ADMINISTRAÇÃO Revista da Administração Pública de

MACAU, 1995

483 ADMINISTRA ÇÃO Revista da Administração Pública de Macau

Quatro números por ano

Director: Jorge Bruxo

Director-Adjunto: Ngai Mei Cheong (Gary)

Directora-Executiva: Celina Veiga de Oliveira

Secretários da Redacção: Peter Lio Meng, José Côrte-Real, Cheang A Chao (Rogério)

Conselho de Redacção: Amável Afonso Barata Camões, Fernando Manuel Cardoso Vaz de Medeiros, Gonçalo Amarante Xavier, José Angelo Lobo do Amaral, José António Pinto Belo, José Manuel da Silva Agordela, Rui Daniel Ferreira do Rosário

Propriedade: Administração Pública de Macau

Edição: Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública

Direcção, redacção e administração: Calçada de Santo Agostinho, n.° 19 Apartado 463, Macau (Ásia) Telef. 323623 Fax (853) 594000 Distribuição e assinaturas: telef. 5995/512-514 Composição e impressão: Imprensa Oficial de Macau 2 500 exemplares ISSN 0872-9174

484 Número 29 (3.° de 1995) • Volume VIII • Setembro de 1995

SUMÁRIO

LITERATURA

489 Do dito ao escrito de José Oliveira Barata 501 Literatura chinesa de Macau entre os anos 80 e os princípios da década de noventa de Cheng Wai Ming

ADMINISTRAÇÃO E ENSINO 527 Carreiras da Administração Pública de Macau e Ensino Superior de José Hermínio Paulo Rato Rainha

TRANSPORTE AÉREO 545 Perspectivas de desenvolvimento do transporte aéreo em Macau de Pedro Pinto

DIREITO E SOCIEDADE 559 O novo Código de Procedimento Administrativo e as garantias dos cidadãos de Macau (notas e considerações dispersas) de Sérgio Almeida Correia

MEDICINA LEGAL

577 Conceito e organização da Medicina Legal de J. A. Baptista Pereira

485 HIGIENE ALIMENTAR 589 Reforma da legislação na área da higiene alimentar em Macau de Iao Sok Soi

TRADUÇÃO 597 Traduções: a questão da romanização dos nomes chineses e o uso do de Maria Trigoso

609 CONSULTADORIA JURÍDICA 715 ABSTRACTS

NOTA DA DIRECÇÃO

Os trabalhos assinados publicados na revista Administração são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Os trabalhos originais publicados em Administração podem, em princípio, ser transcritos ou traduzidos noutras publicações, desde que se indique a sua origem e autoria. É, no entanto, necessário um pedido de autorização para cada caso.

486 literatura

487 488 Administração, n.° 29, vol. VIII, 1995-3.°, 489-500

DO DITO AO ESCRITO

José Oliveira Barata *

Não deixa de ser um desafio estimulante à perspicácia de qualquer intelectual o convite para meditar sobre as relações entre a realidade literária dita e escrita. Só por si, e independentemente dos obstáculos que se levantam por entre os caminhos de uma teoria caprichosamente esotérica, a reflexão sempre estimula quem quer que aborde este tema de forma aberta, sem se deixar enredar na teia das (poucas) verdades já feitas. Nesta, como em tantas outras situações, a perplexidade crítica — estado de graça em que muitos se encontram, mas a quem, os insondá- veis caminhos do saber só parcialmente se revelam — avoluma-se e, do que queríamos dizer, pouco ficará escrito e do escrito muito pouco poderá ser dito. Se é verdade que no princípio era o verbo, a palavra, não é menos verdade que, para lá das questões de hermenêutica bíblica que ainda hoje se colocam, a palavra rapidamente passou para a pedra escrita da Lei das Doze Tábuas, para o pergaminho dos manuscritos evangélicos ou, se quisermos retroceder no tempo, a oralidade dos contos egípcios como que esfingicamente emudeceu na, para nós enigmática, escrita hieroglífica. Sinais, signos, símbolos; significantes e significados de tempos imemorais sempre se comprovando, no entanto, que o dito precedeu o escrito; que o dito foi mito e mitologia, bem antes de o homem escrever as suas mitografias. E mesmo neste caso devemos recordar a pertinente reflexão de Lévi Strauss quando escreve: «(...) a oposição simplificada entre Mitologia e História que estamos habituados a fazer — não se encontra bem definida, e que há um nível intermédio. A Mitologia é estática: encontramos os mesmos elementos mitológicos combinados de infinitas maneiras, mas num sistema fechado, contrapondo-se à História, que, eviden-temente, é um sistema aberto» [Mito e Significado, p. 61].

* Professor Catedrático da Universidade de Coimbra. Director do Instituto de Estudos Portugueses da Universidade de Macau. 489 Não menor valor não apenas referencial tem outra afirmação igualmente corrente, que nos lembra que o escrito fica e as palavras voam. No entanto, se é verdade que, quotidianamente, invocamos este velho princípio para exigirmos que as pessoas se vinculem pela palavra escrita aos actos que praticam, facilmente verificamos que em termos culturais o voo das palavras é digno de ser acompanhado, em toda a sua liberdade criadora, mesmo quando nos surgem estropiadas por compa- ração com a normatividade que regula e policia o sistema linguístico que todos utilizamos. As palavras que voam não são exactamente para se perder. Mais tarde ou mais cedo reencontram o ninho, ou alguém as recolhe como que querendo-as obrigar a merecido descanso depois de tanta deambulação. Mas se alguma característica têm as palavras, é a sua rebeldia. Apesar de letra (e não há letras mortas desmentindo o dito!) elas revivem na apropriação do leitor, na oralidade — pureza original de toda a sua existência. Longe de se poder codificar qualquer itinerário, verificamos assim que do dito ao escrito não existe caminho de sentido único. Antes uma via de dupla circulação em que, pelos trilhos e veredas do imaginá- rio humano, se cruzam, complexamente, duas formas de expressão cultural. Pode parecer óbvio; mas não se pode deixar de referir que as chamadas camadas populares — mais próximas do dito pela sua expressão oral nunca são camadas incultas. São quando muito iletradas e, como tal, incapazes de reduzir a código escrito — passar à letra, ao escrito, aquilo que dizem e é a mais pura expressão dos seus valores e, em última análise, a representação cultural de um universo real e fantástico, quantas vezes fantasmático — que escapa ao homem da cultura massificadora do nosso quotidiano. Como se vê, se por um lado há fortes razões para crer na anterio- ridade da palavra sobre a sua reificação escrita, não se pode ignorar que muitas vezes foram autores de escrita, homens de letras, quem produziu um corpo teatral que depois cai no domínio da oralidade para se afirmar como peça autónoma, libertando o que parecia para sempre agrilhoado a página escrita. Impossível assim qualquer dicotomia maniqueísta; antes, e bem salutarmente, dito e escrito sempre se cumpriram numa trajectória de complementaridade recíproca. Mais: num trajecto de vai-vem que obri-ga o estudioso a nunca poder cristalizar porque as relações nunca são facilmente redutíveis, as categorias que permitem afirmar a anteriorida-de de um momento sobre o outro desmentem a univocidade, confirman-do simultaneamente a complexidade deste processo. Igualmente se torna difícil (e mesmo cientificamente perigoso), afirmar que um dos fenómenos é tipicamente popular e o outro caracte- risticamente erudito ou, no mínimo, culturalmente mais elaborado. Todos conhecemos, neste e noutros domínios, como é comum verifica- rem-se fenómenos de apropriação. Os autos de Balthazar Dias, de matriz humanística — embora recheados de um filão em tudo herdeiro da verve vicentina, foram apropriados pelas classes não letradas. Com eles se

490 identificou um certo imaginário popular durante muitos séculos, para chegar aos nossos dias, recheado de novos ingredientes que mais acentuam a oscilação entre sagrado e profano. Com efeito só assim se explica que um dos Autos, mais concretamente O Auto de Santa Catharina virgem e Martyr, filha do rei Godo de Alexandria, em o qual se conta seu martyrio e glorioso fim, tenha sobrevivido ao longo dos tempos, numa prova de vitalidade editorial que já se detecta na literatura de cordel em pleno século XVII, e que chega até aos nossos dias, em pleno nordeste transmontano (S. Martinho) estabelecido em casco escrito pela mão de Américo dos Santos Ferreira. Curiosamente, o Auto apresenta ao lado de todas as suas figuras iniciais, duas outras: Lusbel e Satanás que interrompem o fio discursivo tradicionalmente aceite para se apresentarem ao público leitor como motivadores maléficos da vontade do Imperador. No resto poucas são as diferenças. Quase sem temer, diríamos que o texto chegou reduzido à sua textualidade através de uma das muitas edições que hoje conhecemos. No entanto, como interpretar esta deliberada intervenção das forças do mal, por oposição ao Anjo que redentoramente alimenta Santa Catarina em todos os momentos de desfalecimento? Mais curioso ainda será verificar que Lusbel e Satanás são em tudo — mesmo na estrutura formal do texto que lhes dá voz — parentes próximos dos diabos vicentinos, neste caso concreto com ressonâncias que lembram alguns diálogos entre Belzebu e Satanás no Breve Sumário da História de Deus. Exemplos contrários encontramos na constante reelaboração literária, a que tantos autores procedem, de mitos, lendas, fábulas ou contos populares que se costumam adjectivar como tradicionais. É esta tradição aquilo que se arrasta; que muitas vezes nos perturba. É ainda esta tradição que leva a que muitos na ânsia de a querer ver codificada para sempre leva a que ao transcrevê-la o façam não respeitando o seu espírito e voz, acabando por a decantar pela óptica do seu filtro (julgado mais culto, mais capaz para corrigir — quantas vezes de boa fé — aquilo que é expressão autêntica de uma comunidade. Ao sentido globalizante de cultura há pois que contrapor o valor particularizante de subsistemas culturais, não como parcelas que o crítico adiciona ou subtrai mas que, quantas vezes por razões metodológicas, apenas momentaneamente «isola» para melhor captar, em busca de uma definição, o vago sentido de «cultura popular». Com efeito, este é um dos muitos subsistemas dotados de autonomia relativa, com mecanismos de elaboração e meios de expressão próprios. Se esta sua especificidade dele faz um campo autónomo, também ao nível da análise crítica, não a diferencia na sua essência dos demais subsistemas culturais. Como para todos os outros, encontramo-nos, com efeito, perante um subsistema, sistemático, em que os modos de transmissão das experiências, as formas de aprendizagem, as tradições, costumes, hábitos sociais, a sua específica estrutura simbólica, são apenas alguns dos traços processuais mais importantes que constituem qualquer subsistema cultural, e, muito em especial, o popular.

491 Cultura popular que não é, nem nunca foi (apesar da insistência de alguns) sinónimo de cultura nacional, definição que em si encerra uma componente e conotação política que, no entanto, lhe é, essencialmente, estranha. Quando assim acontece, quando o poder quer identificar povo e classes populares com população, num todo cultural, (fictício embora) e assente numa forte centralização do poder, para empolamento de um sentimento nacional, assiste-se na prática e em nome dessa mesma unidade que alternativamente propõe um conceito transregional, a uma progressiva e deliberada asfixia dos valores culturais do povo. Não se tornará necessário citar exemplos, nem muito menos sobre eles nos vamos demorar. Na nossa história mais recente o uso e abuso do poder centralizador, aliado à megalómana ideia de, perante o mundo, este pequeno rectângulo se apresentar como cabeça de um império nacional, ofereceria sobejos exemplos. Mas ainda hoje, um pouco por toda a parte os exemplos abundam desde a América Central até à Europa, e entendida esta como unidade político-cultural do Atlântico aos Urais, recuperada configuração que felizmente hoje se volta a impor após anos de esterilizadora «detente» política que condicionou o espaço e a margem de diálogo cultural. A melhor prova da vitalidade desses subsistemas verifica-se no inconformismo perante as tentativas centralizadoras. Apesar de se afirmar como tutelar protector de uma cultura nacional, nunca o poder político pode recusar o fermento da dissensão e a marginalidade de formas culturais que, por vezes, chegam a adquirir tal poder autonômico impossível de qualquer controlo por parte do poder hegemónico. Verda- deiras alternativas à cultura dominante, estes subsistemas culturais desenvolvem-se dentro de um microcosmos espacial, escudados numa sólida rede de valores que perpetuados de geração em geração privile- giam sobretudo o valor da solidariedade e da identidade sócio-culturais, assim confirmando como, conscientemente, se assumem como trinchei-ra perante quem os pretende negar ou marginalizar. Nestes casos, o estudioso não pode ignorar que se encontra perante aflorações que reflectem uma complicada conjuntura político-cultural. A língua, como fenómeno de identidade cultural, é apenas um dos factores que conta e reforça essa mesma unidade. Para além dela igualmente pesam factores históricos e psicológicos, nestes englobando muitos aspectos que o exame global deste problema obriga a contemplar, simultaneamente testando a vitalidade e coesão de uma cultura institucionalizada. Talvez por não ignorarem este valor institucional, e confirmando, como refere Lotman, que na base de todas as definições está a convicção de que a cultura possui traços distintivos, os poderes centralizadores começaram de um tempo a esta parte a tentar resolver um problema que levado às suas últimas consequências assume ou pode assumir situações limite de rebelião. Exclua-se no entanto da apresentação deste problema — ainda hoje tão sentido e visível — qualquer rígido monolitismo. Exclua-se igual-mente — embora não se ignore a relevância de tal posicionamento — a

492 atitude de muitos intelectuais que assumindo-se como contra-poder cedo procuram apropriar-se da chamada cultura popular. Muitos de uma forma sincera; outros de forma reducionista como que querendo confirmar o hoje ultrapassado princípio de que cultura popular é aquele que é feita pelo povo e para o povo. Felizmente para a cultura popular nada é assim tão simples. Felizmente para os intelectuais, também. A complexidade do problema obriga-os a uma constante reflexão crítica que, embora variando com o posicionamento ideológico por que optam, cada vez tem sido mais prudente, recusando-se a aceitar o papel de «pedagogos do povo». Hoje, cada vez mais há a noção de que lhe compete, sobretudo, compartilhar, compreender e defender a cultura popular enquanto repositório de mitos, antigos costumes e, não menos importante, reflexo de uma vivência existencial pautada por peculiares valores sobre a vida, a morte, o espaço, o tempo, o amor, os sentimentos, a solidariedade, o exercício da autoridade e o «justo» poder da justiça, por contraposição a valores adulterados que limitam, nas sociedades uniformizadoras, a dimensão do humano. Dividido entre tradição e inovação, cabe ao intelectual — organicamente relacionado com o seu povo — o papel ímpar de não deixar que os signos populares percam sentido, assim contribuindo para que «tradição» não assuma sentido depreciativo ou se fique no marasmo imobilista. É neste universo que, embora sistematicamente pressionado, o subsistema da cultura não oficial acaba por se manter. Neste rico universo em que, de pais para filhos, se passam conselhos ancestrais, provérbios, romances e sentenças, hábitos religiosos e superstições, músicas e cantares executados em instrumentos que atestam a perenidade transmissível de uma «ars» popular. O dito está ali; dito a outros, para que outros, por sua vez o digam aos filhos. Raramente o transmitem escrito, porque as linhas do seu saber se inscrevem na geografia secreta da sua memória. As tradicionais formas de aquisição da cultura oral ajudam-nos a compreender o valor essencial dessa memória não hereditária da colec- tividade. Quer se trate da experiência transmitida informalmente por cada um no seu relacionamento interindividual, quer se assuma como valor de experiência colectiva vivida e compartilhada em cerimónias pré-estabelecidas ou ainda, mesmo quando se aprende através de sinais enviados por elementos exógenos como o são, em algumas culturas, os agentes não humanos. O estudo da cultura oral, a que um estudioso das culturas orais africanas já chamou oratura, comprova-nos sempre como, ao estudá-la, acabamos por nos confrontar com formas de organização social, onde o individual, embora assumindo para nós um papel repre- sentativo, é dentro da comunidade, e no plano histórico, sempre secun- dário. Assume pois, neste ponto, importância decisiva a memória colec- tiva. Com frequência repetimos que nestas culturas os textos se sabem de cor e salteado. Saber de cor, par coeur, desde logo nos remete para um saber afectivo, palavra por palavra, de que se não pode excluir o carácter repetitivamente mecânico desta sistematização do saber. E, no 493 entanto, apesar de assim se apresentar, nunca poderemos julgar correc- tamente este processo como algo imutável, mera repetição acéfala do que uns transmitem a outros. Com efeito, neste domínio tal como para as culturas oficiais, encontramo-nos perante um programa, dotado de regras próprias; um sistema de regras que permite a tradução da expe- riência imediata de um texto. Assim se terá que estudar esta verdadeira língua de cultura que, na sua maior parte dos casos, se corporiza num vasto corpus textual a que nem sempre — é certo — correspondem códigos bem estabelecidos e regra geral imediatamente complementa- res. E assim se pode estabelecer um significativo confronto com a cultura sistematizada que o suporte institucional (escola, imprensa, etc.) mais facilmente ajuda a formar num todo de todos. Nesta, os principais valores e tradições encontram-se corporizados num sistema coeso, defendido e preservado pela base cultural que os suporta e lhes fornece em última análise um relativo imobilismo, como que querendo preservar o que já está instituído e, que por isso mesmo, é definido e difundido por instituições. A memória desta cultura perpe- tua-se e difunde-se mais largamente porque ao seu serviço encontramos todo o peso de uma máquina social de produção, reprodução e consumo sistematizado. Na sua maior parte essa cultura foi, e é, objecto de um especial pensar de uma classe, de uma «élite», que, quantas vezes ciosa dos seus privilégios, a defende e perpetua preocupando-se, por vezes, muito mais com a quantidade do que com a qualidade. Com efeito é bem mais fácil percorrer os caminhos já testados do que apostar no valor da renovação. Assim — diz-se — «se difunde cultura, valendo-se dos aparelhos ideológicos que tem ao seu dispor, desde os manuais escolares à causa mágica que mudou o mundo, ontem visto a preto e branco, hoje colorido mas nem por isso mais alegre...». Sabemos como o forte rigor sistematizado dificulta o esquecimento. Qualquer trabalho inovador é, quase sempre, facilmente comparável com o seu antecedente, próximo ou longínquo, porque ele assumiu valor definitivo aquando da sua fixação como texto, na autoridade que assume o escrito. A memória fixa-se e repousa no vasto corpus codificado de uma escrita. Por isso, qualquer alteração é sempre mais difícil porque colide com o valor institucional que a letra confere e o peso de um saber reflectido por gente letrada e especificamente preparada para pensar em sociedades multimedia o fenómeno cultural. Estes textos, que rapida- mente se assumem como legado cultural, literário, perpetuam-se. A sua longevidade reflecte uma memória colectiva, embora institucionalmente elaborada — repita-se — e que corre a par com a longevidade do código dessa mesma memória. Que a regista, atribuindo-lhe o valor de herança cultural importante e, desde logo a «prepara» para que o futuro não a esqueça. Ontem como hoje, foi assim. E mesmo que, por reacção profilática, recusemos o pacto com as propostas massificadoras, não podemos deixar de reconhecer as inequívocas vantagens que advêm dos variados meios de fixação cultural de que hoje dispomos. Distantes de Guttenberg e vogando ao sabor das «vagas», há que saber manter uma

494 salutar distanciação crítica, que passa inevitavelmente pelo aceitar os desafios presentes, nem que com eles se tenha que travar difíceis duelos. Relembre-se, a propósito, o determinante papel desempenhado pelos monges Boécio e Cassiodoro que, num momento de ruptura cultural europeia, souberam compreender como se tornava urgente registar a memória das letras humanas passadas. Copiaram os textos, como formalização de um saber, de uma memória mitológica, em alguns casos já confundida e assimilada pela História. Hoje sem a transmissão desse legado não seríamos, por certo, o que somos. Bem como muito mais saberíamos de nós e de outros se, numa antecipação de Truffaut em Farenheit, a Biblioteca de Alexandria não tivesse sido destruída. Sabe-mos como é limitada a margem de acção de quem copia. Desde logo nos encontramos na presença da transmissão de um saber repetido, onde a margem de livre criação — que é base de qualquer acto criador — fica substancialmente diminuída. Posição diversa é a que se passa com os fenómenos de transmissão de cultura e saber oral. Neste domínio a longevidade dos textos que reflectem uma memória colectiva corporizando-se numa língua de cultura não obriga necessariamente à existência de um código escrito dessa mesma cultura. Em alguns casos, dificilmente se divisa a simultaneidade da coexistência texto/código. Chega mesmo a ser difícil estabelecer qualquer prioridade de um sobre o outro. Facilmente se verifica que o carácter «conservador» que se atribui à cultura popular tem que ver, essencialmente, com a materialidade da sua transmissão. Com efeito, os mecanismos de perpetuação desse saber memorialmente reproduzido remetem-nos para o passado. Dele só tomamos conhecimento post factum. Talvez por isto mesmo, este é para nós um saber sempre retrospec- tivo, aparentemente inactualizável, na rigidez das suas regras próprias. E compreende-se que assim seja. Com efeito, a longevidade dos textos corresponde a uma hierarquia só identificável com urna específica hierarquia de valores, tenazmente conservados e perpetuados de gera- ção em geração. Por outro lado, a longevidade do código dito relaciona-se com a persistência de elementos estruturais, comunitários, de fundo e, em última análise, com a auto consciência de unidade, particularmente arreigada nas comunidades populares. Referiu-se, no entanto, que esta é uma memória não hereditária da colectividade. A génese da sua transmissão, porque não vinculada a rígida sistematização formalizada pela cópia de um código estruturalmente elaborado oferece, assim, pontos vulneráveis na sua transmissão. Memória e esquecimento jogam- -se dialecticamente valorizando o papel inovador da transmissão nas culturas populares. Com efeito, a rigidez do saber de cor e salteado é apenas aparente. É certo que o que se transmite é a gravação ancestral de um viver comunitário. Mas não é menos verdade que essa memória do passado se encontra exposta a constantes agressões, que o quotidiano comunitário não ignora. E se, por tradição, pode numa primeira fase rejeitar o que lhe surge como estrutura estranha, sabemos como progres- sivamente a incorporação de novos dados sempre acaba por se dar. Com

495 a inexistência de um código corporizado na escrita, a par do esquecimento que a usura do tempo propicia e os hiatos geracionais facilitam, assiste-se a uma constante revitalização do imaginário, que se assume como texto supletivo a que o código acaba por dar pronto acolhimento. Perante o esquecimento, a tradição oral mais facilmente acolhe uma actualização da memória, recorrendo a reservas inactuais quantas vezes temporalmente diacrónicas, oscilando entre o mais fiel apego à realida-de e o reaproveitamento de um universo feérico, mágico, escatologicamente subversivo, onde o sentido parece residir no sem sentido. Comparando os dois sistemas — literatura oral/literatura escrita — poderíamos dizer que nos encontramos perante — e tão só — uma diferença de estatuto do texto. Mas é decisiva esta diferença. É que, se nos textos a que se confere estatuto literário, o nosso trabalho é sobre um corpus em que as alterações se encontram corporizadas num sistema de variantes materialmente detectáveis, no domínio da cultura oral, as estruturas discursivo-narrativas raramente correspondem ao valor tradicional que lhes confere a cultura institucionalizada. Reafirmando-se que a cultura popular é um sistema eventualmente bem mais aberto do que os seus detractores dela quiseram fazer, verificamos como a reactualização se prende com a imaginação, sempre reflectindo o ima- ginário determinante de cada sujeito, inserido no colectivo comunitário. A distinção entre rapsodo e aedo, que para a cultura grega valia como delimitação entre o que repete e o que cria, parece encontrar neste dualismo interactivo (cultura oral/cultura escrita) uma confirmação actualizada. Rapsodo era, etimologicamente, o que dizia cânticos (odia), repetindo passos que ligava, «ciosa como um sapateiro remendão» (rapsos). O valor rapsódico surgia, assim, como expressão da mecani- zação reprodutora de uma memória colectiva através de um artista-executante. Contrariamente, o aedo criava, inspirado, novos cantos, reafirmando-se como artista-criador. Homero era distinto do anónimo rapsodo que, pela voz, ajudou a perpetuar a lógica discursiva sequencial de grandes textos que hoje lemos como unidade narrativa e que, inicialmente, surgiram como «puzzle» habilidosa e faseadamente construído: são os casos da Ilíada ou da Odisseia. Voltamos hoje a estes textos, neles vendo a narrativa mito-histórica de um povo, narrada em folhetins «avant Ia lettre»; lemo-los, estudando-os na sua intertextualidade e com a consciência de que eles reflectiram no seu tempo uma constante actualização da memória colectiva, da epopeia que é sempre a busca da identidade cultural de um povo. Ainda aqui nos encontramos perante um fenómeno que, embora estudado e teorizado pelas classes letradas, é comum a toda a criação artística, e perfeitamente actual quando ainda hoje nos referimos às poéticas da oralidade. A imitação da realidade — a capacidade mimética — não acrítica. A mimese criadora é sempre poética porque é sempre um fazer novo. Perante a realidade a atitude é não de cópia (mimese-imitação), mas de poesia. Ou seja: perante a realidade feita, o criador desfaz, para voltar 496 a construir. Se este mecanismo é verdadeiro e comprovado para sistemas culturais elaborados e «dignificados» pelo estatuto «literário» que se lhes confere, não é menos verdade para o domínio do romance popular, do conto, das lendas e tradições oralmente transmitidas. A poeticidade popular, na sua aparente e tão valorizada ingenuidade, é uma inequívoca demonstração de como o homo faber dialoga com o homo ludens, sem preconceitos que lhe são ditados por cânones pré-estabelecidos. A cultura popular responde, à sua maneira, à mesma solidão, desespero ou euforia que leva todos os poetas a reorganizar pela palavra uma poética do Mundo. Do dito ao escrito não vai afinal grande distância. O que é neces- sário é ter bem presente que no universo da oralidade o homem, apesar de interiorizar as suas experiências históricas, não dispõe de mecanis- mos para as conceptualizar discursivamente; tudo devolve «metaforizado». Pensamento e acção surgem intrinsecamente associa- dos e imbricados num tempo e espaço predominantemente marcados pelas experiências de grupo. A escrita exige uma disjunção entre pensamento e acção; o escrito exige categorias temporais e espaciais completamente distintas. Porventura mais lineares, por oposição à circularidade em que se envolve pensamento e acção na cultura oral. Não se julgue que ao afirmar um dualismo, que sempre afastamos nesta proposta de reflexão, estamos a aceitar como certa esta metodologia. Convém acentuar este ponto para reforçar, mais uma vez, como as situações de oralidade não se podem rigidamente catalogar. Como correctamente — em nosso entender — refere Paul Zumthor, podemos estabelecer, ainda que com fronteiras indefinidas, quatro grandes categorias tipológicas para a oralidade. Uma oralidade primária onde o contacto com qualquer forma de escrita nunca se realiza. Uma oralidade mista, onde oral e escrito coexistem, coabitam, com peso e valor desiguais. Neste caso, o escrito só parcialmente é influente, por vezes, externo à própria comunidade e os resultados concretos reflectem sempre a lentidão da sua interferência. Por oposição, uma oralidade secundária. Neste caso, o dito parte do escrito, que se assume como norma prestigiada de que a comunidade popular se «apropria». Finalmente, uma oralidade mediatizada, tão nossa contemporânea, difundida pelos mass media, nomeadamente através da rádio ou pelo registo magnetofónico. Dificilmente entre nós depararemos com fenómenos de oralidade primária. O seu carácter ancestral tornar-se-ia aliás difícil de detectar na impossibilidade de encontrar documentos catalogáveis. Verifica-se assim que, para o caso da nossa cultura oral popular, mais facilmente a caracterizaremos através do compromisso entre os sistemas de oralidade mista e oralidade secundária. E importa que no seu estudo se combinem estes dois vectores. Com efeito não é pelo facto de se dar forma escrita a contos, lendas e tradições, especificamente pertencentes à tradição oral, que esta cessa o seu ciclo produtivo. Pode — e regra geral é o que acontece — assistir-se a um efeito catalizador provocado pela passagem a escrito. 497 A par de um texto de referência, ponto de partida para uma literatura escrita, verificamos que continuam a suceder-se, no tempo e no espaço, múltiplas versões orais. As classificações de fenómenos complexos tem sempre a desvantagem de nos surgirem como redutoras. No entanto, uma vez bem manuseadas, evidenciam-se como úteis instrumentos operatórios. Neste caso, a conjugação do dito e do escrito, ou se quisermos a passagem de um a outro, comprova-nos a coexistência de um sistema de oralidade mista com um outro de oralidade secundária. Mais: a história fornece-nos abundantes exemplos. Desde os Evangelhos que, textualizados em código escrito, surgiram em novas versões apócrifas, largamente difun-didas, acabando também estas por serem reduzidas a escrito. Nestes preciosos documentos bíblicos, alteram-se dados factuais; assume espe-cial relevância o primado do fantástico — herdado da cultura bizantina — sobre o tom ascéptico dos textos legados pelos Apóstolos. Neles, ainda, se assiste a uma constante incorporação de dados e factos do quotidiano no tecido social das pequenas aldeias palestinianas. Apesar do escrito, o dito sempre convidou ao acrescento. Quem conta acrescenta uma ponta; ou quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto. Não há pois divórcio entre dito e escrito. Há, sim, complementaridade. Verificada a impossibilidade de, neste domínio, se encontrarem caminhos metodológicos unívocos, convém por certo não enjeitar a hipótese de nos situarmos numa perspectiva interdisciplinar. Assim parecem ter intuído os que entre nós recolheram o rico tesouro da nossa literatura oral. A metodologia positivista que tantos elementos nos forneceu ou, se melhor quisermos, que nos facultou o corpus sobre que ainda hoje nos debruçamos, esforçou-se por fixar, na riqueza das suas variantes, a policromia popular, as suas várias manifestações. Esse constante e proclamado regresso às origens, cuja investigação sempre se pautou por um rígido método fisicalista, acabou por dar respostas pontuais explicando e interpretando, ou se quisermos, contribuindo para responder ao como. Com efeito, percorrendo os trabalhos pioneiros de Garrett, Teófilo, Leite de Vasconcelos, Consiglieri Pedroso, Carolina Michaelis, confrontamo-nos com um corpus sólida e rigorosamente estabelecido que, até hoje, tem servido de ponto de partida para a necessária reflexão que se tem visto renovada nos últimos anos. À perspectiva que enforma esses preciosos levantamentos, subjaz a ideia de que todos os trabalhos neste domínio obrigam a um sistemático trabalho de campo, na busca do Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, para glosarmos o título de um dos mais fundamentais trabalhos da nossa etnopsicografia. O imparável caminho do progresso científico obriga-nos hoje, no entanto, a reconhecer contributos vários que, embora parcelarmente, têm vindo a debruçar-se sobre a complexa articulação que nós, com mais dúvidas que certezas, hoje aqui procurámos sumariamente apresentar. Desde a discutível formalização morfológica proposta por Propp, passando pelos contributos da semiótica de Lotmann, 498 até ao estudo fundamental de Gilbert Durand sobre As Estruturas Antropológicas do Imaginário, todos têm procurado contribuir para esclarecer o que está longe de clarificação absoluta. Mas, um tanto curiosamente, julgamos pertinente evocar a antiquíssima sabedoria clássica. Talvez no fundo, na sua essência, os mecanismos de transmissão não se tenham substancialmente alterado. Julgamos, com efeito, continuar a ter validade o conceito de «mythos» («aquilo que alguém diz em primeira mão»). Esse «mythos», narração dita e quantas vezes memorizada, acabara por «sofrer» a implacável reordenação do «logos» («razão coordenadora») que, em última análise organiza um tecido heterogéneo numa mitologia. E logo aqui se adivi- nha como o exemplo da antiguidade greco-latina é particularmente expressivo. Por tudo isto não bastará responder ao como; por tudo isto, a nossa tarefa, hoje, terá de ultrapassar o estreito positivismo para reencontrar, nas vias da hermenêutica cultural, o porquê dos principais fenómenos de apropriação. Papel importante assume desde logo quem, perante o riquíssimo legado cultural, se propõe fixá-lo. Esse especial cuidado deriva dos considerandos que procurámos expor; mas deriva também da postura cultural que por vezes vemos assumir perante o popular e que nos deve merecer alguma reflexão. Com efeito assiste-se hoje — ao lado de uma crescente vontade de reler os valores da cultura popular — ao aproveitamento pouco escrupuloso do muito que há de mais genuíno dessa mesma cultura. Desde o folclore mercandejado, como qualquer outro produto de «export-import», até à oportunística apropriação do «design» popular para consumo de classes que, vestindo xale e calçando socas, parecem acalmar a sua má consciência por não serem povo, a lógica da sociedade de consumo é insaciável. Na voracidade da novidade, e perante o esgotamento da sua própria imaginação, não se hesita em «invadir» os domínios culturais que, quantas vezes depreciativamente, apelida de naif, de simplicidade rústica. Ainda aqui nos encontramos perante uma mal disfarçada hipocrisia: os «bondosos olhos» de uma classe culta, «acarinhando» a marginalidade dessas culturas, não se vá esgotar uma «reserva natural» onde cada peça é um trofeu que se exibe como talismã tipique. O dito feito escrita não é exactamente o dito e feito da escrita, porque a intermediária copulativa impede o casamento imediato; inter-vém como mediador que logo obriga que os campos se separem para tornar mais atraente a estranha estratégia de sedução que todos os textos, orais ou escritos, em si encerram. Pensamos sim que, ainda hoje, estamos longe de um contacto sério com a cultura popular. No quadro da nossa política cultural, o capítulo popular está infelizmente, por escrever. Há que escrevê-lo, no estilo plural que implicae solicita; e com a perfeitaconsciência de que estamos a reconhecer e a incorporar, num sistema institucional dominante, novos valores que só enriquecem e dão sentido mais inteiro à visão única que por vezes temos da nossa finitude, aqui, no mundo. 499 Desmentir-se-á a apoclíptica visão dos Huxley, dos Orwels, porque «o tempo não pára» e o futuro é, por vezes, o passado relido, reapropriado e empenhadamente feito contemporaneidade.

