Pesquisa científica e circulação do conhecimento: e a constituição do campo da física no Brasil Sergio Lamarão*

O presente artigo apresenta alguns resultados parciais do projeto “O CNPq e a constituição do campo científico no Brasil: biografias de cientistas”, parte integrante de um projeto mais amplo, denominado “História social da ciência e da formação científica no Brasil (1951-2011): um estudo prosopográfico”, de autoria de Heloisa Bertol, Carlos Alberto Coimbra e Alex Varela. Desenvolvido no âmbito da Coordenação de História da Ciência (CHC) do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), este projeto visa, primordialmente, recuperar as informações disponíveis na documentação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (particularmente as atas e os anais das reuniões do Conselho Deliberativo) depositada no MAST, transformando-as em quadros, tabelas e séries estatísticas fidedignas, de modo a permitir usos os mais diversos por parte dos interessados. Esse vasto material – que reúne, entre outras, informações sobre diferentes modalidades de auxílio oferecidas pelo Conselho (bolsas de especialização, mestrado e/ou doutorado, recursos para realização de congressos e outros eventos, para viagens, publicação de anais e revistas científicas, aquisição de equipamentos etc.) – já foi alvo de esforços anteriores, que permitiram a identificação de um considerável contingente de beneficiários. Com efeito, a planilha que serve de base para a materialização do projeto das biografias e de outros projetos do projeto “guarda-chuva” reúne cerca de 13.000 entradas, contendo como informações básicas os nomes dos beneficiários, os processos (incluindo a data) que encaminham a concessão dos auxílios, bem como a natureza do auxílio, o montante envolvido etc. A consulta a essa listagem nos permitiu extrair os nomes dos beneficiários que correspondem, grosso modo, à relação dos verbetes biográficos. Até o momento foram elaboradas 104 biografias. Os sites das entidades que congregam os diversos ramos da ciência brasileira constituem fontes fundamentais para a execução do projeto, incluindo os da Academia Brasileira de Ciências e de outras entidades científicas, e o do Dicionário Histórico- Biográfico Brasileiro, do Centro de Pesquisa e Documentação de História ______

* Doutor em História pela UFF e pesquisador-visitante Museu de Astronomia e Ciências Afins.

Contemporânea do Brasil, da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) (fui um dos coordenadores da segunda edição em papel, lançada em 2001). Ademais, pretendo recorrer à bibliografia disponível e eventualmente à coleta de depoimentos. Em relação aos verbetes de astrônomos, posso contar ainda com material levantado em projeto desenvolvido na Coordenação de História da Ciência entre 2012 e 2014, sob a coordenação da pesquisadora Christina Helena da Motta Barboza, a respeito da trajetória institucional do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), e que incluiu a realização de entrevistas com mais de 20 astrônomos. Em relação aos matemáticos, tenho à minha disposição entrevistas que realizei anos atrás, no CPDOC/FGV, no âmbito de projeto sobre a história do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA). Foram adotados, neste texto, dois critérios básicos para a delimitação do objeto de pesquisa: o primeiro, de natureza cronológica, cobre a década de 1950, correspondendo, pois, aos anos iniciais de atuação do CNPq (criado em janeiro de 1951); o segundo privilegiou aqueles cientistas que participaram, de uma ou outra maneira, da formação/alimentação das chamadas redes científicas transnacionais. Esses nomes compreendem, grosso modo, dois grupos: o de cientistas estrangeiros que vieram para o Brasil na década de 1930, no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e mesmo no imediato pós-guerra, aqui fizeram/consolidaram suas trajetórias profissionais, e o de jovens cientistas brasileiros que completaram sua formação acadêmica no exterior, já nos anos 1950, em um momento que a pós-graduação praticamente não existia no Brasil. Muitos destes últimos foram alunos dos primeiros e puderam contar com as ligações externas de seus mentores para a escolha desta ou daquela instituição de ensino e/ou pesquisa na Europa ou nos Estados Unidos. Vale salientar que, nesse momento, os circuitos europeus, interrompidos ou seriamente comprometidos durante o conflito, estavam se reconstituindo, tendo como pano de fundo a recuperação da economia mundial. O enfoque metodológico segue, como não poderia deixar de ser, o do projeto “guarda-chuva”. Seu eixo definidor é a prosopografia, vista enquanto estudo das características dos indivíduos que compartilham alguma coisa em comum, por exemplo,

