MULHERES CONTRA A DITADURA — MUD JUVENIL 1946-1957 CECÍLIA HONÓRIO

MULHERES CONTRA A DITADURA — MUD JUVENIL 1946-1957 INTRODUÇÃO

A primeira «elite» de mulheres que lutou contra a ditadura no pós-guerra nasceu no Movimento de Unidade Democrática Juvenil (MUDJ, 1946-1957), escola de formação de quadros políticos, inte- lectuais, ativistas, do tempo da ditadura e da democracia. Álvaro Cunhal o desenhou, Mário Soares e outros o fizeram dar passos decisivos. Se os nomes deles estão justamente inscritos — de Mário Soares a Francisco Salgado Zenha, de Octávio Pato, José Dias Coelho, Pedro Ramos de Almeida, Ângelo Veloso, Alberto Vilaça, Carlos Aboim Inglez, António Borges Coelho, Carlos Costa, José Manuel Tengarrinha, Carlos Brito, entre tantos outros —, os delas, tirando as exceções, estão mergulhados na sombra. Filhas de burgueses — juízes, conservadores, médicos, advoga- dos, militares ou empresários —, filhas de oposicionistas, republica- nos sobretudo, à procura de respostas políticas novas, diferentes das de seus pais. O pós-guerra deu sinais de mudança na relação entre rapazes e raparigas, e elas foram a primeira geração a participar na luta política em pé de (relativa) igualdade. Escolarizadas, muitas uni- versitárias, elas mobilizaram operárias e trabalhadoras rurais para o MUDJ, com a sua capacidade de liderança e de organização. Este trabalho destina-se a dar visibilidade às raparigas do MUDJ, que arriscaram, estiveram presas, leram livros proibidos, recrutaram, discursaram, militaram nas campanhas, discutiram animadamente nos cafés e desafiaram até a moral e os bons costumes do tempo, com a sociabilidade mista, que juntava raparigas e rapazes nos pas- seios ao campo, nos piqueniques, ou cantando Lopes Graça. Procu- ra retirá-las da dupla sombra — dos percursos desconhecidos e do débil papel político atribuído às mulheres neste período. O MUDJ deu-lhes luz própria, tantas vezes consumida, depois, na penumbra da clandestinidade, da domesticidade do casamento,

7 do exílio, de vidas profissionais travadas pela repressão. Entre elas formaram-se quadros decisivos na luta contra a ditadura, e muitas continuaram a resistir-lhe de diferentes formas. Desta «elite», da qual saíram académicas e profissionais de renome e candidatas à Assembleia Constituinte de 1975, só duas, e algarvias, foram deputadas: Maria de Jesus Barroso e Maria Margarida Tengarri- nha. Cinco foram candidatas à Assembleia Constituinte, em 1975. Há quem tenha chegado à vereação do poder local com o 25 de Abril. E há, de entre elas, nomes maiores nos quadros intelectuais da demo- cracia, como Sacuntala de Miranda e Miriam Halpern, entre outras. Elitista e sexista, a PIDE foi mais «tolerante» com as mulheres do que com os homens, mais «tolerante» com as burguesas do que com as operárias e menos «tolerante» com as companheiras de qua- dros do PCP do que com as outras. Mas a «tolerância» não teve me- nores custos: a vigilância permanente, a invasão da vida privada (das casas ou das relações, das fotografias ou da correspondência, até às denúncias anónimas de amantes) e a dificuldade em encontrar em- prego acompanharam-nas ao longo da vida até ao 25 de Abril, e dão o retrato dessa outra violência menos visível e tão poderosa. O apelo à participação política das raparigas foi constitutivo do MUDJ. É certo que houve grupos organizados de mulheres a ex- pressarem-se contra o regime durante o , do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (encerrado em 1947) à Associa- ção Feminina para a Paz (1935-1952), à Comissão de Mulheres do MUD, passando pela componente feminina do Movimento Nacio- nal Democrático. Num quadro apontado como de recuo do feminis- mo e de liquidação da intervenção específica e autónoma das mulhe- res, testa-se o seu papel num contexto misto e de jovens, tenta-se compreender se o MUDJ acrescentou protagonismo e visibilidade às mulheres, e em que condições. O MUDJ reproduziu-se seguindo algumas fórmulas: o recruta- mento em cadeia e o recrutamento orientado de raparigas. Com efei- to, os contactos eram feitos pelo PCP junto de jovens universitários ou localmente influentes; os protagonistas escolhidos replicavam contactos procurando atingir as camadas populares, sobretudo ope- rários. Os protagonistas podiam ser mulheres, como Maria Fernanda