500 Administração, n.° 29, vol. VIII, 1995-3.°, 501-523

LITERATURA CHINESA DE MACAU ENTRE OS ANOS OITENTA E OS PRINCÍPIOS DA DÉCADA

DE NOVENTA

Cheng Wai-Ming *

Ⅰ INTRODUÇÃO Os Governos chinês e português acordaram, no dia 8 de Fevereiro de 1979, o estabelecimento das relações diplomáticas, concordando na manutenção do estatuto de Macau que é um território chinês sob admi- nistração portuguesa. Mais tarde o almirante Vasco de Almeida e Costa, então Governador de Macau e o General Ramalho Eanes, Presidente da República Portuguesa, efectuaram visitas à China em Fevereiro e Maio de 1985, respectivamente. Na altura, ambas as partes foram unânimes em iniciar as negociações acerca da entrega à China do testemunho de Macau, questão essa que foi legada pela história. Ao fim de quatro rondas de negociações, os dois Governos, o chinês e o português, rubricaram e celebraram em Pequim, nos dias 26 de Março e 13 de Abril de 1987, respectivamente, a Declaração Conjunta Sino-Portuguesa sobre a Questão de Macau, que prevê que a parte portuguesa entregará à China o testemunho de Macau em 20 de Dezembro de 1999. Pode-se dizer que Macau passou, a partir daí, a entrar no período de transição na perspectiva do seu desenvolvimento político e da reconversão económica. Como se sabe, a literatura duma região tem evoluído sempre com a sua própria lei. Do ponto de vista teórico, a vida literária duma região anda por vezes sob a influência do desenvolvimento político e económico, tendo-se mantido, outras vezes, em cima das vicissitudes. Por isso, com um estudo aprofundado sobre a evolução da literatura do Território no período transitório, é-nos possível encontrar uma nova perspectiva indispensável para nos inteirarmos de Macau.

* Docente da Universidade de Macau. 501 Ⅱ DEFINIÇÃO DA LITERATURA DE MACAU O que é a literatura de Macau? Eis uma pergunta que merece ser bem discutida. Acho que podemos analisá-la nos seguintes sentidos:

1. AS LÍNGUAS USADAS NA COMPOSIÇÃO LITERÁRIA A literatura de Macau está aberta a todas as línguas. Não temos razão de excluir da grande família da literatura de Macau uma obra que fale de Macau, mas seja escrita em japonês, por exemplo. Da mesma maneira, é natural que à literatura de Macau pertençam todas as produções literárias que tratem da vida do Território, seja qual for a sua expressão, quer em português ou inglês, quer em espanhol ou holandês. Na realidade, não eram poucas, no passado, as obras deste género. Referindo-se à língua chinesa, é lógico que esta seja uma expressão de maior relevo na literatura macaense, devido ao facto de ser ela língua falada pela maioria da sociedade de Macau e actualmente ter o estatuto de Língua Oficial. Em todo o caso, não partilho da opinião que considera inadmissível como obras de Macau as produções literárias que não sejam escritas em chinês.

2. DEFINIÇÃO DOS AUTORES DAS PRODUÇÕES LITERÁRIAS DE MACAU Quais são os autores de Macau? Não há dúvida alguma que são aqueles que nascem e crescem aqui em Macau. Contudo, serão ou não «autores de Macau» aqueles que deixem o Território quando adultos? Pode-se afirmar que são encarados como autores autênticos de Macau aqueles que nascem, crescem e residam permanentemente no Território. Porém, a história da literatura de Macau não pode ser feita de tal forma. Se assim for, não poderão ocupar um lugar na história da literatura de Macau aqueles nomes que fizeram a maior quantidade de obras literárias de peso mas tinham residido muito pouco tempo nesta pequena península, dr. Qiu Dajun e dr. Wang Zhaoyong são disso exemplos. Em meu entender, ao falar da história da literatura duma região, há que ter presente o quadro real e êxitos logrados. Auden, esse poeta mais reputado da Inglaterra nas décadas de 30 a 40, efectuava só viagens de carácter turístico por Macau, mas produziu imensos versos sobre a vida de Macau daquela época. Se prepararmos neste momento uma história da literatura de Macau, será justo que nela não se refira este grande nome? Muitos conhecedores da história de Macau sabem que a população de Macau é caracterizada pela sua fluidez. Caso se insista no argumento de que só aqueles localmente nascidos e crescidos fazem parte do contingente dos escritores macaenses, não corresponderá isto certamente à história e à realidade de Macau.

3. SOBRE O CONTEÚDO DAS OBRAS LITERÁRIAS

Quais são as obras literárias de Macau? É claro que são do âmbito

502 da literatura do Território aquelas obras que falam de Macau ou tenham como temas a realidade e a vida de Macau. Entretanto, permita-me colocar aqui outra pergunta: Se a dr.a Yi Ling (escritora local, nascida e crescida) escrever um conto que não trate de Macau, deverá esse ser entendido como da literatura não macaense? Penso que não podemos obrigar todos os escritores macaenses a escrever somente sobre Macau. Os escritores têm que olhar para mais longe e ter uma visão mais larga. Muito sinceramente, caso todos os autores do Território se limitassem a escrever sobre Macau, isto seria motivo de tristeza.

4. A PUBLICAÇÃO E EDIÇÃO DAS OBRAS Sou da opinião que não se deve concluir que todas as obras que sejam publicadas e editadas no Território são da literatura macaense. Como por exemplo, actualmente publicam-se de vez em quando, em revistas ou jornais de Macau, alguns trabalhos cujos autores vivem fora do Território, não convindo, por isso, defini-los indiscriminadamente como uma parte da literatura macaense. Na realidade, algumas obras reúnem todas as condições para se inserirem na literatura de Macau, muito embora sejam publicadas e editadas fora do Território. Veja-se por exemplo, o lançamento em Hong Kong de «Ilha Fluente» de autoria da dr.a Yi Ling, escritora de Macau; ou a publicação em Hong Kong e Taiwan da maior parte dos trabalhos de Wang He. Nestes termos, de-vemos tratar com toda a flexibilidade a questão de definição da lite-ratura macaense. Em conclusão, entendo que o definir da literatura de Macau pode ser feita em conformidade com os dois critérios: 1. Quaisquer obras dos naturais de Macau; as chamadas obras dos naturais de Macau implicam os trabalhos de autores que nasçam, cresçam e residam permanentemente em Macau, isto é, as obras dos escritores titulares dos documentos de identidade emitidos em Macau, ou melhor dizendo, as obras produzidas em Macau pelos autores acima referidos. 2. Todas as obras que falem de Macau ou tenham por temas a realidade de Macau, seja quem for o seu autor. Neste contexto, o presente trabalho tem por finalidade estudar o enquadramento da literatura chinesa no período transitório de Macau, ou seja, avaliar exclusivamente as produções literárias de Macau, criadas em língua chinesa.

Ⅲ SÍNTESE DAS ACTIVIDADES LITERÁRIAS DE MACAU DESDE A DÉCADA DE OITENTA ATÉ HOJE Se se afirmar que o ano de 1987 marcou a entrada de Macau no período de transição nos domínios político e económico, o início do

503 período transitório da literatura do Território adiantou-se por alguns anos quanto àquela data, ou seja, deu-se o seu início por volta do princípio dos anos 80. Segundo os documentos ao nosso dispor, verifi- camos que era pouco activa a vida literária de Macau antes da década de 801. No entanto, em Macau dos anos 80, a literatura passava a registar a pouco e pouco um surto de expansão, o que se reveste de uma certa casualidade. Tudo começou com a fundação da Universidade da Ásia Oriental. Trata-se da primeira universidade moderna na história desta pequena ilha. Quando da sua inauguração em Outubro de 1981, a Universidade contava com as cadeiras da língua e literatura chinesas, embora fossem poucos os candidatos. A Universidade da Ásia Oriental foi, de início, um estabelecimento privado, criado pelos comerciantes vindos de Hong Kong e do Sudeste Asiático. Na altura, apesar da Universidade contar com o apoio da Administração e das personalidades de relevo do Território, a sociedade de Macau adoptou, em termos gerais, uma atitude expectante e cautelosa para com esta universidade recém-criada, razão por que a Universidade foi, quer se queira quer não, uma novidade para Macau — uma cidade antiga e calma. Em Março de 1983, um grupo de estudantes da então Universidade criou uma organização estudantil — «Associação da Literatura Chinesa», que tinha como objectivo a divulgação da cultura chinesa. Tal associação chegou mesmo até a exercer, em meados dos anos 80, a sua forte influência no desenrolar da literatura macaense. Em Junho de 1983, o dr. Qin Mun, proeminente prosador chinês deslocou-se de Cantão a Macau, onde manteve encontros com o dr. Yun Wei-Li, professor catedrático adjunto da Faculdade de Letras da Uni-versidade da Ásia Oriental, o dr. Li Chengjun, redactor-chefe do «Diário de Macau» («Mação Daily News») e o dr. Li Pengzu, redactor-chefe adjunto do mesmo diário. Eles mostraram-se interessados em abrir na imprensa chinesa local uma coluna (ou uma página) de natureza pura-mente literária. Ainda em 30 de Junho de 1983, o «Diário de Macau» saiu a público com a primeira coluna literária de todos os tempos de Macau — «Mar de Macau», que foi também na altura o espaço principal da imprensa chinesa destinado à publicação de obras literárias. Inicialmente publicaram-se na referida coluna trabalhos de estudantes, nome- adamente dos membros da Associação da Literatura Chinesa da Univer- sidade da Ásia Oriental. Não obstante, antes da inauguração da coluna «Mar de Macau», liam-se também algumas colunas literárias e artísticas, de que se citam «Novo Campo» do «Diário de Macau», «Juventude

1 Ver: l, «Colecção de Teses Sobre a Literatura de Macau», Instituto Cultural de Macau e Editora do «Jornal de Macau», l .a edição em Março de 1988, págs. 9-44, 130-140, 146-154, 168-182. 2, «Achegas Históricas para o Estudo da Literatura de Macau» de Zheng Waiming, coluna «Mar de Macau» do «Jornal de Macau», 15 de Julho de 1992.

504 Chinesa» e «Tribuna Chinesa» do jornal «Va Kio» (Jornal dos Chineses do Ultramar), onde se publicam outrossim as obras literárias. Todavia, estas últimas não podem ser qualificadas como páginas puramente literárias. Daí, se poder dizer que o surgimento da coluna «Mar de Macau» do «Diário de Macau» simboliza por si própria a identificação de toda a sociedade de Macau para com o valor e importância de que se reveste a presença da literatura do Território, enquanto os naturais de Macau começaram a criar conscientemente a imagem da literatura própria do Território. Com a abertura da coluna «Mar de Macau», outros jornais de maior tiragem passaram também a destinar mais espaço às obras literárias. Veja-se por exemplo, o «Va Kio», o «Si Man Pou» (jornal «Cidadão»), o «Seng Pou» (jornal «Estrela») e o «Cheng Pou» (jornal «Justiça») que apareceram com as páginas literárias em que se publicaram novelas em série e textos dos colunistas. Por isso, há quem classifique a literatura de Macau nos anos 80 da «época da coluna Mar de Macau» do «Diário de Macau». O que merece a nossa especial atenção reside no facto de as partes chinesa e portuguesa ainda não iniciarem, entre 1983 e 1984, a sentar-se à mesa de negociações para resolver a questão de Macau. Tanto mais que não passam, de certa maneira de acontecimentos muito casuais, a fundação da Universidade da Ásia Oriental e a visita do dr. Qin Mu ao Território. Daí resulta a seguinte conclusão: o período transitório da literatura de Macau não tem vindo a par do período da transição do Território no campo político e económico. Aqui é de referir alguns acontecimentos importantes. Em 29 de Março de 1984, o «Diário de Macau» promoveu um simpósio com a presença dos escritores de Hong Kong e Macau. O dr. Han Mu, natural de Macau, bem conhecido no Sudeste Asiático e em Hong Kong com os seus novos poemas, efectuou no simpósio uma intervenção importante, apelando aos literatos macaenses para que criassem a imagem da literatura de Macau. Tal intervenção teve na altura um grande impacto 2 no meio artístico e literário do Território . Em Junho de 1984, a Associação da Literatura Chinesa da Univer- sidade da Ásia Oriental lançou uma publicação académica o «Boletim Académica da Língua Chinesa» donde se contam onze teses académicas incluindo os trabalhos dos professores Rao Zongyi e Luo Kanglie, dos doutores Yum Weili, Zheng Waiming, Huang Yuming, e Ye Guibao e da dr.a Ge Xiaoyin,que são todos professores dos cursos da língua e literatura chinesas da Faculdade das Letras da Universidade da Ásia Oriental. Tratam-se de trabalhos que dizem respeito ao estudo da escrita antiga, da caligrafia tradicional chinesa, e da literatura clássica e contemporânea. O lançamento desta colectânea de teses veio assinalar o progresso de Macau no domínio da cultura académica, significando

2 Ver: o texto «Estabelecimento da Imagem da Literatura de Macau», reunido na «Colecção de Teses Sobre a Literatura de Macau», págs. 191-197. 505 que Macau iria encarar, com toda a seriedade e por si própria, a evolução da sua cultura académica, sobretudo da literatura. Com um grande empenho da referida Associação, saiu ao público, em Janeiro de 1985, a primeira colecção das obras literárias «Colecções das Produções Literárias de Macau», compiladas em cinco volumes, pelo dr. Yun Weili (com o pseudónimo «Yun Li»). Das colecções acima mencionadas, fazem parte as colecções poéticas «Mar Lingding» de autoria de Han Mu, «Deserto Sem Fim» de Yun Li, a colecção poética colectiva «Folhas aos Pares», a antologia colectiva de prosas «Três Cordas Musicais» e a colectânea de contos «Nevoeiro no Coração» de Wai Ming, entre outros autores. A publicação destas colec-ções veio despertar a atenção nos meios culturais do Território, dado que antigamente não se encontrava em Macau qualquer instituição destinada a editar livros literários. Do lançamento das citadas colecções resultou mais uma surpresa ao círculo literário de Macau: uma organização estudantil de escassos recursos chegou mesmo a vir a lume, num lapso de tempo, com uma colectânea de teses académicas e cinco antologias literárias, o que prova que «querer é poder». A partir dos finais da década de 80, as publicações literárias de Macau passaram a ser cada vez mais vivas e florescentes. Durante os dias 3 a 6 de Janeiro de 1986, sob a iniciativa da Associação da Literatura Chinesa da Universidade da Ásia Oriental, teve lugar nas instalações do «Diário de Macau» um simpósio literário com a participação de 17 homens da cultura oriundos respectivamente do continente chinês, da Coreia do Sul, de Hong Kong e de Macau. No simpósio foram abordados uma série de temas, tais como a expansão da literatura chinesa em Macau, o relacionamento entre a literatura con- temporânea chinesa e as de Hong Kong e Macau, o recolhimento e investigação dos materiais da literatura regional, o passado, presente e futuro da ficção, prosa, poesia e teatro do Território. Os resultados desta iniciativa assumem grande valor de referência à literatura de Macau, designadamente ao desenvolvimento da literatura macaense registado antes de 19863. Logo após esse encontro, a Associação de Literatura Chinesa, o jornal «Va Kio», o Centro Pastoral da Juventude Católica de Macau e a Federação dos Estudantes de Macau lançaram pela primeira vez e em conjunto, o Prémio Júnior da Literatura. A Associação da Literatura Chinesa tinha promovido ainda no mesmo ano, encontros mensais sobre a nova poesia, presidida pelo dr. Hari Mun (mais tarde competiu à Sociedade da Língua Chinesa preparar esse encontro, cuja designação passou a ser «Encontro Mensal da Literatura»). Resumindo, podemos verificar que, no período compreendido entre o mês de Março de 1983 e o ano de 1986, a Associação da Literatura Chinesa junto da Universidade da Ásia Oriental de Macau desempenhou, de facto, um papel muito importante no desenvolvimento da literatura macaense da

3 Os textos pronunciados no simpósio, mais tarde compilados na «Colecção de Teses sobre a Literatura de Macau». 506 década de 80. É por causa disso que a actividade literária de meados dos anos 80 acabou por ser chamada fruto da «época da Associação da Literatura Chinesa da Universidade da Ásia Oriental». Foi criada, no primeiro dia de Janeiro de 1987, a Associação dos Escritores de Macau (Pen of Macau), o que constitui uma reacção dos meios da literatura e arte de Macau perante o aproximar do período de transição do Território. Tal Associação incluía quase todos os nomes da cultura de Macau (excepto poucos da nova geração). A fundação desta organização faz-nos lembrar as sociedades dos escritores ou associa- ções do círculo da literatura e arte a níveis regionais do continente chinês. Por outras palavras, essa equivalência representa uma unifica- ção dos amigos do círculo literário. O dr. Li Chengjun sublinhou, na l .a edição da «Colecção das Obras», revista da referida Associação, que «entendemos que a literatura e arte não são completamente sujeitas à política, porém, se a literatura e arte deixassem de lado a ética e a doutrina moral, poderiam correr risco de perder o seu valor e a sua função»4. Esta afirmação é, na minha opinião, extremamente importante para analisarmos a situação da literatura macaense, sobretudo a tendên- cia literária dos membros da Associação dos Escritores de Macau. Em Maio de 1989, fundou-se a Associação Poemas de Maio de Macau. Esta Associação, composta por cerca de trinta membros, conseguiu juntar sob a mesma bandeira quase todos os poetas que escrevem os versos, quer da velha ou média geração quer dos verdes anos, com excepção de um número muito reduzido de poetas com tendência para independentes. Por outro lado, foi formalmente criada em 29 de Junho de 1990, a Associação de Arte Poética de Macau, que se destina exclusivamente à composição dos poemas antigos, cuja formação teve o maior respeito do círculo literário de Macau à literatura tradicional. É bem curioso o que lemos na revista «Poesia Macaense», publicação periódica da citada Associação. Os trabalhos poéticos do dr. Tao Li, dr. Wai Ming e dr.a Yi Ling, poetas bem conhecidos anteriormente com as suas poesias moder-nas. Ao longo de 1987, as principais actividades do campo literário de Macau foram promovidas por membros da Associação dos Escritores e da Associação Poemas de Maio de Macau. Pode-se chamar, por isso, à actividade literária de Macau nos finais da década de 80 «o período da Associação dos Escritores e da Associação Poemas de Maio de Macau». Aos 31 de Março de 1992, foi fundada a Associação Técnica de Composição Literária de Macau, um grupo cultural puramente académico e espontaneamente organizado pelos eruditos macaenses que se ocupam do ensino e estudo da composição literária. Em comparação com outros grupos de carácter literário anteriormente surgidos, trata-se este grupo duma organização relativamente especializada. É de referir ainda que, em resposta à aproximação do período de

4 Ver: a primeira edição da revista «Colecção das Obras da Associação dos Escritores de Macau», 6/1989, pág. 5.

507 transição de Macau no campo político e económico, a Administração de Macau começou a dar às actividades culturais um maior e mais activo apoio. Exemplo disso: as organizações culturais e grupos literários passaram a ser financeiramente subsidiados pelos organismos respecti- vos da Administração, tal como o Instituto Cultural de Macau. Ao mesmo tempo, ao lançamento dos livros e periódicos editados por essas organizações e grupos, não falta também o patrocínio do mesmo Insti- tuto, o que cria condições para dotar a literatura macaense de «solos mais férteis para semear e lavrar». Além disso, entre os dias 24 a 28 de Junho de 1990, o dr. Wai Ming assistiu, na qualidade do representante dos escritores de Macau, à 4.a Conferência das Associações dos Escritores de Expressão Chinesa da Ásia que teve lugar em Banguecoque, Tailândia. E foi eleito, na mesma conferência, o membro executivo e redactor da «Revista dos Escritores de Expressão Chinesa da Ásia». No decorrer dos dias 23 a 27 de Novembro de 1992, o dr. Wai Ming e a dr.a Yi Ling, escritores macaen- ses, participaram, em Taiwan, na reunião da criação da Associação Mundial dos Escritores de Expressão Chinesa. Estas manifestações, embora com poucos escritores, mostraram que a literatura de Macau evolui gradualmente a nível internacional.

5. PUBLICAÇÕES LITERÁRIAS DE MACAU Nos princípios da década de 80, os escritores macaenses manifes- taram-se sempre preocupados com a insuficiência das páginas destina- das à publicação de obras literárias. A partir da entrada de Macau no período de transição, tal situação tem conhecido certas melhorias. Hoje em dia, além das colunas literárias dos jornais locais, dispomos ainda de quatro publicações literárias, a saber: «Colecção das Obras» da Associa- ção dos Escritores de Macau, «Revista Poemas Modernos de Macau» da Associação Poemas de Maio, «Poesia de Macau» da Associação de Arte Poética de Macau, e «Revista Literária de Macau» da Associação Técnicas de Composição Literária de Macau. Destas, a «Colecção das Obras» foi a que primeiro saiu ao público. Tal publicação, lançada em Junho de 1989, é abundante e representativa, onde se lêem reportagens, comentários literários, ficção, prosa, poesia antiga, poemas modernos, breves textos de natureza académica, caligrafia, gravação, pintura, fotografia e tradução da poesia chinesa. Em Novembro de 1990, a Associação Poemas de Maio lançava a «Revista Poemas Modernos de Macau», em que se publicam especificamente poemas modernos e comentários com estes relacionados. Em Junho de 1991, saiu a revista «Poesia de Macau» da Associação de Arte Poética de Macau donde se juntam os poemas tradicionais, «Ci» e «Qu» (dois tipos de versos antigos chineses para serem cantados), bem como comentários sobre a matéria. Em Agosto de 1992, saiu ao público a primeira edição da «Revista Literária de Macau» da Associação Técnicas da Composição Literária de Macau, revista esta que contém essencialmente trabalhos

508 especializados sobre a teoria literária e artística, técnicas e metodologias da composição literária e o ensino da criação literária. Ao longo dos anos 90, uns grupos literários desligados da comunidade literária lançaram as suas publicações, de que se citam «Casa de Composição» do Centro Pastoral da Juventude Católica, donde se podem apreciar as obras literárias dos membros do aludido Centro. Em 1992, o prof. T. Rendall, presidente do Instituto das Letras da Universidade de Macau, dr. Zheng Waiming, assistente na Universidade de Macau e o seu aluno Qian Haocheng lançaram em conjunto uma revista puramente literária em edição bilíngue «Faculty of Arts Review» que se destina a publicar os trabalhos dos mesmos na universidade. Neste contexto, estamos certos de que surgirão, no futuro, ainda mais publicações. Apesar de Macau dispor hoje em dia de mais páginas e espaço para a publicação de obras e comentários de natureza literária, é prematuro concluir que a situação é satisfatória, uma vez que as publicações acima citadas são todas dos correligionários da mesma linha. Não sendo as publicações de determinadas organizações ou grupos literários rejeita- das, é-lhes impossível contar com aceitação de todas as pessoas, porque cada publicação tem o seu próprio objectivo e critério. Por tudo isso, a literatura de Macau carece, na realidade, de mais publicações e mais espaço e de um mais fácil acesso.

Ⅴ OBRAS LITERÁRIAS DE MACAU NA DÉCADA DE 80

1. POESIA CONTEMPORÂNEA DE MACAU Hoje em dia não são poucos em Macau os homens das letras que escrevem a poesia e «Ci» (uma espécie de versos antigos chineses) pela forma antiga. A literatura tradicional vem ocupando, neste pequeno Território, um lugar de superioridade. Respeitando à continuidade da literatura, muitos homens da cultura escrevem simultaneamente em forma antiga e renovadora. Mesmo os escritores da nova geração, mais vanguardistas, nunca excluíram a poesia e «Ci» antigos, e de entre esses jovens poetas alguns chegaram mesmo a ser capazes de compor os versos antigos. Em Macau encontram-se muitos homens que escrevem os versos antigos, dos quais se destacam os seguintes nomes:

1.1. DR. FENG GAN-YI O dr. Feng Gangyi é mestre de quase todos os géneros da poesia chinesa, sobretudo de «Ge-Xing» (uma espécie dos poemas para cantar). Veja-se por exemplo, «Viagem ao Nascer do Sol»: «Aurora mostrando a beleza da sua cara, é tão maravilhosa essa cena do nascer do Sol visto na montanha, 509 até que as mil paisagens das quatro montanhas famosas perdem os seus encantos. Vim de Macau por aqui tentando trepar ao pico «Bonzo» aquando do amanhecer. Quem consegue chegar lá ao cume da montanha, um panorama magnífico está à sua espera. … …»

São versos rigorosos, elegantes e raros.

1.2. DR. CHENG XIANGHUI O dr. Cheng Xianghui é autor de imensos versos enérgicos e heróicos, de que o poema «Comemoração do Aniversário da Fundação da Associação de Arte Poética de Macau» é exemplo: «Bebido o licor de qingke,vim subir ao edifício sem me interessar quantos pisos.

No mar meridional se encontram escondido muitos homens talentosos, heróicos e cheios de planos.

São dignos de referir dr. Ma Mankei, drs. Leung PaiKan (Sur U) e Huang Kunyao, autores de vastíssimas obras poéticas de Macau. Pela extensão do presente trabalho, é impossível enumerar aqui os seus excelentes trabalhos.

2. POESIA CONTEMPORÂNEA DE MACAU Recentemente, um especialista na literatura de Macau apresentou em jornais e revistas uma conclusão resultante do seu estudo, segundo a qual só as prosas do Território é que podem representar os sucessos obtidos no campo literário de Macau. Não posso, porém, partilhar dessa observação. Sou da opinião que, tanto do ponto de vista qualitativo como ao nível quantitativo, os êxitos obtidos na composição da poesia moderna de Macau ultrapassam muito para além os sucessos registados no panorama da prosa. Em primeiro lugar, faço uma comparação em termos quantitativos. Segundo a minha estatística, foram lançadas até hoje pelo menos vinte e três colectâneas de poemas, das quais se enumeram: «Girassol», «Rosa», «Enredadeira», «Céu Salpicado de Estrelas» e «Faísca» da autoria de Hua Ling; «Mar Ling Ding» de Han Mu; «Folha aos Pares» de Wai Ming; «Deserto Sem Fim» e «Som de Ondas» de Yun Lin; «Mensagem do Vento Violáceo» e «O Andar Devagar e Bamboleante» de Tao Li; «Areia Preta e Espera» e «Reflexão sem Sangue fora da Porta Sangrenta» de Wai Ming. As obras poéticas a ser publicadas: «Ingenuidade» e «Legenda» de Wai Ming; «Ilha Fluente»

510 de Yi Ling; «O Sonho Regressa ao Mundo de Paixão» de Gou Go; «O Meu Crepúsculo» de Sa Kongliao; «Sensação Perante Crepúsculo» de Jiang Siyang; «Estação de Folhas Caídas» de Liu Xingzi; «A Tarde» de Ling Dun; «Versos de Wang He» de Wang He; assim como outras colecções individuais e antologias colectivas5. É de mencionar três colecções dos poemas escolhidos de Macau: «Fascinação», «Passagei- ros Poéticos de Maio» e «Poemas Escolhidos da Nova Geração de Macau», redigidas pelo dr. Wong Iofong, Associação Poemas de Maio e o dr. Wong Wenhui, respectivamente. As produções poéticas em causa são muito mais numerosas do que as prosas. Quanto aos poetas locais, existem em Macau quatro gerações. Da geração mais velha destaca-se dr. Hua Ling, poeta bem falado em Xangai ainda no tempo da guerra anti-japonesa; do grupo de idade viril evidenciam-se dr. Han Mu que passou a residir há anos no Canadá, os drs. Tao Li, Sa Kongliao, Gou Go e Yun Li. No que diz respeito à geração jovem, merecem ser referidos os nomes de Wai Ming, Yi Ling, Liu Xingzi e Ling Dun. De entre poetas ainda mais jovens distinguem-se Wang He, Lin Yufeng, Wong Weihui, Fong Kingseng e Xie Xiaobing. Em suma, contam-se em Macau actual-mente cerca de três ou quatro dezenas de poetas, dos quais mais ou menos metade continua a ser activa e rica em composições poéticas. A situação do campo da prosa está longe de ter comparação com esses sucessos nos meios poéticos. Em meu entender, ao avaliar o sucesso de determinado género literário duma região, seria aconselhável conhecer a atitude dos homólogos do campo da literatura de outras regiões. Para tal efeito, podemos colocar aqui a referência de alguns casos:

a)Em 1988 o dr. Wai Ming ganhou em Hong Kong «o prémio de mérito do grupo da poesia da composição literária chinesa de Hong Kong»; b)Em Setembro de 1988, foi publicada, no número 18 da revista «Escritores Chineses da Ásia» de Taiwan, a compilação dos novos poemas de Macau, em que se juntaram os trabalhos dos vinte e cinco poetas macaenses; c)Em Janeiro de 1989, publicaram-se obras poéticas da Associa ção Poemas de Maio de Macau na revista «Literatura da Região Econó mica Especial» de Shenzhen; d)Em 1989, o número 6 da revista «Obras» de Cantão apresentou aos seus leitores uma série de obras poéticas dos membros da Associa ção Poemas de Maio de Macau;

5 Os drs. Han Mu, Chen Dejin, Zhou Waimin, Zhang Cuo e Ye Weilian são todos naturais de Macau, mas geralmente só ficaram conhecidos em Hong Kong, Taiwan ou no ultramar depois de terem deixado de Macau na adolescência, em cujas obras podemos ler alguns trabalhos correspondentes à definição da literatura macaense, o que será objecto do estudo no futuro. 511 e) Em Dezembro de 1989, podem ler-se no número 32 da revista «Poesia de Maio» de Shao Guan, província de Guangdung, as obras vindas da Associação Poemas de Maio de Macau; f) Em 1989, Yi Ling tornou-se em Taiwan o poeta com mais obras (quatro poemas) escolhidos na antologia dos poemas do ano daquela ilha; g) Em Fevereiro de 1990, na revista «Quatro Mares — Literatura Chinesa do Ultramar, de Hong Kong e Taiwan» editada em Pequim, saiu a antologia de obras da Associação Poemas de Maio de Macau; h) Em Fevereiro de 1990, apareceram na revista bimensal «Poe-sia» de Hong Kong, a antologia de poemas macaenses em que reúnem os trabalhos de dezassete poetas locais; i) Em Março de 1990, foram imprimidos, na revista nacional chinesa «Poesia», as obras da Associação Ioeinas de Maio de Macau; j) Em 1990, o dr. Chen Dasheng, jovem poeta local, foi premiado em Taiwan com o título «Tradução Poética de Liang Shiqiu»; k) Em 1991, o dr. Chen Dasheng voltou a ser classificado como o melhor poeta jovem de Taiwan; l) Em Janeiro de 1991, o dr. Wai Ming ganhou o título especial de mérito do «Concurso Nacional dos Novos Poemas da China»;

Em resumo pode-se concluir que a poesia moderna de Macau é plenamente reconhecida e valorizada pelos círculos da literatura de expressão chinesa de outras importantes regiões. A partir do ano de 1988, é precisamente a poesia moderna macaense quem tem vindo a representar a imagem da literatura local e desempenhar um papel de maior relevo no intercâmbio essencial entre a literatura local e as de outras regiões. Não há dúvida que, entre a literatura de Macau, a poesia moderna se manifesta hoje em dia a mais viva e activa.

Do estilo da poesia moderna macaense, tentaremos analisá-lo em termos de conteúdo ideológico (temas) e de forma (técnica artística). Em relação aos temas, verificamos a faceta muito terna e suave dos poetas macaenses. Como por exemplo, o poema «Lua e Mar» de autoria de Gou Go:

«De longe, tão longe, estás olhando para mim, venho agitar todas as ondas, aquelas ondas pretas e queimadas, pronto eu a enfrentar as suas agitações.

