte da mãe. Passou esses dois dias anestesiado, se cobrando o fato de não chorar, bebendo uísque, café, quase sem dormir, 22

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quando atende o telefone e a prima, neste momento dos pêsames, insinua as traições da mãe com relação ao pai, anos atrás. Foi demais. O ataque começou simultaneamente do interior e do exterior, uma re- pentina sensação de pressão do ar em volta de você, como se uma força invi- sível estivesse tentando empurrar você através da cadeira e jogá-lo no chão, mas ao mesmo tempo uma leveza sobrenatural em sua cabeça, uma batida forte, vertiginosa, vibrando contra as paredes de seu cérebro, e ao mesmo tempo em que o exterior continua pressionando você, o interior vai ficando vazio, ainda mais escuro e vazio, como se você estivesse a ponto de morrer. Aí seu pulso acelera, você pode sentir seu coração tentando rebentar através de seu peito, e no momento seguinte não tem mais ar nos seus pulmões, você não pode mais respirar. Aí é quando o pânico ultrapassa você, quando seu corpo desaba e você cai no chão. Deitado de costas você sente o san- gue parar de correr em suas veias, e pouco a pouco seus membros virarem cimento. É quando você começa a gemer. Você é feito de pedra agora, e en- quanto você jaz lá no chão da sala de jantar, rígido, sua boca aberta, incapaz de se mover ou de pensar, você geme de terror como se você aguardasse seu corpo mergulhar nas águas profundas da morte. Você não conseguia chorar. Você não conseguia fazer o lamento, manifestar o pesar do luto da maneira que as pessoas fazem normalmente, então seu corpo veio abaixo e fez o lamento por você (Auster, 2012, p.128-129). Suas doenças, seus amores, faz até o inventário de todas as casas onde morou, como que listando os deslocamentos desse corpo pelos lugares que o acolheram. Desde New Jersey, todas as mudanças de moradia na juventude, o quartinho de estudante sem dinheiro em Paris, e, claro, seu Brooklyn nova- -iorquino. Das listas, ele parece ter bem a dimensão: é o que se faz quando não se pode, por estrutura, abarcar uma totalidade ou uma extensividade. Novamente o impossível, o que fazer com o encontro. A vertigem das listas, podemos lembrar o livro de Umberto Eco (2010), a lista como recurso para o indizível que queremos cernir, abarcar. Tentar produzir a lista é pôr em cena algo do lugar do indizível, como poder enfrentar este território. “Você gostaria de saber quem é” (Auster, 2012, p.115). Pergunta que ele explora, mas com o saber de que no centro da resposta há um furo, uma inconsistência. Frente às experiências que o ultrapassam, Paul Auster faz, na escrita, a tentativa de “ler” essas experiências da colisão inesperada com o mundo passando pelo corpo. Ao mesmo tempo, temos os efeitos que restam das colisões e um corpo que é escrito. Imaginário e simbólico produzindo um corpo que passa pela ficção. Há algo de testemunho nisto, podemos pensar? Talvez naquilo em

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que testemunho pode dizer respeito a um modo não de estabelecimento da verdade, mas de acesso a algo da verdade que vem, fragmentariamente, sem possibilidade de totalização. Feldman e Laub (1992), em Testimony, dizem do discurso freudiano, considerado como testemunho, como um discurso sem precedentes na his- tória da cultura. Apontam a Interpretação dos sonhos como testemunho do inconsciente, trazendo em especial o sonho da injeção de Irma, onde as do- res de Freud (sua dor da artrite no ombro) ecoam a dor de sua paciente Irma. Freud revolucionou a dimensão clínica com a fala analista/analisante, quando o testemunho do doutor não substituiu o testemunho da paciente, mas faz ressonância com este. Para concluir, a passagem engraçada e comovente da leitura do “encon- tro da argila com a palavra” no Diário de inverno, que vem com as descober- tas infantis: 1952, cinco anos, nu na banheira, sozinho, grande o suficiente para se lavar, agora, e quando você deita de costas na água morna, seu pênis de re- pente chama a atenção, pulando para fora acima da linha da água. Até esse momento você tinha visto seu pênis só de cima, estando de pé e olhando para baixo, mas desde este novo ângulo vantajoso, mais ou menos ao nível dos olhos, ocorre a você que a ponta de seu órgão masculino circuncizado alcança uma semelhança impressionante com um capacete. Um capacete de tipo antigo, como esses usados pelos bombeiros no final do século 19. Essa revelação agrada você, desde que a esse ponto de sua vida sua maior ambição é crescer para se tornar um bombeiro, o qual você considera o tra- balho mais heroico da face da terra (sem dúvida é), e como é justo que você devesse ter um capacete de bombeiro miniatura estampado em sua própria pessoa, na parte de seu corpo que além do mais parece e funciona como uma mangueira (Auster, 2012, p.16). Que sorte, ele pensa, que incrível felicidade descobrir, naquele momen- to, inscrito no corpo justamente o sonho que ele tinha de vir a ser um bombei- ro! E, assim, Paul Auster vai abrindo este diário como quem testemunha das incidências do inconsciente sobre o corpo.

REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. El autor como gesto, In:______. Profanaciones. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editores, 2005, p.78-94. AUSTER, Paul. A invenção da solidão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. AUSTER, Paul. Winter journal. New York: Henry Holt & Company, 2012. AUSTER, Paul. Dossier Les romancières américaines. Le Magazine Littéraire. Paris, junho 2013, p.86. 24

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BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, v. I. DIDIER-WEILL, Alain. Un mystère plus lointain que l’inconscient. Paris: Aubier, 2010. ECO, Umberto. A vertigem das listas. São Paulo: Record, 2010. FELDMAN, Shoshana; LAUB, Dori. Testimony. Londres: Routledge, 1992. LACAN, Jacques. Seminário Le savoir du psychanaliste. Paris: Association Freudien- ne Internationale Destiné à ses Membres. LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. SELIGMAN-SILVA, Márcio. História, memória, literatura. Campinas: Unicamp, 2013.

Recebido em 22/08/2016 Aceito em 09/12/2016 Revisado por Deborah Nagel Pinho

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Revista 49.indd 25 10/05/2017 14:44:48 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 49, p.26-34, jul. 2015/dez. 2015

TEXTOS OTRO CUERPO: entre o real e o ficcional na arte de Mario Ayguavives1

Ana Lúcia Mandelli de Marsillac2

Resumo: Neste artigo, analisaremos a obra Otro cuerpo, do espanhol Mário Ay- guavives. O artista constrói e fotografa objetos que remetem à carne, pele e pelos humanos, joga com o real e o ficcional, interroga sobre a objetalização do corpo e sua capacidade de abertura a novos sentidos. Ancorados na metodologia psica- nalítica de leitura das obras, buscamos analisar a complexidade que a obra dá a ver, refletindo sobre os temas: corpo, obra e sinthome. Palavras-chave: arte, corpo, obra, psicanálise, sinthome.

OTRO CUERPO: between the real and the fictional in Mario Ayguavives’s art Abstract: In this article, we analyze the work Otro cuerpo made by the Spanish Mario Ayguavives. The artist builds and photographs objects, which refer to meat, skin and pubic hairs, plays with the real and the fictional, questions about the objectification of the body and its ability to open new directions. Anchored in the psychoanalytic method of reading works of art, we analyze the complexity of the work gives the view, reflecting on the topics: body, work of art andsinthome . Keyswords: art, body, work of art, psychoanalysis, sinthome.

1 Trabalho apresentado no Congresso da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre. 2 Psicanalista; Membro da APPOA; Doutora em Artes Visuais – História, Teoria e Crítica UFRGS; Mestre em Psicologia Social e Institucional UFRGS; Professora do Departamento de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia UFSC e da Residência Integrada Multiprofissio- nal HU/UFSC. E-mail: [email protected] 26

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ncontro o trabalho de Mário Ayguavives em meio à pesquisa que desen- Evolvo sobre o tema das políticas do corpo. Nosso grupo de pesquisa3 fez um levantamento das obras expostas no Museu de Arte Contemporânea de Santa Catarina e no Museu Nacional Victor Meireles entre os anos 2000 e 2012, que tinham o corpo como tema. Em uma mostra de fotógrafos espa- nhóis, exposta no MASC em 2001, fomos interpelados pela obra Otro cuerpo de Mário Ayguavives. É a partir dela que buscarei analisar o tema do corpo, sob as perspectivas da obra como corpo e como sinthome. A obra, criada pelo artista espanhol em 1998, interroga o tema do corpo, sua forma e manipulação. Mário Ayguavives constrói e fotografa objetos que remetem à carne, pele e pelos humanos. Interroga-nos sobre a objetalização do corpo e sobre sua capacidade de se abrir a novos sentidos. A arte de Mario Ayguavives joga com o outro corpo: com aquele que permitiu a construção da obra (o corpo do artista), com o corpo que a obra constitui em sua consistência, com o corpo do espectador. Ayguavives foto- grafa sua pele e usa essas imagens, de forma digital, como invólucro de seus objetos, nesse sentido: do corpo, faz outro corpo. O artista embaralha real e ficcional ao criar e fotografar um objeto que não existe. Digitalização do cor- po na criação de realidades impossíveis, interrogação sobre a ficcionalidade dos objetos fotográficos. Ayguavives cria um corpo transgênico, que mistura traços humanos e objetais.

Imagem 1: Mario Ayguavives, Otro cuerpo, 1998.

3 Constituído, na época, por: Tomás Tancredi, Tom Cickman, João Endi e Gustavo Beirão, gradu- andos do curso de Psicologia/UFSC.

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Imagem 2: Mario Ayguavives, Otro cuerpo, 1998.

Imagem 3: Mario Ayguavives, Otro cuerpo, 1998.

O gesto do artista produz encantamento e horror, produz semelhanças e estranhamentos. Maçã, batata, pele, pelo, umbigo, membro amputado, dedo, pênis, joelho embaralham nosso olhar. A obra de Ayguavives remete ao real do corpo, à sua consistência, ex-sistência, por aquilo que não se inscreve. Em diálogo com as análises do teórico Georges Didi-Huberman (1998), que também se subsidia na teoria psicanalítica, analisamos que toda obra pode ser pensada como metáfora de um corpo: entre sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se oferecer ao vazio, de se abrir; com suas entradas e saídas, relacionadas ao outro, revelando sua forma e, pa- radoxalmente, escondendo seu suposto conteúdo pleno. Obra/corpo em seu perpétuo movimento de produção de sentidos, no contra fluxo de uma supos- ta estabilidade da forma. Toda obra é corpo que se cria e que produz novos sentidos por sua existência. 28

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Não se trata de uma imagem nua que possa desvendar o real, isso seria impossível; mas, sim, de trazer à tona um símbolo do vazio, a expressão de algo não dizível do corpo, aberto a inúmeras significações. As obras de arte, como analisa o teórico da arte René Passeron, são um “curativo do vazio”. “Todo curativo esconde ao mesmo tempo que trata, e substitui sua aparência perceptível a não aparência do ferimento, desde então aberta ao imaginário” (2001, p.11). Mas, cabe destacar que o curativo não é a ferida. É vestígio, indício, véu, que mantém aberta à imaginação o fascínio e o horror do que esconde. Poderíamos também acrescentar que a palavra trauma vem do gre- go para designar ferida e é derivada da palavra furar. Trauma serve para designar uma ferida com arrombamento, ruptura (Laplanche; Pontalis, 1981). Se a obra está sempre à frente de seu tempo e continua a interrogar outras épocas, ela pode ser pensada em sua relação com o trauma, com as feridas, que estão sempre a demandar curativos. Ayguavives procura captar o tema do corpo e, ao mesmo tempo, con- testar, resistir às imagens ideais. Não se trataria, então, de uma reprodu- ção do mundo das aparências, mas, sim, de permitir ao observador pene- trar no corpo, no mundo dos sentidos, da angústia e da pulsão, evocando a perturbação que um corpo pode provocar. O artista trabalha, justamente, com as metamorfoses da forma e com a impossibilidade de uma represen- tação última; convocando, assim, o espectador a “pensar também com os olhos”, propondo-lhe um enigma, contrariamente a uma versão pronta da realidade. Não há como fixar ao corpo uma imagem, ele está constante- mente mudando de forma e, paradoxalmente, almejando um espaço se- guro a habitar. A obra de Ayguavives remete ao estranho que nos olha, um misto de be- leza e horror. Frente à impossibilidade de fecharmos os sentidos, deparamo- -nos com a incompletude do ser, com a “insuficiência do simbólico em recobrir o real” (França, 1997, p.133). Vamos, então, pela arte, para uma dimensão da experiência bem diferente da que governa a lógica contemporânea, que evita deparar-se com a falta e é, justamente, a partir do encontro com esse estranho, que podemos fazer furo na repetição, desfazer a forma, tornando- -se impossível sustentar uma unidade que não há. Não temos como dar conta do enigma que a obra nos propõe. Há sem- pre um resto que escapa à possibilidade de simbolização, e isso Jacques Lacan analisou através do conceito de real e de sinthome. É da ordem do real este algo mais, que encontramos nas obras, no corpo, nos objetos, nos sonhos, mas também no sinthome. Este conceito foi trabalhado por Lacan, a partir dos anos 70 e busca relacionar a concepção de sintoma abordada por Freud, naquilo que se articula com a dimensão do real.

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O psicanalista Slavoj Zizek realiza um importante estudo a este respeito, intitulado Como Marx inventou o sintoma? (1996). Neste artigo, reflete que Marx e Freud aproximam-se pelos seus métodos interpretativos. A análise do “segredo-forma-mercadoria”, desenvolvida por Marx, serve de chave para a compreensão de fenômenos que a princípio não guardam relação com a eco- nomia. Trata-se sempre de uma tríplice estrutura: seu conteúdo manifesto, o conteúdo latente e um certo “ainda”,4 cujo desmascaramento do segredo não dá conta de eliminar o fascínio. Como bem colocado por Zizek, enquanto a atenção voltar-se aos con- teúdos latentes da mercadoria, ela ainda restará como um grande enigma, mas ao deter-se nos mecanismos do processo que lhe confere determinada forma, torna-se possível aproximar-se um pouco mais. Tal como nos sonhos, o verdadeiro trabalho é o de deslocamento e condensação dos conteúdos latentes que se expressam na forma manifesta. Lacan, ao debruçar-se sobre o tema do sinthome, em seu seminário XXIII, a partir da obra de James Joyce, formula a importante questão: “O problema todo reside nisto – como uma arte pode pretender de maneira divi- natória substancializar o sinthome em sua consistência, mas também em sua ex-sistência e em seu furo?” ([1975-76]2007, p.38) A pergunta de Lacan foi desenvolvida ao longo de seu seminário, no qual ele define o conceito de sinthome, enquanto aquilo que possibilita a sustentação, consistência dos três registros: real, imaginário e simbólico. Ins- tâncias equivalentes e complementares. Lacan, ao analisar cada um dos três registros, observa que a consis- tência e a inquietante estranheza advêm do que chamamos de imaginário; já o ficcional, a linguagem e a função do buraco que a suporta, referem-se ao registro do simbólico; o real, por sua vez, refere-se ao impossível, ao impen- sável, ao que nos escapa. Paradoxalmente, é o real que nos leva a imaginar, que força uma escri- ta. Na medida em que nos escapa, instiga inscrição, mesmo que esta seja sempre precária. O real é o que não cessa de não se inscrever, segue pulsan- do. Se há valor na experiência traumática, que poderia ser pensada enquanto um excesso de real, é por aquilo que decorre como criação. É justamente o

4 No sentido de um excesso. Perspectiva que poderia ser aproximada ao conceito de real para a psicanálise. 30

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real que mantém juntos o imaginário e o simbólico, ainda que seja desprovido de lei e ordem. O real é o impossível, mas é dessa falta, que se cria, que se produzem obras. Pensar a obra em associação ao conceito de sinthome possibilita uma metodologia de base psicanalítica na leitura das obras. Essa perspectiva vem buscando se afastar de uma suposta psicopatologia do artista, tendo como foco a leitura da obra e de sua contingência. Detemo-nos ante o paradoxo da forma/obra, entre sua superfície e profundidade, analisando os conteúdos manifestos e latentes, que constituem a obra e se vinculam com o artista e seu contexto. Nessa via, a obra é um sinthome, que indica o saber-fazer do artista, a partir da articulação real, simbólica e imaginária, que é contingente ao ato criativo. Assim, o sinthome não é uma invenção ex nihilo, criação que viria do nada, pelo contrário é a amarragem que articula os três registros. A obra/sinthome pode ser pensada como forma, através da qual o ato criativo se apresenta em sua densidade imaginária, simbólica e real. Ela nos interpela, se impõe e, paradoxalmente, nos escapa, revelando sua falta de sentido. É o saber inconsciente que interrompe o curso da representação, segundo uma lei que resiste à observação banal, lei subterrânea que compõe durações múltiplas, tempos heterogêneos e memórias entrelaçadas; lógica da rede, sustentada por condensações e deslocamentos. O sinthome/obra nos apresenta esta estranha conjunção de diferença e repetição. Podemos seguir nossa análise sobre a obra de Mário Ayguavives na perspectiva do sinthome. Criada na virada do século XXI, Otro cuerpo é for- mação de compromisso entre o fascínio da manipulação e o domínio do cor- po, com a angustiante presença do corpo e suas deformidades. Ayguavives desfaz a forma e cria um outro corpo, ficcional. A obraOtro cuerpo é um estra- nho corpo que nos olha, questiona nossos ideais de controle sobre o corpo. O corpo que o artista nos revela não nos traz o sublime a ser contemplado, mas nos convoca a simbolizar, restando sempre um algo mais, que não cessa de não se escrever. É pela via do equívoco, dos duplos sentidos, que os psicanalistas traba- lham, também é por essa via que Mário Ayguavives cria seus corpos. Vale-se da tecnologia, questionando os limites entre realidade e ficção. Sua obra joga com os ideais de nossa época e nos questiona até onde queremos chegar nessa busca pela suposta verdade e domínio do corpo. A dúvida e o estranho parecem se afirmar como a verdade da obra, e talvez nesse gesto se torne possível interrogar as verdades do corpo. Pois, no que tange ao corpo, à subje- tividade e à vida, estamos alijados das certezas. Semelhante na diferença é a consigna por onde definimos o outro, mas também poderia ser atribuída ao cor- po, na medida em que busca ser um, mas está sempre produzindo diferença e