8 Silva, em Beja, ou Maria das Dores Medeiros, no Algarve, que lidera- ram o MUDJ a sul. E estatuiu-se a «quota» de uma rapariga na lide- rança de todas as camadas de direção (nacional, distrital, concelhia, de sector). Eles até podiam achar que uma ou outra não eram a me- lhor escolha, mas a «quota» fixou-as. Ao mesmo tempo, a cumplici- dade intergeracional fixou experiências e solidariedades — a entrada de raparigas esteve ligada ao «amadrinhamento» de , Isabel Aboim Inglez, Maria Machado, entre outras. A constituição do MUDJ foi a resposta com que o PCP energi- zou a organização de jovens, constituindo-se como o seu principal instrumento de recrutamento e de alargamento. O MUDJ sobrevi- veu ao «contra-ataque» do regime, e a luta pela legalidade impulsionou- -o ainda durante a década de 50. Na ressaca da candidatura de Nor- ton de Matos e na satelização a leste, o MUDJ insistirá na tentativa alargada de recrutamento, dando aliás sinais mais fortes de captação de raparigas. Os onze anos de vida do MUDJ caminham ao lado de fases de- cisivas da história do PCP — entre o IV Congresso, no verão de 1946, e o V Congresso, de setembro de 1957. Hoje, há mulheres que falam do seu compromisso com o PCP, e outras que lhe atribuem o fracasso do Movimento e das suas próprias vidas. Mas resiste-se a anacronismos e antinomias pouco úteis — o PCP era o único par- tido organizado ao tempo e um foco de sedução para os e as jovens, eà sua volta desenvolveu-se uma constelação de simpatias e apoios no pós-guerra. O MUDJ foi um movimento com notável expressão e longevidade no quadro da ditadura, foi controlado pelo PCP, os termos não se excluem. Nascido no esteio do otimismo do pós-guerra, desenhado no tri- plo argumentário da legalidade, unidade e confraternização, o MUDJ ser- viu de contraponto à crise do MUD adulto, e multiplicou adesões e simpatias na diversidade dos modelos de sociabilidade — com o convívio entre rapazes e raparigas, a projeção da poesia e de poe- tas, proibidos ou anónimos, o cinema, os livros proibidos, os pique- niques, os bailes, passando pelas canções de Lopes Graça. Nesta res- posta de contracultura se define uma teia de relações e uma rede política, constituída por amigos, casais, irmãos. O sangue e os afetos desenharam parte da consistência e longevidade do Movimento.

9 Os próprios atribuem-lhe vinte mil elementos nos primórdios, a Legião dez mil; no encontro de Bela Mandil estariam mil jovens. Perto do fim, são identificados dois a três mil ativistas a nível nacio- nal. Estes números valem o que valem, inflacionados pelos olhos do repressor e dos ativistas, mas com um partido na clandestinidade e uma população universitária que, em 1956, rondava os dez mil em Lisboa e os dezoito mil no país, não devem ser menosprezados. À durabilidade do MUDJ também não será estranho o pudor do regime na repressão dos filhos e filhas da burguesia. Mas para o aba- ter, com o megaprocesso policial e judicial do , ganhará na ob- sessão cirúrgica de o ligar ao PCP. Então, e já no estertor, o MUDJ ainda se comprometeu com o movimento de estudantes, em torno do Decreto-Lei 40 900. E deixou rasto para as lutas da década de 60: a confraternização, que lhe foi constitutiva, converteu-se no convívio, que orientou as associações académicas. Elas eram jovens mulheres entre o fim da Segunda Guerra Mun- dial e a Guerra Fria; escolarizadas na sua maioria, constituíam segu- ramente uma minoria no país onde a ditadura permanecia incólume. Nascidas sensivelmente entre 1925-1935, adolescentes ou jovens adultas quando a guerra acabou, releva-se o seu ativismo no quadro de um movimento maioritariamente masculino. Este livro é feito sobre as representações e os sentimentos destas mulheres, retidos em entrevista, e sobre as narrativas construídas pelo opressor — as dos processos da PIDE. O que as motivou? Como foram recrutadas? Qual o peso das referências familiares, dos pais, dos amigos, das amigas, dos namorados? Como viram o seu ati- vismo no MUDJ e como se relacionaram com o PCP? O que lhes deixou o MUDJ para a vida? Feito de cruzamentos de referências, de conversas de hoje e de registos do opressor do passado, este trabalho não é exaustivo sobre o papel do MUDJ, nem sobre o de todas as mulheres que nele inter- vieram, nem sobre o seu papel na democracia. Mas assume a urgên- cia da memória e da homenagem, no reconhecimento, hoje, das vozes que, então, prepararam reuniões, distribuíram propaganda clandestina, afrontaram a PIDE, «deram o melhor da sua juventude na luta pela democracia» (Manuela Macário). Que estas vozes che- guem às e aos jovens que hoje dão o melhor pela democracia.

