<<

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volumejaneiro/junho - 2011 23

ISSN: 1517-7599 Editorial

Este volume 23 de Per Musi - Revista Acadêmica de Música, juntamente com o volume 22, são volumes temáticos de- dicados ao estudo da música popular, uma das sub-áreas que mais tem crescido no meio acadêmico brasileiro, finalmente refletindo uma das mais fortes vocações musicais deste país. O grande número de textos selecionados – 38, incluindo três partituras inéditas - permitiu alguns agrupamentos temáticos (como o hibridismo na música popular brasileira), manifes- tações tradicionais (como o lundu, choro, samba, canções, bossa-nova, baião, repente, ragtime, jazz moderno e musicais) ou mais recentes (como o axé, o mangue beat, música infantil e a nova música instrumental brasileira) e personalidades referenciais (como Ernesto Nazareth, , K-Ximbinho, Gnattali, Guerra-Peixe, Tom Jobim, , Baden Powell, , Victor Assis Brasil e o grupo UAKTI).

O texto seminal do etnomusicólogo inglês Philip Tagg , em tradução de Fausto Borém, sobre o ensino da análise musical para iletrados em música, traz original e importante contribuição para inclusão do grande público de diletantes que fazem música no processo de compreendê-la e usufruí-la em níveis mais profundos do que o simples entretenimento.

Para tratar da nueva canción e das relações entre e liberade de expressão e censura durante a ditadura na , a musicóloga argentina Silvina Luz Mansilla apresenta um estudo focado na música Hermano composta e interpretada por seus conterrâneos, o compositor Carlos Guastavino, o poeta Hamlet Lima Quintana e a cantora Mercedes Sosa.

Leonardo Barreto Linhares e Fausto Borém revelam o hibridismo composicional e de práticas de performance entre dois gêneros populares - o baião brasileiro e o bebop norte-americano - na música Pro Zeca do saxofonista, compositor e arranjador Victor Assis Brasil.

A música Pro Zeca de Victor Assis Brasil é apresentada em uma edição de performance, que inclui a introdução, o tema e os improvisos da performance original do próprio compositor-instrumentista, a partir da transcrição de Leonardo Barreto Linhares e da edição de Leonardo Barreto Linhares e Fausto Borém.

Marco Túlio de Paula Pinto discute a influência estilísticas dothird stream, do jazz e da música brasileira no desenvol- vimento estilístico do saxofonista, compositor e arranjador Victor Assis Brasil, especialmente no seu período de formação nos Estados Unidos, na Berklee School of Music.

Carlos Palombini discute preconceito racial e poder no começo do século XX, a partir da gravação de The Laughing Song do cantor ex-escravo norte-americano George Washington Johnson e sua derivação brasileira na cançoneta Gargalhada (pega na chaleira) de Eduardo das Neves.

César Albino e Sonia R. Albano de Lima avaliam o papel da improvisação e da tradição oral na consolidação de dois gêneros populares nas Américas no começo do séulo XX - o ragtime norte-americano e o choro brasileiro - e suas opções por caminhos de tradição ou renovação.

Adriana Costa mergulha na história do surgimento do jazz na França e aborda práticas de performance do ragtime na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France e de suas estrelas mais reconhecidas: o violonista Django Reinhardt e o violinista Stephane Grappelli.

Per Musi traz uma partitura inédita de Tiger Rag, um dos mais conhecidos ragtimes da Original Dixieland Jazz Band, editada por Adriana Costa com base na gravação do Le Quintet du Hot Club de France, incluindo, além do tema, os solos improvisados de Django Reinhardt e Stephanne Grapelli.

Por meio de um estudo comparativo iconográfico e de gravações das obrasUm a zero e Segura ele, Nilton Antônio Mo- reira Júnior e Fausto Borém discutem a influência do ragtime no estilo composicional (elementos formais, harmônicos e motívicos) e nas práticas de performance (instrumentação, realização rítmica, divulgação junto ao público) do choro do compositor-intérprete Pixinguinha.

00 Editorial v23.indd 2 27/9/2010 12:17:52 Acácio Piedade propõe os conceitos de hibridismo homeostático – em que há uma fusão de musicalidades - e hibridismo contrastivo - em que há uma fricção de musicalidades – para ilustrar, em seguida, com exemplos de traços característicos da música brasileira que chama de tópicas “brejeiro”, época-de-ouro“ e “nordestina”.

Estudando o segundo movimento da Suíte Retratos para bandolim, cordas e regional de Radamés Gnattali, Luciano Chagas Lima revela reflexos rítmicos, melódicos e harmônicos da valsa Expansiva de Ernesto Nazareth nesta música erudito-popular escrita em sua homenagem.

Pablo Garcia da Costa e Beatriz Magalhães Castro discutem elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho a partir de uma leitura iconográfica de fotos e textos em capas de discos, cartazes e jornais no período de 1950 a 1960. As aná- lises revelam um jogo de negociações entre duas culturas e uma mediação entre tradição e inovação, como na ressigni- ficação de K-Ximbinho no contexto da inserção da cultura do jazz no Brasil.

Revisando a literatura sobre a carreira de Guerra-Peixe, Bruno Renato Lacerda descobre evidências de que, trabalhando como arranjador de orquestras de rádio, conseguiu se firmar profissionalmente na área e se aproximar da música popular, seja incorporando elementos populares nos seus processos criativos, seja atuando na formação de importantes nomes da música popular brasileira.

A partir do conceito de ordem musical de John Blacking e da observação de grupos da cena musical de Brasília, Ivaldo Gadelha de Lara Filho, Gabriela Tunes da Silva e Ricardo Dourado Freire analisam o contexto das rodas de choro.

Considerando as diferenças entre duas gerações na abordagem de improvisação no choro, Paula Veneziano Valente revela a preferência pela improvisação vertical por Pixinguinha e pela improvisação horizontal por K-Ximbinho.

Artur Andrés e Fausto Borém descrevem a trajetória do Uakti, grupo instrumental único por manter por mais de três décadas um sistema de produção musical autônomo e integrado em todos os sentidos criativos: luteria, composição, interpretação, arranjo e veiculação comercial de sua música.

Na seção Pega na Chaleira, apresentamos três resenhas. Maurilio Andrade Rocha nos guia pela coletânea Music, words and voice: a reader [Leituras sobre música, as palavras e a voz]. Organizada por Martin Clayton, este abrangente livro inclui trinta e cinco artigos e excertos escritos por autores desde o século dezoito até os dias de hoje e apresen- tados em cinco áreas temáticas: a fala e a canção, significado das palavras nas canções, o canto no contexto social, o canto em rituais sagrados ou profanos, a construção de narrativas nas canções. Rodrigo Cantos Savelli Gomes nos apresenta o livro César Guerra-Peixe: Estudos de Folclore e Música Popular Urbana, cujos 44 artigos e 4 esboços foram gerados pela pouco conhecida faceta etnomusicológica de um dos nossos maiores compositores, e minuciosamente escavados e organizados por Samuel Araújo, a partir de acervos do Diário de Pernambuco, da Revista Brasileira de Folclore e de jornais diversos. Gabriel Ferrão Moreira discorre sobre o livro Cavalo-Marinho pernambucano em que o etnomusicólogo norte-americano John Patrick Murphy discute a relação entre as práticas culturais e as relações de trabalho nas diferentes versões deste gênero nordestino.

Lembramos que todos os conteúdos e capas de Per Musi, desde janeiro de 2000 até o presente volume estão dis- poníveis para download ou impressão gratuitamente no site de Per Musi Online, no endereço www.musica.ufmg.br/ permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail [email protected].

Fausto Borém Fundador e Editor Científico dePer Musi

Book Per Musi 23.indb 3 22/9/2010 16:56:09 PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade e o debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião do Editor ou dos Corpos Editoriais. PER MUSI está indexada nas bases do Scielo, RILM Abstracts of Music Literature, The Music Index, EBSCO e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música). Fundador e Editor Científico Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte) Universidade Federal de Minas Gerais Corpo Editorial Internacional Reitor Clélio Campolina Diniz Aaron Williamon (Royal College of Music, Londres, Inglaterra) Vice-Reitora Rocksane de Carvalho Norton Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA) Pró-Reitor de Pós-Graduação Ricardo Santiago Gomez Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra) Pró-Reitora Adj. de Pós-Graduação Andréa Gazzinelli Correa de Oliveira Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA) Pró-Reitor de Pesquisa Renato Lima dos Santos Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Portugal) Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Canadá) Escola de Música da UFMG João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Portugal) Diretor Maurício Freire Garcia Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA) Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA) Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG Lucy Green (University of London, Institute of Education, Londres, Inglaterra) Coord. Sérgio Freire Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica) Sub-Coord. Flávio Barbeitas Melanie Plesch (University of Melbourne, Melbourne, Austrália) Sec. Geralda Martins Moreira Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra) Sec. Alan Antunes Gomes Silvina Luz Mansilla (Univ. Católica, Univ. de , Argentina) Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha) Planejamento e Produção Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA) Isabela Scarioli - Cedecom/UFMG Camila Rodrigues (estagiária) – Cedecom/UFMG Corpo Editorial no Brasil Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis) Projeto Gráfico Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas) Capa e miolo: Sérgio Lemos - Cedecom/UFMG André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte) Diagramação: Romero Morais - Cedecom/UFMG André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro) Ângelo Dias (UFG, Goiânia) Tiragem Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte) 100 exemplares Beatriz Magalhães Castro (UNB, Brasília) Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas) Acesso gratuito na internet Cristina Capparelli Gerling (UFGRS, Porto Alegre) www.musica.ufmg.br/permusi Diana Santiago (UFBA, Salvador) Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas) Fabiano Araújo (UFES, Vitória) Fernando Iazetta (USP, São Paulo) Endereço para correspondência Flávio Apro (UNESP, São Paulo) UFMG - Escola de Música - Revista Per Musi Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte) Av. Antônio Carlos 6627 - Campus Pampulha José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas) Belo Horizonte, MG, Brasil - 31.270 - 090 José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa) Fone: (31) 3409-4717 ou 3409-4747 Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba) Fax: (31) 3409-4720 Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte) e-mail: [email protected] Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro) [email protected] Luciana Del Ben (UFRGS, Porto Alegre) Manoel Câmara Rasslan (UFMS, Campo Grande) Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte) Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte) Norton Dudeque (UFPR, Curitiba) Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador) Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte) Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas) Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba) Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro) Sônia Ray (UFG, Goiânia) Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro) Vladimir Silva (UFPI, Teresina) ABM O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos

Revisão Geral PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 23, janeiro/junho, 2011 - Fausto Borém Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2011 –

Maria Inêz Lucas Machado n.: il.; 29,7x21,5 cm. Assistente Editorial Semestral Sandra Pugliese ISSN: 1517-7599

1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG

Book Per Musi 23.indb 4 22/9/2010 16:56:09 Sumário artigos científicos Análise musical para “não-musos”: percepção popular como base para a compreensão de estruturas e significados musicais ...... 7 Music analysis for ‘non-musos’: popular perception as a basis for understanding musical structure and signification Philip Tagg (Tradução de Fausto Borém)

Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina ...... 19 Carlos Guastavino and Lima Quintana’s contribution to the world of the Argentinean New Song Silvina Luz Mansilla

A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca: hibridismo entre o baião e o bebop ...... 28 The composition and interpretation by Victor Assis Brasil in Pro Zeca: hybridism between the Brazilian baião and bebop Leonardo Barreto Linhares Fausto Borém

Pro Zeca na performance de Victor Assis Brasil ...... 39 Pro Zeca performed by Victor Assis Brasil Victor Assis Brasil (Transcrição de Leonardo Barreto)

Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee School of Music (1969-1974) em seu estilo composicional...... 45 Victor Assis Brasil: the importance of the Berklee School of Music period (1969-1974) on his compositional style Marco Túlio de Paula Pinto

Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson...... 58 Phonogram 108.077 (Brazilian Odeon): George W. Johnson’s lundum Carlos Palombini

O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro ...... 71 The historical path of improvisation in the ragtime and choro César Albino Sonia R. Albano de Lima

Tiger Rag na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France: história, análise e práticas de performance ...... 82 Tiger Rag as performed by the Quintet of the Hot Club of France: history, analysis and performance practices Adriana Costa

Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette du Hot Club de France (1934)...... 89 Tiger Rag (1917) as performed by Le Quintette du Hot Club de France (1934) Original Dixieland Jazz Band (Transcrição de Adriana Costa)

Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha: composição, performance e iconografia após a viagem a Paris em 1922...... 93 Ragtime traces in the choro Segura ele [Hold him!] by Pixinguinha: composition, performance and iconography after the trip to Paris in 1922 Nilton Antônio Moreira Júnior Fausto Borém Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo, musicalidade e tópicas...... 103 Pursuing clues to the puzzle: thoughts on hybridism, musicality and tópicas Acácio Piedade

Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali...... 113 Ernesto Nazareth and the waltz from Radamés Gnattali’s Suíte Retratos Luciano Chagas Lima

Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho: questões sobre iconografia musical em suas capas de disco entre 1950 e 1960...... 124 Extra-musical elements in the work of K-Ximbinho: questions about musical iconography in their record covers between 1950s and 1960s Pablo Garcia da Costa Beatriz Magalhães Castro

Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio...... 138 Guerra-Peixe: an arranger of radio orchestras Bruno Renato Lacerda

Análise do contexto da Roda de Choro com base no conceito de ordem musical de John Blacking...... 148 A contextual analysis of the Brazilian Roda de Choro based on John Blacking´s concept of musical order Ivaldo Gadelha de Lara Filho Gabriela Tunes da Silva Ricardo Dourado Freire

Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho no choro brasileiro...... 162 Horizontal and vertical structures: Pixinguinha and K-Ximbinho’s models of improvisation in Brazilian Music Paula Veneziano Valente

O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental e de novos instrumentos musicais acústicos...... 170 The Brazilian UAKTI group: three decades of instrumental music and new acoustical musical instruments Artur Andrés Fausto Borém SEÇÃO DE RESENHAS – “PEGA NA CHALEIRA” Leituras sobre música, as palavras e a voz...... 185 Music, words and voice: a reader Maurilio Andrade Rocha

Num velho exemplo, diferentes maneiras de fazer musicologia: uma resenha do livro César Guerra-Peixe: Estudos de Folclore e Música Popular Urbana ...... 188 In an old example, different ways of doing musicology: a review of the book César Guerra-Peixe: Estudos de Folclore e Música Popular Urbana Rodrigo Cantos Savelli Gomes

O livro Cavalo-Marinho pernambucano de John Patrick Murphy...... 191 The book Cavalo-Marinho pernambucano by John Patrick Murphy Gabriel Ferrão Moreira

6 TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

Análise musical para “não-musos”: a percepção popular como base para a compreensão de estruturas e significados musicais

Philip Tagg (Faculté de Musique, Université de Montréal, Canadá) [email protected]

Tradução de Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: Estudo sobre o desenvolvimento de métodos de análise da música popular, especialmente daquela voltada para ““não-musos””, ou seja, os musicalmente iletrados, a partir de referenciais semiológicos, como denotação (e conotação) poïética e estésica. Palavras-chave: análise da música popular; análise musemática; música para leigos.

Music analysis for “non-musos”: popular perception as a basis for understanding musical struc- ture and signification

Abstract: Study about the development of methods of popular music analysis, especially that addressed to “non-musos”, i.e. the illiterate in music, departing from semiotics references such as aesthesic and poïetic denotation (and connota- tion). Keywords: analysis of popular music, musematic analysis; music for non-majors.

Em memória de János Maróthy, musicólogo e humanista

1 - Introdução Este artigo é dividido em duas partes.1 Na primeira, dis- temporais é inegável. Nossos cérebros registram uma mé- cuto problemas básicos de conceituação em análise mu- dia de 3 horas e meia de música por dia – quase 25% do sical; na segunda, descrevo métodos de ensino de análi- tempo de vida que passamos acordados. E 90% do tempo se musical que desenvolvi para alunos sem treinamento das rádios consistem de música, ao passo que metade da formal em música – que chamo de ““não-musos”” 2 – e programação de TV apresenta música na tela ou como defendo sua abordagem enquanto desenvolvimento dos música de fundo. Na verdade, muito pouca gente gasta métodos analíticos em música. mais tempo lendo, escrevendo e escutando do que falan- do, dançando ou olhando para pinturas e esculturas etc. 1 - Encarando o problema 1.1 - Cinco contradições O outro lado desta contradição é que a maioria das ins- Os problemas básicos de conceituação em análise mu- tituições de educação musical e pesquisa ainda tende a sical aos quais me refiro têm suas origens em uma série deixar música no fundo deste amontoado que é o currícu- de pelo menos cinco contradições inter-relacionadas que lo acadêmico. A fatia de tempo e de dinheiro que a músi- tratam de noções sobre música em nossa sociedade. ca recebe no currículo escolar e nos salários dos professo- res e conteúdo não guarda nenhuma ou quase nenhuma 1.1.1 – Valor social e status institucional relação com sua importância extracurricular em termos A primeira contradição coloca o valor social da música financeiros ou de distribuição de carga horária. Esta dis- empiricamente verificável em um extremo e seu status paridade entre os valores reais da música hoje e o status institucional no outro. Por um lado, há poucas dúvidas baixo que ocupa na hierarquia da educação pública pode que música, em nossa cultura, é o mais ubíquo dos siste- ser observada também na política cultural, assim como mas simbólicos. Sua importância em termos monetários e na educação superior e na pesquisa.3

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 15/10/2009 - Aprovado em: 20/06/2010 7 TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

1.1.2 – Análise crítica gura representando aquele cachorro foi produzida. Além A segunda contradição deriva diretamente da primeira, disso, “o cachorro” no famoso retrato de Van Eyck do ca- porque, embora a música seja claramente importante samento de Arnolfini 8 poderia também ser considerado na nossa cultura, ainda temos que desenvolver meios um elemento estrutural baseado em símbolo ao invés de viáveis para compreender como toda essa música na mí- ícone, se fosse estabelecido que aquele “cachorro” seria dia afeta as pessoas de fato. A contradição aqui é que, consistentemente interpretado de uma maneira seme- enquanto, por exemplo, a leitura crítica, ou a habilida- lhante àquela por uma dada população de apreciadores de de ver abaixo da superfície dos comerciais e outras em um dado contexto social e histórico. Por exemplo, o formas de propaganda4 são corretamente consideradas cachorro, enquanto símbolo recorrente de fidelidade – ou como essenciais para uma postura de pensamento in- seja, um termo estésico, desta vez em um modo semió- dependente (embora essas habilidades sejam ampla- tico diferente. É claro que um descritor estrutural como mente ensinadas na literatura ou em estudos culturais), “perspectiva central” é pöiético e estésico ao mesmo a habilidade de analisar mensagens musicais não o é. tempo, pois denota ambas (1) as técnicas de representa- Uma razão para isto é, como acabei de mencionar, que ção em três dimensões em uma superfície bidimensional ainda temos de desenvolver um método analítico capaz e (2) a maneira com que aquela superfície é percebida de lidar com toda a música disseminada por meio da como tridimensional pelo observador. mídia de massa e consumida diariamente por milhões de pessoas. Na linguística parece haver também uma rica mistura de descritores pöiéticos e estésicos de estruturas. Por exem- 1.1.3 – Nomenclatura estrutural plo, o termo fonético “fricativo palato-alveloar falado” A terceira contradição é, na verdade, apenas um outro é pöiético porque especifica o som /Z/ (GIMSON,1967, aspecto da segunda, mas de fato explica parcialmen- p.33), denotando como é produzido ou construído, e te porque a musicologia dos meios de comunicação em não como é geralmente percebido ou compreendido. Por massa é tão vagarosa para se desenvolver. Esta contra- outro lado, termos como “finalizado” e “não finalizado”, dição enfatiza a disparidade entre a metalinguagem utilizados para qualificar o contorno de alturas da fala, analítica da música no mundo ocidental e a de outros são ambos estésico e pöiético, ao passo que conceitos sistemas simbólicos; mais especificamente, que têm a fundamentais da linguística como “fonema” e “morfema” ver com as peculiaridades na derivação de padrões de funcionam tanto pöiética quanto estesicamente, ao de- termos que denotam elementos estruturais em música signar estruturas de acordo com sua habilidade de signi- quando se compara com práticas denotativas aplicadas ficar algo tanto do ponto de vista de quem fala quanto na linguística e nas artes visuais. de quem escuta. /Z/, por exemplo, entendido como um fonema, e não como um “fricativo paloto-alveloar fala- Para esclarecer esta contradição vou recorrer à polari- do”, denota o elemento estrutural que permite ambos o dade conceitual pöiético-estésico. 5 Neste texto, pöiéti- falante e o ouvinte distinguir, no inglês britânico, entre co qualifica termos que denotam elementos estruturais :lEZ (leisure [lazer]) e :lEs (lesser [menos]) ou :lEt (let- do ponto de vista de sua construção (poïésis). Esses ter- ter [letra]). mos derivam basicamente das técnicas e/ou materiais utilizados para produzir esses elementos (por exemplo, Dentro da perspectiva apresentada, não é um exagero con sordino, glissando, acorde de sétima da dominante, dizer que, comparado com o estudo das artes visuais e equivalente a um string pad [um sample sintetizado do da linguagem falada, a análise musical convencional na naipe das cordas orquestrais], phasing, pentatonicismo Europa Ocidental mostra uma clara predileção pela ter- não tonal). Estésico, por outro lado, qualifica termos que minologia poïética, algumas vezes ao ponto de excluir denotam elementos estruturais basicamente do ponto totalmente as categorias estésicas do seu vocabulário. 9 de vista do efeito de sua percepção (estesis), ou seja, o As complexas razões históricas e ideológicas por trás efeito ou conotação recebidos (por exemplo, “allegro”, deste preconceito têm sido discutidas ampla e frequen- “legato”, “Scotch snap” 6, “acorde de espionagem”, “re- temente (TAGG e CLARIDA, 2003, p.9-92) e, embora não verberação cavernosa”). 7 sejam tratadas aqui, um de seus aspetos constitui nossa próxima contradição. Parece que, nas análises das artes visuais, pelo menos do ponto de vista do cidadão comum, é corriqueiro, na iden- 1.1.4 – Competência simbólica tificação dos elementos estruturais, derivá-los de noções A habilidade de compreender tanto a palavra escrita quan- de representação icônicas ou de um simbolismo cultural to a falada (habilidades estésicas) é geralmente conside- como conceitos de materiais ou técnicas de produção. Por rada tão importante quanto falar e escrever (habilidades exemplo, descritores estruturais como “guache” ou “pin- poïéticas). Na música e nas artes visuais, entretanto, a celadas largas”, são claramente derivados de aspetos da competência estésica não tem o mesmo peso. Por exemplo, técnica de produção e são, por isso, pöiéticos, enquanto adolescentes capazes de compreender referências visuais que a representação icônica de um cachorro em uma obra intertextuais bastante sofisticadas em vídeos de música, de arte figurativa seria chamada de “cachorro” – um ter- não são considerados artísticos, nem recebem créditos mo estésico – e não uma descrição técnica de como a fi- pela cultura visual que claramente possuem. Da mesma

8 TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

forma, a habilidade amplamente difundida e verificável sica (compor, arranjar, tocar); e a competência estésica, empiricamente de distinguir entre, vamos dizer, entre dois ou seja, a habilidade de perceber e compreender músi- tipos diferentes de estórias de detetive após ouvir não mais ca (lembrar, reconhecer, distinguir sons musicais, assim do que dois segundos de um trecho de música instrumen- como suas conotações e funções culturalmente especí- tal, aparentemente não nos permite qualificar a maioria ficas). Nem a competência poïética nem a competência da população como musical. De fato, “artístico”, na esfera estésica se baseiam em qualquer tipo de notação verbal, das artes visuais, geralmente parece qualificar apenas as e ambas são mais comumente consideradas habilidades habilidades poïéticas e “musicalidade” parece se aplicar ou competências, ao invés de conhecimento. somente àqueles que se apresentam como cantores ou que tocam um instrumento, ou podem decifrar a notação mu- CONHECIMENTO SOBRE MÚSICA, por outro lado, é meta- sical. É como se a competência musical da maioria “não- musical por definição e sempre carrega consigo uma de- musa” da população não contasse. Isto é claramente an- notação verbal. Entretanto, da mesma forma que a MÚ- tidemocrático. A quinta e última contradição dá algumas SICA COMO CONHECIMENTO, o CONHECIMENTO SOBRE pistas para remediar esta situação. MÚSICA é culturalmente específico e pode também ser subdividido em duas subcategorias. O metadiscurso musi- 1.1.5 – A institucionalização do conhecimento cal, mostrado na tabela do Ex.1, engloba análise musical, musical “teoria musical” e qualquer outra atividade que requer a A contradição final é, claramente, um conjunto de ano- habilidade de identificar e nomear elementos e padrões malias. A tabela no Ex.1 divide o conhecimento musical da estrutura musical. Metadiscurso contextual, por ou- em duas subcategorias: MÚSICA COMO CONHECIMENTO tro lado, demanda explicar como as práticas musicais se e CONHECIMENTO SOBRE MÚSICA. A primeira significa relacionam com a cultura e sociedade que as produz e conhecimento diretamente relacionado com o discur- as quais são afetadas por ela. Este quarto aspecto do co- so musical, o qual é, ao mesmo tempo, intrinsecamente nhecimento musical cobre aspectos de muitas disciplinas, musical e culturalmente específico. Esse tipo de conhe- desde semiologia da música até acústica, desde estudos cimento musical pode ser dividido em dois subtipos: a econômicos até psicologia, sociologia, antropologia, es- competência poïética, ou seja, a habilidade de fazer mú- tudos culturais etc. 10

Tipo Explicação Onde se aprende

1 - Música como conhecimento (conhecimento de música)

criação, concepção, produção, com- 1a. Competência poïética Conservatórios, escolas de música posição, arranjo, performance etc.

lembrança, reconhecimento, distin- ção de sons musicais, assim como 2a. Competência estésica ? suas conotações e funções cultural- mente específicas

2 - Conhecimento Metamusical (conhecimento sobre música)

“teoria musical”, análise musi- Departamentos de música (musico- cal, identificação e nomeação de 2a. Metadiscurso musical logia), conservatórios, escolas livres elementos e padrões da estrutura de música musical

Explicação de como as práticas mu- sicais se relacionam com a cultura Departamentos de ciências sociais, e a sociedade, incluindo abordagens 2b. Metadiscurso contextual estudos de literatura e mídia, “estu- da semiótica, acústica, negócios em dos em música popular” música, psicologia, sociologia, antro- pologia, estudos culturais.

Ex.1 – Tipos de conhecimento musical

9 TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

Os fundamentos institucionais desta divisão entre estes poïética da minoria de musos. Por isso, se pensarmos que quatro tipos de conhecimento musical estão solidamente a todas as pessoas deveriam ser dado o direito de en- ancorados. Na educação superior, por exemplo, o primei- tender como a música afeta suas ideias, atitudes e com- ro tipo – competência poïética – é geralmente ensinado portamento, e se seguirmos as diretrizes educacionais em cursos de graduação especiais, conservatórios, escolas básicas que dizem que os processos de aprendizagem são de arte etc. O terceiro – metadiscurso musical – é ensi- mais efetivos quando calcados na experiência de nossos nado em departamentos de música ou musicologia, bem alunos, então deveríamos incluir e utilizar sua ampla como em conservatórios ou universidades. O quarto tipo competência estésica no nosso ensino de música. Esta – metadiscurso contextual – é ensinado em praticamente inclusão traz sérias implicações para a análise musical. qualquer departamento de humanidades ou ciências so- ciais, embora menos em departamentos de musicologia 1.2 – O impacto na análise musical tradicionais e, menos ainda, em departamentos de per- De acordo com a tabela de tipos de conhecimento mu- formance (música, teatro, dança). sical (Ex.1 acima), a análise pertence à categoria do conhecimento musical 2a, o qual é baseado na deno- O segundo tipo de conhecimento, a competência esté- tação verbal de elementos estruturais da música. Como sica, está faltando no parágrafo anterior e, na tabela já apontamos, ao discutir a terceira contradição (1.1.3 acima, não vê onde seria aprendido. A omissão é inten- acima), a análise convencional de música no Ocidente cional, porque a habilidade de distinguir, sem recorremos mostra uma predileção por descritores pöiéticos desses às palavras e sons musicais, assim com suas conotações elementos estruturais. Esta predileção é, obviamente, culturais específicas e funções sociais – o que é a mais um problema para a maioria de “não-musos” com sua difundida e popular forma de competência musical – é, relativa falta de competência poïética. Precisamos en- com a exceção de ocorrências isoladas em treinamento contrar meios alternativos para identificar e denotar es- auditivo e algumas formas de “apreciação musical”, ge- truturas musicais de um ponto de partida estésico. ralmente ausentes das instituições de ensino. Em outras palavras, a competência estésica parece ser um assunto Como músicos, somos conscientes que muitos elementos extracurricular e não-acadêmico. denotados pöieticamente podem carregar um sentido co- notativo, por exemplo, o acorde menor com nona maior 1.1.6 – Sumariando as contradições enquanto acorde de sonoridade “de detetive” ou “de es- As cinco contradições apresentadas deixam claro que: pião”. 11 Entretanto, muitos outros acordes (e acordes são elementos musicais denotados pöieticamente, se for o 1- O status da música na educação musical e na pesquisa caso), para que carreguem qualquer significado, depen- não é equiparável à sua importância social, econômica e dem ou de sua posição sintática ou da linguagem na qual cultural; ocorrem. Por exemplo, o acorde de décima terceira com função cadencial de dominante ao final de uma canção 2- Os alunos são estimulados a analisar criticamente as de salão poderia prover um ápice de tensão dramática, mensagens verbais e visuais, mas a música é raramente mas o mesmo acorde utilizado como tônica alterada ou ensinada como se comunicasse algo substancial; como acorde de dominante dupla como substituição de trítono em uma performance de jazz não teria mais efeito 3- Termos que denotam elementos estruturais da lingua- do que um mero indicador do estilo bebop (TAGG, 2001c, gem e das artes visuais são ambos pöiético e estésico, en- p.113). O problema é claro: não devemos esperar uma li- quanto os que denotam elementos estruturais da música gação unívoca entre uma estrutura pöieticamente deno- são predominantemente pöiéticos. tada e o significado conotativo desta estrutura, porque 4- As competências poïética e estésica geralmente rece- o valor semiológico de elementos pöieticamente deno- bem o mesmo valor na linguagem, enquanto que na mú- tados é sensível ao contexto em termos de uma sintaxe sica e nas artes visuais, aparentemente, “competência” tanto dentro da obra (por exemplo, os dois “significados” diz respeito apenas às habilidades poïéticas. distintos do mesmo encadeamento de trítono na música Fernando do grupo ABBA; veja TAGG, 2001d, p.50-59), 5- A competência poïética em música e o conhecimento quanto da linguagem musical (como exemplificado pelo do metadiscurso musical são abrigados em instituições acorde de décima terceira, descrito na frase anterior). 12 de ensino para experts em música, enquanto que o me- tadiscurso contextual é visto como um espaço reservado Outro problema com descritores pöiéticos que já toca- de outras disciplinas; já a competência estésica é rara na mos: eles não carregam necessariamente um valor sim- esfera da educação e da pesquisa públicas. bólico. Por exemplo, ao investigar IOCMs 13 para um loop de acordes em uma sequência de quatro compassos em Uma bagunça! Tentarei, em seguida, organizar um pouco uma faixa de dança moderna (The Source, 1997), em meio tudo isso. Partirei do pressuposto de que todos nós con- a uma discussão em uma classe de Análise de Música cordamos que a música é um sistema simbólico e que seu Popular musical em setembro de 2001, me vi tendo de to- poder de comunicação é tão dependente da competência car, junto com o CD, com uma armadura de seis susteni- estésica da maioria “não-musa” quanto da competência dos: {4/4 G#m7 | F#/A# B | C# | C#}. 14 Antes de agarrar

10 TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

àquela tarefa no teclado, eu estava certo de que estava 2 – Análise musical para “não-musos” 15 ouvindo uma progressão que lembrava o shuttle básico 2.1 – Fontes de descritores “populares” de acordes de canções como My sweet Lord (George Har- Sugiro, nesta segunda parte do presente artigo, que po- rison, 1971), He’s so fine (Chiffons, 1963) ou Oh Happy day demos encontrar um rico vocabulário de descritores es- (Edwin Hawkins Singers, 1969). No teclado, entretanto, truturais no uso comum da música popular. Alguns des- tive de forçar minhas mãos em formas que não senti cor- ses descritores podem ser pöiéticos, mas, se compararmos responderem com os padrões musicais daquelas canções com a terminologia da análise musical convencional, des- que são em tonalidades muito mais fáceis. Quando parei o cobriremos que uma porção maior será ou estésica ou toca-CDs e continuei tocando o teclado exatamente como uma mistura dos dois tipos denotativos. Exemplifico, a 7 o shuttle G#m ↔ C# sem os demais acordes intermedi- seguir, as quatro categorias de utilização musical e a ma- ários, meus alunos logo identificaram My sweet Lord ou neira de registrar o vocabulário popular. Oh Happy day, mesmo que meus pensamentos estivessem ocupados em ter de ajustar meus dedos em formas inco- 1 - Diálogos coloquiais sobre estruturas musicais podem muns para produzir os sons corretos. A questão aqui é que ser coletados tanto etnograficamente quanto por meio a mudança estrutural de Sol Menor ou Lá Menor para Sol de: (a) realização de testes de recepção; (b) anotação de # Menor, insignificante tanto para um violonista utilizan- IOCMs e PMFCs 17 de alunos em aulas de análise. do pestanas quanto para uma percepção estésica, foi al- tamente significante para mim, instrumentista de teclado, 2 – Descritores de timbres eletronicamente produzidos porque tive de construir o que os ouvintes escutam como podem ser reunidos por meio do estudo de: (a) nomen- “a mesma coisa” de uma maneira radicalmente diferente. claturas pré-determinadas de sons que aparecem de ma- neira semelhante em diferentes sintetizadores; (b) rótulos Muitas mudanças significativas da construção tonal dados a samples, loops etc. específicos, que aparecem em equivalem a mudanças significativas da recepção, por softwares disponíveis em pacotes ou online. exemplo, cantar o Hino Nacional do Reino Unido no modo Hijjaz com um Dó # como pedal, ao invés de usar a tradi- 3 – Descritores de parâmetros de tratamento de som (re- cional harmonia de tríades a quatro vozes em Sol Maior. verb, delay, phasing, distorção, etc.), que podem ser cole- Mas uma outra mudança poïética, como o exercício em tados e combinados, a partir da nomenclatura de templa- Sol # Menor, descrito acima, já não mostra correspondên- tes de equipamentos que produzem estes efeitos. cia. Por outro lado, pequenas mudanças da estrutura tonal denotadas em termos pöiéticos, como substituir a nota 4 – Descritores conotativos abundantes nos catálogos de Mi natural por Mi bemol em uma tríade que tenha a nota música. Ao se estudar padrões regulares de correlação Dó como fundamental, pode ter efeitos consideráveis na entre estas conotações escritas e elementos estruturais recepção. Feitas estas observações, devo esclarecer que recorrentes em entradas bibliográficas catalogadas de não estou, de modo algum, advogando o abandono das maneira semelhante em diferentes bibliotecas, seria pos- considerações tonais na análise da música popular. sível tanto ampliar quanto refinar o leque de descritores estésicos do analista. Entretanto, um desafio ainda maior ao desenvolvimento da análise da música popular é o fato de que grande parte da Em nenhuma das quatro categorias acima é necessário ao música circulando em nossos meios de comunicação em usuário ser fluente na descrição poïética de elementos es- massa contém muitos elementos estruturais, porém, com a truturais: ninguém precisa saber o que são sétimas dimi- exceção da nomenclatura convencional dos instrumentos, nutas ou quartas aumentadas; ou entender ou reconhecer faltam descritores pöiéticos estabelecidos, os quais, apesar o que uma progressão no círculo da quintas ou um modo disso, se relacionam claramente com fenômenos paramu- mixolídio. Afinal, os alunos da categoria 1 acima podem ser sicais. Não surpreende o fato de que a maioria dos elemen- tanto do Departamento de Comunicação quanto do Depar- tos estruturais desse tipo só podem ser pöieticamente de- tamento de Música, ao passo que os usuários das categorias terminados somente se parâmetros de expressão que não 2 e 3 podem ter adquirido seus sintetizadores ou softwa- podem ser notados são considerados. Falamos de parâme- res de gravação sem um treinamento de música formal. Da tros como textura, timbre, volume, acústica de palco etc., mesma forma, descritores de acervos de música são formu- nenhum dos quais pode ser separado significativamente – lados geralmente por um membro “não-muso” da equipe da se, de fato, puderem – na notação musical ocidental. Con- gravadora, para produtores de mídia estressados, geralmen- sequentemente, muito poucos destes são sistematizados te “não-musos” também, que precisam encontrar a música na análise musical convencional com seu preconceito que correta com o clima correto tão rápido quanto possível. 18 favorece parâmetros tonais passíveis de notação. Diversos colegas já contribuíram para o desenvolvimento de uma Infelizmente, não podemos discutir aqui mais do que uma análise da música popular que confronta essas questões,16 dessas quatro fontes de descritores estruturais. Por ques- mas a comunidade da análise da música popular (se é que tões de espaço, devo colocar as categorias 2, 3 e 4 no ela existe) ainda está muito longe de estabelecer uma banco de espera de “pesquisas futuras” e focar brevemen- abordagem coerente que possa ser amplamente aplicada te em como a categoria 1, apenas, pode ajudar a resolver na educação de musos e “não-musos”. alguns dos problemas do analista da música popular.

