ARTIGO

facilitando, assim, o seu entendimento. Explorando o Vault 11: Com tal finalidade, o objeto escolhido foi o Vault 11, do jogo : New Vegas. espaço narrativo em Fallout Por razões de contexto, é importan- te relembrar o que é o Fallout e de onde veio o Vault 11. Fallout é uma franquia – New Vegas de RPGs que começou em 1997, criada por e desenvolvido para PCs pelo . O game marcou José Abrão 1 época por ter um humor particularmen- te negro e satírico inspirado na paranoia nuclear e na cultura pop norte-america- na dos anos de 1950. A trama se pas- sa no século XXII, muito depois de um RESUMO apocalipse nuclear. Na mitologia da fran- Este trabalho visa apresentar, de modo didático, o diferencial dos videogames como forma de comunicação, especialmente narrativa. Para isso, propôs-se quia, uma parcela de pessoas escapou uma relação entre espaço e videogames. Neste artigo fala-se majoritariamente do horror nuclear se abrigando, por ge- do jogo Fallout: New Vegas. Usou-se, como ponto de partida, a agência do jo- rações, nos vaults (refúgios, nas tradu- gador e sua imersão como forma de construir significado e de inserir o jogador ções brasileiras mais recentes), abrigos no mundo digital narrativamente. Foram usados alguns jogos como exemplo nucleares subterrâneos criados pela me- para o estudo de caso sobre como o Vault 11, do jogo Fallout: New Vegas, é gacorporação Vault-Tec. A história co- apresentado e como o jogador interage com o mesmo. meça quando o chip da estação de tra- tamento de água do refúgio 13 quebra Palavras-Chave: Comunicação. Espaço. Videogames. Agência. Imersão. e o personagem do jogador é escolhido para ser enviado ao hostil mundo exte- rior em busca de uma peça sobressa- ENTERING VAULT 11: NARRATIVE SPACE IN FALLOUT – NEW VEGAS lente em outro abrigo. O jogo fez sucesso o bastante para render uma continuação, , lan- Abstract çado em 1998. Após problemas finan- This paper aims to present, instructively, what sets video games apart as a com- ceiros, o estúdio Black Isle fechou e a munication medium, specially as a narrative one. For that, it was proposed a link between space and video games. It will be discussed mostly the game Fallout: franquia só voltou a ganhar um título da New Vegas. The starting point is the player's agency and his immersion as a way série principal em 2008, com Fallout 3 to build meaning and to insert the player narratively in the digital world. To do so (), após os seus a few games will be discussed as examples for the case study of how Vault 11, direitos serem adquiridos pela então Be- in Fallout: New Vegas, is presented and how the player interacts with it. thesda Softworks, hoje Game Studios, que é mais conhecida por sua franquia Keywords: Communication. Space. Videogames. Agency. Immersion. de RPG, Online. Após o sucesso do game e várias mudanças no seu sistema e interface, foi a vez de Fallout: New Vegas (Obsi- Autor Correspondente: [email protected] dian Entertainment, 2010) ser lançado Recebido: 29.11.2018. Aceito: 07.01.2019. para PS3, Xbox 360 e PC. Existem dois detalhes interessantes logo de início na produção deste jogo: o primeiro é que Introdução rísticas a um exemplo palpável, um ob- o estúdio Bethesda ficou apenas como jeto de análise bem delimitado para o publicadora (publisher) do título, pas- ste artigo é motivado pelos estudos estudo de caso. sando o seu desenvolvimento para a Ob- Erealizados 2 sobre os aspectos comu- Diante desta dificuldade inicial, pre- sidian. O segundo é que a Obsidian, na nicacionais do mundo dos games, espe- tende-se que este artigo preencha esta época, abrigava grande parte da equipe cialmente sobre dois pontos: suas pos- lacuna, a de relacionar conceitos sobre criativa original de Fallout 2, sendo fun- sibilidades sociais e narrativas. A maior o que torna a comunicação narrativa dos dada pelos ex-funcionários da Black Isle, dificuldade encontrada, inicialmente, foi games algo único com um exemplo prá- Feargus Urquhart, Chris Parker, Darren a de associar estes conceitos e caracte- tico, apresentado de maneira didática, Monahan, e Chris Jones.