10 As palavras de agradecimento vão para Fernando Rosas, pelo apoio e revisão crítica deste trabalho, para João Esteves, pelo primei- ro sinal positivo ao sentido desta pesquisa, para Sílvia Camilo e Jorge Costa, pelas conversas e referências preciosas, para Natércia Coim- bra e Paulo Tremoceiro, pela generosa disponibilidade, e, sobretudo, para todas as mulheres que se dispuseram a conversar, muitas vezes abrindo a porta de sua casa, pela vontade que partilhámos de não deixar fugir esta memória.

11 1. AS JOVENS DO PÓS-GUERRA E O MUD JUVENIL

O fim da Segunda Guerra Mundial produziu uma vaga de esperan- ça que atingiu a juventude. As jovens partilharam-na, como testemunha : «A juventude do meu tempo, traumatizada pela Segunda Guerra Mundial, sentiu a vitória sobre o nazi-fascismo como uma promessa de paz e de futuro radioso e viemos comemorá-la para a rua no dia do armistício, 8 de maio de 1945, dando vivas à In- glaterra, à União Soviética, à França e aos Estados Unidos, aliados nessa vitória. Em Lisboa foi uma festa como nunca se viu outra em tempos de fascismo, as ruas cheias de gritos, palavras de ordem e canções, numa alegria esfuziante até porque a vitória dos Aliados foi um duro golpe no fascismo português.»1 As ativistas políticas do pós-guerra foram uma raridade, que pa- garam caro, mas entre a confiança numa escolarização que as coloca- va em pé de igualdade com eles, o esforço de recrutamento de rapa- rigas ensaiado no MUDJ e continuado no Movimento Democrático Nacional, a mensagem do PCP, a convicção e apoio das «madrinhas» como Isabel Aboim Inglez ou Maria Lamas, elas tiveram um espaço e um papel que justificam atenção. A unidade, a legalidade ea confrater- nização desenharam-lhes um novo espaço político. Aqui se procuram as linhas de cruzamento entre esta vaga de es- perança e a intervenção política das jovens, num quadro reconheci- do como de refluxo dos movimentos de mulheres e das suas lutas, quando o regime garantia uma larga oferta de domesticação de gé- nero2. E, no refluxo, elas não devem ser olhadas como mulheres de «um homem», quando tantas delas foram namoradas, primeiro, mu- lheres depois, de funcionários e dirigentes do PCP. Francisco Mar- tins Rodrigues anotou que o próprio PCP orientava a vida privada e estimulava o acasalamento na passagem à clandestinidade3. Mas

13 o MUDJ foi mais um espaço de acasalamento do que de recruta- mento através do namoro. E não foi por serem filhas de pais antirre- gime, republicanos apostados na sua educação, ou por se terem ena- morado de comunistas, a quem o partido sugeria acasalamento em tempos difíceis, que a coragem e autonomia destas mulheres valem menos. Tirá-las da sombra, restituir-lhes visibilidade em tempos em que a política era coisa de homens, eis o propósito. Duas razões pesam neste projeto de desocultação. A primeira atualiza a reflexão sobre as mulheres nas organizações políticas, en- quanto organizações masculinas, com os atritos que nem o século nem as ideologias resolveram4. A segunda faz justiça às mulheres que entregaram a sua juventude à luta pela democracia. Mulhe- res que nunca mais deixaram de viver sob os olhos da PIDE e que, presas ou livres, foram alvos da perícia da moral sexual do tempo. Mulheres tantas vezes obrigadas a declarações de fidelização ao regi- me, com juras de boas esposas e mães, exclusivas cuidadoras do lar e da família. Mulheres que viram as suas cartas, os seus apontamen- tos, as fotografias da sua família vasculhados pela polícia, que captu- rou a sua privacidade durante longos anos. Certo é que a geração de 45 estava consciente de ser uma nova geração e queria romper com a «frustração»5. E se parte relevante das mulheres do MUDJ da capital frequentara ou concluíra a facul- dade, as mulheres das regiões, a reter-se o caso do Algarve, consti- tuem uma elite local, que frequentara muitas vezes a escola técnica. Por mais que o MUDJ estivesse comprometido na mobilização dos e das jovens trabalhadoras, foi clara a intenção de comandar a cadeia de recrutamento pelas jovens universitárias ou pelas que fossem de- tentoras de maior carga de prestígio e património cultural. Muitas delas continuaram, depois do MUDJ, a resistir à ditadura, apoiando candidatos presidenciais, integrando listas da oposição ou participando em iniciativas de apoio a movimentos de resistência nas colónias ou nos países de exílio. Destas protagonistas jovens, só Maria Margarida Tengarrinha e Maria de Jesus Barroso foram depu- tadas, depois do 25 de Abril. Maria das Dores Medeiros foi candida- ta à Assembleia Constituinte, pelo PCP, em Faro, tal como Margari- da Tengarrinha, em Vila Real (como cabeça de lista), Ivone Dias Lourenço, por Lisboa, Maria Luísa Costa Dias, por Viana do Castelo,

