Universidade do Estado do Centro de Tecnologia e Ciências Instituto de Geografia

Alexandre Moura Pizotti

Mangueira: um simbólico lugar forjado no ritmo do e no passo de seus desfilantes

Rio de Janeiro

2010 Alexandre Moura Pizotti

Mangueira: um simbólico lugar forjado no ritmo do samba e no passo de seus desfilantes

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Gestão e Estruturação do Espaço Geográfico.

Orientador: Prof. Dr. João Baptista Ferreira de Mello

Rio de Janeiro 2010

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CTC/C

P695 Pizotti, Alexandre Moura. Mangueira : um simbólico lugar forjado no ritmo do samba e no passo de seus desfilantes / Alexandre Moura Pizotti. – 2010. 93 f.

Orientador: João Baptista Ferreira de Mello. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Geografia.

1. Geografia humana – Teses. 2. Favelas – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 3. Mangueira (Rio de Janeiro, RJ) – Teses. I. Mello, João Baptista Ferreira de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Geografia. III. Título.

CDU 908(815.3)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese.

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Assinatura Data

Alexandre Moura Pizotti

Mangueira: um simbólico lugar forjado no ritmo do samba e no passo de seus desfilantes

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Gestão e Estruturação do Espaço Geográfico.

Aprovado em 16 de abril de 2010. Banca Examinadora:

______Prof. Dr. João Baptista Ferreira de Mello (Orientador) Instituto de Geografia – UERJ

______Prof. Dr. Glaucio José Marafon Instituto de Geografia – UERJ

______Prof. Dr. Miguel Angelo Campos Ribeiro Instituto de Geografia – UERJ

______Profª. Dra. Maria Goretti da Costa Tavares Instituto de Geografia – UERJ

Rio de Janeiro

2010 RESUMO

PIZOTTI, Alexandre Moura. Mangueira: um simbólico lugar forjado no ritmo do samba e no passo de seus desfilantes. 2010. 93 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

Tentar interpretar as múltiplas dimensões do mundo vivido dos moradores do Morro da Mangueira, zona norte do Rio de Janeiro, no cenário urbano carioca, por meio da experiência de seus compositores ou simpatizantes, é o principal esforço deste trabalho. Acreditamos que tal empreendimento se justifica tendo em vista que a simbologia emanada pelo Morro da Mangueira se expressa também, e talvez principalmente, por intermédio da cadência de seu samba e no ritmo de seus desfilantes, tendo como principal agente o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, uma das primeiras escolas de samba fundadas na cidade, proporcionando assim uma aura de primeira grandeza a toda a sua comunidade, trazendo ao morro notoriedade no imaginário carioca, nacional e internacional. Buscando trilhar o caminho da lógica da descoberta, procurando a cada verso traduzir o sentimento e o entendimento com respeito a Mangueira a partir do rico cancioneiro produzido por seus compositores ou simpatizantes, a pesquisa se apóia nos fundamentos teóricos e metodológicos da Geografia Humanística, baseados na fenomenologia e hermenêutica. Neste contexto, busca-se entender o mundo vivido da Mangueira em seu caráter simbólico, um lugar / lar de grande significado na alma do carioca e do povo brasileiro.

Palavras-chave: Geografia Humanística. Rio de Janeiro. Favela. Mangueira. Lugar. Samba

ABSTRACT

PIZOTTI, Alexandre Moura. Mangueira: a symbolic place forged in the rhythm of samba and pitch their marchers. 2010. 93 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

Trying to interpret the multiple dimensions of the lived world of the residents of Morro da Mangueira, north of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro in the urban setting, through the experience of its writers or supporters, is the main effort of this work. We believe that such an enterprise is justified considering that the symbolism emanating from the hill of the hose is also expressed, and perhaps mainly, through the samba cadence and rhythm of its marchers, with the primary agent Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, one of the first samba schools founded in the city, providing an aura of prime importance to your entire community, bringing awareness to the hill in Rio imagination, nationally and internationally. Seeking the path of the logic of discovery, looking for each verse to translate the feeling and understanding with respect to the hose from the rich songbook produced by composers or their sympathizers, the research is based on theoretical and methodological foundations of humanistic geography, based on phenomenology and hermeneutics. In this context, we seek to understand the lived world of the Mangueira in its symbolic character, a place / home of great significance in the soul of Rio and the brazilian people.

Keywords: Humanistic Geography. Rio de Janeiro. Slum. Mangueira. Place. Samba

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 06 1 GEOGRAFIA HUMANÍSTICA: ORIGEM E PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS ...... 10 1.1 Lugar e espaço na geografia humanística...... 15

2 APOTEÓTICO ENCANTO DA MANGUEIRA DE TODOS NÓS...... 18 2.1 Os lugares de residência, trabalho, lazer e das ligações “físicas”/afetivas...... 20 2.1.1 Lugar vivido de moradia...... 21 2.2 Lugar, amizade e identidade...... 32 2.2.1 Topofilia...... 32 2.2.2 Relações íntimas com o lugar...... 39 2.3 Sagração, fantasia e memória dos lugares...... 41 2.3.1 A utopia mangueirense (etnocentrismo e lugar mítico)...... 41 2.3.2 A celebração do lugar...... 47 2.3.3 Nostalgia mangueirense...... 51 2.4 Muralhas da natureza, do cotidiano e da imaginação...... 55 2.4.1 Portões e muros do resguardo e da exclusão...... 55 3 MANGUEIRA TEU CENÁRIO É UMA BELEZA E DE EXPRESSIVA RIQUEZA SIMBÓLICA...... 64 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 76 REFERÊNCIAS...... 78 ANEXO A - Relação das músicas usadas nesta dissertação...... 81

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INTRODUÇÃO

Tentar interpretar as múltiplas dimensões do mundo vivido dos moradores do Morro da Mangueira, zona norte do Rio de Janeiro, no cenário urbano carioca, por meio da experiência de seus compositores ou simpatizantes, é o principal esforço deste trabalho. Em outras palavras, esta dissertação tem por objetivo explorar a geográfica alma mangueirense através de versos e canções que abordam os diversos significados do morro e sua agremiação verde e rosa. Acreditamos que tal empreendimento se justifica tendo em vista que a simbologia emanada pelo Morro da Mangueira se expressa também, e talvez principalmente, por intermédio da cadência de seu samba e no ritmo de seus desfilantes, tendo como principal agente o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, uma das primeiras escolas de samba fundadas na cidade, proporcionando assim uma aura de primeira grandeza a toda a sua comunidade, trazendo ao morro notoriedade no imaginário carioca, nacional e internacional. Talvez mais importante ainda, ao tentar compreender este rico universo mangueirense por meio da sensibilidade de compositores nascidos ou que tenham vivido grande parte de sua vida no morro, ou freqüentadores de notória relação com a comunidade, registrado em diversas canções, algumas delas aqui selecionadas, acreditamos contribuir também para a diminuição de imagens ou representações estigmatizadas sobre seus moradores, comuns também à população de outras comunidades da cidade, que pouco ou quase nada se alterou nestes mais de cem anos da existência do fenômeno favela no espaço urbano carioca. Assim, ao “dar voz a seus compositores” pretendemos oferecer novas possibilidades de interpretação deste simbólico lugar de nossa sociedade, reorientando a visão da cidade sobre o morro, sempre circundada como o lugar do pobre e do atraso. Buscando trilhar o caminho da lógica da descoberta, procurando a cada verso traduzir o sentimento e o entendimento com respeito a Mangueira a partir do rico cancioneiro produzido por seus compositores ou simpatizantes, a pesquisa se apóia nos fundamentos teóricos e metodológicos da Geografia Humanística, baseados na fenomenologia e hermenêutica. Neste contexto, busca-se entender o mundo vivido da Mangueira em seu caráter simbólico, um lugar / lar de grande significado na alma do carioca e do povo brasileiro. A corrente humanística, surgida no âmbito do 7

processo de renovação do pensamento geográfico a partir dos anos 1970, é radical ao se opor às geografias lógico-positivistas. Recorremos assim a autores como Tuan (1980, 1983, 1991, 1998, 2006), Mello (1990, 1991, 2000, 2005, 2008), Buttimer (1985), Pocock (1981), entre outros. A escolha destes autores recai no fato da grande importância de suas contribuições a um número de trabalhos, artigos e livros, dentro da corrente humanística, cada vez maior, o que também, por outro lado, evidencia a evolução e consolidação da Geografia Humanística dentro da ciência geográfica. Para se atingir o universo das canções selecionadas e apresentadas ao longo desta pesquisa, assim como ao acervo dos versos do cancioneiro popular em questão posteriormente analisados, foram utilizados sites especializados, visitas a instituições de referência, como a Biblioteca Nacional (seção de música) e centros culturais, notadamente o Centro Cultural Cartola. Recorremos também ao nosso próprio acervo e levantamentos junto a terceiros, simpatizantes da escola de samba. Como a literatura musicada da e sobre a Mangueira é bastante rica e extensa, buscamos selecionar aquelas canções que entendemos terem em seus versos as dimensões espaciais e simbólicas que pretendemos analisar e destacar, a saber: os laços topofílicos (TUAN, 1980), as experiências vividas dos compositores mangueirenses e a especificidade da geografia e história da favela. As canções selecionadas e analisadas foram agrupadas em quatro eixos (com seus respectivos sub-eixos), são eles: “os lugares de residência, trabalho, lazer e das ligações „físicas‟/afetivas”; “lugar, amizade e identidade”; “muralhas da natureza, do cotidiano e da imaginação”; “sagração, fantasia e memória dos lugares”. Esta “arrumação” das composições nestes eixos segue o que foi proposto por Mello (1991) em “O Rio de Janeiro dos compositores da música popular brasileira (1928 – 1991): uma introdução à Geografia Humanística”, trabalho onde numerosas canções analisadas pelo autor foram agrupadas a partir de conceitos já discutidos dentro da perspectiva humanística, adaptados à experiência dos compositores ou introduzidos pelo autor a partir do contato com a literatura musicada levantada. Ainda de acordo com esta proposta, todos os “espaços, lugares e „deslugares‟ são convertidos em lugares supondo-se, em primeira instância, que o simples fato de ser cantado categoriza o local como algo íntimo, a ser defendido, logo, lugar” (MELLO, 1991, p.42). Nesta dissertação procuramos adaptar esta proposta ao temário abordado nas canções 8

selecionadas assim como a escala de análise, o que explica, por exemplo, a não inclusão de alguns sub-eixos utilizados pelo referido autor em seu trabalho. Assim, a exposição dos versos de músicas registradas pela indústria fonográfica irá obedecer aos seguintes critérios: as letras serão agrupadas em diferentes eixos e analisadas em conjunto, seguindo uma ordem cronológica dentro de cada bloco. O universo das composições neste trabalho e que serão utilizadas ao longo destes eixos contempla um universo de melodias que vai da década de 1920 a 2000 totalizando 24 canções. Ao lado da exposição das letras, sempre que possível, será considerado um breve histórico relativo ao (s) compositor (es) com informações a respeito de sua classe social, lugar de origem e residência, instrução, entre outros, como também proposto por Mello (1991). Com vistas à sua elaboração, a pesquisa está estruturada em três grandes seções. Na primeira seção, intitulado “Geografia Humanística: origem e pressupostos filosóficos” buscaremos expor um breve histórico da Geografia Humanística dentro da evolução do pensamento geográfico, explorando principalmente os conceitos de espaço e lugar, entendidos no âmbito desta corrente, enfoques estes que serão de suma importância para a elaboração da dissertação. Na segunda seção, sob o título de “Apoteótico encanto da Mangueira de todos nós”, versaremos a respeito do lugar Mangueira, a partir da análise das canções selecionadas, à luz dos pressupostos conceituais e metodológicos da corrente humanística. A seleção dos versos dedicados à geografia da Mangueira neste nicho se resume a um elenco de canções que estão divididos entre - enredos, sambas de terreiro e quadra, de autores nascidos e criados no morro ou de simpatizantes de pública ligação com o morro de Mangueira, recorte espaço/existencial desta pesquisa. Como já mencionado, este rico cancioneiro popular traz em seus versos e melodias a experiência vivida dos compositores mangueirenses e admiradores que tentaremos compreender e traduzir, com o emprego de conceitos e categorias (re)trabalhados na Geografia Humanística, esforço que se constitui no cerne desta pesquisa. Foi utilizado como fonte de consulta para a maioria das trajetórias biográficas dos compositores ou intérpretes das canções analisadas nesta seção a versão eletrônica do Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira, obra de referência no assunto. Entretanto, outras fontes foram consultadas além da citada obra, sendo estas mencionadas no corpo do texto. Desta forma, buscamos também alcançar com este procedimento o que 9

Mello (1991) nos sugere, obter insights sobre aspectos ligados às motivações para a produção das composições e os contextos em que estas ocorrem, assim como sobre os significados e os efeitos pretendidos. Além disso, o uso destas informações adicionais nos ajudam a penetrar nos significados buscados pelos autores assim como melhor compreender as idéias contidas nas composições dos mesmos, plenas de sentimentos e evocações (KONG, 2009). Em alguns casos apenas um trecho ou parte de uma determinada composição será usada em cada bloco dentro dos eixos. Em anexo, encontram-se as letras completas usadas nesta seção. Por último, a terceira seção, “Mangueira teu cenário é uma beleza e de expressiva riqueza simbólica” busca explorar a dimensão simbólica deste universo de Mangueira na vida de relações da urbe carioca e no Brasil. Para alcançar este objetivo, recorremos primeiramente à noção de símbolo a partir das discussões e contribuições de geógrafos, notadamente da corrente cultural, assim como de não- geógrafos. Posteriormente, tentamos argumentar como esta dimensão simbólica, construída no bojo da rica produção cultural de seus compositores, pode proporcionar e alimentar maior “visibilidade” ao morro da Mangueira no cenário urbano da cidade, atraindo a atenção da opinião pública carioca, nacional e até além mar, não só no período de carnaval (onde a comunidade, por meio de sua agremiação carnavalesca alcança peculiar consagração) para o morro, assim como contribuir também para melhorias na infra-estrutura física e de inclusão à “cidade formal”, por parte do poder público ou da iniciativa privada.

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1. GEOGRAFIA HUMANÍSTICA: ORIGEM E PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS

Antes da exposição e análise das letras que tratam da riqueza simbólica da favela da Mangueira, tema central desta dissertação, acreditamos que se faça necessária uma rápida revisão da corrente de pensamento onde este trabalho se apóia, ou seja, a corrente humanística. Surgida no âmbito do processo de renovação do pensamento geográfico a partir dos anos 70, a geografia humanística constituiu- se hoje em uma das possibilidades de interpretação do mundo vivido de toda gente no bojo da produção geográfica acadêmica. De certa forma, o humanismo pode ser definido como uma filosofia do que o homem é e pode fazer, e foi incorporado à Geografia nas últimas décadas. Entretanto, algumas idéias humanísticas já podiam ser observadas nos estudos de alguns geógrafos tradicionais como Vidal de La Blache e Carl Sauer (MELLO, 1991). O termo “humanística” no meio geográfico foi difundido a partir de 1967, no texto “China”, de Yi-Fu Tuan que, junto com outros autores, como Relph, Buttimer e Lowental, trabalharam no sentido de introduzir, pioneiramente, a perspectiva humanística na análise de fenômenos espaciais. Entre outros aspectos, a Geografia Humanística é marcada pela crítica às geografias de cunho lógico-positivista, que enquadram o mundo em teses e teorias “fechadas”, onde os homens são analisados como mais um elemento da equação ou teorema, ou segundo as palavras de Mello: Posicionando-se contra testes hipotéticos, teorias e leis, a geografia humanística é crítica e radical por não perfilar com aqueles que excluem de suas pesquisas os sentimentos, valores, enfim, as experiências dos homens que criam, atuam e vivem no espaço, o que se contrapõem aos positivistas, que falam de um mundo sem homens ou contados aos montes como gado, ou meramente transformados em números (MELLO, 1990, p. 22-23).

Desta forma a Geografia Humanística é antes de tudo uma geografia que liberta, pois empossa o homem, no sentido lato da palavra, que planeja, sonha e conhece o espaço transformado em lugar, como principal produtor e produto de seu próprio meio, estudando desta forma o mundo habitado e efetivamente vivido por povos, comunidades e sociedades, ponto de vista corroborado por Mello (1990), quando este, recorrendo aos precursores desta ala do saber geográfico, sublinha: 11

O mundo simples e “certinho” dos positivistas difere do(s) mundo(s) vivido(s) analisados pelos humanísticos, atento aos valores e ambivalências dos seres humanos, que não são máquinas. Nos estudos humanísticos há uma troca constante entre pesquisado e pesquisador, estes diferentes dos sábios fechados em suas redomas de conhecimentos (e teorias), imerso e inserido nas experiências investigadas, adotando uma filosofia crítica e refletida, com vistas a aclarar a consciência espacial dos seres humanos. (MELLO, 1990, p. 22-23).

A corrente humanística se baseia em alguns pressupostos das filosofias do significado como a fenomenologia, o existencialismo, o idealismo e a hermenêutica para analisar a relação/introjeção/pertencimento dos indivíduos e seus meios ambientes. Alguns trabalhos desenvolvidos no bojo deste paradigma trabalham com mais intensidade um ou outro pressuposto filosófico. Entretanto, a valorização do homem visando compreender e interpretar seus sentimentos e entendimentos do espaço e, até mesmo, como a simbologia e o significado dos lugares podem afetar a organização espacial, são traços comuns compartilhados dentro da produção geográfica humanística, conferindo a estes escritos um eixo central de reflexão e análise (MELLO, 1990). A seguir, faremos uma breve exposição das principais características dos pressupostos filosóficos acima citados. A fenomenologia é a filosofia presente em um maior número de estudos humanísticos em geografia. Muitos autores, a partir de pontos de vistas diferentes, contribuíram de maneira diversa para a constituição de um horizonte fenomenológico. O termo foi criado, em 1764, por J. H. Lambert e, a partir daí, recebeu significações diferentes, notadamente aquelas dadas pelos alemães Immanuel Kant (1724 – 1804) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831) e, sobretudo, por Edmund Husserl (1859 -1938) (GOMES, 2003). A “fenomenologia é um arcabouço filosófico que busca compreender os fenômenos como eles são em sua essência, partindo da investigação dos atos da consciência sobre o mundo vivido de cada indivíduo ou grupo social”, sendo assim, o método fenomenológico “envolve a procura do pesquisador no sentido de identificar como as pessoas estruturam seu ambiente de um modo inteiramente subjetivo e integrado a ele” (MATTOS, 1988, p. 48). Cabe à fenomenologia o pioneirismo na adoção de dimensões como os laços de vizinhança, a preferência por determinados pontos de uma cidade, a afeição a um lugar (topofilia), bem como o ódio a certos espaços (topofobia), o medo a outros (agorafobia), a afeição a ambientes fechados (claustrofilia), a morte dos lugares 12

(topocídio), a restauração de outros (toporeabilitação), afora a topoindiferença, (TUAN, 1980), bem como as experiências cotidianas na abordagem geográfica, além de extrapolar o embate clássico fomentador da reflexão filosófica, ou seja, a relação sujeito – objeto, pois entende que o ser e o fenômeno não podem ser concebidos de maneira dissociada (MELLO, 1990). Da filosofia fenomenológica de Husserl, a Geografia Humanística traduziu a noção de mundo vivido para lugar ou lar. Trata-se de um todo inseparável composto pelo meio-ambiente, pessoas, amigos, conhecidos, “canções que a minha mãe me ensinou” e as relações cotidianas (SCHUTZ, 1979). O mundo vivido de cada um já existia antes do nascimento da pessoa, que vivencia e interpreta o “seu” mundo vivido, a partir de valores e estoques de experiências próprios e de outros indivíduos, que lhe transmitem conhecimentos do passado e do presente, e que permitem antecipar, de certa maneira, o futuro. O intermundo é o mundo comum a diferentes pessoas: cenário, objeto das ações e das interações dos seres humanos. O mundo vivido continuamente experienciado é modificado pelas ações do homem, que também modifica as suas ações. Já o estoque de experiências, forjado no dia-a-dia pela cultura informal e a educação formal, é um enriquecimento cotidiano prático e teórico, que fornece ao homem elementos para agir e pensar. Mas este conhecimento, fruto da natureza humana, não é homogêneo e sim incoerente, parcial, contraditório e/ou ambíguo. Isto posto, vale repetir, o conhecimento do mundo é recebido pela cultura (formal e informal) e completada pela experiência pessoal, o que gera intimidade e afetividade pelo lugar vivido (MELLO, 1991). Na galeria de filosofias do significado encontramos, igualmente, o existencialismo surgido como corrente filosófica após a Segunda Guerra Mundial e semelhante, em vários pontos, com a fenomenologia o que conduz alguns geógrafos a uma dificuldade em separá-los. A diferença básica se remete à primazia da essência na fenomenologia – a atribuição de significados resultado da existência da consciência – enquanto para os existencialistas o ser, vem antes da essência, ou o “homem faz a si mesmo” (MELLO, 1991). As primeiras reflexões de caráter existenciais tem como figura central o pensador dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855). Esta vertente filosófica defende a qualidade e o significado do indivíduo supervalorizado no mundo vivido, “o homem singular vale mais que a espécie” e a aversão a leis empíricas e métodos universais, ficando a cargo dos “atos livres dos agentes humanos sua geografia existencial” (MELLO, 1990, p. 39). 13