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repetição. Ele é materialidade que nos permite ser um, mas que também nos aprisiona, nos confunde, nos demanda preenchimento, dedicação. O homem ama seu corpo, na medida em que crê que ele lhe pertence. De fato, não se tem o corpo, mas o corpo, como bem analisa Lacan ([1975-76]2007), é nossa única consistência mental, que ainda assim sai fora a todo instante. Entre o real e o ficcional constitui-se permanentemente uma trama. Entre os ideais, as decisões e os atos do artista, dialoga-se com as possibilidades da matéria e os vestígios do inconsciente. Dos equívocos entre imaginário e real, constitui-se o sinthome. Se partimos da premissa da psicanálise, de irmos em busca dos sig- nificantes, dos vazios, dos meios ditos, realizaremos a leitura da obra, para além do encontro com o belo. O olhar em psicanálise, tomado na perspectiva da pulsão escópica, tem como uma de suas modalidades a reversão ao seu oposto, nesse sentido somos interrogados por aquilo que olhamos. Deparar- -se com a inquietante estranheza da obra assinala o lugar que suscita a an- gústia e nos interroga. Desta forma, o esforço metodológico de leitura das obras deve contemplar esta paradoxal estrutura das obras que, como sintho- me, mostram-se, mas, ao mesmo tempo, velam. Das particularidades significantes do inconsciente do artista há enlaces com os outros, que se dispõem a ver e se sentem interrogados pela obra. O inconsciente deixa vestígios, artifícios que produzem a obra, ao mesmo tempo, a obra é artifício, ato que produz inconsciente. Lacan analisa que “só há fato pelo artifício” ([1975-76]2007, p.63), só há fato, pois há discurso so- bre ele. O fato nos apresenta o real, mas só chegamos a pequenos pedaços dele. O estigma do real é não se ligar a nada. O real é sempre uma espécie de caroço, em torno do qual o pensamento vagueia, seu estigma consiste em não se ligar a nada (Lacan, [1975-76]2007). A obra, desta forma, está entre o real, que não pode ser dito, e a verdade que só é meio dita. Possivelmente, nos aproximaríamos da verdade da obra ao nos confrontarmos com sua radical constituição pela falta. Mas ao falar- mos possivelmente, já mentimos e mais uma vez o encontro com a verdade nos escapa. A obra, de maneira extraordinária, nos revela sua consistência, ex-sistência, seus não sentidos, seus furos. Na contemporaneidade, vivemos em meio aos rápidos avanços do co- nhecimento, que se desdobram diretamente sobre as concepções e possi- bilidades do corpo. As ciências da saúde, bem como as socioeconômicas e as da comunicação, estimulam e viabilizam a busca do corpo perfeito, que poderia se traduzir de forma dominante nos ideais do corpo jovem, belo, forte, saudável, produtivo e atraente. Na medida em que se associa o corpo a al- guns significantes que precisam se enodar de forma fixa, revela-se a terrível 32

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angústia do encontro com o real, com nossa impossibilidade de lidar com o que escapa à representação. Procura-se, portanto, fixá-lo em um lugar, objetivá-lo, para não nos confrontarmos com ele, com o seu incessante movi- mento pulsional e com a angústia frente à inevitável finitude. O artista cria um sinthome, mas isso não se trata de um processo total- mente consciente para ele. O artista está em meio ao seu tempo, é fruto do contexto e cria através de sua obra novas realidades. Ayguavives debruça-se sobre os processos de manipulação da imagem, a partir dos temas do corpo. Vale-se de um material que remete ao humano, mas cria um corpo, que po- deria ter sido feito com a pele de qualquer um, sem identidade, frio e vazio, que interroga os possíveis do nosso tempo. Seria interessante retomar que o inconsciente freudiano se constitui na relação que mantemos com o corpo, que nos é estranho. Do ficcional ao real, em movimento incessante, produz-se a obra, cons- titui-se um corpo. Sem o ficcional, sem que o discurso se materialize e dê forma ao corpo, não se produz um corpo. Nem a obra, nem o corpo, são má- quinas, não dispõem de forma fixa e estável. As obras de arte, enquanto atos dos sujeitos, são linguagens que carregam consigo aspectos conscientes e inconscientes e criam um saber sabido em ato, saber que não havia antes da presença da obra. A leitura das obras, sustentada pela teoria psicanalítica, revela a importância de ir em busca dos elementos significantes, que indicam as interlocuções instauradas pelo ato criativo, através de uma escuta/olhar flutuante. A psicanálise instiga a analisar as condições de enunciação do ob- jeto de arte, o jogo significante, que revelam e velam seu contexto, instauran- do novas realidades. Cada obra é como uma aranha que tira de si sua teia. É da obra que o analista deve partir, pois ela carrega consigo seu mundo, sua verdade, ainda que parcial e fragmentária. A obra de arte é um enigma não decifrado, que sempre deixa um certo ainda fascínio, que continua a nos interrogar.

REFERÊNCIAS DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. FRANÇA, Maria Inês. Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo: Perspectiva, 1997. LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, 1a edição. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. 9. ed. São Paulo: Mar- tins Fontes, 1986. PASSERON, René. Por uma poïanálise. In: SLAVUTTZKY, Abrão; SOUSA, Edson Luiz A. de; TESSLER, Elida (orgs.). A invenção da vida: arte e psicanálise. Porto Ale- gre: Artes e Ofícios, 2001, p.9-13.

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ZIZEK, Slavoj. Como Marx inventou o sintoma? In: ______. (org.). Um mapa da ideo- logia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.297-331. www.marioayguavives.com. Acesso em 14 out. 2015.

Recebido em 02/08/2016 Aceito em 09/09/2016 Revisado por Joana Horst

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Revista 49.indd 34 10/05/2017 14:44:49 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 49, p.35-43, jul. 2015/dez. 2015

TEXTOS RITMO E MELODIA: o corpo sob o efeito do significante musical1

Denise Mairesse2

Resumo: Este trabalho busca construir, através da escuta de um caso clínico, os efeitos do significante musical na subjetivação. Analisei o percurso de Ela na apropriação de seu desejo, perdendo 50 quilos e abandonando uma posição va- cilante entre ser e não ser o falo no desejo do Outro primordial, para dar voz e sonoridade ao sujeito. Este estudo se realiza na interlocução com os autores Didier-Weill, através do conceito de Nota Azul, e Jacques Lacan, através do con- ceito de pulsão invocante. Palavras-chave: ritmo, melodia, corpo, pulsão invocante, nota azul.

RHYTHM AND MELODY: the body under the effect of the musical signifier Abstract: This work seeks to build through the listening of a clinical case the ef- fects of the musical signifier on subjectification. I analyzed Ela’s path toward the appropriation of her desire, losing 50 kilos and abandoning her wavering position between being and not being the phallus in the desire of the primordial Other in order to give voice and sound to the subject. This study is grounded on conver- sations with the authors Didier-Weill, on the Blue Note concept and on Jacques Lacan’s concept of the invocatory pulsion. Keywords: rhythm, melody, body, invocatory pulsion, blue note.

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre. Tem como base um caso da clínica da autora e, ainda, na tese de doutorado da mesma intitulada Condição de morbidez: uma vacilação ao trágico? 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Mestre em Psicologia Social da UFRGS; Doutora em Educação da UFRGS. E-mail [email protected]

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á3 estava Ela4, aborrecida, entediada, melancólica. O trabalho, fruto de Luma formação sólida de graduação, a conduzia a um padrão que lhe pos- sibilitava status e dinheiro. Ela recém havia retornado de viagem, da morada no estrangeiro, onde lá se aventurou por outros cenários, um deles, o da música! Lá se tornou uma estrela. Fazia parte de uma banda, construiu uma imagem de si e para si, de muita alegria e força. Ela pesava em torno de 150 quilos e lá emagreceu. Por um tempo foi ela mesma, palavras suas em sessão. Ela volta ao Brasil com o mesmo peso que foi, algo a fez retornar à mesma posição. Retornou ao Brasil e caiu em terras gaúchas por motivo de um convite de trabalho. Ela me procura por indicação de um médico endocri- nologista, fala de seu sofrimento pelo peso e quer emagrecer, reencontrar-se em meio àquele corpo. Como sair de dentro do próprio corpo que, mesmo sendo ela, sentia como algo que não lhe pertencia. Construímos um laço transferencial que faz com que Ela se comprometa com o trabalho, apesar do inicial sentimento de dívida e culpa por estar se dedicando a si, e não somen- te à empresa que tão generosamente a acolheu. Desligar o celular na hora da sessão, estar desligada do trabalho, era um ato de muita coragem. Dizer não ao Outro, dar-se limite perante esta demanda produzia sofrimento e um pouco de alívio. A análise seguiu duas vezes na semana. No transcorrer do nosso trabalho, Ela passa a buscar hobbies: drama- tização e música. Inicia um curso de teatro, envolve-se com as artes e com os artistas da cidade, acabando por voltar a cantar. Ela canta e se encanta. A análise segue pela escuta e interpretação do significante, agora predominan- temente o da música, do cinema, da arte. Em uma análise, ao se revisitar antigos sítios da nossa alma, afetos brin- dam essas passagens como uma música que é capaz de nos remeter a acon- tecimentos, recriando-os e ao mesmo tempo nos reinventando. As imagens visuais, como as acústicas, guardam a possibilidade de criação, reinvenção, de nos inscrever em uma nova história. Mudam rumos, constroem destinos. A arte cinematográfica, a dramaturgia de modo geral, agrega todas essas imagens que nos levam para uma viagem, muitas vezes, sem volta, porque raramente saímos os mesmos de um espetáculo que guarda algum traço de verdade da nossa existência enquanto sujeitos.

3 O destaque em itálico em Lá e Si alude ao significante e à escrita da nota musical. 4 Denomino como Ela a paciente protagonista deste trabalho. 36

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E, assim, com lembranças de músicas, letras, melodias e batucadas, alternadas entre uma pontuação/interpretação minha e associação de Ela, produz-se um novo destino para este corpo outrora vivido como estranho, estrangeiro: “um outro em mim” diz Ela. Num primeiro momento, um acolhi- mento e apropriação do próprio corpo e, em seguida, um processo de ema- grecimento programado é disparado pelo desejo de leveza, liberdade, vida. Ao mesmo tempo em que um brilho acompanhava o cantar, aumentava o tédio ao trabalho burocrático que cada vez mais ocupava o lugar exclusivo de uma fonte de renda. Era no dançar, cantar, interpretar que Ela existia. A bebi- da e a comida que faziam instantaneamente, efemeramente e ilusoriamente a função de satisfazer a pulsão, são deslocadas, dando lugar à voz, fosse no cantar ou no dramatizar. O som que invade e o som que sai formam um circuito. A batida do tambor, o vibrar das cordas do violão se unem à vibração das pregas vocais, invadem a boca e acionam um fluxo de ar movimentando o abdômen, preenchendo todos os espaços. Enquanto se canta, se preenche de ar, enquanto se escuta, se preenche de sons. Ela emagreceu mais de 50 quilos. Mudou de profissão. Estudos de fisiologia (Todres, 2006) sobre os efeitos da música demons- tram reações químicas capazes de alterar o humor. Pórem, é em seu valor de linguagem, estruturada como o inconsciente, a partir do significante, que é possível através da música fazer acessar um outro de si. Isto é, a música que ressoa guarda a potência de convocar o sujeito a outras posições possíveis no que diz respeito ao desejo. Trata-se aqui do corpo submetido ao simbólico e recortado pela pulsão de que Freud e Lacan nos falam, isto é, do circuito pulsional desencadea- do pela inserção do sujeito no campo do Outro. Aliada à pulsão escópica, a pulsão invocante5, que tem a voz como objeto, faz uma importante função na constituição do fantasma que vai acompanhar e determinar o sujeito. Ou seja, os efeitos da música estão na relação com a produção fantasmática, constituindo, no processo de alienação do sujeito ao campo do Outro, o eu- -ideal e o ideal-de-eu. A partir desta posição (de alienação) se constrói um lugar no mundo. Seja na escolha por ser artista compondo, tocando e cantando, seja no gosto pela música, é no corpo, ao escutar a nota cujo valor de traço (segundo Didier-Weill) ou de significante (conforme também trago aqui) produzindo uma

5 O conceito de pulsão invocante é chave para pensar este caso sendo posteriormente reapre- sentado no texto, principalmente desde os seminários de Lacan nos Livros 10 e 11.

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reação, que acontece um movimento. É no encontro com o que Didier-Weill (1997) chamou de Nota Azul, inspirado na cor da nota que George Sands e Eugène Delacroix (http://www.ecodi.com.br/wp-content/uploads/2013/12/ CHOPIN.pps) diziam escutar entre as notas musicais que compunha improvi- sadamente Chopin, La Note Bleu, que o sujeito pode advir. Mais precisamente, segundo Azevedo,

A nota azul, [...] como tomada por Didier-Weill (1999, p.33), diz de um ponto em que o sujeito, “dividido pela tensão produzida entre a harmonia e a melodia”, pode escutar além do que está presente na música e alcançar “uma certa nota – ainda não pre- sente – no nível da qual a tensão entre a sincronia harmônica e a diacronia melódica poderia ser resolvida”. É uma nota, portanto, virtual e efêmera, porém que comporta um ponto real (Weill apud Azevedo, 2008).

O corpo dá pistas desse encontro, seja numa mudança do ritmo respira- tório, no bater de um pé, no balanço do tronco, batendo palmas, em um can- tarolar ou mesmo na grande alegria e produção de sorrisos. Ou, ainda, em uma profunda tristeza acompanhada de lágrimas, no aperto do peito de an- gústia ou ao tremer de medo pelo efeito de suspense. Uma bela coreografia pode surgir da produção fantasmática de um bailarino, um grande concerto pode surgir da obra de um compositor que escuta, mesmo na ausência dos sons, como foi o caso de Beethoven. O que escutava Beethoven? Segundo Didier-Weil (1997, p.61) “[...] sob o impacto da Nota Azul, o mundo começa a falar conosco, as coisas a ter sentido: os significantes da cadeia ICS, de mudos que eram, despertam e começam, assim causados pela Nota Azul, a nos contar causos.” A Nota Azul tem o sentido do “de-sen- tido”, do zero, do traço que faz cada sujeito Um. Faço um paralelo ao traço unário, a pegada apagada bordeando Lacan no livro da Identificação (1995), “essa fugitiva não se guarda [...]. Ela só se dá a nós uma vez que imediata- mente nos escapa” (p.60), refere Didier. É a estrutura, suporte textual das outras notas na formação da melodia que se encaminha para a Nota Azul, que possibilita o que Didier coloca como “explosão do sentido” (p.62), uma ruptura temporal previamente anunciada. Um gozo nostálgico que nos reme- te à origem, ao ponto onde tudo começou, porém como na repetição guarda consigo a diferença. A Nota Azul, tomada por mim como uma metáfora, pode estar em qualquer canção, entre a harmonia, a melodia e o ritmo. Por isso sempre atual ou atualizada. Do cantarolar materno, da fala melódica de quem faz função materna para o bebê ao funk da periferia ou sinfonia de Bethoven, 38

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Chopin e outros. Como relata Érico Veríssimo no prefácio do livro Elementos da linguagem musical, de Bruno Kiefer, sobre uma cena onde também reali- zava um trabalho burocrático. Batendo à maquina de escrever, Veríssimo descreve: “De súbito a Un- derwood transformava-se num piano e eu era Paderewski a tocar uma Rap- sódia Húngara.” E sobre uma outra canção ele diz: “Num vago narcisismo de bugre, achava a melodia parecida comigo” (1987, p.8). É neste ponto de afetação, de identificação, que explode a Nota Azul, in- vadindo o sujeito de uma emoção. Uma “emoção musical” (Didier-Weil,1997, p.58). Conta Veríssimo (1987, p.10): “E, até hoje, passados mais de trinta anos, sempre que torno a ouvir essa melodia de serena e preguiçosa melan- colia, consigo recapturar, reviver mesmo aquele estado de espírito [...]”. E, continuando, Érico Veríssimo (1987, p.15) ainda nos fala:

Uma melodia quase sempre nos evoca um momento de nossa vida passada, uma situação psicológica qualquer, uma ou mais faces humanas, lembranças de vozes, espectros de vividas sensações e reprimidos desejos – e lá está a nossa memória a borboletear [...] teleguiada pela fantasia.

Mas o que são essas lembranças de vozes? O que é a voz? A voz da mãe para o bebê é como o som do shofar para o povo judeu: a voz de Deus, como lembra Lacan (2004). Um dizer além das palavras. Aquilo que só pode ser nomeado depois. Este é o valor da intraduzibilidade musical. A nota especial que compõe a voz da mãe, do som do shofar ou de uma cantiga infantil carregam um sentido pelo encadeamento dos significantes musicais que objetivam uma comunicação. O bebê não entende o que fala a mãe, mas se acalma ou se agita conforme o tom e/ou conforme a melodia e o ritmo de sua fala. Assim, também, o ritmo de uma música, como o pulsar do coração, afeta, transmite, provoca. O ressoar do batimento cardíaco da mãe, no in- terior do ventre, já convoca o bebê a um reconhecimento. De acordo com Débora da Fonseca Seger (2011, p.21-22), Theodor Reik, discípulo contem- porâneo de Freud, diz: no “fruir musical, as pulsações de uma composição se transformam nas nossas e não podem ser captadas por palavras. Discutir o significado de uma música, portanto, estaria fadado ao fracasso”. Pois cada um é Um. A música dá suporte ao significante musical e também para a nota pegada e esses, significante e traço, articulados ao discurso que faz laço no social, constroem singularmente um significado. É na escuta do sujeito sobre o significante que o significado se realiza. Para cada sujeito um significado, uma associação e uma interpretação da demanda do Outro primordial, do

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Outro materno. Assim, como nos fala Heloisa Helena Marcon (2006) em seu texto Notas da Pulsão, “[...] essa intraduzibilidade também tem relação com a alteridade específica com a qual a experiência musical conecta, alteridade absoluta, pois que “transcende tudo o que é significável pela palavra” (Weill apud Marcon, 2006, p.70). Portanto, além da sociologia, da filosofia e da literatura, a música, entre ainda outros saberes, constitui-se como mais um campo que dialoga com a psicanálise. Tomando-a estruturada como uma linguagem, percebe-se que essa produz efeito de inscrição no corpo. Isto é, constitui o sinthoma (Lacan, 2007), sendo parte importante na fundação do sujeito. Diferentemente do sintoma construído a partir de uma formação do inconsciente, desde a no- ção freudiana de retorno do recalcado, o sinthoma elaborado por Lacan a partir, principalmente, do seminário 23 ([1975-1976]2007), recebe o estatuto de uma escritura. Assim, desde os sons maternos em que primordialmente é registrada a Nota Azul, notas musicais se encadeiam e se repetem encon- trando na melodia, na harmonia e no ritmo um suporte textual que, entre outros significantes, entrelaçam o corpo a uma superfície de enodamento ao registro do real, do simbólico e do imaginário, se constituindo em um quarto elo nessa estrutura. A estruturação psíquica, “combinatória particular na qual o sujeito vem se inscrever em relação ao Outro, em relação aos objetos e em relação aos significantes” (Rassial apud Stahlshmidt, 2002), depende desta inscrição no campo do Outro, que se produz através da relação com os objetos desde o circuito pulsional e na relação com a nomeação desses significantes. Lacan ([1964]1998) trabalha em seu seminário Os quatro conceitos fun- damentais da psicanálise, sobre este caminho que percorre a pulsão e sobre os dois tempos, ativo e reflexivo, que designa Freud, e um terceiro tempo, que ele inaugura em sua leitura sobre a teoria das pulsões. De uma fonte em borda como o orifício anal, a boca, o olho, por exemplo, zonas ditas eróge- nas, parte o que Freud ([1915]2004) designa como Drang, pressão, impulso ou, como prefiro dizer no contexto do caso apresentado, uma força psíquica que percorre um trajeto, Aim6, buscando sua satisfação pela realização deste percurso ao visar acertar o alvo. Lacan, percebe que a satisfação não está no alvo, goal, mas no aim, fazendo deste o seu alvo. Ilustro com as palavras traduzidas de Lacan ([1964]1998):

6 Denominação dada por Lacan na língua inglesa. 40

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O goal, isto não é, também, no lançamento com arco e flecha, o alvo, não é a ave que vocês abatem, é ter acertado o tiro e, assim, atingido o alvo de vocês. Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação a uma totalização biológica da fun- ção, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é que ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é outra coisa senão esse retorno em circuito (p.170).