Subsiste ao espaço frio, donde me visando, junto da janela sem Sol, ainda de longe, tão longe. 512 Já se tornaram as minhas ondas nas águas tristemente brancas, acabaste por meter no mau fundo, 6 onde se queima a sua imagem tão limpa» . Com os versos acima citados, o poeta descreve a sua experiência vivida e o sentimento contido nas diversas fases do enamorar, produzin- do os efeitos líricos. E o dr. Sa Kongliao, poeta que sabe descrever muito bem o sentir melancólico e amargura irremediável oriunda da vida, criou 7 no seu poema «O Meu Crepúsculo» muitos versos lindíssimos . E o dr. Tao Li, autor de vastos poemas de paisagem repassada de sentimento humano, faz em «Para Além da Nuvem da Montanha de Pinheiros», os seguintes versos:

«Na montanha há sítios sossegados, onde os homens cansados da vida secular passeando para além da nuvem. … …

Como se fossem budistas desaparecendo tranquilamento da realidade. Solenes e tristes que não são porque se preocupam tanto com os pinheiros do pleno Outono? 8 … …»

O poeta escreve ainda na «História dos Cabelos Vermelhos»:

«Seguindo eu a ruela de pedra dessa pequena cidade, estou hesitando por aqui ou ali com tanta embriagues, murmurando, murmurando, e dizendo … …

Naquela altura, tu e eu Fomos dos verdes anos, com o coração vermelho e cabelos pretos … …

6 Ver: «O Sonho Regressa ao Mundo da Paixão» de Gou Go, Associação a Poemas de Maio de Macau, 1. edição, 8/1992, pág. 105. 7 Ver: «O Meu Crepúsculo» de Sao Kong-Liao, Associação Poemas de Maio de Macau, págs. 80-81. 8 Ver: «Mensagem de Vento Violáceo» de Tao Li, Centro Cultural das a Publicações e Livros «South China» de Hong Kong, l . edição, 5/1987, págs. 5-6. 513 O peso do tempo cai na balança de saudade, … …

Com o Sol poente lá ao fundo da floresta, de noite em noite, a música da floresta cantando, cantando 9 a história dos cabelos vermelhos» . Aí, o autor escreve de forma cem por cento lírica a sua saudade dos amigos de longa data. E outro poeta Yun Li, talentoso perito na criação dos versos ligados à montanha e às águas sentidas e imaginadas na sua intimidade, descreve assim no poema «Paisagem Natural e Humana»:

«Escondendo-se no espelho antigo a beleza melancólica, o Sol do amanhecer está a tocar o toucador. Tão preguiçosa a luz do Sol que não me acariciava, não há pó nos olhos do sábio. … …

Recordando de súbito a cena de ontem, atravessámos juntos de barco pelo rio. O nosso barco flutuava à discrição de corrente torrencial, passando por praias e rochas perigosas. … … … …

Tudo isso não passa de flores surgidas no sonho, nem o espelho antigo consegue ficar com a sua imagem. Convida, por isso, os pintores 10 a arquivar essa variadíssima paisagem» .

O poeta continua a expressar em «Aparência» o que ele sentia:

«Não há diferença no meu coração lua cheia de cada ano, que não passa de um espelho claro. No espelho se escondem numerosas aparências,

9 Ver: Livro acima citado, págs. 16-17. 10 Ver: a colecção «Som de Ondas» de Yun Waili, editora «Fa-Zhu» de Hong a Kong, l. edição 12/1991, págs. 82-84.

514 as passadas são cada vez mais indistintas, 11 as futuras, mais imprevisíveis» . Tal como as flores surgidas no espelho e a lua vista nas águas (que é paisagem preferida na pintura chinesa), o poeta exprime, na realidade, o sabor clássico profundamente sentido na intimidade. Através desses versos e materiais volumosos, não podemos deixar de reconhecer que a poesia lírica e romântica representa a corrente-piloto da poesia moderna macaense. No entanto, alguns poetas locais criaram também obras poéticas de inspiração fortemente histórica. De que se destacam: «Ver- sos sobre Macau»12 e «Passeio pelo Tempo Antigo»13 de Han Mu; de Tao Li «Kai Feng»14, «Ao Anoitecer Viajava pela Planície Central», «Ponte do Rio Ba», «Imagem da Mãe» e «Montanha Li-Shan». E as obras do jovem poeta Wai Ming15 estão sempre bem ligadas à história e à realidade («Wai Ming» é o pseudónimo do autor do presente trabalho. Para evitar vangloriar-se, o autor deixa de referir aqui as suas próprias produções poéticas, pelo que os leitores que estejam interessados na sua leitura podem ler os documentos de referência)16. Em todo o caso, reconheço que há raras obras poéticas que tratam da sensível realidade política e social do Território, graças aos factores sociais objectivos. Mas Yi Ling surgiu como uma excepção, de que «Ilha Fluente» da sua autoria é um exemplo bem argumentado. Yi Ling exprime, no seu poema intitulado em «País-Melancia» reunido na antologia «Ilha Fluente», o amor pela paz e a condenação ao armamento nuclear: «O nosso País, como uma melancia, verde na aparência, vermelho na polpa,

11 Idem, págs. 85-87. 12 Ver: «Comporta das Correntes Torrenciais» de Han Mu, Instituto do Livro «Wan Li» de Singapura, 9/1979, págs. 40-46. 13 Ver: «Cabo de Demarcação de Águas» de Han Mu, Centro Cultural das Publicações e Livros «South China» de Hong Kong, l .a edição 10/1982, págs. 22- 28. 14 A cidade mais antiga da província de Henan, China (nota do tradutor). 15 «O Andar Devagar e Bambaleante» de Tao Li, 5.° volume, Associação Poemas de Maio de Macau. 16 Documentos dignados de ver: 1. «Avaliar a Nova Corrente de Poesia Macaense através das Produções de Wai Ming» de Pan Yadun, o número 5 da revista «Mundo Literário», editora «Hui Xin» de Hong Kong, 8 de Abril de 1989, págs. 277-287. 2. «Sobre “Areia Preta e Espera” de Wai Ming» de Xia Ling, ver o número 35 da «Revista dos Escritores Asiáticos da Expressão Chinesa», 12/1992, págs. 109-111.3. «Estou Procurando um Poeta Macaense» de Wu Meijun, ver o número 4 da revista bimestral «Poesia» de Hong Kong, l de Fevereiro de 1990, págs. 20-26. 4. «Sobre o Prefácio da Colecção de Poemas “Ingenuidade” de Wai Ming» de Ji Hun, coluna «Situação da Literatura e Arte» do Diário da Singapura, 5 de Julho de 1992.

515 um mundo cheio de núcleos pretos» 17 Numa linguagem simples e simbólica, «um mundo cheio de núcle- os pretos» implica muita coisa. Para além disso, podem-se ler nesta antologia alguns versos, tais como «Terceira Qualidade», «Perdemos Todas as Faces», «Episódio Contínuo dum Anúncio da TV», «Anúncio Político»18, «Liberdade da Mulher Astronauta», «Aspiração das Mulheres Solteiras»19. Com esses versos, o poeta toca com ousadia os temas sensíveis, o que representa uma nova experiência e revelação. E por isso que nos é possível ver, na antologia «Ilha Fluente», crítica política, descrição sobre a realidade social e inquéritos quanto à essência do sexo e amor. Tudo isso serve, de facto, os elementos da poesia moderna. É de mencionar ainda que, com a entrada de Macau no período de transição, iam aparecendo sob a pena dos jovens poetas macaenses os poemas de matriz pós-colonialista. De entre os poemas deste género, além de «Trânsito de Macau» de Wai Ming20, vale a pena citar aqui os versos de «Filmagem sobre a Paisagem das Zonas Residenciais» de Yi Ling:

«À noite alta, parando os olhos na rua onde há jovens com roupa e sapatos desportivos. Correndo, telefonando, falando e passeando o cão, uma trela faz ligação entre o homem e o cão, é uma trela extensiva ou apertada ou até cortada. Cão vai na frente, ele atrás, ele está a atravessar a rua à força do cão. De súbito, pára aí, pega no telemóvel, com ele na mão, começa a despejar as palavras, como se o cão defecasse na rua, com sorriso típico no escritório, dono de cão preste a abraçar um macaense. Olhando para o Céu, 21 à noite está a expelir despejos do dia» .

Como todos os amigos conhecedores de Macau sabem, vêem-se

17 Ver: «Ilha Fluente» de Yi Ling, casa de poesia de Hong Kong, l .a edição, 3/1990, pág. 4. 18 Idem, págs. 8,9, 12, 20, 21, 25. 19 Idem, págs. 107-108. 20 Ver: o número 10 da revista bimestral «Poesia» de Hong Kong, l de Fevereiro de 1991, págs. 24-25. 21 Ver: nota n.° 16, págs. 24-25.

516 diariamente nas ruas desta pequena cidade situações imorais e incivis, a saber: excremento deixado um pouco por toda a parte pelos cães, palavras indecentes proferidas por homens de boa parecença. E outro poeta jovem de nome Wang He também teceu críticas à realidade no seu poema «Cidade Lendária»22. Se alguém me pergunta qual a diferença mais visível que os jovens poetas surgidos neste período de transição fazem dos seus antepassados, julgo que a mesma reside na escolha dos temas. Os jovens poetas locais ousaram fazer sentir ao público numa linguagem acusadora e irónica e o seu desagrado face à realidade. E referindo-se aos poetas antigos explica-se tudo com a seguinte frase de Tao Li: «Eu não gosto de “escrever de maneira directa a realidade”, porque enfrentamos muitos tabus neste mundo. Em frente o fogo está à nossa espera, desisto de avançar, uma vez que não sou mariposa pronta para lutar contra o fogo. Por isso, só me cabe escrever umas frases algo sonhadoras»23. Pois temos que respeitar essas palavras do coração resultantes de tantos sofrimentos e vicissitudes da vida. No panorama da poesia macaense nunca apareceu até ao momento a discussão acesa em torno da teoria das diferentes correntes. Na verdade, existem em Macau raros poetas que queiram e se atrevam a dar a conhecer os seus conceitos sobre a poesia. Ao que me consta, só Yi Ling apresentou de forma clara no seu texto «Sondagem sobre a Tendência das Produções Poéticas de Macau na Década de 90»24, a formulação de «abandono à fenda estreita modernista e pós-modernis-ta». Em meu entender, pela extensão do presente trabalho, é impossível plasmar-me em poucas palavras as linhas artísticas seguidas por todos os poetas do Território. Mas, na perspectiva das técnicas expressivas, os poetas de Macau dividem-se, de grosso modo, em três escolas: 1. Escola da «Nova poesia»; 2. Escola modernista; 3. Escola pós-modernsita. A chamada escola da «Nova poesia» indica os poetas macaenses que continuam a seguir, a nível de técnica criadora, a tradição da nova poesia do «Movimento de 4 de Maio». Desta escola evidenciam-se Feng Gang-Yi (a quem pertencem, entre outros, os pseudónimos: «Yun Duhe» e «Bo Haiya»), Yun Li, Hu Xiaofeng, Wang Haohan e Jiang Siyang. Vejam-se, por exemplo, os versos do poema «Cidade Pequena» de Wang Haohan: «A luz do Sol embeleza

22 Ver: «Versos de Wang He» de Wang He, Associação da Cultura Chinesa, a 1. edição, 11/1992, pág. 3. 23 Ver o número 5 da «Revista da Poesia Contemporânea de Macau», 127 /1992, pág. 94 24 Ver: coluna «Mar de Macau» do «Jornal de Macau», 18-19 de Dezembro de 1991. 517 essa pequena cidade cheia de Outono, as calçadas e travessas compartilham a sombra do Sol, as lianas verdes cobrindo as janelas, com a sua cobertura permanente, as asas da porta tornam-se ferrugentas, lá dentro há um mundo sossegado.

O farol está já habituado a resistir ao tanto vento e chuva, viageiros já se despediram dos dias de Outono, as caras conhecidas perdem-se a pouco e pouco da nossa vista, enchendo as ruas de olhos desconhecidos.

Guardando a saudade por baixo da árvore «fénix», espera com calma pelos dias vermelhos de Maio. A Lua do Outono acariciava as ruas ziguezagueantes, aguardando a sua passagem 25 levíssima» . Esta escola caracteriza-se pela expressão implícita, subentendida e melódica, de que os poemas «Olhar para a Lua» de Yun Duhe26 e «Estou à 27 sua Espera» de Hu Xiaofeng são os melhores exemplos disso. No que se refere ao modernismo, tal escola tem uma equipa mais forte que as outras duas, sendo de salientar Gou Go, Liu Xing Zi, Sa Kongliao e Shu Wang, poetas fortemente influenciados pela poesia nebulosa do interior da China. Contam-se nela também Han Mu, Tao Li, Wu Guochang, Yu Wen e Chen Dasheng, nomes de tendência poética modernista da expressão chinesa de Hong Kong e do ultramar. Por exemplo, no poema «Peixe» de Yu Wen, o autor consegue, numa linguagem original, personificar o peixe, exprimindo as ideias, o que representa uma das técnicas expressivas da escola em causa. Por último, entendo que a chamada «Escola pós-modernista» não é mais que a reflexão rigorosa e uma forte evocação de renovação dos escritores quanto às linhas predominantes da literatura actual (ou seja, uma reavaliação de fundo sobre a racionalidade e valor de todas as coisas do tempo e espaço onde nos inserimos). À reflexão e à evocação devem-se os seguintes resultados: 1. Ampliação ilimitada dos temas e a tendência para romper tabus;

25 Ver: o primeiro número da «Revista Contemporânea de Macau», 12/1990, pág. 113. 26 Ver: «Fascinação» redigida por Wong Iofong, editora «Cidade de Flores» a de Cantão, 1. edição, 12/1988, págs. 111-112. 27 Ver: o número 4 da revista bimestral «Poesia» de Hong Kong, l de Fevereiro de 1990, pág. 17. 518 2. Prova ilimitada dos meios e formas para expressar os temas. Em Macau, os poetas mais alinhados à referida escola são Wai Ming28, Yi Ling e Ling Dun. Uma parte das obras de Ti Ya e Wang He pertencem à mencionada corrente, designadamente os poemas 29 30 «Documentário» de Ti Ya , «Da Democracia» de Wang He . Em conclusão, ao longo dos anos 80, sobretudo da entrada de Macau no período de transição, a poesia moderna do Território tem vindo a desempenhar um papel de grande responsabilidade na formação da figura da literatura macaense. O que nos agrada muito e estimula é que o campo da poesia de Macau até hoje se mantém ainda vigoroso, nomeadamente com o surgir dum grupo de novas caras, tais como Lin Yufeng, Wang He, Huang Weihui, Fong King Seng, Xie Xiaobing e Deng Junjie. Espero sinceramente que esses jovens poetas possam 31 tornar-se a curto prazo numa nova geração da poesia de Macau .

3. PROSA DE MACAU Com a entrada de Macau nos anos 80, o campo das letras do Território tem vindo a enriquecer-se, surgindo uns prosadores e ensaístas, que até à data já escreveram dez obras em prosa32, entre os quais se destacam a colectânea colectiva «Três Cordas Musicais» de Ye Guibao, Wai Ming e Li Qihua, «Continuação Sossegada» de Tao Li, «O Passado e Presente de Macau» de Li Pengzhu, «Breves Textos sobre Macau» de Xiu Ming, «Boa Vista do Mar» de Lu Mao, «Mundo de Paixão» de Ling Ling, antologia colectiva «Sete Estrelas» de Lin Hui, Shen Shangqing, Lin Zhougying, Din-Lu, Meng-Zi, Yu Wen, Yi Ling e Sha Meng, «Viagem pelo Sul da Europa — Educação de » de Liu Xianbing,

28 Não é minha intenção classificar as diferentes escolas. A razão por que eu escrevo assim é somente para facilitar a composição do presente trabalho. Cumpre - -me frisar que não tenho nenhuma preferência face aos diversos géneros literários, pois «saboreava» eu até grande diversidade de formas literárias. 29 Ver: o número 18 da «Revista dos Escritores Asiáticos da Expressão Chinesa», 9/1988, pág. 30. 30 Ver: o livro citado na nota n.° 21, pág. 19. 31 «Poemas Escolhidos da Nova Geração de Macau» compilados pelo dr. Wong Iofong e Wong Wenhui, Associação Poemas de Maio de Macau, l.a edição, 6/1991. 32 Como se encarariam as obras que sejam correspondentes à definição da literatura macaense, e compostas por prosadores (tal como Sr.a Xie Yuning) nascidos em Macau, vividos e afamados mais tarde em Hong Kong? Além disso, muitos antepassados do interior da China (ex: dr. Qin Mu e dr. Chen Canyun) tinham escrito também prosas respeitantes a Macau. Tudo isto merece ainda ser estudado. 519 «Crónicas de Portugal» de Wu Zhiliang e «Rebentinhos de Soja» de quatro meninos Shen Yutong, Ling Yun, Pequeno «Q» e Han Zhen. «Três Cordas Musicais» de Ye Guibao, Wai Ming e Li Qihua trata-se da primeira colecção de prosas editada em Macau de que o texto «Não Quero Saber» de Wai Ming descreve, com originalidade e de âmbito local o «Casino de Macau», texto esse que foi mais tarde reunido no «Manual de Ensino Superior» editado na província de Guangdong. Cada um dos três jovens autores acima citados possui estilo próprio. Os textos de Ye Guibao são fluidos, condensados, repassados de sentimento e compostos por linguagem mais viva e leve. Li Qihui confere à sua obra mais sabor clássico e histórico, bem como sinceridade e ingenuidade dos seus tempos de infância. Na colecção «Continuação Sossegada» de Tao Li juntam-se 94 textos, em que o autor fala do seu sentir e reflexão sobre a vida de Hong Kong, além de recordar as suas diversas experiências vividas no Sudeste Asiático. O dr. Tao Li, autor de imensa variedade de técnicas expressi-vas, compôs estes textos num estilo lírico, subtil, engenhoso, satírico e repassado de filosofia da vida, cuja linguagem varia de texto para texto, simples ou elegante ou até floreado. Numa palavra, o escritor costuma recorrer não só à descrição minuciosa sobre paisagem e coisas, como também à técnica modernista e à linguagem muito poética para expressar o sentimento de fundo e concepção de alta cultura. Aconselho, por isso, os leitores a lerem neste livro os seguintes textos: «Seguir o Vestígio», «Tela», «Fragmento», «Noite de Verão», «Extensão», «Murmúrio Nocturno do Prisioneiro», «Galo com Pico de Ferro», «Filho da Ladra», «O Cavalo Branco não é Cavalo», «Jardim de Éden», «História de Secretária», «Pombo Dourado», «Cultura dos Tempos» e «Porco-Espinho e Peixe». Em Dezembro de 1989, a Editora «Luz de Estrela» de Macau lançou ao público «Boa Vista do Mar» de Lu Mao, em que foram compilados cem prosas e ensaios. Os textos ali reunidos contam-nos dos diversos fenómenos da sociedade de Hong Kong e Macau, bem como o trivial da vida quotidiana. Em Novembro de 1990, a mesma editora publicou «Breves Textos sobre Macau» de Xiu Ming, onde se juntaram cento e vinte textos datados antes de 1990. Nesta colectânea, o autor tem como tema o dia a dia, a natureza e singularidade de Macau, em cuja leitura transparece a forte sensibilidade lírica, natural, intelectual e filosófica. Em Fevereiro de 1991, oito prosadoras locais apresentaram a sua primeira manifestação feminina: a antologia «Sete Estrelas». Entre os textos nela compilados, «Barco a Vela em frente da Janela» e «Ilusão Vinda da Garrafa Flutuante» de Lin Hui-Feng são cheios de inspiração natural e lírica, assim como de sentimento; «Flores Vão por Água Abaixo», «Mercado Livre» de Shen Shangqing traçam a realidade sob o olhar duma mulher urbana. Lin Zhouying, escritora de gosto diversi- ficado, em cujas obras lemos descrição realista, a cena romântica da terra natal, sentimento de cor histórica, de que se distinguem «Conto

520 Infantil ao Sopé da Colina da Guia» e «Alma da Erva». Ainda dignos de menção são as prosas de cunho feminino reunidas no mesmo livro: «Aldeia de Rumores», «Ursa Maior», «Votos pela Coexistência Pacífi- ca», «Paisagem da Província ShanXi», «História do Homem Elegante de Xangai» e «História da Família de AQ» de Din Lu, «Nevoeiro», «Fora da Janela do Norte» e «Sem Coragem» de Yu Wen, «Fenomenologia sobre a Venda do Edifício» e «Reflexão» de Yi Ling, «Cavalo de Madeira», «Maluco» e «A Mulher Morreu» de Sha Meng. Em Agosto de 1991, ainda a mesma editora coloca no mercado a colecção de prosas «Mundo de Paixão» de Ling Ling (pseudónimo de Lin Hui), livro esse que a distinguiu com a descrição emocionante sobre as personagens, exemplificando: «Maria», «Rocha de Boa Sorte» e «Homenzinho sob o Vento e Chuva». Nas «Crónicas de Portugal» de Wu Zhi-Liang e na «Viagem pelo Sul da Europa — Educação de Portugal» de Liu Xianbing, os dois autores contaram, numa linguagem muito leve e intelectual, as suas experiências vividas em Portugal. É de referir os nomes de Fang Fei, Mei Ehua, Hu Xiaofeng, Chen Haoxing, Yun Duhe, Si Fang, Yun Li, prosadores e ensaístas de sucesso. É pena que muitos trabalhos deles ainda não tenham sido reunidos, até agora, em livros. Em termos gerais, espero que a prosa de Macau possa desenvolver- -se ainda mais na perspectiva do domínio e exploração de técnicas artísticas.

4. FICÇÃO DE MACAU No tocante à ficção macaense, segundo o meu conhecimento, foram publicados até hoje seis obras: «Primavera Plena» de Chang Zheng, «Árvore de Amor» e «Nuvem e Lua» de Lin Zhouying, «Amor Errado» de Zhou Tong, «Antologia de Contos de Macau» compilada por Yi Gang e «Nevoeiro no Coração», uma colecção de mini-contos da Wai Ming e de outros contistas locais. O romance «Primavera Plena», obra de estreia do Chang Zheng (pseudónimo do Zhang Zhen, actual actor da ATV de Hong Kong) foi editado, em Setembro de 1976, pela Editora «Chao Yang» de Hong Kong. Fui eu próprio quem «redescobriu» por acaso, há poucos anos, em Hong Kong, este livro e ao qual o círculo literário de Macau não lhe atribuiu, ao longo dos anos, a devida atenção. O romance, que trata da vida triste e dura dos operários macaenses do sector dos panchões e fogo de artifício, reveste-se, a meu ver, da maior importância pelas seguintes razões: 1. Neste romance são conservados muitos documentos de referên cia respeitantes à sociedade de Macau nos anos cinquenta e sessenta, o que contribui para estudar a história de Macau. 2. É este o primeiro romance composto e editado em Macau na linguagem actualizada, tendo Macau como tema principal.

521 Livro este que não deixa de ocupar, por isso, um lugar digno na história da literatura de Macau. Na colecção de contos infantis «Árvore de Amor» de Lin Zhouying, reflecte-se o amor da autora para com as crianças. Na sua outra colectânea de contos «Nuvem e Lua», a autora descreve, do ângulo feminino, com uma técnica de «reflectir a realida- de» e numa linguagem breve e acessível, a vida quotidiana da gente comum da cidade, designadamente o namoro, o casamento, a família e o relacionamento complexo e irremediável entre as pessoas, de que se citam «Pesadelo de Amor», «Casal Jovem», «3.° Aniversário do Casa- mento», «Após Levantamento Antecipado no Banco», «Desemprega- do» e «O Velho Wang Aposentado». O romance «Amor Errado» de Zhou Tong fala do relacionamento complicado e típico no namoro entre os homens e mulheres das cidades modernas, sobretudo o conflito entre o amor do casal e o amor extraconjugal, traçando ainda a visão dos valores em transformação. A «Antologia de Contos de Macau» e «Nevoeiro no Coração» são colecções dos contos e mini-contos dos autores macaenses. Na primeira, os seus jovens autores (ex: Huang Shuyuan, Lu Meichang e Chen Yurun) desvendam, através de técnica realista, os problemas que Macau enfrenta realmente e na segunda os escritores dão importância à explo- ração de novos temas e novas técnicas artísticas. Além disso, o conto «História dos Homens Prostitutos»33, em que nos apresenta a reflexão crítica e bem ponderada acerca dos aconteci-mentos da Praça Tiannanmen e do movimento pró-democracia ocorrido em 1989 em Hong Kong, levantou acesa polémica em Hong 34 Kong . De modo geral, o campo da ficção em Macau deixa ainda muito a desejar. É necessário formar mais ficcionistas e explorar novos temas e técnicas. Ⅵ

CONCLUSÃO Actualmente Macau é bastante fraca na área de crítica literária moderna. Salvo raros comentários breves publicados em jornais e revistas, destaca-se em Macau o dr. Wong Iofong, único crítico local que lançou a sua própria colecção de comentários. Contudo, é pena que o dr. Wong Iofong se limitasse a escrever os comentários respeitantes à poesia. Daí, considero que os letrados locais têm que reforçar a crítica

33 O texto foi publicado na «Pequena Cidade Sem História — Nova Geração da Ficção de Hong Kong», colecção «Chuang Jian» de Hong Kong, 10/1990, págs. 108-130. 34 Os principais documentos da referência: l. «Ficará a Pequena Cidade Sem História?» de Guo Enci, «Hong Kong Economic Journal», 16 de Junho de 1991. 2. «Sobre “Ficará a Pequena Cidade Sem História?” de Guo Enci» de Du Liang, o número 10 da revista «Comunicações na Moda» de Hong Kong, edição chinesa, 8/ 1991, pág. 110. 522 e o estudo relativamente à literatura macaense contemporânea, sobretu- do à surgida após 1987. Desde a aplicação da política da reforma e abertura ao exterior, muitos eruditos do continente chinês passaram a ficar bem interessados em conhecer a literatura escrita em expressão chinesa de Taiwan, Hong Kong e dos chineses do ultramar, publicando uma grande quantidade de teses e livros sobre a matéria. Porém, eles ligavam muito pouco à literatura de Macau. Em certos casos, alguns críticos do continente escreviam com entusiasmo comentários deste género, que são, todavia, facciosos e injustos, por lhes faltarem conhe- cimentos suficientes e actualizados. Aliás, tomo a liberdade de colocar aqui uma visão para orientar a crítica sobre a literatura de toda a nação chinesa: com o passar do tempo, a literatura chinesa no seu sentido lato, é natural que abranga nela as obras de Hong Kong e de Macau. Aquando do estudo da literatura da expressão chinesa, torna-se necessário ligar a mesma atenção às obras compostas em língua chinesa de Hong Kong e Macau, bem como de outras regiões do mundo. Quem concluirá de forma indiscreta que as obras de Macau estariam longe de atingir os níveis dos trabalhos do continente ou de Taiwan? Se agora o é, que situação terá no futuro?

523 524 administração e ensino

525 526 Administração, n.° 29, vol. VIII, 1995-3.°, 527-542

CARREIRAS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DE MACAU

E ENSINO SUPERIOR*

José Hermínio Paulo Rato Rainha **

1.Administração Pública 2.Ensino Superior e Carreiras da Administração Pública de Macau 3.Redefinição de Carreiras da Administração Pública de Macau 4.Cursos Superiores 5.Conclusões e Sugestões

1. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A actividade da administração pública, como muitos comportamentos humanos, é difícil de definir, dada a complexidade e interligação de conceitos de gestão, de política e de procedimentos legais, embora todos tenhamos uma noção do que é e possamos estar em desacordo profundo sobre o que devia ser1. Embora conhecendo o que a administração pública faz não resolva o problema de definir o que a administração pública é, podemos considerar numa definição sintética, que «a Administração Pública, no conjunto dos seus serviços, é o aparelho governamental, de natureza técnica, administrativa e operacional que garante a prossecução dos objectivos políticos da comunidade e assegura a satisfação das necessidades colectivas 2 essenciais» . A Administração Pública engloba um vasto plano de actividades,

* Artigo elaborado em Maio de 1995. ** Vice-Presidente do Instituto Politécnico de Macau. 1 Cf. David H. Rosenbloom, Public Administration, McGraw-Hill International Editions, Singapore, 1989, pgs. 4 e 28. 2 Jorge Bruxo, «A Cooperação Ensino Superior — Serviços», comunicação apresentada, em 18 de Janeiro de 1995, no Seminário Internacional — Os Estu dos Superiores em Macau, realizado na Universidade de Macau. 527 quer se destinem à satisfação de necessidades individuais, quer de ne-cessidades colectivas ou de necessidades públicas, como tais defini-das segundo critérios políticos mutáveis com o tempo e a zona geográ-fica, apresentando-se os seus trabalhadores como realizando tarefas que podem ir desde a exploração do espaço exterior à limpeza das ruas. Alguns trabalhadores são profissionais altamente competentes, que podem estar na vanguarda dos seus campos de especialização ou que concebem e executam políticas com um impacto de grande âmbito territorial beneficiando milhares ou milhões de pessoas, outros desempenham as suas funções com a realização de simples trabalhos de dactilografia, processamento de texto, arquivo, etc., ou possuem poucos conhecimentos que os diferenciem da massa dos cidadãos. Para a realização e desenvolvimento das actividades da Administração Pública, os seus trabalhadores têm de possuir uma formação adequada e conhecimentos suficientes relativamente à área diferenciada onde devem actuar, desempenhando os estabelecimentos de ensino e de formação profissional um papel insubstituível nesta matéria. Os recursos humanos integrados na administração pública são o elemento mais importante e fundamental para o funcionamento correcto e eficaz dos correspondentes serviços públicos, dependendo da sua formação académica e profissional e das suas capacidades de concepção, aplicação e execução, a possibilidade de evolução da Administração Pública, face aos desafios decorrentes das alterações tecnológicas do mundo contemporâneo e das novas necessidades individuais e colectivas de uma dada comunidade. A Administração Pública de Macau, para fazer face à sua necessidade de recursos humanos para o desempenho das funções e finalidades que lhe são atribuídas, tem tido, como elemento caracterizador da gestão dos seus trabalhadores, o sistema de carreiras, embora não o aplique a todas as cate- gorias de pessoal, pois deste sistema encontra-se afastado o pessoal de di- recção e chefia, os adjuntos e o pessoal operário e auxiliar. Paralelamente aos trabalhadores integrados em carreiras da administração pública, exis- tem trabalhadores a exercer a sua actividade com base em contrato além do quadro ou de assalariamento, mas só o pessoal do quadro dos serviços públicos tem direito à carreira.3 Na revisão de 1989 do regime jurídico da função pública foram defi- nidas as regras do regime de carreiras4 com a aplicação ao pessoal dos quadros dos serviços públicos, incluindo os serviços e fundos autónomos, e dos municípios5. O concurso é o processo normal e obrigatório de recru- tamento e selecção de pessoal para ingresso e acesso nas carreiras, que só

3 Há carreiras de regime geral e carreiras de regime especial, distinguindo-se ainda entre carreira vertical e carreira horizontal. Para mais desenvolvimen to, veja-se José Hermínio Paulo Rato Rainha, «Aspectos Gerais do Regime da Função Pública de Macau», em Administração— Revista de Administração Pú os blica de Macau, n. 24/25, Setembro de 1994, pgs. 337/349. 4 Decreto-Lei n.° 86/89/M, de 21 de Dezembro [DL n.° 86/89/M]. 5 O território de Macau está dividido em duas áreas administrativas ou muni- 528 pode ser afastado quando o regime de provimento no cargo ou no lugar do quadro preveja outro modo de recrutamento. O concurso é de ingresso ou de acesso, conforme se destine ao preenchimento de lugares de início de carreiras (ingresso) ou de desen- volvimento da carreira (acesso), podendo o concurso ser geral ou con- dicionado, conforme seja aberto a todos os funcionários da Adminis- tração Pública ou reservado aos funcionários de um serviço. Como re- quisito geral para os concursos de ingresso exige-se uma habilitação académica, que deve ser adequada ao exercício das funções, podendo esta falta de habilitação académica ser suprida por habilitação profis- sional correspondente à posse de curso de formação adequado ao exer- cício de determinadas funções, adquirido em estabelecimento oficial de ensino ou curso reconhecido nos termos da lei. Para o exercício das diversas funções gerais da Administração Pública de Macau — concepção, aplicação e execução —, os trabalha-dores estão divididos em grupos de pessoal, para os quais é indicada a caracterização do conteúdo funcional e atribuído um nível6 com as res-pectivas habilitações académicas. Os grupos de pessoal encontram-se divididos em pessoal operário e auxiliar, administrativo, técnico-pro-fissional, técnico e técnico superior, apresentando-se para efeitos desta breve análise das relações entre a formação de nível superior e as car-reiras da função pública, a caracterização do conteúdo funcional e as correspondentes habilitações académicas do pessoal técnico superior, técnico e técnico-profissional.