11 TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

2.2 – Análise musical para “não-musos” ma de observações estruturais ou conotativas, devem se levadas em Leciono análise musical para “não-musos” desde 1993. consideração pelo aluno no seu trabalho de análise subsequente”. Durante sete destes anos, ensinei “Análise semiótica da música popular” em um programa de Mestrado da A terça parte final do curso é dedicada às apresentações Universidade de Liverpool. 19 Em média, pouco mais da das análises por cada participante e ao estímulo a comen- metade dos alunos que optaram por aquele curso eram tários que podem ajudar cada um a melhorar sua análise. “não-musos” no sentido de que eram iletrados em ter- Para demonstrar que tipo de processo mental os alunos estão sujeitos neste módulo, vale a pena citar um, longo mos de notação musical e não tinham a menor ideia do 21 que uma sétima diminuta ou um modo mixolídio po- trecho de instruções para a realização dos trabalhos. deria ser. Nem considerei como prioridade ensiná-los o “VOCUBULÁRIO METAMUSICAL. Uma das grandes dificuldades que significavam aqueles termos. Na verdade, um dos em falar ou escrever sobre música é conhecer quais palavras usar pré-requisitos do curso dizia: quando tratamos dos diversos sons, de maneira que, não importa a pessoa a quem você se dirige, ela saberá o que você quer dizer. “Embora o treinamento formal em música não seja pré-requisito, Obviamente que alguns rótulos como “música clássica europeia” ou um interesse apurado em música e suas funções socioculturais “blues” podem ser úteis para comunicar aos seus ouvintes uma ideia é absolutamente essencial. Você não precisa saber ler partitura.” geral dos tipos de som aos quais você está se referindo. Entretanto, a ideia é ser não mais do que isto – uma ideia geral – e qualquer refinamento da precisão da nomenclatura de estilo, por exemplo, Além disso, os objetivos daquele módulo incluíam: “rococó” ou “blues de Menphis”, provavelmente não será compreen- dida pela maioria. Mesmo assim, um nome para descrição estilística “Ampliar a compreensão sistemática das relações entre aspectos não permite que você aponte sons específicos dentro daquele estilo, estruturais da música (texto) e suas qualidades psicológicas, so- e muito menos em uma peça de música específica”. ciais, culturais e ideológicas (contexto).” “. . . músicos tem desenvolvido um amplo espectro de termos que “Desenvolver habilidades de escuta musical e aumentar a consci- denotam particularidades do som musical. Infelizmente, há dois ência de escuta em geral”. problemas neste estoque de palavras: um é que há tantos con- juntos de vocabulários que se referem às estruturas musicais em “Estimular as habilidades de pensamento paralelo e conotativo” todo o mundo quanto há diferentes estilos musicais; o outro é que [e] “relacionar habilidades de pensamento paralelo e conotativo muito do que os músicos falam sobre música é incompreensível aos modos mais racionais do discurso”. para a maioria das pessoas nas culturas em que convivem.”

Durante a primeira terça parte do Modulo 1, apresentei “Infelizmente, problemas semelhantes de incompreensão são e exemplifiquei o tipo de abordagem à análise da música encontrados em porções significativas do discurso musical, es- pecialmente nas regiões tipicamente europeias de designação de popular que havia apresentado em diversas publicações alturas, ou seja, em conexão com a harmonia, o contraponto, o (TAGG, 1982, 1987, 1995, 1999). Estes eram os tópicos- vocabulário tonal e, de certa forma, ritmo e métrica. Entretanto, chave, conceitos e ferramentas metodológicas que abordei: expressões qualificando volume, timbre, espaço, velocidade, ata- que, contorno melódico etc. podem ser usados por quaisquer pes- “Teorias e definições da semiótica. Tradições de estudos em música soas que dominem sua língua pátria. Podem, mesmo, compreender e sua relação com a semiótica. Definições de música. Discussão inteiramente termos mais especializados como polimétrico, po- sobre as funções musicais... Conotação e denotação. Modelos de lirítmico, polifônico, monofônico, heterofônico, legato, staccato, comunicação, insuficiência de códigos e interferência de códigos. pizzicato, glissando, crescendo, diminuendo, pedal, pedal harmô- Semiose e relatividade cultural” nico, pentatônico, anacruse, distorção, phasing, panning, etc., etc. “Análise musemática: comparação inter-objetiva e substituição hipotética. Inter-subjetividade e campos paramusicais de cono- “De maneira semelhante, muitos sons instrumentais e tipos vo- tação. Tipologia dos signos musicais: anáfonas, sinédoques de cais podem ser fácil e corretamente identificados por qualquer um gênero, marcadores de episódio, indicadores de estilo. Música e com uma audição razoável e uma pequena experiência de escu- paisagem sonora. O dualismo melodia-acompanhamento. Parâme- tar música em um estilo relevante. Apesar disso, muitos dos sons tros da expressão musical e paramusical” musicais os quais você precisa se referir não podem ser satisfato- riamente denotados, mesmo se equipado com o pequeno arsenal de termos acima mencionados. Esta dificuldade persistente pode Este curso, que mais tarde adaptei às necessidades de ser própria e eficientemente circunavegada de duas maneiras, as alunos de pós-graduação em musica e outras áreas em quais precisam ser empregadas conjuntamente: (i) denotação es- Montreal, 20 começa com a apresentação das ferramentas tésica 22 e (ii) disposição cronométrica inequívoca em uma série conceituais e metodológicas que os alunos precisam para anotada de eventos musicais” realizar suas próprias tarefas (veja abaixo). Geralmente, “DENOTAÇAO ESTÉSICA é a identificação verbal de certas qualida- começo apresentando uma análise, com uma versão “ao des percebidas que conotam o som a ser identificado. Esta expres- vivo” de meu livro sobre a música Fernando do ABBA são pode ser baseada na comparação inter-objetiva, por exemplo, (TAGG, 2001d). Até a quarta semana do curso, cada aluno “o arpejo de Bach”, “o som do gongo final no gamelão”, “a progres- são harmônica de Hey Jude” – ou nos próprios campos paramu- escolheu, com minha ajuda e dos outros participantes do sicais de associação do objeto de análise, ou seja, conotações do seminário, uma peça de música para analisar. som específico fornecido pelos seus respondentes, incluindo você mesmo – por exemplo, esfumaçado, coaxar de sapos, som-de- A segunda terça parte do curso é preenchida com sessões bruxa, borbulhante, como o nascer do sol.” de feedback nas quais cada aluno “Entretanto, embora este tipo de exercício permita referir concisa- mente a um som particular em sua peça de análise, esta referência “. . . toca sua música para os participantes e recebe um feedba- não será inequívoca porque outros sons que pareçam com – diga- ck deles. . . o objetivo destas sessões é obter informações sobre as mos, arpejos de Bach, gongos de gamelão, ou a progressão har- qualidades percebidas na peça (associações, reações, descrições, mônica de Hey Jude, ou sons que possivelmente são qualificáveis avaliações etc.). O feedback dos participantes do seminário, na for- como esfumaçado, coaxar de sapos, som-de-bruxa, borbulhante,

12 TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

como o nascer do sol etc. quase certamente existem em muitas a nomear estes sons estesicamente, menos constrangidos outras peças, provavelmente com uma parecença sônica ligeira- de não serem capazes de fazê-lo pöieticamente. Descrito- mente diferente daquele ocorrendo na sua peça. Por essa razão, a disposição cronométrica inequívoca é essencial” res como o acorde de sintetizador da década de 1980 que começa a faixa do disco pode, então, receber um nome “DISPOSIÇÃO CRONOMÉTRICA INEQUÍVOCA, em uma série de mais abreviado (por exemplo, acorde sint. dos anos 80). eventos sonoros gravados, são os pontos inicial e final do som Aí, os alunos podem começar a escrever suas análises. que você deseja identificar. . . Infelizmente, para esta tarefa (e fe- lizmente para a música em geral),a música consiste de diferentes tipos de som (ou aspectos do mesmo som) ocorrendo ao mesmo É principalmente durante as sessões de feedback que tempo. Assim, para tornar inequívoca a disposição cronométrica, descritores estésicos potencialmente úteis aparecem. geralmente é necessário qualificar o som que você deseja identifi- Por exemplo, os nomes de dois musemas na minha car em relação aos outros sons concorrentes (a figura do bumbo da bateria em 1:33 ou o som estridente sintetizado em 0:21 ou a pa- análise de Fernando do ABBA (TAGG, 2000d, p.36-38) lavra “amo” no terceiro “Eu te amo” da Estrofe 2). É claro que este derivam parcialmente da contribuição de alunos: (1) o passo necessário na identificação de um som particular pressupõe baixo na ponta dos pés – a figura arpegiada leggiera que você observou o quanto dentro da peça este (e outros) eventos que ocupa apenas metade de cada compasso das es- de fato ocorrem. Para isto, é essencial que seu trabalho inclua uma partitura gráfica dos eventos de sua peça”. trofes; (2) o motivo do nascer do sol – o motivo “para fora e para cima” que lembra a figura immer breiter “PARTITURA GRÁFICA. . . se você desejar, pode tentar transcrever [cada vez mais amplo] notada no início de Assim falou sua peça de análise na forma de notação musical. Entretanto, isto Zaratustra de Richard Strauss. Mesmo simples sequen- geralmente é uma tarefa árdua e não necessária à análise. Se você optar em transcrever parte ou o todo de sua peça, por favor, lem- cias de acordes encontradas em canções pop bastante bre-se que as habilidades notacionais não são um pré-requisito conhecidas são, alguma vezes, reconhecidas por “não- neste módulo e que sua apresentação pode se tornar incompreen- musos” como “soando com La Bamba” (ou Guantana- sível para alguns participantes” mera ou Twist and Shout) e nomeadas corretamente. “A apresentação gráfica deve incluir as seguintes linhas paralelas: Já em um curso recente sobre música de cinema, os (i) uma Linha do Tempo; (ii) uma Linha da Forma; (iii) uma Linha de alunos “não-musos” se referiam às estruturas das mú- Eventos Paramusicais (se for o caso); (iv) uma Linha de Ocorrências sicas apresentadas como o “trechinho do Vivaldi” (uma Musemáticas. Idealmente, esta partitura gráfica deve ser propor- figura arpegiada em “moto perpétuo” no violino após cionalmente cronométrica, de forma que durações iguais de tempo ocupem quantidades iguais do espaço horizontal” vários acordes descendentes ao redor do círculo das quintas) ou “um som do tipo Carmina Burana” (unísso- “A LINHA DO TEMPO consiste de uma linha horizontal na qual no de vozes masculinas cantando semínimas regulares você marca o timing de eventos musicais significativos ao longo e acentuadas em fortissimo no registro médio-grave e da peça (por exemplo, 0:44 = 44 segundos do início da peça; 3:01 = três minutos e um segundo do início da peça). . . ” acompanhado de pontuações dos metais e madeiras). 24 Os alunos são, em outras palavras, capazes de suge- “A LINHA DA FORMA indica onde, em relação à Linha do Tempo, as rir descritores estésicos bastante relevantes, seja com várias seções da peça começam e terminam (por exemplo, Intro- base em gestos, tato, movimento, sons paramusicais e dução, Estrofe 1, Chorus 2 etc.)”. “A LINHA DE EVENTOS PARAMUSICAIS contém eventos como letra conotações (por exemplo, “avassalador”, “pontiagudo”, da canção, descrição (ou desenhos) de aspectos visuais”. “áspero”, “delicado”, “louco”, “tenso”, “bem anos 80”, “tipo detetive”, ou seja, PMFCs) ou em relação às mú- “A LINHA DE OCORRÊNCIAS MUSEMÁTICAS contém tantas linhas sicas que eles já conhecem (por exemplo, “sons como horizontais paralelas quanto as camadas de som significativas que você identificar separadamente na sua peça. O início e o final de Bach”, “bem Per Shop Boys”, “como o tema de James cada musema deve ser claramente visível na sua apresentação.” Bond”, “meio industrial”, ou seja, IOCMs).

Todas as tarefas e processos acima mencionados deveriam Se o nosso objetivo é uma análise constrita e inflexí- focar sua atenção nos elementos significativos consti- vel, então é óbvio que teremos problemas com o tipo de tuintes da música em discussão. Entretanto, eles também descritores estésicos que acabei de mencionar. A maior funcionam com uma série de exercícios de construção da dificuldade é que eles significariam algo substancial so- autoconfiança. Primeiro, ao construir linhas cronométri- mente para aqueles com um acesso auditivo ou memória cas para sua peça de análise – uma tarefa simples que às gravações nas quais as estruturas nomeadas ocorrem pode se feita com contadores digitais de tempo-real tan- no ponto exato em que o aluno detectou. Outro proble- to em playbacks de hardware quanto software -, alunos ma é que os descritores estésicos vernaculares são mui- com pouca ou nenhuma experiência anterior em análi- to mais improváveis de serem compreendidos fora do se musical podem separar e, irrefutavelmente, indicar a relativamente restrito círculo cultural no qual eles ad- existência objetiva de sons específicos. Segundo, o grau quiriram certo grau de senso inter-objetivo do que os ti- de concordância inter-subjetiva nas sessões de feedback, pos de vocabulário mais centralmente estabelecidos. Por tanto em relação à “sensação geral” quanto em relação exemplo, se é comum chamar o efeito reverb de “mo- às conotações de sons específicos, geralmente é maior lhado” (“wet” em inglês) quando seus sinais secundários do que os alunos esperam. 23 Animados com a confiança criarem um “wash” (tempo de decay longo) constante e crescente na sua habilidade de inequivocamente denotar forte o suficiente, a mesma expressão italiana - un eco os sons dentro de uma gravação e descrevê-los de acordo umido ou un eco bagnato - traduzida para o próprio ita- com uma concordância inter-sujetiva, os alunos tendem liano, não faria sentido. Quando perguntado como “um

13 TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

reverb muito molhado” seria em italiano, Franco Fabbri “bastardo total”, “rebelde desesperado”, “machista idiota”, respondeu: “un eco di Madonna”, cuja tradução literal - “murmúrio sexy”, “mulher confiante”, “criança encapeta- “um eco de Nossa Senhora” - faria muito pouco sentido, da”, “homem preocupado”, “voz da morte”, “voz de Satã”, ou nenhum, para músicos que falam português (ou que “vilão dos infernos”, “adolescente nervosa com soluço”, falam inglês: “an echo of Our Lady”)! “estudante suicida”, “grito de raiva”, “harpia esganiçada”, “reclamação frustrada”, “cantor de voz grave e intimis- As especificidades culturais dos descritores estésicos ta”, “torcedor fanático”, “amigo e confidente”, “cansado leigos não precisam ser vistas como um grande obstá- e frouxo”, “resignado”, “deprimido”, “desmoralizado”, culo para o desenvolvimento dos métodos de análise “cínico”, “histérico”, “sem fôlego”,“estressado” etc. Esta musical. Como sugerido antes, os descritores podem ser lista parece virtualmente interminável e a concordância coletados e modificados: é possível encontrar padrões inter-subjetiva sobre os traços conotativos do vocalista e de similaridade inter-culturais e estabelecer alguns de- da linha vocal em questão, entre os alunos nas aulas de nominadores comuns. Se descritores estésicos como “le- análise, geralmente é grande. 27 gato” e “allegro” são compreendidos além das fronteiras linguísticas e culturais na esfera da música erudita eu- Dada a simultaneidade entre a ampla variedade e a valida- ropeia, não há nenhuma razão para acharmos que ter- de inter-subjetiva sem controvérsias dos tipos de voz ima- mos como “repique médio”, “batida de break”, “acorde ginados pelos alunos, recomendo enfaticamernte adotar a tipo detetive” não podem adquirir status inter-cultural noção de persona vocal no desenvolvimento dos métodos semelhante no mundo da música popular. de análise musical. Também sugiro que seria proveitoso es- tudar em profundidade a relação entre a técnica vocal e a Entretanto, há uma barreira que os “não-musos” rara- persona vocal, bem como entre a persona vocal e a forma- mente conseguem atravessar: a de denotar estruturas ção da subjetividade em nossas culturas como um todo. tonais, especialmente aquelas de harmonia, tonalidade, modo etc. É verdade que algumas harmonias parecem Por exemplo, no final da década de 1990, eu estava preo- ter traços conotativos razoavelmente claros – o famoso cupado com uma aparente fixação na “voz feminina in- “acorde tipo detetive”, a “meia-cadência cowboy” 25 ao fantil” na pop comercial inglesa centrada nas cantoras. De- passo que, como mencionado antes, outras harmonias parei-me com as seguintes questões: Será que não querem comuns podem ser referenciadas pelo nome de canções soar como mulheres? Se não, por quê? Será que os ouvin- pop conhecidas onde ocorrem – a “progressão de La tes do sexo masculino realmente querem tantas princesas Bamba”, “os acordes de My Sweet Lady” etc. Entretan- com voz de criança? Será que eles têm medo de mulheres to, o número destes descritores não chega nem perto da de verdade? Será que as meninas que as ouvem querem quantidade de harmonias conotativamente significati- continuar a ser garotinhas quando crescerem? Será que vas que encontramos na nossa música comercial. Assim, estão emulando jovens púberes por causa das indústrias os “não-musos” incapazes de identificar estruturalmen- da moda e da “beleza”? Enquanto vocalistas adultas, não te o que acontece com harmonias que fazem a dife- estão danificando suas cordas vocais por cantarem com rença, semioticamente, terão de perguntar aos experts “voz feminina infantil” o tempo todo? Que técnicas estão - os musos - e dar os créditos aos seus irmãos e irmãs sendo utilizadas para soar como “infantil” se já passaram pöiéticos nas notas de rodapé. 26 dos vinte anos? Existem tipos de letras específicas mais co- muns nessas canções cantadas por “vozes femininas infan- 2.3 – Persona vocal – “Está na voz” tis” do que em outras? Qual é a relação entre performance A parte final deste artigo, baseada em 18 anos de ensi- no palco, figurinos, imagem do artista e a “voz feminina no de análise de música popular, foca em uma área da infantil”? Como será que estas questões se relacionam, se estruturação musical à qual os “não-musos” parecem es- é que se relacionam, ao processo de crescimento das crian- tar atentos: timbre vocal e inflexão. “Está na voz” é um ças no mundo do capitalismo voraz de hoje? comentário recorrente. Incapaz de prover descritores pöi- éticos de técnicas de produção vocal (respiração, regis- A gravidade destas questões bateu à minha porta, e de for- tro, vibrato, tremolo, técnicas de microfonagem, tensão ma surpreendentemente clara, por meio de uma amiga de laríngea, utilização da cavidade bucal, diafragma etc.), os minha filha. Em julho de 2001, ela disse que, alguns anos alunos inicialmente tendem a se esquivar e não descrever antes, haviam lhe oferecido um contrato de gravação de o que “está na voz” e que lhes parece tão importante. Uma mais de 100.000 libras esterlinas e que havia sido levada ao saída para esse impasse é perguntar aos alunos “que tipo shopping pelo consultor de modas da gravadora para gas- de pessoa, e com qual predisposição, utilizaria aquele tipo tar mais de 1.000 libras em minúsculos e inadequados tops de voz?” Quando exortados a falar as palavras de uma linha e outras peças do típico vestuário de “menininha”. Então, vocal específica, emulando aproximadamente as alturas, ela descobriu que, de todas as faixas que ela havia gravado, dinâmica, timbre, duração, acentuação e ritmo, os alunos a gravadora tinha a intenção de lançar apenas umas pou- rapidamente sugerem palavras que descrevem a persona cas nas quais ela havia sido instruída para cantar com “voz vocal. Os tipos de persona vocal que ouço nos cursos de feminina infantil” do começo ao fim. Desconfiada de como análise que ministro tendem a incluir epítetos vernacu- ela seria promovida na mídia, ela desistiu do contrato e lares como: “garotinha”, “cara legal”, “megera completa”, voltou à profissão de enfermeira.28

14 TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

Talvez tenhamos chegado ao final do artigo antes da soas, tanto musos quanto “não-musos”, a compreender hora, pois o parágrafo epitomisa o que espero que se as mensagens circulando nos meios de comunicação em torne um tema de pesquisa e que torne a análise musi- massa. Quem sabe? Talvez devamos ser capazes de aju- cal mais útil. Este tipo de pesquisa pode se materializar dar a colocar a música em uma posição na educação e ou não, mas o que importa no presente artigo é mostrar na pesquisa comparável à sua importância fora do insti- que “não-musos” e seus descritores estésicos têm um tucionalizado mundo da aprendizagem. Oxalá fôssemos potencial considerável para o desenvolvimento de con- pelo menos capazes de diminuir a distância entre estas ceitos e métodos de análise que possam ajudar as pes- duas esferas de nosso próprio trabalho.

Glossário: Para uma lista completa de termos e abreviaturas da análise musemática, veja www.tagg.org/articles/ptgloss.html Para uma lista de termos e abreviaturas de harmonia veja p.27-30 do Tagg’s Har­mony Handout em www.abretagg. org/articles/xpdfs/harmonyhandout.pdf

Acordes vai-e-vem (chord shuttle): neologismo criado por Phillip Tagg em 1993 para descrever a oscilação entre dois acordes, por exemplo, entre as tríades de Si  Menor e Sol  Maior no início da Marche funèbre de Chopin, também conhecido como “pêndulo eólio” (BJÖRNBERG, 1989).

Campo Paramusical de Conotação: veja PMFC.

Comparação interobjetiva (Interobjective comparison): Neologismo criado por Phillip Tagg em 1979 para descrever a comparação musical de intertextos de um ou mais elementos estruturais de uma obra musical com outra.

Estésico: Do francês esthésique (Molino, via Nattiez), é um adjetivo relacionado à aesthesis, ou seja, à percepção da música, ao invés da produção/construção/criação/realização musical. Basicamente, o mesmo que recepcional e o oposto de constru- cional ou pöiético. Na música, busca descrever um elemento da estrutura do ponto de vista de suas qualidades conotativas percebidas, ao invés de sua construção, por exemplo, “delicado”, “som de detetive”, “allegro” ao invés de “con sordino”, “acorde menor com sétima maior”, “quarta aumentada”, “pentatonicismo” etc.

Harmonia de terças (tertial harmony): Neologismo criado por Phillip Tagg em 1998 para descrever harmonias baseadas na superposição de terças que se entrelaçam (por exemplo, tríades comuns, acordes de sétima, acordes de nona etc.), ao contrário da harmonia quartal, em que há a superposição de quartas.

IOCM: Abreviatura de Material de Comparação Interobjetiva (Interobjective Comparison Material), um neologismo criado por Phillip Tagg em 1979 para descrever intertextos musicais, ou seja, trechos de outras obras musicais nos quais pode se demonstrar semelhança com a obra musical que é objeto de análise.

Material de Comparação Interobjetiva: veja IOCM.

Musema: Menor unidade de significado musical. Para o conceito original, veja o artigo de Charles SeegerOn the moods of a musical logic no Journal of the American Musicological Society, v.13, p.224-261 (SEEGER, 1960); re-publicado no livro Studies in Musicology 1935-1975 (Berkeley: University of California Press, 1977, p.64-88; musema é definido na p.76).

Paramusical: Qualidade de um elemento semiologicamente relacionado a um discurso musical específico sem ser estrutural- mente intrínseco àquele discurso. Neologismo criado por Phillip Tagg em 1983 que significa literalmente “ao lado da música”.

PMFC: Abreviatura de Campo Paramusical de Conotação (Paramusical Field of Connotation), um neologismo criado por Phillip Tagg em 1991 para descrever um campo semântico conotativamente identificável que se relaciona com estruturas musicais (ou um conjunto delas). De 1979 a 1990, foi denominando de EMFA (Extramusical Field of Comparison).

Pöiético: Do francês poïétique (Molino, via Nattiez), é um adjetivo relacionado à poïesis, ou seja, o fazer musical, ou invés da percepção musical. Basicamente, o mesmo que construcional e o oposto de estésico ou recepcional. Na música, busca descrever um elemento da estrutura musical do ponto de vista de sua construção, ao invés de suas qualidades conotati- vas percebidas, por exemplo, “con sordino”, “acorde menor com sétima maior”, “quarta aumentada”, “pentatonicismo” ao invés de “delicado”, “som de detetive”, “allegro” etc.

15 TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

Referências de texto DIBBEN, N. (Palestra não publicada sobre o disco Unison de Björk, ministrada na Conference on Popular Music Analysis da University of Cardiff, País de Gales, em 2001). GIMSON, A. C. An Introduction to the Pronunciation of English. (publicado originalmente em 1962). London: Edward Arnold, 1967. LACASSE, S. “Listen to My Voice”: The Evocative Power of Vocal Staging in Recorded Rock Music and Other Forms of Vocal Expression. Liverpool: PhD, Institute of Popular Music, University of Liverpool, 2000. MARTÍNEZ, J. L. Semiosis in Hindustani Music. Imatra: Acta Semiotica Fennica V., 1997. MIDDLETON, R. Towards a theory of gesture in popular song analysis. Secondo convegno europeo di analisi musicale, ed. R Dalmonte & M Baroni. Trento: Università degli studi di Trento, Dipartimento di storia della civiltà europea, 1992. p.345-350. RICHARDSON, J. (Palestra não publicada sobre as similaridades da sonoridade das cordas em músicas de Bernard Herr- mann, Beatles, Stevie Wonder e Coolio, ministrada na Conference on Popular Music Analysis da University of Cardiff, País de Gales, em 2001). TAGG, P. Analysing Popular Music: Theory, Method and Practice. Popular Music. v.2, 1982, p.37-69. Republicado em Rea- ding Pop. Approaches to Textual Analysis in Popular Music. Ed. R. Middleton. Oxford University Press, 2000, p.71-103 [www.tagg.org/articles/xpdfs/pm2anal.pdf]. ______. Musicology and the Semiotics of Popular Music. Semiotica, v.66-1/3, 1987. p.279-298 [www.tagg.org/articles/ xpdfs/semiota.pdf]. 1987. ______. Vers une musicologie de la télévision. Frank Martin, musique et esthétique musicale. Actes du colloque de La Chaux-de-Fonds 1990, Ed. É Émery. Revue Musicale de Suisse romande, 1995. p.33-60 [www.tagg.org/articles/gon- seth.html]. 1995 ______. Analysing music in the media: an epistemological mess. Music on Show: Issues of Performance, ed. T Hautamäki, H Järviluoma. Tampere: Department of Folk Tradition, 1998. p.319-329 [www.tagg.org/articles/glasg95.html]. 1998. ______. Music, moving image, semiotics and the democratic right to know. Article based on paper delivered at conference ‘Music and Manipulation’, Nalen, Stockholm, 18 September, 1999. [www.tagg.org/articles/xpdfs/sth9909.pdf]. 1999 ______. Notes on how classical music became “classical”. [www.tagg.org/teaching/classclassical.pdf]. 2000a. ______. High and Low, Cool and Uncool: aesthetic and historical falsifications about music in Europe.Bulgarian Musico- logy, 2/2001, ed. C Levy. Sofia: Bulgarska Akademiya na Naukute-Institut za izkustvoznanie: 9-18. Expanded version of homonymous paper was delivered to the IASPM (UK) conference at the University of Guildford (July 2001) [www. tagg.org/articles/iaspmuk2000.html]. 2001a ______. Twenty Years After. Speech delivered at Founder’s Event, 11th International IASPM Conference, Turku, 8 July 2001 [www.tagg.org/articles/turku2001.html]. 2001b. ______. Kojak: 50 Seconds of Television Music. New York: The Mass Media Music Scholars’ Press (2nd edition; 1st published 1979 by Musikvetenskapliga institutionen vid Göteborgs universitet) (www.tagg.org/mmmsp/kojak.html). 2001c. ______. Fernando The . New York: The Mass Media Music Scholars’ Press (www.tagg.org/mmmsp/fernando.html). 2001d. TAGG, P.; CLARIDA, R. Ten Little Title Tunes. New York: The Mass Media Music Scholars’ Press (www.tagg.org/ mmmsp/10Titles.html). 2003. ______. Music’s Meanings; online draft at www.tagg.org/bookxtrax/NonMuso/NonMuso.pdf. 2009a. TAMLYN, G. The Big Beat: Origins and development of snare backbeat and other accompanimental rhythms in Rock ‘n’ Roll. 1998, Liverpool: University of Liverpool, PhD Thesis, Institute of Popular Music. 1998.

Referências de áudio THE CHIFFONS. He’s So Fine: Stateside SS 172 (UK). Also on Legends of Rock’n’Roll. Tring TTMC 088 (n.d., c.1994). 1963. THE EDWIN HAWKINS SINGERS. Oh Happy Day: Pavillion 20001 (US); Buddah 201048 (UK). Also on 20 Heavy Hits, Crystal S-600. 1969. HARRISON, George. My Sweet Lord: Apple R5884 (UK). 1971. NORMAN, Monty. ‘Dr No’ – main titles (the ‘James Bond Theme’). In Dr No: MGM / UA Home Video. PES 99210 (1992). On The Best of Bond: UA UAS 29021 (1975) and on Il terzo uomo e altri celebri film: RCA Cinematre NL 43890 (n.d.). 1962. THE SOURCE FEATURING CANDI STATON. ‘You Got The Love — “Now Voyager” mix’. On Pure Dance ‘97. Polygram TV 555 084-2. 1991.

16 TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

Notas 1 Este artigo foi originalmente preparado para a conferência sobre Análise sobre Música Popular, ministrada na University of Cardiff (País de Gales) em 17 de novembro de 2001. Esta versão foi atualizada em Montreal em 10 de julho de 2009. Para termos e abreviatura especiais, veja o Glossário em www.tagg.org/articles/ptgloss.html. 2 “Muso” é uma gíria ligeiramente depreciativa que denota alguém preocupado em fazer música ou falar de música e relativamente desinteressado em qualquer outra coisa. Neste artigo o termo “muso” não é utilizado de forma depreciativa. É, simplesmente, um termo curto e conveniente para denotar alguém tanto com treinamento formal em música, quanto alguém que faz música profissional ou semi-profissionalmente, quanto aquele que se considera musicólogo, ao invés de sociólogo ou acadêmico de estudos culturais. “não-musos”, então, são todos aqueles que não se encaixam nas características descritas acima. 3 Por exemplo, embora os gastos do governo sueco com música no ano fiscal de 1980-1981 tenham sido 50 milhões de dólares, seus lucros em ações musicais na bolsa de valores foram de 150 milhões de dólares, um lucro de 300 %. Esses dados foram apresentados por K. Malm, editor da Fonogramutredningen (Stockholm, 1979), durante uma palestra na Musik i Väst, em Göteborg, Suécia, em novembro de 1981 e com base em informações da Veckans affärer e de relatórios financeiros da indústria da música. Discrepância semelhante também é visível quando sabemos que, embora existam uma associação internacional (IASPM - International Association for the Study of Popular Music) e um periódico (Popular Music) ambos dedicados seriamente ao estudo da música nos meios de comunicação em massa por mais de duas décadas, e tendo entre seus membros e leitores uma grande diversidade de áreas e profissões ligadas à música, as fronteiras entre os conhecimentos de área e o professo- rado ainda colocam obstáculos enormes àqueles que tentam dar à música o tipo de atenção que ela merece nos estudos culturais, estudos em comunicação de massa, estudos sobre cinema, sociologia, psicologia etc. 4 Alguns pesquisadores da área de comunicações alegam que propaganda ideológica [do inglês propaganda] e propaganda [do inglês advertising] são bastante diferentes. Derivo minha própria compreensão das notáveis semelhanças entre os dois conceitos a partir de uma afirmação do pioneiro da propaganda de consumo Edward Bernays. Entrevistado por Adam Curtis na rede de TV BBC para o documentário Century of the Self [O século do si mesmo], Bernays explica que o termo “relações públicas” teve de ser inventado porque “nós não poderíamos usar a palavra ‘propaganda’, uma vez que os alemães a utilizaram [durante a I Guerra Mundial]”. 5 A polaridade conceitual pöiético/estésico deriva de Molino, via Nattiez. Na versão original deste artigo (2001), utilizei os termos construcional (pöiético) e recepcional (estésico), que embora menos icônicos, eram mais conhecidos. 6 O Scotch snap ou Lombard rhythm (ritmo lombardo) é um ornamento comum na música barroca, derivado de danças folclóricas escocesas, geralmente caracterizado por uma semicolcheia seguida de colcheia pontuada, e cujo efeito é o contrário das notes inégales. 7 Na verdade, os dois últimos descritores, “acorde de espionagem” e “reverberação cavernosa”, contém os modos de denotação estésico (“espiona- gem” e “cavernosa”) e pöiético (“acorde” e “reverberação”). 8 O Casamento de Giovanni Arnolfini e Giovanna Cenami; 1434; óleo sobre madeira, 81.8 x 59.7 cm; National Gallery, Londres. Nicolas Pioch afir- mou que “o cachorro de estimação é visto como um símbolo de fidelidade e amor’ (1996, www.ibiblio.org/wm/paint/auth/eyck/arnolfini/). 9 É importante observar, por exemplo, que a denotação de elementos estruturais na tradição das ragas do norte da Índia é muito mais estésica do que na Europa Ocidental (veja MARTÍNEZ, 1996). 10 O tema metadiscurso contextual tem dominado os anais dos congressos da IASPM e as páginas do periódico Popular Music (Cambridge University Press). Discuti a disparidade institucional das competências musicais em relação aos Estudos em Música Popular em outras publicações (TAGG, 1998, 2000a). 11 Como o acorde Em Maj9, que é o acorde final de The James Bond Theme (Dr No) (NORMAN, 1962). 12 Por outro lado, a consistência estrutural dos descritores estésicos está sujeita, como veremos, a variações radicais entre diferentes populações de ouvintes em diferentes épocas e diferentes culturas. 13 IOCM [interobjective comparison material] = material de comparação inter-objetiva. Veja explicação sobre este termo no glossário online em [www.tagg.org/articles/ptgloss.html]. 14 Esta aula de análise aconteceu em 13 de novembro de 2001. A faixa musical foi You got the love da banda The Source (1997). Leo Hatton, que escolheu a faixa para análise, revelou depois que ele tinha que afinar seu sintetizador um quarto de tom acima para poder tocar junto com o CD. Isto significa que o Steinway na sala devia estar desafinado um quarto de tom abaixo. Entretanto, nenhum destes ajustes microtonais diminuem a validade da argumentação que segue. 15 Shuttle chords (acordes “vai-e-vem”) é a harmonia não-direcional que fica alternando entre dois acordes. 16 Alguns exemplos são o trabalho de MIDDLETON (1992) sobre o gesto [gesturality] e as discussões de Nicola DIBBEN (2001) sobre o Unison de Björk e de John RICHARDSON (2001) sobre as similaridades da sonoridade das cordas em músicas de Bernard Herrmann, Beatles, Stevie Wonder e Coolio (ambas palestras não publicadas, mas apresentadas no congresso Análise sobre Música Popular da University of Cardiff, País de Gales, em 2001). Eu também procurei contribuir com o desenvolvimento nesta área (veja as entradas de TAGG nas referências). Veja também a prova musicológica de Garry Tamlyn, que baseado em análise exaustiva de padrões de bateria do rhythm and blues pré-1955, mostrou a necessidade de reescrever radicalmente a história do rock (TAMLYN, 1998), e a avaliação de Serge Lacasse sobre performance vocal em palcos nas gravações de pop e rock (LACASSE, 2000). 17 PMFC [paramusical field of connotation] = campo paramusical de conotação. Veja explicação sobre este termo no glossário online em [www. tagg.org/articles/ptgloss.html]. 18 Veja entrevistas com produtores de bibliotecas de música em 1980 em [www.tagg.org/articles/intvws80v1.pdf], p.8, 24. 19 As longas citações nas próximas páginas foram tiradas de materiais do meu curso online disponível em [www.tagg.org/teaching/analys/semioma. html] e nos seus links de páginas relacionadas. 20 Veja Analyse de la musique populaire em [www.tagg.org/udem/analyse/analmpop.htm]. 21 Para as instruções completas das tarefas, veja [www.tagg.org/teaching/analys/semiomaass.html]. 22 Antes de eu escrever este artigo, as instruções das tarefas falavam de denotação “fenomenológica” e não “estésica”. As razões desta mudança de terminologia estão sumariadas na nota 5. 23 Em sessões de feedback, é sempre necessário discutir as conotações de um ponto de vista “musocêntrico”, geralmente de um ponto de partida gestual. Por exemplo, conotações ostensivamente disparatadas, como “cabelo longo”, “colinas suaves” e “a praia” tem pouco em comum em termos de tamanho físico, textura etc. Gestualmente, entretanto, o cair do cabelo longo, as curvas de colinas arredondadas e o varrer da areia na praia por suaves ondas, todas estas descrições tem denominadores comuns. Para saber mais sobre os princípios da “inter-conversação gestual” e música, veja a análise de The Dream of Olwen (TAGG e CLARIDA, 2003, p.231-266). 24 Esta aula aconteceu em 20 de novembro de 2001. Se me recordo corretamente, o “trechinho do Vivaldi” ocorreu na trilha sonora de Great expecta- tions (Direção de Alfonso Cuaron, 1998), “uma sonoridade tipo Carmina Burana” em uma cena de The Mummy (Direção de Stephen Sommers, 1999).