28 PANORAMA Goiânia, v. 8, n. 2, p. 28-33, jul./dez. 2018 . ISSN 2237-1087 . DOI 10.18224/pan.v6i2.6960 O game compartilha do ambiente pós-­ teração está intimamente ligada à explo- está ligado, também, ao fator de recompen- apocalítico dos seus antecessores e tem ração espacial, ou seja, de fato na explo- sa: ao obter conquistas – como, por exem- como cenário a região do deserto de Ne- ração do mundo digital. Ao contrário de plo, derrotar um chefão –, a atribuição do vada (EUA), especialmente os arredores outras formas narrativas, o jogo preci- mérito não cabe ao personagem, mas ao da antiga cidade de Las Vegas, conheci- sa ser jogado: pois são as ações do joga- jogador, que usou inteligentemente suas da como New Vegas no mundo do jogo. dor e sua interpretação que farão a nar- habilidades para contornar a adversidade. O jogador interpreta um entregador, ou rativa progredir. O mundo digital não é Ou seja, as estratégias narrativas do entregadora, de New Vegas que perde a lido e interpretado tradicionalmente, isso jogo estão conectadas à agência do jo- memória após ser baleado na cabeça por é, como algo com início, meio e fim, li- gador, e fogem de estruturas narrativas um homem misterioso de paletó xadrez, near, como um filme ou livro, que, em- clássicas lineares, pois está ligada à in- ser enterrado vido e deixado para morrer bora possam não respeitar um encadea- teração do jogador com seu ambiente no deserto, até ser resgatado por um bom mento narrativo linear (com flashbacks e digital e o ciberespaço. Isto, como es- samaritano, partindo então, sem nenhu- outros), precisam ser consumidos desta tabelecido pela experiência em primeira ma memória de sua vida pregressa, em forma (no livro, tradicionalmente da es- pessoa, leva a uma sensação de presen- busca de respostas. querda para a direita, no filme, do minu- ça no ciberespaço, de vivência do mun- Da mesma forma que nos jogos ante- to zero à sua totalidade). O espaço nar- do digital através da manifestação cor- riores, Fallout: New Vegas é um jogo de rativo do jogo é simultâneo e é explorado pórea do jogador: seu avatar. mundo aberto, ou seja, ele não é estrutu- interativamente. O jogador só terá essa sensação atra- rado por fases como, por exemplo, Super Neste ponto entra o primeiro e prin- vés de outro conceito, de imersão (MUR- Mario Bros. O mundo digital é como uma cipal conceito que é agência do jogador RAY, 2003). Outro jogo serve de exemplo grande caixa de areia e o jogador é livre (MURRAY, 2003), definida pela habilida- interessante para explicar a imersão e mos- para explorá-lo como quiser e na ordem de do jogador de realizar ações significa- trar o elo profundo que ela tem com a cor- em que quiser pouco após começar a jo- tivas no mundo do jogo. Veja bem, não é poreidade do avatar e as ações do jogador, gar. A narrativa principal é guiada atra- apenas apertar botões: é usar da sua ação trata-se do Half-Life, publicado pela Valve vés de quests, missões específicas com para agir e modificar aquele ambiente. Ou em 1998, em particular os seus cinco mi- objetivos específicos, passadas por ou- seja, “[...] games começam com agência nutos iniciais. Half-Life, que é um jogo de tros personagens não-jogáveis. Devido – através do simples fato de que eles pre- tiro e ação, possui um começo sem qual- ao design do mundo aberto, o jogador cisam ser jogados – e a usam como ponto quer arma à vista. Ao longo de cinco mi- é encorajado a explorar e desvendar os de partida de onde construir camadas de nutos o jogador está dentro de um bonde mistérios do mapa, que pode conter vá- complexidade” (GREEN, 2017, p. 37). É atra- andando pelos túneis internos do ambien- rios elementos escondidos ou não aber- vés dela, e especialmente no caso de um te em que o game se passa: um laboratório tamente ligados a uma quest ou ao ob- mundo aberto como de Fallout: New Ve- secreto subterrâneo chamado Black Mesa. jetivo central. gas, que o jogador pode usar a sua agên- Durante a sequência, o jogador tem É neste ponto