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ADMINISTRAÇÃO Revista da Administração Pública de Macau MACAU, 1995 483 ADMINISTRA ÇÃO Revista da Administração Pública de Macau Quatro números por ano Director: Jorge Bruxo Director-Adjunto: Ngai Mei Cheong (Gary) Directora-Executiva: Celina Veiga de Oliveira Secretários da Redacção: Peter Lio Meng, José Côrte-Real, Cheang A Chao (Rogério) Conselho de Redacção: Amável Afonso Barata Camões, Fernando Manuel Cardoso Vaz de Medeiros, Gonçalo Amarante Xavier, José Angelo Lobo do Amaral, José António Pinto Belo, José Manuel da Silva Agordela, Rui Daniel Ferreira do Rosário Propriedade: Administração Pública de Macau Edição: Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública Direcção, redacção e administração: Calçada de Santo Agostinho, n.° 19 Apartado 463, Macau (Ásia) Telef. 323623 Fax (853) 594000 Distribuição e assinaturas: telef. 5995/512-514 Composição e impressão: Imprensa Oficial de Macau 2 500 exemplares ISSN 0872-9174 484 Número 29 (3.° de 1995) • Volume VIII • Setembro de 1995 SUMÁRIO LITERATURA 489 Do dito ao escrito de José Oliveira Barata 501 Literatura chinesa de Macau entre os anos 80 e os princípios da década de noventa de Cheng Wai Ming ADMINISTRAÇÃO E ENSINO 527 Carreiras da Administração Pública de Macau e Ensino Superior de José Hermínio Paulo Rato Rainha TRANSPORTE AÉREO 545 Perspectivas de desenvolvimento do transporte aéreo em Macau de Pedro Pinto DIREITO E SOCIEDADE 559 O novo Código de Procedimento Administrativo e as garantias dos cidadãos de Macau (notas e considerações dispersas) de Sérgio Almeida Correia MEDICINA LEGAL 577 Conceito e organização da Medicina Legal de J. A. Baptista Pereira 485 HIGIENE ALIMENTAR 589 Reforma da legislação na área da higiene alimentar em Macau de Iao Sok Soi TRADUÇÃO 597 Traduções: a questão da romanização dos nomes chineses e o uso do Pinyin de Maria Trigoso 609 CONSULTADORIA JURÍDICA 715 ABSTRACTS NOTA DA DIRECÇÃO Os trabalhos assinados publicados na revista Administração são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Os trabalhos originais publicados em Administração podem, em princípio, ser transcritos ou traduzidos noutras publicações, desde que se indique a sua origem e autoria. É, no entanto, necessário um pedido de autorização para cada caso. 486 literatura 487 488 Administração, n.° 29, vol. VIII, 1995-3.°, 489-500 DO DITO AO ESCRITO José Oliveira Barata * Não deixa de ser um desafio estimulante à perspicácia de qualquer intelectual o convite para meditar sobre as relações entre a realidade literária dita e escrita. Só por si, e independentemente dos obstáculos que se levantam por entre os caminhos de uma teoria caprichosamente esotérica, a reflexão sempre estimula quem quer que aborde este tema de forma aberta, sem se deixar enredar na teia das (poucas) verdades já feitas. Nesta, como em tantas outras situações, a perplexidade crítica — estado de graça em que muitos se encontram, mas a quem, os insondá- veis caminhos do saber só parcialmente se revelam — avoluma-se e, do que queríamos dizer, pouco ficará escrito e do escrito muito pouco poderá ser dito. Se é verdade que no princípio era o verbo, a palavra, não é menos verdade que, para lá das questões de hermenêutica bíblica que ainda hoje se colocam, a palavra rapidamente passou para a pedra escrita da Lei das Doze Tábuas, para o pergaminho dos manuscritos evangélicos ou, se quisermos retroceder no tempo, a oralidade dos contos egípcios como que esfingicamente emudeceu na, para nós enigmática, escrita hieroglífica. Sinais, signos, símbolos; significantes e significados de tempos imemorais sempre se comprovando, no entanto, que o dito precedeu o escrito; que o dito foi mito e mitologia, bem antes de o homem escrever as suas mitografias. E mesmo neste caso devemos recordar a pertinente reflexão de Lévi Strauss quando escreve: «(...) a oposição simplificada entre Mitologia e História que estamos habituados a fazer — não se encontra bem definida, e que há um nível intermédio. A Mitologia é estática: encontramos os mesmos elementos mitológicos combinados de infinitas maneiras, mas num sistema fechado, contrapondo-se à História, que, eviden-temente, é um sistema aberto» [Mito e Significado, p. 61]. * Professor Catedrático da Universidade de Coimbra. Director do Instituto de Estudos Portugueses da Universidade de Macau. 