por aparecerem em alguma fonte de referência de uma certa região em certo período, ou por pertencerem a uma mesma esfera social ou campo profissional. Neste sentido o projeto pretende contribuir para a montagem de uma base para a pesquisa prosopográfica em ciência e tecnologia no Brasil, explorando as relações de estudantes, pesquisadores e instituições, lançando mão de suas ligações internas, i. e. dentro do país, e de suas ligações externas, com indivíduos e instituições de outros países, bem como com agências de fomento.

A década de 1950 no Brasil: ciência, tecnologia e desenvolvimento Durante a Segunda Guerra Mundial teve lugar uma profunda transformação na relação entre ciência e Estado, cujos impactos se estenderiam nos anos que se seguiram ao final do conflito. Os recursos públicos destinados à pesquisa aumentaram significativamente, assim como multiplicaram-se as descobertas e invenções, passando a ciência a ser vista como fundamental para o desenvolvimento econômico e social das nações. O Estado tornou-se o responsável pela sustentação financeira da pesquisa básica, de modo organizado e institucionalizado, dando início à aplicação de políticas científicas, mediante as quais os governos definiriam as prioridades na alocação dos recursos para pesquisa (Albagli, 1987, p. 17 e 18). O Brasil não fugiu à regra. Quando Getúlio Vargas retornou à presidência em janeiro de 1951 a questão do desenvolvimento estava na ordem do dia. Era fundamental superar as profundas deficiências nas áreas de produção de energia e de transporte, e melhorar os precários indicadores sociais, sobretudo na educação e na saúde pública. Retomando em novas bases as linhas mestras da política econômica do Estado Novo, Vargas centrou seu projeto de governo no desenvolvimento industrial. O Estado passou a desempenhar papel determinante na formulação e na execução de políticas econômicas, mediante a criação de órgãos como a Assessoria Econômica da Presidência da República (1951) e da Comissão de Desenvolvimento Industrial (1951). O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, criado em 1952, foi de importância fundamental para o financiamento de diversos projetos industriais. Não é demais lembrar que a Petrobras, criada em 1953, também foi uma iniciativa do segundo governo Vargas.

Passando ao que nos interessa mais de perto, Getúlio e seus auxiliares enfrentaram a fragilidade tecnológica e científica do país através da criação, em 1951, da Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)1 e do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), no qual nos deteremos. Prova cabal do reconhecimento e da institucionalização da ciência no Brasil, essas organizações tinham como interlocutores uma rede de instituições de ensino universitário que então se estruturava e com a comunidade científica, organizada desde 1948 em torno da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)2. Criado em 15 de janeiro de 1951, no apagar das luzes do governo do presidente Eurico Gaspar Dutra e duas semanas antes da volta de Getúlio à presidência, o CNPq resultou de discussões iniciadas em 1946 e que ganharam forma em abril de 1949. Nessa ocasião, Dutra nomeou uma comissão presidida pelo almirante Álvaro Alberto, especialista em política nuclear, cujos estudos para a criação de um conselho de pesquisas deram origem a um anteprojeto de lei, apresentado em maio seguinte ao Congresso. O anteprojeto propunha a criação de um órgão de supervisão “capaz de traçar rumos seguros aos trabalhos de pesquisas científicas e tecnológicas no país, desenvolvendo-os e coordenando-os de modo sistemático” (Kornis, 2009 (2001), p. 1549). Subordinado diretamente ao presidente da República, o CNPq tinha por objetivo central realizar estudos e prospecções das reservas nacionais de materiais adequados ao aproveitamento da energia atômica, como o urânio, o tório, o cádmio, o lítio, o berílio, entre outros, bem como atuar no campo da produção de combustíveis nucleares e da formação de especialistas capazes de projetar e construir reatores nucleares. A orientação e o controle das atividades de aproveitamento da energia atômica caberiam exclusivamente ao Estado3.

