A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NAS BRASILEIRAS NOS ANOS 90

Apresentação e Introdução A partir das reflexões sobre o papel da mulher na história dos tempos, justifica-se a minha preocupação em relação ao tema. Primeiro pelo fato de ser mulher; segundo pelo fato de não se aceitar discriminação tão gritante num mundo que se coloca como moderno ou pós-moderno. Acrescenta-se a tudo isso o meu desenvolvimento profissional no campo da educação e da comunicação: a preocupação com os valores humanos, com a ética e a cidadania, faz-me debruçar sobre os aspectos da realidade em que vivemos e discuti-los, buscando intervir no processo histórico e possibilitar mudança de comportamento e de valores. Portanto, traçar um perfil da mulher, a partir das intersecções História e , é intento dessa pesquisa, bem como a denúncia das máscaras sociais ao lado da desmitificação da mulher ou a percepção do universo feminino sob forma de estereótipos. Em síntese, a pesquisa poderá - desejo nosso - contribuir para a análise das inter-relações entre a realidade e a ficção no que se relaciona ao tema MULHER e a sua representação, ver as suas circularidades e em que medida uma realidade colabora com a outra, apesar das especificidades de cada uma. Este trabalho parte do resultado parcial do trabalho coordenado pela Profa. Dra. Maria Aparecida Baccega 1

A Mulher e a Realidade Brasileira - Aspectos Gerais Às portas do século XXI, quando se acentua o processo de globalização, e a Internet torna os países vizinhos entre si - a desterritorialização - questões substanciais não são e nem foram resolvidas, ratificando a intolerância das pessoas, seus preconceitos, suas discriminações, uma vez que o cenário mundial ainda mantém como atores os

1O projeto de pesquisa é desenvolvido na ECA/USP e é um dos dez subtemas do grande tema Ficção e realidade: o Brasil na telenovela, a telenovela no Brasil .Intitula-se O Campo da Comunicação: Os valores dos Receptores da Telenovela. Visa conhecer como se dá a produção, a emissão e a recepção de valores sobre o tema família e os subtemas relacionados a ele. Foram analisados discursos da população e telenovelas no período de 86-97. excluídos: os pobres, os negros, os judeus e também a mulher, que luta também por condições dignas de vida. Em 1995, foi realizada a IV Conferência Mundial da Mulher, em Pequim, com representantes de 185 países, sob o amparo das Nações Unidas (ONU), historiando um pouco mais esse quadro no que tange à desigualdade nos mais diferenciados aspectos: o problema da igualdade jurídica, condições de trabalho e discriminação salarial, educação, acesso ao poder, autodeterminação dos direitos reprodutivos, violência e vida familiar. Todos esses desníveis atentam para os tão proclamados direitos iguais já efetivados (e de forma perfeita) pela Carta Brasileira de 1988. Sendo assim, lê-se no artigo 1 que um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito é a dignidade da pessoa de ambos os sexos. Confirma-se a igualdade genérica de todos perante a lei, no caput do art.5, inciso primeiro: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. Tudo isso se estende para o trabalho, para a família entre outros. Em termos de panorama mundial, a mulher é o retrato fiel da discriminação; segregação esta minimizada em alguns países, agravada em outros, mas se ratificam situações de intolerância. Preocupante é também saber que há, no planeta, 2,8 bilhões de mulheres, a maioria delas distribuídas pelos países da Ásia e da África. metade está em idade reprodutiva, ou seja, entre 15 e 49 anos de idade. Conforme as projeções demográficas, este grupo tende a aumentar cerca de 400 milhões, ou 14%, nos próximos trinta anos. Só houve, em relação à mulher, permanência de um quadro que confirma a sua estagnação apesar de lutar pelo contrário? Não, não se podem negar as evoluções ocorridas, mesmo que débeis se considerarmos o momento em que vivemos. Em termos de Brasil, podemos perceber determinados avanços nesse sentido. As profissões liberais passaram, nos últimos quarenta anos, por transformação significativa. A advocacia e a medicina, em especial, receberam profissionais qualificadas, chegando, em alguns casos, a superar o número de homens. Contudo, ressalta-se o domínio masculino na docência universitária, embora seja crescente