17 TAGG, P. Análise musical para “não-musos”: a percepção popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.7-18.

25 O acorde menor com sétima (ou menor com nona), que é a sonoridade final do James Bond Theme (NORMAN, 1962) é geralmente ouvido como “acorde de detetive” ou “acorde de espião” (veja a nota de rodapé 10 e análise de Streetcar named desire em TAGG e CLARIDA, 2003). Para detalhes da “meia-cadência cowboy”, veja a análise de The Virginian em TAGG e CLARIDA (2003). 26 Tento persuadir os alunos que formular questões e encontrar respostas é a marca de bom pesquisador e que “não-saber” é um pré-requisito para formular as questões corretas. Além disso, estas questões ajudam a reestabelecer a autoconfiança entre os “musos” que possam estar na aula. 27 Para saber mais sobre os tipos de persona vocal, veja o Capítulo 9 de Music’s meanings, disponível em (www.tagg.org/bookxtrax/NonMuso/NonMuso.pdf). 28 Não tenho a liberdade de revelar a identidade desta pessoa. Ela concordou, entretanto, em escrever suas experiências deste episódio de sua vida.

Philip Tagg é Professor de Musicologia na Faculté de Musique da Université de Montréal (Canadá). Co-fundador da In- ternational Association for the study of Popular Music (IASPM) e mentor da Encyclopedia of Popular Music of the World (EPMOW), publicou dezenas de artigos nos mais renomados periódicos. Foi professor do Institute of Popular Music da Uni- versity of Liverpool (Inglaterra), onde orientou mestrandos e doutorandos e desenvolveu cursos de musicologia, análise, harmonia e semiologia relacionados à música popular. Trabalhou também na University of Göteborg (Suécia) e Swedish Council for Research in the Humanities and Social Sciences (Suécia). É organista erudito e tecladista em bandas de rock e pop, entre elas Röda Kapellet. Como compositor, escreveu obras corais e canções populares. É autor e colaborador de diversos programas de rádio educacionais relacionados à música popular. Recebeu diversos prêmios nas áreas de com- posição, ensino e pesquisa. Seu site www.tagg.org é um dos sites de musicologia e etnomusicologia da música popular mais visitados em todo o mundo, no qual dispobiniliza gratuitamente significativa parte de sua extensa obra didática e de pesquisa.

Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Maurício Tizumba e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazil- ian Music for the Double Bass, o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier).

18 MANSILLA, S. L. Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.19-27.

Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina

Silvina Luz Mansilla (Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires, Argentina). [email protected]

Resumen: El artículo se refiere a la canción Hermano compuesta por el músico Carlos Guastavino sobre una poesía de Hamlet Lima Quintana. Dedicada al editor Rómulo Lagos, grabada por Mercedes Sosa en 1966. Incluida como pista inicial del disco de la cantante tucumana al cual le dio su nombre, la canción constituye una evidencia de la simpatía del compositor con los postulados centrales del Nuevo Cancionero argentino. El trabajo comprende una aproximación a la temática del poema, el análisis musical de la partitura, la puesta en contexto de las circunstancias de composición y difusión y la descripción de la versión grabada por Mercedes Sosa. Aplicando la noción “mundos del arte” de Howard BECKER (1982), se interpreta la red de personas ligadas a la editorial Lagos como un tejido cooperativo que funcionó con eficacia hasta mediados de la década de 1970. Un esbozo del contexto posterior, signado por la censura, permite inferir algunos factores que incidieron en el quiebre de esa red de colaboraciones. Aunque respecto de Guastavino, se habla aquí de vinculación y no de pertenencia. Palabras clave: Carlos Guastavino, Nuevo cancionero, censura, Mercedes Sosa, canción popular.

Carlos Guastavino and Lima Quintana’s contribution to the world of the Argentinean New Song

Abstract: Study about the song Hermano by Argentinean composer Carlos Guastavino written after a poem by Hamlet Lima Quintana. Dedicated to the editor Rómulo Lagos, the song was recorded by the Argentinean singer Mercedes Sosa in 1966. Included as the first track in that record (to which it gave its name), the song constitutes an evidence of the composer’s sympathy with the central postulates of the Argentinean New Song. This paper’s perspective integrates the poem’s subject, the score’s musical analysis, the study of the context concerning with the composition and spreading circumstances and the description of the performance recorded by Mercedes Sosa. Applying the notion of “art worlds” by Howard BECKER (1982), we interpret the persons net connected with Lagos publishing, as a co-operative and in- terwoven fabric that effectively worked until the mid 1970s. A sketch of the following context, signed by the Argen- tinean censorship, reveals some factors that had influence on the crack of that collaborative net. Although it concerns Guastavino, our approach is concerned with connection and not to belonging. Keywords: Carlos Guastavino, Argentinean New Song, censorship, Mercedes Sosa, folk song.

1- Introducción1 El 23 de junio de 1966 la revista argentina Confirmado (PORTORRICO, 2004, p.355). Ahora en cambio, faltaba publicó una nota referida a la cantante tucumana Mer- poco tiempo, apenas días, para el comienzo de una fase cedes Sosa, bajo el título Folklore: ese camino difícil.2 nada gloriosa de la historia de Argentina: el 28 de junio Hacía poco tiempo -apenas algo más de un año- que de ese año asumiría la presidencia de la nación el Ge- ella protagonizaba el mayor éxito como la voz femenina neral Juan Carlos Onganía. Se iniciaría así una etapa, al del boom del folclore. Su momento clave de consagra- decir de Luis Alberto ROMERO (2001), de shock autori- ción artística, ocurrido en enero de 1965 en el Festival tario, en la que el rumbo de la Nueva Canción empren- de la localidad cordobesa de Cosquín, había consistido dería en ese país un período de lucha por imponerse, en unos pocos minutos de actuación –escasos pero glo- emergiendo desde algunos espacios recoletos, a la som- riosos– cedidos por en el escenario mayor bra de una persistente censura.3

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 15/05/2009 - Aprovado em: 22/04/2010 19 MANSILLA, S. L. Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.19-27.

El segundo disco de Mercedes Sosa (1935-2009), titu- Ubicado en la década de 1960 en lo que Sergio Pu- lado Hermano, apareció hacia fines de 1966.4 Postulo jol denomina un “mundo poético coloquial y directo”, aquí que su primera pista, que contenía la canción ho- Lima Quintana encarnaba la imagen del juglar, que mónima de Hamlet Lima Quintana (1923-2002) y Carlos había vuelto a aparecer con fuerza y que se expresaba Guastavino (1912-2000), constituye una significativa a través de un estilo poético de corte popular, deseo- evidencia de la simpatía del compositor santafesino so de sonido, de musicalización (PUJOL, 2002, p.133- con los postulados centrales del manifiesto del Nuevo 135). Unos meses antes de la grabación de Hermano, Cancionero y por ende, con su línea de pensamiento. se había dado a conocer su célebre Zamba para no mo- Interpreto las circunstancias relacionadas con la pro- rir (con música de Norberto Ambrós y Néstor Rosales),9 ducción y circulación de la canción Hermano, dedicada en la voz de Mercedes Sosa. Incluida en su primer dis- al editor de música Rómulo Lagos. Si bien no se conoce co larga duración titulado Yo no canto por cantar, fue que el músico haya adoptado públicamente actitudes sin duda uno de las piezas consagratorias del poeta, y comprometidas en el campo de la política, recrear aquel de la intérprete.10 No es difícil suponer entonces que el contexto en el que se movió durante la década de 1960 disco Hermano, separado por pocos meses del anterior, y conocer su manera de relacionarse con los integrantes pasara algo opacado por el rápido reconocimiento del del Nuevo Cancionero, ayuda a comprender la disminu- público que alcanzó la Zamba para no morir. Tampoco ción que se produce en la difusión de su música en los es antojadizo pensar que haya sido el género el que años de la última dictadura militar argentina. incidió en su mayor popularización, puesto que como se ha dicho, el “boom del folclore” fue en gran medida El marco que encuentro apropiado para esta reflexión el “boom de la zamba”.11 es la noción de mundos del arte de Howard BECKER (1982). Verdadera red de colaboración que conforma La admiración de Lima Quintana por la voz de la cantante un tejido complejísimo de intereses de todo orden en tucumana, ha quedado así descripta: el que se engloban no solo los artistas, sino también los consumidores, mecenas y críticos, el mundo de la Nue- “[...] Mercedes no era entonces conocida. Era una ignorada can- va Canción, según mi análisis, aproximó a la música de tora que nos ponía la piel de gallina cuando largaba la voz. Re- 5 cuerdo que yo bajaba la escalera [se refiere a la entrada de la Guastavino a los ámbitos de la militancia progresista. peña El Hormiguero] cuando escuché: ‘Romperá la tarde mi voz/ hasta el eco de ayer...’ Bajé tres escalones más... y continuó: ‘Voy El trabajo comprende una aproximación a la temática del quedándome sola al final/ muerta de sed/ harta de andar/ pero poema, el análisis musical de la partitura, la puesta en sigo creciendo en el sol/ vivo…’ Recién cuando bajé el último escalón pude ver, sentados junto a una mesa, a Mercedes y al contexto de la versión grabada por Mercedes Sosa y un Monchito [Ramón Miérez] ensayando la Zamba para no morir. esbozo sobre algunos factores que pudieron incidir en la Era la primera vez que la escuchaba cantada. Todavía me duele menor circulación durante fines de los años 70. Desde el la felicidad…” (LIMA QUINTANA, 1994, p.15) punto de vista metodológico, apelo al contraste entre la información obtenida de algunas fuentes hemerográficas 3- Poesía, música e ideologías con aquella procedente de entrevistas cualitativas, en las El texto de Hermano aparece ligado a la forma de ex- que he empleado herramientas de historia oral. presión poética de corte popular cultivada en Argentina por esos años.12 (Ex.1) Sutilmente contestatario, con una 2- Lima Quintana, Mercedes Sosa y Guas- métrica predominantemente octosílaba en las estrofas de tavino cuatro versos, dice: Las fuentes orales consultadas confirmaron la sospecha inicial: fue el editor Rómulo Lagos quien, como en otros Fíjate hermano cómo vas cantando, casos, concertó la presentación recíproca entre Carlos Toda la tierra te escucha conmigo. Guastavino y el poeta a musicalizar.6 A la primera colabo- Del surco hasta el cañadón, ración de 1963, que aquí estudiamos, le siguieron después Del viento hasta la madera, algo más de una decena de piezas en conjunto: El único Del tiempo hasta la ternura en 1964, en 1965 y finalmente el ciclo camino Pampamapa de la vida verdadera. de nueve canciones titulado Edad del asombro, en 1968, referido a la infancia y al pasaje del niño a la adolescencia. Porque es preciso tener Un corazón derramado Hamlet Lima Quintana, poeta, cantor, autor y también, Jirones de sueños viejos compositor,7 comenzó a tener difusión en el ámbito de que van quedando olvidados. la canción de raíz folclórica en Buenos Aires a principios Fíjate hermano cómo vas cantando, de 1962, al grabar su zamba La amanecida, que había Toda la tierra te escucha conmigo. compuesto nueve años antes con Mario Arnedo Gallo. Conoció en 1963 a Armando Tejada Gómez y otros refe- Del grito hasta la oración, rentes de la Nueva Canción argentina e inmediatamente del fuego hasta la memoria comprendió que compartían similitud de temáticas, ob- que el hombre en dolor viviente jetivos y estilo literario.8 canta sangre de su historia.

20 MANSILLA, S. L. Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.19-27.

Esta actitud de defensa, tanto de la posibilidad de acerca- Y cuando quede al final miento a los otros a través de la poesía como de la exis- tu corazón silencioso tencia de una conexión ‘natural’ entre música y poesía, serás un pueblo sintiendo permitió a Lima Quintana explicar la causa de su situa- por un cantor milagroso. ción de poeta ignorado por la elite literaria y por la crítica argentina. Según comenta en su libro, la calificación de Fíjate hermano cómo vas cantando, ‘poeta marginal’ con que se lo rotuló en las cátedras uni- Toda la tierra te escucha conmigo. versitarias de literatura argentina durante la dictadura de Onganía, radicó en que escribía canciones. El resto de su Ex.1. ‘Hermano’. Poema de Hamlet Lima Quintana. producción, editada en libros, no fue tomada en cuenta.15

Sugiere el poema la idea de una hermandad universal a la cual se podría acceder mediante el canto: el cantor, 4- Aproximación analítica constituido en la arcilla o el elemento aglutinante de los La partitura de Guastavino recurre a un entorno prove- pueblos, realizaría ese milagro al convertirse en el por- niente de la cifra y de la milonga, posiblemente por la 13 indicación de ‘canción al sur’ realizada por Lima Quinta- tavoz de sus necesidades, penas e historias. El conte- 16 nido de este texto se podría encuadrar claramente en el na, que refiere en forma rotunda al folclore sureño. La aparición del ritmo de se da en las cuartetas oc- tipo de canciones “políticas” “con sentido amplio y va- milonga tosilábicas prefiriendo el músico para los dos versos que lórico,” como llama Eduardo CARRASCO PIRARD (1999, p.68) al nutrido repertorio con temáticas en las que se enmarcan simétricamente comienzo, mitad y cierre del ponen en juego valores sociales en la música popular poema, un pasaje enfático donde el canto, en ritmo casi chilena de la misma década. libre, entona en el estilo de la cifra, el mensaje principal allí contenido “sin rigor, casi recitado” (Ex.2).17 En relación con esto, Omar CORRADO (2001, p.18) ha su- gerido ya, levemente, una posible pertenencia de Guasta- Quasi improvisada, la introducción pianística tiene vino a la izquierda, cuando expresa que “no es fortuito” una textura de melodía acompañada que puede decir- que el compositor se interesara por musicalizar algunos se, evoca un fragmento guitarrístico, por la manera en poemas de Rafael Alberti, Pablo Neruda y Luis Cernuda. que se articulan figuraciones con puntillo, en las que Por mi parte, de las numerosas comunicaciones persona- sobresalen saltos de terceras descendentes y acordes les y entrevistas mantenidas con él a lo largo de varios arpegiados que conducen primero a una semicadencia años, no emanó con precisión que hubiera adherido a sobre el acorde de dominante y luego a una cadencia alguno de los partidos políticos de esa tendencia o que evitada al sexto grado. hubiera estado formalmente afiliado. Era notable no obs- tante, como lo han resaltado también otras personas que El ambiente tonal elegido para este tempo andante que lo conocieron y trataron, su denodada búsqueda por la requiere la milonga campera, es típico del estilo guas- valoración del hombre, su defensa de la libertad de expre- taviniano de raíz folclórica. Recurre una vez más a una sión y su enorme sensibilidad para con los desposeídos.14 tonalidad menor (Sol menor), alude muy brevemente a tonalidades vecinas como la subdominante (Do mayor) y Entrevistados por Marcela GONZÁLEZ (1999, p.83), dos “colorea” los giros cadenciales de dominante-tónica con músicos argentinos muy allegados al compositor –el la evocación clara del modo frigio, lo cual es caracte- guitarrista Vicente Elías y la pianista Elsa Puppulo–re- rístico de la melódica criolla según lo estudiara Gerardo frendaron estas ideas hacia fines de los 90. Elías afirmó HUSEBY (2002-2003, p.97-114). (Ex.2, c.13-14) que “[...] era una persona muy democrática, con gran sentido de la libertad y de valoración del ser humano [lo La articulación de las ideas en las estrofas de cuatro versos cual] en épocas pasadas [...] equivalía a ser comunista.” se realiza cada dos compases, entrando cada una de ellas Puppulo, por su parte, dijo que “[...] se armó gran con- en forma anacrúsica o tética según lo requiere la adecua- fusión con la gira que concretó por la antigua U.R.S.S. da acentuación de las palabras. El ajuste texto-música, y China. Inmediatamente fue tildado de comunista [...]; como en la milonga campera, es silábico. El acompaña- bastó esa referencia para descalificarlo.” miento en estas estrofas, que el autor indica ejecutar en forma monótona, recurre a un ostinato de dos semicor- Con respecto a Lima Quintana, afiliado al partido comu- cheas-corchea sobre cada tiempo, asimilable totalmente nista hasta sus últimos días, resulta de interés rescatar a las convenciones de la milonga. Dispone además las aquí sus explicaciones en torno a la ligazón entre poesía estructuras acórdicas a la manera del acompañamiento y música. Escribió: guitarrístico que habitualmente sigue al punteo en ese género (Ex.3).18 Solo pierde su isocronía hacia el final de “No establezco diferencias cuando escribo una poesía para ser la segunda y de la cuarta cuartetas, cuando Guastavino cantada, con la poesía que escribo para ser leída. Son dos formas desea remarcar el climax del trozo permitiéndole al can- diferentes con un mismo mensaje, una misma intención y un idén- tico fin: entablar el diálogo con los otros, los semejantes. Además, to protagonizar, en tempo más rubato, los pasajes que no se debe echar al olvido que la música es el vehículo natural de permiten al oyente completar la audición de las frases, la poesía.” (LIMA QUINTANA, 1994, p.31) encontrando la simetría de las partes.

21 MANSILLA, S. L. Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.19-27.

Ex.2. Lima Quintana-Guastavino, Hermano. C.5-14 (Warner Chappell Music). Elementos de la cifra: presencia del modo frigio

5- La versión de Mercedes Sosa vez, que la tradición cantada sea una pieza de museo para La revista Primera Plana recogió ideas muy claras de la can- exclusivo uso de investigadores y antropólogos”.� tante tucumana respecto del contenido del disco Hermano. “El folklore de hoy debe dirigirse al hombre y no al paisaje.” Sergio PUJOL (2002, p.286-287) afirma que es Mercedes “Hay que lograr la unión que la geografía obstaculiza.” “Eso Sosa quien sintetiza los aportes de la ola folclórica de los no se logrará sino hablándole al hombre: la miseria y el años 60 y quien con “su voz grave y despojada, se convirtió dolor son los mismos en todas partes.” Frases enfáticas, en el instrumento más virtuoso del boom.” Cierto es que cargadas de humanismo, permitieron al comentarista con- fue una de las figuras que resultó más seguida y aclama- cluir, de cara al futuro, que Hermano “desmiente, de una da por el público, pero resulta difícil afirmar sin pruebas

22 MANSILLA, S. L. Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.19-27.

fehacientes que su éxito haya sido más franco que los de nera aproximativa que las que más han perdurado de o Eduardo Falú. De lo que sí no caben este álbum en cuanto a circulación hasta la actualidad, dudas, es que ha sido la voz femenina más solicitada. serían la segunda y la sexta de aquel disco. Véase el contenido completo en el Ex4. Los momentos culminantes de la carrera de Mercedes Sosa en que se da la aparición del disco Hermano vienen Una recorrida rápida por el listado de personas citadas encuadrados del siguiente modo: unos meses antes, la en la tabla, arroja hasta donde se ha podido indagar la grabación del Romance de la muerte de Juan Lavalle (de siguiente posible red de cooperaciones, de ninguna ma- Eduardo Falú y Ernesto Sábato) y la aparición del disco Yo nera excluyente ni definitiva: Tejada Gómez, la intérpre- no canto por cantar ya mencionado; unos meses después, te y Matus son fundadores del Nuevo Cancionero.21 Lima la primera gira europea con , Jaime Torres y Quintana se integra a ese movimiento al trasladarse los Los Fronterizos, de la cual surgió la propuesta de Ramírez anteriores tres a Buenos Aires. Moncho Miérez estuvo para ser la intérprete de su ciclo Mujeres .� ligado a la editorial Lagos y fue el guitarrista acompa- Hermano contiene doce canciones. La primera y la últi- ñante de Mercedes Sosa durante los primeros años en ma pertenecen a Lima Quintana. Podría decirse de ma- que ella se estableció en Buenos Aires y quien le ense-

Ex.3. Lima Quintana-Guastavino, Hermano. C.15-19 (Warner Chappell Music). Elementos de la milonga.

Pista Título Poeta Compositor 1 Hermano (Canción) Hamlet Lima Quintana Carlos Guastavino 2 Chacarera del 55 (Chacarera) José y Rafael Núñez José y Rafael Núñez 3 Para mañana (Zamba) José R. [Moncho] Miérez José R. [Moncho] Miérez 4 Pescadores de mi río Chacho Müller Chacho Müller 5 Coplera del viento (Canción) Armando Tejada Gómez Oscar Matus 6 Quiero ser luz (Zamba) Daniel Reguera Daniel Reguera 7 Zamba del chaguanaco Antonio Nella Castro Hilda Herrera 8 Tristeza (Tonada) José y Rafael Núñez José y Rafael Núñez 9 La bagualera (Baguala) Ariel Petrocelli Ariel Petrocelli 10 Palomita del valle (Vidalita) Ernesto Sábato Eduardo Falú 11 Monte chaqueño (Canción) Ángel [Kelo] Palacios Ángel [Kelo] Palacios 12 Esto azul (Cueca) Hamlet Lima Quintana Hamlet Lima Quintana

Ex.4.Contenido del disco Hermano. Mercedes Sosa. (Philips, 82122 PL.1966)

23 MANSILLA, S. L. Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.19-27.

ñó la Zamba para no morir.22 Eduardo Falú interpretó la tas, el guitarrista vuelve a intervenir con el mismo pasa- música instrumental de Guastavino, adaptó y grabó al- je introductorio, cantando esta vez la solista la melodía gunas de sus canciones, compuso obras en colaboración escrita, en vez de recitar el texto.27 Para finalizar, la gui- con él, fue su alumno, asesor y amigo. Ariel Petrocelli, tarra agrega un brevísimo postludio individual solísti- el autor de la popular Cuando tenga la tierra,23 publicó co, antes del cierre de los dos versos finales y adiciona toda su obra en la editorial Lagos. Kelo Palacios fue du- todavía dos compases y un acorde, luego que concluye rante nueve años el arreglador y guitarrista de Mercedes el texto. La versión responde a todas las convenciones Sosa. Hilda Herrera, pianista cordobesa, publicó también requeridas por el género. su composiciones en la editorial Lagos. 6- Miedo, censura encubierta El disco Hermano apareció a la venta en noviembre de Iván Cosentino, conocido editor de discos en Argentina, 1966. En la revista Primera Plana se lo publicitaba junto a sugirió una reducción en la circulación de la música de otras novedades discográficas de la música de raíz folcló- raíz folclórica desde mediados de la década de 1970.28 Sin rica argentina como Bienvenido Falú, La Rioja en la sangre duda, ello se enmarca en el ya bien estudiado contexto de Chito Zeballos y El grito macho de Horacio Guarany.24 político-cultural de la última dictadura militar del siglo XX argentino que, como es sabido, sentó sus bases en El papel predominante de Mercedes Sosa en el ámbi- métodos de censura de variados tonos e intensidades. to de la canción popular en aquellos tiempos quedó claramente expresado en la calificación de “máxima La época no fue propicia entonces ni para la difusión de sacerdotisa del cancionero de provincias” con que Pri- la canción folclórica en general ni tampoco, para la difu- mera Plana describió su éxito en los días previos al sión musical de Guastavino.29 La información recogida en Festival de Cosquín de 1967. En concordancia con los las entrevistas revela que hubo un retraimiento obligado conceptos de Confirmado mencionados más arriba, el en quienes producían, interpretaban, editaban, grababan, comentarista no pudo dejar de resaltar lo ‘difícil’ que distribuían y vendían los productos artísticos del repertorio resultaba, desde la recepción, ese repertorio. “Es difícil de raíz folclórica. La autocensura debida al miedo, que bien trabar amistad con ese grito duro y auténtico, con ese puede entenderse como una censura encubierta, ocasio- estilo que parece desmañado pero que proviene de una nó lo que alguno de nuestros entrevistados calificó como prolija maceración.”25 un “desbande”, esto es, la desintegración de aquel mundo, de aquellas redes de cooperación que antes funcionaran Acaso la voluntad de la cantante, y/o de sus asesores o de manera dinámica, creativa y eficaz. Lo sucedido con el empresarios, por querer desarrollar un estilo autorizado, mundo de la Nueva Canción en Argentina es lo que Hernán válido, que sirviera “para decir cosas importantes”, haya INVERNIZZI y Judith GOCIOL (2003. p.73) describen como tenido que ver con la elección de Hermano para dar una “falta de referencias, un desconcierto [que impide] ha- nombre a su disco y con la ubicación de la canción en la cer planes coherentes, dificulta las reacciones meditadas y pista inicial. No deja de ser probable que este ‘folclore’ solo puede producir miedo y autocensura”.30 arduo, que intentaba apartarse del “puro documento” –como dice el comentarista de Confirmado en el artícu- En tal sentido, Hamlet Lima Quintana, Armando Teja- lo que se ha citado al comienzo de este trabajo– haya da Gómez, Norberto Ambrós, Horacio Guarany, Merce- decidido recurrir a Guastavino por ser un creador con des Sosa, luego de varias amenazas y algún atentado, una trayectoria académica previa, como manera de con- debieron partir por varios años hacia el exilio.31 Ariel validar su propio estilo.26 Petrocelli optó retraerse trasladándose, en las sombras de una situación casi de clandestinidad, a alguna pro- En cuanto a la versión que grabó Mercedes Sosa, se en- vincia argentina.32 Iván Cosentino soportó allanamien- cuentra acompañada totalmente con guitarra. La guita- tos y citaciones intimidatorias.33 Carlos Alonso, el artista rra realiza una introducción de acordes arpegiados sobre plástico que ilustró varias portadas de la colección de ritmo de milonga que giran en torno a las funciones de partituras de Lagos denominada “Canción Estampa”, su- tónica, dominante y dominantes secundarias arribando, frió la desaparición de su hija y se exilió en España.34 hacia la entrada de la voz, al acorde de tónica y no hacia Rómulo Lagos, por su parte, vio decaer su empresa ante la cadencia rota que Guastavino escribió en la partitura la imposibilidad de ofrecer al público el material consi- pianística. Una melodía apenas esbozada, cómoda a las derado “riesgoso”.35 posiciones de esos arpegios en la guitarra, reemplaza a la original en la introducción. La solista recita, en vez 7- Epílogo. Hacia las salas de concierto de cantar, los dos primeros versos, sobre acordes arpe- Guastavino optó en aquellos años por el silencio. Un giados en la guitarra. Canta a continuación, en forma silencio explicable en una mentalidad como la suya, casi libre, la repetición del segundo verso. Luego, en las aunque se ha hablado aquí de vinculación y no de per- cuartetas octosílabas, entona la melodía –acompañada tenencia; un silencio que, de no ser por algunas esca- por la guitarra– respetando la mayoría de las alturas y sas producciones posteriores de fines de la década de acentuaciones, pero ajustando la rítmica a su peculiar, 1980 y principios de la siguiente, lo apartó ya definiti- atractiva, manera de expresión. Al terminar las cuarte- vamente de la composición.

24 MANSILLA, S. L. Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.19-27.

Pero su silenciamiento local dio paso al progresivo es- así la cualidad primeramente militante, que le otorgara parcimiento de su música por el resto del mundo. Redes- el timbre vocal inconfundible y la manera enfática de cubierta por cantantes del ámbito culto, Hermano cir- transmisión, propios del estilo interpretativo de Merce- cula desde hace aproximadamente cinco lustros como des Sosa.36 Grabada por el barítono argentino Marcos canción de cámara, fiel en un alto porcentaje a la par- Fink acompañado al piano por Luis Ascot circula, en los titura escrita por el autor y a la edición de Lagos, bajo globalizados tiempos actuales, dentro de las convencio- las convenciones ahora, de la música académica. Perdió nes venerables e institucionalizadas del lied.37

Referencias bibliográficas ARETZ, Isabel. El folklore musical argentino. 3ª edición. Buenos Aires: Ricordi, 1970. BECKER, Howard S. Los mundos del arte. Sociología del trabajo artístico. (Traducción de Joaquín Ibarburu). Bernal (provincia de Buenos Aires): Universidad Nacional de Quilmes, 2008. [Original: Art Worlds. Berkley: University of California Press, 1982]. BUCH, Esteban. The Bomarzo Affair. Ópera, perversión y dictadura. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2003. CARRASCO PIRARD, Eduardo. “Canción popular y política”, Rodrigo Torres (ed.) Música popular en América Latina. San- tiago de Chile: IASPM-FONDART, 1999, p.62-70. CORRADO, Omar. “Música culta y política en Argentina entre 1930 y 1945: una aproximación”, Música e Investigación 9. Buenos Aires: INM, 2001, p.13-33. GARCÍA, María Inés. Tito Francia y la música en Mendoza, de la radio al Nuevo Cancionero. Buenos Aires: Gourmet Musical Ediciones, 2009. GONZÁLEZ, Marcela. “Carlos Guastavino. La poesía del encuentro”, Ismos, arte y música nº 1, Oviedo (España): Vicerrec- torado de estudiantes, 1999, p.71-86. GUARANY, Horacio. Memorias del cantor. Casi una biografía. Buenos Aires: Sudamericana, 2002. HUSEBY, Gerardo, “Presencia del modo frigio en la melódica criolla”, Revista Argentina de Musicología 3-4. Buenos Aires: AAM, 2002-2003, p.97-114. INVERNIZZI, Hernán y Judith GOCIOL, Un golpe a los libros. Represión a la cultura durante la dictadura militar. Buenos Aires: Eudeba, 2003. LIMA QUINTANA, Hamlet. Para no morir. Buenos Aires: Torres Agüero, 1986. LIMA QUINTANA, Hamlet. Los referentes (Una historia de amistad), Buenos Aires: Torres Agüero, 1994. MANSILLA, Silvina Luz. La obra musical de Carlos Guastavino. Circulación, recepción, mediaciones. Buenos Aires: Gourmet Musical Ediciones, 2010. PLESCH, Melanie. “La música en la construcción de la identidad cultural argentina: el topos de la guitarra en la produc- ción del primer nacionalismo”, Revista Argentina de Musicología 1. Córdoba (Argentina): AAM, 1996, p.57-68. PORTORRICO, Emilio. Diccionario biográfico de la música argentina de raíz folklórica, 2ª edición. Buenos Aires: el autor, 2004. PUJOL, Sergio. La década rebelde. Los años 60 en la Argentina. Buenos Aires: Emecé, 2002. ROMERO, Luis Alberto. Breve historia contemporánea de la Argentina. 2ª edición. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econó- mica, 2001. VILA, Pablo. “Música popular y auge del folklore en la década del ‘60”, Crear en la Cultura Nacional II: 10, Buenos Aires, sept-oct 1982, p.24-27.

Sitio electrónico Sitio oficial de Mercedes Sosa: http://www.mercedessosa.com.ar. Último acceso: 10 de marzo de 2009.