O existencialismo fundamentalmente é uma perspectiva sobre a qualidade e significados da vida humana no mundo vivido, na qual “o homem singular vale mais que a espécie”. A primeira tarefa do método existencial é não estabelecer leis empíricas, nem constituir um método universal, mas sim redescobrir a cada pegada um símbolo, no caso particular, no qual algum sujeito é considerado. Esses símbolos particulares conduzirão a símbolos coletivos. Cada “geografia existencial” é criada pelos atos livres dos agentes humanos. Seus valores advêm da própria existência e das relações entre os indivíduos e o mundo da coletividade (MELLO, 1991). Por sua vez, a corrente idealista defende a posição de que os fenômenos geográficos podem ser analisados e interpretados através de um conjunto de idéias, criadas através de um conhecimento acumulado na experiência do mundo, seja ao nível do indivíduo ou da coletividade. Uma primeira meta dos geógrafos idealistas é elucidar o significado da atividade humana em seu contexto cultural, tendo em vista que os eventos e fenômenos do mundo adquirem significância e significado para os indivíduos e grupos em termos de idéias e teorias (MELLO, 1991). No discurso idealista, a necessidade da teoria no sentido lógico-positivista, é negada, contundo, sem abandonar uma análise descritiva e analítica. O homem é um ser teorizante. Tais teorias são formuladas a partir da observação de certos dados da realidade sócio-espacial. Desta forma, o trabalho do geógrafo segundo Leonard Guelke, um dos expoentes da corrente idealista, é repensar os pensamentos daqueles que está investigando, procurando compreender como o indivíduo reage e age aos estímulos da realidade. O geógrafo idealista condena a descrição do mundo em termos de leis e teorias prontas, até porque a filosofia idealista capacita o pesquisador a explicar as ações humanas, de uma maneira crítica, sem o emprego de teorias. De acordo com Guelke, o homem “é um animal teorético cujas ações são baseadas no entendimento teorético de sua situação” (MELLO, 1991, p. 41). Por último, a hermenêutica, outra filosofia do significado utilizada pelos geógrafos humanísticos, tem sua origem na Antiguidade, inspirada na mitologia grega de Hermes, deus da comunicação, encarregado de trazer as mensagens do Olimpo. O museu de Alexandria foi a primeira instituição a colocar em prática os métodos interpretativos hermenêuticos para desenvolver seus estudos homéricos, o que levou ao surgimento de uma “geografia” voltada a inventariar os dados, a fim de fornecer uma correspondência entre o mundo dos textos lendários e o mundo real. Com o advento do cristianismo e a organização da Igreja, ocorreu uma ruptura da 14

tradição hermenêutica. A Igreja Católica passa a centralizar e a orientar para um certo sentido as interpretações dos textos bíblicos, além de inaugurar o conflito com os rabinos talmudistas (de forte tradição na interpretação dos textos sagrados) a respeito das mensagens da revelação, entre o Novo e o Velho testamento. Mais tarde, no século XVIII, a tradição hermenêutica reapareceu na Alemanha como método de leitura e interpretação dos textos sagrados e clássicos. A figura do hermeneuta, em uma época que o acesso à leitura era ainda um privilégio para uma minoria, tinha a tarefa de explicar, em uma linguagem acessível, a mensagem sagrada dos textos bíblicos. Mais tarde, a hermenêutica se constituiu em método, com o gradual deslocamento da importância do objeto (os textos) para o sujeito (hermeneuta). Com este distanciamento entre sujeito e objeto dentro do método hermenêutico convinha buscar os elementos livres do raciocínio. E onde encontrá- los senão na natureza. A natureza foi sem dúvida o grande laboratório da hermenêutica moderna (GOMES, 2003). A constituição de um método hermenêutico moderno começa com o alemão Johann Gottfried Herder (1744 – 1803), estabelecendo uma inteligibilidade circunscrita às condições espaço-temporais (Gomes, 2003), sendo seguido por outros filósofos como Wilhem Dilthey (1833 - 1911). Baseada na noção de experiência vivida (um complexo de atos), qualquer coisa para ser entendida precisa de um quadro de referência (Mello, 1991). Também conhecida como filosofia interpretativa, a hermenêutica busca, em linhas gerais, compreender e interpretar as contradições e ambivalências da consciência dos indivíduos e/ou grupos sociais com relação ao seu meio ambiente natural ou socialmente produzido. Desta forma, para Dilthey: É pelo processo de compreensão que a vida é esclarecida sobre ela mesma em suas profundezas e, por outro lado, nós só compreendemos a nós mesmos e compreendemos os outros seres na medida em que transferimos o conteúdo de nossa vida para toda forma de expressão de uma vida, seja ela nossa ou estranha a nós. Assim, o conjunto da experiência vivida, da expressão e da compreensão é em todo o lugar o método científico, pelo qual a humanidade existe para nós enquanto objeto das ciências do espírito (ou sociais) (GOMES, 2003, p. 113).

A compreensão foi, então, promovida ao nível de instrumento epistemológico passando a ser um novo pólo da produção do saber originário do pensamento artístico e religioso, manifestando-se mais tarde nas ciências, principalmente nas ciências sociais. Compreender é alcançar uma significação, explicar o obscuro, 15

revelar uma essência. Os fatos são expressivos por serem portadores de um sentido. Ainda segundo Dilthey, compreender seria também o ato de encontrar nos fatos a intenção dos outros, de se colocar em comunicação com eles. A compreensão seria sempre sintética, cujo objeto não pode ser decomposto em elementos mais simples, e deve ser guiada pela intuição e pelo sentimento, sem descartar a subjetividade, de tal maneira que a compreensão possa alcançar imediatamente as totalidades sem recorrer à razão (GOMES, 2003). Mais recentemente, a hermenêutica foi deslocada do campo metodológico para o da ontologia. Segundo Heidegger, compreender é uma maneira de ser, isto é, o ser humano tem um projeto de compreensão inerente que substitui a universalidade da racionalidade. Isto representa um dos novos terrenos da geografia humanística e também é aquilo que anima as discussões filosóficas atuais (GOMES, 2003). Diante do exposto, convém enfocar os conceitos que se confundem com a trajetória do aporte humanístico em geografia.

1.1 Lugar e espaço na geografia humanística

Após a rápida exposição acima, buscaremos agora discutir como conceitos chave da ciência geográfica são analisados à luz da Geografia Humanística, a saber: os conceitos de espaço e lugar. Com sabemos, outras categorias analíticas como território, paisagem e região são também importantes ferramentas teóricas na interpretação e análise de fenômenos geográficos. Entretanto, são as noções de espaço e lugar aquelas mais trabalhadas pelos geógrafos humanísticos. Segundo Mello (1990), dentro da corrente humanística o uso destes conceitos tem sido bastante cuidadoso e disciplinado evitando sua banalização. O espaço geográfico, objeto de estudo da ciência geográfica, pode ser definido como o resultado do trabalho social do homem na transformação da natureza, tendo no lugar, parte ou porção deste espaço geográfico, locus das ações cotidianas. Os objetos ou formas resultantes da intervenção do homem na natureza e dispostos sobre a superfície da Terra, de acordo com o empreendimento de alguns agentes sociais, passam a representar um meio de vida no presente (produção) e condição para o futuro (reprodução social). Nos anais da perspectiva humanística, estes conceitos 16

apresentam uma significativa diferenciação a começar pela noção de espaço, visto como qualquer parte da superfície terrestre. Assim, o espaço seria amplo, desconhecido, temido ou rejeitado (MELLO, 1990). O lugar, ao contrário, seria aconchegante, seguro, conhecido e cheio de significados. Recortado emocionalmente emerge das experiências, ao longo da vida, dos indivíduos e de suas práticas cotidianas como ir ao trabalho, às compras ou à escola, assumindo assim uma conotação de lugar vivido, muito íntimo e particular (TUAN, 1983; 1998). Em uma metrópole como o Rio de Janeiro, complexa e fragmentada, a criatividade humana facilmente constrói espaços míticos, fantásticos ou temidos como as favelas, e assim as pessoas se conscientizam e introjetam tais significados. Estes lugares míticos podem florescer a partir do conhecimento e da experiência ou como a dimensão espacial de uma visão de mundo (TUAN, 1983). Como será o cotidiano em uma favela? De acordo com a elite e setores da classe média distantes deste vigoroso universo vivido, trata-se de um mundo extremamente difícil, perigoso, insalubre e sem perspectiva, nos últimos tempos, em meio à onda avassaladora do narcotráfico. Para outros, a favela diz respeito a um cotidiano marcado por felizes encontros e pelo estabelecimento de laços de sociabilidade. Como vivem as pessoas que lá habitam? A fantasia humana transita entre campos opostos de valores com muita facilidade. As favelas, embora incorporadas ao cenário urbano carioca, sempre representaram espaços indesejáveis para uma parte da população do “asfalto” ou da “cidade formal”, sendo esta última também um grande espaço para a população dos morros, ou ainda, para estes, lugar de trabalho, da proximidade, dos cruzamentos e das oportunidades. A passagem de espaço para lugar ou vice-versa pode acontecer por motivos de dor, alegria, atração ou vergonha em intervalos temporais muito variados ou também por laços de sociabilidade (TUAN, 1983; 1998). Nas palavras de Mello: Espaços se tornam lugares em razão do contato com outras pessoas e em trocas afetivas, econômicas etc. Nas áreas urbanas diversas pessoas preferem a proximidade com a vizinhança, habitando em moradias acanhadas, juntos dos centros de bens e serviços. Em oposição, os detratores destes lugares costumam pejorativamente chamar os edifícios geminados de “pombais” (MELLO, 1990, p. 49).

Esta dissertação tentará aplicar o mesmo raciocínio com relação à favela da Mangueira, embora os processos envolvidos sejam bastante diferentes. Por exemplo, a “escolha” da elevação se fez pelos seus moradores a partir de diversos 17

motivos, que serão discutidos mais à frente. Mas, à medida que seus moradores constroem laços de permanência e sociabilidade no morro, este ponto da cidade pode se tornar um lugar ou mesmo um símbolo para os seus residentes e freqüentadores, bem como para quem adere e está, de algum modo, entrelaçado com este mundo vivido. No transcurso do tempo, a Mangueira cresceu em simbologia por conta da ressonância de sua música, dos apoteóticos desfiles de sua agremiação carnavalesca, no chamado “maior espetáculo da Terra”, na aderência e comunhão com sua gente e sua reconhecida cultura. Por último, a transformação de espaços em lugares pode ocorrer não apenas pela intermediação do mundo vivido, mas também de maneira concebida. Desta forma, relatos de viagens, imagens, descrições de terceiros, músicas, fotos e, principalmente, a literatura são importantes instrumentos metodológicos na análise das geografias dos lugares.

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2. APOTEÓTICO ENCANTO DA MANGUEIRA DE TODOS NÓS

Ao se debruçar na análise e interpretação dos mais variados e complexos fenômenos espaciais, a geografia tem incorporado instrumentos que possibilitam o registro e o entendimento dos mesmos. Tradicionalmente, a utilização de mapas cartográficos tem preenchido de tal forma esta lacuna que, entre leigos, é comum associar-se o processo de elaboração e produção de mapas a uma atribuição do profissional geógrafo. Atualmente, novas técnicas de representação espacial como o geoprocessamento vem aumentando a capacidade de esquadrinhamento dos lugares e dos contrastes espaciais, graças a diversas tecnologias e programas computacionais de tratamento e manipulação de dados geográficos, como o sensoriamento remoto, a digitalização de dados, a automação de tarefas cartográficas, o GPS e o SIG (Sistemas de Informações Geográficas). Igualmente moderna e inovadora, do ponto de vista metodológico, é a incorporação da literatura e da música popular pela geografia humanística na reflexão geográfica. Pouco explorada pelos geógrafos, a literatura tem sido extremamente pródiga e rica de detalhes ao mostrar os diferentes modos de vida e lugares. Nas palavras de Mello: os geógrafos podem aprender com os escritores, poetas e compositores. Cabe, então, aos geógrafos analisarem esse material, já pronto, um meio eficaz de investigação, a respeito dos lugares, tradições religiosas, motivações migratórias e contrastes espaciais. (MELLO, 1991, p. 57)

Segundo o geógrafo Douglas C. D. Pocock (1981), desde o início do século vinte a Geografia, embora de maneira rarefeita, vem recorrendo à literatura para empreender análises espaciais. Mas, foi somente a partir da segunda metade do referido século, na Europa e na América do Norte, que surgem as primeiras iniciativas formais de incorporação da literatura em estudos geográficos. Entre estes empreendimentos destacam-se: os trabalhos regionais apoiados em literatura e apresentados na União Geográfica Internacional em 1972, as discussões sobre a paisagem na literatura, empreendida no Congresso de Geógrafos Americanos em 1974 e a conferência sobre a perspectiva da literatura na geografia ao longo do Encontro de Geógrafos Ingleses em 1979. Ao longo dos últimos anos, o número de geógrafos brasileiros interessados no estudo das representações espaciais em 19

expressões culturais como a literatura e música é crescente. São ilustrativos deste interesse os debates travados em simpósios, como o Simpósio Internacional sobre Espaço e Cultura, coordenados pelos geógrafos Roberto Lobato Corrêa e Zeny Rosendahl, nos anos de 1998, 2000 e 2002, encontros e congressos, como a duas últimas edições do Encontro Nacional de Geógrafos, promovidos pela AGB (Associação dos Geógrafos Brasileiros), nos anos de 2008 e 2010, além de testes e numerosos artigos publicados por diversas instituições no país. Nas ponderações de Kong (2009), a relativa indiferença dos geógrafos com relação à incorporação da musica popular na agenda de pesquisas se deve a uma longa tradição da valorização da cultura de elite dentro da disciplina e o fato das questões geográficas terem permanecido visualmente orientadas. Entretanto, “essa hegemonia da cultura de elite foi recentemente contestada, uma resposta ao fato de que a própria condição de comum da cultura popular disfarça sua importância como as fontes propulsoras da consciência popular” (KONG, 2009, p.131). Mesmo assim, esta área de investigação, prossegue a autora, ainda não foi devidamente explorada e os estudos existentes estão distantes das recentes questões teóricas e metodológicas que revigoraram a Geografia Social e Cultural nos últimos anos. Ainda de acordo com Kong, o fato de a música popular ter grande penetração na sociedade, constituir-se em fonte primária para se compreender o caráter e a identidade dos lugares e meio para as pessoas comunicarem suas experiências ambientais, tanto cotidianas como as fora do comum, e a possibilidade de enriquecimento das noções de espaço e lugar, segundo autores como Tuan e Relph, abrem uma série de perspectivas para a investigação geográfica. No Brasil, mesmo com o número crescente de trabalhos, a utilização da literatura e da música popular na agenda de pesquisas geográficas é ainda tímida, mesmo tendo um vasto material de registros e composições. Na literatura brasileira, são vários os autores cujas obras possuem enorme potencial para a Geografia, como Lima Barreto e Machado de Assis para o Rio de Janeiro, Euclides da Cunha para o sertão nordestino e Érico Verríssimo para a Campanha Gaúcha, entre outros. Dito isso, vale sublinhar, a literatura para Mello (1991, p. 58): Pode ser uma fonte para os geógrafos, já que evoca a alma dos lugares, capta e descreve o desempenho dos seres humanos, a fixação aos lugares, o cotidiano, o transcendental, o exílio, as viagens festivas, a nostalgia, enfim, uma ampla gama de motivos, privações e humores e emoções. Nos livros estão assentadas diversas metáforas acerca das paisagens e 20

experiências espaciais, objeto de estudo dos geógrafos, como Tuan e Buttimer já manifestaram reiteradas vezes.

Cabe destacar uma ressalva quanto à utilização de obras literárias em trabalhos geográficos. Por ser um produto social que mostra “uma janela sobre o mundo” (MELLO, 1990) através do uso da linguagem escrita, que está em constante transformação e vívida, os geógrafos devem ficar atentos à a aplicabilidade do registro. Em outras palavras, para expressar com profundidade o caráter do lugar, o literato precisa ser um deles, vivenciar o ambiente, não bastando a observação de um estranho. A partir deste ponto de vista serão utilizadas letras de sambas compostos por moradores da favela para a identificação do lugar Mangueira e a admiração nutrida por “outsides” da mesma. A escolha e a utilização de letras de samba na dissertação em questão reside igualmente no fato da literatura musicada ter possivelmente, uma grande vantagem sobre a literatura dos livros, “uma vez que assomam na música popular, compositores de diferentes estratos de renda e níveis educacionais” (MELLO, 1991, p.59).

2.1. Os lugares de residência, trabalho, lazer e das ligações “físicas/afetivas”

A palavra lugar possui uma grande variedade de sinônimos no senso comum e tradicionalmente na geografia esteve associada a noção de localização. Entretanto, muitos geógrafos na atualidade passaram a explorar outras dimensões dos lugares, em especial os laços que os unem aos homens, levando então a uma (re)teorização deste conceito. Esta (re)teorização da noção de lugar abre uma série de perspectivas,entre elas o uso de composições musicais como meio de entendimento das identidades, valores e significados que os homens carregam e projetam nos lugares em que habitam, ou seja, uma “janela” para compreender a “simbiose pessoa-lugar” (CARNEY, 2007, p. 127). Desta forma, os lugares representados em canções podem ser afamados, difamados, sacralizados, eternizados ou mitificados pela música, assim como nossas primeiras experiências com a música podem estar relacionadas a certos lugares do bairro, como a nossa casa, a esquina onde encontramos nossos amigos, a escola, igreja, centros 21

comunitários e a agremiação carnavalesca, ou seja, recortes espaciais e sentimentais onde são experienciados e internalizadas as ligações físicas / afetivas dos homens com o seu entorno.

2.1.1. Lugar vivido de moradia

Segundo Mello (1991, p.62): O bairro, no qual se habita, não é conhecido em sua totalidade. Todavia, os laços de afinidade são muito expressivos nestes centros de significância, onde não há tabuletas indicando a sua designação. Mas a experiência repetida dos homens, transformada em fraternidade, identifica ou traça os limites de seu território.

Em suma, “o bairro é o lugar vivido por excelência, percorrido com segurança, onde muitos se conhecem e portanto se familiarizam” (MELLO, 1991, p.62). É importante destacar que ao longo dos seus mais de cem anos no espaço urbano carioca, a denominação bairro para as favelas cariocas foi contestada por parte da sociedade e pelo poder público, pois as favelas carregavam (e ainda há quem comungue com tal pensamento) uma série de representações estigmatizadas, que foram se sucedendo no bojo das mudanças de rumos da política nacional (democracia e ditadura). Entre algumas representações temos: “instalação provisória”, “área insalubre”, “moradia de pessoas sem alma e preguiçosas”, entre outras, representações que contribuíram, no campo ideológico, para a remoção de algumas comunidades, como a favela do Pinto e da Catacumba, localizadas em áreas nobres da cidade. Entretanto, ao contrário das visões oficiais, os compositores mangueirenses narram em muitas de suas composições um dia-a-dia de solidariedade, alegria, congraçamento, identidade, experiências passadas e presentes, dramas, enfim, qualidades de seu lugar vivido, “imprescindíveis para o desenrolar de suas atividades cotidianas” (MELLO, 1991, p.61). Consideremos, pois, alguns versos e canções ricos sobre a alma mangueirense.

É quente que nem pimenta Amarga que nem jiló Mulatinha faceira 22

Vem morar em Mangueira Que aqui é melhor Mulatinha faceira Vem morar em Mangueira Que aqui é melhor. (Que nem pimenta – Cartola)

Nascido na rua Ferreira Vianna, no Catete, na cidade do Rio de Janeiro em 1908 , Cartola era mais um de oito filhos do casal Sebastião e Aída. Durante a infância morou em bairros da zona sul carioca, graças a seu avó, Luís Cipriano Gomes, então cozinheiro do Presidente Afonso Penna. Mais tarde, ainda na infância, mudou-se com a família para o bairro das Laranjeiras, onde entrou em contato com os ranchos União da Aliança e Arrepiados. Em 1919, com a morte de seu avó, foi morar no Morro da Mangueira, aos 11 anos de idade. Fez apenas o curso primário. Na adolescência trabalhou numa tipografia e também como pedreiro. Vem daí o apelido com que se tornaria reconhecido como um dos grandes nomes da música popular brasileira: enquanto trabalhava nas obras de construção, para que o cimento não lhe caísse sobre o cabelo, resolveu passar a usar um chapéu-de-côco que os colegas diziam parecer mais uma cartolinha. Assim, começou a ser chamado de „Cartola‟ (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Uma das maiores expressões da música popular brasileira em todos os tempos, Cartola morou no Morro de Mangueira grande parte de sua vida. Após a morte de sua primeira mulher, o compositor deixou o morro, afastando-se do mundo do samba, (1949 a 1956) indo morar em Nilópolis, município da baixada fluminense e na favela da Manilha, no Cajú. No início dos anos 1960, redescoberto por Sérgio Porto e Jaguar, Cartola volta a viver no morro com Eusébia Silva do Nascimento, a Dona Zica. Em 1978, transferiu-se novamente da Mangueira para uma casa em Jacarepaguá, mas sempre voltava para visitar os amigos no morro onde crescera e se tornara famoso. Em 1979, descobriu que estava com câncer, doença da qual viria a morrer no ano seguinte, aos 72 anos de idade (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001- 2010). As histórias da Estação Primeira de Mangueira, da qual foi um dos fundadores, e de Cartola se confundem. Reconhecidamente detentor de grande talento musical, suas composições contribuíram não só para elevar a referida agremiação carnavalesca ao status de símbolo carioca (e o morro ao qual está diretamente relacionada), mas também para a evolução da música popular brasileira. Nas palavras do museólogo e pesquisador Ricardo Cravo Albin, “Cartola 23

de Mangueira é o verdadeiro príncipe do samba urbano carioca”. Além de compor diversos sambas, dos quais alguns são reproduzidos nesta dissertação, Cartola também escrevia poesias. Muitas de suas canções, entretanto, não chegaram a ser gravadas por ele ou por outros intérpretes, sendo desta forma consideradas inéditas, o que dificulta com exatidão a determinação de suas datas, como a música “Que nem pimenta”, cuja letra foi retirada de uma biografia sua (BARBOZA; FILHO, 2003). Desde o início do século XX, o morro de Mangueira (antes denominado de Telégrafos pelo fato desta elevação ser o ponto mais alto e próximo ao Palácio da Quinta da Boa Vista, e utilizado para a instalação da rede do sistema telegráfico implantado pela família real no Brasil) tornou-se o destino para levas de pessoas de diferentes origens sociais. Teria surgido em 1900, ligado a um conjunto de operários que trabalhavam na Cerâmica Brasileira (LESSA, 2000, p.307). Seus primeiros barracos, construídos ilegalmente por alguns imigrantes portugueses inovadores, tiveram importante papel no loteamento “oficioso” da colina nesta primeira fase, na parte da encosta voltada para a Quinta da Boa Vista. Alguns anos mais tarde, a encosta receberia uma nova leva de moradores, sendo estes militares retirados durante a administração Serzedelo Corrêa, devido às obras de remodelação da antiga Quinta da Boa Vista, durante o ano de 1908, tendo a construção de alguns barracos, como o do Cabo Marcelino, feita com o próprio material da demolição das antigas casas (CRUZ; GUIMARÃES, 1941). Junto com o Cabo Marcelino, o Morro dos Telégrafos ou da Mangueira, foi também a solução de moradia para cerca de mais doze famílias de praças do Regimento de Cavalaria, na época comandado belo “brioso” Joaquim Inácio, tendo a maioria destas habitações se localizado próxima a Avenida Visconde de Niterói. Alguns anos depois, durante o período da Primeira Guerra Mundial, a área do morro foi considerada área de Segurança Nacional, em decorrência de sua posição em relação à Baía de Guanabara e por ser concebida como ponto estratégico de defesa. Após a guerra, o Exército permitiu que muitos soldados que serviam em quartéis próximos e que moravam distantes de suas casernas construíssem no morro suas residências. Além destes chegariam também sambistas, proletários e pequenos comerciantes, oriundos de outras partes da cidade (Favelas do Esqueleto e Santo Antônio, por exemplo) e de outras porções espaciais do país (como Minas Gerais e a Região Nordeste). Os primeiros passos da criação da favela da Mangueira já chamavam a atenção de alguns órgãos da Prefeitura do Distrito Federal, entre eles a Diretoria 24

Geral de Polícia Administrativa, Archivo e Estatística, que através do ofício nº. 800, de abril de 1910, encaminhado ao Prefeito comunicava: “a construção (no Morro da Mangueira) de barracões diversos sem a devida licença, recomendo-vos de ordem do Sr. Prefeito que, a respeito informeis com urgência”. (ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1910). Ao que tudo indica, a remoção dos barrocões não foi efetuada pela prefeitura, pois, além da reconhecida condição de seus moradores, “gente que se diz balda de meios para pagar os aluguéis da casa”, a encosta se encontrava sob a jurisdição do Exército, como bem mostra a resposta do Gabinete do Prefeito ao ofício encaminhado pelo Diretor Geral de Polícia Administrativa, Archivo e Estatística, Francisco M. Amorim: respondendo ao ofício de n.º 800 (da Diretoria Geral de Polícia Administrativa, Archivo e Estatística) informa que os barracões pertencem a soldados do 13º Regimento de Cavalaria e cujas construções o prefeito pessoalmente deu consentimento independente de licença (ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1910).