14 e Maria de Jesus Barroso, como candidata pelo PS, por Santarém. Carolina Tito de Morais foi cofundadora do Partido Socialista e sua dirigente. Josefa Guerreiro foi a primeira vereadora de Silves, mas poucas foram as ativistas do MUDJ recrutadas para a primeira linha do poder democrático, que conheceram entre os 40-50 anos. E ainda para elas se reconhece a diversidade na relação com o PCP, marca da pluralidade de formas de adesão de que o MUDJ foi capaz. Há as que naturalizam as simpatias do passado, ou o orgu- lho de pertença, até ao presente, e as que recusam vínculos no passa- do e atribuem ao PCP custos demasiado elevados para o MUDJ e para as suas próprias vidas. Sublinhe-se, neste contexto, que Estaline não pareceu comover do mesmo modo rapazes e raparigas, pelo menos as que se veem mais dis- tantes do PCP: Manuela Macário diz-se precoce crítica de Estaline; Maria Cecília Ferreira Alves e Isaura da Silva gozaram com a comoção dos seus namorados, Pedro Ramos de Almeida e António Borges Coe- lho, aquando da morte do líder. Sacuntala de Miranda ironizou, ao supor que a admoestação do seu amigo Bruno da Ponte, por conta de um namoro fora do «clã», implicasse a evocação de Estaline, reconhe- cendo que a sua foto passava sub-repticiamente entre os e as jovens6. Os opositores à ditadura partilharam, no pós-guerra, da mesma expectativa que os seus vizinhos de Espanha: que as potências ven- cedoras pusessem a democracia à frente da disputa hegemónica7. Na vaga de esperança criaram-se movimentos de unidade, comprometi- dos com a democracia e a legalidade, como armas de arremesso con- tra o regime. Não escapariam à influência do único partido organiza- do, o PCP. Vaga de curta duração, esmagada pela ditadura e pela solidão dos países ibéricos face ao jogo das grandes potências. A expressão política organizada do otimismo do pós-guerra teve lugar no MUD (Movimento de Unidade Democrática) e abanou o país. Os muitos milhares de assinaturas de apoio às suas listas re- sultaram de um «movimento espontâneo de afirmação política sem qualquer paralelo, quer no passado, quer no futuro da ditadura. Havia uma confiança genuína na mudança, e o medo esvaía-se no entusiasmo de a ver realizar-se»8. Em 1945 nascia a oposição «legali- zada», a saber, «reconhecida de facto que não de jure»9. Por pouco tem- po, o MUD adulto é ilegalizado em 26 de abril de 1947, comunicação

