Gravação De Telefonemas De Censores
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Gravação de telefonemas de censores – uma questão política no marcelismo Recordings of censors’phone calls – a political issue of Marcelism https://doi.org/10.14195/2183-5462_35_3 Joaquim Cardoso Gomes ICNOVA Resumo Descobertas alguns dias após a revolução de 25 de abril na Comissão de Censura do Porto/Exame Prévio, as gravações de telefonemas de censores de imprensa foram dadas a conhecer apenas por um jornal diário, República, que as considerou “precio- sas gravações”, um documento único nas ditaduras ibéricas, mas mantiveram-se pra- ticamente desconhecidas até serem colocadas on line em 2017 pelo Arquivo da RTP. Neste artigo analisa-se o conteúdo das gravações, identificando o momento da sua produção, entre fevereiro e abril de 1974, bem como os intervenientes nas comissões de censura em Lisboa e Porto. Acompanhamos os vários momentos do registo sonoro desde a rotina do funcionamento da censura no mês de fevereiro de 1974, ao sobres- salto provocado pela Revolução no dia 25 de abril em que a gravação ilustra por for- ma impressiva as últimas horas de um aparelho da censura velho de quatro décadas. Focando o funcionamento da Comissão de Censura do Porto e o seu pessoal po- lítico situa-se a decisão de instalação de gravadores nas comissões do Porto (1970) e Coimbra (1971), na necessidade de controlar a comunicação entre a censura e os jornais, e a comunicação interna entre comissões, nas três cidades em que eram pu- blicados os principais diários do país. O registo magnético surge assim no marcelismo como mecanismo adicional de con- trolo num momento em que o velho modelo de censura prévia tinha dificuldade em dar resposta aos novos desafios da imprensa. No caso do Porto o posicionamento político dos três jornais históricos face ao regime caracterizou-se, sobretudo no pós-guerra, por um distanciamento que, desde a década de 60 levou a um escrutínio mais rigoroso por parte da censura. São igualmente apreciados os problemas internos da Comissão do Porto, as diferenças de critérios entre as comissões de Lisboa e do Porto e o risco de deslizes na leitura de provas sobretudo em áreas sensíveis para o regime como era a guerra colonial. Palavras-chave Estado Novo; marcelismo; censura prévia; gravações; imprensa Abstract Discovered a few days after the revolution of April 25 in the Oporto Censorship Commission/Prior Examination, recordings of phone calls from press censors were made known only by a daily newspaper, República, which considered them “precious ARTIGOS | 37 recordings”, a single document in the Iberian dictatorships, however they remained practically unknown until they were put online by RTP Archive in 2017. In this article the content of the recordings is analysed, identifying the moment of its production between February and April of 1974, as well as the intervenients in the censorship commissions in Lisbon and Oporto. We followed the various moments of the tape recording since the routine of the censorship operation in February 1974 to the start of the Revolution on April 25, in which the recording impressively illustrates the last hours of a four decades old censorship apparatus. Focusing on the work of the Censorship Commission of Oporto and its political staff is the decision to install tape recorders in the Oporto (1970) and Coimbra (1971) Commissions, the need to control communication between the censorship and the newspapers, and communication between commissions in the three cities where the country’s main dailies were published. Magnetic recording thus appears in Marcelism as an additional mechanism of con- trol at a time when the old model of prior censorship had difficulty responding to the new challenges of the press. In the case of Oporto the political position of the three historical newspapers in relation to the regime was characterised, especially in the post-war period, by a distance which, since the 1960’s, has led to a more rigorous scrutiny by censorship. The internal problems of the Oporto Commission, the differences in criteria between Lis- bon and Oporto Commissions, and the risk of slips in the reading of galley proofs, es- pecially in areas sensitive to the regime such as the colonial war, are also appreciated. Keywords New State; marcelism; prior censorship, recordings, press Um dia de tréguas. Os jornais ainda hoje podem ter opinião. Mas de amanhã em diante têm que pensar pela cabeça dos outros. A pena do jorna- lista ficará, assim, reduzida a esse objeto inofensivo de escrever à rasa. Não nos pergunte o leitor o que pensamos de certa atitude ou de certa medida governamental – porque não temos o direito de pensar. O jornal mais bem informado daqui para o futuro, será o Diário do Governo. Diário de Lisboa, 23 de junho de 1926 Introdução Até aos anos 1990 a abordagem da censura à imprensa resultou quer da interven- ção política da oposição à ditadura salazarista-marcelista (Rego, 1969; Carvalho & Car- doso, 1971; Carvalho, 1973), quer dos trabalhos de natureza jornalística, de denúncia do aparelho da censura ou