que o design e a arqui- cia para forjar a sua própria experiência, controle total do personagem e da sua tetura narrativa dos jogos se encontram. pode criar a sua própria narrativa, rom- perspectiva, embora nada esteja aconte- O jogador pode encontrar o refúgio sim- pendo com a intencionalidade do designer. cendo. Ele pode se movimentar pela ex- plesmente ao explorar o mapa do jogo ou Isso fica claro ao se observar, por exem- tensão do trem, sentar-se, pular, olhar pode ser direcionado até ele na busca por plo, as runs específicas do jogo que po- pela janela, enquanto o mundo exterior solucionar a quest Still in the Dark. Nela, dem ser encontradas postadas por joga- possui estímulos que podem ser igno- uma das facções do game, a Irmandade dores no YouTube, por exemplo, jogos em rados ou não. Logo de cara, por exem- do Aço (Brotherhood of Steel), precisa de que o jogador tentou não matar nenhum plo, o jogador passa por um segurança uma peça sobressalente e acredita que o outro personagem 3 ou senão tentou ma- trancado do lado de fora de uma porta, jogador poderá encontrá-la no refúgio. Isto tar todos os personagens 4. imagem mental que muitos fãs carre- é a premissa básica sobre do que se falará Laurel (2008) concorda com os cita- gam na memória apesar de ser apenas neste artigo, mas primeiro é preciso deli- dos autores ao observar que tudo no jogo um detalhe. “Não há qualquer separação near os conceitos para então relacioná-los acontece com o jogador e, portanto, seu entre o espaço lúdico e o narrativo. [...] com o refúgio 11. input é central, pois a agência no ciberes- Nada interrompe o fluxo do jogo ou que paço está ligada à experiência em primei- possa tirar o jogador do mundo nem por Exploração, imersão e interação ra pessoa, ou seja, tudo o que acontece um segundo” (HOLMES, 2012, p. 99). no sistema possui o usuário como refe- O resultado é que o jogador, agindo Nossa argumentação é de que o que rencial, o que gera um impacto imersivo, neste mundo através do seu avatar, acaba faz dos jogos eletrônicos uma mídia dramático e narrativo pelo fato de que as enredado nele, nas suas regras e caracte- única é a interação. O jogo depende das consequências das ações do jogador não rísticas, sem necessariamente estar cum- ações do jogador. Tanto em sua origem acontecem com um personagem numa tela prindo objetivos específicos ou desafios: quanto na contemporaneidade, essa in- somente, mas a ele ou ela, ao jogador. Isto “[...] quando Half-Life pede alguma decisão

29 PANORAMA Goiânia, v. 8, n. 2, p. 28-33, jul./dez. 2018 . ISSN 2237-1087 . DOI 10.18224/pan.v6i2.6960 real do jogador, o personagem de Gordon ma de arquitetura narrativa: “[...] os jogos mas, sem saber que estavam sendo tes- Freeman e o mundo que ele habita foram fir- permitem realizar de forma muito mais am- tados. Sendo assim, ao longo dos jogos, memente estabelecidos” (HOLMES, 2012, pla a espacialidade destas histórias, ofe- o jogador vai encontrar vários refúgios p. 99). Isto é a imersão. Falar-se-á mais so- recendo uma representação muito mais com um passado sombrio. bre como Fallout: New Vegas envolve o jo- imersiva e instigante” (JENKINS, 2011, p. Alguns exemplos incluem o refúgio gador mais adiante. Estes dois pontos se 4). Através do espaço do jogo é que o vi- 95, em Fallout 4, em que o experimen- combinam, somados ao avatar, para mol- deogame apresenta sua narrativa e conta to consistia em tratar viciados apenas dar a experiência do jogador. sua história; o jogador precisa explorar e para, cinco anos depois, uma sala se- interagir com o espaço e, através da sua creta ser aberta recheada de drogas, ao Videogames e as narrativas que eles explo- agência, seu engajamento leva à sensação colapso do refúgio; o refúgio 19, em Fal- ram existem necessariamente em um espa- de presença. Enfim: lout: New Vegas, em que os residentes ço fora do reino da experiência humana coti- foram separados entre time Azul e Ver- diana, como todas as histórias, porém suas No coração de uma história