a presença feminina. No ensino de primeiro e segundo graus, as mulheres predominam. Um crescimento auspicioso da participação feminina nos cursos de pós- graduação. Há segmentos nos quais a participação das profissionais de nível universitário encontra resistência. Exemplo disso, no Estado de São Paulo, o Poder Judiciário, uma vez que, no Tribunal de Justiça, não há uma só desembargadora. Na carreira militar, a mulher também não pode galgar altos postos, os de general por exemplo e nem mesmo na vida religiosa a discriminação da mulher deixa de existir; uma mulher não pode ser papisa, por exemplo, ou mesmo ser madre que possa rezar uma missa. Assim, Lígia Amâncio (1994), ao discutir as relações de gênero, mostra que, por muito tempo, considerou-se que a diferença biológica entre os sexos implicava diferenças psicofisiológicas, idéias essas presentes tanto em Durkheim quanto em Freud. Contudo a autora avança nas discussões e mostra que muita coisa mudou desde o início do século. Hoje, as diferenças entre os sexos são atribuídas não mais aos fatos da natureza mas sim aos fatos sociais; sua identidade se constrói na natureza do tecido das relações principalmente. Claramente, coloca-se em discussão a idéia de que às mulheres se deve atribuir um maior interesse pela esfera das relações e dos afetos e aos homens uma maior preocupação pela autonomia e eficiência. Muito mais que questão biológica o problema parece residir no universo cultural.

Realidade e Ficção - A Mulher em Movimento na Vida Social e na Telenovela: Reflexão e Refração da Realidade Por que telenovela? Porque, de um lado, ela opera um verdadeiro campo de comunicação a interação entre o pólo da emissão - os autores ou mesmo a própria televisão - e o pólo da recepção - os telespectadores - uma vez que a sua abrangência é significativa; diferentes níveis socio-econômicos e diferentes faixas etárias e de sexo consomem o produto cultural, que é a telenovela com um objetivo determinado - o entretenimento. De outro, não se pode entender o fenômeno telenovela sem considerarmos o seu significado econômico2 ou na concepção de Adorno e Horkheimer “divertimento administrado” ou estandartização da cultura cujo perigo está na padronização das consciências. Se não é exatamente assim como falaram os frankfurtianos, também não é tão descomprometida essa relação, apesar da ambigüidade e da individuação da obra ou da tão discutida “zona de criação e talento no seio do conformismo estandartizado” de Edgar Morin em O espírito dos tempos. Um não elimina : a grande audiência faz com que ela tenha que ser média, mediana, ou seja, faça com que uma grande maioria se identifique com os valores e situações que estão sendo veiculados. O total vanguardismo não pode predominar. Apesar do predomínio do entretenimento, não se anula a idéia de crítica ainda que velada. Partimos do pressuposto de que a Telenovela não cria as situações que são colocadas em seu enredo, elas são extraídas da vida social. No entanto, queremos saber até que ponto ela apenas reproduz o social (as permanências), até que ponto ela inova (as mudanças) ou mesmo até que ponto ela já aponta certa tendência social ainda que não acentuada quantitativamente. Ou como diz Artur da Távola (1996-13): “A tevê incorpora tendências emergentes em estado de aceitação ou já aceitas, operando com o código conservador. Mas como precisa avançar na relação como o mercado, conduz o código conservador ao limite do permitido. E o máximo que se concede é a transgressão, imediatamente calada para que o código volte a imperar. Os sistemas permitem a infração, jamais a revogação ou a substituição do código pelo que asseguram os conteúdos da ideologia dominante.” Para entender melhor essa relação entre ficção e realidade descartando a idéia de superficialidade do texto da telenovela e a sua relação com os telespectadores, Artur da Távola afirma que a telenovela é um produto peculiar e nela coincidem cinco vias (os cursos da comunicação): o discurso, o excurso, o recurso, o incurso e o transcurso.

Amor e Família no Brasil O amor romântico e a família burguesa são ingredientes significativos da telenovela brasileira. Assim, a família urbana é o traço predominante. O casamento é ainda uma escolha conveniente e também intencionalmente usado como degrau de ascensão social, ainda hoje.