25 MANSILLA, S. L. Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.19-27.

Notas 1 Agradezco especialmente a María Inés García, Esteban Buch, Emilio Portorrico, Omar Corrado y Melanie Plesch por los comentarios realizados en diferentes momentos a este texto. A Ricardo Jeckel, por su ayuda técnica con los ejemplos musicales. Una primera versión de este trabajo fue leída en agosto de 2004 en Mendoza (Argentina), en el marco de la XVI Conferencia de la Asociación Ar- gentina de Musicología, co-organizada con la Facultad de Artes y Diseño de la Universidad Nacional de Cuyo. Un desarrollo bastante mayor de esta temática, se encuentra contenido en el capítulo quinto de La obra musical de Carlos Guastavino. Circulación, recepción, mediaciones, libro de mi autoría (Gourmet Musical Ediciones, 2010). Agradezco especialmente a Leandro Donozo por autorizar la inclusión aquí de una parte de ese texto, al momento de la edición de esta revista, aún inédito. 2 Confirmado, 23-6-1966, p.57. El artículo no lleva firma. 3 La expresión shock autoritario pertenece a Luis Alberto ROMERO. El historiador explica que se disolvieron los partidos políticos y se les confiscaron y vendieron todos sus bienes como para confirmar que la clausura de la vida política era irreversible. Se combatió especialmente al comunismo, sobre todo en las universidades públicas. Sobrevino la llamada ‘Noche de lo Bastones Largos’ y las redes intelectuales y académicas debieron sobrevivir trabajosamente en espacios semi-ocultos, debido a la amplia extensión que alcanzó la censura. (ROMERO, 2001, p.170-171). 4 Fue un disco de larga duración, editado por el sello Philips bajo el nº 82.122. 5 BECKER sostiene que todo trabajo artístico involucra la actividad conjunta de un número de gente y asigna importancia a la red de gente que co- opera –y cuyos trabajos son esenciales– en pos de un resultado final de la obra. (BECKER, 1982). Sobre la aplicación del marco teórico a este objeto de estudio véase MANSILLA, 2010. 6 El guitarrista Ramón Miérez lo relata con toda claridad: “Lagos le propone a Hamlet musicalizar sus poemas con Guastavino” (Entrevista con la autora 5-10-2003). A la colección La verde rama, de Lagos, pertenece el libro Cuentos para no morir, de Hamlet Lima Quintana, con prólogo de Armando Tejada Gómez (LIMA QUINTANA, 1994, p.44). 7 Autor de los libros Mundo en el rostro, Pampamapa, en la huella en el sur, Sinfonía de la llanura, Situación personal, Cuentos para no morir, Calfucurá, Los estafados, Declaración de bienes, La breve palabra, Los referentes y El perfeccionista, entre otros. También escribió una biografía del famoso pianista y compositor de tango, , en 1990. (PORTORRICO, 2004, p.232-233). 8 No puedo extenderme aquí sobre qué fue el Nuevo Cancionero, pero al menos una breve nota para explicarlo: su actividad, que comenzó a principios de la década de 1960, implicó un proceso de renovación de la canción popular basada en elementos folclóricos y propuso una búsqueda de integra- ción entre los distintos géneros musicales en un afán de innovación en la poesía y en la música. Fundado por los músicos Tito Francia, Juan Carlos Sedero y Manuel Oscar Matus, los poetas Armando Tejada Gómez y Pedro Horacio Tusoli, Mercedes Sosa y el bailarín Víctor Nieto, el movimiento presentó sus objetivos y postulados en un manifiesto que lanzó el 11 de febrero de 1963 a través del periódicoLos Andes, en la ciudad argentina de Mendoza (Véase GARCÍA, 2009 y MANSILLA, 2010). 9 Norberto Ambrós, según Iván Cosentino, trabajó también un tiempo como pianista en la Editorial Lagos: “Venían los intérpretes, los cantantes, él tocaba. ¡Nos complementábamos muchísimo! éramos muy jóvenes ambos.” (Entrevista con la autora, 1-3-2004). 10 Este disco, de mayo-junio de 1966, es el primero editado por Philips. Además de la Zamba para no morir contiene: Canción del derrumbe indio (Figueredo-Iramain), Los inundados (Aizemberg-Ramírez), La solitaria (M. Miérez), Zamba azul (T. Gómez-Tito Francia), Tonada de Manuel Rodríguez (Neruda), Zamba del zafrero (T. Gómez-Matus), (A. Aguirre), Mi canto es distancia (Matus-Paeta), Chayita del vidalero (R. Navarro), Canción para mi América (D. Viglietti) y Zamba del riego (T. Gómez-Matus). El título alude a una copla popular muy difundida con la cual comienza la canción Manifiesto de Víctor Jara, el canta-autor chileno torturado y asesinado después por la dictadura de Augusto Pinochet, en septiembre de 1973: “Yo no canto por cantar/ ni por tener buena voz/ canto porque la guitarra/ tiene sentido y razón.” 11 Coincido con esta afirmación de Pablo Vila, basada en datos estadísticos de ediciones de partituras (VILA, 1982, p.24-27).Hermano contiene un aire de milonga campera. A diferencia de la zamba, el género milonga requiere mayor destreza instrumental en el acompañamiento con guitarra, lo que no lo hace tan fácilmente accesible a cualquier aficionado. 12 Emilio Portorrico tuvo la gentileza de puntualizarme el hecho de que el poema Hermano es preexistente a la musicalización de Guastavino. Data de 1960 y según explica Lima Quintana, habría tenido antes una música de él, pues fue “cantado personalmente con música improvisada en Lima, Perú” (LIMA QUINTANA, 1986, p.24). 13 Diferente en cuanto a los propósitos poéticos de los artistas del Nuevo Cancionero pero en la misma línea temática, Horacio Guarany incursionó también en estos contenidos en su conocidísima y después muy censurada Si se calla el cantor. Sobre las alternativas que debió pasar durante los años de la dictadura militar, que abarcaron desde atentados directos a su casa, hasta prohibiciones, amenazas, llamadas telefónicas, recomendacio- nes y exilio, véase: GUARANY, 2002. 14 Dicha sensibilidad puede verse en la elección de la poesía “social” de Gabriela Mistral (Piececitos, por ejemplo: Piececitos de niño/ azulosos de frío/ ¿cómo os ven y no os cubren? Dios mío…). En cuanto a la defensa de la libertad de expresión, estuvo el caso de su opinión favorable a Ginastera cuando la prohibición de su ópera Bomarzo en el teatro Colón, expresada a la revista Gente, en pleno Onganiato (BUCH, 2003, p.128). 15 Lamentablemente no se explaya más, pero habla de “prohibiciones y censuras oficiales y otras no tanto”. Es un tópico que aún falta profundizar el de las censuras oficiales a sus libros. Comenta que el sello grabador “Azur”, dirigido por Virgilio Expósito y Jorge Montemurro, que difundía música folclórica, sufrió allanamientos durante el gobierno de Onganía, aunque salvó el material. (LIMA QUINTANA, 1994, p.32 y 36) 16 Se denomina así a la música practicada en las zonas rurales del sur de la región pampeana de Argentina. 17 De la cifra tiene el ajuste silábico, la interpretación en estilo rubato con finalidad expresiva, y el diálogo entre canto y piano, que en ese género folclórico se realiza con la guitarra (ARETZ, 1970, p.152-156). Agradezco a Ricardo Mansilla su sugerencia sobre la presencia de la cifra en esta canción. 18 Guastavino adhiere así al primer estilo nacionalista, caracterizado por este tipo de referencias a la guitarra en obras pianísticas. Sobre el particular véase PLESCH, 1996, p.57-68. 19 Primera Plana, nº 214, 31-1-1967, p.68. 20 Como se sabe, este disco contiene canciones dedicadas a mujeres destacadas de la cultura argentina, entre otras, la célebre zamba Alfonsina y el mar con texto de Félix Luna, en alusión a la trágica muerte de la escritora Alfonsina Storni. Sitio oficial de Mercedes Sosa: http://www.mercedessosa.com.ar/marcosmaster.htm. Último acceso: 10-3-2009. 21 Oscar Matus, recuérdese, estaba entonces casado con Mercedes Sosa. 22 La Zamba para no morir fue editada por Lagos en la colección “Canción Estampa”, con ilustración del pintor boliviano Raúl Lara. 23 Una de las canciones muy censuradas durante la dictadura militar, según Moncho Miérez. Respecto del tema de las recomendaciones realizadas durante el llamado Proceso de “Reorganización Nacional” acerca de la circulación de este repertorio, Alicia Lagos, hija del editor Rómulo Lagos, nos dijo: “en el ámbito musical, hubo listas... de intérpretes, de autores incluso… de temas, que no podían difundirse. Y algunos de esos eran los publicados por nuestra editorial.” (Entrevista con la autora, 10-10-2003). 24 Primera Plana, nº 204, 22-11-1966, p.87. 25 Primera Plana, nº 214, 31-1-1967, p.68.

26 MANSILLA, S. L. Un aporte de Carlos Guastavino y Lima Quintana al mundo de la Nueva Canción argentina. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.19-27.

26 Confirmado, 23-6-1966, p.57. Mercedes Sosa dice: “en el otro extremo […] están los que piensan que no importa cómo se diga, con tal de decir cosas que duelan: todos los días recibo canciones de tipo decididamente panfletario, sin ningún valor artístico, que no tengo más remedio que tirar al canasto”. 27 Aunque no aparece indicado, Miérez nos dijo que quien interpreta el acompañamiento guitarrístico en la canción Hermano, es él. (Entrevista citada). 28 “Con la llegada de estos delincuentes, el género que más sufrió fue el folclore...”, nos dijo Cosentino (Entrevista citada). 29 En un artículo aparecido en Clarín, Sergio PUJOL destaca este hecho, haciendo un poco de historia personal. Afirma que: “si bien la dictadura quemó más libros que discos y persiguió más a la literatura que a la música, la censura y la intimidación sitiaron aquella producción musical que el régimen consideraba “disolvente”. El folclore, por ejemplo. [En Buenos Aires] los servicios rastrillaban las disquerías del centro y los barrios en busca de discos de Mercedes Sosa, el Dúo Salteño, Víctor Heredia, Horacio Guarany y Los Andariegos.” (18-3-2006, Revista “Ñ” del diario Clarín). 30 Véanse los fundamentos del General de Brigada José Antonio Vaquero expresados mediante nota, al Gral. de Brigada Eduardo Harguindegui: la solución “de fondo”, dice, está en combatir a la subversión en el ámbito cultural. (INVERNIZZI-GOCIOL, 2003, p.44; énfasis mío). 31 Lima Quintana, Tejada Gómez, Mercedes Sosa y Guarany estuvieron exiliados en España. Norberto Ambrós se radicó en EEUU. 32 No se pudo ubicarlo, pero Cosentino cree recordar que se había retirado a una estancia en las sierras cordobesas. (Entrevista citada) 33 Cosentino comentó que hacia fines de los setenta, su sello discográfico Qualiton-Fonema, sufrió un allanamiento por la edición de un disco llamado Canciones para hacer pensar a los chicos, que fue considerado inapropiado. La requisa, con claro carácter intimidatorio, fue realizada por la marina, durante las horas de la noche. Después, él debió asistir durante varias semanas, todos los días al Ministerio del Interior a dar explicaciones sobre su trabajo y sobre sus planes comerciales futuros: “Entonces... me hacían entrar allí [...] me tenían en un escritorio dos horas, sin hablarme, sin atenderme, ni nada. Después venía uno y me decía: “Y qué hizo Ud...?” “Yo?, nada que ver”, contestaba. Y era siempre lo mismo, siempre lo mismo.” Comentó que no fue obligado a cerrar, pero que la presión fue muy grande: “si nos evadíamos, nos buscaban por todos lados [...] No nos cerraron, ni nada. De hecho, trabajábamos. Pero claro, todos los días, iba allá Iván.... a ‘poner la carita’ [...]. No tenía nada para decir. No pertenecía a ninguna organización […]. No la pasamos muy bien. Secuestraron todos los discos ésos, de todas las casas de discos, los quemaron... solo pudimos salvar creo que 20...” (Vico Ciliberti, el autor del disco infantil, se exilió en Italia). 34 Alonso, muy ligado a la gente de la editorial Lagos y a los artistas del boom del folclore, perdió a su hija Paloma. 35 Alicia Lagos expresó: “Yo no tengo noticias de que mi papá haya tenido problemas personalmente [...] sé que fue una época de mucho cuidado, de un perfil muy bajo para trabajar [...] no se puso a disposición del público todo el material que se consideraba censurado. Se guardó. Armando Tejada Gómez, César Isella, Ariel Petrocelli, Horacio Guarany... Ésos eran nombres que había que ‘evitar’, de alguna manera.” (Entrevista citada). 36 Agradezco a Esteban Buch esta observación, que creo aguda y precisa. 37 La grabación se realizó en Ginebra. Radicado desde mediados de la década de 1990 en Eslovenia, Fink incluye a menudo en sus recitales obras de Guastavino. (CD VEL 1059- Cascavelle, Ginebra/ CH 1996). Una grabación reciente es la de Víctor Torres, acompañado por Dora Castro al piano. (IRCO y Universidad Nacional del Litoral, 2008. IRCO 337).

Silvina Luz Mansilla (Villa Mercedes, San Luis, Argentina, 1962). Doctora en Artes por la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Licenciada y Profesora Superior de Música, especialidad Musicología por la Universi- dad Católica Argentina y Profesora de Piano, graduada del Conservatorio Nacional de Música “Carlos López Buchardo”. Docente en la cátedra “Música Latinoamericana y Argentina” de la Universidad de Buenos Aires, dicta también “Historia de la música argentina” en la Facultad de Artes y Ciencias Musicales de la Universidad Católica Argentina. Autora de artículos referidos a música académica argentina del siglo XX, tutora del equipo de investigación La música en la prensa periódica argentina (UBACyT F-831), ha sido becaria de la Dirección General de Relaciones Culturales y Científicas, de Es- paña (2000) y del Fondo Nacional de las Artes, de Argentina (2003). Colaboradora del Diccionario de la Música Española e Hispanoamericana, publicado en por la SGAE, ha obtenido subsidios del Fondo Metropolitano de Cultura del Gobierno de la ciudad de Buenos Aires (2005) y de la Fundación suiza Familie Vontolben (2007).

27 LINHARES, L. B.; BORÉM, F. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.28-38.

A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca: hibridismo entre o baião e o bebop

Leonardo Barreto Linhares (Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: Estudo sobre o reconhecimento de elementos composicionais e interpretativos característicos do baião e do bebop na Introdução e Tema da música Pro Zeca de Victor Assis Brasil (1945-1981), a partir de três fontes primárias: (1) a lead sheet editada que reproduz o manuscrito autógrafo do compositor (ASSIS BRASIL, sem data a), (2) uma lead sheet manuscrita de caligrafia anônima (ASSIS BRASIL, sem data b) e (3) a lead sheet editada da transcrição a partir da gravação do compositor (ASSIS BRASIL, 1974), incluindo sua improvisação, que está publicada às p.39-44 nesse volume de Per Musi. Fundamentada por referenciais históricos e teóricos das práticas de performance da música brasileira (GIF- FONI, 1997; SIQUEIRA, 1981; SÉVE, 1999) e do jazz (GRIDLEY, 2006; LAWN, 1995; HOBSBAWM, 1990, BAKER, 1987), esta análise comparativa revela um hibridismo entre elementos do bebop e do baião, no qual as características desses dois gêneros populares de países diferentes às vezes permanecem distintas e às vezes se entrelaçam em uma síntese. Palavras–chave: Victor Assis Brasil; hibridismo musical; baião; bebop; música popular; análise musical.

The composition and interpretation by Victor Assis Brasil in Pro Zeca: hybridism between the Brazilian baião and bebop

Abstract: Study about the recognition of compositional and intrepretive elements typical of bebop and baião in the In- troduction and Theme of Pro Zeca by Brazilian composer and saxophonist Victor Assis Brasil (1945-1981) departing from three primary sources: (1) the edited lead sheet that reproduces the composer’s autograph (ASSIS BRASIL, sem data a), (2) an anonymous lead sheet manuscript (ASSIS BRASIL, sem data b) and (3) the lead sheet of the transcription based on the composer’s recording (ASSIS BRASIL, 1974) included at the end of this article. Resorting to historical and theoretical references of performance practices in jazz (GRIDLEY, 2006; LAWN, 1995; HOBSBAWM, 1990, BAKER, 1987) and Brazilian music (GIFFONI, 1997; SIQUEIRA, 1981; SÉVE, 1999), this comparative analysis reveals hybridization between bebop and the Brazilian baião, in which the characteristics of these popular genres from two different countries sometimes remain separate and sometimes are interwoven into a synthesis. Keywords: Victor Assis Brasil; musical hybridism; Brazilian baião; bebop; popular music; music analysis.

1- Introdução A música popular instrumental brasileira é considerada nhecidos pelo público de hoje por terem caído no ostra- como uma das mais ricas do mundo no que diz respei- cismo, pela mudança de valores musicais ou tendências to à diversidade de estilos, tanto composicionais quanto na mídia. O compositor e saxofonista Victor Assis Brasil de interpretação. Essa riqueza, que reflete a formação exemplifica bem este quadro. sócio-cultural brasileira, inclui aspectos rítmicos, meló- dicos, harmônicos e elementos estilísticos, tanto autóc- Ainda é emergente a pesquisa sobre a música instrumen- tones quanto estrangeiros, absorvidos e reutilizados por tal brasileira, especialmente se comparada ao volume de meio de citações, justaposições, transformações e sínte- estudos sobre as canções brasileiras, que têm o atrativo do ses. Muitos dos compositores e intérpretes populares que conteúdo de suas letras ou das relações texto-música. En- contribuíram para essa miscigenação cultural, ainda não tre os trabalhos acadêmicos sobre Victor Assis Brasil, des- são devidamente estudados. Muitos não são mesmo co- taca-se a dissertação de mestrado Improvisação em Victor

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 03/11/2009 - Aprovado em: 18/03/2010 28 LINHARES, L. B.; BORÉM, F. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.28-38.

Assis Brasil de Fernando Trocado MAURITY (2006), na qual editada no volume 1 da coleção denominada Victor Assis o autor transcreve as partes improvisadas de saxofone e Brasil, organizada por seu irmão Paulo Assis Brasil, (2) as cifras das músicas Blues for Mr. Saltzman (Victor Assis uma lead sheet manuscrita de caligrafia anônima que tem Brasil), O cantador (Dori Caymmi e Nelson Motta), Penedo sido bastante utilizada no meio da música popular (ASSIS (Victor Assis Brasil) e Nada será como antes (Milton Nas- BRASIL, sem data b), cedida a Fausto Borém pelo pianista cimento) para, em seguida, analisar o estilo improvisatório e pesquisador Rafael dos Santos da UNICAMP e (3) a lead do compositor-instrumentista. Ele afirma que Victor Assis sheet preparada pelo primeiro autor do presente artigo a Brasil praticava uma “música transnacional” (MAURITY, partir de sua transcrição da única gravação de Pro Zeca 2006, p.80), tendo buscado uma sistemática interação es- deixada pelo compositor, no disco ao vivo Victor Assis tilística entre as músicas brasileira e a norte-americana, Brasil -1974 (ASSIS BRASIL, 1974). Os elementos desta que inclui citações (por exemplo, trechos de Giant Steps última fonte primária predominam na edição final dalead de John Coltrane e de Chorinho pra ele de Hermeto Pas- sheet da música (veja às p.39-44 desse volume de Per coal na sua Blues for Mr. Saltzman) e misturas estilísticas, Musi), uma vez que ela reflete diretamente as práticas de como jazz modal e bossa na canção de trabalho O can- performance e considera, além da melodia e harmonias tador, jazz e samba em Night em day de Cole Porter, jazz do Tema e de uma longa Introdução, elementos musicais e baião em It’s all right with me, também de Cole Porter não tradicionalmente codificados emlead sheets, como as (MAURITY, 2006, p.48-52, 78-79). convenções da seção rítmica do grupo, trechos relevantes da linha do baixo e práticas de performance específicas Baseado na teoria da fricção interétnica do antropólogo do saxofone, como inflexões, articulações, ocorrência de Roberto Cardoso de Oliveira, Acácio Piedade defendeu o swing 3 e efeitos diversos. conceito de fricção de musicalidades ao tratar do “jazz brasileiro”. Segundo essa abordagem, a interação entre O fato de a lead sheet autógrafa ser em Ré, e não em Sol a música instrumental brasileira e a norte-americana, como as outras duas, provavelmente reflete uma notação ao contrário da perspectiva do também antropólogo que favorece o registro mais grave do sax alto (afinado em que haveria uma “. . . transmissão, em Mi bemol), enquanto que a notação em Sol, favorece aculturação ou assimilação. . .”, estaria mais propensa a o sax soprano (afinado em Si bemol) mais agudo e utiliza- envolver “Um sistema intersocietário que exibe, em seu do na gravação. Exceto para o Ex.1 e o Ex.2, a numeração cerne, uma desigualdade. . .” e que seria permeado por de compassos dos exemplos musicais segue a numeração uma “luta de classes” (PIEDADE, 1985, p.199). Apesar de de compassos da lead sheet da gravação (veja às p.39- acreditar que a musicalidade brasileira usufrui e supe- 44 desse volume de Per Musi). A análise de elementos ra o que chama de paradigma bebop,1 PIEDADE (1985, de gêneros musicais específicos levou em consideração p.200) argumenta que essas “musicalidades dialogam os referenciais teóricos de GRIDLEY (2006), HOBSBAWM mas não se misturam: as fronteiras musical-simbólicas (1990), BAKER (1987) e LAWN (1995) para o bebop, e de não são atravessadas, mas são objetos de uma manipu- GIFFONI (1997), SIQUEIRA (1981), SÉVE (1999), ANDRA- lação que reafirma as diferenças.” DE (1928) e SANDRONI (2001) para o baião. Não foram consideradas nesse estudo outras gravações de Pro Zeca No presente artigo, procuramos mostrar, ao analisarmos realizadas por outros músicos de renome como o guitar- Pro Zeca de Victor Assis Brasil, que apesar de o embate en- rista Hélio Delmiro e o Trio Bonsai. tre a música norte-americana e a música brasileira existir nessa música, há também, e principalmente, uma imbri- 2 - Victor Assis Brasil cação estilística cuja síntese no tecido musical resulta em O saxofonista e compositor Victor Assis Brasil nasceu um hibridismo complexo e sofisticado. Mais do que isso, em 28 de agosto de 1945 no Rio de Janeiro. Seu primei- apesar de justamente colocar lado a lado os gêneros norte- ro instrumento foi a gaita. Aos 17 anos começou a tocar americano do bebop e brasileiro do baião, acreditamos que saxofone alto, tendo como professor. Logo, a música de Victor Assis Brasil está longe de, sonoramente, começou a participar das jam sessions no Little Club no refletir valores culturais superiores ou inferiores, ou mes- beco das garrafas em Copacabana e a realizar shows em mo, uma “luta de classes”. Recentemente, buscando refinar faculdades e colégios da zona sul do Rio de Janeiro. Em o conceito de hibridação em música, o próprio PIEDADE 1965, tocando no Clube do jazz e da bossa, foi ouvido (2011) propõe uma hibridação “homeostática” (em que a pelo maestro e pianista Friederich Gulda e convidado memória auditiva já reconheça as musicalidades como não para participar de concursos internacionais de jazz. Ob- concorrentes) e uma hibridação “contrastiva” (em que há teve o Primeiro Lugar no festival de Berlim e um Terceiro uma fricção de musicalidades). Lugar no Concurso Internacional de Jazz de Viena. Em 1966, gravou seu primeiro disco, Desenhos, hoje raro de Após uma breve biografia de Victor Assis Brasil, o presen- ser encontrado. Em 1969, voltou ao exterior graças a te artigo apresenta uma análise descritiva e comparativa uma bolsa oferecida pela Berklee School of Music, em de elementos estilísticos contidos na Introdução e Tema Boston, Estados Unidos. Nos cinco anos que ficou por lá, de sua música Pro Zeca, a partir de três fontes primárias: aprimorou sua técnica, estudou composição e arranjo e (1) a lead sheet 2 que reproduz o manuscrito autógra- teve a oportunidade de tocar com grandes nomes do jazz fo deixado pelo compositor (ASSIS BRASIL, sem data a), norte-americano como o trompetista Dizzy Gillespie, o

29 LINHARES, L. B.; BORÉM, F. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.28-38.

pianista Chick Correa e o contrabaixista Ron Carter. Em gravação de Pro Zeca por Victor Assis Brasil já é sufi- 1973, quando voltou ao Brasil, era um músico mais co- ciente para deixar no ouvido a sensação de uma mistura nhecido no exterior do que em seu próprio país. Iniciou estilística entre os gêneros baião e bebop. uma fase de intensa agenda de shows ao lado de mú- sicos como o trompetista Márcio Montarroyos, o con- Uma das principais diferenças formais entre as três fontes trabaixista Zeca Assumpção e o baterista Chico Batera primárias de Pro Zeca está na introdução que antecede a entre outros, compondo e gravando. Victor deixou um apresentação do Tema. A lead sheet de caligrafia anônima legado de oito discos: Victor Assis Brasil ao vivo (1974); é em Sol e traz uma introdução simplificada: apenas uma Desenhos (1966); Trajeto (1968); Victor Assis Brasil toca levada do baixo por quatro compassos que se repete e Antônio Carlos Jobim (1970); Esperanto (1970); Victor deixa clara a atmosfera do baião (Ex.1). Assis Brasil Quinteto (1979); Pedrinho – Victor Assis Bra- sil Quarteto (1980); Luiz Eça e Victor Assis Brasil no mu- O manuscrito de Victor Assis Brasil é em Ré (e não em seu de arte moderna (1993). Deixou um bom número de Sol, como na gravação) e traz uma introdução de 12 com- composições em diversos estilos, para várias formações passos (Ex.2), que se inicia com uma levada de baião por instrumentais, a maioria delas ainda inédita. Victor Assis quatro compassos transposta para a clave de Sol. Este Brasil morreu prematuramente em 14 de abril de 1981, ostinato é seguido por um fragmento motívico derivado aos 35 anos, em decorrência de problemas circulatórios do Tema (c.5). O fragmento seguinte sugere o modo de causados por uma periartrite nodosa. Ré Mixolídio, modo bastante encontrado na música nor- destina (SIQUEIRA, 1981). Aqui se observa o típico arpejo A música Pro Zeca, objeto de estudo do presente artigo que ascende da tônica à dominante e desce por semitom e uma homenagem do compositor ao amigo contrabai- sobre o quarto grau alterado (Dó – Mi – Sol – Fá#, no xista Zeca Assumpção, foi provavelmente composta em c.7). Todo este material tipicamente brasileiro é seguido 1974 e faz parte do disco Victor Assis Brasil (1974), gra- por uma sequência de sextinas de grande afinidade com vado ao vivo no Teatro da Galeria no Rio de Janeiro com o jazz, afinidade que é visível tanto pelo aspecto virtu- os seguintes músicos: Victor Assis Brasil no saxofone osístico das licks de caráter improvisatório quanto pelo soprano, Márcio Montarroyos no trompete, Paulo Russo cromatismo e notas outside4 nela contidos (c.7-8) que, só no contrabaixo acústico, Lula na bateria e Alberto Farah ao final, resolvem na tônica Ré (c.9). nos teclados eletrônicos. A lead sheet baseada na gravação de Victor Assis Brasil 3 – Aspectos composicionais do baião e be- (publicada integralmente neste volume de Per Musi) é em bop em Pro Zeca Sol e traz uma introdução ampliada, de 23 compassos Em novembro de 1974, num depoimento a Tárik de Sou- (Ex.3), mais elaborada do que as outras do ponto vista za na Revista Veja (SOUZA, 1974), Victor Assis Brasil formal, melódico e harmônico, constituindo uma seção afirmou que seu estilo composicional misturava jazz autônoma. Essa introdução é dividida entre os dois esti- e música brasileira. Para muitos amantes das músicas los: jazzístico nos 15 primeiros compassos e no estilo do brasileira e norte-americana, uma primeira audição da baião nos 8 compassos finais. As progressões harmônicas

Ex.1 - Introdução simplificada dePro Zeca de Victor Assis Brasil: lead sheet anônima.

Ex.2 - Introdução de Pro Zeca de Victor Assis Brasil: manuscrito do compositor.

30 LINHARES, L. B.; BORÉM, F. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.28-38.

Ex.3 - Introdução expandida de Pro Zeca de Victor Assis Brasil: lead sheet da gravação do compositor.

sofisticadas (como o IV grau na cadência subdominante- monia da Seção A. Depois, a improvisação se dá sobre 12 dominante no c.2: um acorde de Dó com nona e baixo compassos apenas, utilizando-se a progressão da Seção em Sol por empréstimo modal de Sol Dórico) com notas B, mas com apenas um acorde por compasso (procedi- longas precedidas de volate e a rítmica variada sugerindo mento comum no jazz, que visa facilitar a criação meló- improvisação são claramente jazzísticas. Essa ambienta- dica no processo improvisatório). ção é subitamente interrompida por uma levada de baião no baixo por oito compassos (a mesma que aparece na Uma comparação entre as três lead sheets (a lead sheet lead sheet anônima), preparando a apresentação do Tema. autógrafa foi aqui transposta para Sol) mostra diferen- ças estilísticas na harmonização da Seção A do Tema A métrica do Tema é no compasso binário 2/4, caracte- de Pro Zeca (Ex.4). Na lead sheet anônima, observa-se a rística marcante do baião (GIFFONI, 1997; ALBIN, 2005; utilização dos acordes do Iº grau de Sol Mixolídio (G7), ROCCA, 1986), ao contrário da métrica quaternária que IVº grau de Sol Eólio (Cm/G) e o IIº grau de Sol Lídio predomina no bebop (como mostram as diversas trans- (A/G). A escolha destes acordes reforça características crições das músicas do ícone do bebop Charlie Parker; harmônicas do baião, e faz alusão a uma progressão tí- AEBERSOLD e SLONE, 1978). A forma utilizada por Victor pica citada por Guerra-Peixe (CASCUDO, 1984 p.97). A em Pro Zeca pode ser descrita como uma canção binária única diferença é que o IVº grau é menor em Pro Zeca, e AAB coda, muito próxima da forma AB, típica do baião não maior, devido a um empréstimo modal de Sol Eólio. (diferindo pela repetição da Seção A e finalização com Na lead sheet baseada no manuscrito autógrafo de Vic- uma pequena coda). Mas haveria também uma proximi- tor Assis Brasil, o ritmo harmônico é o mesmo, porém a dade com a forma canção ternária AABA, muito utilizada progressão tem uma natureza mais jazzística, pois parte no jazz (GRIDLEY, p.13), se consideramos a coda como da tônica (G7) para a o segundo grau (A7) e retorna cro- uma recapitulação abreviada da Seção A (afinal trata-se maticamente à tônica passando pela sexta napolitana de material temático quase idêntico), o que nos daria a (Ab7+). Finalmente, na lead sheet baseada na gravação, forma AABA´. Por outro lado, a forma de apresentação observa-se que os músicos optaram por um pedal com o é ternária e mais caracte- 7 Tema – Improviso – Tema acorde G2 (13) em toda a sua extensão, caracterizando rística do jazz norte-americano. Por questões de espaço, o modo de Sol Mixolídio e uma estaticidade harmônica restringimos esta análise somente ao Tema de Pro Zeca, recorrente na música nordestina, típica dos repentes e deixando a análise do Improviso para um próximo artigo. emboladas, mas também encontrável em baiões. De toda maneira, percebe-se que o esquema formal da improvisação nesta gravação da música, dura seis choru- As notas alteradas do Tema de Pro Zeca - Dó # (c.46- ses, sendo que cada um deles é dividido em duas partes 47 e 52 no Ex.4 acima) e Mi b (c.48, prolongada no assimétricas, tanto em número de compassos quanto em c.49 no Ex.4 acima) podem ter origem tanto no idioma relação à linguagem harmônica. Primeiro, a improvisação harmônico jazzístico quanto do baião. Na lead sheet 7 acontece sobre 16 compassos de G2 (13) , a mesma har- autógrafa, o Dó # é harmonizado com o acorde de A7,

31 LINHARES, L. B.; BORÉM, F. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.28-38.

Ex.4. Diferenças de harmonização da Seção A do Tema de Pro Zeca de Victor Assis Brasil nas três lead sheets da música

mas em ambas lead sheets anônima e da gravação é cia à atividade incessante de semicolcheias no triângulo harmonizado com acordes da tônica Sol, o que nos re- do baião ou ao canto repetitivo das emboladas e re- mete ao IVº grau alterado ascendentemente. Este Dó # pentes nordestinos. Em relação ao andamento, bastante pode, e deve, na verdade, ser compreendido como nota rápido na gravação de Pro Zeca (semínima = 152 apro- escalar do modo Lídio-Mixolídio em Sol. Esse modo foi ximadamente), Victor Assis Brasil se afasta do caráter chamado de Modo Nacional por SIQUEIRA (1981, p.3- dançante e mais relaxado do baião e reforça uma das 4) e, no meio da música popular brasileira, é tido como principais características do bebop, ou seja, o virtuosis- o mais nordestino dos modos. mo instrumental. Entretanto, o “baião acelerado” ocorre em alguns exemplos históricos da música instrumental Na lead sheet anônima, o Mi bemol é harmonizado com brasileira, como em O ovo, uma das mais conhecidas Cm7, caracterizando-se como simples nota desse acorde. músicas do alagoano Hermeto Pascoal. Na lead sheet autógrafa, o Mi bemol é harmonizado com Ab7+, que pode ser entendido como um acorde caracte- As sincopas são elementos rítmicos muito comuns aos dois rístico do modo de Sol Frígio. Na lead sheet da gravação, gêneros musicais. Na Seção A de Pro Zeca, podemos perce- 7 o Mi bemol é harmonizado com G2 (13) , podendo ser ber a ocorrência de síncopas comuns, bastante recorrentes entendido como alteração do acorde (#5) ou como resul- no jazz, mas na Seção B, percebe-se nitidamente a função tado de um empréstimo modal de Sol Eólio. temática das chamadas síncopas brasileiras (ANDRADE, 1928; SANDRONI, 2001), que aparecem conectadas entre Em relação aos materiais escalares, a linha melódica do si formando uma longa sequência nos c.2-4 do Ex.5. Tema baseia-se claramente nos dois modos mais comuns na música nordestina: o Mixolídio (em Sol) e o Lídio-Mixolídio Do ponto de vista da harmonia, a utilização de acor- (também em Sol), como mostram as frases dos c.40-43 e des com 4ª (diferentemente da 4ª suspensa, que resolve c.44-47 no Ex.4 acima. Aqui, pode-se pensar em uma in- descendentemente) nos remete a um tipo de harmo- terseção com o jazz, pois o modo Lídio-Mixolídio é também nização muito utilizada por músicos da era do pós- muito utilizado nas improvisações do bebop, sendo comu- bebop, como os pianistas Bill Evans e Herbie Hanco- mente chamado de Lídio b7 (Lídio com sétima menor). ck, e pelo próprio Victor Assis Brasil, como no acorde 7 DG4 (9) que aparece nos c.83-87 e finaliza a Seção B A linha melódica do Tema de Pro Zeca tem nas semi- de Pro Zeca (ver Ex.5 acima). Do ponto de vista meló- colcheias contínuas sua principal característica rítmica, dico, notas de aproximação são um recurso cromático gerando uma movimentação que não é comum nas li- muito utilizado por Charlie Parker, tanto na apresen- nhas melódicas dos baiões tradicionais, mas sim no be- tação de temas quanto nas improvisações, recurso do bop. Entretanto, do ponto de vista rítmico das linhas de qual Victor Assis Brasil lança mão na melodia do Tema acompanhamento, essa figuração pode ser uma referên- de Pro Zeca, como no c.10 do Ex.5 acima.

32 LINHARES, L. B.; BORÉM, F. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.28-38.

Ex.5 – Seção B do Tema de Pro Zeca (lead sheet da gravação) com sequência de síncopas brasileiras (c.76-78), progressões ii – V (c.76, 78, 82-83), acordes com 4ª (c.83-87) e nota de aproximação (Dó# no c.84).