489 Não menor valor não apenas referencial tem outra afirmação igualmente corrente, que nos lembra que o escrito fica e as palavras voam. No entanto, se é verdade que, quotidianamente, invocamos este velho princípio para exigirmos que as pessoas se vinculem pela palavra escrita aos actos que praticam, facilmente verificamos que em termos culturais o voo das palavras é digno de ser acompanhado, em toda a sua liberdade criadora, mesmo quando nos surgem estropiadas por compa- ração com a normatividade que regula e policia o sistema linguístico que todos utilizamos. As palavras que voam não são exactamente para se perder. Mais tarde ou mais cedo reencontram o ninho, ou alguém as recolhe como que querendo-as obrigar a merecido descanso depois de tanta deambulação. Mas se alguma característica têm as palavras, é a sua rebeldia. Apesar de letra (e não há letras mortas desmentindo o dito!) elas revivem na apropriação do leitor, na oralidade — pureza original de toda a sua existência. Longe de se poder codificar qualquer itinerário, verificamos assim que do dito ao escrito não existe caminho de sentido único. Antes uma via de dupla circulação em que, pelos trilhos e veredas do imaginá- rio humano, se cruzam, complexamente, duas formas de expressão cultural. Pode parecer óbvio; mas não se pode deixar de referir que as chamadas camadas populares — mais próximas do dito pela sua expressão oral nunca são camadas incultas. São quando muito iletradas e, como tal, incapazes de reduzir a código escrito — passar à letra, ao escrito, aquilo que dizem e é a mais pura expressão dos seus valores e, em última análise, a representação cultural de um universo real e fantástico, quantas vezes fantasmático — que escapa ao homem da cultura massificadora do nosso quotidiano. Como se vê, se por um lado há fortes razões para crer na anterio- ridade da palavra sobre a sua reificação escrita, não se pode ignorar que muitas vezes foram autores de escrita, homens de letras, quem produziu um corpo teatral que depois cai no domínio da oralidade para se afirmar como peça autónoma, libertando o que parecia para sempre agrilhoado a página escrita. Impossível assim qualquer dicotomia maniqueísta; antes, e bem salutarmente, dito e escrito sempre se cumpriram numa trajectória de complementaridade recíproca. Mais: num trajecto de vai-vem que obri-ga o estudioso a nunca poder cristalizar porque as relações nunca são facilmente redutíveis, as categorias que permitem afirmar a anteriorida-de de um momento sobre o outro desmentem a univocidade, confirman-do simultaneamente a complexidade deste processo. Igualmente se torna difícil (e mesmo cientificamente perigoso), afirmar que um dos fenómenos é tipicamente popular e o outro caracte- risticamente erudito ou, no mínimo, culturalmente mais elaborado. Todos conhecemos, neste e noutros domínios, como é comum verifica- rem-se fenómenos de apropriação. Os autos de Balthazar Dias, de matriz humanística — embora recheados de um filão em tudo herdeiro da verve vicentina, foram apropriados pelas classes não letradas. Com eles se 490 identificou um certo imaginário popular durante muitos séculos, para chegar aos nossos dias, recheado de novos ingredientes que mais acentuam a oscilação entre sagrado e profano. Com efeito só assim se explica que um dos Autos, mais concretamente O Auto de Santa Catharina virgem e Martyr, filha do rei Godo de Alexandria, em o qual se conta seu martyrio e glorioso fim, tenha sobrevivido ao longo dos tempos, numa prova de vitalidade editorial que já se detecta na literatura de cordel em pleno século XVII, e que chega até aos nossos dias, em pleno nordeste transmontano (S. Martinho) estabelecido em casco escrito pela mão de Américo dos Santos Ferreira. Curiosamente, o Auto apresenta ao lado de todas as suas figuras iniciais, duas outras: Lusbel e Satanás que interrompem o fio discursivo tradicionalmente aceite para se apresentarem ao público leitor como motivadores maléficos da vontade do Imperador. No resto poucas são as diferenças. Quase sem temer, diríamos que o texto chegou reduzido à sua textualidade através de uma das muitas edições que hoje conhecemos. No entanto, como interpretar esta deliberada intervenção das forças do mal, por oposição ao Anjo que redentoramente alimenta Santa Catarina em todos os momentos de desfalecimento? Mais curioso ainda será verificar que Lusbel e Satanás são em tudo — mesmo na estrutura formal do texto que lhes dá voz — parentes próximos dos diabos vicentinos, neste caso concreto com ressonâncias que lembram alguns diálogos entre Belzebu e Satanás no Breve Sumário da História de Deus. Exemplos contrários encontramos na constante reelaboração literária, a que tantos autores procedem, de mitos, lendas, fábulas ou contos populares que se costumam adjectivar como tradicionais. É esta tradição aquilo que se arrasta; que muitas vezes nos perturba. É ainda esta tradição que leva a que muitos na ânsia de a querer ver codificada para sempre leva a que ao transcrevê-la o façam não respeitando o seu espírito e voz, acabando por a decantar pela óptica do seu filtro (julgado mais culto, mais capaz para corrigir — quantas vezes de boa fé — aquilo que é expressão autêntica de uma comunidade. Ao sentido globalizante de cultura há pois que contrapor o valor particularizante de subsistemas culturais, não como parcelas que o crítico adiciona ou subtrai mas que, quantas vezes por razões metodológicas, apenas momentaneamente «isola» para melhor captar, em busca de uma definição, o vago sentido de «cultura popular». Com efeito, este é um dos muitos subsistemas dotados de autonomia relativa, com mecanismos de elaboração e meios de expressão próprios. Se esta sua especificidade dele faz um campo autónomo, também ao nível da análise crítica, não a diferencia na sua essência dos demais subsistemas culturais.