digital está melho e essa rivalidade foi incentivada, iterações mais poderosas estão ancoradas o jogador ao contrário de outras mídias novamente, até acontecer um banho de ao conectar os jogadores a elementos da narrativas que precisam destacar a his- sangue; e o mais icônico da franquia: re- experiência humana (GREEN, 2017, p. 35). tória de seus personagens. Enquanto um fúgio 108, de Fallout 3, em que todos os leitor, um cinéfilo, a audiência de um tea- residentes são clones chamados Gary e Sendo assim, o poder narrativo dos jo- tro possa certamente experimentar uma a única palavra que eles sabem falar é gos está no fato de que, pelo avatar, o de- sensação de imersão e de ser transporta- ‘Gary’, mas com entonações diferentes. senvolvimento da narrativa do jogo leva a do para o mundo de uma estória, a itera- Estes são apenas exemplos entre os vá- sentimentos reais, uma resposta emocional ção da imersão não possui, em seu cer- rios refúgios notáveis. que impacta a experiência de jogo: ne, a sensação mais ativa e investida de Ou seja, é algo bem estabelecido na engajamento proporcionada por videoga- série e comentado entre os fãs, renden- Enquanto as estórias contidas em video- mes (GREEN, 2017, p. 37). do até mesmo listas dos ‘refúgios mais games engajam o jogador de uma ma- estranhos’ em veículos de imprensa 5. En- neira que não é fisicamente real [...] estas A imersão e a agência, somadas ao tão, para ser pego totalmente de surpre- narrativas, mesmo assim, transcendem espaço do mundo digital e ao avatar do sa pelo refúgio 11, o jogador teria que ser a fronteira do digital, impactando o joga- jogador, permitem que ele crie sua pró- um novato em games Fallout, sem ter co- dor. Além disso, não há uma fórmula fixa pria experiência e sua própria história, nhecimento prévio sobre a narrativa inter- pela qual o videogame possa criar agên- podendo tentar fugir ou mesmo igno- na formada ao redor dos refúgios. cia e imersão, levando a uma rica varie- rar a intencionalidade dos seus criado- Através de todo o contato do joga- dade de formas que estes elementos crí- res. Mas aí que está: os games colo- dor com o refúgio 11, a arquitetura nar- ticos para uma história digital possam cam estas decisões na mão do jogador rativa estará funcionando ativamente tomar (GREEN, 2017, p. 36). e um bom game design não irá forçá-­ ligada à exploração do espaço pelo jo- las ao jogador, no máximo sugeri-las, gador. Para que o jogador perceba que O avatar é a manifestação da intenção atiçando-o a querer saber mais, como há algo errado no refúgio 11 ele preci- do jogador, diferente da dos designers do se verá a seguir. sará se engajar ativamente nos elemen- jogo. O avatar também não é um reflexo tos espaciais narrativos espalhados pelo perfeito do jogador, mas é construído de- Entrando no refúgio 11 cenário. A primeira dica, porém, é ines- liberadamente. “O que isto sugere é que capável: a porta do refúgio 11 é encon- o avatar não é inteiramente ‘eu’, nem in- Como apresentado anteriormente, trada aberta, o que já dá a dica ao joga- teiramente ‘não eu’, mas uma versão de a forma mais provável de o jogador en- dor de que algo entrou ou algo saiu do mim que existe em um contexto particu- contrar o refúgio 11 é ser dirigido direta- abrigo que devia estar selado. Porém, o lar e mediado” (PEARCE, 2009, p. 183). mente para lá para solucionar a missão olhar do jogador não é propriamente di- O avatar pode ser uma máscara, mas é Still in the Dark em busca de uma peça recionado para isso: não é dito, narrati- uma máscara que foi pintada, decorada sobressalente. É importante ressaltar vamente, com todas as letras: “a porta e escolhida pelo jogador, mesmo que te- aqui que, se o jogador já está familiari- não devia estar aberta”. Nenhum outro nha vindo de um molde industrial. “Isso zado com os jogos da franquia Fallout, personagem, placa ou texto vai indicar não quer dizer que a persona da pessoa ele provavelmente já espera encontrar ou comentar que a porta está aberta e é incorpórea, mas