Retorno em circuito em torno de um objeto que lá está enquanto ausente e por isso essa Drang nunca cessa, presentificando-se enquanto represen- tada parcialmente. Conforme elabora Seger, 2011, p.28: “Surge, portanto, ao lado das pul- sões oral, anal, fálica e escópica, a pulsão invocante, que seria segundo ele (Lacan) ([1964]1988, p.102), “a mais próxima da experiência do inconscien- te”. Respeitando os três tempos do circuito pulsional já expostos, Catão (2009, p.125) propõe a divisão dos três tempos no registro da pulsão invo- cante nos seguintes termos: ouvir (o chamado do Outro primordial), se ouvir (acontece a posteriori, quando o primeiro grito do infans retorna da mãe sob a forma de uma demanda) e, finalmente, se fazer ouvir (aparecimento do sujeito da pulsão)”. Continuando com Seger:

O trajeto das pulsões [...] seria, desta forma, possível unicamente pela mediação de um outro (Outro), através do qual as pulsões da- riam acesso ao significante em substituição ao objeto impossível de ser encontrado. Seria, assim, exatamente onde o outro (Outro) falha em satisfazer a busca por completude, que o circuito pulsional se estabeleceria em seu eterno circundar o objeto a, permitindo advir, na cadeia significante, o que chamamos de sujeito (p.27).

Para Lacan ([1964]1998), a voz é um objeto pulsional fundamental nes- sa relação com o outro/Outro. Um objeto cuja característica biológica e fun- ção somente funcionam em circuito. Depende do ouvido para ouvir o som e imitá-lo através da boca e todos os outros órgãos envolvidos. Órgãos de borda como já salientava Freud. O som viaja dentro e fora, circula orelha, ouvido, tímpano, ressona, vibra, e num vaivém a pulsão contorna o objeto. A voz, como os outros objetos pulsionais, está ali na função de objeto causa do desejo, objeto a. Uma promessa de gozo, uma esperança, como a música que comporta a Nota Azul? Ao suspender a música se suspende a invocação.

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Mas é essa característica do objeto, parcial e faltante, cuja pulsão ao buscar uma satisfação atráves desse e que não se completa, é o que faz com que a pulsão entre em um circuito inesgotável, fundamental para o surgimento do sujeito. Nesta passagem do som resta, então, um efeito da invocação. O registro da ausência do objeto inaugura uma falta, faz uma marca que ressoa mesmo após cessar a melodia, o ritmo, dando lugar ao desejo, agora pela voz do sujeito. Voltando ao caso apresentado, Ela, hoje, canta e interpreta em outras terras. Luta pela nova vida como quem luta para respirar. O fantasma que outrora tentava satisfazer a pulsão oral, principalmente através da comida e da bebida não a abandonou, mas perdeu poder. Ela, agora, dá vez paralelamente a uma outra pulsão, em um terceiro tempo se faz ouvir, fundando uma outra posição. Falante e cantante no pal- co, brilha como Veríssimo em sua “Underwood – piano”, porém não mais na fantasia7.

REFERÊNCIAS AZEVEDO, Renata Mattos de. Sobre a criação da obra de arte musical e sua escuta: o que se dá a ouvir? Cogito, Salvador, v. 9, 2008. Disponível em: . Acesso em 04 nov, 2015.DIDIER-WEILL, Alain. Nota Azul: Freud, Lacan e a Arte. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997. ______. Os três tempos da lei: o mandamento siderante, a injunção do supereu e a invocação musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. DELACROIX, Eugène; SANDS, Georges. Disponível em: http://www.ecodi.com.br/wp- -content/uploads/2013/12/CHOPIN.pps. Acesso em 04 nov. 2015. FREUD, Sigmund. Pulsões e destinos da pulsão [1915]. In: HANNS, Luiz Alberto. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2004, V. 1, p.133-173. LACAN, Jacques. L´séminaire, livre 9: L´identification [1961-1962]. Association Freu- dienne Internationale, 1995. ______. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964]. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ______. L´séminaire, livre 10: L´angoisse [1962-1963]. Paris: Éditions du Seuil, 2004. ______. O seminário, livro 23: O sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. MARCON, Heloisa Helena. Notas da pulsão. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 31, p. 68-75, dez., 2006.

7 No sentido de ficcionalidade do ilusório como denomina Lucia Serrano Pereira no livroA ficção na psicanálise (2014). 42

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PEREIRA, Lucia S. Apresentação. In: ______. (org). A ficção na psicanálise: passa- gem pela Outra cena. Porto Alegre: APPOA/INSTITUTO APPOA, 2014. p.11-16. STAHLSHMIDT, Ana Paula Melchiors. A canção do desejo: da voz materna ao brincar com os sons, a função da música na estruturação psíquica do bebê e sua constituição como sujeito, 2002, 321 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002. SEGER, Débora da Fonseca. Voz tangida a vela e vento: Psicanálise, musicalidade e as navegações de Gilberto Mendes, 2011, 94 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) Faculdade de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. TODRES, I. David. Música é remédio para o coração. Disponível em: http://www.re- dalyc.org/articulo.oa?id=399738109002. Acesso em 04 nov. 2015. VERÍSSIMO, Érico. Prefácio. In: KIEFER, Bruno. Elementos da linguagem musical. 5ª ed. Porto Alegre: Movimento,1987.

Recebido em 05/08/2016 Aceito em 16/09/2016 Revisado por Clarice Sampaio Roberto

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Revista 49.indd 43 10/05/2017 14:44:49 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 49, p.44-56, jul. 2015/dez. 2015

CORPO REAL, TEXTOS CORPO SIMBÓLICO, CORPO IMAGINÁRIO1

Ligia Gomes Víctora2

Resumo: O texto trata sobre as diferentes abordagens possíveis sobre o corpo na psicanálise. De que corpo se analisa o paciente em análise? Quais as figuras topológicas que Lacan utilizou para falar do corpo? Outros psicanalistas, como Marc Darmon, Marc Nacht, Jean-Jacques Tyszler e Bernard Vandermersch con- tribuíram para se compreender melhor esta topologia do corpo. Palavras-chave: corpo, real, simbólico, imaginário, topologia.

REAL BODY, SYMBOLIC BODY, IMAGINARY BODY Abstract: The text deals with the different possible approaches of the body in Psychoanalysis. Which body is analyzed while the patient is under analysis? Whi- ch topological figures did Lacan use to speak of the body? Other psychoanalysts, such as Marc Darmon, Marc Nacht, Jean-Jacques Tyszler and Bernard Vander- mersch contributed to better understand this topology of the body. Keywords: body, real, simbolic, imaginary, topology.

1 Trabalho apresentado no Congresso da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre. Este texto em versão reduzida foi publicado no Correio virtual da APPOA de março 2016, sob o título Corpo RSI. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Analista-membro da Association Lacaniènne Internationale (ALI). Responsável pelos seminários e oficinas de to- pologia na APPOA. Autora do livro Topologia e clínica psicanalítica. E-mail: [email protected]. 44

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uando recebemos alguém para análise, esta pessoa geralmente já vem Qcom queixas sobre seu sofrimento psicológico e, muita vez, físico tam- bém. São dores na cabeça, nas costas, no peito, medos, insegurança, tris- teza... Enfim, um mal-estar “de corpo e alma”. A questão é: que corpo é este com que lidamos durante uma análise? Lacan ([1965/66] Inédito), no seminário O objeto da psicanálise propôs que o objeto do desejo, chamado por ele de “objeto a”, pudesse ser tomado de três maneiras: 1. no real – enquanto desejo inconsciente, inapreensível; 2. no simbólico – tudo o que possa suscitar desejo com o discurso e provocar o gozo fálico; 3. no imaginário – como os objetos destacáveis do corpo, mas que se mantêm sempre circulando por suas bordas: seio, fezes, e ainda funções, como o olhar e a voz, tomadas como objetos. Seguindo os mesmos passos de Lacan, gostaria de propor três verten- tes possíveis para se pensar o corpo: 1. corpo real: inacessível à consciência em sua totalidade por ser real, mas cuja estrutura orgânica dá o suporte físico ao simbólico e ao imaginário; 2. corpo simbólico: que seria o envelope tecido pela linguagem. É como uma segunda pele, feita por uma rede de significantes; 3. corpo imaginário: a imagem de como o sujeito se vê, e como acredita ser visto pelos outros. Explicando melhor:

Corpo real

O sujeito nasce com um corpo orgânico que segue uma “bio-lógica”, com um sistema mais ou menos autônomo, no sentido de ser independente da consciência, mas que não fica imune aos processos inconscientes – que irão organizar ou desorganizar esta lógica “bio”. Mas este corpo biológico, que integra o corpo real, não sobrevive por si só, e só ganha vida na medida em que outras instâncias interferem nele. Este corpo real inclui o corpo orgânico – ossos, órgãos, etc., mas não se reduz a isto – pois ele só existe à medida que for falado. Conforme Nacht (2000, p.207), “ele não tem existência, a não ser pelas palavras que o descrevem”. Este corpo real pode ser depositário de tudo o que for recalcado da consciência – inclusive o recalcado da família, as coisas mal contadas. Se- gundo Nacht, “este corpo real pode ser identificado como o recalcado do cor- po do desejo inconsciente. É um corpo inconsciente que insiste atrás destas representações não faladas” (2000, p.208).

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Corpo simbólico

O corpo simbólico vai se formando pela incorporação de significantes, desde as primeiras identificações. Trata-se mesmo de uma “in-corpo-ração”, ou da introdução, no corpo, de significantes dirigidos e/ou associados ao fu- turo sujeito – desde seu nascimento ou mesmo antes de ele nascer – que vão criando um campo simbólico propício ao desenvolvimento de um sujeito. Seria um emaranhado de palavras, tecendo uma rede – que será organizada pelo significante chamado por Lacan de Phallus e que será coroada pelo nome-próprio. Isto vai formar uma unidade de ser: “Eu sou o Fulano de Tal” – o sujeito se identifica pelo nome. A instância simbólica, ou seja, as palavras advindas dos outros, vai ani- mar o corpo real, no sentido original, de animare, do latim: dotar de vida (ani- mus: espírito, energia, coragem, audácia, vontade, desejo e paixão). Como é um corpo simbólico, “este corpo falado não escapa às regras da semântica e da sintaxe – faz-se objeto de condensações e deslocamentos” (Nacht, 2000, p.208) – e é passível de associações e de interpretação.

Corpo imaginário

É a instância do imaginário que faz a costura do real com o simbólico. O único acesso possível ao corpo orgânico seria através do imaginário. Uma prova de que o corpo é imaginário são pessoas magérrimas que se acham gordas, bonitas que se acham feias, e vice-versa... O corpo imaginário se forma a partir do olhar do outro – mas também pe- las carícias, toques do outro, que vão moldando este corpo, como se fosse de massinha de modelar. Isto se monta, mormente, a partir da fase do espelho. As brincadeiras que se fazem intuitivamente com os bebês – “De quem é este pezinho?” Ou – “Vou comer essa barriguinha” – vão também dando limites e criando um corpo imaginário. Neste corpo imaginário vão sendo feitos furos pelos significantes dos outros. Diz-se, em topologia, que os furos são bordas que organizam as superfícies. Nas palavras de Marc Darmon (2004, p.362): “de fato, tudo o que faz borda sobre o corpo pode ser fonte de uma pulsão e corresponde a um objeto, dito pequeno a, particular...”. E é incrível como isso acontece naturalmente. Parece que há um empuxo natural à linguagem e a predis- posição à criação de uma relação com o outro. E é bem sabido que, “uma vez que se entra na linguagem, daí não se sai mais, isso vai se ramifi- cando, um significante reenviando sempre para outro...” (Darmon, 2004, p.362) 46

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Numa clínica de bebês abandonados com HIV havia um indiozinho de 10 meses. Apático, com sérios problemas de saúde e um histórico de hospi- talismo, passava os dias deitado com o olhar perdido. Um dia resolvi lhe dar atenção e comecei a fazer a brincadeira de “comer o pezinho”. Ele se retraiu de início, virou de costas para mim. Como eu insistia, começou a aceitar a brincadeira e, pouco a pouco, a me provocar. E, na semana seguinte, quando fui buscá-lo, ele imediatamente me ofereceu seu pé!

O corpo na psicanálise

E o que é o corpo que se apresenta em uma análise? O corpo falado pelo discurso do analisante “se forma na transferência com o analista, é uma representação complexa que põe em jogo a relação do sujeito com sua história, seus ancestrais – tomados sempre em uma função de espelho, mais ou menos deformante”3 (Nacht, 2000, p.207). Sempre meio enviesado, como o espelho no quadro Las meninas4. Um reflexo do olhar e das palavras dos outros, que vão se projetando, e compondo uma imagem, como em uma tela. Logo, o corpo falado em análise é uma construção. En- quanto construção simbólica, este corpo imaginário, projetado na tela do cor- po real, será objeto de associações e deve ser “escutado”, como um sonho. Exemplos de como as pessoas se referem ao corpo: – Hoje estou com uma dor no vazio! – Como assim, no vazio? – Lá na minha terra, o vazio é uma parte do boi que se usa para fazer guisado, acho que é aqui (mostra o abdômen). Na verdade, o vazio ou fraldinha é uma peça de carne bovina usada no sul para o churrasco, logo, sendo a paciente natural da região da campanha, dizer que “é para fazer guisado” pode ser considerado um lapso. De fato, a paciente justifica em seguida, associando com seu vazio existencial. – Um vazio, como na minha vida: às vezes parece que já morri. Outro exemplo: – A minha mãe não podia ter filhos. Tinha os úteros virados. – “Os” úteros? Quantos ela tinha? – O que eu falei? Não são dois?

3 Tradução livre da autora. 4 O quadro Las Meninas, de Velázquez (1656) medindo 318×276 cm, encontra-se no Museu do Prado, Madrid.

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Isto, vindo de uma pessoa com curso superior pode muito bem ser to- mado como uma formação do inconsciente. Um lapsus linguæ, como ficou provado em seguida, quando a paciente entra num estado confusional. Em seguida, ela faz uma associação com o fato de ter duas mães, uma vez que fora adotada. Ainda conforme Nacht (2000, p.207), “a abordagem psicanalítica não permite falar do corpo como de um objeto, muito menos um objeto científico, cujas características e reações podem ser analisadas e classificadas confor- me o método científico de observação e experimentação”5 – e eu acrescenta- ria: como no discurso médico. O corpo demonstra aquilo que vai no inconsciente – engorda, emagrece, adoece, faz úlceras, tumores... E também, felizmente, às vezes, se cura. Assim como a pele revela publicamente aquilo que não é dito. Ela enru- besce, empalidece, coça, sua, explode em espinhas, furúnculos, como vul- cões a liberar o estresse. Ficam literalmente “na cara” a vergonha, o emba- raço, o medo, etc... É o órgão de contato com o outro por excelência, logo é o que mais se presta para mostrar e demonstrar o que lhe vai “por dentro”. A partir de agora, vamos ver que na verdade o corpo não tem um dentro – nem um fora.

O corpo na cadeia borromeana

Figura 1: a cadeia borromeana

5 Tradução livre da autora.

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Uma abordagem de Lacan sobre o corpo foi através da teoria dos nós. Nesta imagem, que Lacan apresentou na conferência A terceira ([1974]2002), observem que o corpo é colocado no aro do imaginário, mas tem suas inter- seções com o real e o simbólico, formando os campos do objeto do desejo e dos gozos. Para Lacan, apenas o gozo fálico ficaria fora do corpo (na parte de baixo do nó, de onde escorre o campo do sintoma). Ainda dentro desta teoria de Lacan, seria o imaginário que faz a cone- xão entre o real e o simbólico, ou seja, aquilo que costura o real e o simbólico é o imaginário. Não é estranho que seja o corpo imaginário aquilo que dá consistência ao sujeito? Mas é justamente isso: o corpo imaginado segura o corpo real, lhe dá imagem e substância. Sem ele, seríamos meros espectros – o corpo seria muito frágil, como uma folha ao vento.

O cross-cap de Lacan

Outra abordagem de Lacan sobre o corpo, desta vez na topologia, foi com o plano projetivo. Esta figura foi apresentada por Lacan (1961-62) no seminário A identificação (Lição 20 – 16/05/1962). Vejam (figura 2) que há estas linhas em forma de infinito, que representam que se pode passar de um lado – aparentemente interno – ao outro – aparentemente externo sem cortes. Isso justifica esta figuração do corpo, onde o interior é um contínuo com o exterior.

Figura 2: esquema do cross-cap de Lacan (1)

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Lacan (1961-62) apresenta este desenho (figura 2) e diz: – “Seu verda- deiro nome é plano projetivo da teoria das superfícies de Riemann. Chama- rei, contudo, de cross-cap”. E é verdade. O cross-cap de Lacan, na verdade, é um plano projetivo da topologia, uma variedade do espaço-tempo que tem quatro dimensões (em que a quarta é o tempo), projetado em duas dimensões (D2), ou seja, no plano. O próprio Lacan (1962) diz, na sequência: – “Para imaginar o que é esta esfera encapsulada é preciso pensar em pelo menos quatro dimensões”.

Figura 3: o plano projetivo real

Conhecido por RP2 – real plan aplicado a um plano de duas dimensões (D2) – é o conjunto de todas as retas que passam pela origem da circunferên- cia. Isso faz com que a superfície toda se adentre nela mesma, tornando-se, assim, uma superfície unilátera – de um só lado – onde o aparente lado de fora está em continuidade com o falso lado de dentro (pois na verdade é uma coisa só). Porém ― e sempre há um porém... ― o que acontece quando uma variedade unilátera (VЭD (x>3))6 é projetada no espaço D3 ou no plano D2? Ela

6 Variedades que pertencem a dimensões maiores que 3. 50

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perde pontos – ou seja, onde antes eram dois ou mais pontos agora será um só. As variedades uniláteras não podem ser imersas em dimensões menores sem sofrer perdas... Vários pontos coincidem em um só, e ela perde sua pro- priedade de unilateralidade. Nota: na matemática uma variedade é uma generalização da ideia de superfície. Há vários tipos de variedades, de acordo com as propriedades que possuem. As variedades são de interesse no estudo da geometria e da topologia, e as mais usuais são as variedades topológicas (esfera, toro, garrafa de Klein, banda de Möbius, etc...). Na psicanálise, trabalhamos as classificações diagnósticas conhecidas por “estruturas” (neurose, psicose, perversão) como se fossem variedades – generalizações dentro das doen- ças mentais. O cross-cap de Lacan lembra o esquema do “saco”, que Freud apresen- tou em 1923 e depois novamente em 1932. Vejam que tem um lado de fora, em contato com o “mundo externo”, e outro lado de dentro – uma parte pré- -consciente e outra parte inconsciente. O indivíduo freudiano tinha o interior e o exterior bem definidos.

Figura 4: esquemas de Freud

Só que a proposta de Lacan não tem dentro e fora como a de Freud. O plano projetivo é unilátero (possui um só lado) e não possui bordos. O plano projetivo plano e esférico são exemplos de imersões de variedades no cha- mado plano R2 (real ao quadrado, significa que tem dois lados – o de dentro e o de fora).