1 Hoje denominada Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a Capes foi criada em julho de 1951, com o objetivo de "assegurar a existência de pessoal especializado em quantidade e qualidade suficientes para atender às necessidades dos empreendimentos públicos e privados que visam ao desenvolvimento do país". 2 Sediada em São Paulo, a SBPC foi criada com o objetivo de promover a ciência, a educação e cultura no país, por meio de publicações, conferências e ações políticas. 3 O projeto de autonomia do Brasil no campo da energia nuclear sofreu sérios percalços. Em fevereiro de 1952, foi criada a Comissão de Exportação de Materiais Estratégicos (CEME), encarregada do controle de todas as atividades referentes ao aproveitamento da energia atômica.

A outra finalidade básica do conselho era a criação de recursos humanos, através da implementação de programas de auxílio à formação e ao aperfeiçoamento de pesquisadores e técnicos. Nos seus primeiros anos, o CNPq atuou principalmente no contato com pesquisadores e instituições de pesquisa, concessão de auxílios para pesquisas, formação e aperfeiçoamento de pesquisadores, reuniões científicas e intercâmbio com instituições estrangeiras e internacionais, e trabalhos no campo da energia atômica. Inicialmente, as áreas que receberam maiores recursos sob a forma de bolsas e de auxílios de estudo e aperfeiçoamento foram as de química, ciências biológicas (aí entendidas medicina, zoologia, botânica, veterinária, paleontologia) e física. Para os efeitos deste artigo, nós nos limitaremos à área da física e mais precisamente a um físico sênior e à rede por ele por assim dizer montada.

Gleb Wataghin e a delimitação do campo da física no Brasil

No momento da criação do CNPq, a física brasileira contava com duas instituições mais importantes. No Rio de Janeiro, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) dava seus primeiros passos, criado que fora em janeiro de 1949. Já São Paulo contava, desde meados dos anos 1930, com as atividades desenvolvidas no Departamento de Física, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), da Universidade de São Paulo (USP). A Universidade de São Paulo fora criada em janeiro de 1934 por iniciativa do governo estadual, mediante a incorporação de algumas escolas superiores já existentes, de diversos institutos técnico-científicos mantidos pela administração estadual e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), fundada na mesma ocasião. Seus mentores decidiram formar o corpo docente da nova universidade com professores europeus. A situação internacional, marcada pelo nazismo e pelo fascismo na Europa, viabilizou essa pretensão, favorecendo a vinda de renomados profissionais para as mais diferentes áreas do conhecimento.

Com direito a voto nas decisões da CEME, o CNPq opôs-se aos sucessivos acordos de exportação de minerais nucleares firmados com os EUA até 1956. Nesse ano, a CEME foi substituída pela Comissão Nacional de Energia Nuclear, diretamente subordinada à Presidência da República, que passou a orientar a política nacional de energia atômica (Kornis, 2009 (2001)..