empenhados na recolha de testemunhos dos profissionais que viveram sob o espectro do “lápis azul” (Príncipe, 1979;.Franco, 1993; Azevedo, 1999; Forte, 2000). Uma nova fase marcada pela produção historiográfica académica incidiu não só sobre a condição de jornalista (Sobreira, 2003; Correia & Baptista, 2007, 2010) e a história da imprensa no Estado Novo (Cabrera, 2005; Tengarrinha, 2006, entre outros) como sobre o próprio aparelho da censura à imprensa com recurso a fontes arquivísti- cas, em primeiro lugar, o arquivo da Direção dos Serviços de Censura, o arquivo Oliveira 38 | MEDIA&JORNALISMO Salazar e os arquivos militares, situação decorrente da componente exclusivamente militar do pessoal político da censura à imprensa até 1957 (Gomes, 2006, 2013, 2017). Este estudo complementa a investigação sobre o exercício da censura à imprensa e o seu pessoal político, desde a Ditadura Militar ao consulado marcelista, designadamente a composição das comissões de censura de Lisboa e do Porto sem o que não teria sido possível apreender o modus operandi da máquina censória e de alguns dos seus próceres nos meses que precederam o estertor do regime em abril de 1974 e no próprio dia da Re- volução, momento particularmente relevante nas gravações dos telefonemas de censores. Criada pela Ditadura Militar em junho de 1926 com uma primeira comissão em Lisboa, rapidamente o aparelho censório se estendeu a todo o país, numa base cas- trense, descentralizada, que só com o triunfo do Estado Novo adquiriu, a partir de 1933, com a reestruturação do aparelho pedida por Salazar ao major Álvaro Salvação Barreto, a estrutura que se manteria inalterável até ao 25 de abril: uma direção geral superintendendo três comissões de Lisboa, Porto e Coimbra, com um conjunto va- riável de delegações na província de natureza quase sempre distrital. Tratando-se de um documento sonoro único com registo da atividade censória procedeu-se, inicialmente, à revisão das fontes da imprensa diária nas cidades onde funcionava a estrutura intermédia do aparelho de censura, isto é, as comissões de Lisboa, Porto e Coimbra. A informação veiculada pela imprensa, em articulação com o curso das operações militares em Lisboa e Porto cujo relato se encontra disponível desde 2017, revelou-se decisiva para a compreensão das atitudes da direção da censura na jornada de 25 de abril. Para o período anterior à Revolução, na rotina das comunicações telefónicas en- tre censores, a análise fina da imprensa foi fundamental para a identificação da data da sua produção, entre finais de fevereiro de 1974 e as vésperas do 25 de abril. Se os testemunhos de jornalistas sobre a comissão de censura do Porto se revelam escassos quando comparados com os de Lisboa, em contrapartida, a documentação arquivística fornece elementos sobre a evolução do pessoal político, as instalações e o relaciona- mento com os jornais do Porto, quer os três diários históricos quer a imprensa sema- nal, nomeadamente a católica, permitindo-nos obter a confirmação sobre o início das gravações no Porto e em Coimbra bem como o contexto político que as determinou. 1. 25 de abril e o fim da censura à imprensa Na manhã de 25 de abril de 1974, Mário Bento, presidente da Comissão Central de Exame Prévio, designação esdrúxula com que Marcelo Caetano procurara encobrir a ve- lhíssima instituição, chegara ao seu part-time matutino, pelas nove horas. Pouco depois telefonava para o vespertino República, questionando o atraso nas provas que os cen- sores do turno da manhã já deveriam ter começado a rever. Alertado pelo censor-chefe para as “graves consequências” de colocar na rua o jornal sem o crivo censório Raul Rego não desmobilizou e, antes do meio dia, o República era o primeiro jornal a sair ostentan- do na capa: “Este jornal não foi visado por qualquer comissão de censura”. A Capital 1, 1 Cf. Esteves, E. (2018). 1968-1969 A Voz de uma Geração “A Capital” Memórias de um Tempo, Lisboa: Âncora Editora, p. 26. ARTIGOS | 39 quase em simultâneo, colocou na rua uma edição à revelia do seu diretor e da censura. Pouco antes, pelas onze horas, a censura fizera nova investida telefónica, por Bento Gar- cia Domingues,2 subdiretor, invocando a sua qualidade de inspetor da Polícia Judiciária, perplexo com a “irresponsabilidade” pelo não envio de provas (Foyos, 2014, pp. 39-40). Nas suas Confidências ao Expresso, Mário Bento recorda o dia 25 de abril como de “trabalho normal” concedendo ter saído “mais tarde do que era habitual, pelas 14 ou 15 horas”, mas não regressou à rua da Misericórdia, preferindo ir para o segundo empre- go como diretor do Centro de Observação Anexo ao Tribunal de Menores de Lisboa.3 Ao começo da tarde quando no Diário Popular se estranhou a não devolução das provas enviadas para censura a redação soube que “na censura, só estavam um oficial e um porteiro (todos os outros funcionários haviam debandado) e este dizia que as provas estavam muito demoradas.” Só então o chefe de redação, Fer- nando Teixeira, “defensor acérrimo do Estado Novo e censor interno” (Rosa, 2017, pp.138-139), deixou de enviar provas quando o estafeta confirmou: “Ó Sr.