O processo de transcrição das cifras de Pro Zeca interpre- de e de 1946, que popula- tadas por Victor Assis Brasil revelou acordes com um nível rizou o gênero nacionalmente. Por outro lado, arpejos são de detalhamento maior e mais complexo do que aparece também utilizados nos temas e improvisações do bebop, nas duas lead sheets até então disponíveis da música. Isto mas geralmente estão associados a harmonizações com reflete incrementos harmônicos durante sua realização, o mais extensões e cadências. que é um procedimento característico tanto das práticas de performance do jazz quanto de alguns estilos da mú- Seguindo uma tradição composicional da música erudita sica popular brasileira. Assim, transcrevendo a gravação que se tornou muito comum no jazz mais sofisticado, Victor de Pro Zeca, encontramos acordes com extensões5 como Assis Brasil constrói a introdução com material temático E7(b10) na Introdução (c.5 do Ex.3 acima), 7 em G2 (13) que irá aparecer no Tema: as tríades arpejadas descende- toda a Seção A do Tema (Ex.4 acima), a progressão jazzís- mente (mostradas nas setas do Ex.6). Outro procedimento tica típica incorporada pela bossa nova B7(13) indo para jazzístico que ocorre na comparação entre estas passagens B7(b13) e o acorde 7 na Seção B do Tema (c.79-80 G4# (9) é o procedimento de substituição de acordes (mostrados e c.87 do Ex.5 acima), cujas notações expressam melhor nos círculos do Ex.6): mais complexos para o andamento as progressões harmônicas escolhidas pelo pianista. A lento – os acordes C9/G, D/G, Bm7M(11) e E7(b10) na In- notação desses acordes com as extensões de 2ª maior e trodução e mais simples para o andamento rápido do Tema 4ª justa (que geralmente são escritas uma oitava acima, – os acordes Am7, D7, Bm7 e Em7. como 9ª e 11ª, e que resolvem descendentemente) visam explicitar a condução das vozes implícitas na progressão Um procedimento harmônico muito recorrente na lingua- harmônica a que estão ligados (voicing). � gem do jazz é a chamada progressão ii – V, que mui- tas vezes não se resolve na tônica esperada. Victor Assis A utilização de acordes sem a terça ou a quinta como o Brasil lança mão de variações deste encadeamento (alte- 7 em quase toda a duração do Tema (em toda a Se- G2 (13) rando a natureza maior e menor dos acordes, e às vezes, ção A do Tema, Ex.4 acima) demonstra a prática comum resolvendo-os) tanto na Introdução (c.2-3, 4-5, 6-7 e 13- do jazz de utilizar uma harmonia mais ”aberta”, deixando 14 no Ex.3 acima) quanto na Seção B do Tema (c.76 e os instrumentos melódicos mais livres para adicionar ex- 78 do Ex.6 acima; ocorrendo também nos c.81-82, não tensões à melodia, evitando-se assim choques harmôni- mostrados aqui). cos não desejáveis ou, para usar o jargão jazzístico, com “notas ruins” (bad notes). Os c.73-74 ao final da Seção A funcionam como uma ponte para a Seção B do Tema e trazem dois elementos O Tema de Pro Zeca apresenta o arpejamento ascendente típicos dos temas e improvisações do bebop e alheios ao do acorde de Io grau com sétima menor (c.44 do Ex.4 aci- baião tradicional (Ex.7): a presença de uma blue note, o Si ma), uma característica harmônico-melódica marcante do bemol sobre um acorde de Sol maior (com 2ª, 7ª e 13ª) e baião (tanto no modo Mixolídio quanto Lídio-Mixolídio), a utilização da escala pentatônica de Sol menor (um tipo que tem origem na referência pioneira do tema de Baião de escala muito recorrente no jazz desde o surgimento

33 LINHARES, L. B.; BORÉM, F. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.28-38.

do blues e incorporada à virtuosidade do bebop especial- damentos também se relaciona diretamente com o jazz. mente pela facilidade de execução em andamento rápido) Na Introdução, o andamento lento (semímina = 52 apro- para construir este fragmento melódico. ximadamente), o caráter ad libitum na realização rítmica e os glissandi criam uma atmosfera que nos remete ao cool Um elemento de virtuosidade rítmica do bebop, bastante jazz. Na apresentação do Tema, o andamento rápido (se- observável na música de Charlie Parker (como na música mínima = 152 aproximadamente) é característico do be- Parker´s Mood) é a utilização de quiálteras em tercinas, bop. Aqui, o swing típico das semicolcheias é mais sutil quintinas, sextinas etc., elemento que se tornou muito devido ao andamento, mas torna-se perceptível ao longo presente também na música de Victor Assis Brasil, como dos fraseados ligados e suas acentuações. Nesses frasea- em alguns trechos da Introdução e nas Seções A e B do dos observa-se que a articulação predominante é o legato Tema de Pro Zeca (Ex.8). típico do bebop (Ex.9), que proporciona maior agilidade e comodidade na construção das frases. Mas, esporadica- 4 – Aspectos interpretativos do baião e bebop mente essa articulação é interrompida por notas curtas, em Pro Zeca cujo staccato remete à rítmica do baião, especialmente na Um dos primeiros aspectos da interpretação de Victor Assis interpretação da sequência de sincopas brasileira (Ex.9). Brasil na sua gravação de Pro Zeca a chamar a atenção é a instrumentação escolhida: o conjunto instrumental bá- As fórmulas de acompanhamento do conjunto são sico dos chamados small combos do gênero bebop: tecla- exemplares do hibridismo entre o baião e o bebop em do eletrônico (substituindo o piano), contrabaixo elétrico, Pro Zeca. Por exemplo, nos c.42-45 da Seção A, obser- bateria, saxofone soprano e trompete. A escolha dos an- va-se lado a lado, a típica marcação rítmica da zabum-

Ex.6 – Utilização de material temático e substituição de acordes entre a Introdução e a Seção B do Tema de Pro Zeca (lead sheet da gravação)

Ex.7 - Blue note no final da Seção A dePro Zeca (lead sheet da gravação)

34 LINHARES, L. B.; BORÉM, F. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.28-38.

Ex.8 – Quiálteras na música de Charlie Parker e em Pro Zeca de Victor Assis Brasil (lead sheet da gravação)

Ex.9 – Articulação legato do bebop e staccato do baião em Pro Zeca (lead sheet da gravação)

ba no baião e a rítmica evasiva típica do comping dos da bossa nova e consequente intercâmbio entre músicos teclados no jazz (Ex.10). dos dois países. Victor Assis Brasil, que estudou na Berk- lee School of Music, integra nessa música elementos Os padrões de acompanhamento do Tema na bateria harmônicos, melódicos, rítmicos e estilísticos de com- apresentam uma complexidade rítmica maior, o que é posição e de práticas de performance do baião e do jazz, mais característico da música popular brasileira do que especialmente do bebop. do jazz (excetuando-se aqui, claro, as improvisações). Além da ocorrência de síncopas com diferentes desloca- Em Pro Zeca, pode-se observar os seguintes elementos mentos em relação à pulsação, observa-se a utilização estilísticos do baião: melodia baseada no arpejamento sistemática de uma célula que imita a levada típica de do modo Mixolídio (remanescente do tema de Luiz Gon- semicolcheias contínuas do triângulo no baião: primeiro zaga na música Baião), acompanhamento com levadas e no prato de condução no início do Tema que é, depois, acentuações de baião no contrabaixo, teclado e bateria, transferida para a caixa ao longo do acompanhamento. síncopas brasileiras, articulação em staccato, harmonia simples ou estática comum em gêneros nordestinos. 5 - Conclusão A música Pro Zeca do compositor e saxofonista carioca Por outro lado, em Pro Zeca, pode-se observar os seguin- Victor Assis Brasil é exemplar do hibridismo na música tes elementos estilísticos do bebop: formação instrumen- instrumental brasileira. Composta em 1974, faz parte tal, introdução lenta de caráter improvisatório, tema e do processo de influências mútuas entre a nossa cultura improvisação, andamento rápido, materiais melódicos musical e a música norte-americana, processo que se virtuosísticos, utilização de sequências grupos de semi- acentuou muito na década de 1960 com a exportação colcheias, fraseados em legato e com swing, harmonias

35 LINHARES, L. B.; BORÉM, F. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.28-38.

Ex.10 – Integração dos acompanhamentos típicos do baião e do bebop na Seção A de Pro Zeca (lead sheet da gravação)

mais complexas com extensões, encadeamentos ii – V, A escuta desses elementos do baião e do bebop podem acordes substitutos, notas de aproximação e cromatismo, ocorrer simultânea ou separadamente, de forma que o acompanhamento de teclado no estilo comping, utiliza- hibridismo a que estão associados permite, às vezes, sua ção de escala pentatônica, blue note e quiálteras. pronta identificação e às vezes requerem uma escuta mais analítica de suas partes constituintes. A improvi- Além disso, e reforçando a ideia de hibridismo, aparecem sação que segue à apresentação do tema merece uma elementos comuns aos dois gêneros: uma forma que lem- análise à parte, o que deverá, baseando-se em uma pri- bra tanto a forma binária do baião quanto a forma terná- meira escuta, confirmar os procedimentos composicio- ria do bebop, a utilização melódica e harmônica dos mo- nais e estilísticos utilizados. dos Mixolídio e Lídio-Mixolídio, utilização de grupos de semicolcheias contínuas (temas virtuosísticos de bebop Finalmente, pode-se constatar em um compositor bra- ou fraseados repetitivos dos repentes nordestinos), uma sileiro e sua música - Vitor Assis Brasil e Pro Zeca – sessão rítmica provendo acompanhamento rítmico-har- uma característica marcante da nossa cultura: o jogo- mônico (alternância e simultaneidade do comping com de-cintura para, a partir de seus valores, dialogar com levadas da música brasileira), alternância de acentuações valores de culturas estrangeiras e dar mais um passo do fraseado no tempo e fora do tempo, e utilização de no que poderíamos chamar de formação continuada arpejos em construções melódicas. da música brasileira.

36 LINHARES, L. B.; BORÉM, F. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.28-38.

Referências AEBERSOLD, Jamey; SLONE, Ken. Charlie Parker Omnibook. EUA: Atlantic Music Corp., 1978. ALBIM, Cravo. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Disponível em http://www.dicionariompb. com.br/default.asp. Acessado em 16 set. 2006. ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a Música Brasileira. São Paulo: J. Chiarato & Cia,1928. Disponível em: http://www.ufrgs. br/cdrom/mandrade/index01.html. Acessado em 12/11/2006. ASSIS BRASIL, Victor. Pro Zeca. In: Partituras, v.1. Coleção de manuscritos organizada por Paulo Assis Brasil. Rio de Janeiro, 2001. 30p. ______. Pro Zeca. Sem data, n.2 (manuscrito anônimo). ______. Pro Zeca. In: Victor Assis Brasil ao vivo. Rio de Janeiro: Companhia Industrial de Discos, 1974 (gravação em LP). ______. Site oficial. Disponível em http://www.victorassisbrasil.com.br/ Acessado em 10 out. 2006. BAKER, David. How to paly Bebop. USA: Alfred Publishing Co., 1987. CASCUDO, Luíz da Câmara. Dicionário do folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Itatiaia, 1993. GIFFONI, Adriano. Música Brasileira para Contrabaixo. São Paulo: Irmãos Vitale, 1997. GRIDLEY, Mark C. Jazz Styles: history and analysis. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 2005. HOBSBAWN, Eric J. A história social do jazz. Trad. de Ângela Noronha. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. LAWN, Richard. The jazz ensemble director’s manual: a handbook of pratical methods and materials for the educator. Oskaloosa: C.L. Barnhouse Company, 1995. MAURITY, Fernando Trocado. Improvisação em Victor Assis Brasil. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2006. (Dissertação de mestrado) PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. Musica Instrumental Brasileira e Fricção de Musicalidades. In: Rodrigo Torres (ed.) Música Popular em América Latina: Actas del llo. Congresso Latinoamericano del IASPM. Santiago de Chile: Fondart, 1999. ______. Jazz, música brasileira e fricção de musicalidades. Opus. v.11. Dez, 1985. In: www.anppom.com.br/opus (Acesso em 28 de fevereiro de 2009). ______. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo, musicalidade e tópicas.Per Musi, v.23. Belo Horizon- te: UFMG, 2011.p.103-112 ROCCA, Edgard. Ritmos brasileiros e seus instrumentos de percussão. Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Música, 1986. SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Ed. UFRJ, 2001. SÉVE, Mário. Vocabulário do Choro - Estudos e composições. Rio de Janeiro: Lumiar, 1999. SIQUEIRA, José de Lima. Sistema modal na música folclórica do Brasil. João Pessoa: Secretaria de Educação e Cultura – Diretoria Geral de Cultura, 1981. SOUZA, Tárik de. Um sax a mais. Revista Veja. n.324. São Paulo: Editora Abril, 1974, p.83.

Leitura recomendada: ADOUR, Fábio da Câmara. Perfil conceitual de harmonia. Belo Horizonte: UFMG, 2007. (Tese de doutorado). LINHARES, Leonardo Barreto. Pro zeca de Victor Assis Brasil: aspectos do hibridismo na música instrumental brasileira. Belo Horizonte: UFMG, 2005. (Dissertação de Mestrado). FABRIS, Bernardo Vescovi. Catita de K-Ximbinho e a interpretação do saxofonista Zé Bodega: aspectos híbridos entre o choro e o jazz. Belo Horizonte: UFMG, 2005. (Dissertação de Mestrado). HOBSBAWN, Eric J. A história social do jazz. Trad. de Ângela Noronha. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. PASCOAL, Hermeto. Calendário do Som. Ed. A. P. Quartim de Moraes. Apresentação de Sérgio Cabral. São Paulo: Editora Senac, 2000a. SYLLOS, Gilberto, MONTANHAUR, Ramon. Bateria e Contrabaixo na Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Lumiar editora, 2002.

37 LINHARES, L. B.; BORÉM, F. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.28-38.

Discografia recomendada: BRASIL, Victor Assis. Victor Assis Brasil ao vivo. Rio de Janeiro: Companhia Industrial de Discos, 1974. ______. Desenhos. Rio de Janeiro: Forma, 1966. ______. Trajeto. Rio de Janeiro: Equipe, 1968. ______.. Victor Assis Brasil toca Antônio Carlos Jobim. Rio de Janeiro: Quartin, 1970. ______. Esperanto. Rio de Janeiro: Tapecar, 1970. ______. Victor Assis Brasil Quinteto. Rio de Janeiro: EMI, 1979. ______. Pedrinho – Victor Assis Brasil Quarteto. Rio de Janeiro: EMI, 1980. ______. Luiz Eça e Victor Assis Brasil no museu de arte moderna. Rio de Janeiro: EMI, 1993. ______. The Legacy. Rio de Janeiro: Atração, 1999.

Notas 1 PIEDADE (1985, p.199-200) define assim seu conceito de paradigma bebop: “. . .uma mesma musicalidade jazzística que torna possível o diálogo entre um trompetista sueco, um pianista tailândês e seu público, numa jam session em Caracas; enfim, algo como uma língua comum.” 2 Lead sheet é o tipo de partitura mais comum na música popular. Geralmente inclui apenas a melodia, os acordes anotados como cifras e, se for o caso, a letra da música. Algumas vezes, inclui convenções rítmicas e instrumentação. 3 Swing, em diversos estilos do jazz, denomina a prática de realização rítmica em que o primeiro de dois ritmos idênticos e consecutivos (geralmente duas colcheias) é tocado mais longo e com mais ênfase do que o segundo, semelhante um grupo de tercinas com as duas primeiras notas ligadas. O termo swing é utilizado de uma forma abrasileirada, aplicado a qualquer estilo musical, significando “balanço” ou “ginga”. Pode significar também um estilo do jazz surgido em meados de 1930, quando surgiram grandes grupos instrumentais denominados big bands dirigidos por band leaders como Duke Elington e Count Basie. 4 O tremo “outside” ou “out”, especialmente no free jazz, significa improvisar com notas não harmônicas (ou harmonias fora do campo tonal) de forma que soem “modernas” e não “convencionais” ou “erradas” e pode também envolver rítmicas que sugerem aleatoriedade e aumento de tensão. 5 No vocabulário da harmonia popular, o termo “extensão”, que no Brasil também passou a ser conhecido pela corruptela “tensão”, significa uma nota dissonante adicionada a um acorde por motivos colorísticos ou para realizar uma função harmônica ou contrapontística. 6 O multi-instrumentista e compositor Hermeto Pascoal utiliza recurso semelhante na notação das cifras, que chama de cifragem universal, para explicitar a condução de vozes em sua harmonização. Veja sua utilização extensiva nas 366 peças do seu Calendário do som (Editora Senac, 2000).

Leonardo Barreto é saxofonista e flautista graduado pela Faculdade de Música da UFMG e mestre em performance pela mesma instituição. É professor em Tempo Integral da Faculdade de Música do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, onde também orienta dois projetos de extensão. É integrante do quarteto “Violões e Cia” e do trio de choro “3X0”, que vêm se apresentando em casas de Shows, teatros de Belo Horizonte e outras cidades. Atua como músico de estúdio e de palco, se apresentando e gravando ao lado de nomes como Elza Soares, Celso Adolfo, Gilvan de Oliveira, Serginho Silva, Trio Amaranto, Cléber Alves, Geraldo Vianna, Andersen Vianna e trilhas sonoras para o “Grupo Corpo”. Ministra cursos e Worshops sobre música popular com ênfase em improvisação e choro através da FUNARTE e outras instituições culturais. Lecionou na escola de música “Pró-Music” durante dois anos e atuou como professor de saxofone do curso de extensão da UFMG por quatro anos. Participou de cursos e workshops ministrados pelos músicos Vinícius Dorin, Guinga, Sérgio Santos, Proveta e Léo Gandelman.

Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Maurício Tizumba e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazil- ian Music for the Double Bass, o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier).

38 ASSIS BRASIL, Victor. Partitura de Pro Zeca na performance de Victor Assis Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.39-44.

Pro Zeca na performance de Victor Assis Brasil Transcrição de Leonardo Barreto baseada no disco Victor Assis Brasil (1974) (dedicada ao contrabaixista Zeca Assunção) Edição de performance de Leonardo Barreto e Fausto Borém Intro Victor Assis Brasil Trumpete (ad libitum) B m7 Bm7M(11) E7(b10) C 9/G D/G j œ ~~~~ œ œ 2 j œ œ œ# œ.. œ & 4 œ œ œ œ œ# œ

7 D B7(13) 6 A m7 9 B7(b13) B 7 Em7(9) 3 3 ~~~~ œ œ œ œ# œ j & œ ‰ œ œ œ ˙ œ ‰ œ œ œ# œ œ 7 7 D (13) 2 D Em7(9) A m7 A m7 A7(13) 2 11 3 œ œ Ÿ~~~~ œ œ# œ œ œ# œ œ j œ# œ ˙ ˙ ? œ# œ 3 œ ‰ & 3 3

Contrabaixo (levada de baião) 16 >œ œ œ> œ œ> œ >œ œ œ> œ œ> œ ? œ œ œ œ œ œ œ œ & œ. œ. œ. œ œ. œ. œ. œ

Teclado (Tema sem acompanhamento) 24 œ > œ œ œ ≈ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ˙ œ œ œ œ œ & œ ¿ œ œ œ œ œ œ œ

29 œ œ œ œ œ > œb œb & œ œ œ œ œ œ# œ ˙ œ œ œ œ ≈ œ œ

34 j > œ & œ œ œ œ ˙ œ# œ œ œ œ ≈ œ œ œ œ œ œ œ ˙ >

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 23/02/2010 - Aprovado em: 18/06/2010 39 ASSIS BRASIL, Victor. Partitura de Pro Zeca na performance de Victor Assis Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.39-44.

Tema Saxofone soprano 7 G (13) (mesma harmonia até o c.75) Seção A 2 40 ¨ > œ œ> œ > . œ >œ œ & œ œ œ œ œ œ œ ≈ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ≈ R ≈ œ œ œ œ œ > œ > > 45 ¨ > > œ >œ œ œ> >œ > œb œ œb & œ> œ œ œ œ œ# œ ˙ œ œ œ ≈ œ œ

50 ¨ œ. œ> œ# > œ> & œ œ ˙ œ œ œ œ ≈ œ œ œ. œ œ œ ˙ > Seção A 7 G (13) 56 2 ¨ > ¨ œ œ œ > œ œ œ> œ œ> œ œ. œ & ‰ œ œ# œ œ œ œ œ œ œ œ ≈ œ œ œ œ œ ≈ R > œ > > 61 > > œ> œ > œ œ> œ œ œ > œb¨ > & ≈ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ# œ ˙ œ œ œ

66 > . > . > œ ≈ œb œ œ œ œ œ œ œ ≈ œ œ# >œ ≈ œ œ œ & œ5 œ œ œ œ œ œ œ œ œ . >

Seção B 7 G (13) D 7 E m7 A m7 72 2 > > B m7 œb ~~~ > œ œ . > œ œ. œ ˙ œ > œ œ . œ# >œ œ . œ œ œ. > & œ Œ œ œ ≈ ≈ œ œ œ œ œ A m7 m7 78 A m7 D 7 B7(13) B7(b13) E 3~~~ > œ œ> œ œ > > œ œ# œ œ. > r > œ œ# œ# œ œ œ œ. œ ˙ œ ‰. œ œ œ œ 5 œ ≈ & > œ# œ œ 7 G 7 (9) D (9) Coda 4# 83 4 ~~> . œ > œ .œ œ œ & ˙ œ œ œ œ# œ œ œ œ œ œ œ œ ≈ œ œ œ œ œ œ œ > > > >

40 ASSIS BRASIL, Victor. Partitura de Pro Zeca na performance de Victor Assis Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.39-44.

Improvisação

7 Chorus 1 G (13) (mesma harmonia até o c.103) 2 88 œ œ œ ^ œ œ - ^ œ œ œ ^ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ & J ‰Œ ‰Œ J ‰Œ f 94 5 - œ œ œ œ œ œ œ œ œ^ œ œ œ. ˙ œ œ œ# œn œ & œ ‰Œ J ‰Œ œ œ œ œ

100 6 œ œ œ œ œ œ œ# œn œ œ œ œ œ œ# œ œ œ œ œ# ^ & œ œ# ¿n œ œ J ‰Œ A m7 3 D 7 B m7 104 E m7 ~œ~ >œ œ œ œ œ œ# œ œ œ œ & œ# œn œ œ# œ œ# œ œ œ œ# œ œ œ œ# œ œ œ œ ¿ B 7(b13) D 7 B7(13) 108 A m7 œ œ œ^ >œ œ œ œ œ œ# œ œ# œ œ œ# œn œ# œ œ œ œ œ œ# œ J œ œ œ# œ œ# œ œ# ‰ 3 & 7 7 D 4 D 4 E m7 A 7 112 ˙ > œ. > œ. œ œ# œ œ œ œ œ œ œ œ œ# œ œ œ ¿ œ œb & œ#

Chorus 2 7 (mesma harmonia até o c.131) G (13) 2 116 j ˘ ˘ ˘ œ œ^ œ ˘ ˘ œ ˘ œ œ œ ^ - Ÿ œ œb œ ˘ œ œ œ œ œ œ œ. œ œ œ œ œ œ# œ^œ œ & J ‰Œ ≈ œ J ‰ ‰‰J f

122 3 >œb œn œb œ# œn œ œ œ œ œ Ÿœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ# ‰ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ & J œ œ œ œ# œ œ 3

127 3 ~~ ^ œ. ˙ œ œ œ >œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ & œ œ œ œ œ# œ œ œ œ œ# œ ‰

41 ASSIS BRASIL, Victor. Partitura de Pro Zeca na performance de Victor Assis Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.39-44.

A m7 B m7 A m7 D 7 E m7 D 7 132 œ œ ^ Ÿ Ÿ œ œ œ œ œ œ# œ# œ œ œ œ œ œ œ œ œ# œ œ œ œ# œ œ œ œ œ œ œ# œ œn œ# œ & Œ œ œ œ# œ œ œ œ 7 7 A 7 D 4 D 4 B7(13) E m7 138 B 7(b13) ^ œ œ œ œ œ# œ œ ¿ œ^ œ œ. œ œ# œn œ Œ œ œ# œ# œ œ J ‰‰. R œ# & œ œ œ# œ# œ œ# œ œ œ# œ J

Chorus 3 7 G (13) (mesma harmonia até o c.159) 2 144 œ ˘ ˘ ˘ œ. . œ. œ ~~ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ# œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ & œ œ œ œ œ# œ œ f 149 ~~ ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ˙ œ œ œ œ ˘œ œ œ ˘œ œ œ œ ˘œ œ œ œ ˘œ œ œ ˘œ œ. œ & Œ‰. R

155 Ÿ œ Ÿ œ œ# œn œ œ œ œ œ œ œ œ# œn œ œ œ œ & œ œ œ œ œ# œn œ œ œ œ œ œ œ œ# œn œ œ# Œ A m7 A m7 D 7 B m7 E m7 160 œ œ œ œ œ œ# œ œ œn œ# œ œ œ œ œ & œ œ# œ ≈ Œ œ œ# œ œ œ œ œ œ œ# œ# œ œ# œn œ œ œ 7 7 5 D B7(13) D 4 7 7 E m7 A 7 D 4 165 œ B (b13) œ œ œb œ œ œ# œ# œ. œ# œ œ œ œ œ œ# œn œ ≈ Œ Œ j‰ ‰. œ œ œ ‰. R œ & œ œ œ# œ œ# ¿# R

Chorus 4 7 G (13) (mesma harmonia até o c.187) 2 5 172 œ ~~ . . œ ~~ œ ~~ œ œ œ œ œ. œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ. œ œ œ# œn œ & œ œ œ œ œ œ

42 ASSIS BRASIL, Victor. Partitura de Pro Zeca na performance de Victor Assis Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.39-44.

178 Ÿ Ÿ ^ 5 5 œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ# œ œ œ œ# œn œ & œ œ œ œ œ œ ≈ ‰ J Œ ≈

184 œ œ œ œ œ œ œ œ œ# œn œ œ œ œ œ œ# œn œ œ œ œ œ œ & 6œ œ œ# œn œ œ œ œ œ# œ œ

D 7 B m7 E m7 A m7 188 A m7 > œ œ œ œ œ œ œ# œ œ œ œ œ œ œ# œ œn œ# œ ¿ ¿ œ œ œ#- œ^ œ œ & œ œ œ œ œ œ# œ œ ‰ Œ 7 D 4 7 B7(13) B 7(b13) E m7 D 4 D 7 193 A 7 ~~ ˘ œ# ~~ ˘ ˘œ# œ.. œ# œ œ œ œ œ ˘œ# œ ˘œ ˘œ œ œ œ œ œ ˙ ‰. œ œ œ œ# œ# œ Œ ≈ ≈ R ≈ R & œ# œ R R

Chorus 5 7 G (13) (mesma harmonia até o c.215) 2 200 œ œ œ ~~ G œ œ œ œ œ l ~ i œ œ œ ~ s œ œ œ œ œ œ. œ œ œ œ œ œ.. ~ s. œ œ & ~~ R f 206 r œ . ^ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ & J ‰‰ J

211 œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ & œ ‰ J ≈ Œ B m7 A m7 7 A m7 D m7 D 7 216 E œ Ÿ - œ. œ œ œ œ œ# œ œn . œ œ# œ œ œ# œ œ# œn œ œ œ^ œ œ# œ & œ œ œ œ Œ ≈ œ ‰Œ ≈ œ œ œ œ œ#

7 4 7 7 A 7D B7(13) B (b13) E m7 D 4 222 5 œ œ œ# . œ ˙# ~ œ.. œ# œ œ œ œ# œ œ œ œ œ œ# œ œ# œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ# œ œ & œ œ# œ R ¿

43 ASSIS BRASIL, Victor. Partitura de Pro Zeca na performance de Victor Assis Brasil. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.39-44.

Chorus 6 7 G (13) 2 (mesma harmonia até o c.243) 228 - œ œ œ ˙ ~~ œ œ^ œ^ œ œ œ œ œ. œ œ œ œ œ . œ & J ‰ Œ‰ J J J ‰‰ R p Í P 236 ˘ ˘ ˘ ˘ ˘ ^ œ ˘ ˘ ˘ ^ ˘ ˘ ˘ ^ œ œ œ œ œ ‰Ó œ œ œ œ œ œ œ ‰Œ œ œ œ œ œ œ ‰‰. œ œ œ œ œ œ œ œ ‰Œ & J J R J FA m7 D 7 E m7 244 B m7 ~~~~> œ. œ œ œ #œ œ œ œ #œ œ œ œ œ œ #œ œ œ & œ œ œ #œ œ œ œ #œ nœ œ œ #œ

B7(13) B 7(b13) D 7 E m7 248 A m7 œ œ œ œ.. #œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ R #œ œ œ #œ œ œ ≈ Œ‰. R & œ œ œ #œ œ #œ 7 D 4 7 7 A 7 D 4 G 2(13) 253 G lis > œ ~~~ s. œ ≈ œ œ >œ > > ^ ~~~ œ œ #œ œ œ #œ œ œ & ≈ ¿ œ ¿ œ ¿ œ ¿ J ‰Œ Repete o Tema (c.40-87)

Glossário de efeitos, acentos e articulações * em "Pro Zeca" de Victor Assis Brasil Heavy accent Shake (pesado, valor integral da nota (vibrato curto com variação da acentuando; com língua ou, nas afinação) frases em legato, com o diafragma)

Lip trill (vibrato com os lábios, Heavy accent mais longo e lento) (pesado, o mais curto possível) Bend (tocar a nota, abaixar e voltar à afinação inicial) Staccato (não pesado, curto) Ghost note (nota com altura indefinida)

* LAWN, Richard. The jazz ensemble director's manual: a handbook of pratical methods and materials for the educator. Oskaloosa, EUA: C.L. Barnhouse Company, 1995.

44 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee School of Music (1969-1974) em seu estilo composicional

Marco Túlio de Paula Pinto (UNIRIO, Rio de janeiro, RJ) [email protected]

Resumo: Discussão sobre o papel do ambiente musical de Boston, especialmente da Berklee School of Music entre 1969 e 1974, no desenvolvimento do estilo composicional e das habilidades como arranjador de Victor Assis Brasil (1945-1981) e seus reflexos na parcela de sua produção musical que apresenta a mistura de elementos de música clássica, jazz e música brasileira. Palavras-chave: jazz; composição; saxofone; Assis Brasil; Third Stream.

Victor Assis Brasil: the importance of the Berklee School of Music period (1969-1974) on his compositional style

Abstract: Discussion about the influence of the musical environment of Boston, especially that of the Berklee School of Music, between 1969 and 1974, on the development of the compositional style and arranging skills of Brazilian saxophone player and composer Victor Assis Brasil. (1945-1981), and its reflexes in his musical production which mixes elements from classical music, jazz and Brazilian popular music. keywords: jazz; composition; saxophone; Victor Assis Brasil; Third Stream.

1 - Introdução Este ensaio é parte de uma pesquisa que tem por obje- ma de sua partitura, seja na forma de gravação. Após tivo estudar as interseções entre elementos do jazz, da a consulta aos acervos particulares dos familiares e de música clássica e música popular brasileira na produção arquivos das orquestras da região metropolitana do Rio musical do saxofonista e compositor Victor Assis Brasil, de Janeiro e outros, como a Escola de Música da UFRJ, à semelhança do movimento Third Stream, concebido Rádio MEC, Museu da Imagem e do Som e Biblioteca por Gunther Schuller, em meados dos anos 1950. A pro- Nacional não foi possível encontrar o manuscrito origi- posta original era centralizar o foco das atenções na sua nal ou algum tipo de cópia. Com o mesmo intuito, foram composição Suíte para saxofone soprano e cordas, obra feitos alguns contatos com as bibliotecas das institui- composta em 1973 e que teve sua estreia brasileira em ções norte-americanas Berklee College of Music, New 2 de maio de 1976, na Sala Cecília Meireles, tendo o au- England Conservatory e Boston Conservatory, igualmen- tor como solista, acompanhado da Orquestra Sinfônica te sem êxito. Assim, devido à possibilidade de os esfor- Nacional, sob a regência de . Entretanto, ços desta pesquisa não darem conta da localização da até o presente momento não se tem ideia do paradei- obra, restou ampliar o escopo a outras obras do com- ro desta obra, que se pode considerar paradigmática da positor que também reúnam as mesmas características confluência de estilos e matrizes sonoras, seja na for- de fertilização mútua entre estilos musicais diversos.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 15/02/2010 - Aprovado em: 22/07/2010 45 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

Victor Assis Brasil criou diversas composições que, em maior ou menor grau, estão a meio caminho entre o jazz e a música clássica. Escreveu para diversas formações: duos, trios, quartetos, big band, e essas obras demons- tram que o seu trabalho ultrapassou as fronteiras do jazz, estilo ao qual o músico é geralmente associado.

O presente texto discute as consequências do período compreendido entre 1969 a 1974, durante o qual o músico viveu em Boston, nos Estados Unidos da Amé- rica, no desenvolvimento de suas habilidades como compositor e arranjador. Não se pretende estabelecer um vínculo direto entre a produção musical de Victor Assis Brasil e os preceitos de SCHULLER (1989) e BLAKE (1981), embora possam ser encontradas em suas obras muitas características comuns com a chamada Third Stream. O artigo é baseado em depoimentos de mú- sicos que conviveram com o saxofonista, informações de encartes dos discos lançados, notas de programa e entrevistas do próprio artista.

2 - Fontes sobre Victor Assis Brasil Uma das grandes dificuldades da pesquisa envolvendo Vic- tor Assis Brasil é a carência de fontes a seu respeito. Apesar do reconhecimento de sua importância na música instru- mental brasileira, há uma precariedade de informações so- Ex.1 - Programa da estreia brasileira da bre seu trabalho. Em tempos mais recentes alguns textos Suíte para Saxofone Soprano acadêmicos, como MAURITY (2006) e BARRETO (2007), têm abordado aspectos de sua música, sobretudo envolvendo análises de suas improvisações. Porém, até pouco tempo A dissertação de MAURITY, intitulada A improvisação em havia apenas algumas entrevistas do músico em jornais e Victor Assis Brasil propõe, através da transcrição e análise revistas e uns poucos textos na Internet que carecem de de solos, investigar a interação entre aspectos da música rigor científico. Por exemplo, em um artigo, José Domin- brasileira e do jazz na música do saxofonista. Para tal, o gos Rafaelli afirma: “Em 1976, foi convidado pelo regente pesquisador faz um recorte sobre quatro temas dos dois Marlos Nobre a apresentar, em primeira audição no Bra- últimos discos gravados por Victor. As canções escolhidas sil, sua composição Suíte Para Sax Soprano e Cordas com a são: Blues for Mr. Saltzman e Penedo, de autoria de Victor Orquestra Sinfônica Brasileira, na Sala Cecília Meireles, do Assis Brasil, Nada Será como antes, de Rio de Janeiro”. A afirmação traz uma informação incorreta. e Fernando Brandt e O Cantador, de Dori Caymmi e Nel- Na realidade a orquestra que acompanhou Victor na oca- son Motta. A justificativa para esta delimitação do foco sião foi a Orquestra Sinfônica Nacional, da qual Nobre era se baseia em serem amostras da fase mais madura do diretor musical, fato este que pode ser comprovado pelo músico, na qual se encontram mais consolidadas as suas programa do concerto (Ex.1), que se encontra no arquivo da características de síntese entre o jazz e a música brasilei- tradicional sala de concertos. Aliás, nesse documento a obra ra. O interesse de Maurity reside sobretudo na construção é referida como Suíte para Sax, Piano e Cordas. dos solos, as estratégias, técnicas e princípios utilizados no estilo do improvisador. O estudo funciona como um Além disso, a ambiguidade do uso do pronome possessivo guia para músicos cuja prática musical faz uso recorrente pode ter levado BEZERRA (2001), baseando-se presumi- da improvisação. Reconhece a importância de Victor no velmente no artigo de Rafaelli, a cair na armadilha lin- estabelecimento de uma linguagem brasileira na música guística e assumir uma incorreta interpretação do texto, instrumental, mesclando o idioma jazzístico com elemen- creditando assim a Nobre a autoria da Suíte, em seu ar- tos nacionais. Neste ponto o pesquisador reflete sobre os tigo para um site especializado em música instrumental. dilemas, as críticas sofridas ao optar por uma prática mu- A Internet é uma poderosa ferramenta dos tempos mo- sical considerada “americanizada” e o conflito entre suas dernos, possibilitando o livre acesso a uma enorme quan- múltiplas personalidades “de carioca, jazzman e músico tidade de informações. Entretanto, torna-se um campo universal” (MAURITY, 2006, p.10). perigosamente fértil para a disseminação de informa- ções incorretas ou imprecisas. MAURITY (2006), seja por Já o trabalho de BARRETO (2007), intitulado Pro Zeca de basear-se no texto de BEZERRA, seja por também fazer Victor Assis Brasil: aspectos do hibridismo na música ins- uma interpretação incorreta do artigo de Rafaelli, acaba trumental brasileira, analisa a manifestação simultânea de cometendo o mesmo equívoco. elementos de música brasileira e jazz, mais especificamen-