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Figura 5: esquema do cross-cap de Lacan (2)

Conforme Vandermersch (2008), “esta forma aparentemente homogê- nea é, de fato, um composé heterogêneo do sujeito e do objeto. Quando um significante faz corte nesta forma, o sujeito é o produto da operação. O objeto, seu resto, a moldura despercebida da realidade do sujeito” (p.208). Com este esquema misterioso, puramente imaginário, Lacan repre- senta em uma superfície única a junção do sujeito com seu desejo. Para se compreender melhor este plano projetivo de Lacan, imaginem uma projeção de uma esfera no plano: vira apenas um círculo! Da mesma forma, um plano projetivo projetado no plano aparece com sua autointerseção simplificada, como uma linha sinuosa culminando em um ponto limite, onde Lacan loca- lizou o fi (f) – letra grega que representa o significante phallus – ponto que tem uma função estrutural (Lacan, 1962), e que organiza toda a superfície em torno dele. Por carregar o fi, este círculo também é portador do objeto do desejo. Lacan diz que “o Falo faz o buraco e coloca o objeto a lá dentro” (Lacan, 1962). O que acontece quando os significantes do outro começam a “cortar” este corpo? Este corpo vai se transformar em outras variedades, lembrando que toda borda pode ser o início de uma pulsão. Lacan começa a fazer o mesmo exercício que fizera em relação ao toro e à banda de Möbius: cortar e cortar o plano projetivo para ver se consegue uma imagem melhor para a estrutura do fantasma. A questão é: como sepa- rar o sujeito de seu objeto de desejo? O primeiro corte – o corte simples – abre uma borda na superfície e a transforma em uma variedade homeomorfa ao verdadeiro cross-cap dos topólogos. 52

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Figura 6: esquema do corte simples no plano projetivo

Figura 7: o cross-cap dos topólogos Já o corte moebiano separaria a superfície em duas partes. Lembrando que são cortes virtuais, não sendo possível reproduzir essa construção em papel ou tecido.

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Figura 8: esquema do corte moebiano ou em oito-interior no plano pro- jetivo

Lacan (1962) usou este corte para representar o corte do fantasma. Deste corte, resultariam: Uma banda de Möbius (que é o próprio corte), equivalente ao sujeito; Todo o resto do tecido, inclusive o ponto central fi, que seria o objeto a. Esta é a operação que permite ilustrar a separação do sujeito e do dese- jo, ou seja, o fantasma ($◊a). O operador em forma de losango (◊) representa o corte do significante.

Figura 9: o corte do fantasma 54

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Lacan geralmente trata o fantasma como uma função imaginária. Esta propriedade de desmaterialização do fantasma, nas palavras de Jean-Jac- ques Tyszler (2014, p.16), o torna automaticamente abstrato. Além disso, ao utilizar modelos topológicos no lugar de exemplos clínicos, Lacan, na visão de muitos, em vez de facilitar, cria mais um problema, o de decifração de enigmas... Ao nomear como “objetos” o seio (representante da pulsão oral) e as fezes (pulsão anal) – estes têm uma materialidade física, digamos. Mas e os outros ditos objetos, designados por Lacan: a voz e o olhar? Qual sua ma- terialidade? Não encontram representação no corpo, são puramente funções. Para encerrar, deixo uma citação de um belo texto de Marc Nacht (2000, p.210)7:

O que é o corpo para a psicanálise? A concha mítica evocada por Platão está, talvez, mais próxima disto que um cadáver retalhado sabiamente e quase amorosamente desenhado por Vésale8. Mas há um caractere comum a cada uma destas representações por mais distantes que elas sejam uma da outra: todas duas são mar- cadas pelo corte como se o fio que separa, tesoura dos deuses ou escalpo do anatomista, fosse disso o traço significativo. O que é senão o corpo do desejo liberado da morte, que era seu domicílio secreto? Que, depois de ter invertido a demanda e se dado conta da alteri- dade que o funda, vive do encontro disto que acompanha o outro e de – palavras. É, então, um corpo desejante, livre de seus males.

REFERÊNCIAS DARMON, Marc. Essais sur la topologie lacanienne. Paris: Éditions de l’Association Lacaniènne Internationale, 2004. FREUD, Sigmund. O ego e o id [1923]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas de . Rio de Janeiro: Imago, 1980, v.19. FREUD, Sigmund. Conferência XXXI [1932]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v.22. LACAN, Jacques-Marie. Seminário l’identification [1961/62]. In: ______. Obras com- pletas. Disponível em: gaogoa.free.fr. Acessado em: 04/01/2016. LACAN, Jacques-Marie. Seminário l’objet de la psychanalyse [1965/66]. In: ______Obras completas. Disponível em: gaogoa.free.fr. Acessado em: 04/01/2016.

7 Tradução da autora. 8 Anatomista francês do século XVI. 55

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LACAN, Jacques-Marie. A terceira [1974]. In: Cadernos Lacan. Vol. II. Porto Alegre: Edições da APPOA, 2002. NACHT, Marc. Corps du désir. In: Le corps a ses raisons. Atas do colóquio. Paris: Ed. Association Psychanalyse et Médecine, 2000. TYSZLER, Jean-Jacques. O fantasma na clínica psicanalítica. Trad. Letícia P. Fon- seca. Recife: Association Lacanienne Internationale, 2014. VANDERMERSCH, Bernard. Le cross cap de Lacan ou «asphère». In: Dossier Topo- logie. 2008. Disponível em: http://freud-lacan.com/freud/Champs_specialises/Topolo- gie/Le_cross_cap_de_Lacan_ou_asphere Acessado em: 31/01/2010.

Recebido em 21/08/2016 Aceito em 21/10/2016 Revisado por Joana Horst

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Revista 49.indd 56 10/05/2017 14:44:50 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 49, p.57-65, jul. 2015/dez. 2015

TEXTOS O CORPO NO LITORAL DA CIÊNCIA1

Ana Costa2

Resumo: O artigo trata de como em cada tempo se situa o que fica excluído dos discursos. Aborda proposições lacanianas de Lituraterra, que sustentam o furo no saber. Traz elementos da passagem adolescente para situar formações sintomá- ticas contemporâneas. Palavras-chave: discursos, passagem adolescente, lituraterra.

THE BODY IN THE LITTORAL OF THE SCIENCE Abstract: This article discusses what is excluded of the speeches. Also discusses the Lacanian propositions of Lituraterre, about a hole in the known. It discusses elements of the adolescent passage to situate clinics formations in our days. Keywords: speeches, adolescent passage, lituraterre.

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre. 2 Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA; Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP); Pós-Doutorado na Université de Paris 13; Professora Cola- boradora do PPG em Psicanálise da UERJ; Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq; Coordenadora da Rede de Pesquisa Escritas da Experiência (CNPq). E-mail: [email protected]

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Revista 49.indd 57 10/05/2017 14:44:50 Ana Costa

nicialmente, quero indicar algumas questões referentes à constituição das Imargens de nossas representações. Representações, em termos lacania- nos, pertencentes ao campo do imaginário. As margens – que eu também poderia situar como bordas dos discursos – dizendo respeito ao que fica ex- cluído da circulação de valores sociais. Essa circulação de valores podemos também nomear como gozo fálico. São eles que situam diferentes lugares nos nossos laços, que dizem o que está dentro, ou fora, que nomeiam o ex- cluído de diferentes formas, ao longo do tempo e da história. Michel de Certeau (2002), por exemplo, toma como significante a pala- vra alemã Luder (puta, cadela), do caso de Schreber, situando-o como um dos nomes do que fica excluído. Certeau se utiliza do caso de forma diferente da psicanálise, mesmo que influenciado por ela, porque ele pertence ao cam- po da história. De qualquer maneira, é interessante a leitura que o autor faz. O caso de Schreber é bastante conhecido no meio analítico, tendo servido a Freud ([1910]1973) para situar alguns mecanismos da psicose. Mas não é para todos que o significante Luder funciona como um dos nomes do ex- cluído, ele pode vir como ofensa, mas não ter efeito tão radical. Para isso, é preciso que ele venha no lugar da injúria. A injúria não é uma ofensa qualquer. Se algo funciona como injúria para alguém é porque vem no mesmo lugar de um nome próprio: é interpelativo a se fazer representar. Existem situações em que condições traumáticas podem interpelar como injúria, como no caso da tortura em estados de exceção. No dizer de Certeau (2002): “A tortura... busca produzir a aceitação de um discurso de Estado pela confissão de uma podridão... A vítima deve ser a voz dessa porcaria, recusada por todos os lados...” (p.228). Temos, então, pelos menos duas formas de constituir o lugar do resto, ou da exclusão: ou bem quando um elemento do discurso produz no sujeito um efeito de injunção, do qual ele não consegue derivação, dizendo respeito à sua questão singular (Schreber); ou bem quando acontecimentos sociais (guerras, ditaduras, etc.) tomam um traço como identidade, para nomear o excluído, sendo que, para alguns sujeitos, isso funciona como injúria. Não se pode atribuir relações causais entre a produção das bordas dos discursos e as formações clínicas, mesmo que tragam interesse para a cons- tituição de modelos no campo do imaginário. Por exemplo: não se pode dizer que a representação social do corpo magro, como um valor, seja suficiente para produzir a anorexia, como interpretam alguns. No entanto, algo dessa representação é tomada nas formações sintomáticas. Partindo disso, pode-se também dizer que existem algumas posições de sujeitos mais sensíveis ao que resta não simbolizável na circulação dos va- lores. Entre essas figuras vamos encontrar algo das mulheres e do feminino, 58

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mesmo em corpos masculinos, como na nomeação de Schreber de “puta”. A injúria em Schreber era ser mulher sendo penetrada pelos raios divinos. Assim, isso que cai do corpo, como excesso não representável, não incluído na imagem especular, de alguma maneira interpela algumas mulheres e ho- mens numa posição objetalizada. A puta de Deus, para Schreber, situava-o na passividade absoluta. Mas, o que constitui margens dos discursos – suas bordas – nem sem- pre provoca condições interpelativas – no sentido da loucura mais radical, situada no que antes destaquei. Encontramos, ao longo da história, figuras de mulheres guardiãs do falo. Foram mulheres cujos corpos se fizeram palco de comprovação de uma existência impossível: o gozo de Deus. Nesse lugar, tivemos as místicas e as stigmatas. Nestas últimas, o corpo produzia feridas, representando as chagas de Cristo. Místicas e stigmatas surgiram quando a igreja estava perdendo seu domínio. É nesse ponto que as situei como guardiãs do falo, na medida em que seus corpos produziam gozo no furo da existência – o gozo que vai encontrar “A mulher” não barrada, que não existe, e o gozo de Deus – o que não tem existência de corpo. Então, vai encontrar a não existência num mesmo ponto, na produção de gozo. Assim, seus go- zos reconstituíam um valor de referências ao divino, quando o mesmo se via ameaçado de queda nas representações sociais. Uma curiosidade, que não é sem relevância, foi a condição em que se deu uma ponte da religião à ciência. Foi enquanto produção no corpo que se constituiu a passagem da mística à histérica. Padres e psiquiatras dividiram seu poder nessa passagem do século XIX, na medida em que os psiquiatras eram chamados para diferenciar umas de outras. A ciência foi substituindo a religião nesse ponto. Com estes exemplos, precisa-se diferenciar um furo que se apresenta como excesso – o resto do Luder nomeado por Schreber, enquanto foracluído da referência fálica – e um furo que se apresenta como falta – o recalque que resulta no corpo da histérica. Nem sempre é fácil reconhecer a distância entre falta e excesso, as- sim como também não é possível buscar as origens causais dos sintomas nas produções dos discursos. No entanto, quero destacar algumas especi- ficidades que fazem parte de cada época e que nos indagam a propósito de diferenças nos laços discursivos. Numa publicação, Eric Bidaud (1998) busca investigar como se constituiu a produção da anorexia, das místicas até nosso tempo. A ligação entre mística e anoréxica se situa na condição de privação colocada pelos jejuns. Os jejuns religiosos situam-se do lado da purificação, quando o corpo pode elevar-se ao sagrado. Esses jejuns sempre foram regrados, por épocas, lugares e formas. O que significa ficarem dentro dos preceitos das leis, constituintes de uma representação de corpo coletivo,

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estabelecido pelas religiões. Percebam que o que estou chamando de corpo coletivo são as constituições das bordas corporais na referência às leis. No caso do jejum, a oralidade. Ou seja, de alguma maneira, o corpo se apoia nos orifícios que são recortados por significantes, que se instituem suportados por representações de valores sociais. Apesar de se relacionarem aos preceitos coletivos dos jejuns, nem todas as místicas se situavam aí, elas também eram dadas aos excessos fora das leis, o que preocupava sua comunidade, que reconhecia no excesso um gozo mais além da prescrição dos rituais – mais além do falo. A falta de alimento, no caso, não se situava exclusivamente dentro dos limites das leis, entrando no campo da privação. Por meio dessas experiências, reconhecemos que há gozo na privação. Ou seja, um furo situado nas bordas do corpo – na prática da não ingestão de comida, por exemplo – pode não se constituir como falta e se apresentar como totalidade e plenitude. Então: não somente em nossos dias o gozo na privação traz inquietações à ordem fálica, desde a ordenação religiosa, até a constituinte da ordem médica no nosso tempo. Um comentário a mais sobre a diferença na posição das anoréxicas de ontem, para as de hoje, dizendo respeito ao tema da imagem. No testemunho das místicas, a alma encontrava sua morada no corpo, como um espelho de Deus. Nossas anoréxicas são perseguidas pelo espelho, que lhes serve como suporte alu- cinatório de uma imagem que as persegue. Pelo entrevisto até agora, temos, de um lado, a inserção nos discursos, que implica a relação à legitimidade que faz parte da busca de reconheci- mentos sociais. Ou seja, o que coloca leis e limites nas relações de inclusão/ exclusão. De outro lado, suas margens, em que encontramos os excessos, naquilo que eu mencionei a respeito do gozo, na referência a Schreber, ou mesmo à oralidade da anoréxica. Foi pensando nessa relação às bordas que dei título ao trabalho, situando o corpo num litoral. Lacan propõe dois ele- mentos importantes nessa referência ao litoral: o tema da letra e a questão do furo no saber. Assim, pensar em como se insere, nas diferentes construções de dis- curso, nas diferentes épocas, esse furo no saber é situar o que faz do corpo litoral, num encontro de registros heterogêneos, como podem ser simbólico e real. Por um lado, a interdição dá nome ao que não tem nome, construindo limites, margens que vão situar o que se delimita como valor fálico, respon- sável por um dentro ou fora. O furo no saber, aqui, é nomeado como falta: a relação aos objetos enquanto posse ou falta está articulada a um traço que vai recobrir o objeto, sustentado no campo de valores coletivos. De outro lado, o furo – bordas do corpo – pode ser situado como exces- so, como uma espécie de presença invasiva em que não se consegue deli- 60

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mitar as margens, situando-se ali a razão da angústia. De um lado, o corpo da histérica, fazendo ponte entre discursos, enquadra, faz cena, delimitando margens no furo do saber. A cena encobre o furo e introduz um ponto de fuga na novela, responsável pela construção de temporalidades: as reminiscên- cias – como Freud definiu o sofrimento histérico, sendo que ali se projeta um passado – e a demanda de mestre, na oferta do corpo/cena, que constrói a satisfação num futuro ainda não alcançado. Ali se situa também o constran- gimento do corpo, no ritual obsessivo, tentando anular o desejo, encerrar o tempo num encontro antecipado sexo/morte. Ou então o resultante de uma violência originária, que se atualiza nas construções da psicose. Essas for- mações clínicas se utilizam – em cada tempo – das básculas que o significan- te fálico faz, resultante de quando mostra seu esgotamento, desvelando seu furo, sua insuficiência para operar no campo dos valores. Partindo dessa configuração mais geral, interessa-me sobremaneira o momento da passagem adolescente, na medida em que nela reconhecemos uma crise muito particular, dizendo respeito à dificuldade de inscrição nos discursos, em função de uma nova necessidade: responder de seu lugar a partir de uma posição sexuada. Por meio dela, reconhecemos também que, ao longo da vida, torna-se necessário transpor gaps resultantes de quebras no espelho, quebras nas representações que temos do corpo. Não há conti- nuidade de suporte especular entre infância e adolescência. A ruptura, nessa passagem, cria um desenlace de registros, que nem sempre é transposto, testemunhado por inúmeras crises que acompanhamos. Esse gap já foi re- solvido de muitas formas, em sociedades que nos precederam, pela produ- ção de rituais em que o corpo era marcado. A condição da marca tem relevância na relação ao corpo, dizendo res- peito ao que é da ordem do litoral, ou seja, um encontro não mediado pelo espelho, não mediado pelo imaginário. Se antes situei a questão do litoral, na relação ao significante, como furo no saber, trago agora sua outra face, dizen- do respeito à escrita. Ali vamos encontrar o corpo como superfície, trazendo a necessidade da marca. A passagem adolescente coloca em causa o furo na representação, sendo que é desse furo que se constitui uma busca pela marca. O furo não recoberto pela imagem especular mostra sua cara nesse momento. Fundamentou-se nessa condição o uso de tatuagens e rituais, na passagem da infância à vida adulta, em diferentes sociedades. Destaco, ago- ra, algumas proposições de Lacan que nos permitem avançar nessa questão. De início, uma colocação que me indagou quando a li, que diz que o traço unário se marca primeiro como tatuagem (Lacan [1964]1985). Pensei: como seria possível que o traço unário, um elemento do simbólico, se mar- que como tatuagem? Mas ao articular com a clínica, para mim fez sentido.