Para a subseção de física, foi contratado o professor Gleb Wataghin (1899- 1986). Nascido na Ucrânia numa abastada família judia, após a Revolução Russa, transferiu-se para Turim em 1919. Formou-se em física em 1922, e em matemática em 1923, iniciando em seguida brilhante carreira acadêmica. Contratado como assistente da Escola Politécnica da Universidade de Turim em 1924, qualificou-se em 1929, ainda na Politécnica, como livre docente em física teórica. Nesse mesmo ano, naturalizou-se italiano. Estudioso dos raios cósmicos a partir de 1931, realizou diversas viagens de estudos pela Europa, estabelecendo relações profissionais com Miels Bohr, Walter Heitler, Werner Heisenberg, Max Born e Wolfgang Pauli, a elite da física da época. Em 1933, o matemático Teodoro Ramos, por sugestão do famoso físico italiano Enrico Fermi, procurou Wataghin e lhe fez o convite para assumir a cátedra de física e a direção do Departamento de Física da FFCL. Assim, em 1934, quando já era considerado pelos seus pares como um dos líderes da física de raios cósmicos, Wataghin transferiu-se para São Paulo. À frente do Departamento de Física, inaugurou uma nova concepção do ensino da disciplina, inclusive nos cursos para os engenheiros da Escola Politécnica, e abriu duas linhas de pesquisa trazendo novas práticas e possibilidades de conhecimento dessa ciência: a de física teórica, com Mário Schenberg, entre outros, e a de física experimental, voltada para os raios cósmicos, com de Souza Santos e Paulus Aulus Pompeia, entre outros, visando detectar a produção múltipla de mésons. As pesquisas tinham lugar, inicialmente, em instalações precárias, os instrumentos eram concebidos e confeccionados nos próprios laboratórios onde trabalhavam, lado a lado, professores, assistentes e técnicos. Lançando mão da sua rede de contatos, Wataghin trouxe para São Paulo alguns dos mais prestigiados profissionais da física do período. Um caso exemplar é o do italiano (1907-1993). Em 1937, insatisfeito com o regime fascista, atendeu ao convite de Wataghin e deixou a Universidade de Florença, transferindo-se para o Departamento de Física da USP. Conhecido por suas pesquisas na detecção de elétrons positivos, e por seu trabalho com Patrick Blackett (Prêmio Nobel 1948) em 1932, na Inglaterra, Occhialini permaneceu no Brasil até 1944. Outra colaboração importante assegurada por Wataghin foi a do norte-americano Arthur Compton (1892- 1962), vencedor do prêmio Nobel de Física em 1927. Em agosto de 1941, ele organizou

com Compton uma expedição para medir e detectar as radiações cósmicas em São Paulo, reunindo pesquisadores da USP e da Universidade de Chicago. A chamada Expedição Compton utilizou-se de 21 balões de hidrogênio carregados com contadores, lançados em Bauru e Marília. A partir dessas experiências foi possível se detectar, pela primeira vez, os chamados chuveiros penetrantes. Em 1942, por causa da entrada do Brasil na guerra ao lado dos Aliados e do rompimento das relações diplomáticas com a Itália, Wataghin deixou a chefia do Departamento de Física, mas não interrompeu suas pesquisas. Assim, em colaboração com Oscar Sala e Elza Gomide, obteve a medida do coeficiente da absorção das radiações cósmicas. Após o término da Segunda Guerra Mundial (1945), regressou à Itália em 1949, assumindo a direção do Instituto de Física da Universidade de Turim, onde continuou seus trabalhos sobre os raios cósmicos. A partir de então, retornou ao Brasil duas vezes na década de 1950: em 1952, para um breve curso; em 1955, para receber o título de doutor honoris causa da USP. Em sua homenagem, a Universidade de Campinas deu ao seu instituto de física, em 1966, o nome de Gleb Wataghin.

O retorno de Wataghin à Itália, embora não tenha significado a interrupção das pesquisas do grupo de raios cósmicos, contribuiu para sua progressiva desativação. A correspondência trocada por ele com seus colaboradores dão conta das dificuldades, bem como das realizações. A despeito dos esforços da direção do Departamento de Física, o grupo acabou efetivamente se dispersando por falta de apoio das instâncias administrativas superiores da USP (Instituto de Física, USP). . A relação que Wataghin estabeleceu com seus alunos determinou de uma forma mais ou menos direta as trajetórias que seguiriam, pelo menos no curto prazo. Seu prestígio e os contatos que mantinha com os grandes nomes da física mundial lhe permitiram enviar para o exterior um conjunto significativo de jovens físicos brasileiros, que depois de terem trabalhado com ele dois ou três anos, puderam dar prosseguimento à sua formação profissional e, retornando ao país, promover o avanço das pesquisas então em curso. Traçamos, a seguir, um breve perfil profissional de alguns dos seus ex- alunos do Departamento de Física, buscando revelar como esses percursos se entrecruzaram.