15 efetuada aos seus membros um ano depois, com a sua direção na prisão na sequência das comemorações de 31 de janeiro de 1948. O MUD nasceu, beneficiando da confluência de forças e grupos que já constituíra o MUNAF em 194310. Se a ligação do PCP ao MUD ocorreu numa espécie de continuidade, pelo facto de a convocatória ser também subscrita por dirigentes do MUNAF, ou se o PCP foi «sur- preendido» pela reunião do Centro Escolar Republicano da Almirante Reis, em 8 de outubro de 1945, e se esforçou para ligar o MUD às «massas populares», também para conseguir colar o MUNAF e as suas estruturas11, ou se considerou que «se não podia acabar com o MUD, havia que juntar-se a ele»12, a verdade é que vários jovens comunistas, entre eles Mário Soares, se ofereceram para trabalhar por dentro do MUD e que a composição da sua direção, no verão de 1946, era favo- rável ao partido. Doravante o debate da legalidade será central na confi- guração dos movimentos «unitários». A 28 de julho de 1946 nascia, no Centro Republicano José Estê- vão, o MUD Juvenil que, ensaiado em múltiplas reuniões, mostraria grande vigor de recrutamento. Fossem os ativistas do MUDJ mil ou dez mil, as raparigas não deixaram de responder à chamada. Algu- mas foram poderosas líderes regionais e nacionais do Movimento, outras foram passageiras da sociabilidade política e cultural inovadora. Estas jovens, filhas maioritariamente de republicanos13, identifi- cavam-se, ou eram identificadas, como «fora da religião», ou seja, da alçada da Igreja católica. Os exemplos sucedem-se: Maria Cecília Ramos de Almeida, Regina Ventura Duarte14, Ana Maria Vieira de Almeida, entre outras. No pós-guerra, se as mulheres portuguesas não foram mobiliza- das para o esforço de produção, nem alvo de campanhas pelo «re- gresso ao lar»15 ou o acesso ao voto, como noutros países, também não ficaram imunes aos ventos de mudança. Elas integravam uma geração mais escolarizada: «No final da dé- cada de 50, já há mais raparigas do que rapazes a estudarem nos li- ceus.»16 Não se estranhará que algumas localizem no liceu a origem da sua formação política. Por outro, a partir de meados dos anos 40 havia uma geração de mulheres a acabar cursos superiores e que na- turalizavam a igualdade de formação face aos rapazes17.

16 Ao acesso à escola e aos sonhos fugazes de democratização, acrescia a desocultação do corpo e da rua: entre piqueniques, con- versas de café e inscrições nas paredes, as raparigas partilhavam ou- tros espaços. E o MUDJ respondeu com os acampamentos, a músi- ca, os bailes, o cancioneiro de Fernando Lopes Graça, enquanto o triunfo do modelo Dior desenhava os corpos e exigia a cintura de vespa. Já na década de 50, Sacuntala de Miranda deu conta desta outra ocupação do espaço pelos corpos das mulheres: na Baixa «onde as elegantes meneavam as ancas e exibiam as suas cinturinhas de vespa e os seus tailleurs de corte requintado — tão diferentes do meu pobre guarda-roupa provinciano (...)»18, anotando o entusiasmo com que vestiu o seu primeiro tailleur. E também ela, desiludida com os exces- sos de segurança da clandestinidade do PCP, registou o que perdeu: «Acabaram as reuniões ao ar livre, as discussões animadas, as idas em grupo aos cineclubes, as conversas de café.»19 E se a poeira de mudanças não resistiu ao betume político e moral da ditadura, ou se a revisão do amor pouco acrescentou aos papéis de género no casamento, a mensagem do MUDJ era plural e sedutora: a esperança na democracia misturava-se com a democra- tização da cultura e do ensino, e também convocava o amor para a conjugalidade, feito parceiro da melhoria das condições de vida e de trabalho. Com efeito, a mensagem está repleta de apelos às me- lhores condições para a criação dos filhos e para a felicidade do aca- salamento. E Álvaro Cunhal disso deu conta: «(...) é necessário fazer do amor elemento integrante do casamento, do lar e da procriação. E isso significa criar as condições para que homem e mulher se casem e se reproduzam por amor e só por amor. Significa resolver problemas económicos, morais, sociais. Salários. Higiene. Renda de casa. Independência económica das mulheres. Paralelismo de sexos. Educação dos filhos assegurada.»20 O amor precisava de casa e de comida. Aliás, no que à capitalização política feminina respeita, as preo- cupações do PCP são conhecidas. O II Congresso ilegal aprofun- dou-as, Álvaro Cunhal foi consistente na sua defesa, reconhecendo mesmo que entre a mensagem e as práticas internas continuava a existir uma fronteira.

