Mulheres Contra a Ditadura — Mud Juvenil 1946-1957 Cecília Honório
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MULHERES CONTRA A DITADURA — MUD JUVENIL 1946-1957 CECÍLIA HONÓRIO MULHERES CONTRA A DITADURA — MUD JUVENIL 1946-1957 INTRODUÇÃO A primeira «elite» de mulheres que lutou contra a ditadura no pós-guerra nasceu no Movimento de Unidade Democrática Juvenil (MUDJ, 1946-1957), escola de formação de quadros políticos, inte- lectuais, ativistas, do tempo da ditadura e da democracia. Álvaro Cunhal o desenhou, Mário Soares e outros o fizeram dar passos decisivos. Se os nomes deles estão justamente inscritos — de Mário Soares a Francisco Salgado Zenha, de Octávio Pato, José Dias Coelho, Pedro Ramos de Almeida, Ângelo Veloso, Alberto Vilaça, Carlos Aboim Inglez, António Borges Coelho, Carlos Costa, José Manuel Tengarrinha, Carlos Brito, entre tantos outros —, os delas, tirando as exceções, estão mergulhados na sombra. Filhas de burgueses — juízes, conservadores, médicos, advoga- dos, militares ou empresários —, filhas de oposicionistas, republica- nos sobretudo, à procura de respostas políticas novas, diferentes das de seus pais. O pós-guerra deu sinais de mudança na relação entre rapazes e raparigas, e elas foram a primeira geração a participar na luta política em pé de (relativa) igualdade. Escolarizadas, muitas uni- versitárias, elas mobilizaram operárias e trabalhadoras rurais para o MUDJ, com a sua capacidade de liderança e de organização. Este trabalho destina-se a dar visibilidade às raparigas do MUDJ, que arriscaram, estiveram presas, leram livros proibidos, recrutaram, discursaram, militaram nas campanhas, discutiram animadamente nos cafés e desafiaram até a moral e os bons costumes do tempo, com a sociabilidade mista, que juntava raparigas e rapazes nos pas- seios ao campo, nos piqueniques, ou cantando Lopes Graça. Procu- ra retirá-las da dupla sombra — dos percursos desconhecidos e do débil papel político atribuído às mulheres neste período. O MUDJ deu-lhes luz própria, tantas vezes consumida, depois, na penumbra da clandestinidade, da domesticidade do casamento, 7 do exílio, de vidas profissionais travadas pela repressão. Entre elas formaram-se quadros decisivos na luta contra a ditadura, e muitas continuaram a resistir-lhe de diferentes formas. Desta «elite», da qual saíram académicas e profissionais de renome e candidatas à Assembleia Constituinte de 1975, só duas, e algarvias, foram deputadas: Maria de Jesus Barroso e Maria Margarida Tengarri- nha. Cinco foram candidatas à Assembleia Constituinte, em 1975. Há quem tenha chegado à vereação do poder local com o 25 de Abril. E há, de entre elas, nomes maiores nos quadros intelectuais da demo- cracia, como Sacuntala de Miranda e Miriam Halpern, entre outras. Elitista e sexista, a PIDE foi mais «tolerante» com as mulheres do que com os homens, mais «tolerante» com as burguesas do que com as operárias e menos «tolerante» com as companheiras de qua- dros do PCP do que com as outras. Mas a «tolerância» não teve me- nores custos: a vigilância permanente, a invasão da vida privada (das casas ou das relações, das fotografias ou da correspondência, até às denúncias anónimas de amantes) e a dificuldade em encontrar em- prego acompanharam-nas ao longo da vida até ao 25 de Abril, e dão o retrato dessa outra violência menos visível e tão poderosa. O apelo à participação política das raparigas foi constitutivo do MUDJ. É certo que houve grupos organizados de mulheres a ex- pressarem-se contra o regime durante o Estado Novo, do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (encerrado em 1947) à Associa- ção Feminina para a Paz (1935-1952), à Comissão de Mulheres do MUD, passando pela componente feminina do Movimento Nacio- nal Democrático. Num quadro apontado como de recuo do feminis- mo e de liquidação da intervenção específica e autónoma das mulhe- res, testa-se o seu papel num contexto misto e de jovens, tenta-se compreender se o MUDJ acrescentou protagonismo e visibilidade às mulheres, e em que condições. O MUDJ reproduziu-se seguindo algumas fórmulas: o recruta- mento em cadeia e o recrutamento orientado de raparigas. Com efei- to, os contactos eram feitos pelo PCP junto de jovens universitários ou localmente influentes; os protagonistas escolhidos replicavam contactos procurando atingir as camadas populares, sobretudo ope- rários. Os protagonistas podiam ser mulheres, como Maria Fernanda 8 Silva, em Beja, ou Maria das Dores Medeiros, no Algarve, que lidera- ram o MUDJ a sul. E estatuiu-se a «quota» de uma rapariga na lide- rança de todas as camadas de direção (nacional, distrital, concelhia, de sector). Eles até podiam achar que uma ou outra não eram a me- lhor escolha, mas a «quota» fixou-as. Ao mesmo tempo, a cumplici- dade intergeracional fixou experiências e solidariedades — a entrada de raparigas esteve ligada ao «amadrinhamento» de Maria Lamas, Isabel Aboim Inglez, Maria Machado, entre outras. A constituição do MUDJ foi a resposta com que o PCP energi- zou a organização de jovens, constituindo-se