que ela é expressada algo estranho no refúgio. Isto é porque que devia estar fechada. Ou seja, um em múltiplas corporeidades” (PEARCE, na mitologia da série os refúgios foram jogador distraído pode entrar no refú- 2009, p. 34). usados em grande parte como laborató- gio sem se dar conta da porta aberta e Quanto ao espaço do mundo digital, rios de experimentos psicológicos, so- seus possíveis significados. Jenkins (2011) escreve que o design dos ciais e mesmo farmacológicos em que Ao entrar na primeira sala o jogador mundos dos jogos encoraja o que ele cha- os moradores dos refúgios foram víti- irá se deparar com quatro esqueletos no

30 PANORAMA Goiânia, v. 8, n. 2, p. 28-33, jul./dez. 2018 . ISSN 2237-1087 . DOI 10.18224/pan.v6i2.6960 chão, manchas de sangue e uma pisto- e, no geral, elas não oferecem uma grande exemplo dado anteriormente sobre Half-­ la. Por fim, a sala possui um computador. ameaça ao jogador. Life, em que a experiência âncora do jo- Se o jogador acessá-lo vai encontrar uma Sendo assim, é possível interpretar gador no mundo digital é profundamente gravação de áudio em que cinco vozes dis- que estas criaturas hostis não foram co- imersiva. Por fim, há a recompensa emo- cutem se vão abrir a porta do refúgio e se locadas aqui como um desafio – ao con- cional, também ligada à jogabilidade, em devem deixar algum registro para contar trário, por exemplo, se o lugar fosse ocu- que o jogador tem o prazer de desvendar o que aconteceu. Então há sons de dispa- pado por monstros de nível mais alto ou o mistério e juntar as peças da trama. Esta ros e a gravação acaba. ‘chefões’. É possível concluir que estes recompensa é notável pela necessidade da Novamente, um jogador pode simples- inimigos também compõem a arquitetu- comunidade de manifestar isto, tanto pelas mente entrar no refúgio sem ouvir esse ra narrativa do refúgio: lembre-se, a por- listas aqui apresentadas quanto pela pági- áudio ou sequer acessar o computador e, ta estava aberta, então eles servem para na no Reddit, por exemplo. certamente, um jogador menos perspicaz manter ou aumentar a tensão do jogador, O jogador irá descobrir que os morado- não vai se atentar ao fato de que são cinco que saberá, através deste contato, que o res do refúgio 11 precisam eleger, todos os vozes, mas apenas quatro esqueletos no refúgio não está vazio e que perigos maio- anos, alguém como gerente e que ele ser- chão. É adicionado à questão se o quinto res podem estar logo ali, virando a esqui- virá como sacrifício e que, se recusarem, elemento matou os outros e se foi ele quem na, atrás de qualquer porta. todos os moradores serão executados. Ao abriu a porta ou se cometeu o crime para Desta forma, conclui-se como a agên- longo dos anos os moradores acabaram se impedir que os demais saíssem. Veja bem, cia do jogador e sua exploração do espa- dividindo entre castas de eleitores, exercen- nada disso é indicado abertamente. De for- ço é o veículo narrativo do game. Após do seu poder de voto uns sobre os outros. ma concreta o jogo só apresentou três ele- este ponto, se o jogador quiser saber o O colapso vem quando a mencionada mentos até agora ao jogador: a porta aber- que aconteceu no refúgio 11 ele precisará Kate Stone realiza favores sexuais para o ta, os esqueletos e a gravação. procurar ativamente por pistas e conec- líder de uma dessas facções para que seu Ao adentrar de fato o refúgio o joga- tá-las em sua imaginação. Não há qual- marido, Nate, não seja indicado como sa- dor passa a receber dicas mais abertas quer quest conectada à história do refú- crifício, mas ele é nomeado como candi- sobre a estranheza do lugar na forma de gio, somente à peça citada para Still of dato mesmo assim. Kate então passa a pôsteres de campanha colados na pa- the Dark. Deste ponto em diante o joga- matar vários membros da facção com a rede, mas, ao contrário de slogans nor- dor pode simplesmente procurar a peça lógica de que, como assassina, ela devia mais de campanha, estes apresentam – que está no