17 Mas a guerra mudara o eixo desta luta. Com ela foram-se os mo- vimentos de mulheres da primeira vaga e o capital de memória des- tas lutas perdeu-se. A ditadura tratou de abafar este seu inimigo21 e, para a investigação feminista, a oposição teve a sua quota-parte de responsabilidade. Segundo Michelle Perrot, a primeira «vaga» feminista, herdeira das Luzes e centrada na defesa da igualdade de direitos entre os sexos, morre com a crise, os totalitarismos e a Segunda Guerra Mun- dial, enquanto a segunda «vaga» (1960-1980) se demarcou pela auto- nomia do sujeito-mulher, com intensa expressão nos movimentos de libertação22, não esquecendo o marco que constituiu a obra O Segun- do Sexo, de Simone de Beauvoir. , Vanda Gorjão e Manuela Tavares deram conta da dupla asfixia da autonomia e da especificidade das reivindicações das mulheres: pelo peso da ditadura e pelo contributo das formas de or- ganização da oposição, no pós-guerra. Para os comunistas, as «femi- nistas burguesas», ao individualizarem os problemas das mulheres, amorteciam a centralidade da luta de classes, pelo que eles se encar- regaram de corrigir o rumo23. A «naturalização» das mulheres e o «familialismo»24, como base ideológica da esquerda do pós-guerra, permitiram à oposição conviver sem conflito com a valorização de papéis tradicionais das mulheres, do cuidado da família à qualidade da conjugalidade, subordinada que estava a sua demanda à priorida- de da luta de classes. Os anos 50-60 dão-lhes escassa visibilidade e peso nos bastido- res25, e a década de 60 foi decisiva no recuo das organizações de mu- lheres26. Também por isso conta perceber as razões que levaram as raparigas para as reuniões e para a rua, na luta contra o regime, e que espaço tiveram em contexto misto. Manuela Tavares sublinhou a componente conservadora da opo- sição ao regime na revisão do papel das mulheres dentro da família e na própria luta27. Há mulheres que falam hoje desse machismo pouco envergonhado, da casa e das panelas como destino. E um partido na clandestinidade precisava de acasalamentos eficazes28. Não se ignora, ainda, que as mulheres que resistiam enfrentavam uma ditadura que as acusava de querer destruir a família29.

18 Neste quadro, não se pretende discutir teses sobre as «vagas» fe- ministas e os seus refluxos. Os condicionalismos deste período estão bastamente identificados. Localizada a convocatória das mulheres para a luta «global», em detrimento da luta autónoma e das causas específicas que enformam as grandes «vagas» feministas, identificam- -se percursos, mensagens, representações, e vozes que falaram em nome dos problemas das mulheres. Sublinha-se o esforço da convo- catória e as suas dimensões, tentando perceber o que elas ganharam e perderam com ele. Em 1950, O Militante desafiava com a franqueza de uma publica- ção destinada à organização, «Intensifiquemos o trabalho feminino», verificando-se que: «Uma das fraquezas do nosso partido continua a ser o trabalho entre as mulheres, a sua mobilização para as lutas reivindicativas e o recrutamento de novas aderentes e simpatizantes. Embora tenha melhorado nalguns aspetos, o trabalho deste sector continua a ter a sua principal deficiência na pouca importância que os nossos camaradas, mesmo os mais responsáveis, dão a este sector do trabalho partidário.»30 Ora no quadro da necessidade de criar uma «ampla frente nacional» para combater os perigos de uma nova guerra, era necessário despen- der mais energia na mobilização de mulheres. E invocava-se junto delas o sucesso da campanha para as presidenciais e a capacidade de sedução e envolvimento, bem como as condições favoráveis à intervenção: na esfera económica, com a exploração das mulheres; na esfera política, com a necessidade de as envolver na defesa dos direitos políticos, do direito ao voto e da luta contra a iminência de uma nova guerra. A propaganda do MUDJ está toda ela marcada pela luta tática da «legalidade», que enformou o Movimento — o MUDJ era «legal», não havia tribunal ou polícia que o pudesse liquidar. Na década de 50, adensada a mensagem ideológica, a luta pela paz e as campanhas de assinaturas ganham centralidade. Os panfletos, quase sempre adornados por desenhos neorrealis- tas, eram acompanhados pela inscrição da mensagem política nas ruas — a «imprensa mural», «tipografias» do povo português, sobre- tudo dos jovens democratas, que preferiam o nitrato de prata, invisí- vel até à revelação do sol, e que obrigava o censor a picar as paredes para limpar as mensagens31.

