Memórias De Uma Falsificadora, a Luta Na Clandestinidade Pela Liberdade Em Portugal Tengarrinha, M
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Memórias de uma falsificadora, a luta na clandestinidade pela liberdade em Portugal Tengarrinha, M. (2018). Lisboa: Edições Colibri, 184 pp. NATIVIDADE MONTEIRO * Éramos jovens e queríamos um mundo melhor, num Portugal onde grassava a miséria, dominado por um pequeno grupo de grandes financeiros, monopolis- tas e latifundiários. Éramos jovens e queríamos a liberdade, pois abafávamos num Portugal dominado por todos os medos. Éramos jovens e queríamos um mundo de paz, traumatizados pelos horrores da Segunda Guerra Mundial. (Tengarrinha, 2018, 20-21) Este livro de memórias de Margarida pretexto da defesa do Estado e a Tengarrinha, com prefácio de ‘bem da Nação’, a PIDE perseguia Manuel Loff, é uma janela aberta e prendia os opositores ao regime, para os tempos sombrios do Estado exercendo particular violência sobre Novo, marcados pelo atraso econó- os militantes do Partido Comunista. mico, a miséria, o analfabetismo e o Num tempo em que a memória das desrespeito pelas liberdades e direi- lutas revolucionárias e dos resisten- tos fundamentais dos cidadãos. A tes ao fascismo parece esboroar-se e * Universidade NOVA de Lisboa, FCSH-Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, IHC-Instituto de História Contemporânea, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, 1069-061 Lisboa, Portugal, [email protected] 198 Faces de Eva, 41 – Leituras a história desses 48 anos de autori- aos perseguidos e lhes forneceram tarismo tende a ser branqueada, este meios, conselhos e materiais para livro é um alerta para as ameaças à o trabalho clandestino. Sem o seu liberdade e à democracia que Abril apoio e discrição, a luta seria bem nos trouxe há 45 anos. Ao lê-lo, fica- mais difícil, senão impossível. Neste mos a conhecer a coragem, deter- livro as memórias individuais de minação, riscos, sacrifícios e medos, uma falsificadora, redactora, ilus- de homens e mulheres que viveram tradora e tipógrafa, lutadora pela e trabalharam na clandestinidade liberdade e defensora da paz e dos contra o regime autoritário de direitos das mulheres, cruzam-se Salazar. Nestas memórias desfilam com a memória colectiva de um personagens conhecidas do PCP, da passado que não podemos bran- sociedade e da cultura, mas também quear ou apagar, porque dá sentido desconhecidas que, “discreta e ano- ao presente e ilumina os caminhos nimamente”, contribuíram para o do futuro. fim do regime. São heróis anónimos Margarida Tengarrinha nasceu que fizeram história, tanto na mili- em 1928, estudou na Escola de Belas tância clandestina e conspirativa, Artes e tinha pela frente um futuro como na retaguarda, dando apoio promissor, quando foi expulsa material e moral aos familiares e da universidade, no último ano amigos. Pais, mães, irmãos e irmãs do curso, e da escola em que dava que acolhiam e educavam netos e aulas, como castigo pelo seu empe- sobrinhos, sofriam as perseguições nho no MUD juvenil e na luta pela da PIDE, visitavam os presos e cho- paz. O roubo do pão ao adversário ravam os mortos. As mortes ocor- era uma das armas do regime, mas riam sob prisão, devido a torturas isso não a impediu de continuar cruéis ou doenças não tratadas, mas na organização das comemorações também nas ruas, quando, impune- do 8 de Março e, sob a direcção de mente, se abatiam a tiro opositores Maria Lamas, preparar relatórios como José Dias Coelho, companheiro para o III Congresso Mundial de da autora e pai das suas filhas. Esta, Mulheres, realizado em Copenhaga na ausência de notícias, julgando-o em 1953. Dez anos depois, acom- preso, soube da sua morte quando panhará Maria Lamas, Alice Sena ele já tinha sido sepultado. Também Lopes, Georgete Ferreira e Laura amigos e amigas, solidária e gene- Cunha ao V Congresso Mundial de rosamente, deram guarida e refúgio Mulheres, realizado em Moscovo. Memórias de uma falsificadora: 197-201 Natividade Monteiro 199 Militante comunista, entrou na clan- e na Roménia. Entre a angústia, a destinidade com o companheiro, autocensura e o remorso que ten- José Dias Coelho, em 1955, com o tava abafar, e o sentido do dever, foi objectivo de montar uma oficina tomando consciência da importân- de falsificação de documentos de cia de lutar com eficácia no único identificação, directamente ligada partido da oposição que então exis- ao secretariado do Comité Central tia para enfrentar o regime. Eficácia, do PCP. Este trabalho ‘monótono e disciplina e entrega a uma luta insípido’, que só eles, como artistas, comum, que ia muito além da indig- poderiam executar, não se coadu- nação solitária, unia solidariamente nava com as expectativas de ‘herói- os militantes e dava força ao ‘colec- cas acções revolucionárias’, mas era tivo partidário’. Destemida e ousada indispensável para a defesa dos clan- mas também cautelosa, Margarida destinos e a acção