Grupos de pessoal da Administração Pública de Macau [Quadro I]

Fonte: Mapa 2 anexo ao Decreto-Lei n.° 86/89/M, de 21 de Dezembro.

cípios: Macau e Ilhas. 6 Nível é o posicionamento gradual de funções de acordo com a sua complexidade e exigências de formação. 529 Do Quadro I, onde se indicam as diferentes habilitações académicas para cada grupo de pessoal, nota-se que a posse de um determinado nível de habilitações académicas considerada como correspondente a licenciatura ou a outro curso superior é um elemento fundamental nas carreiras dos grupos de pessoal técnico superior e técnico. Nos grupos de pessoal técnico-profissional admitem-se habilitações académicas de nível inferior, estabelecendo-se onze anos de escolaridade para as car- 7 reiras do nível 7 deste grupo de pessoal . O funcionário que adquira as habilitações académicas ou profissio- nais exigidas pode candidatar-se a lugares de categorias de ingresso ou de acesso de carreiras de nível superior, desde que a categoria corres- ponda no l.° escalão8 a um índice de vencimento igual ou imediata- mente superior ao que já detém9. Por outro lado, o funcionário que pos- sua as habilitações académicas exigidas, pode candidatar-se a carreira do mesmo nível daquele em que se encontra, desde que, cumulativa- mente, se trate de lugar de categoria correspondente à que já detém e as 10 funções exercidas e a exercer sejam de natureza semelhante . A legislação só prevê a possibilidade de intercomunicabilidade de carreiras dos trabalhadores da Administração Pública de Macau pela aquisição de habilitações académicas ou profissionais, pelo que os ca- sos que ocorrem na prática não são muitos. Para esta limitação contri- bui o próprio desenvolvimento e especialização da actividade profissio- nal do trabalhador, dado que a nova carreira proporcionada pelas habi- litações académicas adquiridas pode não estar muito relacionada com a anterior, fazendo perder algum efeito à experiência acumulada ao lon- go do tempo.

7 Nos termos da Lei do Sistema Educativo de Macau (Lei n.° 11/91/M, de 29 de Agosto), o ensino primário tem a duração de seis anos e o ensino secundário é constituído por dois ciclos: o geral de três anos e o complementar, com uma dura ção mínima de dois anos e máxima de três anos (cf. artigos 8.° e 9.°) A legislação sobre as carreiras da Administração Pública de Macau é anterior a esta Lei do Sistema Educativo de Macau, pelo que ainda indica onze anos de escolaridade, em vez de um curso de ensino secundário com duração não interior a onze anos, como se pretende com a definição dos diferentes níveis ou ciclos de habilitação académica. 8 Escalão é a posição salarial dentro de uma carreira horizontal (execução de tarefas sem alteração de complexidade) ou de cada uma das categorias que integram uma carreira vertical (execução de tarefas com maior exigência de com- plexidade e de responsabilidade ao longo do tempo). 9 Esta possibilidade de mudança de carreira designa-se de intercomunicabi- lidade vertical (cf. DL n.° 86/89/M, artigo 12.°). 10 Esta possibilidade de mudança de carreira designa-se de intercomunicabi- lidade horizontal (cf. DL n./° 86/89/M, artigo 13.)]. 530 2. ENSINO SUPERIOR E CARREIRAS DA ADMINIS- TRAÇÃO PÚBLICA DE MACAU De acordo com o diploma regulador do ensino superior de Ma- cau11, o ensino superior compreende o ensino universitário e o ensino superior politécnico, correspondendo, respectivamente, ao ensino rea- lizado em Universidades ou em estabelecimentos especiais reconheci- dos como Escolas Universitárias e ao realizado em Institutos Politécnicos ou Escolas Superiores Politécnicas (cf. DL n.° 11/91/M, artigo 3.°). No ensino superior são conferidos os graus de bacharel, licenciado, mestre e doutor, estando reservado às Universidades a con-cessão dos dois últimos graus, podendo ainda ser atribuídos diplomas para cursos de duração não inferior a um ano e certificados para cursos de pequena duração (cf. DL n.° 11/91/M, artigos 14.°, n.os l e 2; 17.°, n.° l e 18.°, n.°l) . A criação de instituições de ensino superior em Macau é relativa-mente recente nos tempos da sua história contemporânea, pois o ensino superior do Colégio Universitário de S. Paulo não teve continuidade, após o seu declínio cinco décadas mais tarde da sua fundação em 159412, passando só em 1981 a existir de novo uma Universidade — Universi-dade da Ásia Oriental —, instituição privada criada por investidores de Hong Kong e usando um modelo anglo-saxónico. Como instituições públicas de ensino superior encontram-se, no ensino universitário, a Universidade de Macau, que sucedeu à Universidade da Ásia Oriental, e a Escola Superior das Forças de Segurança de Macau (ESFSM), e, no ensino politécnico, o Instituto Politécnico de Macau e a Escola Superior de Turismo (em fase de instalação), encontrando-se como instituição privada de ensino superior à distância a Universidade Aberta Internacional da Ásia (Macau). Entre os objectivos estabelecidos para o ensino superior encon- tram-se os de «formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, de modo a garantir a sua integração em actividades profissionais e a sua participação no desenvolvimento do Território» e o de «participar na política de desenvolvimento científico e tecnológico, melhorando o potencial científico do Território» [DL n.° 11/91/M, artigo 2.°, n.° 2, alíneas a] e e]]. De entre os cursos ministrados nas instituições de ensi-no superior, alguns conteúdos são exclusiva ou predominantemente destinados à Administração Pública, como são os casos dos cursos de formação de oficiais ministrados na Escola Superior das Forças de Se-

11 Decreto-Lei n.° 11/91/M, de 4 de Fevereiro, com as alterações do Decre-to-Lei n.° 8/92/M, de 10 de Fevereiro [DL n.° 11/91/M]. 12 «O período de maior importância do Colégio situa-se entre 1596 e 1645» e «a partir de então, mantém-se a instrução básica — ler, escrever e contar — até meados do séc. XVIII, enquanto os estudos superiores de Artes e Teologia enfrentam dificuldades. E, em 1746, só funciona a instrução básica por ser considerada indispensável à população» [Celina Veiga de Oliveira e Isabel Correia, São Paulo — História de um Colégio, Macau, Novembro de 1994]. 531

gurança de Macau: Curso de Polícia Marítima e Fiscal, Curso de Polícia 13 de Segurança Pública e Curso de Sapadores Bombeiros . A Escola Superior das Forças de Segurança de Macau é um esta-belecimento de ensino superior que desenvolve actividades de ensino, investigação e de apoio à comunidade, com a finalidade essencial de formar oficiais para os quadros das corporações das Forças de Segurança de Macau14. Os cursos de formação de oficiais conferem o grau de licenciado em Ciências Policiais nas especialidades de Polícia Marítima e Fiscal e de Polícia de Segurança Pública e de licenciado em Engenharia de Protecção e Segurança na especialidade 15 de Sapadores Bombeiros . A legislação sobre o ensino superior de Macau estabelece em ter- mos gerais a organização dos cursos conducentes à atribuição dos dife- rentes graus de ensino superior, determinando a sua duração mínima em anos ou semestres lectivos. As designações dos cursos são fixadas no diploma da sua criação, de acordo com os correspondentes ramos de conhecimento que constituem o objecto da Escola em que se realizam, com a indicação da respectiva opção, quando é caso disso. Os cursos de bacharelato devem corresponder em regra a três anos lectivos ou seis semestres, sendo o grau de bacharel conferido mediante a aprovação em todas as disciplinas, monografias, seminá- rios e estágios previstos nos planos de estudo dos cursos ministrados em instituições do ensino superior ou após a conclusão da l .a fase dos cursos conducentes ao grau de licenciatura, desde que o respectivo plano de estudos contemple a existência de duas fases, tendo a l .a uma dura-ção de três anos lectivos ou seis semestres (cf. DL. n.° 11/91/M, artigo 15.°). Os cursos de licenciatura podem revestir duas modalidades: cur-sos com duração definida de acordo com a respectiva área científica, mas nunca inferior a quatro anos ou oito semestres, podendo os respectivos planos de estudo estar divididos em duas fases, com a atribuição do grau de bacharel, após a conclusão da l. a fase; cursos de complemento ou especialização em determinada área do saber, com a duração de um ano ou dois anos lectivos, aos quais seja condicionada a matrí-

13 Existem também outros cursos superiores com estas características de se destinarem a actividades da Administração Pública nas áreas de línguas e tradu- ção e de gestão pública. 14 A Escola Superior das Forças de Segurança de Macau foi criada pelo De- creto-Lei n.° 57/88/M, de 4 de Junho, encontrando-se a sua organização regula mentada pelo Decreto-Lei n.° 5/95/M, de 30 de Janeiro [DL n.° 5/95/M]. Sobre a finalidade e desenvolvimento desta Escola Superior, veja-se Armando Manuel da Silva Aparício, «A Escola Superior das Forças de Segurança de Macau no con texto do Ensino Universitário do Território», em Administração — Revista de Administração Pública de Macau, n.° 22, Dezembro de 1993, pgs. 865/884. 15 Os cursos de formação de oficiais são organizados, na sua área estrita- mente académica, tendo em consideração as normas gerais do ensino universitá- rio do Território (cf. DL n.° 5/95/M, art. 25.°, n.° 2). 532 cula e inscrição a indivíduos possuidores, no mínimo, do grau de ba- charel ou habilitação académica a esta legalmente equiparada, podendo ainda ser exigida aos candidatos experiência profissional adequada (cf. 16 DL n.° 11//91/M, artigo 16.°) . O acesso aos cursos do ensino superior universitário é condicio- nado pela conclusão, com aproveitamento, de curso do ensino secun- dário com duração não inferior a doze anos, enquanto o acesso aos cur- sos do ensino superior politécnico é condicionado pela conclusão, com aproveitamento, de curso do ensino secundário com duração não infe-rior a onze anos (cf. DL n.° 11/9l/M, artigo 28.°, n.os 3 e 4)17. As insti-tuições do ensino superior universitário podem organizar um ano pre-paratório destinado a preparar, para o acesso aos seus cursos, os estu-dantes que tenham concluído um curso de ensino secundário com duração de onze anos (DL n.° 11//91/M, artigo 28.°, n.° 5). Tendo em atenção, em termos gerais, as durações dos cursos mi-nistrados em Macau de licenciatura no ensino universitário (quatro anos18) e de bacharelato no ensino superior politécnico (três anos) e as dos cursos secundários que dão acesso directo a cada um dos tipos de ensino superior, verifica-se a existência de uma diferença possível de dois anos de habilitações académicas entre um licenciado e um bacha-rel. Esta diferenciação de dois anos acontece se se verificarem as situa-ções limite estabelecidas na lei, ou seja, se só alunos dos cursos secun-

16 No diploma que estabelece o plano de estudos e a duração de cada curso de licenciatura e de bacharelato (ou outro curso superior) devia-se também pas sar a incluir a indicação se a sua leccionação é em regime diurno ou em regime nocturno, pois, embora a carga horária total de um curso nocturno deva ser igual à do curso idêntico em regime diurno, a sua distribuição deve ser feita por um período de tempo mais longo. Como regra geral, pode estabelecer-se que o regi me normal dos cursos deve ser diurno e destinado a alunos, em princípio, com dedicação exclusiva ao estudo, enquanto os cursos nocturnos com um regime de horário pós-laboral, destina-se essencialmente a trabalhadores-estudantes, pelo que a sua carga horária deve ser distribuída por mais anos (ou semestres) lectivos, para permitir que estes alunos possam ter aulas presenciais com aproveitamento e tempo para estudar as matérias, sem diminuição da qualidade de aquisição de conhecimentos. Este método de distribuição da carga horária do mesmo plano de estudos, de acordo com a sua leccionação em regime diurno ou nocturno, é seguido em diversos sistemas de ensino superior, nomeadamente o da República Portuguesa, em que, por exemplo, cursos de três anos lectivos (bacharelato) em regime diurno passam a quatro ou cinco anos lectivos em regime nocturno. 17 Pode ainda ser facultado o acesso a cursos do ensino superior aos indiví duos maiores de 25 anos que sejam titulares de condições especiais que demons trem a sua capacidade, designadamente através de exame adequado e que não possuam os requisitos habilitacionais normais para o referido acesso (cf. DL n.° 11 / /9l/M, artigo 28.°, n.° 4). 18 A Licenciatura em Direito conferida pela Faculdade de Direito da Univer- sidade de Macau tem um programa de estudos correspondente a cinco anos lecti vos (ou dez semestres lectivos) (cf. Portaria n.° 104/94/M, de 26 de Abril). 533 dários com onze anos de duração prosseguirem os seus estudos no en- sino superior politécnico, pois, para os alunos dos cursos secundários 19 de doze anos, a diferença é só de um ano . Para efeitos de carreiras da administração pública a distinção entre cursos superiores correspondentes a licenciatura e a outros cursos su- periores com o grau de bacharel ou sem atribuição de grau é muito importante, pois a habilitação académica mínima para o grupo de pes- soal técnico superior é a licenciatura, enquanto os outros cursos supe- riores só possibilitam o ingresso na carreira de técnico. Nos diplomas reguladores do regime da função pública de Macau não existe uma definição do que se considera curso superior20 para efeitos de ingresso nas carreiras do grupo de pessoal técnico, embora para muitas carreiras de regime especial, com desenvolvimento igual ou similar ao estabele- cido para aquelas carreiras, também se exija um curso superior adequa- do, eventualmente acrescido de um curso de formação profissional com- 21 plementar . Esta distinção entre os grupos de pessoal técnico e técnico supe- rior reflecte-se no desenvolvimento das respectivas carreiras e venci- mentos, conforme se mostra no Quadro II com referência às carreiras de regime geral.

19 Só se estão a comparar os anos de duração dos cursos ministrados em Macau e em relação aos alunos com acesso ao ensino superior com as habilita ções académicas mínimas exigidas para esse efeito. Caso o ensino superior poli técnico passe a organizar cursos de licenciatura, em que o acesso seja aberto a candidatos com onze anos de ensino secundário (quer seja ou não ano conclusivo do ensino secundário complementar), pode deixar de haver diferença no número total de anos lectivos de ensino entre licenciatura (11+4) e entre bacharelato (12+3), embora se mantenham as diferenças com a licenciatura do ensino univer sitário (12+4), passando a haver dois tipos gerais de licenciatura, correspondendo a cada um dos tipos de ensino superior. 20 No ordenamento jurídico de Macau não existe uma definição do que deve ser entendido por curso superior, tendo existido o Despacho n.° 71/85, publicado no Boletim Oficial de Macau n.° 12, de 23 de Março, que considerava como ensi no superior os cursos cuja frequência exigisse, como habilitação académica, um curso complementar de ensino secundário ou equivalente (revogado pelo Decre- to-Lei n.° 87/89/M, de 21 de Dezembro). 21 O Decreto-Lei n.° 86/89/M, de 21 de Dezembro, para efeitos de diversas carreiras de regime especial com desenvolvimento e índices de vencimento cor respondentes ao nível 8—grupo de pessoal técnico — ou próximos, exige curso superior: técnico postal (artigo 27.°); técnico de finanças (artigo 30.°); técnico de informática (artigo 34.°); meteorologista e geofísico operacional (artigos 49.° e 50.°) e técnico de estatística (artigo 57.°). O ingresso nestas carreiras pode tam- bém fazer-se, de uma maneira geral, de entre trabalhadores pertencentes ao grupo de pessoal técnico-profissional (nível 7), sendo na prática o que acontece, dada a não definição do que se entende por curso superior adequado. 534 Vencimentos dos grupos de pessoal técnico e técnico superior

[Quadro II]

Fonte: Mapa 2 anexo ao Decreto-Lei n.° 86/89/M, de 21 de Dezembro.

O acesso a grau superior de cada carreira depende da realização de concurso documental ou outro método de selecção e da permanência no grau imediatamente inferior por um período de 3 anos, com clas- sificação de serviço não inferior a bom, ou de 2 anos com a classifica- ção de muito bom22. A mudança de escalão, em cada grau da carreira vertical, depende do decurso de 2 anos de tempo de serviço com classi- 23 ficação não inferior a bom . Analisando-se o desenvolvimento das carreiras de regime geral indicadas no Quadro II, que pode ser realizado durante o mesmo perío- do de tempo, verifica-se que o vencimento de um técnico no topo da sua carreira [técnico especialista — 3.° escalão (índice 545)] equivale ao vencimento de um técnico superior principal (índice 540), podendo o vencimento do técnico superior atingir o índice 650 técnico superior assessor — 3.° escalão. No topo de ambas as carreiras existe uma dife- rença de 105 pontos indiciários correspondente a um acréscimo de cerca de 19 por cento do vencimento do técnico superior, em relação ao vencimento do técnico, cuja origem de base pode ser só um ano adici-onal de habilitações académicas, caso o técnico corresponda a um 24 ba-charel com um curso de doze anos de ensino secundário .

3. REDEFINIÇÃO DE CARREIRAS DA ADMINISTRA- ÇÃO PÚBLICA DE MACAU Esta situação de desenvolvimento das carreiras dos grupos de pes-soal técnico superior e técnico deve ser alterada através de dois con-

22 Sobre a classificação de serviço e a sua subjectividade, veja-se José Hermínio Paulo Rato Rainha, «Aspectos Gerais ...», em Administração ..., nota 5. 23 Estas disposições não prejudicam as regras próprias de acesso ou de mu- dança de escalão estabelecidas para carreiras de regime especial (cf. DL n.° 86/ 89/M, artigos 10.° e 11.°). 24 Veja-se a nota 19. 535 juntos de medidas: a redefinição das carreiras da administração pública e o estabelecimento de cursos superiores de duração inferior ao curso de bacharelato (três anos). A diferenciação dos cursos superiores cor-respondentes a licenciatura e a bacharelato não pode levar à definição de carreiras distintas, devendo estabelecer-se que o acesso às carreiras de regime geral de técnico superior pode ser feito entre licenciados ou bacharéis com curso adequado à função. Esta distinção de carreiras separadas para licenciados e bacharéis da função pública encontra-se ainda influenciada pelo sistema do ensi-no superior português, pois a maior parte das habilitações académicas dos técnicos com cursos superior ao serviço da Administração Pública de Macau tem ainda essa origem25. No ensino superior português, até há pouco tempo, todos os cursos de licenciatura eram de cinco ou mais anos e os cursos de bacharelato eram de três anos, começando só agora a generalizar-se os cursos de licenciatura de quatro anos. Com o aparecimento de instituições de ensino superior em Macau com a organização de cursos de licenciatura de quatro anos, a que se junta o reconhecimento, para efeitos no Território, das habilitações académicas obtidas em sistemas de ensino não português26, em que a maior parte dos cursos superiores equivalentes a licenciatura têm uma duração de quatro (ou menos) anos lectivos, começa a esbater-se a di-ferença de duração entre cursos superiores correspondentes a licencia-tura e a bacharelato. Deste modo não parece já continuar a justificar-se esta diferenciação de carreiras com base num só ano adicional de habilitações académicas, devendo a experiência adquirida no desem-penho de uma determinada função durante um certo período de tempo compensar o conhecimento académico de um ano adicional de estudo. Apesar de se definir a mesma carreira para licenciados e bacha-réis, pode estabelecer-se um acesso em grau diferente da carreira: os licenciados ingressam num determinado grau (2.°), enquanto os bacha-réis ingressam num grau inferior (3.°), prosseguindo ambos a mesma carreira com o decurso do tempo27. Esta redefinição de carreiras da administração pública permite um balanceamento do prestígio social aos diplomados com um curso de bacharelato, sendo um incentivo à frequência de cursos de bacharelato e à diminuição da pressão sobre as instituições de ensino superior para a transformação dos cursos de

25 Veja-se Manuel G. Abreu, «Os Recursos Humanos da Administração Pú- blica de Macau e o Processo de Transição», em Administração — Revista de Administração Pública de Macau, n.° 26, Dezembro de 1994, pgs. 631/650. 26 Decreto-Lei n.° 14/89/M, de l de Março. 27 De acordo com o actual desenvolvimento das carreiras, o técnico superior inicia a carreira como técnico superior de 2.a classe. A carreira técnica só tem intercomunicabilidade com a carreira técnica superior pela aquisição de habilita- ções académicas equivalentes a licenciatura.

536 bacharelato em licenciatura ou só para a criação destes últimos cur- 28 sos . Os ensinos superiores politécnico e universitário não devem ser considerados como estando hierarquizados ou desenvolvendo activi- dades concorrenciais, apresentando cada um deles características pró- prias que devem ser realmente identificadas e produzir diplomados que, embora com formação diferente, sejam capazes de competir em igual- dade nos mesmos locais de trabalho. Tem-se considerado que, na di- versificação do ensino superior, o ensino politécnico orienta-se para modelos de cursos essencialmente baseados por preocupações menos especulativas e mais práticas, o que lhes confere características mais directamente profissionalizantes e menos exigentes na duração dos cur- sos, devendo também ser esta a orientação do ensino superior politécnico de Macau. O ensino superior politécnico em Macau não deve tentar copiar o ensino superior universitário, ao procurar transformar os seus cursos em licenciatura29, embora deva ser dignificado e caracterizado nos seus objectivos30, apresentando-se como elemento importante para essa dignificação o reconhecimento, para efeitos das carreiras da Adminis- tração Pública de Macau, aos diplomados com o grau de bacharel31 o estatuto de técnico superior, de modo a não se estabelecer um perma-nente estatuto de menoridade a estes diplomados, independentemente do seu mérito e competência. Por outro lado, esta diferenciação do en-sino superior não deve impedir o desenvolvimento de uma maior liga-

28 Nos sectores privados esta diferenciação de carreiras entre diplomados com cursos de licenciatura ou de bacharelato é muito esbatida em relação à Admi-nistração Pública, dado que o nível da habilitação académica, muitas vezes, não se apresenta como elemento fundamental ou preponderante na fixação das carrei-ras dos trabalhadores ou na fixação dos seus salários ou ordenados. Para os secto-res privados, a distinção das carreiras da função pública com base no nível de habilitação académica, só serve de referência como o valor social dado aos cursos superiores. 29 Não está no âmbito deste texto procurar apresentar os eventuais factores sociológicos ou motivações meramente individuais que podem influenciar em Macau esta tendência, embora o assunto seja merecedor de um estudo esclarecedor desta realidade factual. 30 No diploma regulador do ensino superior de Macau (DL n.° 11/91/M) não estão definidos objectivos gerais diferenciados para o ensino universitário e o ensino superior politécnico, estabelecendo-se que «o ensino superior visa garan tir uma sólida formação científica, cultural e técnica que prepare para o exercício de actividades profissionais e culturais, através da difusão de conhecimentos cien tíficos de índole teórica e prática e fomente o desenvolvimento das capacidades de concepção, de investigação científica, de inovação, de análise crítica e de cria tividade artística» (artigo 2.°, n.° 1). 31 O grau de bacharel também pode ser concedido pelas Universidades ou pelos estabelecimentos especiais reconhecidos como Escolas Universitárias e está estabelecido nos Estatutos da Universidade de Macau (artigo 4.°) e Estatutos da Universidade Aberta Internacional da Ásia (Macau) (artigo 5.°).

537 ção entre ambos os tipos de ensino — ensino universitário e ensino superior politécnico — e deve-se explorar a sua complementaridade e possibilitar a progressão aos diplomados por cursos de menor duração.

4. CURSOS SUPERIORES A redefinição das carreiras de técnico superior de forma a ser aces- sível e a integrar os bacharéis deve ser acompanhada também por uma nova definição ou entendimento de curso superior equivalente ao an- teriormente existente no ordenamento jurídico de Macau, consideran- do-se os cursos cuja frequência exija, como habilitação académica, um curso complementar de ensino secundário ou equivalente e tenha uma determinada duração de tempo (um ou mais anos lectivos). O preenchi- mento desta lacuna legislativa pode incentivar a criação de novos cur- sos e permitir o reconhecimento para efeitos de ingresso na carreira técnica de outros cursos não conferentes de grau obtidos em estabele- cimentos de ensino superior, designadamente de Macau, de modo a for- marem-se quadros médios com formação de nível superior ao ensino secundário que são escassos na administração pública32 e também fa-zem falta a outras actividades económicas e sociais de Macau. A criação de cursos superiores com a duração, eventualmente, de dois anos (ou quatro semestres) lectivos vai ao encontro das necessida- des de pessoal qualificado na administração pública com um nível in- termédio entre o técnico superior e os grupos de pessoal com habilita- ções académicas ao nível do ensino secundário. Um curso superior com estas características é o existente na Escola de Administração e Ciên- cias Aplicadas do Instituto Politécnico de Macau na área de conheci- mentos estatísticos, com acesso à carreira de técnico de estatística da Administração Pública de Macau, designado de Curso de Organização 33 e Métodos Estatísticos, organizado em quatro semestres lectivos . Este curso tem por objectivo desenvolver um conjunto de apti-dões técnicas e possibilitar a apreensão de conhecimentos científicos no domínio da estatística, organização e gestão da informação, tendo-se baseado na necessidade sentida pela Direcção de Serviços de Esta-tística e Censos em formar quadros estatísticos intermédios, inserida num projecto global de formação profissional dos trabalhadores e de localização de quadros. Por outro lado, a criação deste curso, com carácter permanente e atribuição de diploma, conforme previsto na legislação do ensino superior, justifica-se também pelo interesse e aplicação dos conhecimentos estatísticos no desenvolvimento das actividades de diversas entidades. Para efeitos de acesso àquela carreira de técnico de estatística, para além do referido curso superior ou outro considerado adequado,

32 Veja-se Manuel G. Abreu, «Os Recursos Humanos...», em Administração... 33 Cf. Portaria n.° 9/95/M, de 16 de Janeiro.

538 torna-se também necessário o aproveitamento do Curso de Formação Complementar em Estatística com mais 120 horas lectivas, leccionado na mesma Escola de Administração e Ciências Aplicadas do Instituto Politécnico de Macau. Os candidatos à frequência deste último curso, que não estejam habilitados com o Curso de Organização e Métodos Estatísticos, devem fazer prova de possuírem outro curso superior con- siderado adequado pela Direcção dos Serviços de Estatística e Censos. Algumas objecções à organização deste curso para efeitos de car- reiras da administração pública têm sido formuladas relativamente à sua duração, dado que outras carreiras de regime especial, para cujo ingresso se torna também necessário um período total deformação aca- démica e profissional semelhante, têm menor avaliação de estatuto ju-rídico-funcional consubstanciado nos respectivos vencimentos. De qualquer maneira, este argumento baseado na justiça relativa de carreiras técnicas não é suficiente para pôr em causa a necessidade de definição e criação de cursos superiores de menor duração da estabelecida para os cursos de bacharelato (três anos) para um conjunto de funções técnicas, transformando-se provavelmente, em futuro próximo, também em um grau de ensino superior. Com o desenvolvimento do ensino superior e a tendência para a sua massificação em alguns países, há especialistas que consideram que este ensino, em futuro próximo, passará a ser organizado com uma diferente duração de anos (ou semestres) lectivos da actual, correspondendo, de uma maneira geral, a: dois anos (bacharelato); quatro anos (licenciatura); e, seis anos (mestrado). Atendendo à situação particular que Macau atravessa neste momento em que há necessidade de formação rápida de quadros técnicos, a criação destes novos cursos superiores de menor duração parece ir ao encontro das preocupações dos que consideram desejável que nos novos cursos a instituir sejam observadas algumas linhas de orientação bem definidas em que se integram uma duração tão curta quanto possível, uma qualidade de ensino de elevado padrão de 34 exigência e a criação de práticas profissionalizan-tes . As instituições de ensino superior, sobretudo as públicas, devem dar especial atenção às necessidades da Administração Pública de Ma- cau, criando os cursos adequados para responder eficaz e globalmente às exigências da realidade da actividade económica e administrativa do 35 Território . Entre as instituições de ensino superior de Macau, o Insti- tuto Politécnico de Macau como entidade cujas actividades são orien- tadas pela finalidade de «formação de quadros com elevado nível de

34 Cf. Jorge Bruxo, (Director dos Serviços de Administração e Função Pú- blica), «A Cooperação Ensino Superior — Serviços», comunicação apresentada em 18 de Janeiro de 1995, no Seminário Internacional — Os Estudos Superiores em Macau, realizado na Universidade de Macau. 35 Cf. Jorge Bruxo, «A Cooperação ...», que refere ainda que os conteúdos dos cursos exclusiva ou predominantemente destinados à Administração Pública devem passar a considerar como fundamental os valores éticos da função pública, pois só através da correcção dos comportamentos é possível melhorar a actuação dos trabalhadores dos serviço públicos, que têm de estar mais predispostos ao 539 exigência qualitativa nos aspectos cultural, científico, técnico e profis- sional» e que deve «promover uma estreita ligação com a comunidade na organização e realização das suas actividades, visando a inserção dos seus diplomados na vida profissional», apresenta-se como a insti- tuição pública de ensino superior que mais deve contribuir para a for- mação de quadros técnicos da Administração Pública de Macau. Dadas as características e finalidades do ensino superior politécnico, devem ser criados cursos superiores de duração não infe- rior a um (ou dois) ano(s) lectivos, após o curso do ensino secundário complementar, que dêem formação profissionalizante e contribuam ra- pidamente para a constituição de pessoas com formação adequada para responder aos desafios da actual fase histórica de Macau. A criação destes cursos superiores de menor duração, cuja estrutura deve ser do- minantemente preocupada com a formação para o exercício profissional imediato, ainda que competente e tecnicamente exigente, deve ter, não só, como finalidade a formação de técnicos para áreas específicas da Administração Pública de Macau36, mas também, a satisfação da procura de técnicos especializados no mercado de trabalho, de forma a contribuírem para o desenvolvimento económico-social da região.

5. CONCLUSÕES E SUGESTÕES A Administração Pública, no conjunto dos seus serviços, desen- volve um vasto plano de actividades, para o qual os recursos humanos são o elemento mais importante e fundamental para o funcionamento correcto e eficaz dos serviços públicos, verificando-se que:

1. Para a realização e desenvolvimento dos objectivos e activida- des da Administração Pública, os seus trabalhadores têm de possuir uma formação adequada e conhecimentos suficientes relativamente à área diferenciada onde devem actuar, desempenhando os estabeleci- mentos de ensino e de formação profissional um papel insubstituível nesta matéria.

aumento da sua autonomia de decisão e da inerente responsabilidade que esse facto acarreta. 36 Nos diplomas que criam e aprovam os planos de estudos destes cursos pode ser estabelecido que é considerado curso superior adequado para uma determinada carreira técnica de regime especial da Administração Pública de Macau, sem prejuízo de o serviço ou serviços públicos, que integram essas carreiras, também reconhecerem outros cursos superiores como adequados para o ingresso na mesma carreira. A criação destes cursos superiores para efeitos de determinados carreiras da Administração Pública de Macau não devem impedir a organização de outros cursos de continuação de estudos ou de pós-graduação destinados também à profissionalização na função pública.

540 2. Para o exercício das diversas funções gerais da Administração Pública de Macau, os trabalhadores estão divididos em grupos de pes soal, para os quais é indicada a caracterização do conteúdo funcional e atribuído um nível com as respectivas habilitações académicas. 3. Os grupos de pessoal encontram-se divididos em pessoal ope rário e auxiliar, administrativo, técnico-profissional, técnico e técnico superior, sendo a posse de um determinado nível de habilitações aca démicas, considerada como correspondente a licenciatura ou a outro curso superior, um elemento fundamental nas carreiras dos grupos de pessoal técnico superior e técnico.

Existindo uma relação entre as carreiras da Administração Pública de Macau e o ensino superior é necessário conhecer a definição de curso superior e as suas diferentes modalidades, tendo-se indicado que:

4. De entre os cursos ministrados nas instituições de ensino supe rior de Macau, alguns conteúdos são exclusiva ou predominantemente destinados à Administração Pública, como são os casos dos cursos de formação de oficiais ministrados na Escola Superior das Forças de Se gurança de Macau. 5. De acordo com o diploma regulador do ensino superior de Macau, o ensino superior compreende o ensino universitário e o ensino superior politécnico, sendo conferidos os graus de bacharel, licencia do, mestre e doutor, estando reservado às Universidades a concessão dos dois últimos graus, podendo ainda ser atribuídos diplomas para cur sos de duração não inferior a um ano e certificados para cursos de pe quena duração. 6. Os cursos de bacharelato devem corresponder em regra a três anos lectivos ou seis semestres e os cursos de licenciatura podem re vestir duas modalidades: cursos com duração nunca inferior a quatro anos ou oito semestres ou cursos de complemento ou especialização em determinada área do saber, com a duração de um ano ou dois anos lectivos, após o grau de bacharel ou habilitação académica equiparada. 7. Tendo em atenção, em termos gerais, as durações dos cursos ministrados em Macau de licenciatura no ensino universitário (quatro anos) e de bacharelato no ensino superior politécnico (três anos) e as dos cursos secundários (onze ou doze anos) que dão acesso directo a cada um dos tipos de ensino superior, existe, em regra, uma diferença normal de um ano e possível de dois anos de habilitações académicas entre um licenciado e um bacharel. 8.Para efeitos de carreiras da administração pública, a distinção entre cursos superiores correspondentes a licenciatura e a outros cur sos superiores com o grau de bacharel ou sem atribuição de grau é muito importante, pois a habilitação académica mínima para o grupo de pessoal técnico superior é a licenciatura, enquanto os outros cursos superiores só possibilitam o ingresso na carreira de técnico.