19 A propaganda do MUDJ surgia assim, na década de 50, centrada no compromisso pela paz e pela democracia, ao mesmo tempo que a juvenilização da mensagem se concentrava na ideia de um projeto de felicidade, individual e coletivo. Duas notas sobre linguagem e prostituição, com presença mais intensa na propaganda da década de 50: com frequência, desaparece o «universal masculino» e há «rapazes e raparigas», «amigas e ami- gos», «operários e operárias»; condenada a prostituição, a ideia de lar feliz e de filhos saudáveis surge como seu antídoto. A centralidade da reivindicação de melhores condições de vida associadas ao amor conjugal, se não se desviava da família e do papel das mulheres no seu interior, desafiava o sistema nos direitos do tra- balho, no direito à educação, no direito à felicidade dentro da famí- lia, e nessa perspetiva apostava num projeto de realização pessoal, que era global e coletivo. Lar feliz, filhos felizes, gerados pelo amor e criados em condi- ções, com pais e mães com salários dignos, que deveriam ter estuda- do e praticado desporto, tudo isto defendido por rapazes e raparigas que se juntavam em piqueniques ou nas escolas, declamavam poesia subversiva e se esforçavam por formar associações estudantis, era muito mais do que a ditadura suportava. Rapazes e raparigas que acasalavam e formavam redes de amizade dentro do MUDJ, habili- dade de um recrutamento político para além da política e feito de outras dimensões apetecidas da vida, como o convívio misto, com a diversidade de propostas lúdicas e culturais. E outros sinais se relevam destinados às mulheres, como a de- núncia das condições das mulheres trabalhadoras, a falta de condi- ções básicas para criarem os seus filhos e a denúncia persistente da prostituição, contra a qual se erigia o antídoto de um casamento montado nos afetos e nas condições materiais. A condenação da prostituição é matricial e convive com a procura de felicidade, digni- dade e lar feliz, ou seja, com os grandes valores: Justiça, Liberdade, Democracia, amor à Paz. Este é o fundo dos valores políticos do Movimento ao qual se alia um projeto de felicidade individual/coletiva — salário digno, lar

20 feliz, filhos saudáveis, tudo concorrendo para uma vida «mais alegre e mais feliz» no peito de todos os jovens. O otimismo rega a propa- ganda, na procura da «felicidade» e da «alegria». Otimismo da mensagem e visibilidade das raparigas. Mas quan- do elas se tornaram esposas de quadros promissores ou de funcioná- rios, a sombra apanhou-as, por vezes à revelia da sua vontade32. Ana Barradas refere-se à passagem do cônjuge feminino à clandestinida- de como um ato de vontade, mas os testemunhos das irmãs Ferreira Alves desmentem esta ideia de uma decisão informada: Maria Fer- nanda nem sabia que ia para a clandestinidade; Maria Cecília, que desmente ter tido este estatuto na saída com Pedro Ramos de Al- meida para o Porto, esclarece que foi impedida de frequentar Be- las-Artes. Dois casos em que as jovens ativistas do MUDJ, com um percurso autónomo, submergiram na «domesticidade» das exigências de acasalamento com quadros do partido.

Apesar disso, a memória destas mulheres sobre o MUDJ preser- va, em diversos casos, vários argumentos: a esperança e o otimismo na abertura do Movimento, a distância face ao PCP e aos seus íco- nes. Ainda em 1952, o PCP lançava o desafio e criticava os camara- das: só havia mobilização de massas com mobilização das mulheres e os «camaradas» não percebiam, «por causa do seu baixo nível ideo- lógico», o papel das mulheres «na luta pela emancipação do povo trabalhador». Lenine dissera: «Esquecendo as mulheres, é impossível interessar as massas pela política.»33 O apelo definia, reconheça-se, o papel das mulheres como camaradas na mesma luta, do qual falará Margarida Tengarrinha. E a partir desta fase do MUDJ, há mais raparigas ativas. A título de exemplo, em 1953, seis jovens de Letras, entre elas Sacuntala de Miranda, foram à primeira reunião do Movimento Nacional para a Defesa da Paz; pouco tempo depois, e porque «na Faculdade de Letras, o MUD Juvenil entrava numa curta era de inusitado brilho», quatro jovens «noviças» entraram34.

21 À influência do PCP se deverá o recrutamento e organização de mulheres de todos os sectores sociais e culturais. Em 1946 organi- zam-se grupos de mulheres por atividade profissional. A Alda No- gueira e Maria Lamas se deve a reativação do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, que chegou a ter duas mil sócias e foi encer- rado pela PIDE em 194735. Maria Lamas foi determinante neste cur- to período de reativação, sendo visível a intercomunicabilidade entre o Conselho e a Associação Feminina Portuguesa para a Paz36, que, extinta em 52, não extinguiu a sua atividade37. Apesar dos golpes fatais da ditadura nas duas organizações de mulheres, cabe sublinhar que este investimento no recrutamento de jovens tinha o espaldar da geração anterior de mulheres organiza- das: Maria Lamas, à frente do Conselho Nacional das Mulheres Por- tuguesas, Isabel Aboim Inglez e Maria Machado, na fundação da As- sociação Feminina Portuguesa para a Paz, as pintoras Maria Keil e Maria Clementina Carneiro de Moura, de Virgínia de Moura a Cân- dida Ventura, entre outras, reconhecida a forte influência do PCP, entre simpatizantes e membros38. Várias destas mulheres assegura- ram continuidade entre organizações oposicionistas — estarão no MUD ou no MDN, além do papel atribuído à organização no movi- mento pela paz na sua configuração nos inícios da década de 5039. Em setembro de 1945, alterava-se o código eleitoral que assumia a pluralidade das listas para a Assembleia Nacional. Em outubro, nascia o Movimento de Unidade Democrática com mais de cinquen- ta mil assinaturas no primeiro mês. As «pioneiras» estavam entre as assinantes para a constituição do Movimento: Maria Lamas, Isabel Aboim Inglez, Virgínia Moura, entre tantas outras. O MUD tinha comissões profissionais e uma comissão de mulheres cujo programa, «As mulheres e o movimento de oposição», foi publicado no Diário de Lisboa em 30 de outubro de 1945. Mas em órgãos de direção o lugar delas foi residual: Maria Isabel Aboim Inglez integrou a ter- ceira e última Comissão Central do MUD. Virgínia de Moura era a única a integrar a comissão executiva do Porto. Maria Fernanda Silva integrou a Comissão Central do MUDJ por, com Mário Soares, Salgado Zenha e Octávio Pato, entre outros, fazer parte dos que