Tendo o início de sua ocupação diretamente relacionada à presença do Exército nesta área e alheia aos trâmites burocráticos, a população do Morro da Mangueira aos poucos se adensava, bem próxima das estações da Mangueira e São Francisco Xavier, onde: “(são encontrados) casebres cobertos de zinco, cafuas de taboas de caixões velhos, com cobertura de sapé, que nada invejam aos que nos Morros da Favela e de Santo Antônio se encontram” (ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1910). Por outro lado, esta diversidade de tipos contribuiu para a criação de um rico mundo vivido, experienciado e compartilhado nos becos, vielas (notadamente a Travessa Saião Lobato, ou “Buraco Quente”, local de fundação da Estação Primeira de Mangueira), botecos, bares, as casas dos compadres e comadres, entre outros. Em suma, laços de afinidade que dão cores, formas e principalmente som ao cotidiano do lugar Mangueira cantado em verso e prosa por seus tradicionais compositores, muitos deles antigos moradores e frequentadores do morro. Na canção em questão, Cartola, que para Mangueira se transferiu ainda criança, tornou- se profundo conhecedor do morro e de sua gente, ao frequentar estes bares e biroscas, as casas de seus compadres, percorrendo seus lugares coletivos e participando ativamente da vida cultural do morro. Em outras palavras, o mundo vivido mangueirense, interiorizado no compositor ao longo dos anos em que ali 25

viveu, o leva a convidar a “... mulatinha faceira ...” a também compartilhar este rico universo, pois como a canção afirma “vem morar em Mangueira/ que aqui é melhor”. Neste ponto, cabe recorrer a Mello (1991, p. 67) quando este nos aponta um caminho de compreensão da atitude do compositor no convite à “... mulatinha faceira ...” ao afirmar que “o mundo da experiência é formado pela interiorização e compreensão dos objetos, pessoas e eventos”. Como já discutido anteriormente, a visão da “cidade formal” sobre a vida nas favelas sempre foi pontuada por uma série de imagens negativas e preconceituosas. Desta forma, para muitas pessoas desta “cidade formal” um convite como o proposto pelo autor em questão pareceria descabido. Entretanto, como ainda nos mostra Mello (1991, p. 45) “o sentido e a riqueza do lugar está na experiência vivida, sendo as definições dos lugares modeladas pela cultura”.

Eu fui a um samba lá no morro da Mangueira Uma cabrocha me falou de tal maneira Não vai fazer como fez o Claudionor Para sustentar família foi bancar o estivador Ó cabrocha faladeira Que tens tu com a minha vida? Vai procurar um trabalho E corta esta língua comprida Não tem água na Mangueira É pau pra virar É duro subir ladeira Para em seco namorar (Morro de Mangueira – Manuel Dias, 1926)

O samba “Morro de Mangueira”, foi gravado na ocasião de sua composição, em 1926 pela Orquestra American Jazz Silvio de Souza e, posteriormente, regravado pelo cantor Pedro Celestino, irmão de Vicente Celestino (Fernandes, 2001). O compositor Manuel Dias, ao escrever “Morro de Mangueira”, mostra sensibilidade e um olhar atento ao registrar nos versos da canção importantes dimensões do lugar vivido mangueirense: a precária infra-estrutura física da comunidade que então se consolidava é frisada nos versos “...não tem água na Mangueira/ é pau pra virar/é duro subir ladeira...” embaraçando a vida pessoal de seus moradores e frequentadores “...para em seco namorar...”, o conteúdo social de alguns de seus habitantes “...não vai fazer como fez o Claudionor/ para sustentar família foi bancar o estivador...” e o reduto de sambistas que desde este época já 26

era Mangueira, principal inspiração da canção “...eu fui a um samba lá no morro da Mangueira...”. A favela da Mangueira, como qualquer assentamento irregular, apresenta um meio ambiente físico desordenado, do ponto de vista oficial e jurídico, e para a maioria da classe média carioca, que expõe ainda hoje uma diferenciação expressiva com o “asfalto”. Mas há uma vida pulsante neste cotidiano vivido com a valorização dos laços de amizade, das convergências e divergências religiosas, a criatividade inusitada e oficialmente combatida, reprimida e condenada, como o “gato” (ligações clandestinas, para o Poder Público, visando o abastecimento de água e luz), bem como a “cat-net”, ou seja, a TV à cabo veiculada no interior da comunidade. Afora a colaboração em mutirões para a construção ou ampliação das casas, o que Roberto Lobato Corrêa em sua obra, “O Espaço Urbano”, denomina sobretrabalho. Sem esquecer também do comércio informal pulsante como biroscas, restaurantes, creches, explicadoras, coiffers, armarinhos, estofadores, mecânicas, mercearias, padarias, estabelecimentos para a venda de materiais de construção, lan houses, videolocadoras e até no plano mais específico da cultura, adaptação de concursos de misses com as chamadas “Garotas da Laje”. Todo este universo contribui sobejamente para a identidade do lugar.

De palácio encantado é que chamo Meu barracão de madeira E essa vida que eu tanto amo Dedico a minha companheira Sempre em seus olhos tristonhos A me esperar como em sonhos Eu encontro em Mangueira O meu palácio é de zinco coberto Quando não chove estrelas sem fim Vejo nos buracos no teto aberto Faz me parecer que o céu é um jardim E pelos olhos da minha querida Creio que a vida talhou-a pra mim Eu sou feliz por viver onde vivo Pois em Mangueira a vida é assim. (Palácio Encantado - Jurandir e Irson Pinto, 1948)

O compositor e cantor Jurandir Pereira da Silva, ou Jurandir da Mangueira (1939 - 2007), nasceu em Campos dos Goitacazes, no estado do Rio de Janeiro, e morou na favela do Esqueleto (onde parte de seus moradores, em razão de sua remoção pelo poder público, transferiram-se para o Morro da Mangueira) e em Vila Kenedy, desde a fundação do bairro, em 1969. Integrou a Ala dos Compositores da 27

Mangueira e a Velha-Guarda da escola (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Como compositor, assinou composições tendo como parceiros, Comprido, Darci da Mangueira e Hélio Turco. Uma dúzia de vezes a Estação Primeira foi para a avenida com composições de Jurandir da Mangueira, como “Yes, nós temos Braguinha” (1984) e a obra prima, “Cem anos de liberdade: realidade ou ilusão” (1988). Um dos conceitos mais trabalhados no âmbito da perspectiva humanística é o conceito de lugar. Segundo Tuan, o lugar pode emergir em diversas escalas, desde a nossa casa ou bairro, experenciados diretamente, até o nosso país, estimado através de valores simbólicos como a arte, as safras e as vitórias ocorridas em diversos eventos como o esporte. Em diversas escalas: Como o lar, o lugar ocupa uma posição central na obra de Tuan. Trata-se, seguindo os princípios fenomenológicos referentes à noção de mundo vivido, de um centro pleno de valores e aspectos familiares indissociáveis, assim como de evocações que permitem à pessoa sentir-se em casa (MELLO, 2001, p. 45).

Moradias da comunidade são entendidos “como um laço que une os homens a seu „nicho‟ de proteção” (MELLO, 2001, p. 45). Mais do que isso,os barracos (de outrora) são transformadas por seus moradores em “palácios”. Neste ritmo de pertencimento e interiorização, o “...palácio é de zinco coberto...” ou seja, “castelos”, ou “mansões” que na paisagem local imprimem homogeneidade e “disciplina” estética ao morro.

Aquele mundo de zinco, que é Mangueira Desperta com o apito do trem Uma cabrocha, uma estrela Um barracão de madeira Qualquer malandro em Mangueira tem Mangueira, fica pertinho do céu Mangueira, vai assistir o meu fim Mas deixo o nome na história O samba foi minha glória E sei que muita cabrocha Vai chorar por mim. (Mundo de Zinco - Nássara e Wilson Batista, 1952)

Antônio Gabriel Nássara (1910 -1996), nasceu no bairro carioca de São Cristóvão, onde viveu até os 12 anos. Passou o restante de sua infância e adolescência em Vila Isabel, em meio ao clima musical e boêmio das serestas e do 28

carnaval de rua. Filho do imigrante libanês Gabriel Jorge Nássara, que chegou ao Brasil em 1890, e de Uahyba, também libanesa, que veio para o Brasil ainda menina, o jovem Nássara desde muito cedo demonstrou seus múltiplos talentos: o desenho, a caricatura e a música (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001- 2010).

O compositor e cantor Wilson Batista (1913 – 1968), nasceu em Campos, município do estado do Rio de Janeiro. Oriundo de uma família humilde, o gosto pela música veio da convivência com o tio, Ovídio Batista, que tocava vários instrumentos e era maestro da banda "Lira de Apolo", em Campos. Em 1929, mudou-se sozinho para o Rio de Janeiro tentar ganhar a vida como compositor indo morar por algum tempo com um tio que era gari. Seu sonho era vencer como compositor de sambas. Nos 1930, na Praça Tiradentes, conheceu muitos personagens da música popular daquele tempo: Roberto Martins, Nássara, Ataulfo Alves, Antônio Almeida, Geraldo Pereira e tantos outros. Exaltou a malandragem da Lapa e foi submetido aos ditames do Estado Novo que proibia a saudação à boemia, quando compôs “O Bonde São Januário”, ao lado de Ataulpho Alves louvando o trabalho e os operários (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010; MELLO, 1991). Embora os compositores de “Mundo de Zinco” não fossem moradores do morro de Mangueira, a afeição, a identidade e bem querência com os lugares pode ultrapassar os seus limites “físicos”. Desta forma, a canção em tela traduz com riqueza aspectos significativos do mundo vivido da comunidade, como sua gente “... uma cabrocha, uma estrela ...”, seus malandros “... um barracão de madeira/ Qualquer malandro em Mangueira tem ...” e também alguns de seus geossímbolos (Bonnemaison, 2002) incorporados no lugar, como a estação ferroviária da Estrada de Ferro D. Pedro II, mais tarde Central do Brasil, importante eixo de ocupação dos subúrbios cariocas, que “... desperta com o apito do trem ...” seus moradores, cada vez mais numerosos, naquele “... mundo de zinco, que é Mangueira ...”. Atualmente, o “mundo de zinco” da Mangueira é apenas uma memória guardada em seus antigos moradores e nas composições de vários sambistas. As antigas moradias, com o passar do tempo, cederam às casas de alvenaria de um ou dois pavimentos, sendo encontrado, em alguns casos, edificações de até quatro pavimentos (os chamados puxadinhos), próxima à Avenida Visconde de Niterói, na parte mais baixa e antiga da favela. 29

Com a popularização e o barateamento de materiais de construção em meados da década de 70, várias benfeitorias foram realizadas nas habitações construídas pelos antigos moradores da favela, mesmo sem possuir a posse legal dos mesmos, alterando de maneira significativa a forma e a aparência do morro, no passado, dominado por madeira e zinco, foco de atenção, harmonias dinâmicas e versos profícuos de compositores de todos os matizes, classes sociais e valores, como os dos autores em tela. Mas, seja no passado ou hodiernamente um lugar de grande expressão na urbe carioca e no coração de sua gente ou daqueles que se solidarizam com este mundo vivido pleno de batuques, apito de trem, o sobe-e- desce constante, as trocas e os significados mais diversos.

Em Mangueira, quando morre Um poeta, todos choram Vivo tranqüilo em Mangueira porque Sei que alguém há de chorar quando eu morrer Mas o pranto em Mangueira é tão diferente É um pranto sem lenço que alegra a gente Hei de ter um alguém pra chorar por mim Através de um pandeiro ou de um tamborim. (Pranto de poeta - Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, 1957)

Nelson Antônio da Silva, ou Nelson do Cavaquinho (1911 – 1986), nasceu no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. O pai, Brás Antônio da Silva, era contramestre da Banda da Polícia Militar e tocava tuba. A mãe, Maria Paula da Silva, foi lavadeira do Convento de Santa Teresa. O tio, também músico, juntamente com o pai e amigos, organizava, aos domingos, rodas de samba em sua casa. Por volta de 1919, a família, fugindo de aluguel, mudou-se para a Rua Silva Manuel, depois para a Rua Joaquim Silva, ambas na Lapa. Em 1931, conheceu Alice Ferreira Neves, casando- se meses depois por imposição do pai da noiva. O casal foi morar no subúrbio de Brás de Pina. O pai de Alice indicou-o para servir na Cavalaria da Polícia Militar. Um das funções de Nelson Cavaquinho em seu novo ofício na corporação era patrulhar o Morro da Mangueira, local onde mais tarde acabou fazendo amizade com os sambistas de então como Zé Com Fome (Zé da Zilda), Carlos Cachaça e Cartola (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Guilherme de Brito Bollhorst (1922 – 2006), viveu toda a sua vida no Rio de Janeiro. Neto de alemães, nasceu em Vila Isabel. Seu pai, Alfredo Nicolau Bollhorst, foi funcionário da Central do Brasil e tocava violão. Sua mãe, Marieta de Brito Bollhorst, tocava piano e sua irmã, como o pai, também tocava violão. Frequentou 30

os pontos de samba existentes na Praça Tiradentes, mas veio a conhecer Nelson Cavaquinho em Ramos, subúrbio do Rio de Janeiro, quando este tocava nos botequins do bairro. Guilherme de Brito voltando do serviço chegava à tardinha, princípio da noite, e encontrava Nelson Cavaquinho tocando e assim passou a ser mais um de seus fãs. Certa vez, arriscou-se a mostrar uma primeira parte de um samba ainda não concluído. O novo amigo interessou-se em colocar uma segunda parte e, assim, nasceu a parceria, que viria a trazer grandes sucessos à dupla (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). No âmbito da corrente humanística, as noções de espaço e lugar são centrais para o entendimento de como os homens experienciam os ambientes em que habitam. Nas práticas cotidianas ambas as noções podem assumir significados iguais. Entretanto, o que começa como espaço indiferenciado pode se transformar em lugar à medida que o conhecemos melhor e atribuímos valor (TUAN, 1983). Conhecer um lugar significa também conhecer sua gente. Em “Pranto de Poeta”, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, ao entrarem em contato com o universo mangueirense por meio de seus compositores e por frequentarem o morro, atestam qualidades inerentes aos lugares de moradia e permanência como a segurança e a estabilidade “...vivo tranquilo em Mangueira...”, qualidades estas construídas também como resultado de relações de solidariedade, respeito e admiração entre seus moradores. Nestas circunstâncias, cantam os autores do samba: “...em Mangueira, quando morre/ um poeta, todos choram...” valores compartilhados pelos próprios compositores com evidenciam os versos “...sei que alguém há de chorar quando eu morrer...” ao vivenciarem este universo.

Tengo-Tengo Santo Antônio, Chalé Minha gente, é muito samba no pé! Ô ô ô, oh meu Senhor Foi Mangueira Estação Primeira Que me batizou. (Mangueira, minha madrinha querida / Tengo-tengo - Zuzuca, 1972)

Adil de Paula, ou Zuzuca do Salgueiro (1936), cantor e compositor, nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, no estado do Espírito Santo. Aos 15 anos, começou a tocar violão, logo após ter se mudado para o Rio de Janeiro, indo morar no bairro da Tijuca. Trabalhou como mecânico após ter servido ao Exército. Nesta época, 31

frequentava as rodas de samba do bairro. Em 1960 ingressou na Ala dos Compositores do G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro. Em 1968, fez parte ao lado de alguns compositores, entre eles, Darcy da Mangueira e Pelado da Mangueira, o grupo Os Cinco Só, com o qual lançou dois discos (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). "Mangueira, minha madrinha querida" ("Tengo-Tengo, Santo Antônio, Chalé"), é uma homenagem do compositor (salgueirense) à Mangueira. Na canção em questão, ao reverenciar a Estação Primeira de Mangueira, “...Ô ô ô, oh meu Senhor/Foi Mangueira/Estação Primeira/Que me batizou...”, Zuzuca do Salgueiro cita algumas localidades que compõem o rico mundo vivido do morro, “...Santo Antônio, Chalé...”. De acordo com Tuan (1983) nossa experiência a respeito dos lugares pode ser direta ou pode ser indireta e conceitual, mediada por símbolos. Dentro desta perspectiva, até mesmo o nosso bairro é uma noção conceitual, visto que frequentamos parcialmente o seu espaço cotidianamente. Assim, para a grande maioria da população da cidade, distante da realidade mangueirense, a palavra “Mangueira” pode simbolizar todo o morro. Entretanto, ao longo de sua história, sua encosta foi o destino final de migrantes das mais variadas origens e perfis, que então fundaram diferentes localidades como Santo Antônio, Chalé, Buraco Quente, Pindura Saia, Candelária, Joaquina, Vacaria e Olaria. Seus nomes guardam uma rica memória de histórias, curiosidades, dramas, alegrias, ritmos e vivências. Muitas destas localidades desempenharam, igualmente, no início da ocupação do morro forte dimensão cultural, evidenciado, por exemplo, pelos blocos fundados por integrantes destas áreas e pelo reconhecido valor artístico de alguns de seus moradores, como Nelson Sargento, “partideiro” da localidade Santo Antônio, por outros sambistas da comunidade como Cartola e Carlos Cachaça. Ao longo dos anos, porém, esta dimensão cultural exercida por estas frações foi desaparecendo, em decorrência da “militância” de Cartola e Carlos Cachaça, que buscavam atrair e centralizar a produção de seus sambistas em prol da recém fundada Estação Primeira de Mangueira. Atualmente, com o grande adensamento populacional e físico de suas encostas, e a consolidação da agremiação carnavalesca no imaginário coletivo local e nacional, os limites destas localidades e suas respectivas toponímias no morro se tornam cada vez mais distantes para a grande maioria das pessoas da cidade formal, pois o morro “passa a ser parcialmente conhecido, estimado por elementos simbólicos” (Mello, 1991) como os sambas dos compositores do G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira, com 32

exceção do autor em questão, que cita suas localidades, becos e vielas com maestria para um “outsider”.

2.2. Lugar, amizade e identidade

2.2.1. Topofilia

Podemos definir topofilia como a afeição das pessoas aos “seus” lugares. O que dá caráter a esta afeição com os lugares é a qualidade das relações entre as pessoas que compartilham este mesmo lugar. Ao longo de sua evolução no cenário urbano carioca, as normas e regras da chamada “cidade formal” não se reproduziam nas favelas, visto que tais localidades eram encardas pelo poder público como “chagas” que deveriam ser removidas da paisagem. Entretanto, devido a ineficiência deste mesmo poder público em propor soluções habitacionais, a “romantização” das favelas a partir da década de 1920 (LESSA, 2000) e os fluxos migratórios crescentes em direção ao Rio de Janeiro, o número de pessoas que passam a ocupar as encostas dos morros cariocas se adensa, contribuindo para a consolidação das favelas no espaço urbano. Nestas comunidades, devido principalmente a precariedade de sua condição e a ausência de presença institucional, se desenvolvem em seus territórios relações sociais baseadas no compadrio, em códigos e normas de convivência que buscam suprir a ausência de cidadania. Neste contexto, na “nação” mangueirense, assume papel central nas relações sociais de seus moradores sua agremiação carnavalesca, fundada em 1928, visto que sua associação de moradores é fundada apenas em 1968. Reduto de grandes poetas e músicos de reconhecida importância cultural e de desfiles exaltados por audiências cariocas, nacionais e estrangeiras, o “Palácio do Samba”, como é conhecida a quadra da escola, torna-se um verdadeiro geossímbolo, contribuindo para a criação de uma forte identidade de seus moradores com o lugar que habitam, em outras palavras, sentimentos topofílicos.