2Ortiz, Renato e Ramos, José Maria Ortiz. A produção industrial e cultural da telenovela. In: Ortiz, Renato et alli.Telenovela. 2a.ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. p.111-182. Nesse sentido, Maria Ângela D’Incao (1989-10) centra a discussão sobre o tema falando, principalmente, do amor romântico e da família burguesa: “Por família burguesa estamos entendendo aquela que nasceu com a burguesia e que vai em seguida, com o tempo, caracterizar-se por um certo conjunto de valores, que são o amor entre os cônjuges, a maternidade, o cultivo da mãe como um ser especial e do pai como responsável pelo bem-estar e educação dos filhos, a presença do amor pelas crianças e a compreensão delas como seres em formação e necessitados, nas suas dificuldades de crescimento, de amor e de compreensão dos pais”. Substitui-se, então, o casamento por aliança política e econômica pelo casamento por amor. Pelo menos é este o princípio. E é este tipo de família (a nuclear, moderna) e de casamento que a telenovela vai abordar em essência, embora já surjam outros elementos que transgridem esta estrutura. Hoje, os padrões de comportamento não são os mesmos do século XIX. As suas marcas é que se definem neste século. No entanto há desvios claros em relação a esses padrões. A mobilidade social é a responsável por toda esta mudança: o trabalho fora do lar da mulher e a expansão do mercado, o casamento não monogâmico (as relações extraconjugais ou mesmo as uniões estáveis) Em meio às relações sociais, as mulheres não são as condutoras do marido ao poder e à riqueza, é o contrário. De certa forma, ainda que muitas vezes minimamente, a mulher é apresentada como dependente, frágil. “Socialmente era protegida de todas as maneiras pela família, pelos poderes eclesiásticos e governamentais, até contra seus sentimentos”. (p.80) O ponto de vista da Igreja, segundo o que se pode observar nos estudos de Ivete Ribeiro3 (1989), permeia esta classe social e suas marcas se fazem presentes com intensidade ainda. A autora analisa o discurso católico do século XX e mostra que ela (a Igreja) prega o amor dos cônjuges, passando a considerar o casamento enquanto “pacto de amor”. Assim, na Constituição Dogmático-Pastoral Gaudium et Spes, em 07.12.1965, ”interrompe-se a trajetória do modelo dos “fins primários e secundários do casamento. O amor dos cônjuges se verificava antes no interior de uma relação determinada: o

3Ivete Ribeiro apresentou seu trabalho - “O amor dos cônjuges: uma análise do discurso católico do século XX””- Grupo de Trabalho “Família & Sociedade da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) em 1989(?). casamento monogâmico e indissolúvel, com sentido unitivo-procriativo, que implicava também a superioridade do marido e a obediência da mulher. Agora, mantêm-se traços significativos dos valores cristãos, mas já se operam mudanças - o amor dos cônjuges de fim secundário passa à categoria central: a promoção da dignidade do matrimônio e da família, que se verifica no fato de a procriação não ser mais considerada como o fim primário do casamento, mas como decorrência do amor conjugal, é comunidade de vida e de amor. Justifica-se com isso a posição frontalmente contrária da Igreja em relação ao aborto. Na História do Brasil, a visão da família e da figura materna nem sempre foram as mesmas, ou seja, a que o mundo burguês propaga.. Na época colonial, o retrato da mãe não é nada estimulador: são figuras desgastadas pelo números de filhos que tiveram, cujas gestações se iniciavam, em geral, desde os catorze anos. A mortalidade infantil era muito grande, principalmente por causa das moléstias da primeira infância. O mundo infantil, nesta época, também não vem recoberto de nenhuma forma idealizada: havia muitas crianças abandonadas ou distribuídas entre parentes, amigas ou comadres uma vez que as mulheres pobres tinham dupla jornada de trabalho, eram comuns o aborto e o infanticídio, as escravas não podiam criar seus próprios filhos, as mulheres da elite não tinham uma preocupação de amamentar seus filhos, a educação era precária. Cenário este que pode ser resumido assim: “a grande maioria das mulheres na colônia, esmagadas sob um sistema de excessivo labor e nula ajuda institucional, via assustada a chegada de filhos que constituíam uma sobrecarga. Tal como ocorria na Europa, o sentimento de opressão era maior para quem sustentava a criança: a família, e não o Estado. No Brasil, ao dizer “família”, vale ler “mães sós” que compunham a grande maioria, sobretudo nas classes subalternas. A opção para tais mulheres era a contracepção, o aborto ou o infanticídio.4” Já “as primeiras décadas deste século no Brasil (ou século XIX na Europa Ocidental) , época de transição de valores, assistem à passagem da estrutura patriarcal para uma nova ordem econômica e social, em que as ideologias de cunho individualista