22 ensaiavam organizar um novo coletivo juvenil e para isso tinham orientações40. Em 1949, no rescaldo da campanha de Norton de Matos e da violenta repressão, forma-se o Movimento Nacional Democrático. Sem responder ao modelo aberto e às expectativas da união da opo- sição, Virgínia Moura participou na sua Comissão Central ao lado de Ruy Gomes e Maria Lamas, por Lisboa. Deste movimento surgiu o Movimento Nacional Democrático Feminino. Cesina Bermudes e Maria das Dores Cabrita por Lisboa e Antónia Farracha no Algar- ve foram as principais dinamizadoras, tendo a segunda sido oradora na campanha de Ruy Gomes. Sublinhe-se que as campanhas presidenciais constituíram mo- mentos fortes quer de visibilidade acrescida para elas, quer de expo- sição da mensagem sobre as suas lutas. As palestrantes na campanha de Norton de Matos assustaram, com razão, o regime. Se Maria Isabel foi a única mulher na Comissão Central da can- didatura de Norton de Matos, as intervenções de Cesina Bermudes, entre outras, apontam a centralidade das reivindicações da Comissão Feminina: abolição do regulamento da prostituição, igualdade jurídi- ca, sufrágio universal, assistência social41. Entretanto, a palestra de Maria Palmira Tito de Morais42 seria justamente polémica pela radicalidade da mensagem: dirigindo-se aos «portugueses e portuguesas», é cortante na denúncia da visão do fascismo sobre as mulheres, nas corruptelas do topos hitleriano43. A crítica à falta de independência económica das mulheres e à infe- riorização das mulheres não casadas acaba no retrato da dupla escra- vização das mulheres: escravas de homens escravos44. Como palestrantes da campanha de Norton de Matos, na sessão promovida pela Comissão Feminina de apoio, em 28 de janeiro de 1949, Maria Isabel e Maria Lamas foram-no em nome das «mulheres democratas». Maria Isabel dirigiu-se-lhes do ângulo otimista: «Quando em 1945, no manifesto de adesão ao Movimento de Unidade Democrá- tica, que algumas senhoras comigo assinaram, convidava as mulheres democráticas a tomarem parte na luta pela Democracia em , eu sabia que viriam a ser muitas e que em breve a consciência demo- crática feminina se manifestaria largamente em público, como já

23 hoje acontece.»45 Eo primeiro argumento mobilizador era o da necessi- dade de um país que proporcionasse aos «nossos filhos o ambiente de moral e de cultura» necessário. Ela apelará ainda à resistência ao insulto eà humilhação, dando nota dos telefonemas anónimos, sem saber ainda a violência que a esperaria, quando o entusiasmo pela campa- nha de Norton de Matos a inspirava como «uma campanha a que presidem a Razão e a moral política, pois é a campanha da Demo- cracia contra o fascismo»46. Maria Lamas falou do medo do Estado Novo em relação às mu- lheres: «A operária e a mulher da classe média são, dentre a popula- ção feminina portuguesa, consideradas pelo Estado Novo um perigo imediato, que ameaça velhos e deprimentes preconceitos, falsas edu- cações, teorias hipócritas e processos intolerantes que ainda defor- mam, lamentavelmente, a mentalidade de tantos portugueses e por- tuguesas. Basta a lei eleitoral, que exclui do sufrágio a grande massa das trabalhadoras e domésticas, especialmente as casadas, para pro- var que o governo não protege, antes deprime e pretende desvalori- zar essas mulheres. Será que o Estado Novo tem medo da consciên- cia esclarecida da mulher?»47

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