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Se tomarmos, mesmo em termos freudianos, que um registro psíquico pre- cisa de diferentes tempos em sua constituição, nossa atenção recai sobre a colocação primeiro: o traço unário se marca primeiro como tatuagem. Isso evoca a necessidade de desdobramentos de tempos, para que algo se saque do corpo e funcione numa rede significante. Somente a posteriori, na passa- gem por diferentes tempos lógicos, reconhecemos que teria havido um tempo primeiro, em que o simbólico traumatizou como um Um, um traço, como da ordem de uma escrita sem sentido. Mas, para que o reconheçamos como primeiro, precisa de mais dois tempos. Assim, pode ser que a diferença no desdobramento de tempos lógicos não aconteça. Situando esses desdobramentos de tempo, voltemos ao tema da pas- sagem, como passagem puberdade/adolescência, na qual essa relação ao traço/marca assume um viés muito particular. E aqui, na referência ao corpo como superfície de escrita, tomo uma segunda proposição de Lacan ([1972- 1973]1985), no seminário Mais... ainda..., em que ele situa o corpo como amuro, uma superfície de escrita: portando signos bizarros que vêm do Ou- tro, que dizem de um gozo do corpo. Ali, ele diz: “há traços no amuro”. Nova- mente o tema do traço, mas que funciona como signo: é “para alguém”, não está inserido numa cadeia significante. A colocação de Lacan diz respeito a quando os caracteres sexuais da menina, na puberdade, trazem estranhe- za e vêm como sendo da mãe. Ou seja, reconhecemos nessa passagem o momento em que esse traço está no corpo, sem suporte especular. O que significa que ele se confunde com a face real do objeto. Já veremos em que isso resulta, numa referência clínica. Como último destaque, uma colocação do seminário sobre os dis- cursos, em que Lacan ([1969-1970]1992), ao trabalhar a fantasia de fla- gelação proposta por Freud, fala sobre “a glória da marca sobre a pele”, situando o seguinte: “o gozar assume a própria ambiguidade pela qual é seu plano... que se percebe a equivalência entre o gesto que marca, e o corpo, objeto de gozo” (p.51). A partir da proposição de equivalência entre gesto e gozo do corpo, podemos situar uma diferença deste (gesto que marca), para quando o traço se inscreve a partir de um ato. Ou seja, a diferença entre gesto e ato. Em todas essas passagens, reconhecemos que o traço unário – que se situaria como um elemento diferencial, constituído numa cadeia discursiva – pode não funcionar como tal. Ou seja, ele pode situar-se como da ordem do gesto e, nesse sentido, não apresentar um fora do corpo, enquanto elemento situado num gozo de referência fálica, constituído dentro de uma circulação de valores discursivos. Num livro recente – Litorais da psicanálise (Costa, 2015) – ocupei-me de pensar na busca da marca, na passagem adolescente, 62

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como algo que não funciona do lado do traço. Poderia nomear, até mesmo, como uma patologia do traço. Ou seja, a produção da marca não desdobra diferentes tempos lógicos, que situaria a referência ao traço no a posteriori, semelhantes àqueles que eram construídos nos rituais tribais. Foi nesse sen- tido que o interesse de minha investigação se deslocou, da busca de tatua- gens para a busca de marcar o corpo, nos cortes autoinfligidos pelas jovens adolescentes. Esse trabalho me fez pensar numa especificidade que está em causa nessas situações, que envolvem a passagem puberdade/adolescên- cia, dizendo respeito a atuações que não fazem sintoma. Quando a marca se esgota no gesto que a produz gera compulsão. É bem como situa Lacan, ao dizer que há equivalência entre o gesto que marca, e o gozo do corpo. Nesse sentido, não há propriamente um Um, um ato que separe a produção do cor- po da púbere, daquele signo do gozo materno. Assim, a colagem entre essas atuações e o objeto olhar não produz sintoma, produz compulsão. A referência ao sintoma posiciona o sujeito na relação à castração, é uma resposta construída singularmente. Não parece ser o que está em causa nessas atuações. Aqui, trata-se do corpo/amuro, provocador de angústia, cujo corte não faz traço, não separa. O corte, como busca de uma escrita, é mudo. São casos difíceis, semelhantes à produção de anorexia e bulimia, na medida em que o mutismo do gesto não sustenta a memória de um traço de contagem, o que poderia ser situado como ato de separação. É somente na inscrição do traço, na produção de um objeto fora do corpo, que uma diferença de tempos se instala, construindo uma memória narrativa. O risco que comporta muitos desses casos diz respeito a que o jogo que construiria um “fora”, uma separação, pode ser radical. O tema da necessidade da marca evoca uma especificidade que faz parte da puberdade. A imagem do púbere traz algo de imaculado, de um corpo ainda não violado, virgem. O púbere é aquele que não se definiu na sexuação, é aquele que carrega todos os sexos. Não me refiro aqui à visada anatômica, mas a efeitos da castração e posição na sexuação. Essa imagem que parece imaculada produz a atração do imberbe, num erotismo próprio dessa passagem. Mas não é uma posição tranquila, é um momento em que algo interpela na necessidade de definir, de precisar perder. O imaculado – sem marca – situa uma questão específica ao nosso tempo. Evoco, aqui, um trabalho em que Gerard Pommier (2000) interpreta a vigência de um corpo angelical na pós-modernidade, constituindo-se como extensão do computador. O autor faz uma crítica a como a ciência suturou os ideais, pregando os humanos à terra, sem outra referência, como se fos- se uma queda dos anjos. De como sua base é sustentada em uma lógica binária, à diferença dos mitos, da religião e dos sonhos. Convergente com o

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discurso da ciência, a rede da internet dissolve o corpo, no entanto sua virtu- alidade já estava lá em potência:

Assim que isso conecta, a irredutível alteridade da aparência desa- parece e a alma aprisionada no reflexo se rejunta: ela sempre quis não ser nada mais que puro espírito. Os anjos podem se apalpar de longe e se reconhecer, destacados do peso do olhar (Pommier, 2000, p.41; tradução da autora).

Ou seja, na interpretação de Pommier, o corpo angelical torna-se esse que se preserva do uso e desgaste da vida em relações e se junta a seu reflexo, na virtualidade do computador. Aqui, podemos situar a condição de muitos efeitos de inibição, que encontramos na clínica. É quando parece bem colocada a interpretação de Lacan de que a inibição é o sintoma no museu. Curiosamente, o museu, o que é passado e fora de circulação, resulta de nosso maior e mais recente desenvolvimento técnico. A inspiração do que desenvolvo neste trabalho segue uma tradição freu- diana, de interpretação, de que o mal-estar é próprio da cultura. Nesse sen- tido, cada tempo e valor social contém suas irresoluções, trazendo ao palco seu furo e convocando um real que faz corpo. Transitar pela insistência des- sas irresoluções, em diferentes culturas e valores sociais, nos permite des- locar o foco do que seria o novo, como exigindo um novo mestre, para algo que insiste como reiteração, ou mesmo repetição. No entanto, para intervir na repetição, é importante considerar os efeitos da dominante do discurso em cada tempo, no sentido de pescarmos um interpretante que possa ter valor de ato. É também em Freud que vou buscar um fundamento clínico, para pes- car elementos banais de nossa psicopatologia cotidiana. Assim, coloco-me a indagar qual significante pode decantar-se de nossas banalidades, podendo se converter em um dos operadores de nosso pathos. Escolherei um signifi- cante que está muito em voga: os cuidadores. São eles os guardiões finais de nossa zoe – o corpo da vida nua, reduzido a uma necessidade de existên- cia, sem mais condição de erotismo. O cuidador preserva o excesso fora do sexo, num corpo mantido em nome da ciência. Mas não somente no fim da vida que um cuidador se apresenta, ele também está quando brota o sexo na passagem adolescente, na comiseração de um pai zeloso que se torna cui- dador: um anjo sem sexo. Então, o cuidador surge para apagar a emergência das duas muralhas do impossível, no dizer de Lacan, que são sexo e morte. Isso me surgiu a partir da queixa de um homem que vem se tratar porque sua filha de 13 anos estava com crises de angústia que a impediam de ir à 64

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escola. Ele vem por causa da filha, sem uma queixa muito formulada. Eis que um dia ele relata que precisou conter fisicamente a filha numa crise de angústia, e que esta se queixou de que ele machucava seus seios. Somente nesse momento se registra na transferência que se tratava de um corpo de mulher, que ele – como homem – tentava sintomaticamente recusar ver. Ele sabia posicionar-se muito bem como cuidador, desdobrando-se em cuidados maternais, operando toda sua atenção na proteção da filha (referia-se a ela sempre como “a criança”), mas não conseguia registrar a diferença que um corpo de mulher trazia a seu olhar. Este homem tinha razão em sua queixa inicial, quando supôs que as crises da filha eram dirigidas a ele. Foi quando confessou que o corpo feminino nunca lhe despertava muita atração. Resumindo o tratado aqui, reconhecemos que os discursos, que fazem laço social, sustentam determinadas economias de gozo inscritas num ima- ginário compartilhado. No entanto, não podemos atribuir a esses imaginários causas de sintomas. A causa, como bem situa Lacan ([1964]1985), é sempre perdida e diz respeito à intrusão da linguagem no corpo, produzindo irresolu- ções que, em cada tempo histórico, adquirem nomeações distintas. Em nos- so tempo, tanto quanto em outros, continuam se produzindo brechas, que se situam no furo do saber, resultante das duas muralhas do impossível: sexo e morte. Nesse lugar situei a saída pelo assexuado como tela que recobre esse impossível em nosso tempo.

REFERÊNCIAS BIDAUD, E. Anorexia – mental, ascese, mística. Uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 1998. CERTEAU, M. Histoire et psychanalyse: entre science et fiction. Paris: Gallimard, 2002. COSTA, A. Litorais da psicanálise. São Paulo: Escuta, 2015. FREUD, S. Observaciones psicoanaliticas sobre un caso de paranoia [1910]. In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. LACAN, J. O seminário, livro 20: mais... ainda... [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. POMMIER, G. Les corps angéliques de la postmodernité. Paris: Calmann-Lévy, 2000.

Recebido em 10/08/2016 Aceito em 02/09/2016 Revisado por Marisa Terezinha Garcia de Oliveira

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TEXTOS PECADO E SACRIFÍCIO1

Sílvia Raimundi Ferreira2

Resumo: O presente artigo consiste em uma leitura, a partir de textos de Ge- orge Bataille, sobre as temáticas do pecado e do sacrifício, aborda desde uma compreensão religiosa até a constatação da importância dessas operações no laço social, e as articula com questões contemporâneas sobre o corpo e com o discurso corrente. Palavras-chave: corpo, pecado, sacrifício.

SIN AND SACRIFICE Abstract: This article consists of a reading from George Bataille texts on the themes of sin and sacrifice, considered from a religious understanding to the re- alization of the importance of these operations in the social bond, and articulates with contemporary issues about the body and the current discourse . Keywords: body, sin, sacrifice.

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre, . 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalitica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA; Mestre em Psicologia Social e Institucional – UFRGS. E-mail: [email protected]

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O limite e a transgressão devem um ao outro a densidade do seu ser. Michel Foucault

onsiderado um “pensador do corpo” o escritor Georges Bataille trabalhou Cextensamente essa temática em sua obra, lançando um olhar sobre o corpo que enfatizava suas radicalidades – seus limites e seus excessos. Em seus escritos, buscou nas experiências ritualísticas das religiões primitivas uma forma de compreender a função do corpo na cultura, assim como sua associação com o sagrado, esse entendido como uma experiência coletiva, política e religiosa que organizava essas sociedades na medida em que per- mitia o diálogo e as trocas entre os mundos divino e profano. Através dos rituais coletivos de consagração e profanação, rituais que na maioria das vezes envolviam o corpo, deuses e homens e mantinham o laço social em equilíbrio. Partindo de uma leitura sobre as temáticas do pecado e do sacrifício, este artigo se propõe a interrogar como a questão do sagrado se coloca na atualidade, momento em que vivemos uma fragilização dos laços simbólicos e em que o corpo ocupa um lugar central na organização social, porém não mais como um “corpo consagrado”, mas, sim, como um organismo que deve ser funcionalmente apto e esteticamente perfeito. O ponto de partida deste trabalho situa-se no livro Discussão sobre o pecado (2010), que narra um diálogo ocorrido em 1944, no qual alguns pen- sadores debatem um texto de Bataille intitulado Sobre Nietzsche, principal- mente o capítulo Topo e decadência, no qual o autor faz uma provocação no meio filosófico, ao propor um resgate da ideia do pecado como algo de grande importância na cultura. No texto discutido, Bataille denunciava o que ele chamou de um “tédio religioso” no cristianismo, na medida em que, com o passar do tempo, os católicos teriam se afastado da noção de pecado – que seria fundamental para sustentar o lugar do sagrado –, e teriam ido em direção a uma moral vulgar, relacionada às normas e às regras de conduta. Antes de avançarmos, um pequeno recuo na história do autor se faz relevante: um elemento importante da biografia de Bataille, no que diz res- peito à religiosidade, se deu no início de sua vida adulta, no período que compreende o outono de 1917 e o verão de 1918, quando ele, que até então manifestava o plano de consagrar a vida a Deus, entra no seminário com uma fé fervorosa e sai ateu, para ingressar na École de Chartes de Paris. Trans- forma-se, de um católico crente, em um estudante de filosofia, mas, nessa transformação mantém o interesse pela leitura dos textos místicos e pela vida dos mártires, o que o levará a declarar-se, ao mesmo tempo, místico e ateu. Ao sustentar essas duas posições contraditórias, ele mantém um olhar sobre

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o sagrado e, portanto, se preserva de recair numa lógica moderna voltada exclusivamente para a ciência, como também não se deixa tomar por uma posição religiosa alienante, que o impediria de buscar nos estudos filosóficos uma direção para seus questionamentos. Ao abordar o tema do pecado e do sacrifício, Bataille recorre a uma leitura da moralidade que é distinta da moral comum, na qual o bem é visto como o cuidado com o outro, e o mal como um prejuízo causado ao outro. Como um bom “maldito”, vai em busca de um pensamento crítico sobre a moral, que subverte a ideia corrente de bem e de mal. Para isso, se inspira tanto na poesia de Baudelaire (que toma o mal por objeto, que transita entre o sublime e o grotesco, entre a luz e a escuridão, entre Deus e o Diabo) quanto no pensamento nietchsziano, expresso, por exemplo, na frase “O homem precisa, para seu bem, de tudo o que tem de pior se pretende alcançar o que nele existe de melhor” (2003, p.260). Ou seja, se apoia em autores que foram críticos da moral instituída, e que propõem uma inversão, na qual o mais alto (o topo) é o mal, e a decadência é o bem. Na leitura de Bataille, o “topo moral” corresponde à experiência do ex- cesso, à tentativa de ultrapassamento dos limites, algo que estaria ligado à violação da integridade do corpo, e, por isso, mais próximo do mal que do bem, enquanto a decadência moral estaria associada à preocupação com a conservação do ser e com as regras moralizantes. No livro citado, Discussão sobre o pecado, o autor toma como eixo cen- tral do diálogo aquele que seria o maior pecado humano, a crucificação de Cristo, que congrega, num mesmo ato, pecado e sacrifício. E lembra que a crucificação é um resto das religiões primitivas no cristianismo, nas quais o sacrifício era visto como um ato de amor, uma entrega em que a dor leva à elevação. Assim, a imagem de Cristo na cruz seria o símbolo mais sublime do topo da moralidade, justamente porque ali há um ato cruel e sagrado, uma consagração, que se realiza através do corte que instaura uma lei entre mundos distintos, apaziguando o impossível originário que se coloca entre essas instâncias. Convém observar que a discussão descrita nesse livro se deu em 1944, período da Segunda Guerra, momento extremamente violento, que se dife- renciou porque trouxe justamente a racionalização da crueldade e o aper- feiçoamento das tecnologias da morte. Nessa guerra, os instrumentos de extermínio se submeteram à lógica da produtividade e foram esvaziados de qualquer ritual. Atualmente, a importância do tema do sagrado retorna em autores tais como o filósofo Giorgio Agamben que, em seus livros mais recentes, apon- ta que estamos vivendo um tempo de afastamento do que ele chama de 68

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“mistério”, e situa essa discussão em um paradoxo que se colocaria entre a necessidade da experiência e a história. Em Le feu et le récit (2015), Agam- ben, partindo de um questionamento sobre a função da literatura, adverte que, com a passagem das gerações, houve um afastamento cada vez maior da tradição ritualística em benefício do relato da história. Se os antigos valo- rizavam a experiência de demarcar um lugar sagrado, acender o fogo e só então fazer suas orações, hoje não acendemos o fogo, não sabemos o lugar e lembramos vagamente das palavras. Com a perda da tradição, o que resta dessa experiência em sua transmissão é unicamente a possibilidade de con- tar a história. “Todo relato, toda a literatura é em certo sentido, memória da perda do fogo.” O paradoxo consiste justamente no fato de que, no caminho da transmissão, o mesmo fio que carrega as teias do mistério é o que nos distancia dele. Em Elogio da profanação, outro desdobramento da interrogação sobre o esvaziamento do sagrado, Agamben (2007) sugere que haveria atualmente, por parte dos homens, a necessidade de recuperar sua capacidade de pro- fanar, ou seja, de restituir aquilo que era do domínio dos deuses para o uso humano. Segundo ele, como em nossa cultura nada mais é sagrado, nada pode ser profanado, pois tudo é permitido. E isso retira as ações humanas do campo da experiência, e esvazia a potência do ato. Se o pensamento religioso primitivo encontrou coletivamente nos rituais sacrificiais uma forma de lidar com o impossível constituído nas distâncias que se interpõem entre os registros, e se essa forma perde lugar em nossa cultura, o que a substitui? Lacan ([1959-1960]1991), no seminário sobre a ética, no qual resgata o lugar e a função do corpo na obra freudiana, parte de uma interrogação sobre a morte de Deus, para introduzir a questão dos paradoxos do gozo, situando, de um lado, a questão moral do bem e, do outro, a dimensão do corpo como casa do gozo. A morte de Deus importa justamente, a partir da suposição da existência de um Outro, não castrado, e do mito do seu assassinato, que constituiria, paradoxalmente, tanto o pecado quanto a lei. Pois, assim como a sustentação da lei necessita da interdição oriunda do gozo, também o “exer- cício de gozo comporta algo que se inscreve no livro da dívida e da lei” (La- can, 1991, p.216). Só haveria um pai na mitologia do filho, que fundaria, pela morte do pai, a existência de ambos. Para Lacan, nas religiões monoteístas seria fácil reconhecer esse assujeitamento à lei como resposta à perda de gozo exigida para a regulação das alianças civilizatórias. Ou seja, ao invés de reconhecer a verdadeira natureza da castração no impossível do gozo absoluto, prefere- -se manter a fantasia de que ele existe.

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Neste seminário, Lacan denuncia a presença de uma mensagem ateia no seio do próprio cristianismo: Deus existe porque está morto desde sem- pre, existe como vazio que permite a sustentação do exercício simbólico, mas também existe a partir do reconhecimento de um elemento agressivo no ato de fundação da cultura. Por isso, a morte do pai seria revivida ritualisticamen- te em cada comemoração do ato criminoso. Assim, retomando a hipótese de Bataille sobre a presença de um tédio, oriundo de uma lógica normativa, que suprime do laço social a função do corpo como elemento importante para a sustentação do pacto civilizatório, somado à imagem que nos traz Agamben do esvaziamento do mistério, po- demos, então, articular uma pergunta: sobre a forma velada com que o peca- do e o sacrifício se apresentam hoje na cultura? Como sustentar na trama da formação da cultura, esse elemento não simbolizável, sem nos tornarmos, singularmente, a serviço dessa operação que, talvez se manifeste hoje, sintomaticamente, tanto no tédio de corpos amortecidos, quanto em corpos ritualisticamente supliciados? Para esses autores, retomar a importância do tema do pecado, a função subversiva do sagrado, ou o elogio da profanação, talvez, surja como proposta de saídas mais coletivas de sustentação do mal-estar.

REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. ______. Le feu et le récit. Paris: Rivages, 2015. BATAILLE, Georges. Discusión sobre el pecado. Buenos Aires: Paradiso, 2010. LACAN, Jacques. O seminário 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário da Silva.12.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. SURYA, Michel. Georges Bataille, la muerte obra. Madrid: Gallimard, 2012.

Recebido em 21/08/2016 Aceito em 15/12/2016 Revisado por Cristian Giles

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Revista 49.indd 70 10/05/2017 14:44:50 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 49, p.71-79, jul. 2015/dez. 2015

CORPO INDIVIDUAL, TEXTOS CORPO SOCIAL: passagens discursivas1

Alfredo Gil2

Resumo: Partindo da psicanálise em intensão, mais exatamente de um recorte clínico, o autor avança nas considerações sobre maneiras de articular subjetivi- dade e laço social, em particular na contemporaneidade, propondo a hipótese de uma economia psíquica que repousaria sobre um sujeito do comportamento, em contraponto ao sujeito da psicanálise. Palavras-chave: individual, social, economia psíquica, inibição.

THE BODY OF THE INDIVIDUAL, THE BODY OF SOCIETY: discursive passages Abstract: Using in tension oriented psychoanalysis as premise and with specific focus on a clinical scenario, the author explores various ways of envisaging sub- jectivity as it relates to social relationships, particularly against the backdrop of the contemporary world. He advances the hypothesis of a mental economy grounded upon a “behavioural subject” in direct contrast with a psychoanalytical one. Keywords: individual, social, mental economy, inhibition.