4Del Priore, Mary. A mulher na história do Brasil. São Paulo: Contexto, 1994. p.55. marcam sua presença.”5Assim, a finalidade do casamento, na estrutura patriarcal, era de ordem social (servia principalmente para manter e transmitir o patrimônio), não havendo espaço para as aspirações individuais. Aspirações estas que passam a se caracterizar pela escolha matrimonial livre, tendo o amor como base. O que se observa é que se fundem as exigências do patriarcalismo com os cânones amorosos e o papel da mulher mais uma vez é o mais atingido: a ela cabe cumprir o dever que a sociedade e a condição de amar e ser amada exigem - praticar a renúncia, a dedicação e a submissão. É o amor revestido de determinismos culturais.

A Mulher e o Trabalho ou Da Família ao Trabalho A luta da mulher pela inserção no mundo do trabalho passa pelo rompimento da tese de que ela está ligada à natureza, à contingência biológica, contrastando com o homem que se apresenta como ligado à cultura, à abstração e à técnica. Suas funções devem ser as domésticas e as do homem são funções públicas. Outras dicotomias se proliferam entre homens e mulheres: emotiva e subjetiva (mulher) x individualista e objetivo (homem). E há ainda as dicotomias que se circunscrevem ao universo feminino: a mulher-mãe e a mulher-santa x a mulher-sereia ou prostituta, disputando o valor-homem. “Até hoje, as atividades econômicas e políticas da mulher são restringidas pelas responsabilidades que lhe são atribuídas pela cultura nos cuidados com os filhos - responsabilidades que constituem um comprometimento duradouro e absorvente, de tal forma que não tem similar nas atividades masculinas”. (Florisa Verucci, 1986-12) Para Maria Valéria J. Pena (1981-34) o homem sempre foi visto na relação de trabalho como competidor, explorador e isso se traduzia em um valor eufórico (positivo); já a mulher deveria exercer as funções de apoio. Esse cenário altera-se visivelmente: hoje a mulher age com mais segurança e impõe o seu modo de ser feminino: cooperativo, protetor e confiante como condicionantes de um trabalho melhor. Cristina Bruschini (1993-507-29) chama a atenção para o crescimento do trabalho feminino no mercado de trabalho, principalmente o urbano, desde os anos 70. No entanto

5Trigo, Maria Helena Bueno. Amor e casamento no século XX. In: D’Incao, Maria Ângela (ORG.).Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989. p.88-94. mostra que ele costuma ser marcado pela descontinuidade e pela intermitência de entradas e saídas do mercado, intercalando-se atividades produtivas e reprodutivas, papéis sociais claramente atribuídos à mulher. Portanto, a presença da mulher no mercado está intimamente ligada ao espaço que ela exerce na família: sua disponibilidade é determinada não só por fatores econômicos quanto por características pessoais (a idade, a escolaridade, o estado civil, os filhos). Seu trabalho doméstico não tem reconhecimento social e é considerado como inatividade econômica. São várias as razões que levam a mulher a ingressar no mercado de trabalho entre elas está a necessidade econômica - a deterioração dos salários obrigando-as a complementar a renda familiar - a elevação das expectativas de consumo, a intensa queda da fecundidade, a expansão da escolaridade. Então, evidencia-se que não só as mulheres pobres entraram no mercado, mas também as mais instruídas e das camadas médias. Ressalta a autora, entretanto, que “apesar do aumento constante a força de trabalho feminino global ainda não atingiu a marca dos 40% do conjunto dos trabalhadores nem mesmo no mercado de trabalho urbano” e ainda mostra que “dados do PNADs6 para os anos de 1981 e 1990 revelam que persiste, ao longo desses anos, o aumento da participação feminina no mercado de trabalho, principalmente nas regiões urbanas. Em 1990, o número de trabalhadoras brasileiras quase atinge a cifra de 23 milhões, 18 dos quais se concentram nas cidades. Enquanto a atividade masculina, cujos níveis são muito mais elevados, mantém taxas estáveis de participação, a atividade feminina revela um constante aumento de incorporação ao mercado de trabalho, como o indicam tanto suas taxas de atividade (que aumentam de 32,9 para 39,2”. Não podemos desconsiderar os avanços que estes dados acusam, no entanto ainda é cabível o alerta feito por Maria Valéria J. Pena (1981-34): “também o trabalho constitui, para a mulher, um campo de subordinação: consistentemente elas ocupam postos mais baixos na hierarquia ocupacional que os homens, têm menores chances de mobilidade, recebem salários sistematicamente menores, apresentam uma taxa mais alta

6Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE de instabilidade de emprego, exprimem politicamente sua condição de trabalhadora de forma menos agressiva e suas determinações de classe são mais sutis.”