541 9. A distinção entre os grupos de pessoal técnico e técnico supe rior reflecte-se no desenvolvimento das respectivas carreiras, realiza do durante o mesmo período de tempo, e correspondentes remunera ções, verificando-se no topo de ambas as carreiras a existência de um acréscimo de cerca de 19 por cento do vencimento do técnico superior, em relação ao vencimento do técnico, cuja origem de base pode ser só um ano adicional de habilitações académicas.

Atendendo ao desenvolvimento do ensino superior e às finalidades do ensino superior politécnico, sugere-se que:

10.A diferenciação dos cursos superiores correspondentes a li cenciatura e a bacharelato não deve levar à definição de carreiras da administração pública distintas, devendo estabelecer-se que o acesso às carreiras de regime geral de técnico superior pode ser feito entre licenciados ou bacharéis com curso adequado à função. 11.A criação de cursos superiores com a duração, eventualmen te, de dois anos (ou quatro semestres) lectivos vai ao encontro das ne cessidades de pessoal qualificado na administração pública com um nível intermédio entre o técnico superior e os grupos de pessoal com habilitações académicas ao nível do ensino secundário. 12.O Instituto Politécnico de Macau é a instituição pública de ensino superior em que, dadas as suas características e finalidades de ensino, devem ser criados novos cursos superiores de duração inferior a três anos lectivos (bacharelato).

542 transporte aéreo

543 544 Administração, n.° 29, vol. VIII, 1995-3.°, 545-555

PERSPECTIVAS DE DESENVOLVIMENTO DO

TRANSPORTE AÉREO EM MACAU*

Pedro Pinto **

Com a futura inauguração do novo Aeroporto Internacional de Macau, a população do Território passará a dispor de uma nova infra-estrutura que lhe conferirá acesso directo ao transporte aéreo. Neste artigo passam-se em revista alguns indicadores que possam, de algum modo, sugerir o sucesso deste meio de transporte em Macau. Este trabalho apresenta algumas limitações devido a restrições óbvias de espaço e de tempo. Uma importante limitação restringe o objecto da análise exclusivamente ao tráfego de passageiros. Além disso, assume-se também dum modo simplista que a oferta cobrirá integralmente a procura independentemente da natureza cíclica da indústria de transporte aéreo ou de outros constrangimentos que possam surgir. Tomando em linha de conta estas considerações, a pesquisa procura discutir os seguintes pontos relativamente a Macau: ·A possível correlação entre a evolução da economia e do trans- porte aéreo. ·A provável maturação do tráfego aéreo de passageiros. ·A hipotética adesão ao transporte por via aérea. ·A provável direccionalidade dos fluxos de tráfego. ·Hábitos de ocupação da população e a sua influência no trans- porte aéreo. ·Taxas de crescimento do consumo privado. ·Flutuação cambial.

* As opiniões expressas neste artigo reflectem exclusivamente a opinião pessoal do seu autor e nunca a posição oficial da Autoridade da Aviação Civil de Macau relativamente às matérias focadas. ** Engenheiro Mecânico. Doutorado em Transporte Aéreo. 545

Figura l — Uma ilustração artística sobre o Aeroporto Internacional de Macau

A POSSÍVEL CORRELAÇÃO ENTRE A EVOLUÇÃO DA ECONOMIA E DO TRANSPORTE AÉREO Numa primeira análise, pode começar por se discutir a provável evolução do tráfego aéreo de passageiros em Macau, baseados na evo- lução da situação económica do Território. De um modo geral, há muito que é conhecida uma forte correlação entre uma situação económica de um país e a correspondente evolução da actividade do transporte aéreo do país em causa. Por outras palavras, se existe uma tendência para um abrandamento da actividade económica, o mesmo efeito se faz sentir na evolução do transporte aéreo. O mesmo acontece nas situações de retoma ou crescimento acelerado. Daí que não seja novidade em representar com frequência uma determinada correlação numérica entre a variação do Produto Interno Bruto per capita dum determinado país ou território e o evoluir da actividade do transporte aéreo dessa região (ver Figura 2).

546

Figura 2 — Correlação entre a evolução da economia e a evolução do transporte aéreo de passageiros

No caso de Macau, e baseados na evolução do seu Produto Interno Bruto per capita, é possível, numa primeira aproximação, deduzir que o número total de passageiros residentes varie de uma forma homóloga à daquele indicador; porém afectado dum certo factor multiplicativo. A recente explosão do transporte aéreo noutros países da região, nomea- damente na China, no Vietname, na Coreia do Sul e na Formosa, sugere que a taxa de crescimento inicial possa rondar valores entre 20 a 30 por cento. Assumindo no caso de Macau um fenómeno em tudo idêntico, poder-se-á admitir que o factor multiplicativo possa rondar, inicialmente, o valor 4. Daí que se admita que, na eventualidade de uma variação positiva do Produto Interno Bruto per capita da ordem dos 5 por cento no ano de 1996, poderíamos estimar uma variação aproximada de cerca de 20 por cento no crescimento inicial do tráfego de passageiros residentes em Macau.

A PROVÁVEL MATURAÇÃO DO TRÁFEGO AÉREO DE PASSAGEIROS Um outro factor importante a ter em conta numa análise pontual é o grau de maturidade do mercado. Consoante este seja mais ou menos maduro, podem-se esperar taxas de crescimento dos movimentos aére- os inferiores ou superiores. Uma análise deste género, levada a efeito pela AIRBUS e que inclui cerca de 30 mercados em distintas fases de maturação, pode ser vista na Figura 3.

547

Figura 3 — Estudo comparativo da maturação do transporte aéreo em vários países do mundo no ano de 1990

O gráfico em causa compara para cada país, a respectiva fase de desenvolvimento económico com o número médio de viagens aéreas por habitante. Como se pode facilmente constatar, os casos da extremi-dade direita da figura correspondem às situações de países economica-mente mais desenvolvidos — normalmente mercados mais maduros e com maior tráfego de passageiros. Isso significa que estes países têm normalmente taxas de crescimento mais baixas que aquelas em plena maturação. No caso de Macau poderemos fazer uma estimativa rápida do nú-mero médio de viagens áreas por habitante, baseados no valor do seu Produto Interno Bruto per capita registado em 1990. Uma vez que o valor registado foi de $ US 10,475, isto significa que, de acordo com o gráfico da Figura 3, o número médio provável de viagens aéreas por habitante seria de aproximadamente 0,2. De notar que este é um valor médio global, não contemplando distinções entre extractos da popula-ção que possam demonstrar mais apetência e possibilidades para usar este meio de transporte. Uma vez que se trata de um mercado novo, economicamente forte e em franca expansão, pressupõe-se que o de-senvolvimento siga aproximadamente de acordo com o vector repre-sentado na figura, à semelhança de casos como a Formosa e a Coreia do Sul. De notar que mercados muito vastos, como a China e a índia, aparecem na extremidade inferior esquerda do gráfico. Isto significa apenas que estes mercados dispõem ainda de um enorme potencial em termos de crescimento até atingir a fase de começo da maturação.

548 A HIPOTÉTICA ADESÃO AO TRANSPORTE POR VIA AÉREA Uma outra forma de se discutir o potencial crescimento do trans- porte aéreo na região Ásia-Pacífico e particularmente em Macau, é atra- vés da análise do gráfico representado na Figura 4. De notar que as colunas representam taxas de crescimento acumuladas em 5 anos e a linha representa a penetração do transporte aéreo quantificada através do número de viagens per capita dos residentes por ano. De acordo com este estudo comparativo, depreende-se claramente que países como a Tailândia, Filipinas, Indonésia, Coreia do Sul e Formosa são casos de fraca penetração e grandes taxas de crescimento, significando assim ainda um vasto potencial de desenvolvimento para os próximos anos. Dadas as suas características, e assumindo o valor de 0,2 encontrado anteriormente, prevê-se que Macau possa facilmente incluir-se neste grupo. Daí que possamos estimar que a taxa de crescimento em 5 anos possa atingir valores em tudo semelhantes aos casos da Formosa e da Coreia do Sul (aproximadamente de 60 por cento). Um outro caso, que vale a pena mencionar por curiosidade, é o de países como o Japão, que aparecem representados numa situação visi- velmente amadurecida no gráfico da Figura 3, apresentarem, contudo, ainda um vasto potencial de crescimento. De acordo com as fontes ci- tadas na Figura 4, o Japão movimenta por ano cerca de 12 milhões de passageiros por via aérea, número este que corresponde a cerca de 10 por cento da população do país. Espera-se que no fim do século este número venha a atingir os 20 milhões.

Figura 4 — Adesão ao transporte aéreo nos diversos países da região Ásia-Pacífico

549 PROVÁVEL DIRECCIONALIDADE DOS FLUXOS DE TRÁFEGO Dadas as características de Macau e a distribuição étnica dos seus habitantes, é de esperar que os fluxos de tráfego aéreo que se venham a gerar tenham obviamente mais incidência em determinados países ou regiões circunvizinhas. Uma simples constatação desta afirmação é cla- ramente visível no gráfico representado na Figura 5. Excluindo o caso de Hong Kong como hipotético destino final — uma vez que dada a sua proximidade geográfica com Macau não se espera que venha a ter peso significativo nos futuros fluxos de tráfego aéreo, todos os outros casos elucidam a existência duma certa direccionalidade.

Figura 5 — Estatística dos movimentos de visitantes em Macau segundo o país de resi-dência

Com base no historial de entradas e saídas do Território e também com base nos acordos bilaterais de tráfego aéreo celebrados até ao momento, bem como outros que se prevêem vir a iniciar-se a médio prazo, foram estimadas taxas de cobertura dos mercados tradicionais. Elaborou-se de seguida um modelo quantitativo que após calibração e usando a técnica de simulação sugeriu uma provável distribuição dos fluxos de tráfego. Os resultados obtidos indicam que os futuros fluxos de passageiros se concentrem mais na região do leste Asiático (incluin-do a RPC, Formosa, Japão e Coreia do Sul), seguidos pela região do Sudeste Asiático (Malásia, Filipinas, Singapura, Tailândia, Birmânia, etc.), Europa e Américas. Uma síntese desses resultados está represen-tada no gráfico da Figura 6. 550 De notar, contudo, que se trata aqui duma previsão a médio prazo. A distribuição inicial dependerá essencialmente do empenho dos ope- radores em começar por servir Macau desde a primeira hora. Neste momento ainda é cedo para afirmar quais serão esses operadores. No modelo em causa assumiu-se que nem todos os operadores se empe- nhariam na fase inicial.

Figura 6 — Estimativa duma provável distribuição dos utilizadores de transporte aéreo com origem/destino Macau

HÁBITOS DE OCUPAÇÃO DA POPULAÇÃO E A SUA INFLUÊNCIA NO TRANSPORTE AÉREO A pesquisa revela que em países e territórios industrializados da região Ásia-Pacífico, como o Japão, Hong Kong, Formosa, Coreia do Sul e Singapura, existe uma tendência a longo prazo para uma altera- ção dos hábitos da população. À medida que os países caminham para uma situação de desenvolvimento, as populações passam a reduzir o número total de horas de trabalho e a dedicar mais tempo ao lazer e aos tempos livres. Esta tendência tem óbvias repercussões no crescimento das indústrias de turismo e transportes. Isto pode ser facilmente cons- tatado no gráfico da Figura 7, baseado num estudo efectuado recente- mente no Japão. Simplisticamente, a interpretação do gráfico pode su- gerir que a melhoria das condições de vida da população conduz, por um lado, ao crescimento dos grandes centros urbanos e uma melhor formação escolar das populações, incentivando assim o desejo de visi- tar outros países e conhecer outras culturas. Daí que o tempo dedicado a viajar se torne uma parcela cada vez mais importante dos tempos livres dos cidadãos.

551

Figura 7 — Prova da alteração de comportamento da população de países desenvolvidos como o Japão

No caso de Macau não são conhecidas estatísticas oficiais que elu- cidem sobre os hábitos de ocupação dos seus residentes. No entanto, e dadas as características do Território, é natural que se venha a registar a mesma tendência a longo prazo. Daí que este seja mais um factor importante a tomar em consideração nas previsões a longo prazo do tráfego aéreo de passageiros dos residentes em Macau.

TAXAS DE CRESCIMENTO DO CONSUMO PRIVADO Um outro factor importante na pesquisa refere-se aos recursos ma- teriais disponíveis, e mais importante ainda, ao aumento real dos gas- tos na rubrica do consumo privado. O objectivo é inquirir sobre a dis- ponibilidade e vontade em dispender em actividades de recreio da po- pulação de Macau, muitas das quais poderão envolver viagens aéreas. No gráfico da Figura 8, representaram-se os vários países por ordem decrescente das taxas de crescimento registadas do consumo privado. Como se pode constatar, Macau apresenta a maior taxa de crescimento do consumo privado, significando uma maior apetência para possíveis dispêndios em passagens aéreas. Outros países, como a China e a Tailândia, mostram tendências semelhantes.

552

Figura 8 — Comparação entre as taxas de crescimento do consumo privado em vários países Asiáticos

FLUTUAÇÃO CAMBIAL Por último devemos analisar a importância das alterações do mer-cado cambial e a sua influência nos hábitos de viajar por via aérea das populações. Um estudo recente efectuado a este respeito no Japão, mostra claramente a existência de uma forte correlação entre o aumen-to do número de deslocações ao estrangeiro com o fenómeno do forta-lecimento do Yen. O gráfico representado na Figura 9 elucida clara-mente este caso. A explicação deste fenómeno é simples: numa situa-ção de moeda forte a população local tem tendência a deslocar-se com mais frequência ao estrangeiro para beneficiar das vantagens associa-das a esta situação, bem como aumenta o investimento no estrangeiro já que se torna difícil competir no mercado local. Daí que muitas vezes se registe um aumento do número de viagens aéreas. Esta situação traz, contudo, outros inconvenientes para os operadores.

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Figura 9 — Relação entre a variação cambial e o movimento de deslocações ao estrangeiro por via aérea no Japão

No caso de Macau, e se bem que possamos admitir a concretiza- ção dum fenómeno parecido se semelhante situação ocorresse, é difícil prever a evolução do comportamento da moeda local. A estabilidade da pataca em relação ao dólar norte-americano, nos últimos anos, não su- gere que uma situação destas possa vir a ocorrer pelo menos a curto prazo. Isto é o que se pode constatar pela análise do gráfico da Figura 10.

Figura 10 — Flutuação cambial da Pataca em relação ao $ US 554 CONCLUSÃO Além destes, muitos outros factores poderiam ter sido analisados de modo a sugerir a possível evolução do tráfego aéreo de passageiros dos residentes de Macau. Aqueles aqui comentados pareceram-me al- guns dos mais importantes. O facto de Macau apresentar um passado aeronáutico muito débil torna, contudo, difícil o estabelecimento de previsões. Mesmo assim, e baseados na experiência de outros países da região, os vários aspectos analisados sugerem uma certa consistência nas hipóteses de sucesso do transporte aéreo em Macau. Conclui-se deste modo que, com a construção do Aeroporto Inter- nacional de Macau, com o estabelecimento dum operador local e com um ambiente de estabilidade política e social alimentado por um contí- nuo fortalecer do tecido económico como os registados até ao momento, são francamente animadoras as perspectivas de desenvolvimento do transporte aéreo em Macau.

555 556 direito e sociedade

557 558 Administração, n.° 29, vol. VIII, 1995-3.°, 559-573

O NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO E AS GARANTIAS DOS CIDADÃOS DE MACAU (NOTAS

E CONSIDERAÇÕES DISPERSAS)*

Sérgio de Almeida Correia **

INTRODUÇÃO Entrou em vigor, no passado dia l de Março de 1995, o Decreto-Lei n.° 35/94/M, de 18 de Julho, que aprovou o Código de Procedimento Ad-ministrativo. Não obstante haver sido publicado em Julho de 1994, a sua entrada em vigor foi diferida para sete meses depois, visando-se com tal desiderato facilitar e promover o atempado conhecimento da nova legisla-ção por parte dos respectivos destinatários, a saber: a Administração Públi-ca e os particulares. Por particulares entenda-se não só as pessoas singula-res mas ainda as pessoas colectivas que com as entidades públicas entrem em relação, se bem que seja aos primeiros que os mecanismos legalmente consagrados se dirigem em primeira linha. No entender do legislador, conforme resulta do preâmbulo, a aprova- ção do código insere-se na linha de adopção de meios e garantias de defesa dos interesses dos particulares, que são obrigados, por força das mais di- versas circunstâncias e contingências da vida moderna, a recorrer à Admi- nistração Pública, seja para emissão de uma decisão num caso concreto, seja por força de uma decisão anterior que brigue com interesses e direitos legalmente protegidos, mas não necessariamente localizados, de um parti- cular ou ainda para mero esclarecimento, ou clarificação, de decisões to- madas pela Administração que possam colocar em crise os próprios princí- pios que regem a sua actividade. Visou, por outro lado, impor uma maior participação dos próprios destinatários das decisões e deliberações da Administração, uma maior efi-

* Artigo elaborado em Março de 1995. **Advogado. 559 ciência dos serviços e regular, disciplinar e racionalizar a actividade admi- nistrativa, dando, assim, corpo a uma maior desburocratização e transparência na actuação dos órgãos e agentes administrativos. O mérito e a oportunidade do diploma são, creio eu, indiscutíveis. Pese embora a discutibilidade de algumas das opções tomadas, parece-me que a sua adopção por parte da Administração é um avanço significativo na melhoria dos serviços e uma esperança acrescida por parte do cidadão comum de que a sua vida de relação com a máquina administrativa será menos penosa, psicológica e financeiramente, do que até aqui. O que fica por provar, e só o tempo o poderá julgar, é saber até que ponto a Administração, colectiva e individualmente por parte de cada um dos seus funcionários e agentes, estará empenhada na execução do diploma sem subterfúgios e de acordo com os vastos objectivos que pretendeu alcançar. Este artigo mais não pretende ser do que uma pequena contribuição para uma melhor compreensão e execução do diploma, resultando as linhas que se seguem da compilação de algumas ideias e notas que as escassas horas mortas da advocacia me concederam. Para além de recolherem o contributo de alguns textos que, em Portugal, foram publicados sobre o Código aprovado pelo Decreto-Lei n.° 442/91, de 15 de Novembro, a que o diploma de Macau praticamente se colou*, procurei, em função dos respectivos destinatários — os leitores desta revista que são, em primeira linha, os funcionários e agentes da Administração Pública de Macau —, evi-tar a utilização de uma linguagem excessivamente densa que tornasse a leitura maçadora. Dessa pecha, e das outras que os leitores e os meus cole-gas verificarão, desde já me penitencio. OS PRINCÍPIOS GERAIS QUE NORTEIAM A ACTIVIDA- DE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DE MACAU a) Tanto ou mais importantes do que as disposições que regulam em 1 concreto o procedimento e o processo administrativo , os princípios gerais que enformam a actividade administrativa, e que o Decreto-Lei n.° 35/94/

* Em rigor, terá sido o diploma de Portugal que se colou ao de Macau, uma vez que o projecto deste há muito que se encontrava preparado, mas a indecisão da Administração de Macau terá levado a que, pelo menos nesta matéria, o Território não tivesse sido inovador. 1 Escreveram Esteves de Oliveira, Costa Gonçalves e Pacheco de Amorim que «sendo distintas, as figuras de ‘procedimento administrativo’ e de ‘processo adminis-trativo’ andam, contudo, juntas: onde há um ‘procedimento’, há o respectivo processo documental, mesmo que esteja apenso, eventualmente, até, entranhado no de outro procedimento». Adiante, estes mesmos autores definem o procedimento como a «sucessão concatenada e ordenada de actos e formalidades (de factos e de operações), estrutural e funcionalmente distintos uns dos outros, tendendo à produção de um determinado resultado ou modificação jurídico-administrativa substancial, consubstanciada numa «decisão final», num acto, num regulamento ou contrato administrativo» e o processo como «o conjunto de documentos produzidos para dar suporte físico (documental) e jurídico aos actos praticados e às formalidades observadas no procedimen-to «(Código de Procedimento Administrativo Comentado, Vol. I, Almedina, 1993, págs. 96 e 105)» 560 /M, de 18 de Julho, expressamente consagrou, são o fio condutor do pensa-mento do legislador e elemento fundamental para o entendimento e a 2 inter-pretação das soluções adoptadas . O número e a qualidade dos princípios podem parecer excessivos, em especial, tomando em atenção a estrutura da Administração de Macau e a forma de actuar dos serviços e daqueles que constituem o seu suporte físico. Quem lida com os serviços do Território, salvo algumas honrosas ex- cepções com tendência para aumentar, vê que são geridos com uma enormíssima carga burocrática — requerimentos por tudo e por nada, nor- malmente sempre por escrito e de preferência com a assinatura reconheci- da notarialmente, inclusive para advogados em pleno exercício da profis- são, falta de capacidade de decisão e de assunção de responsabilidades nos níveis intermédios, má compreensão dos respectivos deveres funcionais por parte de alguns agentes que durante anos e anos laboram nos mesmos erros, ora por excesso de zelo ora por menosprezo daqueles, sem que com isso sejam objecto de alguma penalização, utilização de muitos impressos, alguns mesmo ultrapassados, duplicação de processos, desconhecimento de legislação, uma complicada teia de relações entre serviços quando mais do que um é chamado a intervir na formação da decisão —, prazos excessi- vos, e muitas vezes nem esses são respeitados, e dificuldade na obtenção de respostas, entre outros males menos comuns mas nem por isso menos importantes. Foi a alguns destes problemas que o diploma quis dar resposta, ino- vando, por um lado, concentrando, por outro. Os princípios que o legislador entendeu por bem consagrar concen- tram-se, fundamentalmente, nos artigos 3.° a 12.° e, na generalidade, foram há muito consagrados no direito administrativo, não constituindo novida- de.3 Começando pelo princípio da legalidade, o número l, do artigo 3.°, do Código de Procedimento Administrativo, embora adoptando uma formula-ção diferente, corresponde no essencial ao estatuído no artigo 266.°, núme-ro 2, da Constituição: «Os órgãos e agentes administrativos estão subordi-nados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da justiça e da imparcialida-de». A fórmula escolhida no texto de Macau aparenta uma restrição no

2 «É de verdadeiros princípios que se trata aqui: ou seja, de normas que não são postas para regular uma categoria de relações jurídico-administrativas em particular, mas que penetram todas elas, ficando a Administração vinculada, sempre que actua — mesmo que se trate de gestão privada ou operações materiais -, a tê-los como padrão das suas opções, dos actos e das medidas que as regras jurídicas prevêem tomadas. Desde que, é claro, essa actuação não esteja estritamente vinculada pela regra legal» (ob.cit.pág. 133). 3 «Trata-se de princípios gerais cuja existência decorre, expressa ou implicitamente, dos preceitos constitucionais (maxime, artigos 266.° e seguintes) e que respeitam à organi- zação e ao funcionamento de uma Administração Pública típica de um moderno Estado de direito» — Preâmbulo do Decreto-Lei n.° 442/91, de 15 de Novembro. 561 âmbito dos respectivos destinatários, ao evitar a referência expressa aos agentes administrativos. No entanto, essa aparência não foi, certamente, reflexo de uma deliberada vontade de afunilamento, por parte do legisla- dor, do número de entidades que servindo ou colaborando com a Adminis- tração, no desempenho das suas tarefas, estão obrigadas a respeitar na sua actuação e a conter o exercício dos poderes, que por essa via lhes advêm, dentro dos limites definidos por lei. A mera não alusão aos agentes, tal como eles são tradicionalmente entendidos e definidos, não é só por si sig- nificativa e é contrariada quer pela disposição anterior, o artigo 2.°, quer pelo Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, que regula a actividade dos agentes (vd. a este propósito o art.° 2.° do Estatuto, quanto à condição de trabalhador e a sua formulação ampla). Quanto ao primeiro, o alargamento do âmbito de aplicação às entidades concessioná-rias, à actuação da própria Administração em actos de gestão privada e a instituições particulares de interesse público, afasta qualquer outro enten-dimento. Até por um argumento de maioria de razão, uma vez que se as empresas concessionárias e os órgãos das instituições particulares, entida-des que estão por natureza situadas fora da Administração Pública, estão sujeitos à disciplina do diploma, não se compreenderia como é que outros, que actuam dentro da sua própria estrutura e contribuem para a formação da sua vontade, não estivessem subordinados ao princípio visado. Em segundo lugar, conforme resulta do já mencionado Estatuto, se bem que com excepção do disposto nos artigos 175.° e 279.°, n.° 11 daquele, não se encontram quaisquer outras referências à legalidade e, no último caso, a obediência ao princípio parece ter sido restringida ao pessoal de direcção e chefia, mercê de uma infeliz redacção. Uma outra diferença de monta entre o texto constitucional e o Có- digo de Procedimento Administrativo radica na referência que num caso é feita à Constituição e à lei e no outro à lei e ao Direito. No artigo 266.°, número 2, da CRP, entende-se a referência à Constituição. Quando o legislador de Macau fala em direito a que realidade se está a referir? Se a lei também é e não deixa de ser direito, já a expressão «direito» pode retratar uma realidade mais vasta. Engisch escreveu mesmo que sob a «ideia de Direito» «podem ser reunidas todas aquelas ideias valorativas supralegais a que o jurista pode ou deve recorrer na aplica- ção do Direito».4 Não era esta a ideia de Direito que o legislador de Macau teve em vista ao consagrar a expressão, mas talvez uma outra que engloba, na sua concepção, o respeito pelas decisões judiciais seja 5 admissível , ou uma noção ainda mais vasta, em sentido objectivo, na

4 Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 3.a edição, tradução portu guesa, pág. 321. 5 Freitas do Amaral fala de subordinação da Administração Pública ao direito e ao responder à questão «mas a que direito se subordina a Administração» afirma: «(...) existem actualmente, nos regimes democráticos, duas soluções para estas perguntas: uma é a da subordinação da Administração ao direito privado e aos tribunais judiciais (sistema Administrativo de tipo britânico, ou de administração judiciária); a 562 qual se incluem todas as fontes de direito, da Constituição ao regula- 6 mento . Creio que a interpretação do princípio deverá ser feita no sentido de, por um lado, entender a referência à lei, como lei material e formal7, e a referência ao Direito, englobando a noção objectiva anteriormente referi-da, e uma ideia de «vinculação da Administração a uma ideia justa ou jurí-dica da lei»8. O legislador não se esqueceu de referir os fins gerais para que os poderes são conferidos, por forma a que os poderes também neles se contenham e visando com isto abranger na sua ampla formulação o exercício de poderes discricionários que, como se sabe, quando excedidos só podem ser contenciosamente atacados com fundamento em desvio de poder. Por aqui, a Administração não fica autorizada a praticar qualquer acto, mas apenas «o acto que a lei lhe haja autorizado a praticar e esse é o que, no entender do órgão administrativo, melhor se adeqúe à 9 prossecução do fim da lei» . Ainda aqui existe uma subordinação à lei, não havendo por isso qual- 10 quer derrogação ao princípio . O número 2 deste artigo é um mero corolário do princípio geral, co- mum a todos os ramos de direito e consagrado no artigo 339.° do Código Civil, mediante o qual, em determinadas situações de natureza excepcio-nal, a obediência a um determinado comando legal, ou a submissão ao prin-cípio, poderia conduzir a que os eventuais prejuízos para a ordem jurídica e para os interesses em confronto fossem de tal ordem que deixasse de ser digno o respeito pelo princípio. Mas, neste caso, sempre sujeito a duas balizas: impossibilidade de obtenção do resultado desejado por outra via, sem preterição de um interesse público relevante e qualitativamente mais importante do que o preterido, e pagamento de justa indemnização a todos os que por força dessa manifestação tenham sido lesados. Só assim a noção adquire os seus contornos, pois que de outro modo a Administração poderia ser tentada a, ao abrigo do estado de necessidade, fazer da excepção a regra e, infelizmente, como todos sabemos, o pagamento da indemnização, quando corre, nem sempre é justo e suficientemente ressarcidor dos prejuízos sofridos, materiais e imateriais.

outra é a da subordinação da Administração ao Direito Administrativo e aos tribunais administrativos (sistema administrativo de tipo francês ou de administração executi- va). Em Portugal vigora de há muito o segundo, embora tenhamos já conhecido, nou- tros períodos, o primeiro». In Curso de Direito Administrativo, vol. I, pág. 120. Coim-bra, 1986. 6 Esteves de Oliveira e outros, ob. cit. pág. 140. 7 Cfr. António Francisco de Sousa, in Código de Procedimento Administra tivo Anotado, Lisboa, 1993, citando Ehrhardt Soares, págs. 56 e 57. 8 Esteves de Oliveira e outros, ob. citada, pág. 140. 9 Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, vol. I, pág. 313. 10 Ehrhardt Soares ensinou que o «princípio da legalidade é uma garantia do cidadão contra o arbítrio da Administração» — B.F.D.U.C., vol. LVII, 1981. No exercício de poderes discricionários essa vinculação aos fins é que faz a fronteira da arbitrariedade e dá sentido ao princípio. 563 Repare-se que a prática de um qualquer acto ao abrigo do regime de estado de necessidade não dispensa a respectiva fundamentação nem deve- rá ser objecto de confusão com as situações de mera urgência administrati- va. Ao contrário do que acontece no Código Civil, e é entendido por alguns autores (Esteves de Oliveira, por exemplo), a actuação da Administração não passa a ser lícita, mas apenas considerada válida, naquele caso concreto, relativamente a uma ilegalidade, anteriormente cometida, provocada pelo estado de necessidade. Qualquer outra ilegalidade que afecte o acto, como a sua falta de fundamentação, não é sanável pela simples invocação do estado de necessidade. Isto faz pressupor, digo-o com algumas reticências, um entendimento diferente daquele que tem sido tradicional. A principal consequência, e maior dúvida, é a que se refere ao campo onde se situa a responsabilidade da Administração, que é tradicionalmente colocada na responsabilidade por acto lícito. A actual formulação parece inculcar outra ideia, mas salvaguardadas as pequenas «nuances» do texto, por forma a salvá-lo dos resultados a que uma interpretação mais rigorosa poderia conduzir, dir-se-á que o princípio da legalidade, no artigo 3.°, não apresenta nada de novo quanto ao sentido e acolhimento que desde há muito lhe foi 11 dado quer na legislação portuguesa quer na legislação local anterior . b) O segundo princípio que neste diploma nos surge é o da «prosse-cução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cida-dãos». O artigo encerra não um mas dois princípios, sendo que ambos são, aparentemente, entre si contraditórios se colocados em paralelo. definiu os interesses públicos como aqueles que respeitam à exis-tência, conservação e desenvolvimento da sociedade política12. O que o artigo afirma é a primazia deste objectivo na actividade dos órgãos admi-nistrativos, o que em si não contém nenhuma novidade. Que esse objectivo seja prosseguido no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos é uma consequência. A actividade dos órgãos administrativos, quando tenha por fundamento a prossecução do interesse público como parâmetro e modelo de actuação, só pode ser exercida respeitando aqueles limites ou, então, estamos perante actos pura e simplesmente ilegais; se não for o caso de estarem verificados os pressupostos do n.° 2, do artigo 3.°, situação em que cairemos na alçada do estado de necessidade. Quanto ao interesse público, não tendo o legislador fixado o que seja essa realidade, é de alertar para o facto de ser a Administração quem decide em cada momento o que é interesse público, mas em última análise é o tribunal quem «permanece juiz dos critérios legais adoptados para a pros- 13 secução do interesse público» . c) A Constituição de 1976 consagrou, em sede dos Direitos e Deve-

11 Para mais desenvolvimentos: Vinício Ribeiro, O Estado de Direito e o Princípio da Legalidade da Administração, Coimbra Editora, 1976. 12 Manual de Direito Administrativo, vol. I, pág. 49, Almedina, Coimbra, 1982. 13 António Francisco de Sousa, ob. cit. pág. 63. Veja-se o disposto no artigo 266.° da CRP e a respectiva inserção como o primeiro dos artigos do Título IX (Administração Pública). 564 res Fundamentais, o princípio da igualdade que o Código de Contencioso Administrativo naturalmente acolheu, dando expressão ao entendimento de que o princípio constitucional vincula não só os órgãos que criam o Direito mas também aqueles que o aplicam14. Em atenção à actividade dos órgãos administrativos e aos fins que com ela se visa prosseguir, esta ver- tente do princípio é a que do ponto de vista dos administrados assume maior importância. Convém aqui recordar que «os funcionários e agentes, no exercício da função pública, estão exclusivamente ao serviço do interesse público» (cfr. artigo 279.° do Estatuto) e que a prossecução deste não justifica o desrespeito pelo princípio da igualdade, favorecendo ou prejudicando em função de critérios obscuros. E quando se mostre de todo imperioso o sa- crifício de «direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares», tal sacrifício tem por medida e limite a adequação e propor- cionalidade aos objectivos que se tem em vista prosseguir. O princípio do artigo 5.° do Código tem um reflexo muito importante na actividade administrativa, que é o de impor à Administração que paute as suas decisões pela avaliação de critérios objectivos em função das diver- sas situações que ocorrem, não procurando tirar partido da sua posição de superioridade para, a coberto da ignorância do cidadão, retirar dividendos e, em determinados casos, utilizar uma dualidade de critérios que favoreça um cidadão em detrimento de outro. É, de acordo com a minha experiência de advogado, um dos males da Administração de Macau, que nalguns ca- sos como que estratifica comportamentos e decisões de acordo com o inter- locutor e em função de critérios tão subjectivos como, por exemplo, a ami- zade. Em alguns casos mesmo como uma forma encoberta para o rece- bimento de ofertas e desenvolvimento de uma política de favores recí- 15 procos . Ao princípio da igualdade está intimamente ligada a prossecução dos objectivos de justiça e de imparcialidade a que a Administração deve su- bordinar a formação da decisão e a sua execução. Só é possível respeitar o primeiro se, ao mesmo tempo e em cada momento, a Administração e os respectivos órgãos e agentes tiverem presentes que a violação daquela acar- reta necessariamente a verificação de uma situação de injustiça. Mas como aferir no dia-a-dia da actividade administrativa se houve ou não violação dos princípios da igualdade e da justiça? O controlo é feito através da mo- tivação do acto, do conhecimento dos seus fundamentos e do controlo da sua transparência.