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Todo o tempo que eu viver Só me fascina você Mangueira Guerreei na juventude Fiz por você o que pude Mangueira Continuam nossas lutas Podam-se os galhos, colhem-se as frutas E, outra vez se semeia E no fim desse labor Surge outro compositor Com o mesmo sangue na veia. (E fiz por você o que pude – Cartola)

Na pequena e densa letra de “E fiz por você o que pude”, de autoria de Cartola, o autor expressa toda sua afeição pela agremiação carnavalesca do morro de Mangueira. O arraigamento dos homens aos lugares é um fenômeno universal e “cuja retórica de sentimento pouco se altera através dos anos e pouco difere de uma cultura para a outra” (TUAN, 1983, p.172). Durante muito tempo a religião foi um poderoso instrumento de vínculo entre os homens e seus lugares, e tanto as cidades (por meios de seus templos) quanto no campo, morada dos espíritos da natureza, podiam ser considerados sagrados, contribuindo para a afeição e ligação de seus moradores a estes ambientes. Entretanto, argumenta ainda Tuan (1983, p.175), “mas as pessoas vivem na cidade e desenvolvem laços emocionais de outros tipos”. Em Mangueira, o principal laço emocional de união entre seus moradores e o morro é a devoção ao samba de seus compositores e simpatizantes. Cartola, notório morador do morro e um dos principais personagens de sua vida cultural, confessa sua intensa devoção à “religião” do samba mangueirense “...todo o tempo que eu viver/só me fascina você/Mangueira”. Durante todos estes anos em que viveu em Mangueira, sua vida se confundiu com a própria trajetória do samba no morro “...guerreei na juventude/fiz por você o que pude/Mangueira...” em alusão aos blocos e cordões organizados nas casas dos jongueiros, festeiros e mães-de-santo, existentes no morro anteriores a fundação da agremiação carnavalesca, como o bloco dos Arengueiros, do qual Cartola fazia parte em sua juventude, e cuja principal diversão era sair nos dias de carnaval para, segundo suas palavras, “... brigar, pra ser preso, pra apanhar, pra bater ...” (FERNANDES, 2001, p. 72). Mais tarde, quando da fundação da Estação Primeira de Mangueira, da qual foi um de seus fundadores e principais compositores, os dramas envolvendo a criação e a apresentação de muitos de seus sambas-enredo defendidos pela escola verde e 34

rosa nos carnavais cariocas são poeticamente lembradas pelo autor em questão “...continuam nossas lutas/podam-se os galhos, colhem-se as frutas / E, outra vez se semeia...”, e, mais adiante, reconhece que toda esta trajetória de amor, vivências, lutas, alegrias e tristezas, imortalizada na canção, tem no próprio morro o motivo de sua devoção, inspiração e continuidade, como pontua “...e no fim desse labor/surge outro compositor/com o mesmo sangue na veia”.

Fala Mangueira, fala Mostra a força da sua tradição Com licença da Portela Favela da Mangueira mora no meu coração Suas cabrochas gingando Seu tamborim repicando É monumental Estou falando de Mangueira A velha Mangueira tradicional. (Fala mangueira - Mirabeau e Milton de Oliveira, 1956)

Mirabeau Pinheiro (1924 – 1991), natural de Alegre, Espírito Santo, mudou-se com a família ainda menino para a cidade de Niterói, no Rio de Janeiro. Teve um tumultuado relacionamento amoroso com a cantora Cármen Costa, que o lançou, gravando cerca de 30 músicas suas e com quem também teve uma filha. Mirabeau foi também autor de marchinhas carnavalescas de grande sucesso, principalmente nos anos 1950, entre eles a marcha "Cachaça", com versos como: "Você pensa que cachaça é água...", em parceria de Lúcio de Castro, Heber Lobato e Marinósio Filho, lançada por Carmen Costa e Colé em 1953 (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). O compositor carioca Milton de Oliveira (1916 – 1986) nasceu e foi criado no bairro de São Cristóvão. Compôs seu primeiro samba, "Já mandei, meu bem", por volta de 1932. Em 1934, conseguiu penetração no meio artístico por intermédio de Murilo Caldas, irmão do cantor e compositor Sílvio Caldas, tendo no mesmo ano sua primeira composição gravada, o samba "És louca", com Djalma Esteves, registrado por Jaime Vogeler na Odeon. Foi uma figura controvertida no meio musical nas décadas de 1940 e 1950. Conhecido como criador de "lobby" para ter suas músicas tocadas no rádio e lançadas pelas gravadoras tinha grande “habilidade” em fazer uma música sua tocar em emissoras de rádio e em bailes públicos (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). 35

Em “Fala Mangueira”, um dos grandes sucessos da cantora Ângela Maria, os enamorados da Estação Primeira Mirabeau e Milton de Oliveira, influenciados pelos sons “...seu tamborim repicando / é monumental...”, pelo convívio com os compositores mangueirenses “... a velha Mangueira tradicional...” e o contato com suas passistas, declaram o seu amor ao samba emanado pela colina “...com licença da Portela / favela da Mangueira mora no meu coração...”. Embora os compositores não tenham nascidos no morro e passados boa parte de suas vidas em outros bairros ou até mesmo cidades, este tipo de afeição profunda para com os lugares, “embora subconsciente, pode se formar simplesmente com a familiaridade e tranqüilidade, com as recordações de sons, de atividades comunais e prazeres simples acumulados através do tempo” (TUAN, 1983, p. 152). Por isso mesmo, Mirabeau e Milton de Oliveira dão voz à comunidade convocando “... mostra a força da tua tradição...”.

Alvorada lá no morro que beleza Ninguém chora, não há tristeza Ninguém sente dissabor O sol colorido é tão lindo, é tão lindo E a natureza sorrindo Tingindo, tingindo a alvorada Quando chega iluminado Meus caminhos tão sem vida.(...) (Alvorada - Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, 1976)

A dupla de patriarcas do samba Cartola (Angenor de Oliveira) e Carlos Cachaça (Carlos Moreira de Souza) foi fundamental para a formação das escolas e fixação dos padrões rítmicos do próprio samba. Grandes amigos, casados com duas irmãs, estes pioneiros, além de contribuírem para que o samba se livrasse da herança do maxixe, são responsáveis pela incorporação ao gênero de um texto que não existia nas letras primitivas de seus contemporâneos. Isso, para não falar da importância dos dois na formação e desenvolvimento da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, à qual seus nomes e suas músicas estão intrinsecamente ligados. “A história de “Alvorada” começou numa madrugada, quando Cartola e Cachaça, descendo o morro do Pendura a Saia, sentiram-se impressionados com os primeiros raios de sol que iluminavam o cenário, contrastando a beleza da cena com o sofrimento dos moradores do lugar. Fizeram, então, a primeira parte do samba: „Alvorada lá no morro que beleza / ninguém chora, não há tristeza / ninguém sente 36

dissabor / o sol colorindo é tão lindo, é tão lindo / e a natureza sorrindo / tingindo, tingindo a alvorada‟. A segunda parte surgiu na casa de Hermínio Bello de Carvalho, onde tinham ido para completar a composição. Hermínio fez a letra, enquanto Cartola compunha a melodia na hora. Em suas primeiras gravações, com Odete Amaral e Clara Nunes, o samba saiu com o título de „Alvorada no Morro‟. Depois, inclusive nas gravações de Cartola e Carlos Cachaça, o nome foi simplificado para „Alvorada‟. Detalhe inusitado: essas duas figuras fariam os seus primeiros elepês já com idade avançada. Cartola aos 65 anos e Cachaça aos 74, sendo ambos os discos realizados por iniciativa de um mesmo produtor, J. C. Botezeli, o Pelão (SEVERIANO; HOMEM DE MELLO, 1998). Hermínio Bello de Carvalho é, igualmente, honra e glória da música popular brasileira. Diretor de shows, produtor, escritor, compositor, contribuiu sobejamente para o retorno de Cartola ao cenário artístico nacional. Os morros cariocas passaram a representar para parte da população da cidade um espaço “promíscuo”, “antro de malandros” e “foco de doenças” que vigora desde o início do século XX. Esta visão estereotipada era reforçada pela produção de bairros na zona sul da cidade, ocupado pela população de alta renda, que exploravam amenidades climáticas, paisagísticas ou benfeitorias como luz e esgotamento sanitário. Entretanto, a canção acima, por um lado, mostra uma visão da Mangueira, que destoa completamente dos valores atribuídos à favela pela “cidade formal”. Isto se deve segundo Mello (1990) ao “ato solene de louvação dos lugares” prática comum entre diferentes povos, e (por que não?), entre diferentes segmentos de uma mesma sociedade como a capitalista, materializada na complexidade do espaço urbano, e a adesão e bem querência ao lugar vivido. E, por outro lado, mostra a genialidade de compositores como Cartola e Carlos Cachaça, também moradores ilustres de Mangueira. Na realidade: Alguns lugares são por vezes mais afamados do que outros, graças ao empenho e poder de exaltação de seus nativos e freqüentadores, que não medem esforços em exaltar, até mesmo de maneira exagerada, os aspectos de seu mundo vivido (MELLO,1991 p. 214).

É o caso de Hermínio Bello de Carvalho, freqüentador da Mangueira e entusiasta produtor musical a respeito da cultura mangueirense. O morro, suntuoso 37

personagem, e a luminosidade da alvorada são veiculados pelos moradores e freqüentadores como um universo de raríssima beleza e esplendor.

Verde como céu azul a esperança Branco como a cor da Paz ao se encontrar Rubro como o rosto fica junto a rosa mais querida É negra toda tristeza se há despedida na Avenida É negra toda tristeza desta vida É branco o sorriso das crianças São verdes, os campos, as matas E o corpo das mulatas quando vestem Verde e rosa, é Mangueira É verde o mar que me banha a vida inteira Verde que te quero Rosa (é a Mangueira) Rosa que te quero Verde (é a Mangueira). (Verde que te quero rosa - Cartola e Dalmo Castelo, 1977)

O cantor e compositor Dalmo Castelo (1943) nascido no bairro carioca do Rio Comprido e herdou a inclinação musical de sua mãe, bandolinista, que recebia em sua casa artistas como Jacob do Bandolim e Lúcio Alves. Começou tocando surdo e tarol e, mais tarde, aos dez anos, violão. Participou das rodas de samba promovidas por Tereza Aragão no Teatro Opinião, ao lado de Nelson Cavaquinho, Padeirinho, Paulinho da Viola e Baianinho e em 1973, numa feijoada preparada por Dona Zica, conheceu Cartola. Nesta mesma tarde, nasceu a primeira parceria da dupla, "Corra e olha o céu", gravada, mais tarde, por Leny Andrade, Os Cariocas, Cláudia Telles, Beth Carvalho, Vânia Bastos, Cartola e o próprio Dalmo Castello em seu primeiro LP. A parceria “etílica" com Cartola foi o primeiro elo de aproximação entre os dois. Passaram então a se encontrar frequentemente e a compor antológicas composições como "Disfarça e chora", "Motivação" e "Verde que te quero Rosa", que anos mais tarde seria usada como tema para o enredo da Mangueira (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Na canção em questão, Cartola e Dalmo Castelo recorrem a uma “palheta poética” para pintar uma aquarela de emoções, desejos e querências em verde e rosa, cores da agremiação carnavalesca do morro de Mangueira, pela qual ambos nutrem notória ligação afetiva. Pessoas, lugares, elementos da paisagem ou qualquer outra forma captada pela poesia dos compositores são “pintadas” emocionalmente “...verde como céu azul a esperança/(...)/rubro como o rosto fica junto a rosa mais querida/é negra toda tristeza se há despedida na Avenida/(...)/são verdes, os campos, as matas/e o corpo das mulatas quando vestem Verde e Rosa, é Mangueira/É verde o mar que me banha a vida inteira...” Esta pintura bicolor da 38

mesma forma que fascina, hipnotiza os autores que, como um mantra, glorificam, na canção, as cores que simbolizam e eternizam o lugar de suas paixões “...Verde que te quero Rosa (é a Mangueira)/Rosa que te quero Verde (é a Mangueira)...”.

Minha Mangueira, minha Estação Primeira Estou com você, Mangueira, e você não pode parar Também sou Mangueira e defendo a sua bandeira E todos que são Mangueira tem o seu nome a zelar. (Salve a Mangueira - Quincas do Cavaco e Padeirinho, 1980)

O compositor Joaquim Francisco dos Santos ou Quincas do Cavaco, nasceu no Buraco Quente na Mangueira em 1932. Compôs ainda muito jovem a sua primeira música, "Quem é você que espalha boato", um samba de terreiro. Em seguida, em 1949, foi levado por Jorge Zagaia, Padeirinho e Cartola para a Ala dos Compositores da Mangueira. Em 1999 fazendo parte da velha guarda da escola, gravou o CD "Velha-Guarda da Mangueira e Convidados", no qual constaram duas composições suas "Amélia não passa mais fome", em parceria com Chico Modesto e "Salve a Mangueira", então regravada em parceria com Padeirinho (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Osvaldo Vitalino de Oliveira, ou Padeirinho (1927 – 1987), cantor e compositor, natural do Rio de Janeiro, foi criado no morro da Mangueira. Começou a compor aos 12 anos. Cantava seus sambas pelas biroscas e tendinhas do morro, quando seu cunhado Geraldo da Pedra o levou para apresentar-se na Ala dos Compositores da Mangueira. O apelido "Padeirinho" lhe foi dado por ser filho de padeiro. Tocava vários instrumentos de percussão, entre eles pandeiro e tarol, sendo considerado habilidoso nos improvisos e partido-alto (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). “Salve a Mangueira” foi primeiramente interpretada na voz da cantora Beth Carvalho em 1980, em seu disco "Na fonte" (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Na letra em questão, Quincas do Cavaco e Padeirinho, moradores de diferentes localidades do morro de Mangueira, o primeiro, natural do “Buraco Quente”, tradicional reduto de sambistas, e o segundo, “aluno” da escola de partideiros de Santo Antônio, que tem em Nelson Sargento um de seus mestres, unem seus talentos para declarar a sua afeição e amor a agremiação carnavalesca que simboliza todo o morro “...minha Mangueira, minha Estação Primeira/estou com você, Mangueira, e você não pode parar/ também sou Mangueira e defendo a sua 39

bandeira...”. Mais adiante, os compositores atentam para a intensidade e importância do sentimento para com a “pátria” mangueirense, lembrando que “...todos que são Mangueira tem o seu nome a zelar ...”. Desta forma, os que compartilham do samba da agremiação carnavalesca, como moradores e freqüentadores do morro, são “convidados” a renovar e a intensificar seus laços de identidade com este rico universo.

2.2.2. Relações íntimas com o lugar

Nesta seção buscaremos explorar os sentimentos e experiências que envolvem os homens em suas relações com o lugar mangueirense. O estabelecimento de laços de empatia, ou sentimentos como amor, familiaridade e solidariedade permitem ao homem estabelecer relações íntimas com o lugar, quando vivido diretamente, ou a se identificar com os lugares próximos, experienciados simbolicamente ou por relatos de amigos, parentes ou conhecidos. Desta forma, espaços antes indiferenciados ou desconhecidos se convertem em lugares, “à medida que adquirem definição e significado” (TUAN, 1983, p.151).

Mangueira onde é que estão os tamborins, ó nêga Viver somente de cartaz não chega Põe as pastoras na avenida Mangueira querida Antigamente havia grande escola Lindos sambas do cartola Um sucesso de Mangueira Mas hoje o silencio é profundo E por nada neste mundo Eu consigo ouvir mangueira! (Onde é Que Estão os Tamborins - Pedro Caetano, 1947)

O compositor Pedro Caetano (1911-1992) nascido em Bananal, interior paulista, veio com a família para o Rio de Janeiro com apenas nove anos. Começou a estudar piano nessa época. Apesar de se consagrar como compositor, sempre exerceu a atividade de comerciante de calçados. Seu samba “É com Esse que eu Vou” foi sucesso carnavalesco nos anos quarenta e foi repaginado, de maneira sofisticada, por Elis Regina, voltando ao hit parade nacional na década de setenta. O título do samba foi inspiração para o título do show dirigido por Ricardo Cravo Albin, 40

na Sala Funarte, em 1983, com Marlene à frente do elenco no palco e contando ainda com o próprio Pedro Caetano e o extinto conjunto Céu da Boca (com integrantes como Verônica Sabino e Paula Morelembaum, entre outros). Figura de destaque da chamada Época de Ouro da MPB. Teve inúmeros parceiros, entre eles Claudionor Cruz, o mais assíduo. Em 1946, teve os sambas "O samba agora vai" e "Onde é que estão os tamborins?" gravados pelo grupo Quatro Ases e Um Coringa (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). O samba "Onde é que estão os tamborins?" foi sucesso no carnaval do ano seguinte tornando-se um clássico e foi returbinado por Célia, na década de setenta, voltando às paradas de sucesso. Segundo o autor, o samba nasceu quando voltava do teatro com a mulher, em época próxima do carnaval e estranhou o silêncio na Mangueira: “Como estávamos perto do carnaval, estranhei o silêncio e comentei: Você não acha que já seria hora de a Mangueira estar fervilhando nos ensaios? Dizendo isto fui fazendo a minha crítica mentalmente e esta foi saindo em ritmo de samba de carnaval. O negócio foi tão espontâneo que quando meti a chave na porta, já estava cantando” (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Segundo Mello: “os lugares são entes queridos merecedores de considerações especiais. As pessoas distinguem o(s) seu(s) mundo(s) vivido (s) com apelidos e tratamentos de tu ou você. Tais envolvimentos que brotam com a experiência, a confiança e a afeição revelam intimidade”. (MELLO, 1991, p.139)

Na letra, Pedro Caetano reclama da apatia e da ausência dos sambas de Cartola, ausente dos carnavais daquela escola na época, dialogando sem desembaraço com o morro, tratado com total intimidade em versos que dizem: "...Mangueira / onde é que estão os tamborins, ó nêga?/viver somente do cartaz não chega / põe as pastoras na Avenida/Mangueira querida!...". Pedro Caetano confere vida à Mangueira a quem chama carinhosamente de “... nega ...”. Mais adiante o autor, saudosista neste “bate-papo” com a colina, resgata a lembrança da vida cultural pulsante por ele vivenciada e tão característica do lugar “...antigamente havia grandes escolas / lindos sambas do Cartola / um sucesso de Mangueira / Mas hoje o silêncio é profundo / e por nada neste mundo / eu consigo ouvir mangueira...”! Isto posto, podemos sublinhar que o autor inspirado em Mangueira a esta localidade e sua simbólica agremiação está atado por laços topofílicos à sua extraordinária cultura. 41

2.3. Sagração, fantasia e memória dos lugares

A sagração do lugar não se refere tão somente ao mundo sagrado ou a uma limitada área pertinente aos deuses, uma vez que o lugar, como um santuário, é respeitado e querido, convertendo-se em lar, consagrado pelo povo. Assim, o Criador, o templo, o lar e o lugar são sinônimos (Mello, 1991, p. 199). Ademais: O mundo da experiência vivida, ornado por concepções diversas e exuberantes, não é apenas veneração, mas outrossim, entre outros elementos, fantasia e reminiscência. As lembranças e o reencontro com os lugares metamorfoseados ou devastados constituem uma das facetas do apreço ao(s) mundo(s) vivido(s) permitindo a outras gerações o acesso à alma dos lugares do passado (Mello, 1991, p. 199).

2.3.1 A utopia mangueirense (etnocentrismo e lugar mítico)

O etnocentrismo é um fenômeno recorrente em diversas sociedades, onde seus indivíduos acreditam que habitam o centro do mundo. “Um povo que acredita que está no centro, reivindica, implicitamente, a inelutável verdade de sua localização” (TUAN, 1983, p.165) desprezando ou dando pouco valor ao que está distante de sua realidade. Já o lugar mítico pode emergir de duas formas: como uma lacuna do conhecimento acerca de uma determinada área ou como dimensão espacial de uma visão de mundo, “a conceituação de valores locais por meio da qual as pessoas realizam suas atividades práticas” (TUAN, 1983, p.97). Em outras palavras, o lugar mítico se remete ao “lugar imaginário, dos sonhos, dos projetos irrealizáveis, da quimera, do inacessível ou idealizado como um eldorado suntuoso” (MELLO, 1991, p.199).

Vista assim, do alto mas parece um céu no chão Sei lá... Em Mangueira a poesia Feito um mar se alastrou E a beleza do lugar Pra se entender Tem que se achar Que a vida não é só isso que se vê É um pouco mais Que os olhos não conseguem perceber 42

E as mãos não ousam tocar E os pés recusam pisar Sei lá, não sei Sei lá, não sei Não sei se toda a beleza De que lhes falo Sai tão somente do meu coração. (Sei Lá Mangueira - Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho, 1968)

O carioca Paulinho da Viola ou Paulo César Batista de Faria (1942), desde criança conviveu com músicos como Pixinguinha e Jacob do Bandolim, que frequentavam sua casa, pois seu pai, Benedito César Ramos de Faria era violonista do conjunto Época de Ouro. Embora seu pai quisesse que o filho seguisse outra carreira que não a de músico, começou a estudar violão sozinho, aperfeiçoando-se, mais tarde, com o amigo Zé Maria. Em 1963, seu primo Oscar Bigode, diretor de bateria da Portela, convidou-o a ingressar nessa escola. Nessa época, estudava contabilidade e trabalhava numa agência bancária. Logo que entrou na Portela, em 1963, compôs "Recado", com Casquinha. Neste mesmo ano, Hermínio Bello de Carvalho, que o conhecera nas rodas de choro e era um dos incentivadores de sua carreira, o apresentou a Cartola. A partir de então, foi convidado para se apresentar no Zicartola (restaurante de Dona Zica e Cartola na Rua da Carioca, no Centro do Rio de Janeiro), tocando violão e cavaquinho, onde fez show com Zé Keti, recebendo seu primeiro cachê. Zé Kéti e Sérgio Cabral deram-lhe o nome de Paulinho da Viola (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). O produtor musical, escritor, compositor e poeta Hermínio Bello de Carvalho (1935) nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Iniciou sua carreira profissional em 1951, como repórter e colunista de discos da revista "Rádio-entrevista", tendo atuado, mais tarde, como colaborador das revistas "O Cruzeiro" (Internacional), "Leitura" e "Revista da Música Popular" (de Lucio Rangel). Em 1958, começou a trabalhar também no rádio. Produziu centenas de programas para a Rádio MEC, como "Violão de ontem e de hoje", "Reminiscências do Rio de Janeiro", "Retratos musicais", "Orquesta de Sopros" e "Concertos para a Juventude". Como diretor-roteirista de shows, lançou no cenário artístico Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Elizeth Cardoso, entre outros. Na área fonográfica, assinou a produção musical de vários discos, como "Gente da Antiga" (Pixinguinha, João da Bahiana e Clementina de Jesus), "Elizeth sobe o morro" e "Mangueira: samba de terreiro e outros sambas" (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). 43

“Sei lá Mangueira” nasceu de uma visita de Hermínio Bello de Carvalho ao ponto mais alto do Morro da Mangueira, ciceroneado por Cartola e Carlos Cachaça. Segundo Severiano; Homem de Mello (1998, p.97): Ao ver lá de cima e em tão ilustre companhia o belo panorama o poeta emocionou-se e compôs este canto de amor à sua escola e a comunidade. Mais tarde, em casa, Hermínio concluía o poema, quando chegou Paulinho da Viola, que apreciou os versos de intenso lirismo e fez a melodia de pronto. Gravada inicialmente por Odete Amaral, o que Paulinho da Viola, portelense ferrenho, não concordou, foi a inscrição de “Sei Lá Mangueira” no IV Festival da MPB da TV Record, feita pelo parceiro em atenção a um pedido do jornalista Flávio Porto, irmão de Sérgio Porto. Mas, a bela melodia ganhou o gosto popular. Embora não tenha alcançado uma melhor classificação no referido certame, contribuiu indiretamente causando a feitura de outra obra-prima, o samba “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”, este um samba-hino em homenagem à azul e branca de Madureira, a escola de samba Portela.