Família, Casamento e Maternidade no Universo das Telenovelas Em linhas gerais, pode-se dizer que as telenovelas reproduzem a situação social brasileira, apontando já tímidas mudanças, mas que não são acentuadas. A família é uma instituição de integração do sistema social, importante como agência socializadora. Cabe, então, à mulher a manutenção e integração desses padrões. As novelas que constituem o corpus para a análise são as seguintes: , de Dias Gomes e Aguinaldo Silva (1985-86); Selva de Pedra, de Janete Clair, atualizada por Regina Braga e Elói Araújo (1986); , de Lauro César Muniz e Marcílio Moraes (1986-87); O Outro, de Aguinaldo Silva; Mandala, de Dias Gomes e Marcílio Moraes (1987); Vale Tudo, de , Aguinaldo Silva e Leonor Basséres (1988-89); Salvador da Pátria, de Lauro César Muniz (1989); Tieta, adaptação do romance de Jorge Amado feita por Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzohn e Ricardo Linhares (1989-90); Rainha da Sucata, de Sílvio Abreu (1990); Meu Bem Meu Mal, de Cassiano Gabus Mendes, com a colaboração de Maria Adelaide Amaral, Dejair Cardoso e Luís Carlos Fusco (1991); A Próxima Vítima, de Sílvio de Abreu (1995-97) e Rei do Gado, de Benedito Ruy Barbosa (96-97). A seguir destacaremos alguns elementos indicadores desta análise. A noção de família nuclear moderna ainda é marcante. Famílias com características conservadores, visão predominantemente patriarcal e machista. Das doze novelas analisadas, têm-se 106 casos de famílias nucleares, 86 de famílias com filhos (mantém-se a idéia de casamento como reprodutor da espécie), 62 de famílias sem filhos (aparecem em relações sem muito destaque), 210 de famílias uniparentais (mudanças: pessoas que vivem sozinha, característica dos ), 18 arranjos familiares, 04 famílias extensas, 20 famílias monoparentais masculinas e 18 femininas, além de 22 novos arranjos. Elementos de permanências Casamentos e divórcios, traições e infidelidades. A traição feminina não é tida como normal, aparece dissimulada: a falsa viúva Porcina trai o Sinhozinho Malta com vários mas ela não representa uma estrutura familiar de acordo com os padrões sociais; em geral, o adultério é punido nas personagens femininas e não nas masculinas. A mãe solteira ainda carrega o peso da culpa: a personagem Cíntia (Selva de Pedra) culpa-se por isso e esconde a paternidade. A gravidez da personagem Liliana (Rei do Gado), sem ser casada, também choca a família do senador no início. A questão da virgindade ainda é um valor abordado: a personagem Zezinha (O Outro) era virgem e namorava Pedro Ernesto. Os dois se amam e tudo se resolve com o casamento. Existem casos tão extremados (elemento de valorização?) em que as personagens ficam virgens até a vida adulta - Carmosina (Tieta) e Judite (Rei do Gado).No entanto, não se discute a imensa maioria de jovens que se engravidam e ficam sozinhas, até mesmo sem as respectivas famílias. Casamento como fator de ascensão social e reforço da idéia de dona de casa: Leila (Vale Tudo) deixa o emprego para tornar-se dona de casa de Marco Aurélio; Maria de Fátima não procura vencer na vida por esforço próprio mas sim através de um casamento com homem rico. Dinheiro para a mulher aparece mais como fator negativo: através do marido rico ou quando ela tem é para satisfazer questões pessoais (sexuais): mulheres mais velhas buscando homens mais jovens. A obtenção através do trabalho acontece, mas não com muito destaque. A questão da prostituição também é abordada de forma extremamente moralista, como elemento de repressão da sociedade. Exceção à personagem Quitéria (A Próxima Vítima), que é prostituta por opção. Convém lembrar que esta personagem não encarnou uma verdadeira prostituta: foi maquiada através do fato de ser boa mãe, boa filha, ter perdido o seu filho e tenta reencontrá-lo, ou seja, não se centra apenas na sua