14 Esteves de Oliveira, Manual, pág. 323. 15 «...a diferenciação há-de ser sempre feita por (ou, quando se trata de medidas administrativas concretas, reportadas a) categorias e nunca em função de uma situação pessoal, concreta e determinada, porque então não há desigualdade, mas arbítrio, discriminação: digamos que não se pode beneficiar A, por ser A, mas por a situação económica ou a condição social em que se integra justificarem a diferenciação». Esteves de Oliveira e outros, Código ..., pág. 151. 565 A proporcionalidade, a que se reporta o n.° 2 do artigo 5.°, envolve que a decisão seja adequada à situação e ao interesse público prosseguido; necessária sob o ponto de vista da lesão dos interesses dos particulares e proporcional, entendendo esta noção como enquadrada numa relação cus- to/benefício. A violação dos princípios consagrados neste artigo 5.°, conduz-nos a situações de desigualdade e de desproporcionalidade que, por seu turno, colidem com os dois princípios seguintes da justiça e da imparcialidade. A noção de justiça é uma noção concreta e não abstracta, que se funda em «certos critérios materiais ou de valor, como, por exemplo, o da dignidade da pessoa humana, da efectividade dos direitos fundamentais, da igualdade»16. É esta noção de justiça que permite invalidar aqueles actos que «não cabendo em nenhuma das condicionantes jurídicas expressas, constituem, no entanto, uma afronta intolerável aos valores elementares da Ordem Jurídica, como a 17 boa-fé (...)» . Ligado a este está o princípio da imparcialidade, que é «indisso-ciável da ideia de justiça e vice-versa»18. Uma vez mais a sua impor-tância está 19 intimamente ligada ao exercício de poderes discricionários . O princípio da imparcialidade, cuja origem radicou na necessida-de de despolitização da Administração Pública20, é hoje entendido de uma forma mais extensa de modo a abranger não só as forças políticas mas também os próprios grupos económicos, sociais e os simples grupos de indivíduos. A decisão parcial é a que ponderando os interesses em confronto não se determina em função daqueles que a lei teve em vista, por um lado e, por outro, é a que não se determinando em função de outros interesses não resulta de uma ponderação de interesses todos eles igualmente protegidos e relevantes. A este princípio também se prendem os referidos nos artigos 7.°, 8.° e 9.°: — princípio da colaboração da justiça; — princípio da participação; e — princípio da decisão. d) Os três princípios seguintes concorrem para que a Administração dê corpo aos anteriores, correspondendo, num certo sentido, a subprincípios ou a uma concretização do da imparcialidade. Trata-se de procurar aproximar a Administração dos cidadãos, cujo conjunto é a razão de ser e o suporte de toda a actividade administrati- va. São eles e o seu bem-estar que justificam a «prossecução do interesse público», que asseguram, com os seus impostos, os meios

16 Esteves de Oliveira e outros, ob. cit. pág. 156, citando Gomes Canotilho e Vital Moreira. 17 Ainda Esteves de Oliveira, ob. cit. pág. 157. 18 Isaltino Morais, J. M. Ferreira de Almeida, Ricardo Leite Pinto, Consti- tuição Anotada, vol. I, Lisboa, 1982, pág. 504. 19 Para mais desenvolvimentos: Sérvulo Correia. Noções de Direito Admi- nistrativo, vol. I, Lisboa, 1982. 20 Esteves de Oliveira, Manual, pág. 330. 566 necessários ao desenvolvimento da actividade administrativa, contribuindo para que a Administração seja útil e financeiramente autónoma. É pois natural que numa época dominada por uma maior consciencialização da cidadania e dos correlativos direitos e deveres, marcada por uma maior transparência e lisura de comportamentos, que, por isso mesmo, mais facilmente mediatiza as práticas ilegais e corruptivas, que a Administração sinta necessidade de fazer participar, na formação das decisões, não apenas aqueles que nela são directamente interessados mas todos os outros que compõem a comunidade e quer tenham sido anteriormente afectados por decisões da Administração quer não. Note-se que o Código não atribui à Administração o exclusivo da função administrativa e, por isso mesmo, impõe aos órgãos que a integram a obrigação de assegurar a participação nessa função dos particulares. A noção de participação, contida no artigo 7.°, apresenta um carácter mais genérico do que o resultante do artigo 8.°. Embora em ambos os casos se fale de participação, no segundo visa-se a participa-ção do particular na formação da decisão em concreto, quando a Admi-nistração seja confrontada com um caso particular. Ali procura-se esti-mular, apelar ao contributo da comunidade e de cada cidadão para me-lhorar o exercício da função administrativa, assim se entendendo a prestação de informações e de esclarecimentos e o apoio à formulação de sugestões e à recepção de iniciativas no sentido dos particulares para a Administração. Noutra perspectiva, o artigo 8.°, com a epígrafe «Princípio da participação», visa mediante mecanismos adequados, como é o previsto no artigo 89.° do Código (Audiência dos interessados), garantir ao particular que possa ser directamente afectado pela decisão final que esta não será tomada sem que antes ele se pronuncie sobre a matéria em causa, transmitindo as suas ideias e pontos de vista. Esta é a regra e como tal deverá ser entendida e assimilada pelos funcionários e agentes. A não audição é a excepção e, apesar do diploma admitir que, em situações de urgência ou de não comprometimento da decisão, o mecanismo seja postergado, convém que a execução prática do diploma e a actuação da Administração não venham a revelar que a regra se tornou excepção. Para alguns autores este princípio constitui a fronteira entre uma Administração fechada, autoritária e unilateral e uma Administração 21 aberta e moderna . O artigo 7.°, no seu número 2, contempla ainda uma outra situação. Diz ele que a Administração Pública é responsável pelas informações que presta, mesmo quando não sejam obrigatórias. E não poderia ser de outro modo. Uma das maiores críticas que os particulares diri

21 Rui Mach ete citado por Esteves de Oliveira e outros, ob. cit. pág. 165.

567 gem à Administração e aos seus servidores é que, muitas vezes, lhes são dadas informações e esclarecimentos incompletos, com um sentido totalmente diferente daquele que resulta da lei, ou então, noutros ca- sos, por enfado e ignorância elas não são prestadas ou, quando o são, isso acontece «tarde e a más horas». Quantos de nós não fomos já con- frontados ou não tivemos já conhecimento de pessoas que se deslocam aos serviços públicos com um requerimento ao qual não é dada entrada por não estar convenientemente instruído e lhes é dito que faltam os documentos x e y e depois, quando regressam acompanhadas desses documentos, ou passou também a faltar o documento v ou o documento x, cuja obtenção foi difícil e dispendiosa, deixou de ser preciso, ou nunca o foi, tendo a informação sido mal dada desde o início, etc.... Quantas vezes essas pequenas informações são negligenciadas e com isso se transforma numa autêntica via-sacra a tarefa do contribuinte? Acredito que as intenções do legislador do Código sejam as me- lhores, só que a concretização dessa vertente responsabilizadora de-penderá da maior ou menor capacidade da Administração para fazer interiorizar pelos seus colaboradores o princípio postulado. Sabendo qual a imagem que, infelizmente, os nossos tribunais têm junto da co- munidade — refiro-me à sua morosidade —, e os custos que acarreta o recurso à via judicial para resolução de qualquer problema, certamente que o legislador não pensou em tornar exequível esse princípio, contando para tanto com o beneplácito dos particulares, em todos os casos em que os esclarecimentos dados sejam insuficientes, omissos ou pouco rigorosos. A ideia que subjaz ao preceito é a de que a Administração responde civilmente pelas informações erróneas prestadas aos particulares, mesmo que não estivesse obrigada a prestá-los e havendo prejuízos, constitui-se na obrigação de indemnizar os particulares, independente-mente do direito de regresso que venha a exercer contra os seus funcio-nários e agentes. Esteves de Oliveira considera que, para a responsabi-lização da Administração, se mostra necessário um outro requisito: que o órgão a quem a informação foi pedida e a venha a prestar tenha com-petência específica para o efeito22. Se a não tiver, a Administração não será responsabilizada. Permito-me discordar, salvo o devido respeito, porque nesse caso o órgão dever-se-á escusar a prestar a informação e o particular deverá ser encaminhado para o órgão competente. A experiência recente indica que as chefias deverão esclarecer convenientemente os funcionários quanto a este ponto, evitando que a coberto da ignorância do particular e com o argumento de que não se trata do órgão competente se evite dar a informação necessária, facilitando por essa via um certo laxismo da função e no cidadão se enraíze ainda mais um sentimento generalizado de inutilidade do órgão, e da Administra-

22 Esteves de Oliveira e outros, ob. cit. pág. 163 568 cão no seu todo, quando solicitada a dar uma resposta àqueles que a ela recorrem. Enquanto estas mudanças não se tornarem efectivas, a Ad- ministração Pública continuará a ser olhada como uma entidade dis- pendiosa, burocratizada e pouco responsável, que não decide quando deve decidir nem presta as informações que deve prestar. Já era tempo de alterar esta imagem e parece que, finalmente, a Administração Pública de Macau acordou para essa realidade, se bem que me pareça difícil conceber como será possível mudar mentalidades de décadas, quando ainda hoje há serviços da Administração que ao darem entrada a um requerimento, pedindo uma qualquer certidão, ofe-recem como recibo um talão no qual se pode ler que decorridos vinte dias o requerente poderá contactar os serviços para saber do andamen-to do seu pedido, acabando em média por passarem a certidão ao fim de um mês, quando é certo que o prazo legal de passagem de certidões é de dez dias pelo menos desde 1985! Isto para já não falar em algumas chefias perfeitamente esclerosadas, que confundem exercício de direitos com ataque pessoal, ficando agastados quando, após sucessivas diligências pessoais e telefónicas, o particular injustiçado recorre a uma folha de papel, ou a um advogado pedindo ajuda, e se dirige a quem de direito para a resolução do problema que há um ror de anos se arrasta de secretária em secretária, de gabinete em gabinete, sem que ninguém responsável seja capaz de tomar uma decisão. O artigo 9.° encerra o chamado dever de pronúncia ou de resposta da Administração sobre os assuntos da sua competência que lhe sejam colocados. É a contrapartida do disposto no artigo 29.° do Código, pelo qual a competência é irrenunciável e inalienável, salvos os casos parti-culares de estarmos face a uma delegação de poderes ou perante a figu-ra da substituição. Em Portugal, distinguiu-se o dever de pronúncia do dever de deci-são. Nem sempre deverá ser assim e em Macau não deverá ser seguramente. E isto porque ao contrário do que aconteceu com o Código de Procedimento Administrativo de Portugal, aquele que em Macau vigora «esqueceu-se» de consagrar uma norma que expressamente previsse o deferimento tácito «quanto a prática de um acto administrativo ou o exercício de um direito por um particular dependam de aprovação ou autorização de um órgão administrativo», a não ser que da lei resultasse o contrário e a decisão não fosse proferida dentro do prazo previsto por lei (cfr. artigo 108.° do Código de Portugal). Na minha modestíssima opinião, trata-se de uma lacuna grave no ordenamento de Macau, como que voluntariamente prevista para desculpar a Administração perante casos concretos. Quero com isto dizer que se a Administração não decidir também não é penalizada. Penalizado será sempre o cidadão, que vê os p r a z o s e s g o t a r e m - s e e os processos circularem entre membros do Governo e entre estes e os serviços, sujeitos a uma miríade de pareceres por parte, muitas vezes , de técnicos pouco conhecedores do problema , não se vislumbrando sequer a que título são c h a m a - 569 dos a pronunciarem-se, sem que solução se vislumbre, confiando no esquecimento e no desespero do particular até que um dia alguém «res- ponsável» mande arquivar o processo dando-o como findo. O princípio do n.° l, do artigo 9.°, perdeu muita da sua razão de ser sem a consagra- ção de norma de conteúdo idêntico à do diploma de Portugal, que con- sagrasse o deferimento tácito. Tendo presentes as críticas que foram feitas ao texto do CPA português23, é perfeitamente incompreensível que o legislador de Macau tenha optado por uma solução tão pouco consentânea com os objectivos de modernização da Administração, premiando, desta forma, a inércia pública e notória, ou se quiserem a excessiva lentidão e desorganização, de alguns serviços vitais do Terri- tório. Não é necessário referir quais, bastando para tal atentarmos nas situações que caem na previsão do artigo 108.°: licenciamento de obras particulares, alvarás de loteamento, autorizações de trabalho concedi- das a estrangeiros, autorizações de investimento estrangeiro, autoriza- ção para laboração contínua, autorização de trabalho por turnos, acumu- lação de funções públicas e privadas. Por último, conforme me foi também já referido por um ilustre colega, atente-se na flagrante contradição existente entre o disposto nos artigos 58.°, n.° l e 96.°, n.° 2. O primeiro diz que o procedimento

23 Leiam-se, a título de exemplo, os dois pequenos trechos que, com a devi-da vénia se transcrevem, de António Francisco de Sousa, em anotação ao artigo 108.° do CPA e de Esteves de Oliveira, sobre o mesmo artigo: a) «Sem deixar de reconhecer que o n.° l do artigo 108.° CPA já representa um significativo passo no sentido do aperfeiçoamento do nosso Estado de direito, entendemos que a solução encontrada continua a não satisfazer. Sendo a Adminis- tração portuguesa tradicionalmente pouco dinâmica, o que resulta sempre em des- vantagem sobretudo para o particular, seria bom que a presunção geral fosse in- vertida, resultando da inacção o deferimento e não o indeferimento tácito. Por outro lado, o prazo para a formação do acto tácito deveria ser reduzido para 30 dias. Também aqui se deve, uma vez mais, lembrar que toda a burocratização desnecessária viola os direitos dos particulares», pág. 202; b) «E se é verdade que a primeira ideia que se retém, numa leitura superfici- al dos artigos 108.° e 266.° é a de que a legislador, motivado por razões de políti ca legislativa— inspiradas pela moderna doutrina administrativa, no sentido de privilegiar a protecção da esfera de interesses dos particulares face à Administra ção Pública — se terá preocupado em inverter o jogo das presunções nos actos silentes, aparecendo a proclamar solenemente no n.° l, do artigo 266.° o princípio do deferimento tácito como figura geral, não é menos certo que, depois, num se gundo momento, como que intimidado com as consequências práticas que tal inversão acarretaria para a actividade administrativa, terá dado um passo atrás, instituindo um elenco (ao que parece) taxativo de indeferimentos tácitos no n.° 3 do mesmo artigo, e voltando a consagrar a regra do indeferimento tácito no artigo 109.° — antecedendo este, ainda por cima, da ressalva que é própria das regras que consagram normas gerais por referência a especiais («sem prejuízo do dis- posto no artigo anterior») num arrojado malabarismo sintáctico (se não mesmo lógico)», pág. 552. 570 deve ser concluído no prazo de 90 dias e o segundo que há indeferimento tácito ao fim de 60 dias. Nos termos da alínea a) do n.° 3, do artigo 96.°, é inequívoco que a Administração tem de se pronunciar antes do termo dos 60 dias, sendo de todo ininteligível a razão de ser do n.° 3, alínea b) do mesmo artigo. Além do mais, teria sido bom que o legislador tivesse uniformizado a terminologia, o que também não fez e importa corrigir rapidamente. e) O artigo 10.°, com a epígrafe «Princípio da Desburocratização e da Eficiência» corresponde em parte à matéria contemplada no artigo 267.° da CRP, dirigindo-se primacialmente à própria Administração, a todos aqueles que nela laboram e aos responsáveis pela sua estrutura- ção legal, legislador incluído. Visa pois um desiderato diferente, dentro do procedimento administrativo, entendido este, como inicialmente foi referido, como uma sucessão de actos e formalidades que precedem a formação e manifestação de vontade da Administração ou a sua exe- cução. A Administração procura e orienta-se para a prossecução do inte- resse público, respeitando e conformando-se com os direitos e interes- ses legalmente protegidos pelos cidadãos, mas essa função será exerci- da tendo em atenção três vectores essenciais: 1.° — Celeridade: o procedimento administrativo orienta-se para a formação da decisão ou para a sua execução. Se importa tomar uma decisão para realização do interesse público, ou executá-la, então é natural que isso seja realizado expeditamente e sem delongas escusadas. O órgão ou o funcionário libertam-se mais facilmente para outras tarefas e o cidadão tem a certeza que o assunto não foi esquecido. A decisão poderá não ser a melhor, ou a que era esperada pelo interessado, mas foi expedita e se houver que corrigi-la também isso far-se-á sem demora. Celeridade significa não passar as certidões que o parti-cular requereu sempre no último dia do prazo legal, ou esperar que este se esgote para dar cumprimento ao mecanismo legal ou ainda dizer que não obstante estar esgotado o prazo legal que a certidão já foi passada «só faltando o chefe assinar», o que em regra também demora vários dias e frequentemente nem sequer é preciso. Um dos corolários deste imperativo, a que à Administração convirá ater-se, é o artigo 57.° que tem por epígrafe «Dever de Celeridade». Também com significado quanto a esta matéria vejam-se os artigos 60.° a 64.° e, em particular, o artigo 62.° 2.° — Economia: a máquina administrativa é pesada, custa muito dinheiro aos contribuintes, que somos todos nós. Quanto mais comple- xo e burocratizado for o processamento, mais oneroso se torna. É ne- cessário que os funcionários, e em especial as chefias, tenham consci- ência disso e que neles seja incutido esse espírito. Sabendo que muitos dos serviços que a Administração presta têm um carácter eminente- mente social, cujo custo final é quase sempre superior à receita arreca- dada, isto significa que a incorporação de um maior número de entra-

571 ves e de trâmites dispensáveis, ao longo do procedimento encarece-o e esse custo adicional acaba por ser, uma vez mais, suportado pelos contribuintes. E quanto mais dispendiosa for a actividade da Administração — processualmente falando em termos humanos e financeiros —, menos haverá para distribuir e investir em áreas mais úteis e carencia-das da comunidade. 3.° — Eficiência: uma Administração eficiente é a que no menor espaço de tempo e com a menor mobilização de recursos realiza os seus objectivos. A realização de objectivos em termos eficientes mede-se em função de níveis qualitativos e quantitativos — aleatórios, é certo, mas sempre sujeitos a um juízo por parte da comunidade — de acordo com as metas que no início do procedimento foram fixadas, ou que já resultavam de textos legais. Não importa ter uma Administração célere e económica se os seus fins não são de todo alcançados, ou sendo-o, são-no imperfeitamente. Do mesmo modo que a realização dos objectivos por custo muito elevado, exigindo para tal a manutenção de uma estrutura altamente burocratizada, não é viável, sendo nessa conformidade ineficiente. f) O artigo 11.° do Código consagrou a gratuitidade como regra do procedimento administrativo. É natural que assim seja, pois são os impostos dos contribuintes que mantêm o funcionamento da Adminis tração. A excepção diz respeito às taxas que por lei especial sejam pre vistas. Essas taxas são as que decorrem da instauração, ou da execução, do procedimento administrativo, correspondendo, normalmente, à con trapartida de um serviço prestado em concreto a um particular, como seja o caso da emissão de uma licença, de um certificado, de quaisquer outros documentos, da realização de vistorias, da emissão de fotocópi as de documentos arquivados, etc. g) O princípio do acesso à justiça não é um princípio de procedi mento administrativo, mesmo quando reportado exclusivamente ao aces so à justiça administrativa. O acesso à justiça, administrativa ou qual quer outra, já decorre de um vasto elenco de diplomas e de normas que integram o ordenamento jurídico de Macau, sem que seja necessário entrar na polémica de saber se a Constituição Portuguesa tem ou não aplicação neste Território. Entendo que sim, e muito mais, quando es tão em causa questões tão essenciais como esta, que são desde há sé culos24 consideradas como um dos bastiões das sociedades modernas e índice de desenvolvimento de qualquer comunidade. A inclusão deste artigo 12.° não acrescenta nada ao procedimento administrativo e do

24 «Na verdade aderindo a Revolução Francesa à concepção do Estado de Direito e proclamando o princípio da separação dos poderes do Estado, logo se sentiu a necessidade de se resolverem os litígios que, eventual mas necessaria- mente, viessem a surgir entre a Administração e os particulares» — in Direito Processual Administrativo Contencioso, Ferreira Pinto, Guilherme da Fonseca, Elcla Editora, 1991, pág. 30. 572 ponto de vista estrito do Código era preferível que nele não estivesse. Que qualquer particular pode obter a fiscalização contenciosa dos ac- tos da administração não constitui novidade. Pode ser, no entanto, que atenta a juventude do Código e as suas características globais, essa dis- posição possa ter um efeito dissuasório, o que a avaliar pela experiência passada pessoalmente não acredito. A experiência diz-nos que muitas vezes a Administração, ou o órgão titular em determinado momento da competência para a prática do acto administrativo, ou para a sua revogação, por mera teimosia — má formação e irresponsabilidade dos titulares do órgão, digo eu —, preferem obrigar o particular a recorrer contenciosamente do que a corrigirem situações, quantas vezes de ile- galidade manifesta, ocorridas no decurso do procedimento administra- tivo, em alguns casos com claro espírito de «vendetta», nomeadamente, em relação aos próprios servidores da Administração, o que sendo altamente reprovável sob um ponto de vista ético ou moral, também não abona em nada para a saúde da instituição, para o bem-estar dos cidadãos e, em última linha, para o interesse público. CONCLUSÃO O novo Código de Procedimento Administrativo, com todos os seus defeitos e virtualidades, que a ligeireza do texto, por razões já expostas, não permite desenvolver (nem é coadunável com as caracte- rísticas dos leitores a que é dirigido, julgo eu, nem da revista a que se destina), pode vir a revelar-se um documento fundamental para a mo- dernização da Administração Pública de Macau, funcionando para esta como um verdadeiro manual da sua actividade quotidiana, e uma «arma» dos administrados se correctamente apreendido e utilizado. A vertente procedimental não esgota o seu interesse. Bem pelo contrário, é o acer- vo de princípios que nele se contém e o seu carácter inovatório que o torna importante. Urge agora divulgá-lo, junto dos serviços e da população, para que não se torne rapidamente em letra-morta, não hesitando introduzir-Ihe as modificações que a prática imponha, evitando, por essa via, o esclerosamento precoce do texto, à semelhança do que é típico aconte-cer, por comodismo, com aqueles funcionários da Administração que ao atingirem lugares de topo rapidamente reduzem o seu mundo a uma redoma de vidro, dentro da qual olvidam a sua condição anterior e os problemas dos administrados, que um dia também eles voltarão a ser.

573 574 medicina legal

575 576 Administração, n.° 29, vol. VIII, 1995-3.°, 577-586

CONCEITOS E ORGANIZAÇÃO DA MEDICINA LEGAL

J. A. Baptista Pereira *

Definitivamente temos que ultrapassar conceitos retrógados e errados no que diz respeito à Medicina Legal. A Medicina Legal é uma especialidade médica de carácter eminentemente informativo, como referia Gérard Mémeteau, com imenso e inegável interesse social. A Medicina Legal não é a medicinados mortos. Pelo contrário, são muitos mais os exames que se efectuam nos vivos e para os vivos do que aqueles em que se intervém no cadáver ou não vivo. Aliás a proporção é aproximadamente de l0/1, a favor dos primeiros, nos exames efectuados anualmente no território de Macau. Desde o princípio do século que o conceito de Medicina Legal se alargou, não se referindo unicamente à aplicação dos conhecimentos médicos, próprios da profissão médica ou medicina legal restrita, mas antes abrangendo os vastos conhecimentos de outras ciências (toxicologia, criminalística, psicologia, antropologia, etc.) construindo uma noção de medicina legal ampla. Poderemos definir a Medicina Legal como «a aplicação de conhecimentos biomédicos e de outros conhecimentos científicos às questões de Direito». Assim é ensinado na Escola Médico Legal do Porto (IMLP), uma das mais antigas e prestigiadas da Europa, com permanente tradição do ensino básico e pós-graduado da Medicina Legal, como atestam os nomes dos seus distintos professores e sucessivos directores de renome internacional, Francisco Coimbra, Carlos Lopes e J. Pinto da Costa. Outros nomes têm engrandecido a nossa cultura médico-legal como os de Almeida Ribeiro, Duarte Santos e mais recentemente os de Lesseps Reys e Oliveira Sá. Todos têm contribuído com o seu trabalho de investigação e pesquisa, para encontrar as melhores definições e critérios para os conceitos médicos, médico-legais e científicos a aplicar

* Assistente de Clínica Geral e perito médico-legal dos Serviços de Saúde de Macau. Formador da Escola de Polícia Judiciária e da Faculdade de Direito da Universidade de Macau. 577 às questões do Direito Português. Tem sido também obra sua, a estrutu- ração orgânica e legislativa da Medicina Legal em Portugal. A última revisão, publicada no Decreto-Lei n.° 387-C de 29 de Dezembro de 1987, completada em 2 de Novembro de 1991 com o Decreto-Lei n.° 431, é um bom exemplo, pois reflecte toda a filosofia e estratégia que os alunos do Instituto de Medicina Legal do Porto, ouviram durante vários anos ser defendido pelo seu responsável, Professor Doutor J. Pinto da Costa. A Medicina Legal portuguesa teve, assim como o Direito a que se encontra inevitavelmente ligada, uma influência latina e francófona. A sua organização e os conceitos que vem utilizando, reflectem sem dúvida os tratados desta origem. Antes do «Manual de Perícias Médico-Legais», publicado em 1942 pelo Professor Doutor Carlos Lopes, o livro usado como guia na escola do Porto era o tratado de Medicina Legal, em dois volumes de Thoinot, da escola francesa de Paris. Também os nomes de eminentes cientistas franceses como Lacassagne, Paltauf, Icard, Vibert, entre muitos outros, são ainda utilizados por nós na terminologia médico-legal e na descrição de técnicas ou sinais, tanto no exame do vivo como do cadáver. Só muito recentemente, nomes anglo-saxónicos começaram a ser conhecidos e a ser referidos na terminologia médico-legal, tais como Bernard Knight, Keith Simpson ou Johannes Kylstra, através dos seus testemunhos e escritos.

GRANDES DIVISÕES DA MEDICINA LEGAL De acordo com Lesseps Reys, devem considerar-se no âmbito da actividade da Medicina Legal, três grandes divisões: 1. Medicina Legal Judiciária ou Forense; 2. Medicina Legal Social; 3. Direito Médico e Jurisprudência Médica.

1. Medicina Legal Judiciária — Na Medicina Legal Judiciária, os médicos são solicitados pelas instituições judiciárias para darem pareceres e efectuarem exames ou perícias médico-legais, nos termos da lei. A Medicina Legal Judiciária é uma ciência auxiliar da Justiça e é exercida por médicos. 2. Medicina Legal Social — também exercida por médicos, no âmbito dos Serviços de Saúde, tem como objectivo a verificação dos critérios médicos relativos às normas ou regulamentos que atribuem subsídios ou benefícios sociais na maternidade, doença, invalidez, velhice, pensões sociais, acidentes de trabalho, doenças profissionais, etc. 3. Direito Médico e Jurisprudência Médica — é uma actividade do âmbito do Direito que se dedica à elaboração das normas legais relativas ao exercício da Medicina. Os médicos e, em particular a Medicina Legal, podem intervir por solicitação dos juristas ou dos tribunais, com carácter consultivo ou pericial, tanto na elaboração das normas como na avaliação das infracções.

578 ORGANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS MÉDICO-LEGAIS Embora qualquer médico possa ser requisitado para efectuar uma perícia médico-legal, no âmbito dos seus conhecimentos profissionais, cada vez mais os tribunais recorrem a médicos com formação comple- mentar na especialidade de Medicina Legal. Para além da particularida- de de a profissão médica se encontrar subdividida em múltiplas sub e super especializações, a aplicação dos conhecimentos médicos às ques-tões de Direito (medicina legal restrita), tem particularidades que exigem alguns conhecimentos básicos de Direito e treino na construção dos pareceres, cuja ignorância pode levar a induzir em erro os Juristas e criar situações de injustiça social por deficiente ou incompleta informação dos tribunais. Estes conhecimentos e nuances técnicas, para além de conheci- mentos de outras ciências complementares, não médicas (polícia cien- tífica, antropologia, toxicologia, criminalística, direito penal, etc.), fazem parte do currículo do Curso Superior de Medicina Legal, minis-trado nos Institutos de Medicina Legal (Decreto-Lei n.° 5 023 de 29 de Novembro de 1918). Durante muitos anos (pelo menos até ao início da década de oitenta), unicamente o Instituto de Medicina Legal do Porto teve esse curso em funcionamento, o que levou à falta de profissionais com formação complementar adequada e à necessidade de adaptação das leis de forma a que as perícias pudessem formalmente ser executadas por qualquer profissional médico, mesmo não habilitado com formação complementar superior em Medicina Legal (Decreto-Lei n.° 5 654 de 10 de Maio de 1919 e o Decreto-Lei n.° 42 216 de 15 de Abril de 1959). Em 1987, com o Decreto-Lei n.° 387-C de 29 de Dezembro, é instituída novamente a necessidade dos peritos médico-legais junto dos tribunais de comarca estarem habilitados com o Curso Superior de Medicina Legal.

SISTEMA EM VIGOR EM PORTUGAL Em Portugal, a organização dos serviços de Medicina Legal Judi- ciária é constituída por: 1. Órgão de coordenação e planificação; 2. Órgãos consultivos; 3. Órgãos operativos. l. Órgão de coordenação e planificação — o órgão que possui estas funções e que é o órgão máximo da estrutura organizacional da Medicina Legal em Portugal é o Conselho Superior de Medicina Legal. Constituído pelos directores dos três Institutos de Medicina Legal e por representantes do Procurador-Geral da República (MP), do Director-Geral da Polícia Judiciária, do Conselho Superior da Magistratura e do Ministério da Justiça, tem várias competências como por exemplo: a) Coordenar a actividade dos Institutos de Medicina Legal, dos gabinetes médico-legais e dos peritos médicos; 579 b) Aprovar a planificação anual das acções de formação; c)Autorizar e coordenar a colaboração pedagógica e científica, entre os Institutos de Medicina Legal e as Universidades; d)Emitir parecer sobre as reformas ou alterações a efectuar no sistema médico-legal; e)Propor ao Ministério da Justiça a actualização dos preços dos exames médico-legais. 2. Órgãos consultivos— são os Conselhos Médico-Legais, que funcionam junto de cada um dos Institutos de Medicina Legal, presidi dos pelos seus respectivos directores e constituídos pelos professores universitários das Faculdades de Medicina (Medicina Legal, Clínica Médica, Clínica Cirúrgica, Anatomia Patológica, Patologia Geral, Higi ene e Medicina Social, Psiquiatria, Neurologia, Ortopedia, Obstetrícia e Ginecologia) e da Faculdade de Direito (Direito Penal ou Direito Processual Penal). A sua competência divide-se principalmente entre: — Dar parecer de índole técnico científico às questões que sejam colocadas pelo Ministério Público, os Magistrados ou o Ministério da Justiça; — Orientar em termos pedagógicos os cursos de formação pós- -graduada em Medicina Legal, nomeadamente os destinados a médicos e juristas.