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber e verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]

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ntes de definir o título: “Corpo individual, corpo social: passagens discur- Asivas”, eu havia pensado em dois outros: “O que um corpo nos ensina sobre o corpo social” ou “De um corpo ao corpo social”. São dois títulos que, como vocês percebem, seguem uma trajetória, quero dizer são vetorizados de um ao outro, do individual ao social. Isso se deve ao fato de que durante o trabalho de formalização mínima, trabalho de elaboração para compartilhar com os colegas este fragmento clínico, me dei conta de algo que diz respeito ao social. Foi pensando neste caso que algo de uma dimensão discursiva do social me saltou aos olhos, como o nariz no meio da cara. Mais exatamente, de um ponto de enodamento forte – se a minha análise está correta – entre uma dimensão discursiva do social e a subjetividade que se desdobrava naquela relação transferencial com meu paciente. Mas antes quero fazer algumas observações sobre diferentes manei- ras de considerar esses dois registros – o individual e o social – que, como sabemos, são tão antigos como a psicanálise, mas que podem ser trata- dos diferentemente, variando o enfoque, não somente segundo as diferentes orientações analíticas, mas também conforme as disciplinas convocadas no diálogo com a psicanálise (antropologia, literatura, filosofia, etc). Por tudo isso, vemos que o debate é complexo, e aqui só pretendo fazer algumas alu- sões para indicar o quão vasto ele é. Qualquer que seja o enfoque, a meu ver, o importante é não pensar que um possa ser causal ao outro, que o indivíduo, por exemplo, seria um puro produto do social, forma de secreção do social3. Há asserções que fazem pensar numa equivalência. Por exemplo, le- mos em Lacan: “o coletivo não é nada senão o sujeito do individual” (Lacan, [1945]1998, p.213); e diz isso logo após ter feito referência à Psicologia das massas e análise do eu (Freud, [1921]1991) onde sabemos que Freud afirma que não há psicologia individual que não seja “simultaneamente” uma psico- logia social, tornando a diferença quase factícia. Outras asserções acentuam a primazia do social sobre o individual. Penso, por exemplo, no prefácio de Contardo Calligaris, em Clínica do social – ensaios, no qual afirma: “Não existe uma psicanálise do individual e outra “aplicada” ao sintoma social”. Até aqui poderíamos considerar que Calligaris apresenta os dois registros como equivalentes tal qual as citações anteriores de Lacan e Freud, mas ele

3 Observação neste sentido, ver Costa, com a distinção entre “corpodiscurso” e “corpolinguagem” (2014). 72

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acrescenta: “Pois o sintoma é sempre social. [...] o que chamamos de indivi- dual, a singularidade, é sempre o efeito4 de uma rede discursiva, que é a rede mesma do coletivo” (Calligaris, 1991, p.12). Mas encontramos na obra freudiana ângulos de análise em que a pri- mazia do que emana do indivíduo condiciona um certo tipo de laço social, relação que deve seu enlace ao destino pulsional, particularmente à pulsão anal, e que nos leva a pensar que possa haver uma primazia da “psicologia individual”. Encontramos ao menos dois textos capitais, que apontam explici- tamente neste sentido, que são Caráter e erotismo anal ([1908]2002) e Sobre transformações das pulsões em particular no erotismo anal ([1917]1997), nos quais Freud avança a ideia de que a “educação da nossa civilização atual” traz consubstancialmente a presença dos destinos do erotismo anal pela via da sublimação. No que me diz respeito e relativo àquele paciente (e aí começo a me re- ferir ao título do meu trabalho, no qual aproximo esses dois termos), tentarei apresentar como o tempo da psicanálise em intensão – que chamei de tem- po de formalização do caso – me levou, de modo bastante surpreendente e inesperado, ao registro do que chamamos de psicanálise em extensão, mais exatamente de particularidades do social, de aspectos do discurso social pelo qual estamos tomados. Em outros termos, tentarei expor o modo como um tipo de economia subjetiva5 veio me revelar algo que do social, do sintoma social, eu já havia percebido, porém não de maneira tão articulada ao meu exercício clínico. São pacientes bastante conscientes de suas dificuldades em “funcio- nar”6, dificuldade em funcionar com o outro, de simplesmente estar na pre- sença do outro quando ele não sabe, ou quando não está explicitado no encontro o que se espera dele. Esta variante da inibição se traduz clinica- mente numa queixa em que o sujeito diz não ter confiança em si mesmo; “falta de confiança em mim”, equação que se ouve frequentemente na língua francesa. O que me importa aqui é o estatuto desta falta, colocando a se-

4 O grifo é nosso. 5 Não se trata de propor uma tipologia clínica, mas de pensar o funcionamento deste paciente junto com outros que têm chamado minha atenção nestes últimos anos. 6 Jean Bergès estabelece uma diferença entre a função e o funcionamento, que são noções a serem retomadas num trabalho aprofundado. Neste sentido Bergès (2007) e Balbo e Bergès (1996).

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guinte questão: de que se trata esta falta, estando dada uma interioridade que parece se caracterizar pela vacuidade subjetiva que, no entanto, busca a confiança? Trata-se de uma economia subjetiva, digamos, de uma posição existencial, que, por exemplo, diante da necessidade de tomar decisões, de fazer escolhas, parece reduzir sua condição a uma atitude, a seu próprio comportamento, comportamento que apoia sua conduta, não numa intros- pecção ― seja ela conflitante ― na qual termos contraditórios se disputam, por razões morais, como é o caso, por exemplo, entre amor e desejo, mas, ao contrário, numa dependência radical do sujeito ao Outro, que viria informá-lo sobre como agir e o que fazer. Trata-se de um jovem de 34 anos, que veio me ver durante um ano e meio, e que aborda imediatamente, na primeira sessão, um problema com o qual se defrontava no seu trabalho. Há quatro anos ele era funcionário num setor, correspondendo à sua formação, onde estava sendo acusado de ter feito uso fraudulento, para fins pessoais, de documentos a que somente ele podia ter acesso. Não vou entrar nos detalhes. Ele estava muito chateado com a situação, pois é pessoa honesta e séria. Era uma acusação grave, implicando dinheiro do contribuinte, mas que, para ele, não era fonte de an- gústia nem de ansiedade (e de fato ele foi inocentado duas semanas após). Poderia acrescentar que expressões afetivas como angústia, ansiedade, es- tresse não pareciam fazer parte, de modo explícito em todo caso, de suas manifestações subjetivas. De todo modo, este não era o motivo da consulta. Aliás, ele não veio me ver pelas razões que habitualmente levam al- guém a buscar um psi – sofrimento, angústias, insônias, separação, etc. Pelo contrário, eu estava diante de alguém que parecia decidido e bastante deter- minado a realizar sua demanda. Ele tinha uma demanda explícita, mas reco- nhecia uma dificuldade em realizá-la, apesar de todas as decisões que vinha tomando neste sentido – razão pela qual veio consultar: a falta de confiança em si para encontrar, conhecer e ter relação com uma mulher. Para tanto, ele já havia tomado uma série de iniciativas: tinha investido na sua aparência, na sua vestimenta, fazia bastante esporte, preocupava- -se na sua maneira de falar e agir. Enfim, como afirmei, ele estava bastante determinado. Eu logo percebo que o encontro comigo se inscreve numa série de outros endereçamentos que poderiam ajudá-lo a obter o dito objeto, que sa- tisfaria a sua demanda, ou seja, a de encontrar uma mulher. Ele participa de sessões coletivas e individuais com um coach que dá todas as dicas e ensina como paquerar, como abordar uma moça, o que dizer e não dizer, os assuntos que deve evitar, tudo isto com simulações, situações e exercícios práticos. 74

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Ele também se inscrevera em dois sites da internet: um de encontro, onde coloca foto, perfil, do que gosta, do que não gosta, o tipo de relação que pretende ter, etc. O outro site, que se chama Vamos sair, propõe encontros em bar ou restaurante, boate, tal hora e tal dia, e as pessoas se inscrevem e se encontram. Mas criar o seu perfil na internet – escolher as fotos e des- crever-se – não é uma coisa simples, precisando ser orientado pelos seus amigos. Do ponto de vista transferencial, ele não me coloca necessariamente numa posição de alguém que deva dizer como ele deve agir. Claro que as ocasiões e questões não faltaram, mas aos poucos eu fui me deslocando desta série. O que não o impediu, durante um ano e meio, que falasse, ine- vitavelmente, a cada sessão, dos progressos feitos no aprimoramento de um eventual encontro. Acho que fui me tornando aos poucos o endereço que reunia todos os outros, ou seja, lugar onde fazia um apanhado pelo relato de tudo o que se passava nos outros endereçamentos, se questionando sobre seus obstáculos no encontro com o outro-mulher. Durante o período em que veio me ver, ele encontrou duas mulheres: o que me permitiu acompanhá-lo do início ao fim nessas duas relações que duraram aproximadamente quatro meses cada uma. A cada vez, o contato inicial se fez pela internet: as primeiras trocas de mensagens, um diálogo no qual se engaja buscando aqueles centros de interesses comuns que possam justificar um encontro de “verdade”; claro que tudo isto com dúvidas e incertezas sobre se ele avançava no caminho certo. Mas enquanto o outro (a outra) respondia positivamente, considera- va boa a sua estratégia. Depois, veio a troca de número de telefone, que denota um passo importante na relação, na confiança que vai se estabe- lecendo entre eles. E isto avança sessão após sessão, até que finalmente eles se encontram. Tudo é sempre bem pensado e calculado: por exemplo, como ela é de origem espanhola ele pensa, com um ar esperto e ingênuo, que seria legal levá-la a um bar frequentado sobretudo por hispanofônicos. Segundo ou terceiro dia eles vão ao cinema. E ele percebe, sente, durante o filme, que seu braço toca o dela e que ela deixa a coisa rolar, aceitando este contato físico. Se estou reconstituindo os fatos desta forma é porque é assim que a fala dele chega a mim e que as coisas são vividas por ele, nesta progressão e deste modo. Tudo isto lhe parecendo muito positivo, ele não resiste e decide na saída do cinema pedir para beijá-la. Ela recusa, afirmando que isso ainda não esta- va em seus planos. Ele fica bastante decepcionado, mas logo vai dar a volta por cima, revisitando e tentando entender o porquê da recusa. Talvez ele te-

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nha se precipitado “finalmente ela tinha me dito tal e tal coisa que deveria ter me feito esperar, ser mais paciente, etc”. Então ele vai reconsiderar e revisar tudo o que aconteceu para que o erro não se repita. A segunda mulher que encontra coloca de um modo mais radical o que do sexual neste homem adveio ou não. Como pensar, e aqui avanço uma questão hipotética, uma interioridade subjetiva cujo alicerce parece não ter seu fundamento no sexual? Ele tenta compreender à luz de sua história pas- sada sua timidez, sua relação de dependência com sua mãe, etc. Mas o que ressalta e chama atenção na forma discursiva dada às suas experiências é que elas parecem mais o relato de experimentos que encontros libidinais. Como se a excitação e a tensão destes encontros se devessem mais ao sen- timento de uma tarefa que avança num work in progress. Esta segunda mulher é mais paciente. Ela é mais experiente e a intimi- dade vai mais longe, acarretando outros problemas para ele. Por exemplo, um dia eles estão passeando, abraçados, lado a lado, e ele tem um sentimento de desajuste, de um incômodo, um desconforto na maneira de andar ao seu lado. Ele tem a impressão de que há um descompasso, pois está convencido de não saber como pegá-la pela cintura. Outro dia, ao fazer massagem, ela reclama que ele a estava machucando. Beijar é aquela coisa, na boca tem a língua, saliva, dentes, também não é fácil. O desfecho da relação foi que um dia ela decide terminar, evocando inclusive sua dificuldade em beijá-la, coisa de que por sinal ele se dava perfeitamente conta. Profundamente desaponta- do, ele é tomado por um sentimento de tristeza e vergonha. Para um esboço de conclusão, retomando o que dizia no início sobre esta falta de interioridade em contraponto ao que desta há de libidinal, pode- mos afirmar que meu paciente busca responder ao desejo do outro, inclusive no que este tem de constitutivo de cada um de nós, ou seja, o desejo é o desejo do Outro. Assim, ele busca antecipar o que o outro espera dele, mas não sabendo como se situar com relação a ele, sempre supõe um outro que saberia como fazer: seu amigo, o coach, etc. Mas o que me leva a colocar a questão de um tipo de interioridade que não teria seu alicerce no sexual deve-se ao fato de que, diante do Che vuoi? não há nada nele que se apa- rente a uma resposta fantasmática. Nada que lhe permita captar o outro num encaixe fantasmático. A inibição neste quadro clínico, que podemos qualificar de fóbico, chama atenção pela ausência da dimensão agressiva enquanto componente libidi- nal, cujo sadismo seria a expressão por excelência masculina. Em outros termos, quando falo de componente agressivo da , cujo sadismo seria a expressão por excelência masculina, me pergunto simplesmente o que disso advém para o meu paciente. Nada que se assemelhe à análise de Freud, 76

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como via possível do destino pulsional ([1912]1997), quando afirma que um homem não ama e deseja no mesmo momento o mesmo objeto. A outra consequência desta ausência de agressividade, e seu compo- nente sádico, me leva a pensar nesta interioridade, que, se existe, não fun- ciona num registro da culpabilidade; em todo caso, nunca ouvi nada que me inclinasse a pensar neste sentido. Em compensação o âmbito da vergonha7 é onipresente. Este tipo de paciente me ajudou a pensar outro ponto que considero uma extensão do que acabo de dizer, e que é relativo à minha prática com as crianças, em particular com os pais. A psicanálise, e a psicologia de modo geral, promoveu a ideia, incon- testável, de uma psicologia da criança, de que ela é um sujeito, que deve ser respeitado na sua singularidade; Françoise Dolto com todo seu tato clínico participou da popularização deste pensamento com seus programas de rá- dio. Atenção: não estou fazendo um processo de acusação contra Dolto, pois seria completamente anacrônico da minha parte. O que me interessa é que esta psicologização progressiva da imagem de uma criança autônoma pare- ce ter seu contraponto – e aí retorno às dificuldades frequentes, com as quais os pais parecem estar confrontados – com o surgimento de pais incrivelmen- te dependentes. Dependentes do quê? No mínimo do amor, o amor como algo que pode nos tornar profundamente dependentes. Mas não somente. O problema é que se tornou cada vez mais difícil conjugar amor com a ideia de educar os filhos, e a gente assiste ao drama de pais que, transformados em educadores, acabam tendo que serem eles mesmos educados para educa- rem seus filhos. Vejam bem a semelhança na maneira de “funcionar” entre a demanda dos pais, de como fazer com os filhos, e a do meu paciente, que não sabia como fazer para encontrar uma mulher; ou seja, algumas pessoas parecem estar em busca do manual de instruções que viria informá-las de como os pais devem funcionar – a partir do momento em que eles ocupam o lugar que socialmente lhes outorga esta função – assim como o homem que tenta funcionar como tal junto a uma mulher. Fico cada vez mais impressiona- do como um homem, um pai, às vezes ocupando cargos de grande respon- sabilidade profissional, no mundo das finanças, se encontra completamente desamparado diante de seus filhos, infantilizado, querendo saber se o que faz e diz é certo ou errado, sem saber como se comportar.

7 O estatuto da vergonha mereceria um amplo desenvolvimento neste caso. A este respeito e à luz da neurose obsessiva, ver Castel (2011 e 2012).

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Colocando entre parênteses um instante as questões ideológicas que fazem o comércio atual das terapias comportamentais (coach e variações), gostaria de levantar a hipótese de que talvez estejamos assistindo à emer- gência de um sujeito do comportamento que corresponderia à evolução da nossa sociedade. Lacan postula, em duas situações diferentes de seu ensino, a existên- cia de momentos históricos que tornaram possível a emergência do sujeito da psicanálise, e do dispositivo da psicanálise como tal. Afirma Lacan, em 1965, na esteira dos estudos de Alexandre Koyré, considerado como seu guia, que, antes do século XVII, século de gênio, “a psicanálise como prática e o inconsciente como descoberta teria sido impensável” (Lacan, [1965]1998, p.870-871), ou seja, transformações históricas são condições necessárias para a emergência do sujeito da psicanálise. Mais cedo no seu ensino, mas mais tarde no processo histórico, desta vez não se referindo a Koyré, mas a Émile Durkheim, para falar do declínio social da imago paterna como causa do que ele chama uma crise psicológica (Lacan, [1938]2001, p.60-61), Lacan diz que, provavelmente, é a esta crise que se deve o surgimento da psicaná- lise. Estas são considerações sobre o sujeito da psicanálise. Foi assim que me perguntei, ouvindo estes pacientes (este em particular) se, independen- temente de considerações ideológicas, o sucesso, relativo é claro, mas cada vez mais importante de uma terapia que se chama comportamental, não se deve à emergência de um sujeito do comportamento. Esta posição existencial reduzida ao comportamento, animada não por uma economia propriamente libidinal, mas comportamental8, devido ao que chamei de falta de interioridade, de vacuidade subjetiva, donde esta dificulda- de em se situar na relação com o outro, tem por efeito, de modo massivo, a presentificação do outro como exterioridade radical da qual ele vai depender, correlativa a uma impossibilidade de encontrar nele uma resposta fantas- mática. Ou seja, aquela trajetória moebiana que se expressa na frase bem conhecida da primeira lição do seminário de Lacan, O objeto da psicanálise ([1965-1966]1999), que, como sabemos, corresponde ao texto dos Escritos, A ciência e a verdade – “O sujeito está, se nos permitem dizê-lo, em uma exclu- são interna a seu objeto” (Lacan, [1965]1998, p.875) – parece não funcionar. Em outros termos, a montagem fantasmática proposta por Freud em Bate-se numa criança (Freud, [1919]2002) coloca em cena os desdobramentos que a

8 Neste sentido, além dos trabalhos de Pierre-Henri Castel, citados acima, encontramos algumas pistas em Jurandir Freire Costa (2005), resgatando a noção de ego não-sexual. 78

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frase de Lacan implica. No caso do meu paciente, é como se a reversibilidade das posições passiva e ativa da gramática freudiana estivesse obstruída. O que me dá vontade de dizer que algo o impossibilita de ser obsessivo. Tratei aqui de avançar algumas pistas de trabalho que exigem, a meu ver, um desenvolvimento metapsicológico mais aprofundado, além, é claro, da necessidade de discorrer sobre as consequências técnicas para o ana- lista, quando confrontado a este tipo de variante do tratamento-padrão, se é que este já existiu.