como o seu principal instrumento de recrutamento e de alargamento. O MUDJ sobrevi- veu ao «contra-ataque» do regime, e a luta pela legalidade impulsionou- -o ainda durante a década de 50. Na ressaca da candidatura de Nor- ton de Matos e na satelização a leste, o MUDJ insistirá na tentativa alargada de recrutamento, dando aliás sinais mais fortes de captação de raparigas. Os onze anos de vida do MUDJ caminham ao lado de fases de- cisivas da história do PCP — entre o IV Congresso, no verão de 1946, e o V Congresso, de setembro de 1957. Hoje, há mulheres que falam do seu compromisso com o PCP, e outras que lhe atribuem o fracasso do Movimento e das suas próprias vidas. Mas resiste-se a anacronismos e antinomias pouco úteis — o PCP era o único par- tido organizado ao tempo e um foco de sedução para os e as jovens, eà sua volta desenvolveu-se uma constelação de simpatias e apoios no pós-guerra. O MUDJ foi um movimento com notável expressão e longevidade no quadro da ditadura, foi controlado pelo PCP, os termos não se excluem. Nascido no esteio do otimismo do pós-guerra, desenhado no tri- plo argumentário da legalidade, unidade e confraternização, o MUDJ ser- viu de contraponto à crise do MUD adulto, e multiplicou adesões e simpatias na diversidade dos modelos de sociabilidade — com o convívio entre rapazes e raparigas, a projeção da poesia e de poe- tas, proibidos ou anónimos, o cinema, os livros proibidos, os pique- niques, os bailes, passando pelas canções de Lopes Graça. Nesta res- posta de contracultura se define uma teia de relações e uma rede política, constituída por amigos, casais, irmãos. O sangue e os afetos desenharam parte da consistência e longevidade do Movimento. 9 Os próprios atribuem-lhe vinte mil elementos nos primórdios, a Legião dez mil; no encontro de Bela Mandil estariam mil jovens. Perto do fim, são identificados dois a três mil ativistas a nível nacio- nal. Estes números valem o que valem, inflacionados pelos olhos do repressor e dos ativistas, mas com um partido na clandestinidade e uma população universitária que, em 1956, rondava os dez mil em Lisboa e os dezoito mil no país, não devem ser menosprezados. À durabilidade do MUDJ também não será estranho o pudor do regime na repressão dos filhos e filhas da burguesia. Mas para o aba- ter, com o megaprocesso policial e judicial do Porto, ganhará na ob- sessão cirúrgica de o ligar ao PCP. Então, e já no estertor, o MUDJ ainda se comprometeu com o movimento de estudantes, em torno do Decreto-Lei 40 900. E deixou rasto para as lutas da década de 60: a confraternização, que lhe foi constitutiva, converteu-se no convívio, que orientou as associações académicas. Elas eram jovens mulheres entre o fim da Segunda Guerra Mun- dial e a Guerra Fria; escolarizadas na sua maioria, constituíam segu- ramente uma minoria no país onde a ditadura permanecia incólume. Nascidas sensivelmente entre 1925-1935, adolescentes ou jovens adultas quando a guerra acabou, releva-se o seu ativismo no quadro de um movimento maioritariamente masculino. Este livro é feito sobre as representações e os sentimentos destas mulheres, retidos em entrevista, e sobre as narrativas construídas pelo opressor — as dos processos da PIDE. O que as motivou? Como foram recrutadas? Qual o peso das referências familiares, dos pais, dos amigos, das amigas, dos namorados? Como viram o seu ati- vismo no MUDJ e como se relacionaram com o PCP? O que lhes deixou o MUDJ para a vida? Feito de cruzamentos de referências, de conversas de hoje e de registos do opressor do passado, este trabalho não é exaustivo sobre o papel do MUDJ, nem sobre o de todas as mulheres que nele inter- vieram, nem sobre o seu papel na democracia. Mas assume a urgên- cia da memória e da homenagem, no reconhecimento, hoje, das vozes que, então, prepararam reuniões, distribuíram propaganda clandestina, afrontaram a PIDE, «deram o melhor da sua juventude na luta pela democracia» (Manuela Macário). Que estas vozes che- guem às e aos jovens que hoje dão o melhor pela democracia. 10 As palavras de agradecimento vão para Fernando Rosas, pelo apoio e revisão crítica deste trabalho, para João Esteves, pelo primei- ro sinal positivo ao sentido desta pesquisa, para Sílvia Camilo e Jorge Costa, pelas conversas e referências preciosas, para Natércia Coim- bra e Paulo Tremoceiro, pela generosa disponibilidade, e, sobretudo, para todas as mulheres que se dispuseram a conversar, muitas vezes abrindo a porta de sua casa, pela vontade que partilhámos de não deixar fugir esta memória. 11 1. AS JOVENS DO PÓS-GUERRA E O MUD JUVENIL O fim da Segunda Guerra Mundial produziu uma vaga de esperan- ça que atingiu a juventude. As jovens partilharam-na, como testemunha Margarida Tengarrinha: «A juventude do meu tempo, traumatizada pela Segunda Guerra Mundial, sentiu a vitória sobre o nazi-fascismo como uma promessa de paz e de futuro radioso e viemos comemorá-la para a rua no dia do armistício, 8 de maio de 1945, dando vivas à In- glaterra, à União Soviética, à França e aos Estados Unidos, aliados nessa vitória.