atividade profissional. No final, punida (?), iria casar-se com Ulisses que morre em uma explosão. Seria mera casualidade? Outra situação é a de Tieta, contudo é bom ressaltar que ela só respeitada por cauda do seu poder econômico. Dinheiro que obtém ao se casar com um homem muito rico. Com as outras prostitutas da novela não acontece a mesma coisa, são pobres, exceção feita a Leonora, que, diga-se de passagem, é a protegida de Tieta. Elementos de mudanças Em relação à maternidade, a produção independente da personagem Solange (Vale Tudo). vai ser mãe porque está desiludida com os homens (clichê: a mulher se realiza com o homem e com os filhos), mas no final se casa. Em gera, a relação mãe-filho aparece como vital, sem a qual a mulher não se sente completa, é uma relação até apoteótica. Contudo, em casos mais raros, já se focaliza o distanciamento entre mães e filhos (que na realidade acontece com certa freqüência até) - exemplo disso é a personagem Gilda (Salvador da Pátria). Veja que, na novela, ela não é um exemplo de imagem positiva da mulher: fria sexualmente, não mantém relações sexuais com o marido há anos, ambiciosa, quer a todo custo manter o marido no poder, é vingativa, tem a rejeição de seu marido Severo Blanco. Laurinha (Rainha da Sucata) também se assemelha a esta situação. O aborto também é um questionamento em relação à maternidade. Entretanto, ressalta-se que o aborto, em geral, é colocado de forma involuntária; provocado é sugerido sutilmente. Só mais recentemente é que houve uma abordagem deste tema na novela Por Amor em que uma personagem decide pelo aborto e não é punida, com a morte é claro. Convém lembrar que não era uma personagem de grande destaque no enredo. A independência da mulher, em certos casos, existe, mas também é minimizada. Quando prosperam, são viúvas, separadas. Exemplo disso, a personagem Filomena (A Próxima Vítima) é forte, controladora, uma das donas do frigorífico, mas tem por trás um administrador Marcelo e de certa forma o marido Eliseu; também a personagem Ana, dona de uma pizzaria, resolve todos os problemas familiares sozinha, mas só se sente realizada quando fica definitivamente com Marcelo. Outro caso é a personagem Simone (Selva de Pedra): é forte, luta, mas parece que tudo isso acontece porque ela canaliza seus problemas afetivos tentando-os superar no trabalho (escultora - realização pessoal). Caso semelhante acontece com Raquel Acioli (Vale Tudo), Maria do Carmo (Rainha da Sucata). Parece que o prazer nunca é completo à mulher: há sempre mágoas, culpas, algo não-realizado. Jocasta também é outro caso: bela, exemplo de virtude, empresária bem- sucedida, mas vive atormentada em função da busca do filho que foi seqüestrado. A mais poderosa de todas - Odete Roithman - era viúva, presidente da TCA e, apesar disso, deixa tudo nas mãos do administrador Marco Aurélio para aproveitar a vida: com a sexualidade aflorada, adorava homens jovens e saudáveis. A constante troca de parceiros também é uma mudança verificada: rompe-se a idéia de amor eterno, único. Exemplo típico disso foi a novela Salvador da Pátria A diferença de idade entre os casais não provoca muito impacto quando é o homem mais velho. Sendo a mulher mais velha, a situação é outra: Odete Roithman (Vale Tudo), Laurinha (Rainha da Sucata), Valentina (Meu Bem, Meu Mal) As relações homossexuais aparecem, mas, em poucos casos, foi abordada de forma satisfatória, não caricatural ou desrespeitosa - o par Sandro e Jéferson na novela A Próxima Vítima; o mesmo também se pode dizer com as personagens Cecília e Laís (aqui já se discute a questão dos direitos de um dos parceiros, algo bem atual: a morte de Cecília provoca a disputa da família pela herança). Porém abordagens negativas, aparecem com os pares Laio e Argemiro (Mandala), Gato (O Outro) - de tarado a homossexual; O mais curioso é