A exaltação dos diferentes lugares por aqueles que, efetivamente, vivem seu cotidiano, despertam nestas pessoas um sentimento de etnocentrismo, ou seja, a ideia de que habitam o centro do mundo, logo, o que está distante do seu lugar vivido tem pouco ou nenhum valor (TUAN, 1983; MELLO, 1991). Esta alegoria etnocêntrica, incorporada de elementos positivos ou negativos, contribui para a construção da utopia. A imaginação e a criatividade humana são pródigas em criar lugares míticos ou utópicos que, construídos e reconstruídos através do tempo, adquirem status de “eldorados” ou “paraísos”. Por outro lado, ambiguidades, sentimentos topofílicos e a maneira de agir das pessoas, podem construir também lugares mergulhados em trevas, medo e insegurança (MELLO, 1991). Assim, as favelas cariocas se tornaram para a maior parte da população locais “perigosos”, que devem ser evitados, em alguns casos, a qualquer custo. Contudo, esta imagem encontra sua contraposição quando observada através das lentes de compositores e poetas moradores ou mesmo frequentadores do lugar. No caso particular da Mangueira, de notável produção cultural, o morro e seus habitantes, através do samba, são narradores em meio à dinâmica do lugar vivido, reverenciado e valorizado. Ao mesmo tempo, por vezes, a favela é alçada ao etnocêntrico nível de um grande eldorado ou, em outras palavras, um lugar mítico, conceituado como, “acima do bem e do mal, carregado de simbologia, onde está situada a sede da escola de samba verde e rosa” (MELLO, 1991, p. 210). Um lugar mítico, por excelência, envolto em uma aura reluzente mostrando “... que a vida não é só isso que se vê/ é um pouco mais/ que os olhos não conseguem perceber/ e as 44

mãos não ousam tocar/ e os pés recusam pisar ...”. Vivido, filosófico e sacralizado, composto por pessoas, amigos, ritmos, batucadas, cores, sonhos, ações, sofrimentos, alegria e dribles na luta pelo dia-a-dia, o mundo vivido mangueirense “... é tão grande / que nem cabe explicação”.

Me sinto pisando Um chão de esmeraldas Quando levo meu coração À Mangueira sob uma chuva de rosas Meu sangue jorra das veias E tinge um tapete Pra ela sambar É a realeza dos bambas Que quer se mostrar Soberba, garbosa Minha escola é um cata-vento a girar É verde, é rosa Oh, abre alas pra Mangueira passar. (Chão de esmeraldas - e Hermínio Bello de Carvalho, 1997)

Filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda e de Maria Amélia Buarque, Francisco Buarque de Hollanda, ou Chico Buarque (1944), nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Em 1946, aos dois anos de idade, mudou-se com sua família para São Paulo. Por ter nascido em uma família de intelectuais, afirmava que "as paredes lá de casa viviam cobertas de livros". Desde cedo conviveu com diversos artistas, amigos de seus pais e da irmã Heloísa, entre os quais, João Gilberto, Vinicius de Moraes, Baden Powell, Tom Jobim, Alaíde Costa e Oscar Castro Neves. Vencedor em 1965 e 1966 do Festival Nacional da Música Popular Brasileira (TV Excelsior) com as composições "Sonho de um carnaval", defendida por Geraldo Vandré e “A Banda”, respectivamente, tendo sido o prêmio do festival de 1966 dividido com "Disparada" (Geraldo Vandré), por sua própria sugestão. A partir de então sua carreira de compositor e cantor se consolidou tornando-se, nas palavras do jornalista Millôr Fernandes, a „única unanimidade nacional‟. Com uma obra rica e variada, o cantor tem atravessado os anos mantendo-se como um exemplo de coerência política e estética, recebendo o respeito e admiração do público e da crítica. Dramaturgo bem sucedido, escritor de best sellers, cantor e compositor de refinado repertório, Chico Buarque de Hollanda é uma das legendas nacionais (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). 45

Na poética letra de “Chão de esmeraldas”, Chico Buarque e Hermínio Bello de Carvalho admiradores e sambistas confessos, em um evidente exemplo da “conjunção da consciência criativa e o fantástico imaginado” (MELLO, 1991, p.199), criam o lugar mítico mangueirense. Ao adentrar simbolicamente (ou fisicamente?) o território deste rico universo, ou “reino”, os compositores declaram “...me sinto pisando / um chão de esmeraldas / quando levo meu coração / à Mangueira...”. Neste eldorado ou paraíso do samba, seus admiradores e simpatizantes, como Chico Buarque e Hermínio Bello de Carvalho, são calorosamente acolhidos “...sob uma chuva de rosas...”. O contato com o samba dos compositores mangueireses – em meio ao enredo “Chico Buarque da Mangueira” homenagem ao compositor de A Banda, Carolina e Construção – “...a realeza dos bambas...” é motivo de júbilo, regozijo e veneração que transbordam de maneira quase incontrolável “...meu sangue jorra das veias/ e tinge um tapete / pra ela sambar...”.

O samba sobe a Estação Primeira Lembrando que Cartola Já pisou por esse chão Deixando em cada grão dessa poeira As marcas invisíveis da paixão Com seu violão Na ultima escalada de Mangueira O samba se debruça e olha para trás E se pergunta onde se encontra o fim da ponta da eternidade Que não volta nunca mais E a vida se fez verde e rosa E se transformou desde então Numa fé misteriosa que não tem definição É pranto, é reza, é cruz É canto, é riso, é luz É força que conduz alegre multidão É o sonho que se fez Surgiu da sua inspiração E o samba então subiu Ao céu para ver, enfim Seu nome divino bordado de aura e cetim. (Divino - Noca da Portela e Toninho Nascimento, 1999)

Osvaldo Alves Pereira (1932), ou Noca da Portela, nasceu na cidade de Leopoldina, no estado de Minas Gerais. Começou a compor aos 15 anos de idade para a Escola de Samba Unidos do Catete, vencedora do carnaval com o samba- enredo "O Grito do Ipiranga", sua primeira nota dez. Permaneceu na Ala dos Compositores desta escola por mais três anos. O pai, o professor de violão Ernesto Domingos de Araújo, não o incentivou a seguir a carreira artística, preocupado com 46

o futuro financeiro do filho. Prosseguiu então seus estudos de violão e teoria musical na Ordem dos Músicos do Rio de Janeiro. No ano de 1966, Paulinho da Viola o convidou para atuar como violonista no show "Carnaval para principiantes", no Teatro Opinião e, mais tarde, levou-o para o Grêmio Recreativo e Escola de Samba Portela. Daí em diante, ficaria conhecido como Noca da Portela. Foi secretário de Cultura do Rio de Janeiro e continua vencendo vários carnavais em sua agremiação favorita, a Portela (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). “Antônio “Toninho” Nascimento foi um dos compositores preferidos de Clara Nunes, que dele gravou várias músicas, como "Conto de areia" (com Romildo), em 1974. Com Noca da Portela compôs várias músicas como "Mar do Maranhão" (1982), "Primeira semente" (1983), "À benção, mãe" e "Jongueia" (1988), entre outras” (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Em “Divino”, o morro de Mangueira é sacralizado como santuário do samba pelos seus compositores. Como nas palavras de Tuan (1983) e Mello (1991; 2000), os homens, não podendo repetir na Terra o paraíso que as religiões propagam, procura empreender cópias de lugares míticos. Assim, o “criador” Cartola, um dos principais responsáveis pelo “evangelho” do samba mangueirense, de reconhecido valor poético e cultural por uma legião de fiéis, entre eles Noca da Portela, é evocado na canção: “... o samba sobe a Estação Primeira / lembrando que Cartola / já pisou por esse chão / deixando em cada grão dessa poeira / as marcas invisíveis da paixão / com seu violão...”. Depois de percorrer uma longa jornada de alegrias, derrotas, tristezas e vitórias, “...na última escalada de Mangueira / o samba se debruça e olha para trás...”, e contempla com orgulho o morro de Mangueira, consagrado como santuário ou eldorado, por uma multidão de freqüentadores e simpatizantes que, em romaria para a colina celebram, comungam e eternizam os sambas de Cartola, Carlos Cachaça, Hélio Turco, Nelson Sargento, Nelson Sargento, Padeirinho, entre outros. Neste contexto, “... a vida se fez verde e rosa / e se transformou desde então / numa fé misteriosa que não tem definição / é pranto, é reza, é cruz / é canto, é riso, é luz / é força que conduz alegre multidão...”.

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2.3.2. A celebração do lugar

O homem tem recorrentemente celebrado os seus lugares através de diversos meios, seja através de relatos verbais, escritos ou versos de canções. Consideremos, pois, as letras voltadas ao universo mangueirense.

Mangueira, teu cenário é uma beleza que a natureza criou o morro com seus barracões de zinco quando amanhece, que esplendor todo mundo te conhece ao longe pelo som de seu tamborim e o rufar de seu tambor! Ó Mangueira, teu passado de glória Ficou gravado na história É verde-Rosa a cor da tua bandeira Pra mostrar a essa gente Que o samba, é lá em Mangueira! (Exaltação à Mangueira - Enéas B. Silva e Aloísio A Costa, 1956)

Desde a década de 1920, o Morro de Mangueira é motivo de inspiração de muitas composições, graças, principalmente, ao seu prestígio como importante reduto do samba. Uma dessa composições é "Exaltação à Mangueira", uma sincera homenagem dos mangueirenses Enéas Brites da Silva e Aloísio Augusto da Costa, que se tornou uma espécie de hino informal da verde-e-rosa, utilizado no chamado “aquecimento” na concentração da “Sapucaí”. Moradores de Mangueira por toda a vida, trabalhadores da cerâmica ali existente (a Cerâmica Brasileira, que produzia refratários, azulejos e pisos) Aloísio e Enéas fizeram este samba (partindo de uma ideia de Enéas) em um intervalo de almoço, conforme depoimento do primeiro ao pesquisador Arthur L. de Oliveira, publicado no jornal A Voz do Morro, em fevereiro de 96. Detalhe curioso relembrado por Aloísio: "a princípio, a gente fez os versos 'todo mundo te conhece até no interior / não é bafo de boca / nem mania, não senhor'. Mas o presidente da Mangueira, Hermes Rodrigues, reclamou: 'desse jeito não tá legal'. Então ficou assim: „Todo mundo te conhece ao longe / pelo som de teus tamborins / e o rufar do teu tambor...‟. „Exaltação à Mangueira‟ foi lançada por outro mangueirense de coração, o cantor Jamelão, para o carnaval de 56 (SEVERIANO; HOMEM DE MELLO, 1998). Assim como Enéas Silva e Aloísio Costa outros moradores do morro de Mangueira trabalhavam nas fábricas localizadas na 48

Avenida Visconde de Niterói. A instalação de indústrias neste logradouro, no período em que a canção foi composta, se justificava por uma série de fatores, como a proximidade da área central, a ampliação da capacidade de transporte com os trens suburbanos e a criação de áreas livres, resultante dos aterros dos pântanos que cercavam o morro, em função da remodelação do porto no início do século XX. Além da referida composição, a fábrica Cerâmica Brasileira foi também palco dos primeiros movimentos de organização social do Morro da Mangueira, que surgiram em torno de manifestações artísticas e esportivas realizadas no interior desta fábrica, a partir da iniciativa de seu administrador, residente no morro, com a participação pioneira de outros moradores da favela. Em seu campo de futebol, por exemplo, eram realizados torneios entre os moradores, além de eventos que reuniam grande parte dos moradores do morro, como festas juninas, rodas de samba e blocos carnavalescos. Destes encontros entre os sambistas da comunidade, como os compositores em tela, realizados dentro desta fábrica ou nas biroscas próximas ao morro, mais tarde, surgiria à agremiação Estação Primeira de Mangueira. Um lugar desperta atenção para si mesmo, alcançando poder e eminência, através da proporção e solenidade de seus ritos e festivais (TUAN, 1983). No caso do Morro de Mangueira, de seus sambas, ocorre justamente o que reza o autor em questão em sua obra “Espaço e Lugar”. Na canção em foco, a solenidade do samba mangueirense alcançam proporções máximas nos versos de seus compositores, “que não medem esforços em exaltar os predicados de seu mundo vivido” (MELLO, 1991, p. 214). Estes predicados que diferenciariam o Morro de Mangueira e que são citados na canção estariam na sua paisagem natural “...Mangueira, teu cenário é uma beleza / que a natureza criou...”, na forma de suas habitações “...o morro com seus barracões de zinco / quando amanhece, que esplendor...” em uma clara referência a composições já consagradas sobre o mundo vivido mangueirense, como também na particularidade rítmica de seu samba, para mais a seguir assinalar “...todo mundo te conhece ao longe / pelo som de seu tamborim/ e o rufar de seu tambor!...”. Este conjunto de preciosidades confere à Estação Primeira de Mangueira e, por extensão, ao morro e à comunidade que a abriga, uma individualidade notória e singular. Mais adiante, Enéas Brites da Silva e Aloísio Augusto da Costa cantam efusivamente a cultura mangueirense, contribuindo assim para a reprodução do lugar na memória e no imaginário coletivo “...ó 49

Mangueira, teu passado de glória / ficou gravado na história / é Verde-Rosa a cor da tua bandeira / pra mostrar a essa gente / que o samba, é lá em Mangueira...”! Neste ponto vale mencionar o pensamento de Yi-Fu Tuan como referência: Os lugares não se tornam históricos simplesmente porque ocupam um mesmo sítio durante um longo tempo. Os acontecimentos passados não produzirão impactos no presente se não forem gravados em livros de história, monumentos, desfiles e festividades solenes e alegres que todos reconhecem fazer parte de uma tradição que se mantém viva (TUAN, 1983, p. 193).

Quando ouvir esta batida Foi Mangueira que chegou A Escola que dá diploma ao sambista A Escola que envaidece o artista As cabrochas mangueirando nas cadeiras Abre ala laia, quem chegou foi Mangueira A turma não crê em fracasso Mangueira vai mostrar que ainda é braço Ô abre ala, deixa a Mangueira passar Ô abre ala eu quero ver balançar. (Mangueira Chegou - José Ramos, 1999)

José Ramos faleceu no dia 30 de dezembro de 2001, último dos fundadores da ala de compositores da Mangueira ainda vivo. Escreveu este samba de terreiro, “Mangueira chegou”, entre 1940 e 1945, gravado por Clementina de Jesus e regravado em 1999 por Genuíno no CD Velha Guarda da Mangueira e Convidados. Foi parceiro de Cartola e um dos grandes compositores de sambas de terreiro da escola. É autor de músicas como "Nasceste de uma Semente", "Capital do Samba", "Quando ouvi esta Batida", "Castelo Desmoronado" e "Jequitibá" (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). “Quando ouvir essa batida / foi Mangueira que chegou”. Com estes versos José Ramos destaca a batida única da primeira escola a usar o surdo na marcação. Além da inovação rítmica, outros atributos ou relíquias do mundo vivido mangueirense são exaltados e arrolados na canção: “...a Escola que dá diploma ao sambista / a Escola que envaidece o artista / as cabrochas mangueirando nas cadeiras / Abre ala laia, quem chegou foi / Mangueira...”. Sentimentos como vaidade, inveja, ambição “ou orgulho contencioso podem ser condenáveis, porém promovem um sentido consciente do eu e das coisas a ele associadas, incluindo a localidade” (TUAN, 1983, p.195), ou em outras palavras, dirigidos ao Morro de Mangueira. Por outro lado, estas emoções também conferem cor e vida ao lugar Mangueira - 50

recorrendo e extrapolando da experiência direta de cada um de seus moradores [em particular José Ramos] - intensificando o sentido de pertencimento à colina, principalmente quando se percebe que o lugar tem rivais e está ameaçado de alguma maneira, real ou imaginária, como pode ser compreendido nos versos “...a turma não crê em fracasso / Mangueira vai mostrar que ainda é braço / ô abre ala, deixa a Mangueira passar / ô abre ala eu quero ver balançar...”.

A Mangueira não morreu Nem morrerá, isso não acontecerá Tem seu nome na historia Mangueira, tu és um cenário coberto de glória ... (A mangueira não morreu - Jorge Zagaia, 1999)

O carioca e mangueirense Zagaia, ou Jorge Isidoro da Silva (1922 – 1995), compositor, cantor e partideiro, foi um dos fundadores da Ala dos Compositores da Mangueira. Atuou também como puxador de samba-enredo da escola tendo sido a mesma diversas vezes campeã com suas composições. Em 1989, fazendo parte da Velha Guarda da Mangueira, participou do disco "Mangueira chegou", produzido por Katsunori Tanaka. No CD, somente lançado para o mercado japonês, interpretou alguma composições de sua autoria como "A vida do trabalhador" e "A Mangueira não morreu". Em 1998,o samba "A Mangueira não morreu" foi regravada por Chico Buarque e Nelson Sargento no CD "Chico Buarque de Mangueira", o samba havia sido gravado, também, por Beth Carvalho contando com o apoio da Velha Guarda da Mangueira (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Na canção em tela, mais uma vez a Estação Primeira de Mangueira é celebrada por um de seus tradicionais membros da Velha Guarda. Para a cantora e compositora Beth Carvalho, esta prática é fundamental para a visibilidade e consolidação do mundo vivido mangueirense, pois “[a Velha Guarda] é a árvore frondosa que nos reúne, é a identidade, a memória viva de uma cultura. É nela que está o abrigo da poesia de todos nós, que amamos o samba e o nosso país”. Desta forma, a celebração e louvação das poesias de diversos compositores mangueirenses registradas e divulgadas pelo empenho dos membros da Velha Guarda eternizam a escola e o morro onde está situada para um grande número de freqüentadores, simpatizantes e principalmente para seus moradores, que vivenciam este rico universo de sua agremiação carnavalesca de maneira mais intensa e a 51

colocam no alto de um pedestal como nos versos de Zagaia contendo o seguinte teor: “... a Mangueira não morreu/nem morrerá, isso não acontecerá/tem seu nome na historia/Mangueira, tu és um cenário coberto de glória...”

2.3.3. Nostalgia mangueirense

A consciência do passado é um elemento importante no amor pelo lugar. As pessoas continuam com os „pés fincados no chão‟ de suas experiências da infância ou do passado, mesmo após longos anos de ausência. Tal como em relação ao primeiro amor, que não se esquece, o lugar das brincadeiras de rua, dos tempos felizes e das primeiras experiências, continua a ser lealmente cultuado (Mello, 1991, p. 234-235).

Em Mangueira Na hora da minha despedida Todo mundo chorou Todo mundo chorou Foi pra mim a maior emoção Da minha vida Porque em Mangueira O meu coração ficou Quis falar aos amigos Que me abraçaram Os soluços porém Minha voz embargaram E os meus olhos Na minha tristeza sem fim No meu silêncio Falaram por mim A maior emoção Que se tem nesta vida É a dor que assinala Uma triste partida E foi esta emoção Que eu também já senti E nunca mais De Mangueira esqueci. (Despedida de Mangueira - Benedito Lacerda e Aldo Cabral, 1940)

Benedito Lacerda (1903 – 1958) nasceu na cidade de Macaé no estado do Rio de Janeiro. Aos oito anos, começou a aprender flauta de ouvido. Aos dezessete anos, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde passou a residir no bairro do Estácio, famoso por abrigar sambistas e batuqueiros. Estudou flauta sob a orientação de Belarmino de Sousa, pai do compositor Ciro de Sousa. Estudou também no Instituto Nacional de Música, diplomando-se em flauta e composição. Em 1922, ingressou na 52

Polícia Militar, não abandonando suas atividades musicais. Em 1927 deu baixa, passando a viver de suas atuações em orquestra de cinemas e teatros. Em parceria com diversos artistas, compôs e gravou choros, valsas, marchinhas e sambas. Com Herivelto Martins escreveu o samba “A Lapa” contribuindo para imortalizar “... o bairro das quatro letras...”. Faleceu vitimado por um câncer num domingo de carnaval, ele que tanto sucesso obtivera em vários carnavais (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Antônio Guimarães Cabral (1912 -1994) ou Aldo Cabral nasceu no bairro de Santo Cristo, zona portuária do Rio de Janeiro. Destacou-se na década de 1930 e 1940 também como letrista de valsas, sambas e marchinhas de carnaval. Seu principal parceiro foi Benedito Lacerda com quem compôs diversos sambas, entre eles, “Despedida da Mangueira”, gravado com sucesso em 1940 na voz de Francisco Alves pela gravadora Columbia (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Na canção, os autores, na eminência de estarem separados do lugar pelo qual nutrem grande apreço, lamentam “...a maior emoção / que se tem nesta vida / é a dor que assinala / uma triste partida / e foi esta emoção / que eu também já senti / e nunca mais / de Mangueira esqueci...”. Tuan, citando Tennessee Williams, pseudônimo de Thomas Lanier Williams (1911 – 1983), dramaturgo estadunidense, nos sugere “que o lar [uma das muitas dimensões do lugar] bem pode ser outras pessoas, isto é, como um ser humano pode se „aninhar‟ em outras pessoas” (1983, p.154). A mãe, ainda segundo Tuan é o primeiro lar, centro de apoio, nutrição e aconchego. Desta forma, Benedito Lacerda e Aldo Cabral, ao deixarem para trás o morro de Mangueira, abandonam, também, um gama de relações estabelecidas com a sua gente “...em Mangueira/na hora da minha despedida/todo mundo chorou/todo mundo chorou/foi pra mim a maior emoção/da minha vida/porque em Mangueira/o meu coração ficou/quis falar aos amigos/que me abraçaram/os soluços porém/Minha voz embargaram/E os meus olhos/Na minha tristeza sem fim/no meu silêncio/falaram por mim...”.