Engenheiro eletricista pela Escola Politécnica e físico formado pela FFCL/USP em 1939, Paulus Aulus Pompeia (1911-1993) tornou-se nesse mesmo ano assistente de Wataghin na cadeira de física geral e experimental. Integrante do grupo que pesquisava raios cósmicos, dedicou-se ao desenvolvimento de novos equipamentos de detecção. Em 1940, por intermediação de Wataghin, foi convidado por Arthur Compton a estagiar na Universidade de Chicago, onde desenvolveu novas técnicas de medição das radiações cósmicas. Em julho de 1941 interrompeu temporariamente suas pesquisas, retornando ao Brasil para participar da Expedição Compton. Com a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial em dezembro de 1941, regressou de vez ao Brasil. Participou do esforço de guerra em que se envolveu o Departamento de Física, responsabilizando- se pela construção de um aparelho para medir a velocidade inicial dos projéteis. Também participou, juntamente com outros físicos na produção de equipamentos de localização e detecção de submarinos. No final da década de 1940, foi um dos principais organizadores do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, em São José dos Campos, assumindo a direção do Departamento de Física e Química da instituição. Aluno do curso de engenharia elétrica da Escola Politécnica, Marcelo Damy de Souza Santos (1914-2009) teve a oportunidade de assistir os cursos de Gleb Wataghin, o que o levou a abandonar a engenharia e a se matricular no curso de física, em 1936. Formado em 1938, nesse mesmo ano tornou-se assistente de Wataghin na cadeira de mecânica racional, dedicando-se ao estudo dos raios cósmicos, sobretudo à construção dos contadores e circuitos elétricos necessários às pesquisas. Meses depois, Wataghin o enviou à Inglaterra, para fazer um estágio com William Bragg no Laboratório Cavendish, da Universidade de Cambridge. De volta ao Brasil, Damy deu continuidade às pesquisas com raios cósmicos e participou da Expedição Compton. Professor da cadeira de física geral e experimental em 1941, substituiu Wataghin na direção do Departamento de Física em 1942. Nesse período, a USP criou o Fundo Universitário de Pesquisas para a Defesa Nacional que financiou pesquisas do Departamento de Física para a Marinha, entre as quais a do Sonar, sistema para captação de submarinos na costa brasileira. Terminada a guerra, ainda em 1945 Damy seguiu com Wataghin para os EUA a fim de escolher o tipo de acelerador de partículas a ser instalado no Departamento.