que a telenovela não pretende criar outra realidade a não ser a ficcional. O que lhe interessa é apresentar algo com que o telespectador possa identificar- se. Se é o público feminino que mais acentuadamente vê novela, equivale a dizer que as mulheres, em sua maioria, identificam-se com os valores apresentados - os valores masculinos. Tudo isso se reforça quando se sabe que a comunicação desses valores se faz sob a perspectiva de várias vozes: é o autor e os co-autores (os telespectadores). Em determinados momentos as novelas parecem tematizar as mudanças no mundo feminino, porém as figurativizações dizem o contrário: enaltecer a mulher para melhor submetê-la. O espaço em que ela vive, aparece e pensa está marcado por normas e interditos. O cotidiano feminino está sempre sujeito aos limites dos determinismos culturais. Aparência de liberdade no seu corpo, na sua vontade de existir, no seus ideais. O domínio coletivo circunscreve decisivamente o seu papel. Portanto, é dupla a limitação, a do sexo e a do grupo social. Não há um preocupação mais destacada em focalizar uma imagem da mulher independente, quando há mudanças, ela parece copiar/assumir a posição masculina. Mudanças quanto às Construções Sociais das Imagens Femininas: Ocupações e Papéis Sociais no Universo das Telenovelas - Algumas Reflexões Cabe, neste universo, a mesma advertência feita no Relatório Geral sobre a mulher na Sociedade Brasileira feita na IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, em Pequim/95> “As informações atualizadas sobre o perfil do trabalho feminino na década mostram que as mulheres continuam ingressando no mercado de trabalho e nele permanecem. No entanto, esta participação se faz em condições muito desfavoráveis quando comparada aos homens. Identificam-se alguns obstáculos a serem superados para que a mulher possa se beneficiar do desenvolvimento social, econômico, político e cultural do país, a saber: persistem desigualdades no acesso ao emprego e nas áreas de ocupação, bem como com relação aos salários; as mulheres constituem maioria no setor informal da economia e no subemprego; cresce o número de famílias monoparentais pobres sob responsabilidade de mulheres; as mulheres estão ausentes do poder e das instâncias de decisão em todas as estruturas hierárquicas; os mecanismos de promoção da igualdade de gênero são frágeis e insuficientes; apesar do acesso eqüitativo à educação, esta permanece diferenciada em função do gênero e segrega mulheres e homens por área de ocupação acentuando-se o problema na área de formação profissional”, entre outros. Que indicadores deste quadro temos na novela. A situação, de certa forma, se repete, reproduzindo o quadro social. A seguir, alguns exemplos significativos disso. Quantitativamente, as novelas (12) apresentam o seguinte quadro: 21 donas de casa ricas; 34 donas de casa pobres ou da classe média; 33 empregadas domésticas; empresárias (8) e 11 donas de pequenos negócios; 10 atividades artísticas ou ligadas a elas; 10 profissões liberais (juíza, modelo, produtora de vídeo, jornalista, professora, engenheira, repórter); 34 ligadas às áreas de serviços/comércio (secretárias, costureiras, telefonista, garçonete, atendente de loja, manicure); 1 executiva; 15 estudantes; 12 solteiras sem ocupação; 15 prostitutas e outros (19) ( militante, vendedora de artesanato, madrinha, enfermeira, assistente social, cigana, guia turísitca, alpinista social, fazendeira, funcionária pública, bibliotecária, servente, aposentada, caixa de banco, bóia-fria) Em termos gerais, o trabalho feminino está condicionalmente estabelecido. Pouco se fala do trabalho por realização pessoal: o trabalho é para ajudar a família e está sob condições - casamento e filhos, por isso a idéia de trabalho mais informal ou mesmo um trabalho descontínuo. A mulher vive para a família, alimenta-se