46 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

te baião e bebop, na composição do saxofonista dedicada de Third Stream, atualmente Contemporary Improvisa- ao contrabaixista Zeca Assumpção. Sua fonte primária é tion Department. o registro desta composição no LP Victor Assis Brasil, gra- vado ao vivo em 1974. O autor define esse processo como O seu livre trânsito e sua admiração por ambas as esferas hibridação, ou hibridismo. No decorrer do texto descreve musicais contribuíram para sua concepção de uma mú- as características de cada estilo, demonstrando como es- sica que reúne “a espontaneidade improvisacional e a vi- tas se manifestam na composição em questão, concluindo talidade rítmica do jazz com os procedimentos e técnicas que a hibridação, com a incorporação do idioma jazzístico composicionais adquiridas na música ocidental durante a práticas vernaculares, tornou-se um traço marcante da 700 anos de desenvolvimento.” (SCHULLER, 1986, p.115). música instrumental nos séculos XX e XXI. Sua ideia inicial não era deflagrar um movimento ou criar um slogan, mas descrever um tipo de música que já exis- Em sua tese Improvisação no Saxofone: A Prática da Im- tia, e carecia de denominação. O compositor vislumbrava provisação Melódica na Música Instrumental do Rio de um cenário onde a música de concerto do século XX e o Janeiro a partir de meados do século XX, FIGUEIREDO jazz seriam as duas principais correntes estilísticas cor- (2005) discute a utilização da improvisação no desen- rendo paralelamente, e que em algum ponto começaria a volvimento de uma linguagem corrente no meio musical haver uma troca mútua de elementos, daí nascendo a tal carioca, com a incorporação de elementos da linguagem terceira corrente. De fato, este intercâmbio já pode ser jazzística. Um dos procedimentos da pesquisa é a da en- notado em obras de Stravinsky, Milhaud, Copland, Ger- trevista com músicos proeminentes do cenário musical swhin e outros, que tiveram o jazz como fonte inspira- instrumental carioca. Diante da impossibilidade óbvia de dora em muitas de suas obras. Por sua vez, os músicos entrevistar Victor Assis Brasil, falecido em 1981, presta- de jazz demonstraram apreço e interesse pela música de lhe um tributo, destinando algumas páginas de sua tese concerto. Nomes como Coleman Hawkins (1904-1969), a traçar um perfil biográfico, aparentemente baseado nas fundador de uma dinastia de grandes solistas no saxofone parcas informações disponíveis citadas anteriormente. tenor, que se inspirava no violoncelo para obter sua so- Por consequência, acaba cometendo o mesmo equívoco noridade no instrumento, e que teria em sua coleção par- de MAURITY, ao divulgar informações incorretas sobre a ticular apenas discos de música clássica (SEGELL, 2006). autoria e estreia da Suíte para saxofone soprano e cordas. Ou como o cornetista Bix Beiderbecke (1903-1931), um De qualquer forma, o trabalho reconhece a importância dos grandes músicos de jazz dos anos 20. Uma de suas do trabalho do saxofonista no estabelecimento da práti- composições que chegaram até o nosso tempo, In a Mist ca da improvisação no desenvolvimento da linguagem da apresenta uma “abstração melancólica e um movimento música instrumental brasileira. harmônico rarefeito” que “apontam para ambições além do mundo da canção popular e do jazz” (GIOIA, 1997, Como se pode perceber, os trabalhos mencionados dis- p.90). Isto sem falar em Benny Goodman (1909-1986) e cutem e analisam o lado mais conhecido da obra de Vic- Woody Herman (1913-1987), que encomendaram e to- tor Assis Brasil: sua atuação como instrumentista, com caram obras clássicas1 de importantes compositores do destaque para suas habilidades como improvisador, além século XX. E não se pode ainda esquecer a monumen- do fato de ser o músico, de certa maneira, um pioneiro tal obra de Duke Ellington (1899-1974), que transcende e referência àqueles instrumentistas dedicados à prática qualquer classificação de estilos. De fato, essa miscige- da improvisação em sua atuação profissional. Esta pes- nação estilística sempre esteve presente na música sendo quisa, mesmo reconhecendo a relevância desses aspectos potencializada no século XX. Para GIOIA em sua carreira, procura investigar um outro lado de sua produção: as obras nas quais o arranjador e compositor ...a idade moderna é marcada pela tendência de estilos distintos se amalgamarem e se fertilizarem mutuamente. Na música, pure- ultrapassa os limites estilísticos, unindo música clássica, za é um mito, embora resiliente. O historiador que espera poder jazz e música popular brasileira, oferecendo subsídios vir a enfrentar as poderosas correntes de criatividade em tempos para a interpretação desse repertório. modernos deve aprender a lidar com estas complexas formas de arte em seus próprios termos ou de forma alguma Não há uma via expressa no mapa pós-moderno, apenas uma miríade de caminhos 3 – O Movimento Third Stream e Victor entrecruzados e divergentes2. GIOIA (1997, p.89) Assis Brasil No início da década de 1960 o compositor Gunther O próprio jazz, em sua essência, é o resultado do en- Schuller cunhou a expressão Third Stream. Schuller ini- contro da tradição europeia com as diversas práticas ciou sua carreira como trompista, tendo atuado tanto musicais trazidas da África. Aliás, este é um traço mar- no jazz, notadamente no noneto comandado por Miles cante comum à maior parte das músicas das Américas, Davis e Gil Evans, quanto na música clássica, tendo to- marcadas pelo processo de aculturação decorrente do cado na Cincinatti Symphony e posteriormente na Me- colonialismo e da escravatura. De qualquer modo, o cer- tropolitan Opera Orchestra. Como educador, atuou em to é que desde muito cedo houve uma influência mútua importantes instituições de ensino musical, como Ma- entre a música clássica e o jazz. nhattan School of Music, Yale University, Tanglewood Music Center e New England Conservatory, do qual foi O termo Third Stream foi controverso e combatido por am- presidente entre 1967 e 1977. Lá criou o departamento bos os lados, sobretudo do meio jazzístico, sendo Schuller

47 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

acusado de oportunismo e falta de “feeling” racial, o que o do Clube das Garrafas e do Clube de jazz e Bossa, nos levou a se defender afirmando que não pretendia melhorar, festivais de jazz na Europa, no segundo disco gravado substituir ou mesmo trazer o jazz para dentro da música de por Victor, nos tempos de Boston e da Berklee. O trom- concerto. Algum tempo depois, o pianista Ran Blake am- petista é taxativo ao afirmar que pliou o sentido do termo, que passou acolher as diversas manifestações vernaculares e étnicas (BLAKE, 1981). a influência da musica clássica na música do Victor veio do João Carlos Assis Brasil. O Victor sempre ouviu clássico, mais pela in- fluência do João do que outra coisa. O movimento Third Stream Schuller concebia a Third Stream como um caminho lógi- que existia em Boston com o Gunther Schuller e o Ran Blake co e inevitável para o curso da história da música. Entre- não influenciou o Victor, que eu saiba. ... Nós fomos colegas de tanto, a fragmentação dos estilos jazzísticos, sobretudo apartamento na Áustria (Victor, João e eu) e o João teve muita influência no interesse que Victor teve pelo piano e pela música o surgimento de duas tendências: o free jazz e a fusão que João estudava todo o tempo. Entretanto o contrário também do jazz com o rock, também conhecida como fusion ou aconteceu, pois tempos depois João Carlos se interessou pelo jazz-rock, acabaram por enfraquecer o movimento. Ainda jazz também. Eu acho que o movimento Third Stream não teve assim, podem ser percebidos traços característicos dessa influência no Victor (RODITI, 2009). fusão entre música clássica e jazz na obra de diversos artistas: The Modern Jazz Quartet, Stan Kenton, Charles Não há motivos para discordar de Roditi. Seu estreito Mingus, Toshiko Akiyoshi, Bob Mintzer, George Russel, e convívio com Victor Assis Brasil, pessoal e musicalmente avaliza o seu depoimento. Deve-se ainda lembrar que o obviamente Blake e Schuller. Encounters, ambiciosa obra escrita em 2003 sintetiza o ideal de Schuller de uma mú- período no qual moraram na Áustria é anterior à viagem aos Estados Unidos, corroborando suas declarações. Mes- sica na qual o jazz e o clássico interagem. Sobre este tra- balho escreveu o crítico musical Richard Dyer: mo que o compositor não tenha sofrido influência direta da chamada Third Stream, é fato que existe um número Encounters é uma improvável e delirantemente atraente obra- razoável de obras escritas pelo brasileiro que comparti- prima orquestrada para 150 músicos, incluindo uma orquestra lham das mesmas características descritas por Schuller, expandida, teclados, jazz ensemble e solistas de jazz. A obra inicia Blake et al., e é provável que o cenário musical de Boston, com um grito selvagem, e então um motivo suspirante; ambos com a fartura de escolas e estudantes de música, tenha aparecem o tempo todo. O grupo clássico e os instrumentos de jazz se alternam, mas logo começam a interagir em material mu- fornecido ambiente propício para suas experimentações sical compartilhado. O ágil jazz frequentemente tende a roubar no campo da composição e do arranjo. o show dos grupos clássicos mais amarrados, mas o ouvido e a imaginação de Schuller para a cor orquestral não deixa isso acon- tecer; o terceiro movimento, com seus estrondos de não usuais 4 – A trajetória musical de Victor Assis Brasil instrumentos graves, é uma mágica musica noturna Bartokiana. O clímax te faz levantar�. (DYER, 2003) 4.1 – O início da carreira e a identificação com o jazz. Uma hipótese cogitada no início desta pesquisa é ter sido O nome de Victor Assis Brasil está associado intimamen- Victor Assis Brasil diretamente influenciado pelas ideias de te ao jazz. Suas próprias declarações davam conta de Schuller, Blake, Russel e outros adeptos da third stream, suas intenções de desenvolver um trabalho ligado a este pelo fato de o músico brasileiro ter residido em Boston jus- estilo musical. Os depoimentos de músicos, críticos e afi- tamente no período em que Schuller presidia o New En- cionados sempre se referem ao músico como o “grande gland Conservatory, e este período coincidir também com jazzista brasileiro”, o “ jazzman” e outros adjetivos do suas obras de maior aproximação com a música clássica. gênero. Mas é preciso lembrar alguns pontos. Em primei- Além da Suíte para saxofone soprano, existem várias ou- ro lugar, Victor não foi de maneira nenhuma um pioneiro, tras, geralmente curtas, camerísticas, que fogem do tradi- nem foi um representante de uma causa solitária. Havia cional esquema do jazz tema-improvisos-tema. Uma busca um crescente interesse pelo jazz, que se no final dos anos preliminar no acervo de Paulo Assis Brasil, produtor musi- 40 era mais restrito a espaços privados, como os fãs-clu- cal e irmão do saxofonista, revela as seguintes obras (Ex.2): bes Sinatra-Farney e Dick Haynes-Lúcio Alves, na década seguinte iria se transferir para consagrados espaços no- Assim, era bastante plausível que Victor tivesse sido turnos de Copacabana, como o Copacabana Palace e as afetado pela música que o grupo de compositores de boates, Vogue´s, Sacha´s, Plaza, e posteriormente Little Boston estava produzindo. Não havia muitos anos que o Club e Bottle´s Bar. (SARAIVA, 2007, CASTRO, 1990). Vic- movimento tinha sido lançado e, devido à proximidade tor começa a despontar no cenário musical carioca em física, poderia possivelmente haver o intercâmbio entre 1964, sob o impacto da bossa-nova e sua incorporação as diversas escolas de música. Entretanto, depoimentos do vocabulário harmônico jazzístico ao samba carioca, de amigos que presenciaram esse momento da vida de um samba novo, estilizado. Longe de passar pela discus- Victor Assis Brasil são contrários a essa hipótese. Um são entre “saudosistas” e “modernistas” que acaloraram deles em especial: o trompetista Claudio Roditi, que vive os debates sobre os rumos da música brasileira na época, hoje em dia nos Estados Unidos e é um dos mais respei- o que interessa aqui é que havia na comunidade musi- tados músicos da atualidade. Claudio e Victor sempre ti- cal um grande número de instrumentistas que de fato veram uma intensa relação de amizade e afinidade mu- faziam uso da linguagem do jazz. Nomes como o pró- sical. “Eram irmãos siameses na música” (AYRES, 2009). prio Farney, , Sérgio Mendes, Paulo Moura, J.T. Estiveram juntos em vários momentos: nas jam sessions Meirelles, Aurino Ferreira, Cipó, Luiz Eça, Baden Powell

48 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

nº Título instrumentação data

1 Asa Branca (arranjo) big band s.d. 2 Marilia big band s.d. 3 Dialogues4 big band s.d. 4 Brazilian Sketches big band s.d. 5 Faces big band s.d. 6 Winter Songs big band s.d. 7 Suite in Three big band s.d. 8 Lines Flugelhorn, 2 saxofones altos, trombone, baixo, piano s.d. 9 Minueto piano 04/03/75 10 Ponteio # 1 piano 20/08/75 11 Reflexos saxofone alto, vibrafone, baixo 28/01/77 12 Osmosis saxofone alto, guitarra, cello 23/03/77 13 Estudo #1 saxofone solo 14 Sem título piano 15/12/77 15 Scattered Clouds piano 26/04/79 16 Prelúdio piano 13/05/79 17 Sem título saxofone alto, piano s.d. 18 Sem título saxofone alto, trompete, piano s.d. 19 Suite for a Lost Lady trompete, saxofone soprano (alto), piano, baixo, bateria s.d. 20 One for Madam piano 28/03/73 21 Mirage metais e piano s.d. 22 Sem título piano s.d. 23 Sem título piano set/73 24 Fugue piano set/73 25 Modinha piano jan/74 26 Penedo piano, saxofone soprano dez/73 27 Tema saxofone tenor, trompete, trombone, piano, baixo, bateria s.d. 28 Prelude for trumpet piano and strings trompete, piano, cordas s.d. 29 Visions trompete, saxofone soprano, cordas s.d. 30 Prelude quarteto de cordas s.d. 31 To Booker Little piano, trompete s.d. 32 Mirage Saxofone tenor, trompete, trombone, piano, baixo, bateria s.d. 33 Quarteto #1 quarteto de cordas s.d. 34 Modal big band s.d. 35 Sem título big band s.d. 36 Saxophone quartet #1 quarteto de saxofones (satb) s.d. 37 Prelude for alto sax and piano saxofone alto e piano s.d. Ex.2 – Tabela com relação de obras de Victor Assis Brasil

49 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

e tantos outros (CASTRO, 1990). A fusão entre a batida te contato, foi convidado pelo clube e pelo Itamaraty a do samba, ainda que estilizada, e os sofisticados acor- participar do Internationaler Wettbewerb für Modernen des do jazz, foram determinantes no estabelecimento Jazz Wien 1966, organizado pelo pianista e compositor da chamada ‘música instrumental contemporânea bra- austríaco Friederich Gulda, cuja carreira se dividiu entre sileira’, ou simplesmente ‘música instrumental brasileira’ a música de concerto e o jazz. Sobre a participação de (DAUELSBERG, 2001). A despeito da diversidade estilísti- Victor neste festival as informações são controversas. Se ca e da incorporação de elementos regionais, esta músi- Borelli e Rafaelli6 afirmam que o brasileiro terminou a ca instrumental que se faz até hoje se baseia em muito competição em terceiro lugar na categoria saxofone, Ce- na prática jazzística, fundamentada na improvisação. lerier, em seu texto para a contracapa do segundo disco de Victor Assis Brasil, de 1968, afirma ter sido o segun- Mas, o que faz com que Victor Assis Brasil tenha atraído do lugar a sua colocação. Assim também declara Alfredo para si o rótulo de jazzista? Além obviamente de o jazz Gomes (depoimento pessoal), baterista que tocou com confessadamente ser uma parte proeminente do seu fazer Victor na década de 1960. O depoimento de Celerier está musical, o saxofonista fez uma escolha em sua carreira mais próximo no tempo da realização do festival, portan- artística que o diferencia da maioria dos instrumentistas, to seu conteúdo está menos sujeito à traição da memória. daqueles que o antecederam, de seus contemporâneos e Todavia, mais importante que se estabelecer a real colo- dos que vieram depois. Ele decidiu se dedicar exclusiva- cação de Victor Assis Brasil naquele evento, é lembrar que mente à sua música, renunciando a qualquer outro tipo o vencedor da categoria saxofone na ocasião foi Eddie de trabalho. Não tocou em bailes, acompanhou cantores Daniels, um dos mais consagrados músicos da atualidade, ou participou de gravações de jingles, que sempre foram músico referência na moderna clarineta do jazz, o que dá as atividades que sustentaram a carreira de muitos mú- ideia do nível da competição. Na Europa, Victor participa- sicos, de ontem e de hoje. Victor pagou um preço por ria ainda do Festival de Berlim, tendo obtido o 1º lugar na isso. Passou por enormes dificuldades financeiras para categoria saxofone. Ganhou ainda uma bolsa de estudos manter-se fiel a seus princípios. O testemunho de Rober- na cidade de Gratz e permaneceu em Viena juntamente to Sion corrobora essa afirmação: com o irmão João Carlos e o amigo Claudio Roditi, que também embarcara para a aventura dos festivais. Na minha opinião o Victor foi o único a ser somente um jazzman no Brasil. Dick Farney era pioneiro no jazz, Robledo, os saxofonis- tas da antiga, Abdon Lara, Cipó, Aurino, Juarez Araújo, Zé Bodega, Naquele mesmo ano de 1966, Victor Assis Brasil gravou todos esses adoravam jazz, como era a nossa escola, mas ninguém seu primeiro disco, Desenhos, ao lado do pianista Tenório se dedicou a viver exclusivamente de jazz. Esse foi um dos méritos Jr., do contrabaixista Edison Lôbo e do baterista Chico dele, e a coragem. E custou caro, estava sempre duro (SION, 2009). Batera. O repertório inclui Naquela Base (Donato), Pri- Vindo de uma família carioca de classe média, Victor Assis mavera ( – Vinícius de Moraes), Simplesmente Brasil é irmão gêmeo do pianista João Carlos Assis Brasil, (Edson Lôbo), Feitiço da Vila ( - Vadico), Amor que além de uma destacada carreira na música clássica, de Nada (Marcos e Paulo Sérgio Valle), Minha Saudade fez incursões pela música popular e pelo jazz. Sua avó pa- (João Donato - João Gilberto), além de quatro compo- terna foi maestrina e diretora de conservatório. O primeiro sições de Victor: Devaneio, Dueto, Eugenie e Desenhos. instrumento musical foi a gaita, que começou a tocar aos É um disco naturalmente influenciado pela bossa-nova 10 anos de idade. Mais tarde ganharia de uma tia o instru- e pelo samba jazz, caracterizado pela mistura entre os mento que se tornou seu maior meio de expressão, o saxo- ritmos de samba-canção e samba a harmonias de jazz e fone5. Embora tenha tido algumas aulas com Paulo Moura, blues, notadamente na composição de Lôbo. Victor demonstrou desde cedo um senso intuitivo muito forte e uma tendência a descobrir por si os caminhos musi- Três faixas merecem destaque. A bela valsa Eugenie tem cais. Seu aprendizado se deu em muito através do processo um lirismo e um sofisticado encadeamento harmônico de escuta e transcrição de solos de grandes músicos de que lembram o trabalho do pianista Bill Evans. Victor vi- jazz. Segundo João Carlos Assis Brasil seus favoritos eram ria a ter uma especial atração pelo compasso ¾ como fica Cannonball Adderley, Phil Woods e John Coltrane. comprovado pelas diversas “waltzes”7 que ele escreveu no transcorrer de sua carreira. Em 1963 conheceu o trompetista Claudio Roditi, que viria a ser um grande amigo e parceiro musical. Nessa época, A peça Dueto – que na realidade deveria se chamar trio, no colégio Andrews, tocavam em grupos separados: Vic- já que apenas o piano não toma parte - parece influen- tor com os irmãos Sauer e Claudio com Antonio Adolfo. ciada pelo antológico A Love Supreme, de John Coltrane. É Victor começou então a participar das jam sessions do uma obra intrigante que traz um longo diálogo entre sa- Little Club, no lendário Beco das Garrafas, o que serviu xofone e contrabaixo, pontuado por efeitos na bateria. Há para apresentar o jovem músico à comunidade musical. uma alternância de seções que tem um caráter recitativo Em 1965 participou da estreia do Clube de Jazz e Bos- com outras mais rítmicas, com um clima latino acentu- sa, fundado por alguns jazzófilos, entre eles Jorge Guinle, ado. A obra apresenta ainda uma estrutura modal, sendo Luiz Orlando Carneiro, José Domingos Rafaelli, Silvio Tu- as ideias construídas sobre uma única escala, causando a lio Cardoso, Estevão Herman e outros, estando presente sensação de uma nota pedal que se prolonga por toda a em muitas de suas reuniões subsequentes. Através des- sua extensão, embora nem sempre esteja lá.

50 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

Desenhos, a composição que dá nome ao disco, é um 4.2 – A atividade musical de Victor Assis Brasil exemplo de que embora o jazz tenha um lugar de des- na Berklee taque na produção de Victor Brasil, está longe de ser Nos anos 1960 o aprendizado da música popular era feito uma referência única. Esta obra apresenta um ostinato de maneira totalmente informal. Não havia ainda escolas do contrabaixo ao qual se aderem uma linha de saxo- especializadas como o CLAM – Centro livre de aprendiza- fone, intervenções cordais do piano e efeitos da bateria. gem musical, criado e dirigido pelos integrantes do Zim- Há a um pequeno improviso do saxofone, mas não há a bo Trio, em São Paulo, em 1973, ou o CIGAM – Curso Ian presença de uma “levada”.8 O resultado é mais próximo Guest de Aperfeiçoamento Musical, criado pelo compositor de Satie que de Charlie Parker ou Cannonball Adderley. e arranjador húngaro no Rio de Janeiro, em 1987. Desta Um prenúncio de caminhos que levariam sua música para forma, aprendia-se música através do corpo a corpo, da além dos domínios do jazz. troca de informações entre os colegas, e também da escuta e das transcrições de solos de artistas consagrados. Esta é De volta da Europa, Victor continuou a participar das uma prática ainda utilizada, sendo de grande valia para várias jam sessions na casa de amigos em Copacabana e a assimilação de estilos. Mas mesmo isso era mais difícil Botafogo. Essas reuniões eram muito frequentes e eram naqueles dias, já que havia uma menor variedade de títulos importantes pela troca de informações e experiências disponíveis. Roberto Sion relata essa dificuldade. entre músicos. Além de seu quinteto, que nessa época era formado pelo trompete de Roditi, o piano de Aloí- Naquela época a gente não tinha uma discografia brasileira de jazz - Você ia 3, 4 anos nas lojas e estavam sempre os mesmos sio Aguiar, o contrabaixo de Sergio Barroso e a bateria discos: Modern Jazz Quartet, tinha um do Chet Baker, um disco do de Claudio Caribe, Victor montou um outro grupo, um Dave Brubeck, talvez o Time Out já tivesse saído. Essa enxurrada de sexteto, no qual era ladeado pelo amigo inseparável Ro- informação que a gente tem hoje, de Cds era uma coisa inominável diti, o pianista Haroldo Mauro Jr., o contrabaixista Ri- (SION, 2009). cardo Santos, o saxofonista Ion Muniz, também tocando Além disso, não havia os recursos eletrônicos que auxi- alto, e o baterista Alfredo Gomes. O baterista fez sua liam no trabalho de transcrição, como programas que estreia como músico profissional justamente com esse permitem diminuir a velocidade da gravação sem alterar grupo, com o qual participou de diversos shows no Rio a altura das notas, para a melhor compreensão de tempos de Janeiro, com destaque para o espetáculo Ad Libitum, e frases muito rápidos, ou isolar com precisão o trecho a apresentado na Sala Cecília Meireles em 1968, que além ser transcrito. Todo o trabalho era feito com a imprecisão do sexteto contou com a participação do Quinteto Villa- aleatória da agulha dos toca-discos. Através desse labo- Lobos e de um septeto de dança coreografado por San- rioso procedimento se deu a formação de várias gerações dra Dieken. (GOMES, 2008) de instrumentistas.

Seu segundo disco também foi gravado neste período, A Berklee College of Music10, em Boston, Estados Unidos, com a participação do quinteto9 acrescido de convi- foi a primeira instituição americana dedicada ao ensino dados, com destaque para o trombonista Edson Maciel do jazz. Com o decorrer do tempo, seu campo de atua- e o guitarrista Helinho (Helio Delmiro). Este é um tra- ção passou a abranger o rock e a música pop. A lista de balho direcionado totalmente ao jazz. Ao contrário de ex-alunos inclui celebridades do jazz como Quincy Jones, Desenhos, marcado pelo clima de samba jazz, apresenta Toshiko Akiyoshi, Joe Lovano, Gary Burton, Al di Meola, sobretudo tradicionais números de compositores norte- Joe Zawinul, Makoto Ozone, Branford Marsalis entre ou- americanos. Round about midnight (Thelonious Monk) é tros. A universidade atende a 4.000 alunos e tem 300 en- apresentada sublimemente em trio de guitarra, saxofo- sembles de alunos, 300 salas para ensaios e 13 estúdios ne e piano. What’s this thing called Love (Cole Porter) completos de gravação como alguns de seus inúmeros traz um arranjo para big band de George André, com recursos11. Os números são atuais, mas mesmo em 1969, destaque para uma sensacional seção de saxofones: Vic- quando a estrutura da escola era bem menor, o abismo tor Assis Brasil e Paulo Moura nos altos, Juarez Araújo entre seus recursos e o aparato disponível no Brasil, ou e Oberdan Magalhães nos tenores. Há Mercy, Mercy, seja, nenhum, era gritante. Mercy (Joe Zawinul), um grande sucesso de Cannonball Adderley. “E aquele cara chamado Robertinho que tá lá Nelson Ayres, Victor Assis Brasil e Claudio Roditi estão no disco sou eu tocando tenor. Só uma voz no Mercy, entre os primeiros brasileiros a estudarem em Berk- Mercy” (SION, 2009). O LP inclui ainda Search for peace lee. Depois vieram muitos outros: Roberto Sion, Zeca (McCoy Tyner) e Summertime (G. Gershwin - Du Bose Assumpção, Célia Vaz, Alfredo Cardin, Claudio Caribé, Heyward). Mesmo Stolen Stuff, composta por Victor, e Helio Delmiro e uma legião de músicos. A escola viria a Plexus, por Aloísio Aguiar, são obras escritas totalmente se tornar a Meca dos brasileiros interessados a apren- dentro do idioma jazzístico, afastadas de qualquer ma- der o idioma jazzístico. triz brasileira, o que não revela intenção alguma de criar uma linguagem própria, mas uma tentativa de se esta- O que se sabe da vida acadêmica de Victor Assis Brasil belecer nos cânones estilísticos do jazz. Este é o mo- em Berklee, considerando-se que ele teve uma, é dado mento em sua carreira onde o saxofonista abraça mais pelo depoimento dos amigos que lá estiveram no mesmo aberta e explicitamente este gênero musical. período. Caberia uma pesquisa de campo para levantar

51 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

registros acadêmicos e outros documentos relatando sua Em certa ocasião houve uma apresentação dos professo- atuação naquela instituição. res de Berklee em um centro comunitário e o quinteto foi convidado para fazer a abertura. Segundo Ayres houve O compositor Nelson Ayres costuma dizer ter sido o pri- um grande constrangimento, uma vez que o grupo bra- meiro brasileiro a estudar em Berklee, embora Victor Assis sileiro apresentava um grande entrosamento adquirido Brasil tenha lá chegado dois dias antes que ele. Aconte- através da maratona de ensaios. Além disso o grupo con- ce que, segundo Ayres (2009), o saxofonista nunca con- tava com Victor e Claudio, que, além de suas evidentes seguia acordar para as aulas matutinas. De fato, vários qualidades individuais como solistas e improvisadores, depoimentos dão conta de sua falta de assiduidade na tinham um entrosamento fantástico, uma afinidade mu- escola. Vários fatores podem ter levado a isso: uma de- sical indescritível.(AYRES,2009) Para completar, o grupo sestruturação de comportamento, uma tendência à boe- tocava composições originais e fazia uso de solos em ins- mia. Entretanto, vários depoimentos confluem para uma trumentos não convencionais, como berimbau. Em con- desilusão, de certo modo, uma frustração da expectati- trapartida, o grupo formado pelos professores apresentou va pelo que iria encontrar nos Estados Unidos. O irmão, standards no tradicional esquema tema-solos-tema. O João Carlos Assis Brasil, costuma dizer que quando Victor resultado não poderia ser outro. O grupo dos alunos cha- chegou a Berklee para estudar saxofone, os professores mou mais a atenção do que o dos mestres. perguntaram se ele estaria ali para aprender ou para ensi- nar o instrumento, devido ao seu avançado nível técnico. A partir daquele momento, Victor passou a ter grande Este relato poderia muito bem soar como uma declaração prestígio e consideração entre a comunidade musical de de admiração de um irmão devotado, assumindo até um Berklee e adjacências, embora o ocorrido pudesse tam- caráter ufanista. Entretanto, diversos depoimentos ratifi- bém ter rendido algumas manifestações de ciúmes por cam essa afirmação. A compositora Célia Vaz diz que “ele parte de alguns saxofonistas. O grupo continuou reunido estava também 10.000 pontos na frente daquilo tudo. Ele até o regresso de Ayres ao Brasil em 72, chegando a tocar daria aula para os professores.” (VAZ, 2008). Ayres afirma: com a cantora Astrud Gilberto.

Acho que ele, como músico, naquela época já era muito superior à maioria dos professores e não se interessava pela coisa acadê- Se Victor Assis Brasil não era muito assíduo aos cursos mica. De qualquer maneira a Berklee é uma faculdade e você tem disponíveis em Berklee, a rotina da escola e sobretudo o aquelas “História do Jazz”, “Harmonia Tradicional” e coisas que calendário escolar devem ter sido respeitados, ou levados talvez ele não tivesse “saco” para aprender. Ele gostava de tocar. À tarde e à noite ele estava lá na escola tocando com o pessoal, em consideração, pelo menos por um tempo. O músico de brincadeira, jam sessions. Mas do que eu saiba ele nunca teve aproveitou o período de férias escolares para gravar no exame, ou teve nota. (AYRES, 2009) Brasil os próximos dois discos de sua carreira. Ao chegar, sugeriu ao amigo e produtor Roberto Quartin a gravação O músico americano Kenny Werner, que estudou na Berk- de um LP. Roberto, fã confesso do saxofonista desde os lee entre 1970 e 1972, fala do nível do saxofonista e da tempos do Beco das Garrafas e do Clube de Jazz e Bossa, influência sobre outros músicos. respondeu: “Um não, dois!”, 13 sugerindo que gravassem um com composições de Victor e outro com composições Eu acho que ele estava praticamente pronto antes de chegar lá. Eu não sei quantas aulas ele tomou ou foi, mas ele principalmente de Antônio Carlos Jobim. Assim, entre 1º e 23 de agos- teve influência sobre outros estudantes e apresentou-se muito em to de 1970 foram gravados Jobim e Esperanto. Ambos os Boston. (…) Incrivelmente forte com seu próprio estilo e senso de discos foram relançados em CD no final dos anos 1990, direção. Incrivelmente generoso em mostrar, a mim e a outros, tendo o segundo recebido o título de The Legacy. Em am- grandes coisas sobre música e mostrar-nos muita música que não ouvíamos. Ele foi uma inspiração para todos que o conheceram.12 bos os discos Victor é acompanhado pela guitarra de Hé- (WERNER, 2009). lio Delmiro, pelo órgão e piano de Don Salvador, o baixo de Edison Lôbo e a bateria de Edison Machado. Quando chegou aos Estados Unidos e foi informado da pre- sença de outro brasileiro, chegado havia dois dias, Nelson O trabalho dedicado a Jobim traz em sua abertura uma Ayres tratou de ir conhecê-lo. Victor morava em um quarto versão bem livre de Wave, com longos solos construí- alugado no porão do número 404 da Marlborough Stre- dos sobre a escala nordestina14, prenunciando um sabor et, o qual dividia com o pianista chileno Matias Pizarro. regional que estaria presente em algumas composições Coincidentemente, seu vizinho de quarto, um estudante futuras de Victor, como Arroio e Pro Zeca, mas assimi- de arquitetura, estava à procura de alguém para dividir os lando alguma influência defree jazz. É a faixa mais ex- custos do aluguel. Desta maneira, na maior parte do tem- tensa do disco, com 14m24s. Só tinha de ser com você e po em que esteve em Boston, Ayres se tornou vizinho de Bonita apresentam interpretações bastante convencio- Victor. Com a chegada de Claudio Roditi, e posteriormente nais, baseadas no estilo samba jazz, que foi marcante do contrabaixista Zeca Assumpção, os brasileiros decidi- na formação de todos os músicos participantes da gra- ram formar um quinteto instrumental, que contou ainda vação. Dindi chama a atenção pela rearmonização cro- com a participação de um baterista americano chamado mática, e pela desconstrução da sustentação rítmica, Buss Blackledge. O grupo, denominado Os Cinco, tinha uma resultando numa interpretação bastante pessoal. Este rotina obsessiva diária de ensaios e começou a fazer apre- disco registra ainda a primeira gravação de Victor Assis sentações nas redondezas de Boston. Brasil tocando saxofone soprano.15

52 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

Esperanto é um disco jazzístico em sua essência. Embora des pianistas pra tocar o concerto dele. Teve um concerto que o a proposta fosse a gravação apenas de composições de Kenny Werner tocou, e como o Kenny vários outros músicos ma- ravilhosos que estavam à disposição e ansiosos pra tocar as coisas Victor Assis Brasil, sua faixa de abertura, Gingerbread que ele escrevia. Isto é claro que é um incentivo muito grande pra boy, na realidade foi escrita por Jimmy Heath, embora qualquer compositor, você ter quem toque maravilhosamente sua fosse incorretamente creditada a Victor16. O disco traz obra, quem que não quer? Aqui você escreve e guarda numa gave- ainda a bela Marília, uma valsa cheia de lirismo, que o ta porque não tem onde tocar. É muito mais difícil você conseguir alguém pra tocar um concerto seu pra piano e cordas, ou piano e compositor viria mais tarde orquestrar para big band. sinfônica, do que lá. Ainda mais em Boston, onde havia milhares Quarenta graus à sombra traz influênciasfree, com solos de escolas, milhares de músicos de todos os níveis e de todos os lu- simultâneos, seguindo as trilhas traçadas por John Col- gares do mundo, você tem na esquina. Sempre tinha alguém bom trane, Ornette Coleman e outros. A faixa que encerra o pra tocar aquilo. (VAZ, 2008) disco destoa da atmosfera jazzística que o caracteriza. Ao amigo Quartin tem uma estrutura minimalista, um Assim, mais que a formação que o compositor pudesse vir caráter quase litúrgico. Pode ter sido essa diversidade a ter nas classes de Berklee, foi o imenso, farto labora- estilística que levou a gravadora Atração, responsável tório musical que teve à disposição que incentivou a sua pelo relançamento dos dois discos, a retirá-la do disco criação, abrindo caminho para a expansão de sua música autoral, preferindo incluí-la naquele com obras de Jo- para além da linguagem puramente jazzística. bim, renomeada Quartiniana nº 1. Em seu lugar entra- ram uma versão alternativa de Marília e Friends, uma 4.3 – O retorno de Victor Assis ao Brasil gravação que ficara excluída da edição original e que Em 1974 Victor Assis Brasil decidiu voltar ao Brasil. Des- conta com a participação de Claudio Roditi. ta vez seu grande amigo e parceiro Claudio Roditi não seguiu seus passos, permanecendo nos Estados Unidos, É difícil afirmar de maneira precisa o que Victor Assis onde até hoje tem uma bem sucedida carreira musical, Brasil estudou em Berklee. Roberto Sion afirma que estu- sendo um dos mais reconhecidos e respeitados trompe- dou composição e arranjo, além de saxofone com Joseph tistas da atualidade. Victor seguiu seu caminho coman- Viola. Zeca Assumpção afirma que ele estudou composi- dando pequenos grupos, tendo gravado mais três discos: ção e arranjo, embora saliente o aspecto intuitivo de sua Victor Assis Brasil, gravado ao vivo em 1974 no Teatro da criação musical (ASSUMPÇÃO, 2008). De fato, ao obser- Galeria; Victor Assis Brasil Quinteto, de 1979 e Pedrinho, var seus arranjos para big band, percebe-se o desenvolvi- de 1980. Uma apresentação em duo com o pianista Luiz mento de uma linguagem própria, em detrimento de uma Eça, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em sistematização e da adoção de práticas consagradas na 1977, seria postumamente lançada em CD. Participaria escola americana. Se por um lado isto resulta em traba- ainda do Festival de Jazz de São Paulo, em 1978. lhos onde se pode perceber a falta de um maior domínio de tradicionais procedimentos e técnicas de arranjo, por Victor escreveu também música para cinema17 e televi- outro lado sobressaem a originalidade e individualidade são. Trabalhou como arranjador na Rede Globo de Tele- de seu estilo, adquiridas de suas experimentações. visão, tendo composto a música para a novela O Grito, exibida entre 1975 e 1976, cuja trilha sonora encontra-se Em 1972, quando chegaram a Boston Célia Vaz e Roberto disponível no mercado em CD. Normalmente este tipo de Sion, Victor já não frequentava mais as aulas, embora go- coletânea é usado como estratégia de mercado para in- zasse de prestígio e tivesse acesso às dependências da es- serir ou consolidar cantores no circuito da música comer- cola. O compositor tinha uma big band que lá ensaiava aos cial. Todavia, além das canções populares usualmente in- sábados, formada por brasileiros e americanos. É provável cluídas neste produto televisivo-fonográfico, o disco traz que esse prestígio se estendesse para além dos domínios também quatro composições de Victor. Pode-se deduzir de Berklee. Conforme informações constantes do programa de sua escuta que apesar dos problemas que possa ter da estreia brasileira de sua Suíte para saxofone soprano e tido em conciliar seus princípios de criação musical com cordas, esta obra teve sua primeira apresentação em 1973 os interesses comerciais da emissora, do que Radamés pela orquestra dos alunos do Conservatório de Boston, ins- Gnattali também se queixava (BARBOSA e DEVOS, 1985), tituição localizada nas cercanias da Berklee. no curto período em que lá trabalhou o saxofonista pôde por em prática suas habilidades de arranjador e compo- Desta forma, o grande estímulo que Victor Assis Brasil sitor. A Globo dispunha na época de uma orquestra no recebeu para fomentar a sua produção foi a abundância modelo conhecido como jazz-sinfônica, reunindo cordas, de músicos e grupos musicais que tinha à sua dispo- metais, madeiras (aí incluídos os saxofones) e seção rít- sição. O depoimento de Célia Vaz dá a dimensão das mica. O compositor utilizou o grupo para fazer o registro facilidades a que tinha acesso: das suas composições que integram o disco.