REFERÊNCIAS BALBO, Gabriel; BERGÈS, Jean. L’enfant et la psychanalyse. Paris: Masson, 1996. BERGÈS, Jean. Le corps dans la neurologie et dans la psychanalyse. Paris: Erès, 2007. CALLIGARIS, Contardo. Clínica do social; ensaios. São Paulo: Escuta, 1991. CASTEL, Pierre-Henri. Âmes scrupuleuses, vies d’angoisse, tristes obsédés: obses- sions et contrainte intérieur de l’antiquité à Freud, Tomo I. Paris: Ithaque, 2011. ______. La fin des coupables: obsessions et contrainte intérieur de la psychanalyse aux neurosciences; suivi de Le cas paramord, Tomo II. Paris: Ithaque, 2012. COSTA, Ana. Inibição e compulsão: duas faces do excesso. Revista da APPOA, n° 47, 2014, p.10. COSTA, Jurandir Freire. O ego não-sexual e neutro quanto a gêneros. In ______. Masculinidade em crise. Porto Alegre: APPOA, 2005. FREUD, Sigmund. Caractère et érotisme anal [1908]. In______. Névrose, psychose et perversion. Paris: PUF, 2002. ______. Contributions à la vie amoureuse: sur le plus général des rabaissements de la vie amoureuse[1912]. In______. La vie sexuelle. Paris: PUF, 1997. ______. Sur les transpositions de pulsions plus particulièrement dans l’érotisme anal [1917]. In______. La vie sexuelle. Paris: PUF, 1997. ______. Un enfant est battu. Contribution à la connaissance de la genèse des perver- sions sexuelles [1919]. In______. Névrose, psychose et perversion. Paris: PUF, 2002. LACAN, Jacques. Les complexes familiaux dans la formation de l’individu: essai d’analyse d’une fonction en psychologie [1938]. In______. Autres écrits. Paris: édi- tions du Seuil, 2001. ______. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada – um novo sofisma [1945]. In______Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. ______. L’objet de la psychanalyse [1965–1966]. Paris: éditions AFI, 1999. ______. A ciência e a verdade [1966]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

Recebido em 21/08/2016 Aceito em 28/10/2016 Revisado por Maria Ângela Bulhões

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TEXTOS CORPOS INANIMADOS: impostura e laço social1

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr2

Resumo: Ao interrogar a posição do sujeito em relação ao saber frente ao cor- po do outro, o artigo visa problematizar a distinção do inanimado na neurose obsessiva em relação à perversão. Tendo em vista a fragilidade de categorias psicopatológicas rígidas, inicialmente propõe-se a discussão de uma obsessiva- perversidade presente no laço social, tomando a impostura e as consequências em responder a demandas alienantes como objeto de análise. Posteriormente, a partir do recorte de uma experiência, coloca-se em discussão a importância de resistir ao imperativo da “resiliência” como ideal de saúde psíquica. Palavras-chave: corpo, inanimado, neurose obsessiva, perversão, impostura.

INANIMATE BODIES: imposture and social bounds Abstract: by questioning the position of the subject related to knowledge when in front of another’s body, this article aims at problematizing the distinction of the inanimate in the obsessional related to perversion. Having in mind the fragility of the rigid psychopathological categories, a discussion of an obsessive persversity that is present in social bounds is proposed, taking the imposture and the consequences of responding to the alienating demands as object of analysis. After that, departing from the scrap of an experience, the importance of resisting to the imperative of “resiliency” as an ideal to mental health is put into discussion. Keywords: body, inanimate, obsessional neurosis, perversion, imposture.

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA; Doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS. E-mail: [email protected]

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orpos inanimados parece um título que vai na contramão do cenário con- Ctemporâneo, aparentemente, tão impregnado de uma excitação maníaca que visa tensionar limites a todo instante. As queixas referentes às insônias cotidianas, a falta de tempo e o imperativo de moldar um corpo ideal são co- muns em nossos consultórios. Através das insatisfações, impossibilidades ou hesitações neuróticas, o indivíduo interroga suas formas mediante uma pro- fusão imaginária de corpos que requerem novas modelagens subjetivas na atualidade: puxa, estica, recorta, preenche, costura, contorna, sutura, monta, transveste, silicona, etc. Como visto, poderíamos falar também, de corpos excessivamente animados. Logo, se de um lado as palavras são insuficientes para falar das possi- bilidades de intervir no corpo; de outro, do ponto de vista psicanalítico, não há disjunção possível entre corpo e linguagem, pois o corpo no ser falante é um efeito do processo de simbolização e investimento libidinal. Assim, para todo falasser o esboço de um corpo é inicialmente linguageiro, efeito do sig- nificante. Desde Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, Lacan ([1966]1998) situa o corpo no centro da clínica psicanalítica. Ao tomar a palavra, o analisante coloca em questão tanto o real do corpo, quanto o imaginário de seu esquema psíquico. Por isso, a linguagem é corpo. Entretanto, quando Lacan aborda essa questão através dos três regis- tros R.S.I, demonstra-nos que, apesar de possuirmos um corpo, não o so- mos. Trata-se de uma simples observação que nos coloca na posição de “locatários precários de um corpo” (Pommier, 2014)3, pois a todo instante ele nos devolve um resto que sempre escapa. Nesta condição, algo falha e faz sintoma. Desse modo, farei um recorte em torno de corpos inanimados através de duas singulares posições subjetivas que alicerçam o discurso ca- pitalista na atualidade: a neurose obsessiva e a perversão. Para colocá-las em questão, proponho interrogar a instrumentalização destinada ao corpo na lógica social contemporânea e sua relação com o saber.

O inanimado na neurose obsessiva e na perversão: posições distintas em relação ao saber

Ao abordar a perversão, Lacan ([1966]1998) situou o imperativo de se fazer instrumento do gozo do Outro, tomando o corpo do semelhante como

3 Gérard Pommier, publicado em 10 de setembro de 2014. Ver Youtube, Voltaire Lycée.

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um objeto inanimado. Mas, como sabemos também, tomar o outro desta for- ma não se trata de uma exclusividade da perversão. Desde Freud, podemos constatar o quanto o obsessivo tende a colocar o outro na condição inani- mada, pois ele também irá gozar ao deixar o parceiro imóvel, assim como, facilmente se desorganiza quando este se movimenta. Diante disso, para falar das relações entre corpos inanimados e a impostura no cenário con- temporâneo, precisarei, primeiro, colocar em discussão as diferenças entre o inanimado na neurose obsessiva em relação à perversão e, posteriormente, problematizar suas implicações no laço social. Mesmo advertido de que a tentação em estabelecer fronteiras psico- patológicas fixas não se sustenta, o percurso se impôs. Talvez, porque este parece ser um dos impasses, tanto na neurose obsessiva quanto na per- versão, por sinal, muito atual, a saber: fazer fronteira com o corpo do outro, criar muros, cercas, divisórias, ou seja, demarcar os territórios de gozo que alicerçam a lógica capitalista na atualidade. Esta sustenta um discurso que tende a desmentir a diferença e a recusar as coisas que dizem respeito ao amor, jogando o sujeito na condição de ignorante em relação ao efeito que a alienação ao objeto de consumo lhe causa. Assim, o inanimado, seja em sua vertente perversa, seja na obsessiva, não nos causa estranheza. Coloca-se em questão a amarração do corpo e do discurso. Lacan estava muito ciente disso, pois para ele o discurso não é um laço natural, gregário; pelo contrário, o discurso é o que torna possível o laço social. Ao reconhecer a fixação diante de lembranças plásticas de padecimen- to, Freud ([1909]2005) localizou na neurose obsessiva as impossibilidades de sustentação do desejo, haja vista a implacável manutenção da incerteza. A escuta de Ernest Lanser ensinou a Freud: o inferno do qual padece o ob- sessivo é que seus pensamentos não cedem, pois suas lembranças serão vívidas. Quando o obsessivo fala, ele enuncia um texto como se estivesse engolfado pela cena vivenciada, como se não houvesse um gap entre o vi- vido e o revivido, entre a vivência e a experiência. Por isso, o vivido se en- contra encerrado na cadeia do finito, não podendo sofrer qualquer espécie de reparação. Sua história está congelada nos detalhes que capturam suas modalidades de gozo. Ao tocar na ambiguidade do obsessivo em relação ao amor, Lacan ([1963]2005) refere que ele faz da mulher uma dama mumificada num pe- destal; jogando-a em sua economia excrementícia. Sua amada será preser- vada enquanto ele puder anular a sua diferença, submetendo-a à demanda idealizada no campo do Outro. Caso for preciso deixar o outro imóvel para responder a isso, ele não medirá esforços. Na tentativa de compreender as vicissitudes do amor na neurose obsessiva, refere: 82

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[...] É que o que ele pretende que se ame é uma certa imagem sua. Essa imagem, ele a oferece ao outro. A manutenção desta imagem é o que faz o obsessivo apegar-se a manter toda uma distância de si mesmo, distância que é justamente o mais difícil de reduzir na análise [....] Seu desejo nunca é autorizado a se manifestar como ato (Lacan, [1963]2005, p.350-351).

O ideal do obsessivo se sustenta nas impossibilidades do desejar. As- sim, o gozo em relação ao inanimado na neurose obsessiva e na perversão será diferente, haja vista a singular posição do sujeito em relação à cas- tração. Neste aspecto, ao desmenti-la, o perverso se situa numa posição distinta, pois supõe deter o saber sobre o gozo do Outro, a ponto de se fazer seu suplemento imaginário. Portanto, ele irá jogar o semelhante na condição inanimada com o propósito de localizar a castração do outro, atingindo o seu pudor a ponto de tanto lhe produzir angústia, quanto de se colocar no lugar daquele que irá obturar a falta. Esta busca será o seu imperativo categórico. Em contrapartida, quando o obsessivo situa o outro enquanto objeto inanima- do, ele o faz com o intuito de que nada saia do seu controle, simplesmente porque o desejar tende a defrontá-lo com a dimensão do trágico. Escravo de uma imagem idealizada do Outro, o obsessivo torna-se mestre no que diz respeito à demanda e ignorante sobre o desejo. Logo, desejar é uma verda- deira tragédia4 para ele, pois, caso goze de alguma realização, parece estar sempre suposto que algo ruim vai, inevitavelmente, ocorrer. Ao se interrogar sobre o inanimado na neurose e na perversão, Calliga- ris (1986) toma como ponto de partida o ápice desta questão: a necrofilia. Ao usurpar um cadáver, o perverso dispõe de uma instrumentalização, diferente do neurótico, pois se trata de um saber que “ele sabe tanto ser, quanto em- purrar seu parceiro”.

Na necrofilia, o perverso encontra no morto o instrumento adequa- do ao gozo de seu Outro, instrumento que ele conhece e que, em última instância, sabe ser. Até aí nada de novo: só que o cadáver está no horizonte para o qual o perverso empurra seu parceiro. Po- demos objetar dizendo que, para o neurótico também, o objeto, o pedaço do corpo do Outro – o inanimado mesmo – é o fundo do ser

4 Para uma discussão mais detalhada sobre a relação do obsessivo com a questão do trágico, sugerimos a leitura de nosso artigo A constituição do desejo no obsessivo e sua relação com a angústia (Rosa Jr., 2008).

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e que lhe acontece de buscá-lo em seu parceiro, indo até mesmo a rebaixá-lo a essa condição. Vemos então que não é do mesmo inanimado que se trata para o perverso: o objeto se distingue, para o neurótico, do instrumento, de seu uso instrumental; e isto porque – diferentemente do perverso – o neurótico não sabe como fazer um “bom” uso dele (Calligaris, 1986, p.65).

Para o autor, as diferenças entre o neurótico e o perverso em relação ao gozo diante do inanimado é justamente a questão do saber, pois na neurose o sujeito não sabe como fazer uso deste, a castração o impede; ao passo que na perversão, ao reconhecer e desmentir a castração, simultaneamente, o perverso se situa desde uma posição de saber sobre o gozo perdido. Como apontou Lacan ([1966]1998), ele imagina-se ser o Outro para garantir seu gozo. Portanto, o saber sobre o gozo situa a posição do perverso em relação à castração, a ponto de jogá-lo no engodo de restituir ao Outro o objeto per- dido. Entretanto, o obsessivo, ao tomar o corpo do semelhante como objeto, ele o faz em função do desamparo e da angústia de ser devorado pela de- manda do Outro. Apesar da pertinência clínica de se fazerem distinções psicopatológi- cas, considerando as diferentes formas do inanimado se materializar, torna- -se necessário reconhecer o quanto essas precisões não se sustentam; pelo motivo de que fronteiras diagnósticas rígidas demonstram-se frágeis. Isto nos faz pensar na importância de considerar o quanto a neurose obsessiva e a perversão podem estar amalgamadas no laço social contemporâneo. A im- postura no laço com o outro irá nos ajudar a explicitar melhor essa questão.

Impostura e laço social: obsessivaperversidade

Na introdução, mencionei o quanto a neurose obsessiva e a perversão alicerçam o discurso capitalista na atualidade. Nesta direção, trago-lhes uma experiência para sustentar a proposição de que vivemos em tempos de ob- sessivaperversidade no laço social. Recentemente fui convidado para intervir em um grupo de trabalho com muitos conflitos. Tive a oportunidade de conhecer os diretores da organiza- ção no mesmo dia em que foi apresentado o “Plano de Participação em Re- sultados” para os colaboradores da empresa. Neste, os diretores capazes de atingir metas altamente arrojadas poderiam dispor de 06 a 10 salários extras no final do ano. Chegado a um determinado número, o “ganho” poderia se multiplicar em dez vezes. O leitor pode imaginar o quanto o estresse, a com- petição, a alienação ao labor e o adoecimento psíquico são apenas algumas 84

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das consequências da loucura posta em questão, pois, conforme a fala do presidente, eles deveriam se ocupar com isso: “24 horas por dia durante os 365 dias do ano”. O “dever” em questão exigia que todos os espaços e inter- valos fossem preenchidos em busca da meta. Estes projetos são comuns em contextos que buscam a tão almejada alta performance de seus executivos. Entretanto, algo me deixou impactado, a saber, a imagem apresentada pelo consultor para explicitar a lógica de tal plano. Após detalhar cálculos complexos e ser interpelado para esclarecer dúvidas, ele colocou um slide com o desenho capaz de sintetizar tudo: era a imagem de um burro entre duas cenouras. O animal representava “aqueles” que estariam em busca das metas: os diretores. A cenoura colocada a sua frente, exatamente na altura da boca, materializava a meta a ser atingida: o bônus a ser alcançado. Por outro lado, a cenoura de trás, na altura do ânus, tinha como propósito situar uma forma de punição, ou seja, se o burrinho não se mexer... Sedução e pornografia coabitam na imagem que, através de um tecni- cismo medíocre, joga a todos na condição de burro inanimado. Verdadeira impostura. Pode-se também, com uma pitada de ingenuidade, ler a materia- lização de uma reducionista lógica binária, quando correr é bom, parar, ruim. Mas, tão surpreendente quanto o burro entre duas cenouras foi a motivação dos colaboradores após a apresentação do plano, pois demonstravam plena disposição para colocar em prática o que acabaram de ver e ouvir. Vejam! Não há tempo para pensar, apenas executar. A coerção tecnicista exige so- mente a execução do imperativo a ser alcançado: a meta. Neste instante, tudo se resume a cifras. Desse modo, os números se sobrepõem a tal ponto de destituir qualquer possibilidade de narrativa. Gori (2013), no livro La fabrique des imposteurs5, ajuda-nos a pensar o quanto esta proposição coloca em cena a “proletarização das condições de vida do indivíduo”. Segundo o autor, cada sociedade tem o tipo de impostor que merece, em função de seus valores, rituais e normas. Assim, o próprio dos impostores é ser uma espécie de “mártir da comédia social contempo- rânea”, pois são “esponjas vivas” que “absorvem os valores que organizam o drama social”. Portanto, há uma impostura em responder a demandas de forma alienada, pelo simples fato de colocar em cena “a proletarização da capacidade de pensar”.

5 Ver também: youtube, Université Permanente. www.up.univ-nantes.fr. Roland Gori. La fabrique des imposteurs. 28 février 2014.

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As formulações de Gori interrogam as respostas dos indivíduos frente aos imperativos e às demandas sociais impostas na atualidade. Estamos de acordo com o psicanalista quando nos diz o quanto a sociedade da norma se preocupa em calibrar tanto os comportamentos quanto os modos de vida, a ponto de o impostor se constituir como uma espécie de solução às exigên- cias e normas sociais. Isto nos faz pensar que a tão aclamada “resiliência” como ideal de saúde psíquica, ou seja, a habilidade para se adaptar a novos contextos, superar traumas, aceitar desafios e saltar obstáculos, pode ser lida também, como resposta sintomática a demandas ortopédicas e alienan- tes. Nem sempre precisamos ser “resilientes”. Pelo contrário, por vezes, faz- -se imprescindível ser resistente para fazer face às tiranias e aos saberes totalizantes. Responder ao imperativo de resiliência, como uma meta a ser alcançada a todo instante pode aniquilar a nossa capacidade de exercitar o pensamento crítico a tal ponto de alienação de simplesmente respondermos a demandas sem qualquer interrogação. Como afirmei anteriormente, o capitalismo selvagem não permite fron- teiras rígidas entre perversão e neurose obsessiva. Neste caso, resta-nos reconhecer a obsessivaperversidade do laço social. Lacan ([1963]1998) já estava advertido disto quando apontou a familiaridade lógica que perpassa- va a incidência das teses de Kant na alcova de Sade. Então, retomando a imagem do burro entre duas cenouras, proponho as seguintes questões: a voz da meta imposta seria a incidência da obsessiva ação moral kantiana na alcova organizacional? O imperativo da meta venderia a ilusão de restituir algo perdido? Cenouras à parte, essas demandas tendem a fazer do corpo do outro um burrico inanimado, pois, ao colocar em causa a disjunção do corpo e do discurso, apesar de pretender um pacto – com vistas à calibragem de comportamentos em busca de metas –, não faz laço social. Vê-se aí uma modalidade da pornografia contemporânea: o mais de gozar implícito na bus- ca alucinada de superação, quando o sujeito consome a si mesmo. Diante disso, o imperativo de superar limites não é somente um ideal, tornou-se uma compulsão masturbatória ordinária, colocando em cena uma forma de gozo que não reconhece a nossa condição, estruturante, de “locatários precários de um corpo”. A ética psicanalítica nos convoca a resistir tanto às pequenas tiranias, quanto aos imperativos que vendem a pretensão de saber fazer com o gozo do outro. Logo, por vezes, resistência, ao invés de resiliência, pode ser uma forma de manter ativa a capacidade de pensar criticamente e fazer face à impostura de responder a demandas alienantes.

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REFERÊNCIAS CALLIGARIS, C. Hipótese sobre o fantasma na cura psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986. FREUD, S. A propósito de um caso de neurosis obsesiva (1909) In:______. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu editores, 2005, v.10. GORI, R. La fabrique des imposteurs. Paris: Éditions les Liens qui Libèrent, 2013. LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. ______. Kant com Sade [1963]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ______. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano [1966]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ROSA Jr., N. C. D. da. A constituição do desejo no obsessivo e sua relação com a angústia. Correio da APPOA. Porto Alegre, n.178, out.2008, p.10-24.

Recebido em 22/08/2016 Aceito em 02/12/2016 Revisado por Joana Horst

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Revista 49.indd 87 10/05/2017 14:44:51 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 49, p.88-96, jul. 2015/dez. 2015

TEXTOS GÊNERO E NÚMERO1

Paulo Gleich2

Resumo: Este texto pretende colocar alguns interrogantes presentes na atual discussão em torno das questões de gênero, em uma articulação com a psicaná- lise. Busca interrogar a noção de binarismo de gênero, assim como seu lugar e pertinência no campo da psicanálise. Palavras-chave: gênero, sexualidade, binarismo, identidade, psicanálise.

GENDERS AND NUMBERS Abstract: This text intends to expose some interrogations which are present in the contemporary discussions about the so called gender questions, in an articula- tion with psychoanalysis. It aims to question the notion of gender binarism, as well as its place and pertinency in the field of psychoanalysis. Keywords: gender, sexuality, binarism, identity, psychoanalysis.