dela, é a sua realização. Poucas personagens têm igualmente uma atividade de trabalho proporcionalmente significativa. Sem pretender esta imagem, a família reforça os ideais capitalistas de servidão e de escravidão: é o cotidiano como reprodução ideológica do social, tendo a mulher como mantenedora do cotidiano doméstico-familiar e social. Sua função social maior: ser mãe. paradoxalmente é a própria mulher também que perpetua a sua desvalorização. Entre as várias pesquisas que confirmam isso, reportamo-nos ao trabalho de Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro (1998-183) que sintetiza muito bem as aspirações femininas: “O casamento e o amor caminham juntos. O casamento continua em ascensão, permanece sendo o sonho da maior parte das mulheres. O encontro, o compartilhar e ter o outro como referência na vida ainda prevalecem como valores dominantes. Independentemente, da relação ser dominada por amor ou pelo poder, o homem continua sendo o valor preferido pelas mulheres. Ainda buscamos viver o mito original do andrógino, onde o outro é a nossa cara-metade, porém articulado a outros valores permitindo uma maior expressão de nós próprias”. Mesmo repetindo os padrões sociais, algumas possibilidades de avanços poderiam ser mais intensificadas: o amor pleno que possibilita um enriquecimento mútuo, que só é possível em situações igualitárias, são amores mais domesticados para usar a acepção de Josefina Pimenta Lobato (1997). Conseqüentemente não há uma nova noção de família sem a idéia de poder de um sobre o outro - o que existem são formas de agrupar diferentes, mas com os mesmos valores. Até mesmo quanto á questão de ter ou não ter filhos - o casamento parece ser necessariamente procriativo. E é a presença dos filhos que mais interfere na atuação feminina no mercado de trabalho. Dados de 1992 atestam que 78.4% das crianças de zero a seis anos das regiões metropolitanas ficam com suas mães a maior parte do tempo. Não há apelos fortes no sentido de as mulheres tornarem-se sujeitos de suas próprias vidas: valoriza-se a mulher casada, cuidando de seu lar, com filhos, tudo isso se traduz em feminilidade. Será por que, na sua grande maioria, as novelas são escritas por homens? Basta lembrar que o dito “final feliz” propaga o casamento entre os pares. Quem não se casa está punido de alguma forma. Do ponto de vista do mundo do trabalho, as novelas reproduzem bem os dados sociais, em 1980, 70% das trabalhadoras se concentravam nas chamadas ocupações femininas. Poucas rupturas de padrões e estereótipos masculinos e femininos. As mulheres em sua maioria são donas de casa, as ricas não trabalham (bibelõs sociais), as que trabalham e estudam são pobres ou de classe média. Falta às novelas explorar mais a mulher, principalmente, no campo da educação, embora seja uma ocupação bem feminina, principalmente no primeiro e no segundo graus.. Afinal, segundo dados, a educação é um dos setores que mais emprega mulheres. Dos 8,02 milhões de empregos femininos no setor formal em 31/12/88, 966 mil (12,1%) correspondiam ao magistério de 1o. e 2o. graus. Mas há diferenças nos diferentes graus de ensino: 99% dos professores no pré-primário são mulheres e apenas 30% lecionam nos cursos superiores. Por que isso não se reflete nas novelas? Na nossa amostra somente duas professoras aparecem: uma em Rei do Gado e outra em Salvador da Pátria. Será que também aí é importante não estimular os estudos, apesar de dizerem o contrário? Estes dois recortes escolhidos - família e trabalho - para indiciar uma análise, revelam que a telenovela mais reflete do que refrata a realidade social. A insistência na ousadia e nem ser a precursora de mudanças sociais não são suas prioridades. A educação transformadora não deve nem pode ser apenas papel da escola. BIBLIOGRAFIA

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