Bem que eu quero expirar Mas existe um porém Trago a minha memória cansada Esta triste melodia Serve de último adeus Adeus, escola de samba 53

Adeus, Mangueira, adeus! Adeus,escola de samba adeus! Eu vou partir chorando Relembrando os versos meus Que mais cedo ou mais tarde É triste, é doloroso recordar Mas a orgia vai se acabar Mangueira, adeus. (Adeus Mangueira – Zé Espinguela, 1944)

José Gomes da Costa ou Zé Espinguela nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1890, falecendo em 1945 igualmente na “Cidade Maravilhosa”. “Cantor e compositor, segundo relatou Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça, dizia-se descendente de italianos da Calábria, da família Espineli, o que explicaria o apelido, um aportuguesamento popular do sobrenome estrangeiro. Era mulato, com marcas de bexiga no rosto, jongueiro, pai-de-santo e "irmão de cabeça" de dona Lucíola, velha matriarca da Mangueira. Foi um dos fundadores do bloco dos Arengueiros e mais tarde da Estação Primeira de Mangueira. Em janeiro de 1929, iniciou o primeiro concurso de compositores disputado pelas recém fundadas escolas de samba cariocas, Mangueira, Portela (na época Vai Como Pode) e Deixa Falar (mais tarde Estácio de Sá) nos fundos de sua casa, na rua Engenho de Dentro, atual Adolfo Bergamini. Imparcial, Espinguela premiou o samba portelense “Não Adianta Chorar”, de Heitor dos Prazeres. Morador do Engenho de Dentro, o sambista fez da Mangueira o seu segundo lar (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). O samba “Adeus Mangueira” talvez seja um dos registros mais contundentes expostos e discutidos nesta seção a respeito da intensidade do sentimento de afeição das pessoas para com os lugares, muitas vezes explicitado com maior intensidade quando da quebra, por motivos variados, desta relação. Em depoimento a Ricardo Cravo Albim, para o Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira, Arthur de Oliveira conta em 1944, Zé Espinguela "reuniu os adeptos do centro religioso e dirigiu-se ao morro da Mangueira para despedir-se do seu reduto preferido. Cantou para que todos pudessem ouvir sua nova composição “Adeus Mangueira” e acordou o morro praticamente anunciando a sua morte” (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010), pois viria a falecer dois dias depois, sem ter tempo de ver a festa do samba tomar o Rio e transformar-se mais uma vez no maior espetáculo da Terra. Como que prenunciando a sua partida Zé Espinguela canta em tom de súplica mais uma vez o lugar que tanto amou e o alegrou ao longo de boa parte de sua vida: “bem que eu quero expirar/mas existe um porém/trago a 54

minha memória cansada/esta triste melodia/serve de último adeus/adeus, escola de samba/adeus, Mangueira, adeus!/adeus, escola de samba adeus!/eu vou partir chorando/relembrando os versos meus/que mais cedo ou mais tarde/é triste, é doloroso recordar/mas a orgia vai se acabar/Mangueira, adeus...”.

Quando eu piso em folhas secas Caídas de uma mangueira Penso na minha escola E nos poetas da minha Estação Primeira Não sei quantas vezes Subi o morro cantando A luz do sol me queimando E assim vou me acabando Quando o tempo avisar Que não posso mais cantar Sei que vou sentir saudade Ao lado do meu violão E da minha mocidade. (Folhas secas – Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, 1973)

Em “Folha Secas” de autoria dos compositores Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, composição registrada em disco por Elis Regina e Beth Carvalho, um passado de alegrias e realizações é nostalgicamente relembrado. Muitos dos sentimentos mais íntimos e profundos que unem os indivíduos aos lugares são inconscientes, porém extremamente fortes. Nas palavras de Tuan (1983): As experiências íntimas [com os lugares] jazem enterradas no mais profundo de nosso ser, de modo que não apenas carecemos de palavras para dar-lhes forma, mas frequentemente não estamos sequer conscientes delas. Quando, por alguma razão [como a eminência da partida ou mudança], assomam por um instante à superfície de nossa consciência, evidenciam uma emoção que os atos mais deliberados – as experiências ativamente procuradas – não podem igualar (TUAN, 1983, p. 151 – 152).

Felizmente, graças à genialidade de seus compositores, podemos testemunhar todos estes aspectos discutidos por Tuan nos versos de “Folhas Secas”. Ativada de forma prosaica na consciência dos autores, “...quando eu piso em folhas secas/ caídas de uma mangueira ...”, árvore muito comum na cidade do Rio de Janeiro, um turbilhão de emoções e memórias vividas vêm a tona “...penso na minha escola / e nos poetas da minha Estação Primeira / não sei quantas vezes /subi o morro cantando / a luz do sol me queimando / e assim vou me acabando”. Neste particular convém relembrar Mello quando acentua: “as experiências nos cenários do passado são tesouros guardados com grande ternura” (1991, p. 235). 55

No samba em questão, esta relíquia, de valor inestimável, é composta por um mosaico de alegrias, conquistas, descobertas e vicissitudes da juventude, tão ricamente vivida no morro de Mangueira notadamente por Nelson Cavaquinho “...quando o tempo avisar / que não posso mais cantar / sei que vou sentir saudade / ao lado do meu violão / e da minha mocidade...”.

2.4. Muralhas da natureza, do cotidiano e da imaginação

Muralhas de diferentes tipos separam os homens em seus mundos. Algumas são próprias do meio ambiente natural, como montanhas e rios; outras criadas pela cultura, religião, etnia, sexualidade, níveis de renda, instrução ou, ainda, erigidas pela imaginação através, por exemplo, do medo (MELLO, 1991, p. 151).

2.4.1. Portões e muros do resguardo e da exclusão

O homem moderno, morador das grandes metrópoles, constrói física ou simbolicamente muralhas e portões que o protegem do caos, males, perigos ou incertezas da vida urbana. Por exemplo, os indivíduos e grupos de alta renda podem se auto-segregar em condomínios luxuosos ou bairros distantes da área central das cidades, estas geralmente apinhadas de pessoas, automóveis, barulho e poluição. Para outros setores menos favorecidos da sociedade, por outro lado, sua exclusão em relação à “cidade formal” é resultado, na maioria das vezes, de processos que estão além de seus anseios e desejos. Para Mello (1991, p.163) “protegidos em seu mundo por muralhas e portões ou excluídos de outros mundos, o homem urbano vive diversos tipos de segregação espacial, geopolítica e territorialidades”. No Rio de Janeiro, até meados do século XIX, o contraste social na forma urbana da cidade não era tão marcante, ou seja, cariocas de diferentes estratos sociais compartilhavam o mesmo espaço, sendo a fachada de suas residências o principal indicador de seu status. A partir do final deste século e nas primeiras décadas do século XX, as reformas urbanas da Velha República, modificariam radicalmente esta situação, pois passam a impor um padrão de controle, ocupação e uso do solo que, entre outros fatores, acabariam por contribuir para a separação espacial das classes sociais. Tendo como principal foco a área central da cidade, a Reforma Passos, por exemplo, ao desapropriar um grande número de moradores de 56

suas antigas residências, contribuiu para o adensamento das encostas de morros próximos e de bairros limítrofes por uma população empobrecida. Mais tarde, nas décadas seguintes, com a expansão da malha ferroviária, a instalação de estabelecimentos industriais e a chegada de fluxos migratórios intra e inter-regionais na cidade, se consolida a ocupação dos morros, por meio das favelas, e bairros suburbanos da cidade. Nos morros, a ocupação se justificava pela proximidade do trabalho, seja ele voltado para a prestação de serviços domésticos, logística de comércio da cidade ou como mão-de-obra para as indústrias próximas. De fato, o Decreto lei 6000/37, que definiu pela primeira vez na cidade um zoneamanto industrial, compreendendo principalmente as áreas suburbanas, teve enorme impacto na ocupação do Morro da Mangueira, pois ao definir a área próxima da favela como área industrial, proporcionou a instalação de novas indústrias, que foi acompanhando pelo aumento da população do morro. Abrigando um grande número de moradores hoje a comunidade mangueirense, como já discutimos, apresenta um espaço físico desordenado do ponto de vista jurídico, que limita a sua incorporação à cidade. Como outras favelas, seus moradores carregam as representações e estigmas que, no campo simbólico e para além dos limites físicos, erguem muros e barreiras que os excluem das esferas política, civil e social da cidade. Entretanto, no caso particular da Mangueira, de notável produção cultural, o morro e seus habitantes, marginalizados no interior do espaço urbano passam, através do samba, como forma de narrativa do lugar vivido, a serem reverenciados e valorizados, e a favela, transformada em um grande eldorado. Eis um elenco de canções que abordam a temática em questão.

Eu quero é nota Carinho e sossego Para viver descansado Cheio de alegria, meu bem Com uma cabrocha ao meu lado Eu queria ter dinheiro que fosse grande porção Eu comprova um automóvel Ia morar lá no Leblon Sou um triste operário Não posso bancar barão Vou morar lá em Mangueira Num modesto barracão Eu quero é nota Todo mundo acha graça De um pobre vagabundo Se a sorte fosse igual Ninguém ria neste mundo 57

Eu desço de madrugada Enganando a moçada Que vou trabalhar Porém quando a fábrica apita Pego na minha marmita Vou me alimentar. (Eu quero Nota – Arthurzinho, 1930).

No carnaval de 1930, a então recém fundada Estação Primeira de Mangueira levava para o desfile o samba-enredo de Arthurzinho “Eu quero nota”. Com pouca repercussão na impressa da época (Fernandes, 2001), a escola já denunciava a desigualdade social e espacial da geografia carioca que marcaria a forma urbana da cidade nas décadas seguintes. Na canção, um proletário e favelado pede, além de carinho e sossego, “... nota ...”, para viver descansado. Consciente de sua situação social e dos muros que excluem e segregam, o trabalhador afirma, “...eu queria ter dinheiro que fosse grande porção / eu comprava um automóvel / ia morar lá no Leblon / Sou um triste operário / não posso bancar barão / vou morar lá em Mangueira / num modesto barracão...” em clara alusão a dois símbolos de status e visibilidade social: o automóvel e o sofisticado bairro do Leblon, planejado a partir do início do século vinte para abrigar cidadãos de alto poder aquisitivo por meio da iniciativa imobiliária e do poder público e hoje um dos metros quadrados mais elevados da cidade. Aponta também para o preconceito que a população moradora dos morros sofre e culpa como responsável por este fato o destino infeliz: “...todo mundo acha graça / de um pobre vagabundo / se a sorte fosse igual / ninguém ria neste mundo...”. Mesmo assim, o nosso operário dribla com criatividade as dificuldades encontradas pelo seu caminho em busca de prazeres simples, dentro de sua vida repleta de lutas e, ao mesmo tempo, pratica escapismo: “...eu desço de madrugada / enganando a moçada / que vou trabalhar / porém quando a fábrica apita / pego na minha marmita / vou me alimentar”

Samba melodia divina Tu és mais empolgante Quando vens da colina Samba original és verdadeiro Orgulho do folclore brasileiro O teu linear de vitórias Foi na Praça Onze de outrora Das lindas fantasias Que cenário multicor Das velhas batucadas E o saudoso Sinhô Oh! Que reinado de orgia 58

Onde o samba imperava Matizando alegrias Rei momo e as escolas de samba Deram mais esplendor Ao nosso carnaval E o samba fascinante Ingressa no Municipal Sua epopéia triunfante Atingiu terras bem distantes Não encontrando fronteiras O samba conquistou Platéias estrangeiras. (Carnaval de todos os tempos – Helio Turco, Cicero e Pelado, 1960)

O compositor Hélio Rodrigues Neves (1935) ou Hélio Turco nasceu no bairro carioca do Grajaú e mudou-se para a Mangueira aos seis meses de idade. Seu nome artístico foi adquirido em função de um tio, dono de um armarinho, de nome Jorge Turco, e que lhe legou o armarinho. Todos pensavam que fosse filho de Jorge Turco, daí o apelido. Atuou também como artesão na confecção de pipas e balões bastante apreciados pela comunidade mangueirense. Sua carreira de compositor somente se iniciou depois de ter entrado quase por acaso na Ala dos Compositores da Escola de Samba do morro de Mangueira. Em 1957, esperava o amigo Jurandir durante uma reunião da Ala dos Compositores da escola, que então passava por uma crise e precisava formar uma diretoria. Por falta de quórum foi indicado pelo amigo para integrar a ala, embora até então não tivesse composto. Sua primeira composição apareceu em 1958, o samba "Decaída". Desde então, ao lado de outros parceiros, muitos de seus sambas-enredo foram consagrados campeões (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Cícero dos Santos (1923 – 1994) foi estivador do cais do porto do Rio de Janeiro. Em 1954, a Mangueira foi campeã com um samba-enredo seu, sendo eleito presidente da escola dois anos depois. Anos mais tarde, presidiu a Ala dos Compositores da escola. Foi parceiro do compositor Pelado em vários sambas. Jorge Alves de Oliveira, o Pelado (1921 – 1980) morou em Mangueira toda a sua vida. O pai, José Alves de Oliveira, também conhecido como Zé das Pastorinhas, foi um dos fundadores da Escola de Samba Unidos da Mangueira, escola que rivalizava com a Estação Primeira de Mangueira nos primeiros concursos carnavalescos. Mais tarde, foi diversas vezes campeão com a verde e rosa (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). 59

No samba-enredo “Carnaval de todos os tempos”, seus compositores nos convidam a rever (ou para os mais desavisados, ter contato pela primeira vez) alguns capítulos que marcaram a evolução do samba, em particular aquele dos compositores da Mangueira “...samba melodia divina / tu és mais empolgante / quando vens da colina...”. O samba propagado pelas recém fundadas escolas de samba, entre elas a Estação Primeira de Mangueira, considerado no início de sua evolução na cena cultural carioca um ritmo marginal, por meio de seus compositores e desfiles envereda pela seguinte senda: “...o teu linear de vitórias / foi na Praça Onze de outrora / das lindas fantasias / que cenário multicor / das velhas batucadas / e o saudoso Sinhô...”. Nestes compassos mapeia o berço do samba e dos desfiles das escolas, mostra que tal manifestação passou a atrair cada vez mais adeptos e cita o lendário e excelente compositor Sinhô que, nos domínios da Praça Onze e da Cidade Nova, se intitulava o “Rei do Samba”. Seus desfiles, exaltação máxima deste ritmo musical, acompanhado esta popularização, se tornam mais grandiosos e luxuosos como podem ser lidos nos versos “...Rei Momo e as escolas de samba / deram mais esplendor / ao nosso carnaval...”. Mais adiante, nos lembra os compositores, já culturalmente reconhecido e integrado no imaginário carioca, esta grande festa chega a outros palcos tradicionais da cidade e plateias mais exigentes “...e o samba fascinante / ingressa no Municipal / sua epopeia triunfante...”, referência ao reduto das artes eruditas que no período momesco se constituía, igualmente, em palco para a folia. Diante do exposto, podemos dizer que ao longo deste rico trajeto de lutas, inovações, poesias e afirmações, o samba contribuiu de forma substancial para quebrar preconceitos e muralhas entre a população de bairros proletários e de alguns morros cariocas, redutos dos sambistas e das principais agremiações carnavalescas, como o morro de Mangueira, e os bairros nobres da “cidade formal” e até mesmo paragens mais distantes “...não encontrando fronteiras/ o samba conquistou / plateias estrangeiras...”.

(...) Pergunte ao criador Pergunte ao criador Quem pintou esta aquarela Livre do açoite e da senzala Preso na miséria da favela (....). (Cem anos de liberdade. Realidade ou ilusão - Hélio Turco, Jurandir e Alvinho, 1988)

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Até o ano de 1888, centenário da Abolição da escravidão no Brasil, a melhoria estética e de qualidade dos antigos barracões de madeira para casas de alvenaria nos morros cariocas não tinha se traduziu para seus moradores em mobilidade social ou espacial. Incorporadas ao cenário urbano da cidade e enfrentando problemas como falta de água, luz e esgoto, que ainda persistiam a despeito da política paternalista e pontual do poder público, as favelas cada vez mais se tornavam o lugar do pobre, principalmente dos negros. A expansão e criação de favelas em diversas áreas mostravam que a tentativa de controlar a forma urbana da cidade, separando no espaço ricos e pobres, através de sucessivas reformas e intervenções do poder público, tinha fracassado. Na obra “Paisagens do Medo”, Tuan discorre sobre a criação de paisagens do medo pelos homens, oferecendo instrumentos de compreensão para o fenômeno da segregação espacial. Segundo ele: Falando genericamente, cada fronteira criada pelo homem na superfície da Terra – cerca do jardim, muro da cidade, ou “barreira do radar” – é uma tentativa de manter afastadas as forças inimigas. Limites existem em todos os lugares porque as ameaças são onipresentes: o cão do vizinho, criança com sapatos lamacentos, estranhos, o louco, exércitos estrangeiros, doenças, lobos, vento e chuva (TUAN, 2006, p.6).

Caberia acrescentar também, no caso em tela, o pobre, o negro e o favelado. Atento a este fato, o “samba-denúncia” mangueirense (Cem anos de liberdade. Realidade ou ilusão?), composto por Hélio Turco, Jurandir e Alvinho no carnaval de 1988, sublinha este estado de servidão “mascarada” vivenciado pela população das favelas cariocas. Desnorteado na tentativa de buscar explicações para este fenômeno social criado no mundo dos homens, os autores recorrem a ajuda divina, justa, onipresente, “...pergunte ao Criador quem pintou esta aquarela...”. Na visão dos sambistas, retratando um momento da favela, surge uma aquarela em preto e branco, “...livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela...”. Observa-se assim que, no campo tangível, material, a segregação entre o morro e o asfalto se mostrava muito pequena e tênue, no campo imaginário e simbólico, muralhas, muros e portões criados pela mente humana tratavam de excluir outros homens em seus mundos. O “bacana” do asfalto, e seu revés, o “vagabundo” ou “malandro” da favela, cada um vivendo sua realidade, pois “além das muralhas, o mundo é proibido, da “perdição”, caótico e distante da fraternidade que pode ser sentida no mundo vivido” 61

(MELLO, 1991), sentimento compartilhado pelas comunidades faveladas e também pelos mangueirenses. Mangueira Estou aqui na plataforma Da estação primeira O morro veio me chamar De terno branco E chapéu de palha Vou me apresentar À minha nova parceira (majestosa) Mandei subir o piano Pra Mangueira A minha música não é de Levantar poeira Mas pode entrar no barracão Onde a cabrocha pendura a saia No amanhecer da quarta-feira Mangueira, Estação Primeira de Mangueira. (Piano na Mangueira – Chico Buarque e Antônio Carlos Jobim, 1991)

O compositor e maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927 – 1994) nasceu na cidade do Rio de Janeiro, no bairro da Tijuca. Filho de Jorge de Oliveira Jobim e de Nilza Brasileiro de Almeida mudou-se para Ipanema em 1931. Depois da morte prematura do pai, sua mãe casou-se com Celso Frota Pessoa, que lhe deu muito incentivo para a vida musical, chegando a lhe presentear com um piano. Iniciou seus estudos de música em 1941, com aulas de piano com o professor Hans Joachim Koellreuter. Estudou, ainda, com Lúcia Branco, Tomás Terán, Leo Peracchi e Alceu Bocchino. Cursou a Faculdade de Arquitetura, chegando a trabalhar em um escritório, por um curto período. No início de sua carreira, trabalhou como pianista em várias casas noturnas cariocas. O primeiro registro fonográfico de uma composição de sua autoria ocorreu em 1953, quando sua canção "Incerteza" (parceria com Newton Mendonça) foi lançada pela gravadora Sinter. Em 1956, foi apresentado a Vinicius de Moraes, que viria a se tornar seu parceiro mais importante. Suas músicas como Garota de Ipanema atingiram o topo do hit parade americano e o LP “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim” consagrou Tom Jobim no repertório internacional. Com sólida produção musical e reconhecido internacionalmente, faleceu no dia 8 de dezembro de 1994, aos 67 anos de idade, em Nova York, no Hospital Mount Sinai (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIM, 2001-2010). Em “Piano na Mangueira”, em parceria com Chico Buarque, o abismo social e espacial que separam os dois compositores, moradores de bairros nobres da zona 62

sul carioca e o Morro de Mangueira é simbolicamente vencido. Jobim, merecidamente havia sido homenageado com um enredo em sua honra o que motivou-o a escrever uma música conectando dois mundos do Rio de Janeiro. Nos versos da canção, Tom Jobim e Chico Buarque desembarcam na estação ferroviária da Central do Brasil e pedem, cordialmente, para adentrar no rico universo cultural mangueirense “...Mangueira/ estou aqui na plataforma/ da estação primeira/ o morro veio me chamar...” A formalidade e solenidade do evento pede, inclusive, indumentária apropriada “...de terno branco/ e chapéu de palha/ vou me apresentar/ à minha nova parceira (majestosa)...” Os compositores, de reconhecido talento musical e prestígio internacional, se rendem e reverenciam a criatividade e a genialidade dos sambistas do morro “...mandei subir o piano/ pra Mangueira/ a minha música não é de/ levantar poeira/ mas pode entrar no barracão...”, confluindo a batida sofisticada do samba da zona sul com o rufar dos tambores da verde rosa de Cartola, Nélson Cavaquinho, Dona Neuma, Dona Zica, Tom Jobim e “Chico Buarque da Mangueira”. No Rio de lá Luxo e riqueza No Rio de cá Lixo e pobreza Frequentei o palácio imperial Critiquei a elite no jornal Desejei liberdade 500 anos Brasil E a raça negra não viu O clarão da igualdade Fazer o negro respirar felicidade Sonho ou realidade? Uma dádiva do céu (do céu, do céu) Vi no morro da Mangueira Sambar de porta-bandeira A Princesa Isabel. (Dom Obá II Rei dos esfarrapados, príncipe do povo - Marcelo D’Aguiã, Bizuca, Gilson Bernini e Valter Veneno, 2000)

Com “Dom Obá II Rei dos esfarrapados, príncipe do povo”, o quarteto de compositores Marcelo D‟Aguiã, Bizuca, Gilson Bernini e Valter Veneno conduzem mais uma vez para o desfile do carnaval carioca um samba-enredo que discute a segregação sócio-espacial denunciada pelos autores já nos primeiros versos da composição “...no Rio de lá/ luxo e riqueza / no Rio de cá/ lixo e pobreza...”. Em meio aos quinhentos anos de descobrimento do Brasil, os sambistas discutem também as muralhas levantadas pelo racismo que ainda excluem e dificultam a ascensão social da população negra em nossa sociedade “...desejei 63

liberdade/ 500 anos Brasil/ e a raça negra não viu/ o clarão da igualdade/ fazer o negro respirar felicidade...” O samba assinado por Marcelo D‟Aguiã, Bizuca, Gilson Bernini e Valter Veneno, vale repetir, destaca a importância de personalidades negras pouco lembradas pela história oficial celebrando a memória de Cândido da Fonseca Galvão (1845 - 1890), o Dom Obá II D`África, ou simplesmente Dom Obá. Quando da Proclamação da República, Dom Obá organizou um movimento com os negros da Praça Onze que correram para apoiar a Monarquia em detrimento da positivista ordem que se impunha em solo brasileiro. Seu nome hoje está imortalizado em um logradouro na Praça da Bandeira, bairro próximo a área central da cidade (LESSA, 2000, p.174). Mais adiante, em meio a devaneios, os autores vislumbram a demolição dos muros que excluem toda uma população negra (parte dela residente nos morros cariocas) na comunidade da Mangueira, bem como a alegria e o congraçamento emanados pela sua agremiação carnavalesca “...sonho ou realidade?/ uma dádiva do céu (do céu, do céu) / vi no morro da Mangueira/ sambar de porta-bandeira / a Princesa Isabel...”, mesclando em sonho a presença da Redentora sambando garbosamente com o pavilhão da escola verde e rosa.