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional da APPOA – Corpo: ficção, saber, verdade, novembro de 2015, em Porto Alegre. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA; Jornalista e Psicólogo (UFRGS). E-mail: [email protected] 88

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este trabalho, gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre algo Nque tem interpelado a todos, tanto no cotidiano, como na clínica e nas formulações com que sustentamos nossa prática. Trata-se daquilo que na atualidade se convencionou chamar questões de gênero. Se essas questões antes se restringiam a âmbitos restritos, como o acadêmico ou o de grupos minoritários, hoje elas se fazem escutar em todas as partes: nas salas de aula, nas redes sociais, nas conversas de família; seja pelo crescimento sig- nificativo do movimento e das reivindicações feministas, seja pela conquista por homossexuais de direitos até então exclusivos de heterossexuais, seja pelo reconhecimento social de pessoas “trans” não mais como doentes, mas, sim, como outra forma de habitar o corpo e o sexo. A reivindicação de um lugar no campo social para esses sujeitos, que até então ficavam à margem das formações discursivas capitaneadas por um pai em constante declínio, tem permeado as redes sociais, as produ- ções ficcionais, os discursos veiculados pela mídia – suportes do Outro em nossos tempos. Em um movimento de dupla via, essas mudanças no discurso ressignificam a própria experiência desses sujeitos, na medida em que se produzem novos lugares de enunciação e formas de viver. A polifo- nia dessas vozes e reivindicações tem causado efeitos dos mais variados matizes, desde o apoio fervoroso ao rechaço violento. Como em outras dis- cussões na esfera pública, constitui-se aí um verdadeiro campo de batalha. Se, por um lado, avançam as mudanças e rupturas propostas por essas discursividades, por outro há respostas violentas a esses deslocamentos, muitas vezes com amparo em líderes religiosos e políticos que, com fre- quência, fazem uso perverso de sua condição de defensores da “tradição” para seu próprio bem. Seja como for o desenlace dessa guerra, é inegável que há uma trans- formação em curso no que tange às questões relativas ao gênero. Os efeitos disso já se fazem notar, como mostra uma pesquisa, elaborada por Melo (2015), com jovens brasileiros entre 18 e 34 anos, publicada recentemente no jornal Zero Hora. Aumentou sensivelmente o número de pessoas que não se declaram heterossexuais: um terço dos homens e mulheres consultados se dizem homo ou bissexuais, em contraste com uma ideia ainda vigente no imaginário popular, que situa essa cifra em torno de 10%. Também é muito significativa a aceitação de formatos diferentes de família, como as homo e monoparentais ou recompostas. Junto com a difusão da ideia de que a naturalidade do binarismo de gênero é produto da cultura, e que isso produz exclusão de muitos, vem um movimento para desconstruir as categorias vigentes de masculino e feminino, pelo menos no que tange a suas roupagens mais aparentes. Vemos efeitos

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disso na crítica de brinquedos, objetos, roupas, profissões e traços de caráter tradicionalmente atribuídos a um ou outro gênero. Denuncia-se, com isso, a carga de violência que afirmações como essas conteriam, ao impor carac- terísticas que endossem ou não a pertença a um gênero. Hoje pisamos em ovos ao fazer generalizações sobre gênero, todos estamos mais ou menos atentos a isso na hora de falar algo que até então se dizia sem refletir, como “isso é coisa de mulher”. Estamos em meio a um movimento que, longe de terminar, parece estar apenas começando. Na temporalidade do desdobramento dessas questões, talvez estejamos em algum lugar entre o instante de ver e o tempo de compre- ender, longe ainda de poder concluir. Os efeitos já se fazem sentir na escuta e em nossas intervenções na clínica, mas também na forma de pensarmos a teoria. Como analistas, porém, como nos situarmos nessa contenda? Em que medida isso afeta nosso corpo teórico, em que homem e mulher, masculini- dade e feminilidade, fálico e não fálico sempre foram binarismos presentes e, de certa forma, fundamentais? Gostaria de trazer alguns elementos e exem- plos para pensar essa questão e tentar avançar no debate. Já virou senso comum dizer que sexo e gênero são duas coisas diferen- tes, sendo o primeiro um fato natural ou biológico, o segundo uma construção cultural sobre isso. Mas a questão não é tão simples assim, e os próprios estudos de gênero, que criaram essa distinção, já a criticam. Isso, porque aquilo que é tomado como natural, como o sexo biológico – seja ele definido pelo genital ou pelo par de cromossomos sexuais –, já está atravessado pela linguagem e por seus desdobramentos imaginários. A pertença a um ou outro sexo, ou seja, a divisão entre dois grupos a partir de um critério natural, já não é mais natural. À noção de gênero, por sua vez, caberia uma multiplici- dade virtualmente infinita de possibilidades, por serem meras construções da cultura. O binarismo nas questões de gênero é criticado pelos gender studies justamente por propor a colagem de uma identidade estanque, criada e sus- tentada pela cultura, a um fato biológico. Jean Allouch expõe isso muito bem em O sexo do mestre (2003), ao retomar a ideia da “segregação urinária” de Lacan. Para irmos a um banheiro público, temos que nos declarar pertencentes a um ou outro sexo, “homem” ou “mulher”. Vestimos essas roupagens de gênero muito cedo, a ponto de se confundirem com nossa própria pele, inadvertidos de que se trata de uma venda casada, cheia de cláusulas e penduricalhos imaginários. Afinal de con- tas, nesse caso “homem” e “mulher” não são apenas significantes, mas, sim, signos, pois vêm carregados de significados. Não por acaso, é também no banheiro público, esse espaço tão banalmente cotidiano – e ao mesmo tem- po tão representativo da cultura, pois nos escondemos ali para nos livrarmos 90

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de nossos dejetos – que já se refletem alguns efeitos das discussões de gê- nero: em muitos locais já não há mais banheiros divididos por sexo. Por outro lado, em nosso campo esse binarismo de gênero é presente e inclusive importante: é o avatar por excelência da inscrição, no pequeno humano, da diferença. A presença ou ausência do pênis diz não apenas da relação com a ordem fálica – e isso até pode ser interrogado, já que o lugar do falo está dado pela cultura –, mas justamente como um suporte visível no corpo, aqui na sua dimensão imaginária, do registro psíquico da diferença. Contra todas as críticas de alguns teóricos de gênero à psicanálise, é ine- gável a importância que tem esse aspecto na constituição do humano, na medida em que é a partir do próprio corpo – e do corpo do outro – que se produzem as primeiras teorias das crianças sobre si e o mundo, bem como as inscrições mais elementares da linguagem. É nesse encontro de corpos, da criança com os outros, que se dão essas inscrições primordiais, atravessadas pelas determinações inconscientes de quem ocupa a posição materna. A lógica binária, porém, está nos primórdios da constituição do corpo próprio, bem antes – em termos lógicos – de entrar em cena a questão da se- xuação. Lembremo-nos do texto sobre a negativa, onde Freud situa a primei- ra operação psíquica que permite o advento do eu. É na expulsão para fora daquilo que é sentido como desprazeroso que se constitui o embrião da ex- periência de separação, de oposição, de bipartição daquilo que até então era um. “Bom/dentro/eu” e “ruim/fora/outro” talvez sejam as primeiras inscrições dessa binarização no psiquismo3. A divisão em dois gêneros, portanto, seria já outra inscrição sobre esse binarismo primeiro – uma imaginarização da pulsação ausência e presença, condição do funcionamento simbólico. Nesse momento, não se trata apenas de uma separação (homens/mulheres, fálico/ castrado), mas também de uma inclusão: o sujeito sai de seu isolamento narcísico para fazer parte de um conjunto de outros semelhantes, com quem compartilha pelo menos um traço em comum.

3 Em A negativa (1925), Freud situa um tempo mítico primeiro do infans, no qual não haveria distinção entre ele e a mãe, entre dentro e fora. A primeira inscrição de uma diferença, de uma separação, de um dois se daria a partir da percepção de bom e ruim, o primeiro sendo introjeta- do e o segundo, expulso. Freud situa dois juízos a partir desse tempo, juízos que também são binários: juízo de atribuição (bom/ruim) e juízo de existência (existe/não existe).

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Nesse momento, isso se dá de maneira sobretudo imaginária (menina faz isso ou aquilo, quem tem pinto e quem não tem, etc.), mas é a partir dessa dimensão que se constitui o suporte para a inscrição da diferença simbólica. Nesse sentido, há algo que passa pela imagem do corpo para que se criem as noções de identidade, semelhança e diferença. As coisas de menino e as coisas de menina são suportes imaginários para alicerçar a construção dessas noções, mas são talvez como dentes de leite: poderiam cair, uma vez cumprida sua função. Sua permanência como traço identitário irrenunciável pode dizer mais da fragilidade dessa construção do que de sua potência, como bem sabemos da clínica. Para fins constitutivos, então, o binarismo de gênero parece ainda seguir em vigor, embora talvez já com uma sensível diferença no que tange às suas formas. Não caberia aqui detalhar das vicissitudes do menino e da menina nesse trânsito, até porque seria entrar em uma seara da experiência da qual os esquematismos edípicos não dão conta; é uma travessia muito singular. No entanto, é interessante resgatar o texto Algumas consequ- ências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos ([1925]1989), no qual Freud constrói sua última versão da passagem do menino e da me- nina pelo complexo de Édipo. Ali, ele já inclui vários matizes nessa tra- jetória, embora ainda com um viés desviante para aquilo que escapa da identificação plena ao próprio sexo e à escolha do sexo oposto. Ao final daquele texto, porém, ele confessa que essa questão é muito complexa e que, no fim das contas, masculinidade e feminilidade são apenas cons- trutos teóricos “de conteúdo incerto”, aos quais pessoas de carne e osso dificilmente correspondem. Ou seja: todos somos mais ou menos desvian- tes em relação a esse ideal; os caminhos pelas identificações e os enlaces pulsionais na construção da sexualidade são múltiplos. As identidades, como tudo o que é imaginário, podem dar a ilusão de unidade, mas esta não resiste à experiência, sempre parcial. Forçando um pouco a barra, poderíamos ler nessa afirmação de Freud sobre masculinidade e feminilidade a inclusão da dimensão do Outro na cons- tituição da identidade de gênero. Nessa via da articulação das questões de gênero com a imagem e o Outro, trago o exemplo de um vídeo que viralizou recentemente na internet. Esse vídeo ganhou popularidade porque mostra um pai que apoia a escolha de seu filho por uma boneca, quando ambos vão a uma loja trocar um presente que o menino ganhara. É um pai ao sabor dos nossos tempos: não impõe um modelo tradicional ao filho homem, de acordo com o que canonicamente é estabelecido como próprio do masculino e do fe- minino, respeita escolhas do menino que fogem ao padrão heteronormativo. De fato, essa é uma palavra que ele repete várias vezes no vídeo, “escolha”: 92

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escolha sua expressão, escolha o que você gosta, escolha sua sexualidade, escolha seja o que for. Uma grande parte daqueles que assistiram a esse vídeo possivelmente se identificaram com o menino: provavelmente não tiveram um pai assim tão tolerante, e devem ter ouvido algum tipo de coisa como menino não faz isso ou isso não é coisa de menina. Mas penso que não é esse o único motivo pelo qual ele foi tão aplaudido: ele encarna um ideal de nossos tempos, o pai que muitos não apenas queriam ter tido, mas que muitos também gostariam de ser. Há nessa cena uma dimensão especular, lembrando com Allouch como se dá a famosa passagem pelo espelho descrita por Lacan. A criança jubila no momento em que vê que sua imagem corresponde àquela que lhe é ante- cipada, imaginada, desejada pelo Outro. Ou seja, a criança jubila ali onde o Outro jubila: finalmente capturei seu desejo! Logo, o pai jubila com a escolha do filho, não apenas por amá-lo “seja como ele for”, mas, sim, porque o filho faz uma escolha que condiz com aquilo que ele demanda dele. Mas há outro olhar envolvido na cena, além do olhar do pai sobre o filho: trata-se do nosso olhar sobre ele. De fato, ele nos olha, como que esperando a confirmação, o “este és tu”, o nosso júbilo em forma de likes. Se o pai está em posição de Outro em relação ao filho, quem está nessa posição em rela- ção a ele somos nós, os espectadores. Afinal de contas, o vídeo foi feito para ser mostrado: de fato, o pai se endereça mais à câmera que ao filho. O júbilo do pai, então, não é apenas o júbilo que indica que seu filho “acertou”, mas também o de se ver reconhecido ali onde ele se supõe desejado (como “pai do século XXI”); ele também encontra no espelho a imagem dele antecipada pelo Outro. Esse exemplo é interessante para pensar nos efeitos dessas formações discursivas a respeito das questões de gênero sobre o sujeito. Não se trata apenas de um efeito ampliador ou libertário (como se propõe e como se idea- liza, e como de fato oferece outras possibilidades de vida a muitos), mas tam- bém alienante. Alienante, aqui, em sua dimensão necessária, constituinte: a linguagem oferece um lugar no qual o sujeito pode se constituir, é no desejo do Outro que ele vai tentar encontrar algum lugar possível para poder viver. O desejo segue sendo o desejo do Outro – o que está em questão, talvez, é de que forma esse Outro interpela. Como destaquei antes, chama a atenção a repetição da palavra “es- colha”. Isso coloca em questão um paradoxo: na aparência, traz a ideia de liberdade – é “escolha” em vez de “seja” ou “faça”. Mas, por outro lado, revela seu caráter de mandato: eis as possibilidades de identidade sexual e objetos amorosos, escolha! É a mesma palavra que usamos na psicanálise, mas

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enquanto nós tomamos “escolha” no sentido da escolha do sintoma, na fala do pai trata-se de uma escolha da ordem da vontade, como se escolhe um produto, numa negação da dimensão inconsciente que toda escolha nesse sentido implica. Fica aí uma questão sobre certo ideal de pais que optam por não “impor” aos filhos um gênero, deixando que eles possam “escolher”, ne- gando uma transmissão que se dá quer eles queiram, quer não. A respeito dessa idealizada liberdade, sabemos que isso não funciona bem assim. A linguagem é uma faca de dois gumes, liberta ao passo que alie- na. Liberta-nos da nossa condição de seres confinados ao imaginário, mas nos aliena na medida em que só existimos na relação com ela. Lacan formula isso com seu peculiar humor em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise: “lidamos com escravos que se tomam por mestres e senhores e que encontram numa linguagem de missão universal o esteio de sua servi- dão, com os grilhões de sua ambiguidade.” ([1953]1998, p.294). Ou seja, in- ventemos o que inventemos – e, nesse sentido, a capacidade das palavras é infinita –, a condição de nos reconhecermos na linguagem é, como diz Lacan, a de nos perdermos como objetos nela. Uma vez que “escolhemos” entrar na linguagem, já não somos mais tão livres para escolher. Nesse sentido, gostaria de citar um trecho de uma entrevista recente com a filósofa Judith Butler, que, como vocês sabem, é um dos principais nomes desse campo dos estudos de gênero:

[...] designação de gênero é algo que nos acontece. É uma interpe- lação a contragosto. E, nesse sentido, a construção social do gê- nero sempre começa de modo radicalmente involuntário. Pode-se debater quais aspectos do gênero são inatos ou adquiridos, mas é mais importante reconhecer o efeito involuntário da designação de gênero e a resistência profundamente consolidada [de alguns] a tal designação. Essa resistência pode ser crucial para a sobrevivência e conformar um preceito básico da identidade de alguém (Passos, 2015).

Aqui encontramos, em outras palavras, o que Lacan nos fala repetidas vezes, também em Função e campo: somos interpelados a contragosto pela linguagem, que nos arranca do nosso estado “polimorfo”. A própria entrada na linguagem é violenta e involuntária, ou, digamos, nos submetemos a ela por uma questão de sobrevivência. Por outro lado, não seria a resistência a essa nomeação e a esse enquadre justamente aquilo que faz resto à opera- ção de entrada na linguagem, uma vez que ela não recobre o real? Nesse sentido, há uma afinidade da psicanálise a essa resistência mencionada por 94

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Butler, que pode ser “crucial para a sobrevivência e conformar um preceito básico da identidade de alguém”. Não se trata, aí, justamente do sintoma, aquele a quem a psicanálise conferiu valor positivo, contra a corrente objetivi- zante e normatizadora dos demais discursos – a ponto de Lacan ter proposto, para ele, a grafia “sinthoma”? Não é a essa “resistência” que damos voz ao escutarmos a fala de nossos pacientes, e não apenas no que diz respeito às questões de gênero, mas a qualquer forma de interpelação a contragosto? Aqui penso que temos algo de muito valor em nosso campo, em como pensamos as questões de gênero: trata-se justamente do sintoma, da sa- ída que cada sujeito encontra para articular esse encontro traumático com o Outro. Sintoma, porém, não é o mesmo que identidade: é único – embora possa compartilhar um ou outro traço com outros, como acaba acontecendo nos grupos identitários. Penso que Miriam Chnaiderman mostrou isso muito bem nos personagens do filme dela, De gravata e unha vermelha (2014). Se fizéssemos de cada sintoma um gênero, porém, teríamos um problema: seria preciso um gênero para cada pessoa. Aumentar o número de gêneros a partir de um ou vários traços em comum pode oferecer essa ideia de maior liberda- de de escolha, mas no frigir dos ovos não isenta da escolha, de certo caráter binário, porque exclui as demais: é o binarismo eu/outros. Há aí duas noções importantes que temos em nosso campo para nos orientar nessa guerra dos gêneros. Por um lado, a função constitutiva do binarismo que, no entanto, não deve se confundir com os avatares imaginá- rios em que encontra sustentação: não são eles que garantem a diferença. No que diz respeito às identificações e às escolhas de objeto, o conceito de sintoma: este que sempre denuncia nossa inadequação a qualquer imagem ou discurso, mas que por outro lado articula a forma singular que cada um encontrou de habitar o mundo. Retomo, para finalizar, uma última citação de Lacan emFunção e campo:

Que antes renuncie a isso [a ocupar a posição de analista], por- tanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetivi- dade de sua época. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico? Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas. ([1953]1998, p.322)

Em outras palavras, precisamos estar advertidos de que somos produto de nosso tempo – e não nos furtarmos disso –, ao passo que também temos

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de estar atentos à discórdia, seja ela entre as diferentes formações discursi- vas, ou entre uma linguagem que se propõe objetivante e a fala singular do sujeito. Se, como psicanalistas, acreditamos na cura pela fala é porque nela reconhecemos aquilo que decanta como resto de um encontro, sempre con- flituoso e cheio de arestas, entre o sujeito e o Outro, o corpo e a linguagem.

REFERÊNCIAS ALLOUCH, J. O sexo do mestre: o erotismo segundo Lacan. São Paulo: Companhia de Freud, 2003. FREUD, S. A negativa [1925]. In: ______. Edição Standart Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XIX. FREUD, S. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos [1925]. Edição Standart Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XIX. LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem [1953]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. MELO, Itamar. Pesquisa revela os novos conceitos de família para a geração Y. Dispo- nível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/notícia/2015/11/pesquisa-revela-os- -novos-conceitos-de-família-para-a-geracao-y-4892080.html. Acesso em: 01/11/2015. PASSOS, Úrsula. Sem medo de fazer gênero: entrevista com a filósofa americana Ju- dith Butler. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/09/1683172- -sem-medo-de-fazer-genero-entrevista-com-a-filosofa-americana-judith-butler.html. Acesso em: 20/09/2015.

Recebido em 21/08/2016 Aceito em 11/11/2016 Revisado por Gláucia Escalier Braga

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