Eu acho importante essa facilidade de oportunidades da convi- vência com pessoas muito capazes. Isto incentiva muito o cara Tema em 5/4 tem uma forma binária ABA e um caráter a escrever. Se eu tivesse uma orquestra de cordas aqui dentro do regionalista evidenciado em sua exposição modal. Na se- meu armário eu ia escrever uma sinfonia de seis em seis meses. [...] gunda seção destaca-se um coral de trombones. Em O Provavelmente ele teve como exercitar isto muito lá.[...] Porque lá tinha as big bands à disposição, entendeu? Tinha super-músicos à Grito o compositor aproveita o tema de uma das seções disposição pra tocar o que você escrevesse. Então ele tinha gran- de uma outra composição, Dialogues.

53 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

Berceuse é apresentada pelo trio Radamés Gnattali, prova- pianista clássico, acabou por fazer várias incursões no velmente formado pelo próprio Radamés, ao piano, e inte- campo da música popular e do jazz. Em seu disco Self grantes da orquestra global. Tem a candura compatível com Portrait, de 1990, prestou um tributo ao irmão saxofonis- seu título e uma inspiração romântica. Vice-Versa, executa- ta, apresentado várias de obras inéditas, onde fica claro da por uma big band, com destaque para as flautas, sintetiza como podem ser tênues as linhas que separam os diversos a mistura estilística de Victor Brasil, onde jazz, música brasi- gêneros e estilos musicais. leira urbana e regional e música clássica convergem. 5 – Conclusão A música entrou na vida de Victor por muitas vias. A pri- A vida de Victor Assis Brasil foi marcada por suas escolhas. meira delas foi a herança familiar, através da influência O músico decidiu enfrentar um difícil caminho, renuncian- da avó maestrina e, sobretudo, do irmão João Carlos, do aos apelos do circuito musical comercial e abraçando a por quem nutria um profundo sentimento de admiração. causa de sobreviver no Brasil da música na qual acreditava. Houve também uma sensibilidade incomum, um grande Mesmo pagando um alto custo, manteve-se fiel aos seus senso intuitivo e um talento para desvendar seus próprios princípios. Poderia ter permanecido na Europa, ou mesmo caminhos. O ambiente musical de meados dos anos 1960, nos Estados Unidos, como fez o amigo Claudio Roditi. Lá o impacto da bossa-nova e do jazz serviu para nortear o talvez tivesse melhores condições para desenvolver o seu seu trabalho, definindo a corrente principal. trabalho. Contudo, preferiu ficar no Brasil e encarar sua cruzada. Tornou-se assim um músico emblemático. O período que passou em Boston forneceu as condições para assimilar e fundir as diversas fontes que acabaram por defi- Seu nome é sempre lembrado quando se refere à prá- nir o seu estilo. Pôde o compositor lá, através de um trabalho tica do jazz em terras brasileiras e sua música ajudou de experimentação, tentativa e erro, burilar suas habilidades a fornecer as bases da linguagem da moderna músi- como compositor e arranjador. Seu depoimento em matéria ca brasileira instrumental. Seus objetivos primários de da revista Veja, em 1974, confirma isto. “De 1970 a 1974 fato foram se estabelecer como músico de jazz, mas tive a oportunidade de ouvir e tocar tranquilamente. Eu or- sua música logo extrapolou esses limites. Partindo da ganizava grupos e orquestras e aprendia ouvindo meus erros. linguagem jazzística em que era fluente, tratou de as- Invadi então outras esferas” (in SOUZA, 1974, p 83). similar os elementos musicais que estiveram presentes na sua formação: a bossa-nova, os ritmos brasileiros, O programa do concerto da estreia brasileira de sua Suíte a música clássica que conhecera através do irmão. para saxofone soprano e cordas, traz um depoimento do Os quatro anos em que viveu em Boston tiveram uma compositor que dá a noção do caldeirão onde se fundiram importância crucial nesse processo. Através da abun- as diversas vertentes que formaram seu estilo musical. dância de recursos humanos, do ambiente musical e Victor define a obra como “uma síntese de suas experi- das condições físicas que lhe permitiram a criação de ências musicais, abrangendo Pergolesi, Villa-Lobos, Stra- diversos grupos e orquestras, o músico pode expandir vinsky e Ravel, amalgamados com a vivência jazzística seus horizontes. A maior parte de sua produção é dessa fundamental em sua formação”. época. Através da experimentação o compositor amal- gamou as diversas referências musicais e consolidou Embora o lado jazzístico tenha se tornado o mais conhe- seu estilo composicional. Infelizmente, após o seu re- cido de sua carreira, o que pode ser comprovado pelos gresso ao Brasil, teve poucas oportunidades de pôr em discos que gravou, é importante lembrar que o composi- prática a vivência adquirida em Berklee e de apresentar tor não queria que sua música ficasse confinada aos limi- suas composições. Passados todos esses anos, a maioria tes do jazz. Em 1977 o compositor declararia: delas permanece inédita. Espera-se que, através de es- forços como o desta pesquisa, esta parcela de seu lega- “Esse rótulo de jazz não tem nada mais a ver comigo. Estudo mú- do se torne mais conhecida. Uma música que não tem sica há algum tempo, escrevi um concerto para piano e orquestra, uma suíte para quarteto de cordas e gostaria que o público sou- fronteiras, que não se envergonha em usar a linguagem besse dessa minha faceta.” (in MILARCH, 1977, p.1). jazzística como um meio natural de expressão, mas que também incorpora elementos brasileiros e mesmo da Victor deixou um legado de cerca de 400 composições música clássica. A mistura de John Coltrane, Luiz Gon- inéditas. A morte prematura, aos 35 anos de idade, o im- zaga e Debussy, afinal, “dá samba”. pediu de conseguir divulgar a pluralidade de seu trabalho. Esta pesquisa se concentra na linha da teoria e prática da O pianista João Carlos Assis Brasil contou recentemen- interpretação, tendo, portanto entre seus objetivos o le- te que ele e seu irmão chegaram a pensar em realizar vantamento de repertório e a discussão de soluções inter- um trabalho conjunto, tocando música clássica, mas que pretativas. Na impossibilidade de se ter acesso à Suíte para não houve tempo para tal (BRASIL, 2008). É interessante saxofone soprano e cordas, seja na forma de sua partitura, notar como os irmãos gêmeos acabaram chegando a um seja na forma de gravação que possa ser objeto de transcri- ponto muito próximo. Victor, tão estigmatizado pelo ró- ção, o foco será direcionado a outras obras que reúnam as tulo de jazzista, assimilou em sua música várias outras mesmas características de fusão de elementos de jazz, mú- vertentes. João Carlos, por sua vez, com sua carreira de sica popular brasileira e música clássica, preferencialmen-

54 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

te as que façam uso do saxofone em sua instrumentação. mais adequado para a análise constitui-se assim um dos Obviamente não seria possível analisar detalhadamente próximos passos da pesquisa. cada uma das 37 obras listadas na tabela 1. Portanto, será feito um recorte sobre três ou quatro composições, forne- Espera-se fornecer subsídios para uma compreensão cendo assim um panorama de sua produção. Desta forma mais ampla deste repertório, permitindo ao intérprete configuram-se objetos de estudo em potencial as obras fazer suas escolhas baseado no equilíbrio dos elementos para big band, Saxophone Quartet #1, o Prelude for alto de música clássica e popular. Acredita-se ainda que esta saxophone and Piano, Reflexos, Osmosis, Suite for a Lost discussão possa contribuir para a diminuição da barreira Lady, por representarem as várias formações instrumen- que costuma separar saxofonistas de formação clássica tais e tendências composicionais deste repertório. Sobre as dos de formação jazzística, mostrando que existem muito obras selecionadas serão aplicadas ferramentas analíticas mais pontos em comum que divergência entre as duas que permitam identificar os elementos característicos de linhas de trabalho, e que a Música, em suma, está acima cada estilo presente em sua criação. A definição do modelo desta questão de fronteiras de estilos e gêneros.

Referências ALVES, Izilda. A despedida de Victor Assis Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 jun. 1977. Folha Ilustrada, p.21. BLAKE, Ran. Third Stream and the Importance of the Ear. A position paper in Narrative Form. In: College Music Sympo- sium, Volume 21/2, Fall, 1981. Disponível em . Acesso em: 28 de mar. de 2009. BARBOSA, Valdinha & DEVOS, Anne Marie. Radamés Gnattali, o eterno experimentador. Rio de Janeiro: FUNARTE/ Insti- tuto Nacional de Música, 1985. BARRETO, Leonardo. Pro Zeca de Victor Assis Brasil: aspectos do hibridismo na música instrumental brasileira. 2007. Dis- sertação (Mestrado em música). UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais. BERKLEE COLLEGE OF MUSIC HOME PAGE. Disponível em . Acesso em 20 fev. 2009. BEZERRA, V. A. – Victor Assis Brasil (1945-1981). In E- jazz, o site do jazz e da música instrumental brasileira. Disponível em < http://www.e jazz.com.br/detalhes-artistas.asp?cd=164>. Acesso em: 23 fev. 2009. BORELLI, Marcos. Victor Assis Brasil. Disponível em . Acesso em: 23 fev. 2009. BRASIL, Victor Assis. Partituras, vol. 1. Seleção Paulo Assis Brasil. Rio de Janeiro: Compasso Produções Artísticas, 2001. CASTRO, Rui. Chega de Saudade: A história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CLAM – Centro Livre de Aprendizagem musical. Nossa História. Disponível em . Acesso em 17 fev. 2009. DANIELS, Eddie. Biography. In: Eddie Daniels Home Page. Disponível em . Acesso em 15 fev. 2009. DAUELSBERG, Claudio Peter. A importância da improvisação na formação musical do intérprete. 2001. Dissertação (Mes- trado em Música) - Universidade Federal do Rio de Janeiro. ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira. Disponível em . Acesso em 10 out. 2006. DIEKEN Sandra - Curriculum vitae. Disponível em . Acesso em 14/02/2009. DYER, Richards. Composer Builds a Bridg between Classical And jazz. The Boston Globe. Boston, 19 out. 2003. Seção Arts/ Entertainment. P. N6. E-PIPOCA. Sala Vip.A Rainha da Noite. Disponível em . Dis- ponível em 23 fev. 2009. FIGUEIREDO, Afonso C. S. Improvisação no Saxofone: A Prática da Improvisação Melódica na Música Instrumental do Rio de Janeiro a partir de meados do século XX. 2005. Tese (Doutorado em Música) - Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. GIOIA, Ted. The History of Jazz. New York: Oxford University Press, 1997.

55 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

G. SCHIRMER INC. Associated music publishers, inc. – Gunther Schuller. Informação disponível em . Acesso em 13 fev. 2009. GUEST, Ian. Curriculum Vitae. Disponível em . Acesso em 17 fev. 2009. MAURITY, Fernando Trocado. Improvisação em Victor Assis Brasil. 2006. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Federal do Rio de Janeiro. MILLARCH, Aramis. A Batalha de Assis. Estado do Paraná. Curitiba, 27 de abril de 1975. Jornal da Música Popular, p.44. ______. Jazz não jaz. Vive, hoje, no Guairá. Estado do Paraná. Curitiba, 03 de junho de 1977. Almanaque. Tablóide, p.1. NEW ENGLAND CONSERVATORY. Gunther Schuller. Disponível em . Acesso em 24 out. 2009. ORQUESTRA SINFÔNICA NACIONAL. Notas de programa do concerto inaugural da temporada 1976. 2 mai. 1976. Rio de Janeiro. Sala Cecília Meireles. RAFAELLI, José Domingos. Victor Assis Brasil. Disponível em . Acesso em 23 fev. 2009. SARAIVA, Joana Martins. A invenção do sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de 1950 e início dos anos 1960. 2007. Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. SCHULLER, Gunther. Early Jazz: Its Roots and Musical Development (History of Jazz). New York: Oxford University Press,USA,1986. ______. Musings: the Musical Worlds of Gunther Schuller. New York: Oxford University Press, USA, 1989. ______. The Swing Era: The Development of Jazz, 1930-1945 (The History of Jazz), New York: Oxford University Press, USA, 1989. ______. Encounters – Program notes. In G. SCHIRMER INC. Associated music publishers, inc. Disponível em . Acesso em 13 fev. 2009. SEGELL, Michael. The Devil’s Horn: The Story of the Saxophone, from Noisy Novelty to King of Cool. New York: Picador, 2006. SOUZA, Tárik de. Um sax a mais. Revista Veja, São Paulo, n˚324, p.83, 1974. THE INTERNET MOVIE DATABASE. The Cast and Crew for MARÍLIA e MARINA. Disponível em . Acesso em 23 fev. 2009.

Entrevistas e e-mails recebidos AYRES, Nelson. Entrevista realizada em São Paulo, 19/01/2009. Arquivo digital (24m29s). ASSUMPÇÃO, Zeca. Entrevista realizada no Rio de Janeiro, 14/10/2008. Arquivo digital (27m13s). BRASIL, João Carlos Assis. Entrevista realizada no Rio de Janeiro, 27/10/2008. Arquivo digital (23m48s). GOMES, Alfredo. Entrevista realizada no Rio de Janeiro, 07/10/2008. Arquivo digital (45m39s). RODITI, Claudio. Mensagens recebidas por [email protected] em 08/10/2008 e 10/01/2009. SION, Roberto. Entrevista realizada em São Paulo, 19/01/2009. Arquivo digital (1h13m1s). VAZ, Célia. Entrevista realizada no Rio de Janeiro, 22/10/2009. Arquivo digital (32m17s). WERNER, Kenny. Mensagem recebida por [email protected] em 05/01/2009.

Discos BRASIL, Victor Assis. Desenhos. Rio de Janeiro: Forma. 1966. 1 LP (45m42s). FM 17. ______. Trajeto. Rio de Janeiro: Equipe. 1968. 1 LP (38m45s). ______. Victor Assis Brasil. Rio de Janeiro: Magic Music (CID). 1974. 1 LP (43m.49s). MM 3010. ______.Victor Assis Brasil Quinteto. Rio de Janeiro: EMI-Odeon. 1979. 1 LP (43m18s). 064 422844. ______. Pedrinho. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1980. 1 LP (37m08s). 064 422856. ______. Jobim. Rio de Janeiro: Atração Fonográfica, 2003. 1 CD (37m13s).ATR 32006. ______. The Legacy. Rio de Janeiro: Atração Fonográfica, 1999. 1 CD (43m57s). ATR 31058. EÇA, Luiz; BRASIL, Victor Assis. Ao Vivo no Museu de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Imagem, 1997. 1 CD (75m02s). O GRITO. Rio de Janeiro: Som Livre, 2001. 1 CD (31m10s). 3021-2.

56 PINTO, M. T. P. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.45-57.

Notas 1 O conceito de música clássica é aqui empregado em seu sentido amplo, abrangendo a música de concerto. Para uma discussão sobre essa termino- logia consultar PINTO, Marco Túlio de Paula. O Saxofone na música de Radamés Gnattali. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, UNIRIO – Univer- sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005. 2 “...the modern age is marked by the tendency for distinct styles to coalesce and cross-fertilize. In music, purity is a myth, albeit a resilient one. The historian who hopes to come to grips with the powerful currents of creativity in modern times must learn to deal with these composite art forms on their own terms or not at all. There is no high road on the postmodern map, just a myriad of intersecting and diverging paths.” 3 Encounters is an improbable and deliriously appealing masterpiece scored for 150 players, including expanded orchestra, keyboards, jazz ensemble, and jazz soloists. The piece starts with a barbaric yawp, then a sighing motive; both figure throughout. The classical and jazz groups alternate but soon begin to interact on shared musical material. Loose-limbed jazz often tends to steal the show from strait-laced classical groups, but Schuller’s ear and imagination for orchestral color doesn’t let that happen; the third movement, with its rumblings of unusual low bass instruments, is magical Bartokian night music. The climax lifts you out of your seat. 4 Recentemente descobriu-se uma versão desta obra para flauta e piano, em posse do compositor Nelson Ayres, em São Paulo. 5 Há controvérsias sobre quando Victor ganhou o instrumento. Os textos de Borelli e Rafaelli disponíveis em afirmam que ele teria recebido o saxofone quando tinha 17 anos. Já o depoimento de João Carlos Assis aponta para o fato ter acontecido quando Victor tinha 13 ou 14 anos. 6 Informação disponível em http://assisbrasil.org/vitorbio.html. 7 O compositor deu títulos em inglês para diversas composições. Waltz for Phil, Waltz for Trane e Waltzing são exemplos de composições baseadas no ritmo da dança em compasso ¾. 8 No jargão da música popular, figuração rítmica ostensiva que caracteriza um determinado estilo musical. 9 Alfredo Gomes afirma em entrevista que também foram gravadas faixas com a participação do sexteto, mas que, por decisão da gravadora, estas não foram incluídas LP. 10 Denominação adotada a partir de 1970. Denominava-se Schillinger House desde sua fundação, em 1945, até 1960, quando passou a se denominar Berklee School of Music. 11 Dados disponíveis no sítio da instituição: 12 I think he was pretty finished before he got there. I don’t know how many classes he took or went to, but he mostly had influence on other students and performed quite a lot in Boston. (…) Incredibly strong with his own style and sense of direction. Incredibly generous in showing me and others great things about music and turning us on to much music we didn’t hear. He was an inspiration to all who knew him 13 Conforme declaração no encarte do relançamento em CD de Victor Assis Brasil – Jobim. 14 Escala maior com a quarta aumentada e a sétima abaixada. No jazz essa escala é também conhecida como lídio dominante, lídio mixolídio ou lídio bemol 7. 15 Victor também usa este instrumento em vários momentos de Esperanto. Porém, ao contrário de Jobim, este disco esperou alguns anos para ser lançado. 16 Esta informação errônea foi corrigida no relançamento do disco, em 1999. 17 Sua biografia disponível em< http://victorassisbrasil.com.br/frame01.htm> afirma ter ele composto a trilha do filmeMarília e Marina. Entretanto, o sítio The Internet Movie Database (disponível em http://www.imdb.com) credita a trilha deste filme, dirigido por Luiz Fernando Goulart em 1976, a Francis Hime e Vinícius de Moraes. Esta informação é confirmada pelo sítio e-pipoca ( Entretanto, o mesmo sítio dá o crédito a Victor da trilha do filmeA Rainha do Rádio, do mesmo diretor, em 1979).

Marco Túlio de Paula Pinto é Professor de Saxofone da UNIRIO. Professor de saxofone no PIM (Programa de Integração pela Música) do município de Vassouras (RJ) entre 2007 e 2008. Bacharel em Saxofone pela UFRJ e Mestre em práticas inter- pretativas pela UNIRIO, instituição na qual cursa atualmente o Doutorado em Teoria e Prática da Interpretação. Integrou a UFRJazz Ensemble entre 1998 e 2007. Apresentou-se como solista junto a grupos como OSPA, ORSEM, Orquestra Sinfônica de Barra Mansa, Banda Sinfônica da CSN e Banda Sinfônica da FEBAM. Ao lado do pianista Alexandre Freitas, desenvolve trabalho de divulgação da música brasileira para saxofone e piano. No campo popular trabalhou com diversos artistas, como , Jorge Vercilo, Flavio Venturini, Chico César, Gilson Peranzzetta e Nivaldo Ornelas, entre outros.

57 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson

Carlos Palombini (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: Um exame do fonograma Gargalhada (pega na chaleira), cançoneta por Eduardo das Neves, expõe a origem da expressão “pegar na chaleira” e revela incongruências nos critérios de catalogação online do Instituto Moreira Salles. Provavelmente datada de 1906, a gravação aparece como um “lundu” em catálogos comerciais de 1915–1926, e as mes- mas ideias musicais foram reaproveitadas em outros registros sonoros da Casa Edison comercializados entre 1913 e 1919. A música e o gargalhar que Neves reaproveita foram criados por George Washington Johnson, o primeiro astro negro da gravação mecânica. Mas enquanto o ex-escravo norte-americano se auto-ridiculariza de acordo com estereótipos bran- cos, o autodenominado “crioulo” encena uma sátira ao comportamento masculino das classes dominantes do Rio. Neste processo, a coon song transforma-se na antítese do gênero. Palavras-chave. Cançoneta; lundu; coon song; fonografia; Casa Edison

Phonogram 108.077 (Brazilian Odeon): George W. Johnson’s lundum

Abstract: Through an examination of the phonogram Gargalhada (pega na chaleira) [laughter (picking up the ket- tle)], chansonnette sung by Eduardo das Neves, the origin of the expression “pegar na chaleira” (bootlicking) emerges, together with incongruities in the Instituto Moreira Salles online catalogue. Probably recorded in 1906, six years before the establishment of the Odeon plant in Rio, the piece was labelled as a lundum, a paradigmatically Afro-Brazilian genre, in the 1915–1926 catalogues. The music and laughter that Neves appropriates to himself were created by George W. Johnson, the first black star of early phonography, and reused in other Casa Edison (Brazilian Odeon) record- ings on sale from 1913 to 1919. But while the former North American slave ridicules himself in accordance with white stereotypes, the self-designated crioulo stages a satire on the behaviour of upper-class Rio de Janeiro males. In this process, the coon song turns into its antithesis. Keywords: chansonnette; lundum; coon song; phonography; Brazilian Odeon

1 - Gargalhada Nesse século de progresso, nessa terra interesseira, “Pega na chaleira, cançoneta por Eduardo das Neves Tem feito grande sucesso o tal pega na chaleira. Nesta terra de progresso, nesta terra interesseira, para a Casa Edison, Rio de Janeiro”: inicia-se assim um Tem feito grande sucesso o tal pega na chaleira. fonograma cuja audição me intriga desde o início dos 2 anos sessenta, quando, aos sete anos de idade, recebi a Pega o padre ao capitão, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! E este ao seu vigário, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! 1 chapa de goma-laca em cujo selo lê-se, em caracteres E o vigário pega ao ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! prata sobre fundo alaranjado: “International Talking Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Tudo pega na chaleira! Machine Co m.b.H., Odeon Record, Gargalhada, Edu- Pobre moço que só fala na missa e no breviário, ardo das Neves, No. 108.077, Impresso especialmente Quer subir e está pegando na chaleira do vigário. para Casa Edison”. Segue-se, na voz de Neves, a letra, Pobre moço que só fala na missa e no breviário, já enigmática no início dos anos sessenta. Quer subir e está pegando na chaleira do vigário.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 13/12/2010 - Aprovado em: 22/06/2010 58 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

Tudo pega na chaleira, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Não encontrou pela frente jamais quem lhe tolhesse o passo, o Pega o bispo ao seu vigário, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, dominasse ou vencesse. Por isso, onde ia, tinha, fatalmente, que ha, ha, ha, ha! mandar. Sempre. Mandou na campanha, mandou na cidade, aca- Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Tudo pega! Tudo pega! Ha, ha, ha, ha, bou mandando no paiz. ha, ha, ha, ha, ha! Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Tudo pega na chaleira, meu deus! Tudo! Quando começa o seculo, quem manda na politica é elle. E manda como ninguem. É o sr. capitão-mór dos tempos do ouro, em Mi- Bispo que anda a correr mundo, que a crisma é seu ideal, nas. É o Tutú Marambaia dos altos telhados da politica. Não ha Pega a chaleira no fundo, bem, do seu cardeal. quem ouse contrariar-lhe as ideas, os desejos e até as caprichosas Bispo que anda a correr mundo, que a crisma é seu ideal, fantasias. A imprensa inteira vive a lamber-lhe a sola dos sapatos. Pega a chaleira no fundo, bem, do cardeal. (COSTA 1938, p.1065).

Tudo pega na chaleira, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! O bispo ao capitão, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, De acordo com SEVERIANO (2008, p.88), “salvaram-se ha, ha! na primeira década dos novecentos umas poucas revistas Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Tudo pega na chaleira, ha, ha, ha, ha, ha, como [...] Pega na chaleira (1909), de Raul Pederneiras e ha, ha, ha! Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Ataliba Reis, que explorava a popularidade da polca ‘No bico da chaleira’, de Juca Storoni (João José da Costa Jú- Vigário que a lei sagrada soletra contando a tese, nior)”. 4 Ainda segundo Severiano, esta revista teria difun- Está pegando na chaleira do bispo da diocese. dido a expressão “chaleirar”. Vigário que a lei sagrada sustenta em boa tese, Está pegando na chaleira do bispo da diocese. No catálogo online do Instituo Moreira Salles (IMS), a Gar- Tudo pega na chaleira, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! galhada aparece em quatro fichas do acervo Humberto O homem mais potente, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Franceschi e duas do acervo José Ramos Tinhorão, corres- Pega também o soldado, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! 5 Na chaleira do tenente, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! pondendo, possivelmente, a chapas distintas (vide Ex.1). Ha, ha, ha, ha, ha! Ha, ha, ha, ha! Tudo pega na chaleira! Ha, ha, ha, Todas as fichas dão Gargalhada“ (pega na chaleira)” como ha, ha, ha, ha! “título da música”. Este título é o mesmo que consta na Discografia brasileira 79 RPM (SANTOS et al. 1982, p.84) De acordo com o Dicionário da língua portuguesa con- e corresponde à amalgamação do título no selo da chapa temporânea da Academia das Ciências de Lisboa (2001), a com o título anunciado no início do fonograma. 6 Todas as expressão “pegar na chaleira” — um brasileirismo — signi- fichas creditam “Neves, Eduardo das” como “intérpretes(s)”. fica “bajular, adular, lisonjear”. De acordo com o Dicioná- Todas registram a “Odeon” como “gravadora”. Todas indi- rio brasileiro da língua portuguesa o substantivo mascu- cam, como “data de gravação” e “data de lançamento”, lino e feminino “chaleira” quer dizer “bajulador” na gíria: o período 1907–1912, correspondente à estimativa da “O significado provém de os bajuladores do chefe político Discografia brasileira para a totalidade da série 108.000 gaúcho Pinheiro Machado, que conservava no Rio de Ja- (SANTOS et al. 1982, p.115). Todavia, no que diz respeito neiro o hábito de tomar chimarrão, estarem sempre aten- às entradas “gênero musical”, “número do álbum”, “lado” tos para lhe servirem a chaleira de água fervente para o e “rotações”, há discrepâncias, não só entre as fichas dos preparo da infusão de mate” (SILVA et al. 1975). Ainda acervos Franceschi e Tinhorão como também, internamen- segundo o Dicionário brasileiro, “pegar no bico da chalei- te, entre as quatro fichas do acervo Franceschi. (As duas ra” significa “adular, bajular, lisonjear os poderosos”. No fichas do acervo Tinhorão são idênticas.) terceiro volume de O Rio de Janeiro do meu tempo (1938), Luiz Edmundo descreve assim o Senador José Gomes Pi- nheiro Machado (1851–1915): 3 1.1 - Gênero musical Embora a palavra “lundu” não apareça no selo da chapa e Pinheiro Machado, quando aqui chegou, vindo do sul, inspirava a Gargalhada seja verbalmente apresentada no fonogra- pavor. Era um caudilho tisnado pelo sol, forte, cheio de atrevimen- ma como uma cançoneta, é como um lundu que ela figu- to e de bravura. Seus feitos, nas campanhas do sul, eram quasi ra tanto nos catálogos disponíveis da Casa Edison (FRAN- lendarios. Na coxilha, á frente de guerrilheiros destemidos, foi um 7 glorioso centauro. Na refrega, de lança em punho, bombacha pan- CESCHI 2002) como no primeiro volume da Discografia da, e ponche ao vento, era o que mais derrubava, abatia e matava. brasileira 78 RPM (SANTOS et al. 1982, p.84).

JRT 1 e 2 HMF 1 HMF 2 HMF 3 HMF 4 gênero musical lundu lundu humor humor humor número do álbum 108077 108077 108077 1080772 1080773 lado indefinido Lado A Lado B único único rotações 76 RPM 78 RPM 78 RPM 78 RPM 78 RPM

Ex.1: Discrepâncias entre as fichas do fonograma 108.077 no catálogoonline do IMS.

59 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

1.2 - Número do álbum 1.5 - A Catalogação online do IMS Nos catálogos da Casa Edison (FRANCESCHI 2002) e na Conclui-se que as fichas do catálogo do IMS devem ser li- Discografia brasileira (SANTOS et al 1982, p.84), bem das com cautela, sobretudo no que diz respeito ao acervo como no primeiro volume de Panorama da música popu- Franceschi. 10 Acrescente-se que os critérios de transfe- lar brasileira e em Panorama da música popular brasilei- rência e processamento digital das gravações estão mui- ra na belle époque, ambos de Ary VASCONCELOS (1964, to distantes dos praticados por profissionais como Mark p.191; 1977, p.284), a Gargalhada aparece como o fono- Obert-Thorn, Ward Marston ou Andrew Hallifax. 11 grama 108.077. Não há, na era da gravação mecânica no Brasil, registro de uma série Odeon 1.000.000. Os termos 2 - Datação “número do álbum”, utilizado pelo IMS, e “número do De acordo com FRANCESCHI (2002, p.207), a fórmula disco”, utilizado na Discografia brasileira 78 RPM, são usada para anunciar a música no fonograma 108.077, inadequados. “Álbum” é uma designação curiosa para o concluindo-se com “para a Casa Edison, Rio de Janeiro”, que se aproxima mais do que se chamou um dia no Bra- sem o endereço, vigorou de 1904 a 1912. A tabela abai- sil “compacto simples”, e que hoje se conhece como sin- xo (Ex.2) mostra as datações estimativas da Discografia gle. Por outro lado, “número do disco” é uma expressão brasileira para as séries Odeon imediatamente anterio- inadequada para designar um fonograma num contexto res, imediatamente posteriores ou parcialmente conco- em que um disco é composto de dois fonogramas, um de mitantes à 108.000. cada lado da chapa. 8 O “Livro de Registro de Gravações da Casa Edison” (repro- 1.3 - Lado duzido em FRANCESCHI 2002) fornece “série”, 14 “Nos”, 15 Os fatos de, nos catálogos disponíveis da Casa Edison, a “gênero”, “autores” e “artistas”, além da data e local das Gargalhada aparecer sempre antes — ou, mais exatamen- tomadas de todos os fonogramas das séries 120.000 e te, acima — do Balancê, fonograma 108.085, ao qual está 137.000, bem como dos fonogramas 10.327–10.413 da invariavelmente acoplada ali, 9 e o número de referência série 10.000, com as datas estendendo-se de 5 de se- da chapa assim formada ser sempre o 108.077, indicam tembro de 1911 a 15 de abril de 1915, no Rio de Janeiro, que a Gargalhada ocupe, efetivamente, a face comercial- em São Paulo e em Porto Alegre. 16 Não há, no Livro, re- mente mais importante. Todavia, nem o exemplar de que gistro de nenhuma tomada para a série 108.000. Assim, disponho nem os catálogos da Casa Edison divulgados por se a Discografia brasileira está correta ao supor que a Franceschi fazem distinção entre um “lado A” (ou “1”) e série 120.000 se inicie com o final da 108.000 (SANTOS um “lado B” (ou “2”). Por sua vez, a designação “lado úni- et al. 1982, p.115 e 169), as tomadas para a série 108.000 co” parece dificilmente aplicável, já que todas as chapas devem ter-se encerrado no final de agosto ou início de da Casa Edison eram duplas, Fred Figner sendo concessio- setembro de 1911. 17 nário, desde 12 de dezembro de 1901, da patente do disco de duas faces no Brasil (vide FRANCESCHI 1984, p.58–71; No interior da série 108.000, os fonogramas 108.070– 2002, p.85–94 e 109–113). 108.085 constituem a primeira sucessão contínua de interpretações de Eduardo das Neves (Ex.3), com quinze 1.4 - Rotações itens identificados na Discografia brasileira (SANTOS et Na cópia de que disponho, o selo da canção Balancê es- al. 1984, p.84–85). A série 108.000 estendendo-se de ja- pecifica nitidamente “76 voltas por minuto”, e seria mui- neiro de 1907 a agosto de 1911 e constando de 844 fono- to improvável que uma chapa fosse prensada para girar a gramas, obtém-se uma média de quinze fonogramas por 76 RPM de um lado e a 78 de outro. mês. Esta aproximação situaria os fonogramas de número

série Odeon data estimada diâmetro 40.000–40.777 1904–1907 27 cm 108.000–108.843 1907–1912 27 cm 10.000–10.412 12 1907–1913 19 cm 70.000–70.084 1908–1912 35 cm 13 70.500–70.515 1908–1912 30 cm 137.000–137.107 1912–1914 25 cm 120.000–120.999 1912–1915 27 cm

Ex.2: Datações estimativas de SANTOS et al. (1982) para séries imediatamente anteriores, imediatamente posteriores ou parcialmente concomitantes à Odeon 108.000.

60 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

fonograma título 18 gênero matriz Com 108.070 O Soldado que perdeu a parada lundu XR-603 violão de E. das N. 108.071 E Eu nada lundu violão de E. das N. 108.072 Bolim-bolacho lundu violão de E. das N. 108.073 Marocas lundu 19 violão de E. das N. 108.074 Iaiazinha lundu violão de E. das N. 108.075 Pai João lundu 20 XR-608 violão de E. das N. 108.076 Isto é bom lundu XR-607 violão de E. das N. 108.077 Gargalhada (pega na chaleira) lundu XR-610 Violão 108.078 O Amolador lundu XR-611 violão de E. das N. 108.079 O Aquidaban canção XR-612 Violão 108.080 República de estudantes 21 cômico XR-613 viol., M. Pinheiro, Nozinho 108.081 Rolo em um bonde 22 cômico XR-614 viol., M. Pinheiro, outros 108.082 Seu Gouveia canção XR-615 violão, outros 108.083 108.084 Estranguladores do Rio canção violão de E. das N. 108.085 Balancê canção XR-618 viol. de E. das N. [e coro] 23

Ex.3: Primeira sucessão ininterrupta de fonogramas de Eduardo das Neves na série 108.000.