3. Órgãos operativos—são órgãos operativos do sistema médi- co-legal português: a) Institutos de Medicina Legal, dependentes do Ministério da Justiça, nas três grandes cidades do Porto, Coimbra e Lisboa, onde existem e possuem serviços apetrechados para apoiar em toda a extensão da Medicina Legal em sentido amplo (clínica, necropsia, laboratórios de patologia e toxicologia, exames complementares variados, documenta ção, etc.); b) Gabinetes Médico-Legais, que podem ser criados junto dos Tribunais de Círculo, onde exercerão médicos especialistas (médicos- -legistas) que apoiarão os peritos médicos e executarão também exames periciais, em regime permanente e também no âmbito do Ministério da Justiça. c) Peritos-Médicos, contratados à tarefa pelo Ministério da Justi ça, habilitados com o Curso Superior de Medicina Legal e que apenas executam exames de clínica médico-legal e de necropsia, junto dos tribunais de comarca.

SISTEMA REGULAMENTADO PARA MACAU Em Macau a situação é um pouco diferente. Nos grandes códigos (Penal, de Processo Penal, Civil e de Processo Civil), em vigor no território de Macau, são muitas as situações e muitos os artigos em que é necessária, ou achada conveniente, a intervenção da perícia médico- 580 -legal. No entanto, aqueles estão desactualizados em relação à actual organização médico-legal portuguesa e o sistema jurídico de Macau ainda não é totalmente autónomo. A não existência dos órgãos menci- onados nos códigos ou a alteração das suas competências, criam algu- mas situações embaraçosas que os tribunais vão resolvendo pontual- mente, para que a acção da justiça não seja prejudicada, mas que não estão regulamentadas ou definitivamente normalizadas. Por exemplo, no artigo 200.° do Código de Processo Penal de 1931, é referida a necessidade de revisão, pelo Conselho Médico-Legal, dos relatórios de todos os «exames médico-forenses relativos a processos por infracções a que corresponda pena maior». Hoje, esta competência já não é atribuída ao Conselho Médico-Legal, na organização médico-legal portuguesa e o novo Código de Processo Penal Português prevê em sua substituição a repetição das perícias sempre que os primeiros exames tenham suscitado dúvidas. Até ao início de 1994, não havia no território de Macau, qualquer regulamentação relativa ao estatuto, dependência e remuneração dos médicos legistas ou dos peritos médicos. Seguindo a tradição processual, os exames médico-legais eram solicitados ao director do hospital público e executados pelos seus médicos indiferentemente. A Lei Orgânica da Direcção dos Serviços de Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 7/86/M, de l de Fevereiro (Boletim Oficial n.° 5), criou o «Serviço de Medicina Legal» como unidade técnica do Hospital Central Conde de S. Januário, sendo sua competência: «realizar as peritagens médico-legais que por lei incumbem ao hospital ou que lhe sejam requisitadas pelas autoridades competentes nomeadamente a remoção, conservação e exame necrópsico de cadáveres ou restos mortais encontrados fora do domicílio ou dentro do domicílio, desde que exista suspeita de crime ou desconhecimento da causa de morte». Embora revogada esta legislação pelos Decretos-Leis n.os 78/90/M e 79/90/M de 26 de Dezembro e, todos estes, pelo Decreto-Lei n.° 29/92/ /M de 8 de Junho, com a criação dos Serviços de Saúde de Macau (SSM), o Serviço de Medicina Legal manteve-se com as mesmas competências e prerrogativas. Neste último documento ficou consignado que compete aos Serviços de Saúde de Macau (SSM) a responsabilidade de «prestar serviços médico-legais» (n.° 2 do artigo 3.°), tendo sido mantido o «Serviço de Medicina Legal», no âmbito dos Serviços de Apoio Médico (n.° 4 do artigo 25.°). No entanto, no quadro dos recursos humanos dos SSM, não existe qualquer lugar de médico-legista, como a criação de um serviço com aquela responsabilidade poderia fazer prever. Desde 1985 e até 1991, os exames médico-legais foram executados por um perito médico, habilitado com o Curso Superior de Medicina Legal do IML do Porto. Este médico exercia estas funções em «part-time» e era ajudado episodicamente por outro médico dos Serviços de Saúde, sem qualquer formação complementar, escolhido pelo responsável do hospital. A partir de Janeiro de 1992, passaram a ser dois os peritos médicos, habilitados com o Curso Superior de Medicina Legal

581 do Instituto de Medicina Legal do Porto, que dividem entre si todas as tarefas relativas aos exames e perícias médico-legais executadas no território de Macau. Estes dois médicos, cumprem esta função, em complemento de outras actividades de que estão incumbidos no seio dos SSM, não tendo havido necessidade de criar lugares permanentes, no quadro do referido Serviço de Medicina Legal. Os exames de psiquiatria forense e alguns dos exames de sexologia forense são solicitados pelos tribunais, directamente aos serviços da-quelas especialidades. Frequentemente, os mesmos tribunais solicitam parecer ou esclarecimentos aos peritos do Serviço de Medicina Legal, sobre o conteúdo dos relatórios resultantes daqueles exames. Finalmente, em 31 de Janeiro de 1994 foram publicados o Decreto- -Lei n.° 9/94/M e a Portaria n.° 12/94/M que «na ausência de dispositi- vos legais, para além das referências constantes do Código de Processo Penal», regulamentam a prática médico-forense no território de Macau. Conforme explica o legislador, na introdução do projecto de diploma sobre exames médico-legais, para a sua elaboração foram consideradas: a) As referências da legislação portuguesa sobre a matéria, nome adamente o Decreto-Lei n.° 387-C/87 de 29 de Dezembro, o Decreto-Lei n.° 431/91 de 2 de Novembro e a Portaria n.° 71/93 de 19 de Janeiro; b) O articulado dos grandes códigos em uso e as alterações previ síveis, a introduzir com os novos códigos a aprovar em breve no Território; c) A legislação da RPC, nomeadamente o seu Código de Processo Penal que nos artigos 71.° a 78.° refere a possibilidade de exames médicos legais e as referências existentes no Criminal Procedure Law of China; d) Os pareceres das autoridades judiciárias, nomeadamente a opi- nião preciosa do senhor Procurador da República; e) A opinião e contributo documental prestado pelos dois peritos médicos em exercício no território de Macau. Aqueles dois documentos, assim criados e publicados no início de 1994, estabelecem genericamente que: a) Os serviços médico-legais são desempenhados por peritos mé dicos (artigo 1.°); b) Os peritos médicos dependem jurídico-funcionalmente dos Serviços de Saúde de Macau (SSM) e exercem as suas funções em regime de acumulação com outras responsabilidades ou não, conforme decisão dos SSM (artigo 11.°); c) A fixação do número de peritos e a sua nomeação anual são da competência do Governador de Macau, mediante proposta do director dos Serviços de Justiça, de entre os nomes indicados pelos SSM (artigo 10.°); 582 d) Os peritos médicos, em regime de acumulação, assim nomea- dos, têm direito a uma remuneração complementar mensal e fixa, correspondente ao valor do índice 100 da tabela indiciaria dos venci- mentos da função pública, que em 1994 era de 4 100 patacas ou cerca de 80 000 escudos, paga pelos Serviços de Justiça (artigos 14.° e 16.°); e) Os serviços médico-legais são prestados nas instalações dos SSM ou das instituições que requeiram aqueles serviços, competindo a estas, a dotação dos meios necessários para que sejam efectuados (artigo 15.°); f) São ainda regulamentadas outras disposições, relativas à obrigatoriedade de sujeição aos exames, verificação do óbito exclusiva dos médicos, procedimentos perante a morte não natural ou desconhe- cida, indicações para a execução, autorização e dispensa da autópsia médico-legal, exames médico-legais de outras especialidades, a neces- sidade da presença do perito médico no local em que é encontrado um cadáver, sempre que há dúvidas no diagnóstico diferencial entre suicí- dio, homicídio, acidente ou morte natural, etc., que vêm preencher uma lacuna até aí existente e modernizar alguns conceitos e procedimentos. Outra legislação avulsa e com implicação na actividade da Medi- cina Legal em Macau: a) Decreto-Lei n.° 45 108/63 do Boletim Oficial de 31 de Agosto de 1963 — «Nos processos por crimes de ofensas corporais, cuja instrução tenha já excedido o prazo legal em consequência da realização de sucessivos exames directos devem passar à fase acusatória, se for caso disso, logo que os peritos médicos possam determinar os efeitos prováveis das lesões examinadas, embora estas não estejam ainda clinicamente curadas, se a qualificação jurídica do facto criminoso se mantiver inalterável»; b) Decreto-Lei n.° 605/75 do Boletim Oficial de 19 de Novembro de 1977— faz alterações ao Código de Processo Penal e no que diz respeito ao Inquérito Policial, determina que as «autópsias e os exames que possam ofender o pudor das pessoas examinadas dependem de prévia autorização do Ministério Público»; c) Decreto-Lei n.° 6/85/M de 9 de Fevereiro — actualização das listas para a classificação e codificação das doenças e causas de morte a utilizar no Território; d) Decreto-Lei n.° 7/85/M e Decreto-Lei n.° 47/85/M de 9 de Fevereiro — definem os conceitos e as regras processuais de «remoção, trasladação, cremação e enterramento de restos mortais»; e) Portaria n.° 21/85/M de 9 de Fevereiro — aprova os modelos de certificados de óbito a utilizar em Macau; f) Decreto-Lei n.° 78/85/M de 10 de Agosto — legislação sobre doenças profissionais e acidentes de trabalho.

583 ACTIVIDADES DA MEDICINA LEGAL Entre as actividades de que a Medicina Legal se ocupa, destaca-se a tanatologia ou patologia forense, como modernamente se intitula, segundo uma terminologia de raiz anglo-saxónica. Neste campo se incluem as autópsias médico-legais e as questões relacionadas com a datação da morte (cronotanatognose), a verificação da morte, os fenómenos cadavéricos e mecanismos da morte, a inumação e exumação, o diagnóstico diferencial entre a morte por acidente, homicídio ou suicídio e entre os acidentes, qual a sua natureza. Os exames de clínica médico-legal, que ocupam em número de perícias o lugar cimeiro, incluem as que são realizadas no decorrer de crimes de ofensas corporais, de traumatologia por acidentes de viação, domésticos ou de trabalho e doenças profissionais. Os exames de sexologia forense estão habitualmente relacionados com crimes de violação, atentado ao pudor, aborto, gravidez ou parto simulados. São particularmente difíceis de resolver e frequentemente solicitados, à luz do Código Penal de 1886, ainda em uso no território de Macau, os quesitos sobre a definição de virgindade e a data ou determi- nação temporal do momento do acto sexual ou ainda se este se acompa- nhou de violência ou contra a vontade da queixosa. O rigor da objecti- vidade dos pareceres que o perito médico deve procurar, nem sempre satisfaz o jurista, mas é algo com que nos temos que habituar a conviver ou correremos o risco de ceder à tentação de dar pareceres menos precisos, quase «por encomenda», que afectam, esses sim, o rigor da justiça. Os exames de psiquiatria forense são habitualmente efectuados por médicos especialistas em psiquiatria, mais conhecedores da proble- mática do diagnóstico, classificação e especificidade de abordagem destas situações nosológicas. Não deixa de ser uma tarefa da Medicina Legal e nos Institutos de Medicina Legal nem sempre é exercida por médicos psiquiatras ou, se o é, estes têm preparação complementar em medicina legal, o que só é vantajoso. Nas comarcas em que não existem médicos com aquela especialidade, estes exames têm que ser efectuados simultaneamente por dois peritos médicos, assim como os exames de sexologia forense. Nestes últimos é legal que um dos médicos, seja substituído por uma enfermeira, o que muitas vezes até é útil dado que é uma presença feminina que facilita a colaboração da examinada. A toxicologia forense prende-se com a problemática dos venenos, análise dos seus efeitos e classificação de forma a dar indicações seguras para os juristas poderem enquadrar na tipificação dos respectivos crimes de envenenamento ou de administração de substâncias que podem prejudicar a saúde sem serem susceptíveis de causar a morte. A biologia forense trata da recolha e análise de manchas e produtos orgânicos (esperma, sangue, vómitos) que permitem muitas vezes con- firmar a presença de um suspeito, a conclusão de um acto ou ainda a identificação de um agente criminoso. A biologia forense, aliada à

584 tanatologia, é muito útil na identificação dos corpos de identificação desconhecida ou de feições irreconhecíveis. Tem ainda sido muito útil nas determinações de filiação e atribuição da paternidade, através do estudo dos grupos sanguíneos e de outros marcadores genéticos, onde a precisão pode atingir valores superiores a 99,98 por cento de certeza. A anatomia patológica forense, embora uma especialidade autóno- ma, está definitivamente ligada à tanatologia. Seria inconcebível que um perito médico-legal ou médico-legista, não tivesse conhecimentos de anatomia patológica que lhe permitam tirar conclusões numa autóp- sia, sem no entanto ter que ser um especialista nesta área. Ainda no âmbito laboratorial da Medicina Legal, poderíamos falar da lofoscopia (estudo dos vestígios humanos), em que se inclui também a dactiloscopia (impressões digitais), a quiroscopia (impressões palmares) e a pelmatoscopia (impressões plantares), a odontologia forense e ainda a criminalística que se ocupa dos vestígios de uma forma mais geral e do seu relacionamento entre si e com os factos apurados. Este campo da Medicina Legal ampla, praticado e ensinado nos Institu- tos de Medicina Legal, tanto a alunos médicos como dos cursos de Direito, é tradicionalmente e, por razões de operacionalidade, uma preocupação das entidades policiais (Polícia Científica) que possuem meios humanos e materiais, para desenvolverem e aprofundar a análise destes produtos ou vestígios. Com a presença, agora mais frequente por força da lei, do perito médico no local do crime, o seu conhecimento e experiência podem ou deverão ser aprofundados e a sua colaboração pode ser útil e mais utilizada. A actividade pedagógica, uma das mais nobres entre as mais importantes, estende-se desde a formação pré-graduada dos alunos das Faculdades de Medicina e Direito, à formação pós-graduada dos licen- ciados em Medicina e Direito (Curso Superior de Medicina Legal), à preparação de especialistas (médicos-legistas) e à formação comple- mentar de outros profissionais como os agentes das forças militarizadas ou da Polícia Judiciária. Em Macau, onde não existe um Instituto com recursos humanos e técnicos especializados e apropriados à formação superior ou especi- alizada, o Serviço de Medicina Legal dos SSM, através dos seus dois peritos médicos, tem proporcionado formação pré-graduada aos alunos da Faculdade de Direito da Universidade de Macau (desde 1992) e formação complementar, na Escola de Polícia Judiciária, a agentes e graduados das Forças de Segurança de Macau (Polícia de Segurança Pública e Polícia Marítima e Fiscal) e a agentes e sub-inspectores da Polícia Judiciária.

BIBLIOGRAFIA ACONSELHADA

Manual de Perícias Médico-Legais — Prof. Doutor Carlos Lopes, Porto, 1979. Introdução ao Estudo da Medicina Legal (I volume) — Prof. Doutor

585 Lesseps Reys, Lisboa, 1991. «O significado da Medicina Legal»—Prof. Doutor J. Pinto da Costa in Rev. Inv. Criminal, 1987-1989, Edição I.M.L. do Porto. «A Medicina Legal nas Comarcas» — J. Armando C. Baptista Pereira in Rev. Port. de Clínica Geral, vol. 6, n.° 2, 1989. «Ponto de Partida» — Prof. Doutor J. Pinto da Costa in Medicina Legal — J. N./1989, Edição I.M.L. do Porto. «A Medicina Legal e a Polícia Judiciária»— Prof. Doutor J. Pinto da Costa in Rev. Inv. Criminal, 1980-86, Edição I.M.L. do Porto. Legislação Oficial de Portugal (citada). Legislação Oficial de Macau (citada).

586 higiene alimentar

587 588 Administração, n.° 29, vol. VIII, 1995-3.°, 589-594

REFORMA DA LEGISLAÇÃO NA ÁREA DA HIGIENE ALIMENTAR EM MACAU

Iao Sok Sói *

SUMÁRIO A legislação da higiene alimentar é uma das atribuições importantes da Administração. A fim de promover e reforçar a referida legislação para as empresas que operam com alimentos, consultámos as legislações e os regulamentos da matéria, em vigor em alguns países e territórios vizinhos e de acordo com as condições específicas de Macau, e com a nossa própria experiência, fazemos as observações abaixo indicadas sobre a reforma da legislação da higiene nas empresas operadores de alimentos do Território.

ⅠAplicar o sistema de vigilância e controlo dos produtos alimen tares pela Administração; Ⅱ Regulamentar o sistema de licenciamento sanitário; ⅢCriação de um sistema de licenciamento sanitário para os tra balhadores que operam na área dos alimentos; ⅣEstabelecer um sistema de formação para os trabalhadores na área dos alimentos; V Estabelecer um sistema eficaz para a legislação da área da hi giene alimentar na indústria hoteleira.

Considerando o ditado popular «Comer é divino», e porque a so- brevivência do homem depende da existência dos alimentos, é funda-

* Nutricionista dos Serviços de Saúde de Macau 589 mental que estes possuam as necessárias propriedades e condições de higiene. Durante os processos de manipulação, cozimento e transfor- mação, existem numerosos factores que influenciam a qualidade dos alimentos, e através das acções de controlo da higiene é possível evitar ou eliminar os referidos factores que possuam acção nefasta, protegen- do assim a saúde dos consumidores e ao mesmo tempo o prestígio dos produtores. Ao prevenir as ocorrências de morte, de invalidez, de into- xicação ou dos danos económicos por falta de higiene dos alimentos, está-se a cooperar no campo das responsabilidades de natureza civil. criminal e administrativa. Ò estado de higiene dos alimentos reflecte c nível de vida da população, e é por isso que os países ou regiões com baixo nível sanitária têm um alto índice de doenças infecciosas do apa- relho digestivo ao contrário dos países e regiões com alto nível sanitário que têm baixos índices das referidas doenças. Com o desenvolvimento económico do Território e a diversifica- ção dos canais de comercialização, tem-se verificado uma diminuição da qualidade sanitária dos alimentos nomeadamente devido à contami- nação a que estão sujeitos nos restaurantes provocada por profissionais da indústria hoteleira que são portadores de doenças infecciosas e cutâ- neas transportadores de gérmens patológicos, incluindo salmonelas. Através da manipulação inadequada, outras doenças agudas ou cróni-cas podem aparecer. E até a malformação ou neoplasias podem viabili-zar o processo de contaminação, pondo em risco a saúde da população. A situação atrás referida contrasta com a condição de destino turístico que o território de Macau pretende ser. A regulamentação e fiscalização da higiene alimentar é uma das mais importantes atribuições dos governos e, por isso, deverão ser ela- boradas legislações com a finalidade de proteger a saúde das respecti- vas populações. A República Popular da China promulgou a título ex- perimental em 19/11/82 a Lei da higiene dos produtos alimentares e como resultado, tanto os géneros produzidos internamente como os importados tiveram uma melhoria de qualidade. Assim passaram os produtos com classificação de aprovados, respectivamente de 61 por cento para 76 por cento, nos anos de 1982 a 1986. Quanto aos alimen- tos importados, a taxa de qualidade passou de 69,52 por cento em 1981 para 98 por cento em 1985. O Ministério da Saúde da R.P.C. nos exa-mes clínicos regulares aos trabalhadores da área da alimentação, que cobre cerca de 90 por cento do total, detecta anualmente cerca de 200 000 pessoas portadoras de doenças e 90 por cento deles foram afastados das áreas relacionadas com a manipulação dos alimentos destinados ao consumo directo, o que contribuiu para a diminuição de incidência das doenças contagiosas transmitidas pelo pessoal que manipula os alimentos. A fiscalização dos produtos alimentares penaliza anualmente cerca de 500 000 a 700 000 casos e confisca cerca de 20 000 toneladas de produtos alimentares deteriorados para prevenir o risco de doenças. As autoridades judiciais também são responsáveis pela apli-

590 cação de diversas penas aos infractores. O Governo de Macau tem pres- tado atenção à matéria e de acordo com a Lei n.° 41 204 de 29/4/61, regulamenta e penaliza as infracções à Saúde Pública e à economia do Estado. A fiscalização efectua-se nas casas de venda, produção e expo-sição, no transporte, no armazenamento de alimentos falsificados e tenta acabar com os alimentos que estão deteriorados ou alterados nos cir-cuitos de comercialização. O DL 340/73, de 29/9/73 altera os montantes das multas e a extensão da pena de prisão. O DL 37/89/M, de 22/5/ 92 estabelece as normas que regulam a rotulagem e o embalamento dos produtos alimentares fornecidos aos consumidores finais. Recentemente no projecto de lei às infracções económicas de saúde pública, foram propostas alterações à legislação de 1961 quanto à higiene dos produtos alimentares. No nosso trabalho de inspecção e controlo da higiene dos produtos alimentares, sentimos que é necessário ser-se exigente na inspecção e na aplicação de multas a fim de proteger a saúde da população do Território. Com o objectivo de prevenir as doenças por contaminação dos alimentos, a intoxicação por ingestão de produtos alimentares e outras doenças causadas por alimentos, é necessário aperfeiçoar a legislação existente e criar uma legislação completa que englobe e controle a contaminação dos alimentos e proteja a saúde da população. Neste sentido consultámos a legislação proveniente da República Popular da China, do Japão, de Singapura, da Malásia, de Hong Kong e de outros países e territórios e fizemos as seguintes sugestões para uma revisão da legislação do controlo e higiene alimentar de produtos de acordo com as especificidades do Território:

Ⅰ. Aplicar o sistema de vigilância e controlo de produtos ali- mentares pelo Governo. A vigilância e controlo de produtos alimentares tem uma compo- nente legislativa e uma componente técnica e por isso tem efeitos vin- culativos impostos pelas autoridades sanitárias. Tem uma importância extraordinária na garantia das condições higiénicas na produção e co- mercialização dos géneros alimentícios, ao prevenir a contaminação dos alimentos, ao melhorar a qualidades dos mesmos, ao proteger a vida e a saúde da população e também ao promover o desenvolvimento económico do Território. A legislação deverá indicar claramente que os SSM são responsáveis pela higiene dos alimentos do Território e que o exercício do controlo será feito através das autoridades sanitárias sediadas nos Centros de Saúde (C.S.) e na Unidade Técnica da Higiene Alimentar (UTHA). A Unidade Técnica de Higiene Alimentar ficará responsável pela inspecção e controlo da Higiene alimentar em todo o Território, sendo a autoridade sanitária dos respectivos Centros de Saúde responsável pela área da sua circunscrição. A acção da U.TH.A. e C.S. abrangerá: l — Autorização do licenciamento de todas as unidades relacio- 591 nadas com a área alimentar, nomeadamente restaurantes e cantinas de todas as categorias, estabelecimento de comercialização e produção de géneros alimentícios. 2 — Durante as acções de fiscalização, as firmas serão obriga das a revelar todos os elementos solicitados, mostrar as instalações e fornecer gratuitamente amostras destinadas ao laboratório de Saúde Pú blica. 3 — Capacidade de resposta imediata às infracções.

3.1. Aviso com marcação de prazo para correcção da situação. 3.2. Confiscação ou destruição dos produtos deteriorados ou fal sificados. 3.3. Interrupção temporária de licença. 3.4. Recuperação dos produtos proibidos já vendidos. 3.5. Cancelamento de licença.

4 — Comunicação do ocorrido às autoridades judiciais. 5 — Participação no planeamento e concepção dos projectos, fis calização das obras e vistoria dos trabalhos de construção, reconstru ção ou beneficiação de edifícios destinados ao processamento e comer cialização de géneros alimentícios. 6 — Fiscalização e inspecção sanitária regular dos trabalhadores da área dos alimentos. 7 — Organização da formação dos trabalhadores da área dos ali mentos, nomeadamente os gerentes e cozinheiros. 8 — Publicação dos resultados das inspecções. 9 — Execução de inquéritos no caso de intoxicação alimentar ou contaminação de alimentos a fim de tomar medidas urgentes com o objectivo da defesa da população.

10 — Inspeccionar a importação e exportação de alimentos e colher amostras para serem analisadas no Laboratório de Saúde Públi cas com a finalidade de serem emitidos certificados de qualidade. 11 — Fiscalização de todos os assuntos relativos aos alimentos, etiquetagem, publicidade e certificação dos mesmos.

Ⅱ. Regulamentar o Sistema de Licenciamento Sanitário. É necessário fixar claramente a obrigatoriedade de licenciamento sanitário prévio, para a obtenção da licença dos Serviços de Turismo ou dos Serviços Económicos, para a abertura de restaurantes, casas de comercialização ou processamento de alimentos. Condição necessária para a concessão de licença: 1 — Possuir estabelecimento com a disposição das áreas, fun cionalidade, ambiente interior e envolvente adequados e limpos. 2 — Processamento adequado dos alimentos.

2.1. Possuir instalações livres de ratos, baratas, moscas e outros insectos, bem como condições para a sua extinção e manter a distância em relação a depósitos de produtos tóxicos e substâncias nocivas. 2.2. Possuir instalações amplas e adequadas ao processamento,

592 empacotamento e armazenamento dos produtos. 2.3. Possuir equipamento adequado para a descontaminação, es- terilização, lavagem e instalações com iluminação, ventilação, extrac ção de fumos, bem como prevenção de roedores, insectos e também condições para a lavagem, drenagem de águas residuais e armazena mento de lixo ou produtos rejeitados. 2.4. Os equipamentos e o processo de confecção dos alimentos devem ser os mais adequados para prevenção da contaminação dos ali mentos por e já confeccionados. Todo este circuito deve estar afastado de fontes poluidoras e tóxicas. 2.5. Todos os utensílios de mesa devem ser descontaminados e lavados, antes de serem usados e após a utilização. 2.6. Todos os equipamentos de empacotamento e transporte de- vem obedecer estritamente às normas de higiene. 2.7. Todos os alimentos destinados ao consumo directo devem ser empacotados com material higiénico e atóxico preferentemente de pe quenas dimensões. 2.8. Todos os trabalhadores de área dos alimentos devem manter higiene pessoal, na altura da manipulação de alimentos. Deverão ter as mãos limpas e vestir uniforme e chapéus limpos. Os trabalhadores que manipulam, alimentos destinados ao consumo directo deverão usar ins trumentos apropriados para a manipulação dos alimentos. 2.9. É obrigatório o uso de água potável da rede de consumo.

Ⅲ. Criação de um Sistema de Licenciamento Sanitário para os trabalhadores que operam na área dos alimentos. Regulamentar a inspecção sanitária criando para os trabalhadores da área dos alimentos uma licença sanitária que lhes permita manipular os alimentos. Todos os trabalhadores portadores de doenças infecciosas do apa- relho digestivo, nomeadamente as gastroenterites, febre tifóide, e as hepatites, a tuberculose pulmonar activa, dermatites purulantes e extractivas, como por exemplo, foliculite, celulite, psoriase, eczema, dermatite de contacto, feridas infectadas, etc., com fístula anal, coletomia, elefantiase (na área que permita o contacto com alimentos) e outras doenças que interfiram na higiene dos alimentos, devem co- municar ao organismo responsável, a fim de fazerem o tratamento com medidas adequadas e serem deslocados temporariamente para uma área de trabalho onde não haja contacto com os alimentos. Os trabalhadores que operam na transformação, no transporte, e na comercialização dos alimentos e que contactem frequentemente com as matérias-primas, produtos semiacabados e produtos confeccionados, têm que ter muito cuidado com a higiene dos alimentos. Se se encon- trarem doentes ou portadores de doenças infecto-contagiosas, podem contaminar os alimentos e os instrumentos utilizados durante a mani- pulação e infectar a população, provocando epidemias ou intoxicações

593 alimentares. A inspecção sanitária regular é importante não só na saúde comunitária como na saúde individual dos próprios trabalhadores. A prática desta inspecção é feita na R.P.C., Japão, Malásia, Singapura e outros países asiáticos, bem como os países da Europa e do Continente Americano. Ⅳ. Estabelecer um sistema de formação para os trabalhado res na área dos alimentos. Regulamentar a formação obrigatória para os trabalhadores. Os cursos dados pelos S.S.M. devem ser obrigatórios para todos os porta- dores de licença, para os gerentes dos estabelecimentos e para os che- fes de cozinha. Estes serão importantes para que haja a transmissão dos conhecimentos adquiridos aos seus colaboradores, incluindo os even- tuais. Os trabalhadores serão sujeitos a exames obrigatórios para ini- ciar o trabalho na área dos alimentos. O nível dos conhecimentos tem uma relação muito próxima com o nível da higiene dos alimentos, e é uma medida importante para melhorar a sanidade dos mesmos. Por isso é necessário administrar frequen- temente noções de higiene alimentar aos trabalhadores e fazer cumprir os regulamentos. Responsabilizar os autores das contaminações e into- xicações dos alimentos e responsabilizá-los judicialmente. Ⅴ. Estabelecer um sistema eficaz para a legislação da área da higiene alimentar da indústria hoteleira Nas empresas produtoras de alimentos é necessário, de acordo com as condições concretas, designar o profissional responsável pela higie- ne da empresa e dos seus produtos, tanto do ponto de vista de gestão como da fiscalização. Pode assim ser nomeado um gerente para a área de higiene, o chefe da cozinha será o responsável pela cozinha, o res- taurante terá um gerente responsável que deve responder pela inspec- ção, orientação e fiscalização da higiene no trabalho na cozinha e no restaurante. E necessário um sistema eficaz de gestão da higiene e responsabilização por escalões. Citamos como exemplo a higiene do meio, o «Sistema de recepção» e de conservação dos alimentos, o «Sis- tema de lavagem» e desinfecção dos utensílios de mesa, o «Sistema de lavagem», do arranjo e confecção dos pratos frios, etc. Tem de haver responsabilidade, penalizações e prémios. Um sistema efectivo na higiene dos alimentos é uma das medidas mais importantes visando o reforço da legislação sanitária na área da hotelaria. O sistema deve ser concebido de acordo com as condições de laboração da empresa, devendo as normas ser severas mas realizáveis, evitando os extremos. Para finalizar, é necessário elevar a qualidade dos alimentos con- sumidos, garantir a segurança alimentar e reforçar o sistema jurídico na área de higiene dos alimentos. Esperamos que os Serviços responsá- veis possam, após as consultas efectuadas e as sugestões apresentadas, introduzir nova legislação relativa ao assunto, fazendo com que a le- gislação tenha ainda melhores bases jurídicas.

594 tradução

595 596 Administração, n.° 29, vol. VIII, 1995-3.°, 597-606

TRADUÇÕES: A QUESTÃO

DA ROMANIZAÇÃO DOS NOMES CHINESES E O USO DO PINYIN *

Maria Trigoso **

A IMPORTÂNCIA DO PINYIN O pinyin, à letra (ou ao carácter), «transcrever som», é oficialmente lançado, em meados da década de 50, pelos dirigentes da RPC, como o sistema de escrita, em alfabeto romano, da língua oficial chinesa. Língua oficial, que, como se sabe, foi apelidada de «putonghua» («lín- gua comum») e é baseada nos dialectos do Norte, falados por mais de 80 por cento da população do país. O pinyin sucede ao chamado «ladinhua» ou «luomazi», (à letra, língua latina ou escrita romanizada) que começa a ser proposta e implementada, logo nos anos 20, como alternativa democrática, em termos da necessidade de alfabetização, rápida e eficaz, das grandes massas. Objectivo impossível de alcançar com o sistema de escrita tradicional, cuja dificuldade e tempo de aprendiza- gem, diziam os defensores da romanização, sempre deixaram os carac- teres como escrita apenas acessível a um grupo reduzido de letrados com erudição e vagares suficientes. O escritor Lu Xun foi, entre os intelec- tuais de então, um dos que mais se destacou na luta pela substituição dos caracteres por uma escrita alfabética. Foi um debate interessantíssimo, no qual participou o próprio Mao, que aliás chegou a afirmar, antes de 1949, a inevitabilidade futura, para a China moderna, da utilização duma escrita alfabética. A chamada «wenzi gaige», (reforma dos caracteres escritos) que, ao mesmo tempo, lança o pinyin e a simplificação dos caracteres, fica muito aquém dos objectivos e propostas desse grupo de intelectuais, eventualmente tidos agora, como demasiado radicais, para uma época de

* Texto adaptado duma comunicação apresentada num Simpósio Internacional sobre Tradução e Interpretação, organizado em Macau, pela Escola de Línguas e Tradução do Instituto Politécnico de Macau a 5 de Junho de 1995. ** Assistente da Universidade de Macau. 597 consolidação do novo poder político. Mas ela marca a adopção do pinyin, na China, onde passa a ser ensinado, no primeiro ano da escola primária, a par dos caracteres. Para além da importância de que se reveste, na facilitação das relações com o exterior, nomeadamente, na utilidade que tem no ensino do chinês como língua estrangeira (tornando mais fácil a aprendizagem dos caracteres, cujo som representa com toda a fidelidade), o pinyin permite, a nível interno, por exemplo, a organi- zação de dicionários por ordem alfabética. Tal como facilita a posterior aquisição de línguas ocidentais. Em resumo, Q pinyin está hoje instalado na China, a par dos caracteres, e, tudo indica, para ficar. Se é para ficar ao lado, ou no lugar, dos caracteres, parece ser uma questão em aberto. O debate iniciado no princípio do século, sobre a escrita que mais convém à China do futuro, não terá parado, na RPC, ainda que se verifique, agora, a outro nível menos exposto.