subsolo, pegá-la e sair do ser eleita no lugar de Nate. Kate vence e as características negativas dos candi- refúgio sem saber o que aconteceu por bane as eleições: o sacrifício/gerente pas- datos. Por exemplo, ‘Haley é uma adúl- lá. E, mesmo assim, se o jogador decidir saria a ser escolhido por um número alea- tera conhecida e simpatizante comunis- explorar o refúgio completamente para tório no computador. ta. Vote Haley’. Assim como pôsteres se descobrir o que aconteceu, não há ne- Sem querer perder o seu poder, a fac- defendendo, como ‘Os rumores sobre nhum ganho in game com a obtenção ção opositora realiza um levante arma- Haley são falsos; vote Stone’, e mesmo desta informação. Nenhum item, nenhu- do. Apenas cinco pessoas sobrevivem ao alguns sem explicação, como ‘Eu odeio ma vantagem, nenhuma progressão den- massacre. As cinco decidem ir juntas para Nate’ e sua variante, onde picharam um tro do jogo, nada objetivo e concreto, ao a câmara de sacrifício, no intuito de deixar K por cima do N: ‘Eu odeio Kate’. Estas contrário das quests, que sempre trazem o computador matar os cinco. A ação, po- dicas são mais difíceis de ignorar, embo- consigo algum tipo de recompensa por rém, revela a verdade sinistra do experi- ra o jogador não possa interagir com os realizar tais missões. mento: o computador não mata ninguém pôsteres ou arrancá-los. A campanha é Enfim, o game design dos desenvolve- e destranca a porta do refúgio, congratu- para a posição de Overseer (gerente), o dores carrega uma intencionalidade clara: lando-os por serem ‘exemplos brilhantes líder executivo do refúgio. a de que com os elementos básicos apre- para a humanidade’, recusando-se a ma- Neste ponto, somados aos três ele- sentados anteriormente o jogador se sin- tar um dos seus por um capricho. Isto leva mentos originais, o jogador passa a ter ta instigado e ceda à sua curiosidade para aos quatro esqueletos na entrada: fica em dois elementos narrativos mais claros: há desvendar ativamente a história do refú- aberto se os quatro se mataram e o quin- uma eleição; esta eleição busca eleger a gio 11. Há um ganho narrativo, mas tam- to não teve coragem ou se o quinto matou pior pessoa do refúgio. É importante des- bém ‘gameficado’ nisso. Narrativamente, os outros quatro e fugiu. tacar que neste ponto o jogador também o jogador irá descobrir a estória do refú- O ponto central aqui é este: o jogador não sabe se o refúgio está vazio ou se ofe- gio 11 e poderá recontá-la, comentá-la e não precisa nem é obrigado a saber esta rece algum perigo físico ao seu avatar. Isto reagir emocionalmente a ela, como vários história. Ele só saberá o que aconteceu se é resolvido na área de acesso ao refúgio: jogadores fizeram, compartilhando suas ele escolher, tomar a decisão de agir sobre na região da entrada para o deserto o jo- experiências em uma página no Reddit 6. este ambiente digital para encontrar todas gador irá encontrar algumas criaturas ra- Gameficado por que é uma experiência in- as pistas que estão espalhadas pelo es- dioativas, como ratos-toupeira e escorpiões terativa, está inserida no ato de jogar, não paço do mundo digital, especialmente em radioativos gigantes. São poucas criaturas é algo que é contado ao jogador, como o arquivos de texto e de áudio, entre outros

31 PANORAMA Goiânia, v. 8, n. 2, p. 28-33, jul./dez. 2018 . ISSN 2237-1087 . DOI 10.18224/pan.v6i2.6960 elementos. Tudo isto é encontrado de for- diferencial da agência do jogador nela e ce, mídia e agência em MMORPGs, assim como duas palestras realizadas com alunos ma fragmentada e fora de ordem nas vá- como esta agência está ligada ao espaço da graduação da UFG sobre como e porque rias salas e andares do refúgio 11. E, por do mundo digital e à imersão do jogador a narrativa em games é única em relação a fim: só explorando e conectando os pon- narrativamente neste mundo de pixels. outras formas de mídias narrativas de mas- tos que o jogador poderá entender por que Sendo assim, a comunicação nar- sa, como o cinema, as séries