Depois de estagiar na Universidade de Illinois sob a orientação de Donald Kerst, o descobridor do betatron, e de Maurice Goldhaber, deu início, em 1949, à construção do betatron. Inaugurado em 1950, foi ele o primeiro acelerador do país e da América Latina, e o ponto de partida das pesquisas sobre física nuclear no Brasil. Membro da Comissão de Energia Atômica do CNPq de 1955 a 1956, neste último ano fundou, na USP, o Instituto de Energia Atômica (IEA). Mediante convênio com o CNPq, construiu e instalou o reator do tipo piscina no IEA. Dirigiu o IEA até março de 1961. Após se bacharelar em matemática pela FFCL/USP em 1936, Mário Schenberg (1914-1990) foi designado assistente da cadeira de física teórica, regida por Gleb Wataghin. Em 1938 licenciou-se da USP para estagiar no Instituto de Física de Roma, sob a orientação de Enrico Fermi, e na Universidade de Zurique, com Wolfgang Pauli, por recomendação de Wataghin. Em 1940, foi para a Universidade George Washington, nos Estados Unidos, onde pesquisou, com George Gamow, o papel dos neutrinos, trabalho conhecido como Processo Urca. Estagiou também no Instituto de Estudos Avançados de Princeton e no Observatório Astronômico de Yerkes, retornando ao Brasil em 1942. Professor catedrático da cadeira de mecânica racional, celeste e superior, a partir de 1944, em 1947, a convite de Giuseppe Occhialini, a quem havia conhecido na USP, transferiu-se para a Bélgica como pesquisador do Centro de Pesquisas Nucleares da Universidade de Bruxelas. De volta ao país em 1953, assumiu a direção do Departamento de Física (função que ocuparia até 1961), tendo tentado criar a cadeira de raios cósmicos, mas não foi bem sucedido. Diferentemente dos físicos apresentados até agora, José Leite Lopes (1918- 2006) fez o curso de física na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, concluindo-o em 1942. Contudo, já no ano seguinte, transferiu-se para São Paulo, onde frequentou os cursos de Gleb Wataghin e Mário Schenberg. Os contatos que estabeleceu no Departamento de Física da USP certamente lhe foram úteis para a sua trajetória profissional. Prosseguiu seus estudos na Universidade de Princeton, onde realizou vários trabalhos com J. M. Jauch, e em 1946 doutorou-se por essa universidade, defendendo tese sobre a teoria das forças nucleares, sob a orientação de Wolfgang Pauli. Em 1949, estagiou no Instituto de Altos Estudos de Princeton, sob a direção do célebre Robert Oppenheimer, um dos pais da bomba

atômica. De volta ao país, participou da fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), do qual se tornou professor titular. Ainda em 1949 assumiu a chefia do Departamento de Física Teórica do CBPF, nela permanecendo até 1955. Membro da Comissão de Energia Atômica do CNPq de 1955 a 1956, trabalhou com Richard Feynman no Instituto de Tecnologia da Califórnia, de 1956 a 1957 amparado por bolsa do CNPq. Em 1960 assumiu a direção científica do CBPF. A exemplo de Leite Lopes, Jayme Tiomno (1920-2011) também fez a sua graduação em física na Universidade do Brasil, concluindo o curso em 1941. Começou a sua carreira acadêmica na Faculdade Nacional de Filosofia, mas em 1947 transferiu-se para São Paulo, contratado como primeiro assistente das cadeiras de física superior e mecânica racional da FFCL/USP, onde trabalhou com Gleb Wataghin e Mário Schenberg. Mestre e doutor em física pela Universidade de Princeton, ali desenvolveu várias pesquisas no campo da física de partículas elementares, em colaboração com John Wheeler e Eugen Wigner, integrantes da vasta rede de conhecimentos de Wataghin. Em 1952 voltou ao Rio de Janeiro, contratado como professor titular do CBPF, do qual havia sido um dos fundadores em 1949. Em 1953 retornou à Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, como assistente da cadeira de física teórica, regida por José Leite Lopes. Durante o ano de 1959 esteve como professor visitante no Departamento de Física do Imperial College de Londres. Ao regressar ao país foi nomeado professor adjunto de física superior da Faculdade de Filosofia. Engenheiro mecânico e eletricista em 1947 pela Escola Politécnica da USP, Roberto Salmeron (1922- ) migrou no ano seguinte para a física, tornando-se assistente da cadeira de física da Politécnica e ingressando em seguida no curso de física da USP. Último assistente brasileiro de Gleb Wataghin, dedicou-se à construção de contadores Geiger-Muller em linha industrial, de grande importância para as pesquisas no campo da física dos raios cósmicos. Após o retorno de Wataghin para a Itália, transferiu-se em 1950 para o Rio de Janeiro, contratado pelo recém-criado CBPF. Depois de concluir o curso de física na Universidade do Brasil, licenciou-se do CBPF em 1953 para estagiar no laboratório de Patrik Blackett, amigo de Occhialini, na Universidade de Manchester. Nessa universidade, especializou-se nas técnicas da Câmara de Wilson com Joe Utley,