do partido, tanto nunca foi presa, apesar de ter corrido a nível interno como nas relações o país, assumido várias identidades e internacionais. desempenhado diversas funções ao Todos aceitaram o desafio e a serviço do partido, graças ao apoio responsabilidade com o romantismo e silêncio de amigos e amigas que e destemor próprios da juventude, nunca a denunciaram. e só mais tarde se aperceberam das Margarida Tengarrinha des- dificuldades e sacrifícios que tive- creve os meios e os processos de ram de enfrentar. O corte radical falsificação que improvisaram e com a família, os amigos, o traba- experimentaram até à perfeição, lho artístico e a intensa vida asso- forjando documentos capazes de ciativa e cultural foi o que mais lhes passarem despercebidos aos olhos custou, porque a “profunda e cons- das autoridades portuguesas e ciente dedicação à luta não conse- estrangeiras. O primeiro trabalho foi gue anular a humana condição de o passaporte de Sérgio Vilarigues, militantes” (p. 16). Para Margarida, seguindo-se, entre outros, os bilhe- a separação da sua mãe, doente, tes de identidade dos próprios fal- em estado terminal, foi o primeiro sificadores, diferentes sempre que embate, seguindo-se o da ‘terrível’ mudavam de casa. As casas clandes- separação da filha Teresinha quando tinas, especialmente a da oficina de esta atingiu a idade escolar e, mais falsificações e as tipografias, eram tarde, a da filha Guida, após seis as mais defendidas. As mulheres anos de exílio na União Soviética tinham a responsabilidade de velar 200 Faces de Eva, 41 – Leituras pela imagem construída pela famí- passado ao casal Júlio Martins e lia que as habitava e pela vigilância Natália David, sucederam-se tare- constante a qualquer sinal de perigo. fas mais aliciantes. Margarida, que A adaptação ao aspecto físico da já era responsável pela redacção do personagem, ao vestuário, à origem editorial, maquetagem e ilustra- social e ao sotaque da região a que ção do boletim interno A Voz das se dizia pertencer eram um desafio Camaradas das casas do partido, que punha em risco a verdadeira passou a fazer parte da Comissão identidade e individualidade das de Redacção do Avante!, e o com- clandestinas. A fuga dos dez presos panheiro ficou responsável pelo políticos da cadeia de Peniche e, sector intelectual, onde tinha gran- mais tarde, a dos sete que fugiram des amigos. de Caxias no Mercedes blindado que O ano de 1961 foi particular- Hitler oferecera a Salazar duplica- mente agitado a nível político: o ram o trabalho de falsificação. início da guerra colonial, as movi- Álvaro Cunhal e outros fugitivos mentações da oposição democrática deslocaram-se a casa de Margarida com vista às eleições legislativas e e José Dias Coelho, a fim de serem as manifestações populares contra fotografados e obterem os docu- o regime deram lugar a uma onda mentos que lhes permitissem sair de repressão e de prisões que cul- do país. Cunhal interessou-se pelo minou com o assassinato de José trabalho de falsificação, louvou a Dias Coelho, pela PIDE, em 19 de organização do arquivo fotográfico Dezembro. Tinha 38 anos quando do partido que eles preparavam e a morte saiu à rua num dia assim, aconselhou-os a escrever sobre os cantou José Afonso, em sua home- movimentos unitários e as lutas nagem. As testemunhas do assassi- políticas contra o fascismo. O resul- nato só puderam falar depois do 25 tado foi a edição do livro Crónicas da de Abril. Dos responsáveis, levados Resistência em Portugal, editado em a tribunal e julgados em 1977, só um 1961 no Brasil e depois na URSS, na deles foi condenado a três anos de Checoslováquia e na Roménia, e que prisão, com a atenuante dos bons dinamizou o movimento internacio- serviços prestados. nal e as Conferências pela Amnistia Após a morte do companheiro, dos Presos Políticos Portugueses. Margarida hesitou em continuar, Ao trabalho monótono das visto saber que era difícil uma falsificações, cujo testemunho foi mulher sozinha, com uma filha de Memórias de uma falsificadora: 197-201 Natividade Monteiro 201 dois anos (a outra estava em casa dos Margarida fixou-se no Norte, onde avós), manter-se na clandestinidade. teve a missão de levar as maque- Mas ela era a única que podia refazer tes do jornal para as tipografias do a oficina de falsificações, cujos mate- Porto e de Lisboa, viajando à boleia riais tinham sido levados pela PIDE de um amigo para não ser detectada. quando tinham prendido Júlio e Participou na organização das mani- Natália. Seis meses depois, com tudo festações do 1.º de Maio de 1971 e 15 refeito, partiu para Moscovo para de Abril de 1972, realizadas no Porto trabalhar directamente com Álvaro contra a guerra colonial e a carestia Cunhal. Ele escrevia o programa do da vida. Após o 25 de Abril, saiu da partido e Rumo à Vitória, documen- clandestinidade pela mão do jor- tos aprovados no VI Congresso do nalista César Príncipe, quando lhe PCP, realizado em Kiev, em 1965.