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3. MANGUEIRA TEU CENÁRIO É UMA BELEZA E DE EXPRESSIVA RIQUEZA SIMBÓLICA

Após a análise das letras de samba enredo anteriormente executadas, buscaremos nesta seção ampliar a discussão a respeito da dimensão simbólica da comunidade mangueirense na urbe carioca. Tentaremos mostrar como esta dimensão simbólica foi construída e se confunde com a própria construção da identidade do “ser” carioca. Posteriormente, citaremos alguns exemplos de projetos de inserção social da comunidade à cidade em curso que acreditamos terem sido viáveis pelo fato desta dimensão simbólica da comunidade no universo carioca. Nos últimos anos, a análise da dimensão simbólica na agenda de pesquisas sobre o espaço e os lugares entre os geógrafos tem sido cada vez maior. Este fato pode ser explicado como resultado da influência de outras disciplinas sociais na Geografia que, se por um lado, ampliaram o leque de conceitos e temas a serem estudados por esta disciplina, provocaram uma discussão em torno da necessidade de repensar a nossa especificidade e novos campos de pesquisa, sob o risco de despossessão da noção de espaço e lugar para outras áreas das Ciências Sociais como a Economia, a Sociologia e a Arquitetura, onde estas noções têm assumido um papel cada vez mais central (BONNEMAISON, 2002). Milton Santos, por exemplo, em a Natureza do Espaço, discute a necessidade de um olhar além das formas “materiais” dos objetos na análise dos lugares, chamando a atenção para a importância da dimensão simbólica e de seus significados na organização do espaço. No âmbito da Geografia Cultural renovada, a contribuição dos chamados geógrafos tropicalistas franceses, como e Jean Gallais e Joël Bonnemaison, em torno deste tema, têm sido bastante fecundas. Bonnemaison, por exemplo, que durante muitos anos estudou sociedades tradicionais insulares no Pacífico, nos mostra a riqueza e complexidade envolvidas na organização do espaço destes povos. Segundo este autor, o espaço tradicionalmente estudado pelos geógrafos seria composto de três níveis: o estrutural ou objetivo, o espaço vivido e o espaço cultural. Estes três níveis emergem de uma única e mesma realidade, mas são estudados a partir de olhares, ações e métodos de pesquisa diferentes. Dos três níveis, o espaço mais estudado pelos geógrafos seria aquele das estruturas ou objetivo. Nesta perspectiva: 65

Cada sociedade ordenaria e estruturaria seu espaço de acordo com suas próprias finalidades, funções e nível tecnológico. Assim, adaptando-se a um meio natural preciso, e dentro de uma determinada configuração espacial, as sociedades interpretam e produzem seu espaço. Daí resultariam regiões, pólos, eixos, fluxos, fixos, em suma, uma estrutura geográfica (BONNEMAISON, 2002, p.109).

Buscando um aprofundamento das noções de cultura, etnia e território, e por extensão, espaço cultural, o autor em tela nos conduz a uma perspectiva de um novo tipo de lugar, o dos geossímbolos: Um geossímbolo pode ser definido como um lugar, um itinerário, uma extensão que, por razões religiosas, políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e grupos (étnicos) assume uma dimensão simbólica que os fortalece em sua identidade. (BONNEMAISON, 2002, p.109).

Desta forma, o espaço cultural seria geossimbólico, carregado de afetividade e de significações; “em sua expressão mais forte torna-se território-santuário, isto é, um espaço de comunhão com um conjunto de signos e valores” (BONNEMAISON, 2002, p.111). Em outras palavras, o referido autor afirma que existe uma relação muito profunda, carregada de sentimentos entre um povo ou grupo social e seu território, de uma tal forma que a sobrevivência de um está intimamente ligada a manutenção do outro, pois a cultura e suas referências simbólicas (ou geossímbolos) destes povos ou grupos sociais se fortalecem por estarem encarnadas no lugar. Embora as reflexões de Bonnemaison partam de um contexto bem particular (como citado anteriormente) acreditamos que a noção de geossímbolo e sua aplicação para a leitura de como os grupos sociais interpretam e organizam os lugares que habitam possa ser transportada para meios urbanos e industriais como a cidade do Rio de Janeiro e, particularmente, para a comunidade mangueirense. O orgulho e o sentido de pertencimento dos moradores do morro à “Nação Mangueirense”, que com sua rica produção cultural extrapola os limites do morro. Pode ser entendido pela produção destes geossímbolos, reconhecidos e celebrados entre um grande número de simpatizantes de outras áreas (bairros) e estratos sociais, além de estrangeiros de passagem pela cidade, como a Quadra do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, o “Palácio do Samba”, que “ferve” nos meses que antecede o carnaval oficial do Rio de Janeiro. Acreditamos que esta noção possa ser estendida para outras formas existentes na paisagem da comunidade (como a Vila Olímpica) que ao reproduzirem e propagarem o verde e rosa, cores da escola de samba, contribuem para o 66

fortalecimento da identidade mangueirense. Entretanto, entendemos que o rico acervo de composições de seus sambistas da comunidade ou de simpatizantes da mesma, nas mentes e corações de uma legião de fãs, sobre o lugar vivido de seus habitantes, se constitua em um elemento relevante e representativo para a compreensão da Mangueira como um geossímbolo. Da mesma forma que Bonnemaison, Tuan (1983) também discute a importância dos símbolos na construção da identidade dos lugares e dos grupos sociais que os habitam. Segundo este autor, um símbolo pode ser definido como a representação de um todo e meio de visibilidade de um lugar. A cidade, na opinião de Tuan, seria um símbolo por excelência, pois o mundo vivido realmente experienciado pelos indivíduos e grupos sociais se resumiria a um restrito conjunto de lugares (como os lugares de moradia, trabalho e lazer) e os trajetos que os conectam. Assim, a afeição por lugares de escalas mais amplas, como a cidade, a região ou a pátria, passaria pela intermediação de símbolos concebidos de grande visibilidade ou não, como templos, cemitérios, santuários, monumentos ou simplesmente pela sensação de segurança ou tranquilidade (ou mesmo de aversão e distanciamento ou concernentes à topoindiferença). Seria oportuno perguntar então se, em uma grande metrópole como o Rio de Janeiro, é possível haver a apropriação de símbolos reconhecidos por indivíduos e grupos sociais pelo poder oficial visando uma legitimação ou reafirmação de suas políticas na cidade? Por outro ângulo, de que forma símbolos oficias podem ser usados como veículos de ação do poder público no espaço urbano e como a população reage a estas iniciativas? Mello (2008) nos mostra, por exemplo, como o governo do Estado e a Prefeitura do Rio de Janeiro usam símbolos de grande querência da cidade como o Corcovado, os Arcos da Lapa, o Pão de Açúcar, as pedras portuguesas do calçadão de Copacabana, entre outros, para transmitirem e legitimarem sua importância e um passado de glórias, usando como recurso as imagens destes e outros símbolos da cidade em cartazes afixados em bancas de jornal e estações de metrô. Entretanto, como mais adiante discute o referido autor, os indivíduos não assimilam passivamente os símbolos impostos oficialmente, ao contrário, dialogam com estes, como no caso da desconcertante nomenclatura dos edifícios modernos da chamada Cidade Nova, porção periférica da área central da cidade, (re)construída a partir dos anos sessenta do século vinte para abrigar órgãos da Prefeitura, escritórios e 67

agências bancárias, onde o carioca, com troça, graça e criatividade, continua a cultuar a memória do lugar, antiga zona de prostituição (MELLO, 2008). Atualmente o samba carioca e os lugares de sua difusão, alguns morros e bairros suburbanos, são reconhecidos não apenas como um ou outro símbolo da cidade do Rio de Janeiro, mas de todo o país. Como um ritmo até então marginalizado até as primeiras décadas do século vinte alcançou tal condição? Como a difusão deste ritmo e sua exaltação máxima no carnaval carioca criaram lugares de grande querência e aderência locais, regionais, nacionais e até mesmo internacionais, como o morro da Mangueira, dentro da urbe carioca? Carlos Lessa (2000) em O Rio de Janeiro de Todos os Brasis nos aponta que o samba, seus compositores e agremiações carnavalescas constituíram importantes fatores na construção da imagem da cidade do Rio de Janeiro e do personagem carioca ao longo dos chamados “anos dourados”, as décadas entre os anos de 1920 e 1960, que, no entender do economista Lessa, representaram um período de grande prosperidade e de acumulação de prestígio onde “a cidade [ao longo destes anos] aperfeiçoou continuamente os equipamentos urbanos, preservando um padrão de ponta em relação ao resto do país e incorporando com presteza as inovações urbanas das sociedades mais avançadas” (LESSA, 2000, p.237), mesmo com o processo de industrialização nacional que se estruturava se implantando em São Paulo, por exemplo. Em suma, os anos dourados marcariam um movimento de apropriação da paisagem pela cidade visando a sua glorificação, incorporando “maravilhas construídas” como o Cristo Redentor, no morro do Corcovado, a elipse de Copacabana e o estádio do Maracanã, formas que comporiam um cenário magnífico de cartão-postal. O carioca, principal “ator” deste “palco”, é um personagem que começa a ser construído após a Primeira Guerra Mundial, como um produto conjugado dos seguintes fatores: a ação do Estado (durante a República Velha e nos primeiros anos do Estado Novo) e da elite intelectual, o resgate e a exaltação da “cordialidade” brasileira, aqui recontextualizado e absorvido de maneira literal e auto-elogiativa, resultantes de sucessivos êxitos diplomáticos no exterior, noção que mais tarde foi facilmente transportada para toda população e a valorização dos tipos regionais como o gaúcho, o sertanejo, o bandeirante, entre outros, que buscavam, através do olhar dos romancistas assumir a especificidade do povo brasileiro, “e que encontrariam no carioca sua síntese, uma espécie de heterônimo geral destes tipos 68

regionais, que ao se explicitarem assumiriam as virtudes e potencialidades do país” (LESSA, 2000, p.262). Em suma: Ao buscar o povo e ao orientar-se à prospecção em busca, no popular, do paradigma de brasilidade, o olhar voltava-se, naturalmente, para o Rio. O cenário magnífico de cartão-postal estava construído. Sua animação no “palco” exigiria a inclusão de sua gente. Era necessário povoar o imaginário do Rio com o carioca, visto agora como único e bem distante de qualquer simulacro europeu (LESSA, 200, p. 261).

Desta forma, prossegue o autor: O carioca seria um estereótipo, e como todo estereótipo é simplório, foi concebido como alguém que escorregaria do samba e para o samba; em princípio amável, sensual, sem agressividade, não estressado, levemente irônico, que teria o privilégio supremo de desfrutar da cidade e do permanente convívio com o conjunto de cariocas. A cidade [do Rio de Janeiro] seria o espaço da tolerância e ausência de preconceito racial e religioso, e estaria vocacionada para o permanente aperfeiçoamento da cordialidade (LESSA, 2000, p. 264 – 265).

Ideia que, da mesma maneira, contribuiria para anular no plano simbólico a segregação sócio-espacial, que durante os “anos dourados” se consolidava no espaço urbano carioca, com o adensamento das favelas. Além disso, o carioca cordial e aberto a todas as influências reforçaria a idéia de democracia racial brasileira ao repudiar o “cientificismo” da superioridade da “raça pura”, ou seja, a fatalidade da não civilização nos trópicos devido à mestiçagem (LESSA, 2000). Com o enfraquecimento das teorias racistas no país, parte da elite intelectual e o Estado ingressam em um processo de trocas e de valorização da cultura popular no Rio, e as músicas e a festa do carnaval foram dimensões oficializadas. O contato entre compositores e músicos de diferentes origens sociais como Cartola e e, mais tarde, entre aquele e Heitor Villa-Lobos, é sintomático. Além disso: O Jornal dos Esportes lançou, no início dos anos 1930 os desfiles. O prefeito Pedro Ernesto incorporou as escolas de samba ao carnaval oficial da cidade, em 1935, quando desfilaram 25 das 28 integrantes da União de Escolas de Samba. A União, desde 1934, estabelecia que os enredos teriam de ser sobre temas nacionais. O rádio [em especial a rádio Nacional] intensifica a difusão das composições dos artistas populares. Nascem ídolos nacionais. O Estado exalta o Rio popular como laboratório musical e cênico: trabalha a idéia do Rio com gente linda, morena, cordial e alegre. Tudo isso será um projeto oficial. Esse significado será assumido pelo imaginário nacional e objeto de um programa intencional de construção e difusão de imagem. Ao declarar guerra ao Eixo a partir 1942, ocorre uma grande interação entre a “nativização” dos enredos e composições e a teoria nativista, que valorizou continuamente samba e escola. Em 1946, há uma explosão de patriotismo com o desfile do carnaval da vitória contra o Eixo. O governo Dutra superimpôs, nos anos subsequentes, temas nacionais para evitar que o “comunismo internacional” lançasse mão do 69

desfile como meio de influenciar a população. A proibição do jogo atrofiou e desgastou o prestígio do desfile das Grandes Sociedades e, a partir de 1947, a Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro passou a ter o controle estrito dos desfiles (LESSA, 2000, p. 271 -272).

No plano urbano, o crescimento da população pobre da cidade dá visibilidade a favela na paisagem. Os desfiles das escolas de samba, cada vez mais populares, colocam o povo da favela no centro do espetáculo. A visão romantizada e idílica da favela trazida para a cidade por meio de seus compositores e então apropriada pela população da “cidade moderna”, desta forma, “o samba passa a ser o hino da “cordialidade” carioca [e por extensão nacional] e ninguém estaria autorizado a desconhecê-lo” (LESSA, 2000, p. 272 -273). Nelson da Nobrega Fernandes, ao analisar a evolução e a consolidação das escolas de samba cariocas em “Escolas de samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados: Rio de Janeiro, 1928-1949” nos aponta que o samba e a trajetória das estão nascentes agremiações carnavalescas da cidade não devem ser entendidos como meros mecanismos do Estado e da elite nacional visando a “domesticação das massas” ou como um meio que contribuiria para a constituição da democracia racial (FERNANDES, 2001). As escolas de samba, definidas pelo autor como “um dos maiores espetáculos festivos da modernidade” e seus compositores, seriam “uma instituição cultural popular inventada e organizada por grupos sociais das favelas, subúrbios e bairros populares do Rio de Janeiro no final da década de 1920” (FERNANDES, 2001, p.17). Antes da constituição das primeiras agremiações carnavalescas, o carnaval carioca já era reconhecido internacionalmente e dominado por manifestações como as grandes sociedades e corsos, concebidos e organizados pela elite da capital do Brasil. Desta forma, a grande adesão da população a esta nova forma de expressão cultural seria resultado do talento e da criatividade de seus principais compositores como Ismael Silva, Cartola, Paulo da Portela, entre outros, fenômeno entendido pelo autor como um caso típico de “invenção de tradição”, noção elaborada por Hobsbawm (1984) e que no referido trabalho é analisada a partir de princípios sobre dinâmica social da festa expostos por Villarroya (1992). Fernandes (2001, p.17) nos informa ainda que: Do ponto de vista da geografia cultural desenvolvida por Glacken (1996), as instituições que cultivam a música e outras expressões artísticas sempre foram importantes instrumentos para as relações entre o homem e seu meio ambiente, principalmente quando este último se mostra hostil, porque 70

através de tais instituições culturais os grupos sociais podem aprofundar a sua coesão, criar identidades e reinterpretar suas vidas, seus espaços vividos, o mundo e o seu próprio lugar no mundo. Nos subúrbios e favelas do Rio de Janeiro, as escolas de samba evidenciam as possibilidades de tal interpretação sobre os homens e o meio ambiente, já que através delas estas comunidades segregadas se aglutinaram, ganharam as suas próprias vozes e criaram uma expressão festiva de tal potência que, ao menos no campo simbólico, o que nunca é pouco, conquistaram o direito à cidade, num processo em que o samba acabará por ser confundido como uma das representações mais clássicas desta cidade e da nação.

Como citado anteriormente, as primeiras escolas de samba cariocas, como a Mangueira, ao serem fundadas, não encontraram uma cena festiva vazia ou desocupada, esperando para ser preenchida. Os ranchos, por exemplo, “eram capazes de basear suas exibições e desfiles espetaculares em enredos que reproduziam trechos de óperas clássicas” (FERNANDES, 2001, p.17). A posição de destaque alcançada pelas agremiações carnavalescas, deslocando os ranchos, corsos e as grandes sociedades, pode ser explicada por uma série de elementos inovadores criados por estas agremiações, entre eles: a adoção de um conjunto instrumental de percussão introduzindo outros instrumentos até então novos ou desconhecidos (como o surdo e a cuíca) em substituição aos instrumentos de sopro, um cortejo capaz de desfilar executando o samba e a obrigatoriedade da ala das baianas, elementos que foram “superpostos a outros herdados dos ranchos como o enredo, o mestre-sala e a porta bandeira, as alegorias e a comissão de frente” plasmando o que Nobrega classificou como uma das “ultimas tradições inventadas no carnaval carioca” (FERNANDES, 2001, p.53). Entretanto, possivelmente a grande inovação trazida pelas escolas de samba tenha sido o gênero musical samba moderno. Ritmo urbano, nascido na “pequena África” da Praça Onze, o samba, uma mistura de influências africanas com ritmos europeus como a polca, subiu o morro da Mangueira por intermédio de um jongueiro e sambista que morava em Madureira, Mano Elói (FERNANDES, 2001), e encontrou um de seus grandes representantes, Angenor de Oliveira, ou Cartola, considerado por diversos músicos e críticos como um dos maiores sambistas da história da música brasileira. Cartola viveu quase toda a sua vida no morro e junto com outros moradores e simpatizantes, como José Gomes da Costa, mais conhecido como Zé Espinguela, pai de santo, jornalista e sambista, morador do bairro do Engenho de Dentro, fundou a Estação Primeira de Mangueira na casa de Euclides Roberto dos Santos, o seu Euclides, na Travessa Saião Lobato 21, bloco que mais tarde daria 71

origem ao Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Estavam presentes na ocasião além de Zé Espinguela, Saturnino Gonçalves (pai de Dona Neuma), Marcelino, o “Massau”, Pedro Caim e Abelardo Bolinha (Vianna, 2004). As cores verde e rosa foram retiradas do rancho “Arrepiados”, organizado pelos operários da Fábrica de Tecidos Aliança, em Laranjeiras, e frequentado por Cartola em sua infância (VIANNA, 2004). A data de fundação da Estação Primeira, uma das primeiras escolas de samba da cidade, é tema de controvérsias. Fernandes (2001) citando Cabral (1974), com base na versão oficial da escola e de compositores como o próprio Cartola, afirma que os: Papeis timbrados da Estação Primeira indicam que a escola foi fundada em 30 de abril de 1928. O que é errado, pois se fosse certo a Estação Primeira de Mangueira teria sido a primeira escola de samba, pois a Deixa Falar só foi fundada em agosto de 1928 (FERNADES, 2001, p. 74).

A controvérsia é minimizada pelo próprio autor, visto que até 1934 a Estação Primeira de Mangueira e a Deixa Falar eram chamadas de blocos e Cartola, em um samba reconhece a primazia do Estácio na história das escolas de samba. Assim, a Deixa Falar pode ter sido fundada alguns meses depois da Mangueira, sem deixar de ser o grupo que inventou o termo e pela primeira vez se assumiu e ostentou o título de escola de samba (FERNANDES, 2001). Outro aspecto sobre a origem da Estação Primeira de Mangueira é remete justamente a este bloco, e mais tarde escola de samba, em seus primeiros anos, quando disputava o papel de representar o morro com outros blocos, como o Unidos da Mangueira, o da Tia Fé, da Tia Tomázia, do Mestre Candinho e o mais famoso de todos, o Bloco dos Arengueiros, fundado pelo próprio Cartola e por Carlos Cachaça. Esta diversidade de blocos no morro se explica pelas várias comunidades ou “bairros” ali existentes como Candelária, Joaquina, Vacaria, Olaria, Pindura Saia e Santo Antônio, cujos moradores, oriundos de outras partes da cidade, como do Morro de Santo Antônio após o incêndio que desabrigou várias famílias, foram se instalado. Em suas bagagens, trouxeram vários ritmos musicais como como o xaxado e o calango. Santo Antônio, por exemplo, revelou talentos como Nelson Sargento e Padeirinho, compositores magueirenses consagrados. Aos poucos, todos os outros blocos do morro foram se agregando em torno da Estação Primeira, devido principalmente a “militância” de Cartola e Carlos (Moreira de Castro) 72

Cachaça, um dos moradores mais antigos da Mangueira e amigo de Cartola. Nos anos 1930 e 1940, a Mangueira já figurava no rol das "grandes" escolas de samba da cidade. Desde então, no rastro de seus dezessete títulos (nos anos de 1932, 1933, 1934, 1940, 1949 (União Geral das Escolas de Samba do Brasil), 1950 (União Cívica de Escolas de Samba), 1954, 1960, 1961, 1967, 1968, 1973, 1984, 1986, 1987, 1998 e 2002) e um super campeonato (1984), além de várias premiações como o Estandarte de Ouro (total de 68 prêmios), o morro da Mangueira, por intermédio da rica produção cultural de seus compositores e de sua agremiação carnavalesca, se constituiu em mais um símbolo da cidade do Rio de Janeiro (G.R.E.S. ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA, 2009?). Acreditamos que Kong (2009), ao propor o uso da teoria dos “circuitos de culturas” de Johnson (1986) para investigar o papel da música como meio de comunição de sentidos, pode nos fornecer uma via de entendimento de como a produção musical dos compositores mangueirenses (sambas-enredo apresentados pela agremiação carnavalesca ou sambas de terreiro, por exemplo) contribuiu para esta dimensão simbólica: Dentro desse quadro de referência, defende-se que os produtores codificam em formas culturais (como a música) [ e os desfiles] seus significados preferidos. O texto resultante é então lido por uma audiência, às vezes de forma concordante, outras vezes discordante dos significados codificados. Esses significados são incorporados em culturas e relações socias vividas [no interior da urbe carioca]; circuitos de retroalimentação podem então fornecer material para a produção de novos textos ou provocar a modificação dos textos existentes. Em outras palavras, os significados são transformados a cada estágio, refletindo os contextos de produção e consumo, assim como fatores tais quais gênero, classe, etnia, religião [ e condição sócio-espacial] dos envolvidos (KONG, 2009, p. 142 – 143).