obtendo o grau de doutor em física em 1954. Ainda em 1954 foi contratado pelo Centre Européen de Recherches Nucléaires (CERN), em Genebra, onde trabalhou até 1964 Aluno do curso de física da FFCL/USP a partir de 1941, Oscar Sala (1922- 2010) tornou-se, nesse mesmo ano, auxiliar de Gleb Wataghin em suas pesquisas no campo dos raios cósmicos, dedicando-se, sobretudo, à construção de novos aparelhos de detecção. Em 1942, em colaboração com Wataghin e com Elza Gomide, obteve a primeira medida do coeficiente de absorção das radiações cósmicas. Desenvolveu o projeto do acelerador eletrostático encomendado pela USP, do tipo Van der Graaf, o primeiro a utilizar feixes pulsados para estudos sobre reações nucleares com nêutrons rápidos. Também participou da construção de transmissores de rádio portáteis para o Exército, durante a Segunda Guerra. Formado em 1945, tornou-se assistente da cadeira de física geral e experimental, regida por Marcelo Damy. Em 1946 seguiu para os Estados Unidos, a fim de estagiar na Universidade de Illinois sob a orientação de Maurice Goldhaber, com quem desenvolveu vários trabalhos sobre o isomerismo nuclear. Em 1948, transferiu-se para a Universidade de Wisconsin para trabalhar com Raymond Herb no projeto do acelerador eletrostático encomendado pela USP, do tipo Van der Graaf. De volta ao Brasil no ano seguinte, iniciou a construção do Van der Graaf, em funcionamento em 1954. Físico formado pela FFCL/USP em 1943, Cesar Lattes (1924-2005) tornou- se assistente de Gleb Wataghin na cadeira de física teórica e física matemática, no ano seguinte. Em 1946, foi contratado como pesquisador associado pelo Laboratório H. H. Wills Physical, da Universidade de Bristol, acompanhando Giuseppe Occhialini, de quem fora aluno na USP. Membro de grupo de pesquisa chefiado por Cecil Powell, em 1947, tornou-se mundialmente conhecido pela descoberta do méson-Pi, através da exposição de chapas de emulsões nucleares à ação dos raios cósmicos. De volta ao Brasil, retomou suas atividades na USP, da qual recebeu, em 1948, o título de doutor honoris causa. Ainda em 1948 seguiu para Berkeley, EUA, contratado pelo Radiation Laboratory da Universidade da Califórnia. Operando com o ciclotron desse laboratório, obteve, em colaboração com Eugene Gardner, a produção artificial de mésons pesados, ponto de partida para muitas descobertas no campo da física de partículas elementares. Regressando ao país em 1949, participou da criação do CBPF, do qual foi o primeiro

diretor-científico. Nesse mesmo ano deixou a USP para reger a recém-criada cadeira de física nuclear da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. A partir de 1951, dedicou-se à instalação de laboratórios de raios cósmicos em La Paz e no pico de Chacaltaya, na Bolívia, colaborando com missão de especialistas chefiada por Occhialini. Em 1955 deixou a direção científica do CBPF, seguindo para os EUA como pesquisador associado do Instituto de Pesquisas Nucleares Enrico Fermi, da Universidade de Chicago. No ano seguinte, também como pesquisador associado, transferiu-se para a Universidade de Minnesota, dedicando-se ao estudo dos fenômenos produzidos pela interação de raios cósmicos de altas energias em emulsões nucleares expostas a 30 mil metros de altitude (balões livres). De volta ao Rio de Janeiro em 1957, retomou suas atividades docentes no CBPF e na Faculdade Nacional de Filosofia. Em 1960 deixou a Universidade do Brasil para assumir a cátedra de física superior do Departamento de Física da Faculdade de Filosofia da USP, onde instalou um laboratório de emulsões nucleares. José Goldemberg (1928- ) e José Israel Vargas (1928- ) não tiveram uma relação direta com Gleb Wataghin, mas sim com dois dos seus discípulos mais próximos. Goldemberg foi bolsista de Marcelo Damy no curso de Física da USP, auxiliando-o na instalação do acelerador Betatron. Formado em 1950, no ano seguinte foi para o Canadá, e em seguida, transferiu-se para a Universidade de Illinois, onde trabalhou com Donald Kerst, inventor do Betatron. Lá construiu o primeiro monocromador de fótons para a radiação de bremsstrahlung. De volta ao Brasil, doutorou-se em 1954, sob a orientação de Marcelo Damy. Já Vargas, embora químico de formação, desde cedo mostrou interesse pela física, lecionando a disciplina em colégios e cursos de pré-vestibular. Assim, em 1952, fez um curso de aperfeiçoamento para professores de física organizado exatamente por Paulus Aulus Pompeia no ITA, com recursos do CNPq. O curso contava com grandes nomes da física brasileira como professores e conferencistas, além de dois importantes físicos norte-americanos, o físico teórico Richard Feynman (Prêmio Nobel 1965), conhecido por sua contribuição à mecânica quântica, e David Bohm4. Contratado pelo ITA, em 1954 foi trabalhar no