SISTEMAS ANTERIORES DE ROMANIZAÇÃO Na linguística tradicional chinesa (milenar, claro, ou não estivés- semos na China) falava-se e estudava-se, sobretudo reproduzia-se, por escrito, a pronúncia dos caracteres, recorrendo à pronúncia de outros. Qualquer coisa como se nós, para reproduzir, por escrito a desconhecida pronúncia da palavra escrita «tão» escrevêssemos assim: lê-se com a parte inicial da sílaba «tal» e com a parte final da sílaba «mão». Era um sistema, destinado óbvia e exclusivamente a uso interno, isto é, a falantes nativos, que conheciam o valor sonoro dos caracteres, cujas partes, eram assim, susceptíveis de ser usadas como símbolos fonéticos. Não sendo muito rigoroso, serviu para os estudos da Fonologia tradicional chinesa. Neste contexto, são, evidentemente, os estrangeiros, que, querendo aprender a língua, ou por necessitarem de reproduzir os sons chineses, nas escritas das suas línguas, criam os primeiros sistemas de romanização. Entre os mais de duas dezenas existentes no mundo, os mais conhecidos e ainda em uso, no Ocidente, são o de Yale, Wade-Gilles e o da Escola Francesa do Extremo-Oriente. Foram eles que, pela primeira vez, apresentaram, de forma sistemática, a fonética da língua chinesa, a que chamavam mandarim, no Ocidente. Tanto o sistema de romanização começado a usar anos 20, como o pinyin depois, apresentam a diferença, face aos sistemas anteriores, de terem sido criados pelos próprios chineses. Aparentemente pequena, a diferença revela-se enorme, uma vez que, sobretudo no pinyin, aparece pela primeira vez, um sistema que, por ser de criação nativa, visa colocar-se acima das particularidades fonéticas das várias línguas euro-peias. Por outro lado, tendo sido elaborado por linguistas com formação teórica, tanto a nível da História da língua chinesa e da Linguística tradicional chinesa, como da linguística ocidental, é um sistema cujas opções práticas (visam a escrita da língua, recorde-se) assentam em tomadas de posição e definições teóricas mais adaptadas à estrutura da língua chinesa. Algumas delas feitas pela primeira vez, de dentro do

598 próprio sistema linguístico chinês. É o caso da determinação do que é palavra, logo que sílabas é que devem aparecer juntas, na escrita do pinyin, situação que a escrita tradicional não colocava — cada carácter se escrevendo de per si, todos a igual distância uns dos outros. Descontando a má língua de alguns sinólogos ocidentais, acusando o pinyin de ter sido influenciado pela fonética russa, pelo apoio dado por linguistas soviéticos à sua elaboração, dizem reputados e insuspeitos sinólogos ocidentais que o pinyin é, entre os vários sistemas de romanização, o mais sólido, do ponto de vista teórico, e o mais econó- mico e fácil, do ponto de vista prático. Tanto no que se refere à aprendizagem como à utilização.

O PINYIN COMO ROMANIZAÇÃO DO PUTONGHUA Não fora a diversidade dialectal da China e a questão poderia estar resolvida, pelo menos no interior do país. A invenção de Taiwan —, onde a língua oficial, conhecida pelo nacionalista nome de «guoyu», (língua nacional) designa a mesma língua conhecida pelo nome socialista «putonghua», («língua cumunal») — dos seus próprios símbolos fonéticos, o «zhuyin fuhao», (mais conhecido por «popofomo», de clara inspiração japonesa), não parece ter grande futuro. Na verdade trata-se duma complicação acrescida, pois os símbolos fonéticos, destinados a representar sílabas, são constituídos por traços dos caracteres chineses. A verdade é outra, porém, pois como é do conhecimento geral, a China é um país de muitos dialectos (e subdialectos) entre os quais, as diferenças fonéticas são, por vezes, tão acentuadas, que a comunicação não é de todo possível. E, se essa situação linguística nunca constitui ameaça à unidade da língua, foi porque lá estava sempre, a língua escrita, a desempenhar o papel de verdadeira língua nacional. Enfim, sempre desde que, no século III a.C., a reforma ortográfica do primeiro imperador Qin, unificou, além do país, a escrita dos caracteres. Ora, qualquer sistema de romanização (excepção feita à invenção, ou miragem, do falecido padre Guerra, que se pretendia legível por qualquer dialecto chinês) será sempre e só aplicável a uma das oito grandes línguas chinesas. A admissão da inexistência de algo que possamos designar por «língua chinesa» coloca questões que vão muito além do domínio da ciência da linguística. O contrário se passa, a nível da escrita por caracteres, domínio inocente, partilhado por todos os dialectos, mas sem ser, verdadeiramente, propriedade particular de nenhum. Olhemos mais de perto para essa língua escrita. Uma coisa é o facto de se ter consciência (e de defender com frequência, a necessidade de combater o mito ideográfico) uma vez que a escrita chinesa, como qualquer outra escrita de línguas humanas, assenta numa base fonética. Outra coisa, mas não contraditória com a primeira, é o reconhecer, na escrita por caracteres, a particularidade de se deixar ler de múltiplas

599 maneiras, ou por muitos sistemas fonético-fonológicos. Não sendo a língua lógica, universal, que Leibniz, por exemplo, sonhou encontrar (é evidente que, sendo a escrita de línguas orais, não é uma escrita muda), a escrita chinesa por caracteres, exactamente pelo excesso sonoro, que lhe advém da sua base fonética múltipla, constitui-se, também, mais do que, como um sistema de leitura como um sistema virtual de leituras. Actualizável pelos diferentes grupos de leitores-falantes. No que a Macau diz respeito, em termos práticos de tradução, poderíamos resumir assim: um texto «escrito em putonghua» pode ser traduzido para português, por um tradutor de Macau, falante de cantonês, que não saiba uma palavra de putonghua. O que o tradutor faz é ler o texto, na «sua» língua chinesa, dela o traduzindo, directamente, para o português. Há sempre um «mas». Não fora a resistência oposta pelos nomes das pessoas e dos lugares a questão do pinyin, nem sequer se punha, a nível das traduções. Há contudo, a resistência dos nomes à tradução. Perante eles, o tradutor só tem duas alternativas: ou se deixa cair no absurdo (e absurdo não quer dizer, sem Macau, impossível, ou não visto), de traduzir coisas intraduzíveis, ou de tradução já cunhada. É o caso real da rapariga, chamada pelos colegas portugueses, por Cheirosa. Ou o da explicação escrita, de «Faguo», França, por «País da Lei». Os dois casos só podem acontecer pelo facto de, todos os caracteres chineses, tendo conteúdo semântico, deixarem «ler» o seu significado, mesmo quando se trata, como no caso de «Faguo», de significantes tornados semanticamente vazios, ao serem escolhidos para representar uma pronúncia. Estou em crer que, subjacente à concepção gráfica do conhecido manual de ensino do português, justamente conhe- cido entre os chineses e portugueses, por «livro das uvas» (capa cheia de uvas), está uma espécie de tradução, do género, do nome chinês, Putaoya (Portugal). Constituído por três caracteres, para reproduzir, fonetica- mente, as três sílabas, «pu» (por), «tao» (tu) e «ya» ou eventualmente a fonética do cantonês mais próximo do nosso «gal» (gal), os dois primeiros são, na língua, palavra, «putao», com o significado de «uva», e o terceiro, um morfema com o significado de «dente». Fomentada aliás, pelos próprios chineses, que muitas vezes se encarregam de fornecer os significados de significantes tornados vazios, a associação é lógica, se pensarmos em Portugal como o país do vinho. É claro que depois haveria que explicar o «dente», obviamente dispensável para a actividade de beber... A outra alternativa, felizmente já praticamente generalizada, é a da transliteração, romanizada, dos sons do chinês. Indispensável, está visto, quando se trata de nome não existente, como tal, na língua-cultura portuguesa. Ora, a tradução de qualquer texto chinês, nem que mais não seja para situar o autor do texto e o local da sua produção, coloca-nos sempre perante a necessidade da transliteração. Isso significa, concre-tamente, a inevitabilidade do ter de escolher UMA língua chinesa (o que pode ser entendido, em Macau, como «contra» OUTRA).

600 Só posteriormente a essa primeira escolha, de ordem política, afectiva, social, etc., vem a escolha linguística, decorrente da primeira, sobre o sistema de transcrição fonética a usar — os do putonghua ou do guandonghua. Os departamentos da administração (além de traduzida, a sociedade de Macau, é também uma sociedade administrativa, por excelência), terá decretado, mais ou menos oficialmente, o pinyin, o que é dizer, optou pela fonética do putonghua. Os tradutores, são porém, na sua esmagadora maioria, falantes de cantonês, que, ou não aprenderam, formalmente, o putonghua, ou, muito justamente, não o aprenderam como língua estrangeira, isto é, não tiveram, porque não precisavam, de chegar aos caracteres por via do pinyin. Num ou noutro caso desconhecem-no enquanto sistema ou têm dele uma vaga ideia. Constatando esta dificuldade, terá havido departamentos que, cer- tamente com a melhor das intenções, forneceram o que chamam de «regulamentos para a transcrição fonética». Não sendo o objectivo deste trabalho o pinyin em si, não me vou demorar a analisar a impossibilidade

Conjunto de regras, destinado a regularizar a utilização oficial do pinyin, na romanização da escrita chinesa

QUADRO N. °1

601 de «ensinar» ou «regular» a escrita do pinyin, através do fornecimento de algumas regras, susceptíveis de serem fotocopiadas e distribuídas. Isto é, sem que as pessoas que vão usar as regras, conheçam previamente o sistema linguístico, isto é, a fonética e a morfologia do putonghua. Nem falarei nos verdadeiros disparates linguísticos, e não só... que se verificam no conjunto de regras publicado no Quadro n.° 1. Apenas quero acentuar que, aos tradutores chineses de Macau, que não aprende-ram putonghua nem pinyin, esta dúzia de instruções, mesmo que even-tualmente tornadas mais rigorosas, de nada serve. Os poucos que aprenderam, não precisam delas para nada. Os que não aprenderam, não aprendem a língua, nem a sua escrita em doze ou vinte e quatro regras e sem contexto.

UM EXERCÍCIO PRÁTICO DE ROMANIZAÇÃO Como sempre não é culpa de ninguém. Nem de quem manda fazer o regulamento, que obviamente não o quereria absurdo, nem de quem o fez, que genuinamente terá feito o melhor que sabia. Muito menos dos tradutores, oficialmente obrigados a usar um sistema fonético, que não é o da sua língua e que ninguém se terá lembrado de lhes ensinar. Façamos o exercício de tentar resolver a transcrição fonética dos dois caracteres da palavra «Macau», em função dos referidos regula- mentos. Percorramos, passo a passo, a via sacra do tradutor. Primeiro vêm as opções linguísticas, que assentam em escolhas de ordem cultural e política. Existindo em português a palavra Macau, ele pode traduzir os dois caracteres, descontraidamente, por «Macau». Mas, também pode, forçando a nota bairrista, ou a nota nacionalista, preferir usar, no texto português, a transcrição do guandonghua, OUMUN, ou do putonghua AOMEN. O regulamento nada lhe diz sobre a maneira de transcrever o som vocálico do primeiro carácter, que, pela fonética do português pode ser com «o» ou com «u». Nem do segundo, que pode ser com «a» ou com «e». E o calvário continua, sem que ele possa lavar, ainda; as suas mãos. A reprodução gráfica das duas sílabas-caracteres, sempre separadas, em chinês, pode, em português, ser feita com as sílabas juntas ou separadas. Outra decisão que está longe de ser inocente, a nível da morfologia do putonghua. Em casos destes (e há-os bem complicados) o tradutor, que não é obrigado a ter formação linguística, vê-se forçado a decidir sobre o que é, contra o que não é «palavra», conceito que em chinês é particularmente difícil de determinar. Mas, neste caso, o ponto 8 das regulações, por mais desajeitada que seja a sua formulação, pode ajudá-lo, ao afirmar que «os nomes dos países são juntos». Isto se ele for suficientemente astuto para perceber, através do exemplo dado de «país» — Beijing! — que não são os nomes dos «países», que tem de juntar, mas as sílabas que constituem os seus nomes. Outro caso, agora com o nome duma pessoa.

602 Uma personagem real, e bem ilustre, recebeu, à nascença, em Macau, o nome de Kai Cheong. E é engraçado, como, sendo este um texto em escrita alfabética, ao escrever estas duas sílabas, não pude fugir a tomar todas as decisões de que falei para trás. Que oralmente podem, em parte, ser escamoteadas. Dois caracteres-sílabas, que os seus pais, ao registarem o filho, no departamento administrativo adequado, tiveram de escrever em alfabeto romano, ou pedir a alguém para. Quem quer que os tenha escrito, fê-lo à moda de Cantão, isto é duas sílabas separadas. O nome de família era Fok. Pelo que a pessoa adquiriu o nome Fok Kai Cheong, na ordem chinesa, primeiro o apelido, quase sempre monossilábico, depois o nome, geralmente dissilábico. Com esse nome, o historiador e professor Fok, fez a sua carreira universitária, em Hong Kong e na América. Não sei de quando data a passagem do seu nome, para K. C. Fok, nem interessa. A verdade é que é uma primeira alteração, obviamente aceite, senão promovida, pelo próprio, e que visa claramente facilitar a circulação do seu nome no seio do sistema ocidental de nomes, cuja ordem é inversa à chinesa. Como é que o tradutor de Macau transcreve os três caracteres do nome em questão? Se souber de quem se trata, e havendo já na cultura portuguesa de Macau, o significante «Fok», que muitos conhecem, com as várias especificações de «professor», «historiador», etc., ele escreve-rá, com à vontade, FOK. Se desconhecer a personagem e o conhecimen-to que a comunidade portuguesa tem dela, pode, para ser hiper oficial, e/ou nacionalista, seguir o pinyin, logo optando pelo som doputonghua. Escreverá então «Huo», assim conseguindo que nenhum português, e poucos chineses, reconheçam a personagem em questão. Os compromissos não são possíveis. Se, por bairrismo ou por sensatez, optar pela fonética do cantonês, não pode usar o pinyin para a transcrever, pois no putonghua não existe a sílaba «fok», caídas que foram, nos dialectos do Norte, as antigas consoantes finais p, t, k, (mas que se mantiveram em cantonês). Resta-lhe uma transcrição fonética de tipo pessoal, ou de tradição local, neste caso coincidente com a grafia usada pelo próprio. De qualquer modo, nesta estação, já infringiu, por duas vezes, as normas oficiais, nomeadamente a regra número l dos regulamentos que decreta que «todas as transcrições fonéticas têm de seguir o sistema pinyin de Beijing». Passa agora, e nós com ele, para o seguinte — o que fazer com as duas sílabas do nome próprio, que o pinyin o obriga a juntar, e a tradição local, bem como a realidade do nome da pessoa real, lhe sugere separar? Se segue a regra número 7, tem de as ligar, entrando em contradição gráfica com o espírito e a letra, cantonenses, do nome. Se as separa, além de infringir a regra número 7, faz, por exemplo, o glossário dum artigo, contradizer-se entre si, apresentando uns nomes chineses transcritos duma maneira, outros doutra. Interrogados, a este respeito, os tradutores de Macau, dão respos-tas, sobretudo pragmáticas. Afirmam seguir o pinyin para os nomes «da China» e o «sistema» local para os nomes de Macau. E uma regra de uso

603 local, de tipo adhoc, mas que em termos práticos, e sobretudo, nas traduções administrativas (o pior são as outras), lá vai funcionando no seu objectivo de dar a conhecer quem é quem. Desde que, é claro, o tradutor conheça, à partida, a nacionalidade do traduzido. É outra actualização da fórmula de Macau (o nome do Prof. Fok bem que está presente, no espírito e na letra, deste trabalho...) E do princípio chinês «uma tradução, dois sistemas (de transcrições)». Funciona quase sempre, excepto perante chineses ultramarinos, por exemplo, de nacionalidade conhecida, mas de língua materna des- conhecida (sabe-se lá se são chineses-americanos de língua do Norte ou do Sul), ou personagens históricas ocidentais, citadas em textos chine- ses, apenas pelos nomes chineses que receberam (sabe-se lá, nalguns casos, se o baptismo decorreu no Sul ou no Norte), com os quais o impasse é de regra.

DIFICULDADES DE NATUREZA DIFERENTE Podemos então sistematizar as dificuldades do tradutor de Macau. São elas de duas espécies. A uma, apetecia-me dizer, fundamental, opõe-se outra, de estatuto muito diferente, e de fácil resolução, pois é, apenas, da ordem da aprendizagem. Ao contrário da primeira, sentida por todos quantos traduzem do chinês para o português, sejam macaen- ses chineses ou macaenses portugueses, a segunda é sentida, quase só, pelos tradutores chineses. Ao contrário do que se passa na RPC, onde as crianças antes, ou ao mesmo tempo em que aprendem os caracteres, são, literalmente «alfa- betizadas», aprendendo a escrever pinyin, em Macau, fazendo-se a escolaridade em cantonês, as crianças não têm qualquer contacto com o alfabeto aplicado à língua oficial chinesa. A passagem, enquanto alunos universitários, pela RPC, ou por Taiwan, em nada os ajuda neste domínio, a não ser que a sua licenciatura seja em Língua Chinesa. O sistema da escrita é por caracteres, eles apenas aprendem a falar putonghua, mas nada lhes é ensinado de pinyin, totalmente desnecessá- rio, aliás, para os estudos que estão a efectuar. Diferente é o percurso dos macaenses portugueses, que apenas falando e não escrevendo o chinês cantonês, são forçados a aprender o putonghua falado e escrito. Aprendizagem da escrita que é paralela à do pinyin. E assim, o que parecia ser, à partida, um handicap, por parte dos tradutores macaenses portugueses (não saberem ler chinês) acaba por se transformar numa vantagem, face aos tradutores macaenses chineses. Fiz este ano várias experiências com duas turmas, uma de macaen- ses chineses e outra de macaenses portugueses, de nível português idêntico. Enquanto que as traduções dos alunos macaenses portugueses, seguiam todas o sistema oficial do pinyin, e faziam-no sem erros (só num caso, um aluno trocou um Guang (certo) por Kuang (errado), as versões dos alunos chineses apresentavam as mais variadas flutuações na grafia dos mesmos nomes.

604 Apenas alguns exemplos, dum dos trabalhos, feitos na turma dos chineses — uma tradução dum jornal da RPC, sobre o declínio do ensino da cultura tradicional. O nome de Confúcio aparece em três versões: a) «traduzido» para português, o que demonstra um bom conhecimento da língua-cultura portuguesa; b) talvez como fenómeno de hipercorreção, romanizado, correctamente em pinyin, como Kong Zi, mas sem nota do tradutor a dizer de quem se trata, indispensável, uma vez que, devolvido à sua realidade própria de Kong Zi, Confúcio não será reconhecido pelos portugueses; c) romanizado por Hong Chi, uma fonética decerto local, que não segue nem o pinyin, nem o português, nem explica de quem se trata. Temos depois o outro nome de Confúcio, ora correctamente escri- to, em pinyin, Qiu», ora transcrito por Iao». E um terceiro nome, da mesma personagem, distribuído por Chong Ni, Chong Nei, Chong Lei, Chong Nei e Chuong Lai». Ò pensador Wang Yangming ora é transcrito por Wong Yang Ming semi-correcto, ora por Wong Ieong Meng, incorrecto, face à norma do pinyin, eventualmente correcto pela tradição local. O filósofo Zhu Xi oscila entre Zhu Zi e Chu Hei, a primeira forma, também quer ser pinyin mas erra numa consoante, a segunda, forma claramente local. Não vale a pena continuar, o esquema é sempre este, uma tentativa de seguir o pinyin, com sucesso, ou falhada, ou a romanização pelos sons do cantonês, com o que isso implica de flutuantes grafias. Os textos chineses, quer da história, propriamente dita, quer da história dos outros campos do saber, nomeadamente da literatura, apresentam já dificuldades terríveis, para o ocidental, forçado a desco- brir, a cada momento quem é quem — no emaranhado de nomes, característico duma cultura em que era tradicional as pessoas, especial- mente os letrados, acumularem nomes sobre nomes, tanto em vida como depois de mortos. Se, as traduções, em vez de ajudarem a aclarar, ainda voltarem a rebaptizar as personagens, o labirinto será total. A mesma questão pode ser vista ao contrário. Em artigos escritos por ocidentais, não sinólogos, e sem conhecimentos da língua chinesa, aparecem frequentes deturpações nos nomes de lugares, fontes e autores chineses (às vezes já citações de citações). O que dá decerto, as maiores das dores de cabeça ao tradutor de português para chinês. Estou mesmo em crer que, nalguns casos limite, os tradutores não sabem, sequer, que local ou que personagem chineses, estão a ser referidos no texto ocidental (eventualmente o mesmo se tendo passado com o escritor do texto...) E, quando não têm a possibilidade de os descobrir, perdido que foi o seu rasto original, na floresta de enganos que constitui grande parte do corpus das nossas traduções duma língua para outra, ou omitem aquela parte do texto, ou escolhem, adhoc, caracteres que lhes pareçam soar como aparece escrito em português. A escolha é feita, as mais das vezes, em função dum sistema de sons B, quando o nome ocidental terá sido transcrito em função do sistema de sons A.

605 CONCLUSÃO Parece um panorama muito negro. Talvez seja exagero. A gente lá se vai entendendo. Gosto de contar, a respeito da sociedade mal-traduzida que Macau é, a história dum amigo encantado com o nome da rua em que acabara de comprar uma simpática casa chinesa — Travessa das Bruxas, na Taipa. A quem desmanchei o prazer, ao traduzir, por Travessa das Fadas, os caracteres chineses escritos ao lado das letras que diziam Travessa das Bruxas. A verdade é que as duas versões, ainda que, em certa medida, totalmente opostas, são complementares, partilhando, de resto, o terreno comum do sobrenatural. Será talvez no registo do surrealismo, que se terão feito alguns dos pontuais encontros entre as duas comunidades, sempre por via das traduções, em Macau. A verdade é que para a maioria dos que, até agora, têm tido a responsabilidade dos mandos vários (quer administrativos quer cultu- rais) tudo isto foi, e é, realmente, chinês. E difícil seria que fosse de outra maneira, sendo a realidade apenas aquilo que é, e não o que desejaríamos que fosse. No entanto, o que os tempos mudam, é, sobretudo, a realida-de. Das pessoas e das coisas. E assim, está agora, pela primeira vez à vista, a fase em que começa a ser possível (im)pôr alguma ordem e funcionar com maior rigor. Penso que quem lida diariamente com os actuais e futuros traduto- res de Macau, seja pela via do português-chinês, seja pela via só do português, deve alertá-los para a necessidade do uso do pinyin. Para a importância da sua aprendizagem, sem complexos nem bairrismos inúteis face ao cantonês, que tem a sua vitalidade própria e não será ameaçado pela transcrição romanizada dos nomes das pessoas e dos lugares, no sistema de romanização da língua oficial chinesa. Devemos chamar a atenção dos alunos chineses, que é do seu interesse, como é do interesse de Macau, exigirem que ele lhes seja ensinado. É um ponto pequeno, decerto. Face à falta de bons dicionários, de boas gramáticas, e de outras bondades. Mas pelo menos, perante essas grandes questões, esta, do uso do pinyin, tem a vantagem de ser, em parte, de fácil e rápida resolução. Basta querermos.

606 consultadoria jurídica

607 608 Administração, n.° 29, vol. VIII. 1995-3.°, 609-610

Concursos especiais Aplicação do D.L. n.° 42/94/M, de 15 de Agosto

CONSULTA Como se considera o tempo e classificação de serviço para acesso do pessoal do quadro no âmbito dos concursos previstos pelo D.L. n.°42/94/M, de 15 de Agosto?

RESPOSTA O n.° 4 do artigo 5.° do D.L. n.° 42/94/M, de 15 de Agosto, prevê a possibilidade do pessoal do quadro poder concorrer a categoria superior mediante recontagem global de todo o tempo de serviço prestado antes e depois do ingresso nos quadros da Administração Pública do Território. Efectuada a recontagem, terá de se proceder de acordo com a regra estabelecida no n.° 2 do retrocitado artigo, desprezando-se sucessivamente módulos de 3 anos por cada categoria já anteriormen- te adquirida pelo funcionário, no âmbito dos concursos previstos no Estatuto dos Trabalhadores da Administração e Função Pública de Macau. O remanescente, se for igual ou superior a 3 anos, poderá então ser aproveitado para acesso à categoria imediatamente superi- or. Nestes termos, para se aceder, por exemplo, à categoria de oficial administrativo principal, terá de se possuir necessariamente o tempo global de 9 anos de serviço, sendo os 2 primeiros módulos de 3 anos desprezados por desnecessários para acesso, quer para a categoria já detida como 1.° oficial administrativo, quer para a imediatamente anterior. Relativamente à classificação de serviço, prevista no n.° l do artigo 10.° do Decreto-Lei n.° 86/89/M, de 21 de Dezembro, o citado diploma não a considera como requisito relevante para admissão aos concursos de acesso, exigindo, outrossim, que os candidatos à data de abertura dos sucessivos concursos, detenham para cada grau o tempo 609 mínimo de 3 anos de serviço prestado à Administração do Território, nos termos acima referidos.

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abstracts

713 714

Administração, n.° 29, vol. VIII, 1995-3.°, 715-718

From oral tradition to writing José Oliveira Barata (pp.489)

Since some years ago, a special importance has been rendered to the issue on the establishment of the literary cânon, which is no longer considered as a closed structure but as a literary field open to all forms of expression presented in a literary way. In this article, the author refers to the existing oral tradition and its change from that form to a written cânon. In this context, the author also mentions the increasing difficulties in establishing the clearly defined frontiers between what is considered popular literature and what is ultimately considered the Standard corpus of a literary history.

Chinese literature in Macau between the eighties and the beginning of the nineties Cheng Wai-Ming (pp. 501)

The purpose of this article is to give an idea about the Chinese literature of this region, its past and present, specially in the Territory, comprising authors of different age-groups, who can be considered Macau's residents or not. The author also deals with all the literary genres, places where works are published, publishers, newspapers and magazines which have been contributing to the production and diffusion of the said works. The Univer-sity of East Asia, later called University of Macau, has much contributed to put an end to its stagnating condition. Usually due to the economic development and political evolution, the arts undergo a qualitative and quantitative improvement. However, as far as Macau is concerned, the arts' development took place before that of the economic and political sectors. The author hopes that the evolution of the Chinese literature will continue in the course of the years, and he also expects that new critics, aware of the importance of their role, will emerge, and that new opportunities for new talents and consecrated authors will be given.

Careers in Macau's Public Administration and Macau's Higher Education José Hermínio Paulo Rato Rainha (pp. 527)

In this text the author refers to the importance of the leveis of academic qualifications in the careers's system of Macau's Public Administration's 715 personnel. Macau's Civil Service comprises various careers at different leveis based on functions to be performed and for which specific levei of academic qualifications are required. Personnel working in the civil service is divided into careers of craftsmen and handymen, clerical staff, techni-cians, officers, and sénior officers, according to the required academic qualifications. As for the officer and sénior officer careers, the minimum academic qualifications required is licenciatura (four years higher educa-tion courses) or some other higher education course, The author makes a comparison between the duration of high school and higher education courses and the development of the careers of officers and sénior officers in Macau's Public Administration. Generally speaking, and bearing in mind the duration of the courses lectured in the Territory, that is, higher education courses (licenciatura—four years) run by the University of Macau, and bacharelato (three years) run by Macau's Polytechnic Institute, we can conclude that the difference of duration between the two former courses is of one year of studies and in some cases it is of two years. The difference between the aforementioned academic qualifications es-tablishes the distinction between officers and sénior officers and the devel-opment of the respective careers in the same period of time. It is worthwhile noticing that the top of both careers is reached within the same working period and that at this stage, a sénior officer earns 19 per cent more than an officer, though the difference between the duration of their courses may be just of one year. The author concludes his article by suggesting that the differences between both kinds of higher education courses, that is, licenciatura and bacharelato shouldnot be the reason for defining two different careers in the Civil Service. It should be established that the access to the career of sénior officers could be open to candidates irrespective of their academic quali-fications, either they have taken a higher education course of four years licenciatura) or of three years (bacharelato), provided that the courses are adequate to the duties to be discharged. He also suggests the establishment of higher education courses, with a possible duration of two schooling years (or four semesters) to meet the demand for qualified personnel in the Civil Service and in the labour market as well, with an intermediate levei between that of a sénior officer and the groups of personnel whose requirements of academic qualifications correspond to high school level.

Prospects of Air Transport in Macau Pedro Pinto (pp. 545)

As soon as the International Airport of Macau is inaugurated, the population of the Territory will benefit from rapid and direct access to air transport. This paper is an attempt to present the prospects of this means of transportfor Macau. Basedon the experience of severalneighbouring Asian countries, on local information and deduction as well, it has been elaborated a simple plan which has enabled us to assess the adherence of Macau's population to this means of transport. Notwithstanding the simplicity of the 716 said analysis and in spite of lacking deep scientific rigour, the conclusions indicate goodprospects for Macau's passengersair transport assuming that the emergent situation will be stable.

The new Administrative Procedure Code and Macau's citizens guarantees (Notes and several considerations) Sérgio de Almeida Correia (pp. 559)

When the new Macau's Administrative Procedure Code carne into force, stimulated the juridical order of the Territory to upgrade and to make more ejficient the Public Administration's services. Macau's Administrative Procedure Code besides enshrining rules of a procedural nature oriented towards debureaucratization and transparency, it also compiled a series of principies into a group of norms that the Administration is bound to follow while exercising its powers. The author, by means of a language that can be understood by those who do not have juridical training, and specially by those who work in the public services, attempts to summarize the aforementionedprincipies, pointing out some of the fundamental ideas, its meaning and scope. Bearing in mindsome questions that had been arisen, the article also tries to reflect the point of view of those who have served the Administration in Macau and who, later on, have become private lawyers both in the Territory and in Portugal.

Concepts and Organization of Forensic Medicine J. A. Baptista Pereira (pp. 577)

In the Portuguese juridical system, and therefore, in that of Macau as well, Forensic Medicine is almost indispensable. Nevertheless, its organization, extent, concepts and procedures are unknown by a great number of jurists. On the other hand, and contrarily to a common belief, Forensic Medicine is rather oriented to the living than to the dead. Its extent is so large and its social importance so considerable that it goes beyond the mere use in the juridical scope. Within this context, and in a brief and pedagogic way, my paper focus on some concepts, which are defined, and on Forensic Medicine's history, teaching, extent and organization, not only in Portugal but also in Macau. The latter aspects are based on the most recent legislation and practical application as well.

An approach to the improvement of supervision of hygiene in Macau's catering industry Iao Sok Foi (pp. 589)

The supervision of hygiene in Macau's catering industry should be one of the main concerns of the government. In order to strengthen the referred supervision, bearing in mind the reality of Macau, and knowing the law and 717 regulations in the neighbouring regions, the author makes some suggestions to improve the existing system. — Government should enhance the present legislation on this matter; — The licensing system should be improved having in mind hygiene in the catering industry; — Emphasis should be given to the system of health certification for workers engaged in catering industry; — The vocational training system should be enhanced; — A system of supervision within the catering industry (or within each company) should be implemented.

The pinyin in the translations made in Macau — advantages and difficulties Maria Trigoso (pp. 597)

This paper aims at showing how translations made in Macau deal with the question of the romanization of Chinese nomes, both of people and places. Although the pinyin system has been adopted by various administrative departments, Chinese translators, whose mother tongue is , sometimes, in spite of their good knowledge of spoken putonhua, often have difficulties in using pinyin, hesitating both, in the orthography, and in the linking of syllables/morphemes in order to form words. After a brief history of the pinyin system and of those preceding it, both of Chinese and foreign origin, the author tries to «solve» some problems of romanization, with the help of rules, which were set for that purposes proving how hard the task can be, for a conscencious translator. The paper tries to distinguish two kinds of difficulties. Some, considered fundamental, are due to the fact that personal names do have their own «sounds», in their own dialectal phonetics, being difficult, if not impossible, to have them changed into dijferent ones, to attain uniformity, either of an article glossary or the official documents issued by an official department. Others, maybe the majority, can be solved, as they originate only in the lack of knowledge, or lack of practise of the pinyin system, on the part of the translators. Therefore, it is desirable to draw the attention of Macau's translators to the importance of the correct and uniform romanization of Chinese charac-ters, both in names of places and persons, as well as in quotations from Chinese texts. Translators cannot accomplish this work properly unless they have a perfect knowledge of the pinyin system.

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