Um dos resultados deste diálogo entre morro e cidade, dentro deste “circuito de culturas” é a alusão a um mundo “mítico”, “sagrado”, criado e consolidado ao longo dos anos pela rica produção cultural mangueirense e pelo prestígio de sua agremiação carnavalesca. Em nosso entendimento, esta dimensão simbólica tem se traduzido também em algumas melhorias materiais para seus moradores. A parceria firmada entre a G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira e a Xerox do Brasil, em 1987, criando na comunidade uma Vila Olímpica, oferecendo treinamento esportivo a crianças e jovens da comunidade, proporcionou o desdobramento de outras iniciativas que vem melhorando a qualidade de vida dos moradores da encosta. A comunidade conta hoje com uma sólida militância nas áreas de educação, saúde e 73

capacitação profissional através do Programa Social da Mangueira (PSM). Este programa vem conseguindo através de parcerias com o poder público, com a iniciativa privada e com personalidades trazer para o morro novas oportunidades de inserção à cidade formal. Assim, em 1988 o Programa Social da Mangueira inaugura o CAMP Mangueira, projeto baseado no Círculo de Amigos do Menino Patrulheiro criado em 1962 e, um ano depois, junto com a cantora Alcione e com a empresa de saúde Golden Cross, inaugura a escola de samba Mangueira do Amanhã e um moderno posto de saúde que passa a atender os atletas da Vila Olímpica e a comunidade. Quatro anos depois, já reconhecido internacionalmente, inclusive vencedor do prêmio concedido pela BBC de Londres de melhor projeto social da América do Sul, o PSM consegue que o governo do Estado construa, no complexo olímpico, uma escola nos moldes do Centro Integrado de Educação Popular (CIEP), mas administrada por professores da Mangueira e com duas praças de esporte, piscina semiolímpica, sala de dança, posto de saúde e centro de informática. Dentro do CIEP Nação Mangueirense foi instalado um ateliê de costura e surgiu um espaço para um novo projeto, o da orquestra afro-brasileira, composta por músicos da bateria da Estação Primeira. Em seguida, o centro acolhe o Clube Escolar, programa de lazer educativo que atende a crianças das escolas da rede pública próximas ao morro. Em 1996, no barracão da Mangueira, na Praça XV de Novembro, no centro do Rio de Janeiro, é criado o Projeto Barracão Cultural, onde crianças e idosos que vivem nas ruas desenvolvem atividades na oficina de carnaval. Um ano depois, é implantado o projeto de balé clássico Dançando pra não dançar. Em 1998, numa parceria com o Comitê para Democratização da Informática (CDI), o PSM inaugura o curso profissionalizante de informática. Ainda nesse ano, começaram a funcionar as oficinas de capacitação profissional em estética e o convênio entre a Universidade Castelo Branco, que garantiu à comunidade mangueirense atendimento nas áreas de fisioterapia, educação física, direito e serviço social. Nos últimos cinco anos, o Programa Social da Mangueira ganhou novos parceiros, o que possibilitou a ampliação dos projetos existentes e a implantação de vários outros. O CAMP Mangueira agora oferece estágios para seus alunos. O Posto de Saúde tem serviço odontológico e pediatria. Nesse período, foram criados projetos para a alfabetização de adultos, para o atendimento a crianças portadoras de deficiência e para a terceira 74

idade. Além do Faz Tudo, que prepara os jovens para o ingresso rápido na construção civil. Mais recentemente, em uma nova ação da Xerox do Brasil, desta vez em parceria com a Petrobrás, é fundado na comunidade no ano de 2001, o Centro Cultural Cartola, uma organização sem fins lucrativos reunindo a mais variada gama de pessoas devotadas à causa da cultura brasileira e do desenvolvimento social. Além de promover iniciativas que visem a proteger as nossas tradições e preservar a memória de nossas manifestações culturais, o centro procura ainda desenvolver projetos de cunho social, visando combater a pobreza, a marginalização da população carente, a exclusão social e a falta de esperança no futuro. Atualmente, o centro conta somente com o apoio oficial, por intermédio do Ministério da Cultura e da Petrobrás. Outro projeto que merece destaque é a Associação Meninas (os) e Mulheres do Morro, sediada na Candelária, uma sub-localidade do complexo da Mangueira. Esta ONG fundada por mulheres com formação em educação social, busca transformar o quadro social da comunidade tendo como público-alvo crianças, adolescentes e mulheres residentes no próprio morro. A associação se propõe a criar um espaço de discussão de questões latentes no cotidiano dessas pessoas, valorizar a autoestima, a partir de intervenções nas práticas características do campo da cultura e sob esse prisma, possibilitar a reflexão da comunidade acerca dos bens materiais e simbólicos que envolvem o seu cotidiano e, seguindo essa linha de pensamento, o exercício da cidadania. A Associação Meninas (os) e Mulheres do Morro é uma organização sem fins lucrativos, por isso conta com recursos tirados da venda de produtos no bazar e com a acessoria do Grupo CAC e do Instituto C&A. O volume e a abrangência destas iniciativas, criadas e orientadas por moradores para moradores da favela, enchem de orgulho e despertam o sentimento etnocêntrico da nação mangueirense reafirmando seus laços topofílicos com o morro, como o melhor lugar do mundo, o que foi evidenciado em alguns versos focalizados anteriormente. É bem possível que a primazia em relação a outras favelas da cidade na alocação de recursos e esforços para o desenvolvimento de projetos desportivos e educacionais ou na melhoria de infraestrutura física, talvez não fossem alcançados pela via formal. Ou seja, mesmo dentro da inoperância e negligência do poder público, mas no compasso do surdo e no rufar de seus tambores, a Mangueira forjou uma imagem, carregada de simbolismos, conhecida e 75

(re) valorizada a cada visita ilustre, seja o homem mais poderoso do Planeta, Presidente Bill Clinton, ou o Rei Pelé do futebol, seja a Rainha Hortência do basquete ou o ator estadunidense Morgan Freeman, entre outros ou a cada prêmio recebido (Certificado de Excelência concedido pela Casa Branca e pela BBC de Londres).

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na única edição do “Almanaque Suburbano”, publicado em abril de 1941, os leitores são convidados a conhecer os subúrbios cariocas a partir de um passeio de trem, da Central do Brasil até a estação limítrofe do então Distrito Federal. Ao longo do percurso, são observadas notáveis mudanças nos subúrbios como o aumento da população, a construção de ótimas residências, os “palacetes”, e a formação de um comércio ainda rarefeito. Também são assinaladas características peculiares aos bairros a cada parada do comboio: São Cristóvão, o “bairro imperial” e mais adiante, Mangueira, a “estação primeira”, a “terra do samba, levantando poeira”. No ano da publicação do almanaque já haviam decorrido para a escola de samba da comunidade cerca de treze carnavais e a favela completava trinta e três anos de fundação, fato que não foi lembrando no passeio pelo nosso “cicerone”. Desta forma, ao longo desta pesquisa buscou-se alcançar dois objetivos. O primeiro, compreender outras dimensões da favela da Mangueira no âmbito da geografia humanística, utilizando como principal instrumento de análise letras de sambas compostos por moradores, frequentadores e simpatizantes. Em segundo lugar, mostrar como a rica produção cultural do morro, tendo a escola de samba Estação Primeira de Mangueira como principal agente, atuou para a diminuição de representações estigmatizadas e preconceituosas de seus moradores, inserindo-os na “cidade formal”, ou seja, derrubando os “muros do resguardo” entre a favela e o asfalto, se não na paisagem urbana, no imaginário coletivo. Em outras palavras, esperamos com este pequeno mergulho no rico universo mangueirense compreender como o samba pode desempenhar um papel dual, no entendimento do lugar Mangueira, ou seja, transitar entre o concebido, imagem vendida para além das fronteiras da comunidade e o mítico, reverenciado por sambistas e músicos de diversas áreas da cidade e níveis sociais, afora outros diversos ângulos deste mundo vivido. Como assinalado na canção “Sei Lá Mangueira” “...a beleza do lugar / para se entender tem que se achar / que a vida não é só isso que se vê / é um pouco mais...”. A fundação da escola Estação Primeira de Mangueira em abril de 1928 pelos “notáveis” da comunidade, foi um agente fundamental, neste processo de transformação do “espaço do pobre” em “lugar sacralizado pelo samba”, na medida em que, arrastando com sua aura a 77

favela da Mangueira deu voz e visibilidade social ao morro, o transformado em lugar mítico e “elitista” no mundo do samba e mais do que isso tornando um símbolo do Rio e de brasilidade. De acordo com Tuan (1980, 1983, 1998), o símbolo constitui a parte expressiva do todo. Neste particular, a Mangueira é representativa do Rio de Janeiro, em meio às suas batucadas contagiantes e empolgantes que versam sobre esta porção espacial da cidade. Tuan lembra igualmente, que o símbolo transcende a sua condição como tal. Nestas condições, cruzando o pensamento do geógrafo Yi- Fu Tuan e dos compositores Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho podemos cantar: “... a Mangueira é tão grande que nem cabe explicação...”. No entanto, o simbolismo de toda a sorte da Mangueira, prosseguindo no reaproveitamento dos versos dos citados compositores nos conduz aos seguintes versos: “... em Mangueira a poesia / no sobe e desce constante / anda descalça ensinado um modo novo da gente viver...” e mesmo de entender a sua complexidade simbólica.

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ANEXO A - Relação das músicas usadas nesta dissertação

(Por ordem crescente de composição ou gravação)

Morro de Mangueira (1926) Manoel Dias

Eu fui a um samba lá no morro da Mangueira Uma cabrocha me falou de tal maneira: Não vai fazer como fez o Claudionor Para sustentar família foi bancar o estivador. Não vai fazer como fez o Claudionor Para sustentar família foi bancar o estivador.

Ó cabrocha faladeira, Que tens tu com a minha vida? Vai procurar um trabalho E corta esta língua comprida Ó cabrocha faladeira, Que tens tu com a minha vida? Vai procurar um trabalho E corta esta língua comprida

Não tem água na Mangueira É pau pra virar É duro subir ladeira Para em seco namorar

Eu quero Nota (1930) Arthurzinho

Eu quero é nota Carinho e sossego Para viver descansado Cheio de alegria, meu bem Com uma cabrocha ao meu lado Eu queria ter dinheiro que fosse grande porção Eu comprova um automóvel Ia morar lá no Leblon Sou um triste operário 82

Não posso bancar barão Vou morar lá em Mangueira Num modesto barracão

Eu quero é nota Todo mundo acha graça De um pobre vagabundo Se a sorte fosse igual Ninguém ria neste mundo Eu desço de madrugada Enganando a moçada Que vou trabalhar Porém quando a fábrica apita Pego na minha marmita Vou me alimentar

Despedida de Mangueira (1940) Benedito Lacerda e Aldo Cabral

Em Mangueira Na hora da minha despedida Todo mundo chorou Todo mundo chorou Foi pra mim a maior emoção Da minha vida Porque em Mangueira O meu coração ficou

Quis falar aos amigos Que me abraçaram Os soluços porém Minha voz embargaram E os meus olhos Na minha tristeza sem fim No meu silêncio Falaram por mim

A maior emoção Que se tem nesta vida É a dor que assinala Uma triste partida E foi esta emoção Que eu também já senti 83

E nunca mais De Mangueira esqueci

Adeus Mangueira (1944) Zé Espinguela

Bem que eu quero expirar Mas existe um porém Trago a minha memória cansada. Esta triste melodia Serve de último adeus Adeus, escola de samba Adeus, Mangueira, adeus! Adeus,escola de samba adeus! Eu vou partir chorando Relembrando os versos meus Que mais cedo ou mais tarde É triste, é doloroso recordar Mas a orgia vai se acabar Mangueira, adeus

Onde é Que Estão os Tamborins (1947) Pedro Caetano

Mangueira, Onde é que estão os tamborins, ó nêga, Viver somente de cartaz não chega Põe as pastoras na avenida, Mangueira querida !

Antigamente havia grande escola, Lindos sambas do Cartola Um sucesso de Mangueira Mas hoje o silencio é profundo E por nada neste mundo Eu consigo ouvir mangueira !

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Palácio Encantado (1948) Jurandir e Irson Pinto

De palácio encantado é que chamo Meu barracão em Mangueira E essa vida que eu tanto amo Dedico à minha companheira Sempre em seus olhos tristonhos A me esperar em sonhos Eu me encontro em Mangueira

O meu palácio é de zinco coberto Quando não chove estrelas sem fim Vejo nos buracos no teto aberto Faz parecer que o céu é um jardim E pelos olhos da minha querida Creio que a vida talhou-a pra mim Eu sou feliz por viver onde vivo Pois em Mangueira a vida é assim

Mundo de zinco (1952) Antônio Nássara e Wilson Batista

Aquele mundo de zinco Que é Mangueira Desperta com o apito do trem Uma cabrocha, uma estrela Um barracão de madeira Qualquer malandro em Mangueira tem

Mangueira, fica pertinho do céu Mangueira, vai assistir o meu fim Mas deixo o nome na história O samba foi minha glória E sei que muita cabrocha Vai chorar por mim

Exaltação à Mangueira (1956) Enéas Brites da Silva e Aloísio Augusto da Costa.

Mangueira teu cenário é uma beleza Que a natureza criou, ô...ô... 85

O morro com teus barracões de zinco, Quando amanhece, que esplendor, Todo o mundo te conhece ao longe, Pelo som teus tamborins E o rufar do teu tambor, Chegou, ô... ô... A mangueira chegou, ô... ô...

Ó Mangueira, teu passado de glória, Ficou gravado na história, É verde-Rosa a cor da tua bandeira, Pra mostrar a essa gente, Que o samba, é lá em Mangueira!

Pranto de poeta (1957) Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito

Em Mangueira, quando morre Um poeta, todos choram Vivo tranqüilo em Mangueira porque

Sei que alguém há de chorar quando eu morrer Mas o pranto em Mangueira é tão diferente É um pranto sem lenço que alegra a gente Hei de ter um alguém pra chorar por mim Através de um pandeiro ou de um tamborim

Carnaval de todos os tempos (1960) Helio Turco, Cicero e Pelado

Samba melodia divina Tu és mais empolgante Quando vens da colina Samba original és verdadeiro Orgulho do folclore brasileiro

O teu linear de vitórias Foi na Praça Onze de outrora Das lindas fantasias Que cenário multicor Das velhas batucadas E o saudoso Sinhô 86

Oh! Que reinado de orgia Onde o samba imperava Matizando alegrias

Rei momo e as escolas de samba Deram mais esplendor Ao nosso carnaval E o samba fascinante Ingressa no Municipal Sua epopéia triunfante Atingiu terras bem distantes

Não encontrando fronteiras O samba conquistou Platéias estrangeiras

Sei lá, Mangueira (1968) Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho

Mangueira teu cenário é uma beleza que a natureza criou Vista ssim do alto Mais parece um céu no chão Sei lá Em Mangueira a poesia Feito um mar se alastrou E a beleza do lugar Prá se entender Tem que se achar Que a vida não é só isso que se vê É um pouco mais Que os olhos não conseguem perceber E as mãos não ousam tocar E os pé recusam pisar Sei lá, não sei Sei lá, não sei não Não sei se toda a beleza De que lhes falo Sai tão somente do meu coração

Em Mangueira a poesia Num sobe-desce constante Anda descalço ensinando 87

Um novo jeito da gente viver De pensar, de sonhar, de sofrer Sei lá, não sei Sei lá, não sei não A Mangueira é tão grande Que nem cabe explicação

Alvorada (1968) Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho

Alvorada lá no morro que beleza Ninguém chora, não há tristeza Ninguém sente dissabor O sol colorindo É tão lindo, é tão lindo E a natureza sorrindo tingindo tingindo Você também me lembra a alvorada Quando chega iluminando Meus caminhos tão sem vida E o que me resta é bem pouco Quase nada de que ir assim Vagando numa estrada perdida Alvorada ...

Mangueira, minha madrinha querida - Tengo-tengo (1972) Zuzuca

Tengo-Tengo Santo Antônio, Chalé (bis) Minha gente, é muito samba no pé!

Em noite linda Em noite bela Viemos à avenida Desfilar em passarela O batizado será lembrado Pelo Salgueiro de agora Alô Laurindo, alô Viola Alô Mangueira de Cartola

Tengo-Tengo Santo Antônio, Chalé (bis) 88

Minha gente, é muito samba no pé!

Ô ô ô, oh meu Senhor Foi Mangueira (bis) Estação Primeira Que me batizou

Verde Que Te Quero Rosa (1977) Cartola e Dalmo Castelo

Verde como céu azul a esperança Branco como a cor da Paz ao se encontrar Rubro como o rosto fica junto a rosa mais querida É negra toda tristeza se há despedida na Avenida É negra toda tristeza desta vida

É branco o sorriso das crianças São verdes, os campos, as matas E o corpo das mulatas quando vestem Verde e rosa, é Mangueira É verde o mar que me banha a vida inteira

Verde que te quero Rosa (é a Mangueira) Rosa que te quero Verde (é a Mangueira) Verde que te quero Rosa (é a Mangueira) Rosa que te quero Verde (é a Mangueira)

Piano na Mangueira (1991) Chico Buarque e Tom Jobin

Mangueira, estou aqui na plataforma da Estação Primeira O morro veio me chamar De terno branco e chapéu de palha Vou me apresentar à minha nova parceira Já mandei subir o piano pra Mangueira A minha música não é de levantar poeira Mas pode entrar no barracão Onde a cabrocha pendura a saia No amanhecer da quarta-feira Mangueira, Estação Primeira de Mangueira

Estou aqui na plataforma da Estação Primeira 89

O morro veio me chamar De terno branco e chapéu de palha Vou me apresentar à minha nova parceira Já mandei subir o piano pra Mangueira

A minha música não é de levantar poeira Mas pode entrar no barracão Onde a cabrocha pendura a saia No amanhecer da quarta-feira Mangueira, Estação Primeira de Mangueira Mangueira,Mangueira, Mangueira,Mangueira...

Chão de esmeraldas (1997) Chico Buarque e Hermínio Bello de Carvalho

Me sinto pisando Um chão de esmeraldas Quando levo meu coração À Mangueira Sob uma chuva de rosas Meu sangue jorra das veias E tinge um tapete Pra ela sambar É a realeza dos bambas Que quer se mostrar Soberba, garbosa Minha escola é um catavento a girar É verde, é rosa Oh, abre alas pra Mangueira passar

Mangueira Chegou (1999) José Ramos)

Quando ouvir esta batida Foi Mangueira que chegou

A Escola que dá diploma ao sambista A Escola que envaidece o artista As cabrochas mangueirando nas cadeiras Abre ala laia, quem chegou foi Mangueira 90

A turma não crê em fracasso Mangueira vai mostrar que ainda é braço

Ô abre ala, deixa a Mangueira passar Ô abre ala eu quero ver balançar

Divino (1999) Noca da Portela e Toninho Nascimento

O samba sobe a Estação primeira Lembrando que Cartola Já pisou por esse chão

Deixando em cada grão dessa poeira As marcas invisíveis da paixão Com seu violão Na ultima escalada de Mangueira O samba se debruça e olha para trás E se pergunta onde se encontra o fim da ponta do eternidade Que não volta nunca mais

E a vida se fez verde e rosa E se transformou desde então Numa fé misteriosa que não tem definição É pranto, é reza, é cruz É canto, é riso, é luz É força que conduz alegre multidão É o sonho que se fez Surgiu da sua inspiração E o samba então subiu Ao céu pro ver, enfim, Seu nome divino bordado de aura e cetim

A mangueira não morreu (1999) Jorge Zagaia

A Mangueira não morreu Nem morrerá, isso não acontecerá Tem seu nome na história Mangueira, tu és um cenário coberto de glória

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Fala mangueira (1999) Mirabeau e Milton de Oliveira

Fala Mangueira, fala Mostra a força da sua tradição Com licença da Portela Favela da Mangueira mora no meu coração

Suas cabrochas gingando Seu tamborim repicando É monumental Estou falando da Mangueira A velha Mangueira tradicional

Salve a mangueira (1999) Quincas e Padeirinho

Minha Mangueira, minha Estação Primeira Estou com você, Mangueira, e você não pode parar Também sou Mangueira e defendo a sua bandeira E todos que são Mangueira tem o seu nome a zelar

Dom Obá II Rei dos esfarrapados, príncipe do povo (2000) Marcelo D’Aguiã, Bizuca, Gilson Bernini e Valter Veneno

Axé, mãe áfrica Berço da nação iorubá De onde herdei o sangue azul da realeza Sou guerreiro de Oyó Filho de orixás Vim da corte do sertão Pra defender a nossa pátria mãe gentil Sou “dom obá”, o príncipe do povo, Rei da ralé Nos meus delírios, um mundo novo Eu tenho fé

No rio de lá Luxo e riqueza No rio de cá Lixo e pobreza

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Frequentei o palácio imperial Critiquei a elite no jornal Desejei liberdade 500 anos de Brasil E a raça negra não viu O clarão da igualdade Fazer o negro respirar felicidade

Sonho ou realidade? Uma dádiva do céu (do céu, do céu) Vi no morro da mangueira Sambar de porta-bandeira A princesa Isabel

(Sem data de composição ou gravação localizada)

Que nem pimenta Cartola

É quente que nem pimenta Amarga que nem jiló Mulatinha faceira Vem morar em Mangueira Que aqui é melhor

Mulatinha faceira Vem morar em Mangueira Que aqui é melhor

E fiz por você o que pude Cartola

Todo o tempo que eu viver Só me fascina você, Mangueira Guerreei na juventude Fiz por você o que pude,

Mangueira Continuam nossas lutas, Podam-se os galhos, colhem-se as frutas E, outra vez se semeia E no fim desse labor 93

Surge outro compositor Com o mesmo sangue na veia