4 Físico consagrado, estudioso da teoria quântica, Bohm foi perseguido pelo macartismo por sua proximidade com a esquerda norte-americana. Em plena guerra-fria, perdeu seu emprego na Universidade de Princeton. Veio para o Brasil, transferindo-se para o Departamento de Física da

Instituto de Pesquisas Radioativas (IPR) da Universidade de Minas Gerais. Ente 1956 e 1959, fez o doutorado na Faculdade de Física e Química, da Universidade de Cambridge, tendo Alfred Maddock como orientador. À época lecionavam ali cientistas do porte de James Chadwick, descobridor do nêutron, e Otto Frisch, autor do primeiro modelo da fissão nuclear. De volta ao Brasil, foi um dos formuladores da política de energia nuclear do país, vindo a chefiar a Divisão de Física Nuclear do IPR entre 1960 e 1963. Nascido nos anos 1930, Ernst Hamburger (1933- ) pertence a uma outra geração de físicos, tendo feito a graduação já nos anos 1950. Formado em física em 1954, na FFCL/USP, durante o curso foi aluno de dois discípulos diletos de Wataghin, Marcelo Damy e Mário Schenberg, e de outro ex-assistente, Oscar Sala, e ainda do já mencionado David Bohm, entre outros. Durante a graduação, trabalhou no laboratório do acelerador eletrostático van der Graaff, que estava sendo construído sob a orientação de Sala. Sua formação coincidiu com o início das atividades do CNPq, tendo feito parte da primeira turma de bolsistas de iniciação científica (denominação atual) da instituição. Depois de uma temporada na Universidade de Pittsburgh, onde fez o doutorado entre 1957 e 1959, retornou a São Paulo, como assistente da cadeira de física teórica, dirigida por Mário Schenberg, e depois, da disciplina de física nuclear (dirigida por Oscar Sala), continuou as investigações experimentais utilizando os aceleradores de São Paulo - Eletrostático e Betatron, em colaboração com José Goldemberg. Os nomes aqui mencionados não esgotam a lista completa de pesquisadores brasileiros em física que se beneficiaram do convívio com Wataghin e seus discípulos. Podemos acrescentar a esse rol, entre outros, Yolande Monteaux (1910-1998), Jean Meyer, (1925-2010), Samuel MacDowell (1929- ), Moisés Nussenzweig (1933- ), certamente também merecedores de perfis biográficos, mas que por questões de tempo e espaço acabaram não sendo realizados..

USP, onde lecionou e desenvolveu pesquisas entre outubro de 1951 e janeiro de 1955. Sua vinda para o Brasil foi de certo modo promovida por José Leite Lopes e Jayme Tiomno, que estavam então em Princeton, e Mário Schenberg, entre outros. Para maiores informações, ver Freire Jr., Paty e Barros, 1994.

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