de TV ou os eles tentavam eleger, supostamente, a pior rativa dos jogos é feita a partir da in- romances literários. pessoa do lugar. clusão do jogador na trama através de 3 Veja exemplos de runs específicas do jogo Além disso, a agência, a decisão dos suas ações. Como os usuários do Red- postadas por jogadores no YouTube em: ou em . gio 11, por engajarem o jogador, levam-­ jogo, podendo recontar depois esta ex- Acesso em: 24 jan. 2019. no ativamente a fazer reflexões éticas. periência a partir de suas ações e pon- 4 Mais exemplos de runs específicas postadas “Podemos usar jogos para fazer deman- tos de vista – eu fiz isso, eu encontrei por jogadores no YouTube: ou , por exemplo. Acesso em: 24 jan. 2019. tas vezes incluindo até mesmo sistemas vos sejam diversos e fragmentados, eles 5 Algumas destas listas estão disponíveis éticos. Sendo assim, existem “[...] for- foram inseridos no game da forma como nestes endereços: ; e . Acesso em: 24 jan. 2019. karma. Na prática, outros personagens e 11 e não se interessar por seus segre- 6 O thread agora está arquivado, mas é possí- facções reagiriam diferentemente ao joga- dos ou senão, por exemplo, pode estar vel ler o debate no endereço: . Acesso em: 24 jan. existe este sistema e, mesmo assim, no lente que procura e depois sair, deixan- 2019. caso do refúgio 11 os jogadores encon- do para voltar e explorar a trama depois. 7 Para escolhas éticas em Fallout reco- tram o bizarro experimento anos depois Ou seja, ao entrar no refúgio 11, o joga- menda-se procurar por artigos sobre o de ele se encerrar, podendo apenas refle- dor não é obrigado a saber sua estória, refúgio 112, de Fallout 3, que ativamen- tir sobre o caso 7. nem ficar preso de qualquer forma a ela, te coloca o destino de um desses expe- Zagal (2013, p. 128) conclui que, des- fazendo sua própria jornada. rimentos na mão do jogador e que, na- ta forma, os jogos digitais, através de suas quele caso, está ligado diretamente a uma regras e sistemas, permitem criar “[...] ex- quest, Tranquility Lane, ao contrário da abordagem livre do refúgio 11. periências emocionalmente significativas 1 José Abrão em seus participantes”. Isto fica evidente pelo feedback emocional e catártico gera- Mestre em Performances Culturais pela Referências do pela trama mencionado anteriormen- Faculdade de Ciências Sociais da Univer- te, que levou os fãs a compartilhar suas sidade Federal de Goiás (2018). GREEN, Amy M. Storytelling in video experiências. Graduado em Comunicação Social – Jor- games: the art of the digital narrative. nalismo pela Faculdade de Comunicação Jefferson: McFarland & Company Inc, Considerações finais e Informação da Universidade Federal de 2017. Goiás (UFG) (2014). HOLMES, Dylan. A mind forever Espera-se que este breve estudo de voyaging: a history of storytelling in caso sobre o refúgio 11 tenha cumprido videogames. Scotts Valley: CreateSpace o seu objetivo de exemplificar, na prá- Notas Independent, 2012. tica, como se dá a experiência narrati- JENKINS, Henry. Game design as va do jogador em um jogo digital, assim 2 No caso, minha dissertação de mestrado, narrative architecture. 2011. Disponível como estabelecer o papel fundamental e intitulada Amigos e Guildas: performan- em:

32 PANORAMA Goiânia, v. 8, n. 2, p. 28-33, jul./dez. 2018 . ISSN 2237-1087 . DOI 10.18224/pan.v6i2.6960 edu/~bogost/courses/spring07/lcc3710/ readings/jenkins_game-design.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2019. LAUREL, Brenda. Computers as theatre. 15. ed. Lafli: Addison-Wesley, 2008. MURRAY, Janet H. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Editora Unesp, 2003. PEARCE, Celia. Communities of play: emergent cultures in multiplayer games and virtual worlds. Cambridge: MIT Press, 2009. ZAGAL, José P. Encouraging ethical reflection with videogames. In: ZAGAL, José P. (Ed.). The video game ethics reader. San Diego: Cognella, 2013. p. 67-82.

33 PANORAMA Goiânia, v. 8, n. 2, p. 28-33, jul./dez. 2018 . ISSN 2237-1087 . DOI 10.18224/pan.v6i2.6960