108.070 a 108.074 nos últimos dez dias de maio de 1907 e italiano Jacob Fuoco, de cuja loja, no número 11 da Rua os de número 108.075 a 108.085 nos vinte primeiros dias da Carioca, eram funcionários, ocorreu na noite de 14 de junho do mesmo ano. para 15 de outubro de 1906. 25

Em Panorama da música popular brasileira, VASCONCE- Vagalume (João Guimarães) afirma em 1933 que “o povo LOS (1964, p.191) data de “entre 1904 e 1912”: O Soldado se acostumou a ouvir Eduardo das Neves cantar ao violão que perdeu a parada, Bolim-bolacho, Isto é bom, Garga- os acontecimentos de maior divulgação, ocorridos no ce- lhada, Rolo em um bonde e Balancê. Na página 284 de nário político de nossa Pátria” (GUIMARÃES 1978, p.70). Panorama da música brasileira na belle époque, o mes- Como diz o cantor acerca de suas obras na “Declaração” mo VASCONCELOS (1977, p.284) data de “entre 1906 e que abre o Trovador da malandragem, “o muito mereci- 1912”: O Soldado que perdeu a parada, Bolim-bolacho, mento que têm (e é por isso que tanto sucesso causam) Pai João, Isto é bom, Gargalhada, O Aquidabã, Rolo em é que eu as faço segundo a oportunidade, à proporção um bonde, Estranguladores do Rio e Balancê. Na mes- que os fatos vão ocorrendo, enquanto a cousa é nova e ma obra, 48 páginas adiante, ele data de “entre 1906 e está no domínio público. É o que se chama ‘bater o malho 1909” o Rolo em um bonde (VASCONCELOS 1977, p.332). enquanto o ferro está quente’” (NEVES 1905, p.4). Ora, Finalmente, o Dicionário Cravo Albin da música popular Eduardo das Neves glosava o “assunto do dia” (VASCON- brasileira (ALBIN 2006, p.1032) data de 1907 O Soldado CELOS 1964, p.45), 26 e, em junho de 1907, entre o assun- que perdeu a parada, E Eu nada, Bolim-bolacho, Maro- to do dia e o dia do assunto, se teriam passado mais de cas, Iaiazinha, Pai João, O Amolador, O Aquidaban [sic], um ano e quatro meses, no caso do naufrágio, ou cerca de Rolo em um bonde, Seu Gouveia, Estranguladores do Rio e oito meses, no caso do latrocínio. 27 Balancê. Ressaltando o caráter estimativo das datações, FRANCESCHI (2008) não hesita em dizer que a Gargalha- Fred Figner deu início à comercialização de cilindros em da seja de 1906. Há boas razões para isto. 1897 (FRANCESCHI 1984, p.22; 2002, p.31), 28 isto é, três anos antes da data de registro da Casa Edison na Junta Como Eduardo das Neves canta em O Aquidabã, “Foi essa Comercial (FRANCESCHI 1984, p.31–32; 2002, p.50–51). noite fatal de 21 de janeiro [de 1906] que trouxe pesado O Catalogo de 1902 da Casa Edison mostra que A garga- luto ao pavilhão brasileiro: o valente Aquidabã, colosso lhada (com artigo) já estava à venda em 1902 como o ci- de mil guerreiros, desfez-se no mar sagrado com seus lindro A-492, na voz de Eduardo das Neves, sem menção bravos marinheiros”. 24 Já o caso narrado em Estrangula- de gênero. Todavia, se, nos Estados Unidos, “das primeiras dores do Rio, o assassinato, por Eugênio Rocca e Justino gravações feitas em folha de estanho em 1877 às últimas Carlo (o Carletto), de Carlo Fuoco, de dezessete anos de produzidas em celulóide em 1929, os cilindros atraves- idade, e Paulino Fuoco, de quinze, sobrinhos do joalheiro saram meio século de desenvolvimentos tecnológicos da

61 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

gravação de som” (SEUBERT s.d.), no Brasil, nem os ca- Gargalhada deve, portanto, ter sido comercializada por tálogos gerais de 1915, 1918, 1919, 1920, 1924 e 1926, cerca de um quarto de século, ininterruptamente. nem os suplementos de 1913 e 1914 — isto é, a totalidade dos catálogos divulgados por FRANCESCHI (2002) — fa- Mas isto não é tudo: ela foi reaproveitada também, gar- zem qualquer alusão a fonógrafos ou cilindros. FRAN- galhar e música, fragmentariamente (e, ao que tudo in- CESCHI (1984, p.32) identifica no Diário Oficial de 11 de dica, com menos sucesso), sob outros títulos (vide Ex.4). setembro de 1907, o registro, por Fred Figner, da mar- O Supplemento A do catálogo de 1913 (p.5) apresenta o ca de cilindros Phrynis e conclui que “discos e cilindros fonograma 40.493, “Febre amarela”, uma cançoneta, 31 na conviveram harmoniosamente durante as duas primeiras voz de Geraldo Magalhães, com música idêntica à do fo- décadas deste século” (FRANCESCHI 1984, p.32). Em A nograma 108.077 e gargalhar semelhante, mas letra dife- Casa Edison e seu tempo, ele é um pouco mais preciso: rente. O mesmo Suplemento A” de 1913 (p.8) e o Catalogo “o cilindro permaneceu presente, com produção signifi- geral de 1918 (p.60) apresentam o fonograma 40.631, A cativa, por toda a primeira década do século XX e boa Risada, peça “cômica” (no suplemento de 1913) ou “can- parte da segunda” (FRANCESCHI 2002, p.43). Já a chapa çoneta” (no catálogo de 1918), na voz de Edmundo André, 108.077 aparece em catálogo, sempre como um lundu: com gargalhar análogo ao do fonograma 108.077, mas em 1915, sob a rubrica “modinhas, canções, cançonetas, letra e música diferentes. O catálogo Discos Odeon 1915 monólogos e lundus” (p.59); em 1918, sob a rubrica “mo- Casa Murano (p.56) e os Catalogos gerais de 1918 (p.23) dinhas, canções e lundus” (p.32); em 1919, sob a rubrica e 1919 (p.23) apresentam o fonograma 40.169, A Vacina “modinhas, canções e lundus” (p.31); em 1920, sob a ru- obrigatória, uma cançoneta, na voz de Mário Pinheiro, brica “modinhas, canções e lundus” (p.26); em 1924, sob com música idêntica à do fonograma 108.077, mas sem a rubrica “série 108.000” (p.31); e em 1926, sob a rubrica o gargalhar, e com letra diferente. O Suplemento A do “por Eduardo das Neves” (p.6). catálogo de 1913 (p.15) e o Catalogo geral de 1918 (p.65) apresentam o fonograma 108.760, As Eleições de Piancó, Em meu exemplar, o selo do Balancê é o de miolo azul e uma “gargalhada” (aqui promovida ao estatuto de gênero borda roxa, com os caracteres em dourado e a bandei- musical) 32 na voz de Eduardo das Neves, com melodia ra esvoaçante do Brasil no hemisfério superior. Se Fran- e letra diferentes das do fonograma 108.077, mas com ceschi tem razão em dizer que este selo foi aplicado em gargalhar análogo. “reprensagens comemorativas da inauguração da fábrica Odeon do Rio de Janeiro” em dezembro de 1912 29 e que Provavelmente baseada no próprio autor (NEVES 1926, “somente gravações anteriores a 1912 [...] foram repren- p.4), a literatura (VASCONCELOS 1964. p.5; 1977, p.282; sadas e receberam etiqueta especial [...] num curto pe- SILVA e OLIVEIRA 1979, p.15; ABREU 2003, p.76; ALBIN ríodo de 1913” 30 (FRANCESCHI 2002, p.204), é razoável 2006, p.1032; FERLIM 2006, p.75) tende a dar a Garga- admitir que a Gargalhada tenha estado à venda no ano lhada hispano-americana como uma modinha ou can- de 1913, não aparecendo nos catálogos disponíveis deste çoneta de Eduardo das Neves. Ferlim (2006, p.75) chega ano e do seguinte, justamente os mais próximos à data a perguntar-se se ela corresponderia ao cilindro A-492. provável de gravação, porque, para os anos de 1913 e Como, de acordo com Franceschi, nenhum dos cilindros 1914, não dispomos dos catálogos gerais, mas apenas de brasileiros é audível hoje, por questões técnicas, 33 pa- suplementos. O sucesso posterior da chapa sugere que o rece impossível responder a esta pergunta. FRANCESCHI cilindro A Gargalhada, independentemente de seu con- (2008) me fez ouvir a Gargalhada hispano-americana ao teúdo, possa ter estado à venda por quatro anos desde telefone. Trata-se, exatamente, da mesma música e do seu anúncio no Catalogo de 1902. Não é improvável que, mesmo gargalhar do fonograma 108.077, com letra dis- a partir da data de gravação do fonograma 108.077, ci- tinta. De acordo com FRANCESCHI (2008), o disco Zon- lindro e chapa tenham figurado nos catálogos perdidos, O-Phone no qual Gargalhada hispano-americana foi gra- até que a segunda desbancasse a primeira, um fato con- vada está depositado no Instituto Moreira Salles. Todavia, sumado no catálogo Discos Odeon 1915 Casa Murano. A nem o Catalogo de 1902, nem a Discografia brasileira 78

1913 1914 1915 1918 1919 1920 1924 1926 Gargalhada Febre amarela (música =, gargalhada ≈) A Risada (gargalhada ≈) A Vacina obrigatória (música =) As Eleições de Piancó (gargalhada ≈)

Ex.4: Incidência, em catálogos da Casa Edson, de fonogramas com música ou gargalhar iguais ou semelhantes aos do fonograma 108.077.

62 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

RPM (SANTOS et al. 1982, p.1–32), nem os websites do o chapéu alheio — porque, o que apresentava como Instituto Moreira Salles, da Fundação seu, era seu de verdade. (GUIMARÃES 1978, p.68) ou do Projeto Disco de Cera (Aquivo Nirez) trazem qual- quer registro desta gravação. Finalmente, o “grandioso e Jota Efegê observou, em 1965, que “houve um punhado extraordinario repertório de modinhas brasileiras” (sic) de de canções (lundus, modinhas, chulas, etc.) que o teve 1905, Mysterios do violão, de Eduardo das Neves, contém como criador ou principal intérprete. Muitas delas, por o poema Questão do Acre, designado como “nova garga- isto, ficaram consignadas na biografia do bardo do povo lhada”, 34 e que deve ter sido cantado ao som da música como sendo de sua própria e exclusiva autoria, quando, do Pega na chaleira. apenas, houve feitura de versos conduzidos por músicas alheias” (GOMES 1978, p.159). 3 - Autoria No prefácio de seu Trovador da malandragem, por volta 4 - Gargalhadas “inglezas” de 1903, Eduardo das Neves pergunta: “Por que motivo Encimado pelo cabeçalho “gargalhadas inglezas”, en- duvidaes, isto é, não acreditais, quando apparece qual- contramos no Catalogo de 1902 da Casa Edison de Fred quer ‘chôro’, qualquer composição minha, que agrada, Figner, “importador de phonographos, gramophones e no- que cahe no gôsto do publico, e é decorada, repetida, vidades americanas”, o anúncio de dois cilindros, o 379, cantada por toda a gente, e em toda a parte — desde “Laughing Song”, e o 380, “Laughing Coon” (vide Ex.5). nobres salões, até pelas esquinas, em horas mortas da Entre o cabeçalho e os fonogramas, a figura de um cida- noite?!” (NEVES 1926, p.3). 35 João do Rio conclui, em dão de meia-idade convida-nos, sorridente, a conhecer- 1908, que, ao contrário do Bahiano, “Dudú [...] canta mos estas instâncias de humor “britânico” (o qual, como apenas as suas obras” (BARRETO 1910, p.306). E Vagalu- é sabido, nunca teve no gargalhar um meio privilegiado me reitera, em 1933: de expressão). Seria necessário um tipo de atenção que não costumamos dispensar a catálogos publicitários para Nunca se impôs como, realmente, deveria ter feito. nos darmos conta de que, apesar da alvura da sua tez, o nariz do cidadão é grande e chato. Trata-se de George Em compensação — aqui que ninguém nos ouça, — Washington Johnson, o primeiro astro negro da fonogra- nunca se enfeitou com penas de pavão... nem nunca se fia, nascido escravo numa fazenda da Virgínia em 1846.36 locupletou com os resultados dos trabalhos dos outros... De acordo com um anúncio publicado na revista Pho- Certa vez escrevi, a seu pedido, uma cançoneta: PEGA nogram em novembro de 1900 (p.14–15, apud BROOKS NA CHALEIRA — que ele musicou, enquanto o diabo 2004, p.24), Johnson começou a gravar para Thomas Alva esfregou um olho, para cantar duas horas depois, na Edison em 1877. Levando em conta que o primeiro fonó- noite de seu benefício, em Santa Cruz. grafo foi construído por Edison em dezembro de 1877 e apresentado na Casa Branca em abril de 1878, BROOKS Pois bem, quando teve que gravar a chapa na Casa (2004, p.24) conjetura que estas gravações, se realmente Edison, veio pedir autorização e eu não consenti em ocorreram, 37 devem ter-se realizado em 1878 ou 1879. figurar o meu nome como autor da letra. Seja como for, em junho de 1890, meses depois do início das gravações comerciais, a New York Phonograph Com- Revi, concertei ajeitei uma infinidade de peças da au- pany já tinha em catálogo a Laughing Song e o Whistling toria de Eduardo. Coon, as duas especialidades de Johnson. Nesta época, Johnson gravava também para a New Jersey Phonogra- Ele era interessante escrevendo peças — não fazia a ph Company (BROOKS 2004, p.30), de Edison. Em 1891 separação das cenas — era tudo corrido! e 1892 ele regravou seus números para a North Ameri- can Phonograph Company, com distribuição nacional. Em Quando anunciava uma peça, como de sua autoria, é 1892 a Columbia adicionou a seu catálogo a Laughing porque o era mesmo. Song e o Whistling Coon na voz de John Y. AtLee. A New Jersey contra-atacou revelando que Johnson era negro Nunca botou o seu nome aos trabalhos dos outros... e que, portanto, a versão registrada para este selo era a legítima. Em março de 1894 a United States Phonograph Há por aí quem não assine com correção o próprio Company, divulgou que “até o momento, mais de 2.500 nome, e se inculque autor de várias obras teatrais... gravações destas duas canções foram realizadas por este e já houve mesmo tempo em que nada subia à cena artista, e os pedidos parecem aumentar, ao invés de di- em determinada casa de espetáculos sem o nome do minuir” (BROOKS 2004, p.30). No mesmo ano, Johnson consagrado escritor!... registrou direitos sobre a música e a letra da Laughing Song e começou a gravá-la como parte dos sketches fo- Eduardo, porém, era vinho de outra pipa, como vulgar- nográficos do Spencer, William and Quinn Minstrels. 38 mente se diz, e submetia tudo quanto o seu bestunto Em 1897 estes sketches passaram a ser lançados pela Co- gerava à apreciação de pessoas que lhe pudessem cor- lumbia, que também comercializou os fonogramas solo rigir os erros. Jamais o grande artista fez cortesia com do artista. Em 1894, Emile Berliner havia dado início à

63 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

venda de discos em ampla escala e Johnson foi convidado E quando eu ouvi isto eu ri até chorar. para registrar seus dois sucessos em disco em 1895, 1896, E eu dou risada... 1897 e 1898. Na segunda metade dos anos 1890, ele os gravou também para vários selos menores. Os catálogos Agora, caros amigos, ouçam o que vou dizer: da Columbia para o período 1895–1897 afirmavam que Fiz o que pude para agradá-los com meus versinhos singelos. nenhum outro item vendia tanto quanto as duas canções Agora, se acharam engraçada ou meio fraca a brincadeira, Tudo o que farei é dar esta risadinha. de Johnson. Walcutt and Leeds, fabricantes dos New York Cylinders, chamaram-nas, em 1896, de “duas grandes E eu dou risada... especialidades que têm sido vendidas no mundo inteiro”. Um catálogo não identificado do período fala de 38.000 5 - Risada de negro cilindros. Publicada em 1894, a partitura da Laughing A apropriação e re-significação por artistas brasileiros Song (vide Ex.6 e 7) fala de 50.000 gravações, só em ci- de músicas “norte-americanas aficanas” é um fato tão lindro. Neste ano, o Edison Phonograph News afirmou que antigo quanto a própria indústria fonográfica. Ela resulta “a Laughing Song de George Washington Johnson tem da clivagem espaço-temporal intrínseca à reprodutibili- vendido mais do que qualquer outro registro fonográfico”. dade técnica do som: aquilo que soou em determinado Os dois títulos de Johnson foram imitados, traduzidos e tempo e em determinado lugar ressoa em outro tem- “pirateados”. Whistling Coon teve versões em francês e po e em outro lugar, sendo escutado, necessariamente, em sueco. No final dos anos 1890, quando várias com- com outros ouvidos. Desta forma, o evento original é panhias de gravação tentavam estabelecer escritórios no descontextualizado. Assim, a Laughing Song, uma coon exterior, vendendo registros locais e sucessos importados, song 43 cantada por um ex-escravo norte-americano, Laughing Song e Whistling Coon foram incluídos num dos transforma-se na Gargalhada no Brasil: uma cançone- primeiro catálogos ingleses de Berliner, datado de 16 de ta na qual um afro-descendente apresenta o puxa-sa- novembro de 1898, reaparecendo em 22 de fevereiro de quismo como traço dominante das classes favorecidas. 1899. Uma gravação desta época, provavelmente para a Neste processo, o gênero adquire um novo significado. New Jersey Phonograph Company (vide referências fono- De modo oposto, nas primeiras décadas do século XX, gráficas), inicia-se com o anúncio do apresentador: “The At a Georgia Camp Meeting, o celebérrimo cakewalk 44 Laughing Song, by Mr George W. Johnson!” do compositor branco norte-americano Kerry Mills (vide 45 As I was coming ’round the corner I heard some people say: Ex.8), dá origem a vários fonogramas no Brasil: com Here comes a dandy darky, here he comes this way. a Banda do Corpo de Bombeiros (Odeon 40.115), com a His heel is like a snow plow, his mouth is like a trap, Banda da Casa Edison (Odeon 10.015 e 40.057), com o And when he opens it gently you will see a fearful gap. pianista Artur Camilo (Odeon 40.210), com o cantor J. 46 And then I laugh, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha!39 G. Leonardo e banda (Victor Record 98.720). Em O I couldn’t stop my laughing, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Mulato de arrelia, J. G. Leonardo, um cantor de etnia Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! indeterminada, personifica a bravata de um negro de I couldn’t stop my laughing, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! subúrbio em visita à capital federal. Ocorre aqui o re- They said his mother was a princess, his father was a prince, verso do processo anteriormente descrito: no cakewalk And he’d been the apple of their eye if he had not been a quince, nacionalizado parodia-se o comportamento de um ne- But he’ll be the king of Africa in the sweet by and by. gro suburbano em visita à capital federal. And when I heard them say it why I laughed until I cried.

And then I laugh... Seja como for, através da associação entre o empresá- rio europeu Fred Figner e “o crioulo Dudu das Neves”, So now kind friends just listen to what I’m going to say: o trabalho do ex-escravo norte-americano Johnson, I’ve tried my best to please you with my simple little lay. explorado pela nascente indústria fonográfica norte- Now whether you think it’s funny or a quiet bit of chaff, Why all I’m going to do is just to give this little laugh. americana, passa a ser explorado também no Brasil por aproximadamente um quarto de século. Este fenômeno And then I laugh... tem lugar no momento em que, nos Estado Unidos, o surgimento do processo de matrizes fonográficas trans- A letra de Johnson poderia traduzir-se assim: formava Johnson num artista dispensável e, aos sessen- ta anos de idade, sem trabalho. Eu estava dobrando a esquina quando ouvi gente dizer: Vem aí o peralvilho preto, 40 aí vem ele. Seu calcanhar é como um limpa-neves, sua boca um alçapão, No dia 6 de maio de 1905, o influente crítico negro E quando ele a abre suavemente você vê um buraco medonho. Sylvester Russell 47 escreveu nas páginas do Indiana- polis Freeman: 48 E eu dou risada, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Não pude conter o riso, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Homens que escrevem letras para canções não podem mais Ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! escrever degenerações vergonhosas como a letra de Whistling Não pude conter o riso, ha, ha, ha, ha, ha, ha, ha! Coon e esperar que editores respeitáveis aceitem-nas, ainda que a música seja boa. Os compositores não devem musicar palavras Disseram que sua mãe era uma princesa, seu pai um príncipe, que constituam um insulto direto ou uma insinuação indireta à 41 E ele teria sido a menina de seus olhos se não tivesse sido um sonso, raça parda. Este estilo de literatura não é mais apreciado. (Apud 42 Mas ele será o rei da África se deus quiser. BROOKS 2004, p.66)

64 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

E Brooks continua: 6 - Observações finais: de onde vem o lundu? A historiografia consagrou as trajetórias inversas da mo- Os últimos dias de George Johnson foram verdadeiramente som- 49 brios. Sua renda há muito se reduzira a quase nada e, gradual- dinha e do lundu — da casa grande à senzala, e vice- mente, seu nome foi-se perdendo de vista. Seu último cilindro na versa — como emblema da miscigenação musical bra- Columbia saíra de catálogo em 1908. Em 1910 a Victor eliminou sileira. No momento em que desigualdades econômicas o último dos discos que ele gravara e Edison fez o mesmo em emergem com a nitidez dos números, demonstrando a 1912. Em 1913 um único disco de sua Negro Laughing Song estava disponível ainda, feito pela Columbia anos antes, mas seu nome opressão econômica e cultural da componente menos sequer constava no selo. Ao invés de creditar o artista, continha clara da mistura, é lícito perguntar em que medida esta simplesmente as palavras “an old standard”. O número minstrel de construção histórica não constitui, ela própria, um ins- Len Spencer no qual aparecia a Laughing Song continuava em ca- trumento de dominação. O presente trabalho mostra que tálogo, mas também não mostrava o nome de Johnson. (BROOKS 2004, p.67) o lundu-canção pode se originar menos das senzalas ca- feeiras ou açucareiras do que das vantagens econômicas Johnson faleceu em Nova York no dia 26 de janeiro de que a vida urbana de uma grande metrópole do norte 1914, aos sessenta e sete anos de idade. Em 1918, a músi- dos Estados Unidos ofereceu a um ex-escravo. E em que ca de sua Laughing Song e a gargalhada que ele inventou medida a anatematização sistemática dos elos — proble- 50 eram vendidas no Brasil sob os números de fonograma máticos, mas evidentes — entre a música brasileira e 108.077, 108.760, 40.169 e 40.631 (vide Ex.4), todos em a norte-americana não constitui, mais que uma expres- oferta no Catalogo geral da Casa Edison do Rio de Janei- são de nacionalismo xenófobo, uma rejeição à arte negra ro, Odeon brasileira. norte-americana, vale dizer, um ato de fobia racista?

Ex.5: Página do Catalogo de 1902 da Casa Edison, mostran- Ex.6: Capa da edição de 1894 da Laughing Song, com do a imagem anônima de George W. Johnson (embaixo, a foto de George Washington Johnson, detentor dos à esquerda), provavelmente extraída da foto que ilustra a direitos sobre a letra e a música. publicação da Laughing Song em 1894 (vide Ex.6).

65 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

Ex.7: Primeira página da Laughing Son, de George W. Johnson, na edição de 1894.

Ex.8: At a Georgia Camp Meeting (1897) de Kerry Mills (1869–1948), “o maior de todos os cakewalks” (WONDRICH, 2003, p.65)

66 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

Referências ABBOT, Lynn e Doug SEROFF. 2002. Out of Sight: The Rise of African American Popular Music. Jackson: University Press of Mississippi. ABREU, Martha. 2003. “Eduardo das Neves (1874–1919): histórias de um crioulo malandro”. In Denise Pini Rosalem da Fonseca (org.). Resistência e inclusão: história, cultura, educação e cidadania afro-descendentes. Rio de Janeiro: PUC- Rio e Consulado Geral dos Estados Unidos, v. 1, p.73–87. ALBIN, Ricardo Cravo. 2006. “Eduardo das Neves”. Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira. Rio de Janeiro: Paracatu, p.526 e 1032–1033. Online: . Acessado em 25 de maio de 2008. ALENCAR, Edigar. 1979. O carnaval carioca através da música. Rio de Janeiro: Francisco Alves, INL e MEC, 3ª ed. corrigida, ampliada e atualizada. BARBOSA, Orestes. 1923. Ban-ban-ban!. Rio de Janeiro: Benjamim Costallat e Miccolis. BARRETO, João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos (João do Rio). [1908]. A alma encantadora das ruas. Rio de Janei- ro e Paris: Garnier, 1910. Online: . Acesso em 4 de outubro de 2009. BÉHAGUE, Gerard. 2002. “Bridging South America and the United States in Black Music Research”. Black Music Research Journal 22 (1): 1–11. BROOKS, Tim. 2004. Lost Sounds: Blacks and the Birth of the Recording Industry, 1890–1919. Urbana e Chicago: University of Illinois Press. BURNIM, Mellonee V. e Portia K. MAULTSBY. 2006. “Glossary”. In BURNIM e MAULTSBY orgs 2006, p.643–649. BURNIM, Mellonee V. e Portia K. MAULTSBY (orgs). 2006. African American Music: An Introduction. New York e London: Routledge. COSTA, Luiz Edmundo de Melo Pereira da (Luiz Edmundo). 1938. O Rio de Janeiro do meu tempo: ilustrações originaes de Marques Junior, Henrique Cavalleiro, Armando Pacheco, Raul, Calixto, Gil, J. Carlos, Rocha Daniel, Julião Machado, Lobão e outros. Photographias de Marc Ferrez, Luiz Bueno, W. Crown e Augusto Malta. Rio de Janeiro: Imprensa Na- cional, 3 vv. FERLIM, Uliana Dias Campos. 2006. “A polifonia das modinhas: diversidade e tensões musicais no Rio de Janeiro na pas- sagem do século XIX ao XX”. Campinas: Unicamp, dissertação de mestrado em História. Online: . Acesso em 4 de outubro de 2009. FRANCESCHI, Humberto Moraes. 2008. Entrevista telefônica concedida ao autor, 23 e 24 de maio e 14 de julho. ———. 2002. A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro: Sarapuí (com 4 CDs de áudio e 5 de imagem). ———. 1984. Registro sonoro por meios mecânicos no Brasil. Rio de Janeiro: Studio HMF. GOMES, João Ferreira (Jota Efegê). 1966. “Dudu, o bombeiro boêmio”. O Jornal, 10 de julho. Citado de Figuras e coisas da música popular brasileira. Rio de Janeiro: MEC-Funarte, 1978, v. 1, p.177–179. ———. 1965. “Eduardo da Neves, da cançoneta, da seresta e também do carnaval”. O Jornal, 28 de novembro. Citado de Figuras e coisas da música popular brasileira. Rio de Janeiro: MEC-Funarte, 1978, v. 1, p.158–160. GUIMARÃES, Francisco (Vagalume). [1933]. “O Diamante Negro”. Na roda do samba. Rio de Janeiro: Typ. São Benedicto. Citado da seg. ed. Rio de Janeiro: Funarte, 1978, p.65–75. HALLIFAX, Andrew. 2008. “Making Transfers from 78 RPM Sources: the CHARM Transfer Engineer’s Approach”. Online: . Acesso em 29 de maio de 2008. HARER, Ingeborg. 2006. “Ragtime”. In BURNIM e MAULTSBY orgs 2006, p.127–144. Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Academia das Ciências de Lisboa. 2001. Dicionário da língua portuguesa con- temporânea da Academia das Ciências de Lisboa. Lisboa: Verbo, 2 vv. LISBOA Júnior, Luiz Américo. 1996. “Eduardo da Neves, nosso primeiro cronista musical”. Jornal Agora (Itabuna), 21–27 de abril. Citado de Oitenta e um temas da música popular brasileira. Itabuna: Agora, 2000, p.182–189. NEVES, Eduardo das. 1905. Mysterios do violão: grandioso e extraordinario repertorio de modinhas brasileiras. Rio de Janeiro: Quaresma. ———. [c. 1903]. O trovador da malandragem. Rio de Janeiro: Quaresma, 1926 (ii). PARTRIDGE, Eric, editado por Paul BEALE. 1989. A Concise Dictionary of Slang and Unconventional English Edited by Paul Beale from ‘A Dictionary of Slang and Unconventional English’ by Eric Partridge. London: Routledge. PINHEIRO, Abílio Soares. 1906. Os estranguladores do Rio ou o crime da Rua da Carioca. Rio de Janeiro: Miotto. PORTO, Ana Gomes. 2009. “Novelas sangrentas: literatura de crime no Brasil (1870-1920)”. Campinas: Unicamp, tese de doutorado em História. Online: . Acesso em 3 de outubro de 2009. SALEM, James M. n.d. “African American Songwriters and Performers in the Coon Song Era: Black Innovation and Ameri- can Popular Music”. Columbia Journal of American Studies. Online: . Aces- so em 25 de julho de 2008.

67 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

SANDRONI, Carlos. 2001. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917–1933). Rio de Janeiro: Zahar. SANTOS, Alcino; Gracio BARBALHO, Jairo SEVERIANO, Miguel Ângelo AZEVEDO (Nirez). 1982. Discografia brasileira 78 RPM: 1902–1964. Rio de Janeiro: Funarte, v. 1. SEUBERT, David. 2008. “Cylinder Recordings: a Primer”. Cylinder Preservation and Digitization Project. Universidade da Califórnia, Santa Bárbara. Online: . Acesso em 15 de junho de 2008. SEVERIANO, Jairo. 2008. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34. SILVA, Adalberto Prado e; M. B. LOURENÇO Filho, Francisco MARINS, Theodoro Henrique MAURER Jr, José CURADO, Ary Tupynambá PEIREIRA e Aleixo ROSUT (orgs). 1975. Dicionário brasileiro da língua portuguesa. São Paulo: Mirador. SILVA, Marilia T. Barbosa da e Arthur L. de OLIVEIRA Filho. 1979. Filho de Ogum bexiguento. Rio de Janeiro: Funarte. TINHORÃO, José Ramos. 1976. Música popular: os sons que vêm da rua. Rio de Janeiro: Edições Tinhorão. VASCONCELOS, Ary. 1985. A nova música da República Velha. Rio de Janeiro: edição independente. ———. 1977. Panorama da música popular brasileira na belle époque. Rio de Janeiro: Sant’Anna. ———. 1964. Panorama da música popular brasileira. São Paulo: Martins, v. 1. VEDANA, Hardy. 2006. A Elétrica e os Discos Gaúcho. Porto Alegre: edição do autor. WONDRICH, David. 2003. Stomp and Swerve: American Music Gets Hot, 1843–1924. Chicago: A Capella. XAVIER, Valêncio. 2004. “Os estranguladores da Fé em Deus: os crimes de Rocca e Carletto”. Crimes à moda antiga. São Paulo: Publifolha, p.6–25.

Referências fonográficas Música e letra de AUTOR DESCONHECIDO, com Edmundo André (voz) e piano. A Risada. Disco Odeon, 40.631. Aprox. 1904–1907: Brasil. ______, com Eduardo das Neves (voz) e violão. As Eleições de Piancó. Disco Odeon, 108.760. Aprox. 1907–1912: Brasil. George W. JOHNSON (música, letra e voz) com acompanhamento de piano. “Laughing Song”. Provavelmente, cilindro de cera da New Jersey, sem número. Aprox. 1894–1898. Lost Sounds: Blacks and the Birth of the Recording Industry, 1891–1922. Archeophone, caixa com 2 CDs, ARCH 105. 2005: EUA. ______(música), letra de autor desconhecido, com Mário Pinheiro (voz) e piano. A Vacina obrigatória. Disco Odeon, 40.169. Aprox. 1904–1907: Brasil. ______(música), letra de autor desconhecido, com Geraldo Magalhães (voz) e piano. Febre amarela. Disco Odeon, 40.493. Aprox. 1904–1907: Brasil. ______(música) e Vagalume (letra), com Eduardo das Neves (voz) e violão. Gargalhada. Disco Odeon, 108.077. Aprox. 1906: Brasil. Kerry MILLS (música), com a Sousa’s Band. “At a Georgia Camp Meeting”. Disco Victor, 315. Aprox. 1902: EUA. Stomp and Swerve: American Music Gets Hot. CD Archeophone, ARCH 1003. 2003: EUA. ______(música), com a Banda da Casa Edison. Cake walk. Disco Odeon, 40.057. Aprox. 1904–1907: Brasil. ______(música), com a Banda do Corpo de Bombeiros. At a Georgia Camp Meeting. Disco Odeon, 40.115. Aprox. 1904– 1907: Brasil. ______(música), com Artur Camilo (piano). Cake walk. Disco Odeon, 40.210. Aprox. 1904–1907: Brasil. ______(música), com a Banda da Casa Edison. Cake walk. Disco Odeon, 10.015. Aprox. 1907–1913: Brasil. ______(música), letra de autor desconhecido, com J.G. Leonardo (voz) a banda. O Mulato de arrelia. Disco Victor, 98.720. Aprox. 1908–1912: Brasil.

68 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

Notas 1 Sobre a composição da massa do disco, vide FRANCESCHI (1984, p.107–108; 2002, p.212). 2 Nem sempre é fácil identificar as unidades de riso nas gargalhadas ritmadas e moduladas em timbre e altura desta cançoneta. A presente transcrição resulta de comparações entre a percepção auditiva e representações visuais do envelope sonoro. 3 Nas citações que se seguem, mantenho as ortografias originais. 4 Fonogramas Odeon 108.086 e 108.341, Favorite Record 1–452.004, Victor Record 98.486 e Columbia B–101. 5 Ou a transferências distintas de uma mesma chapa: o site do IMS não fornece esclarecimentos. 6 De acordo com FRANCESCHI (2002, p.207), nas gravações cantadas da Casa Edison o anúncio era feito pelo próprio intérprete. O sotaque português do anunciante aparentemente o contradiz, no caso do fonograma 108.077. 7 No primeiro dos cinco CD-ROMs que acompanham o livro A Casa Edison e seu tempo, Humberto Franceschi divulgou cópias dos seguintes catálogos e suplementos: • 1900, capa do catálogo 1900: phonographos, graphophonos, phonogrammas, pertences para importação direta por Fred Figner, Rio de Janei- ro; • 1902, Catalogo de 1902 (capa, duas páginas não numeradas, p.3–16 e 25–54, capa traseira), Casa Edison, Rio de Janeiro; • 1913, Supplemento de abril e maio 1913 (capa, duas páginas não numeradas, p.4–7, capa traseira), Casa Edison, Rio de Janeiro; Supplemento de agosto, setembro e outubro de 1913 (capa, p.2–7, capa traseira), Casa Edison, Rio de Janeiro; Supplemento A (capa, uma página não nu- merada, p.4–15, duas páginas não numeradas), Casa Edison, Rio de Janeiro; Supplemento do mez de dezembro de 1913: discos gravados em Porto Alegre (capa, duas páginas não numeradas, p.4–11, capa traseira), Casa Edison, Rio de Janeiro; • 1914, Supplemento de janeiro a maio de 1914 (capa, página não numerada, p.3–11, duas páginas não numeradas), Casa Odeon, São Paulo (a primeira e a última páginas e os cabeçalhos do miolo, excetuadas as duas páginas finais, indicam “Casa Edison”); Supplemento de outubro, novembro e dezembro (capa, p.5–15, capa traseira), Casa Odeon, São Paulo; • 1915, Discos Odeon 1915 Casa Murano (capa, página sem número, p.8–70), Casa Murano, São Paulo; • 1918, Catalogo geral (capa, seis páginas sem número, p.6–224), Casa Edison, Rio de Janeiro; • 1919, Catalogo geral 1919 (capa, seis páginas sem número, p.8–123, 125–142, 144–208, duas páginas sem número), Casa Edison, Rio de Janeiro; • 1920, 1920: catalogo geral (capa, quatro páginas sem número, p.6–78, três páginas sem número, p.139–208, duas páginas sem número), Casa Edison, Rio de Janeiro; • 1924, Catalogo geral de discos duplos Odeon (capa, três páginas sem número, p.4–85, duas páginas sem número), Casa Edison, Rio de Janeiro; • 1926, Catalogo geral de discos duplos Odeon (capa, três páginas sem número, p.4–47, duas páginas sem número), Casa Edison, Rio de Janeiro. 8 É por sinédoque (e por praticidade) que, nos catálogos da Casa Edison, o número de um dos fonogramas designa a chapa. 9 Na cópia do primeiro volume da Discografia que pertenceu ao colecionador paranaense Paulo José da Costa (SANTOS et al. 1982, p.85), uma ano- tação a lápis indica a existência de uma chapa combinando os fonogramas 108.085 (Balancê, com Eduardo das Neves) e 108.289 (Moro à beira do mar, com Geraldo Magalhães). 10 De acordo com FRANCESCHI (2008), estas fichas não correspondem a seu próprio banco de dados. 11 Os dois primeiros realizaram transferências digitais de chapas de goma-laca para o selo Naxos Historical, o terceiro é responsável pelas transferên- cias digitais do Centre for the History and Analysis of Recorded Music (CHARM). Sobre a abordagem do CHARM, vide HALLIFAX (2002). 12 O “Livro de Registros de Gravações da Casa Edison”, reproduzido por FRANCESCHI (2002) identifica o fonograma 10.413, desconhecido de SANTOS et al. (1982, p.80–81). 13 Baseados em catálogos da época, SANTOS et al. (1982, p.121) afirmam que os discos de 35 centímetros permitiam gravações de até seis minutos de duração. Esta informação é confirmada: em 1920: catalogo geral (p.73); no Catalogo geral de discos duplos Odeon de 1924 (p.84); no Catalogo geral de discos duplos Odeon de 1926 (p.47). Em todos eles, a segunda faixa da chapa 70.083, Ballada do Guarany, na voz da soprano M. Pereira, é anunciada como durando seis minutos. O fato desta chapa não aparecer nos catálogos de 1915, 1918 e 1919, todos eles contendo gravações da série 70.000–70.084, pode levantar suspeitas quanto à data de 1912, fornecida por SANTOS et al. (1982, p.121) como limite final da série. 14 O termo “série” corresponde ali ao que SANTOS et al. (1982) designam por “matriz”, e não ao que estes, FRANCESCHI (1984 e 2002) e o presente autor entendem pelo termo. 15 No “Livro de Registros”, “Nos” corresponde ao que SANTOS et al. (1982) designam por “número do disco” e o IMS por “número do álbum”, mas que prefiro chamar de “número de fonograma”. 16 Sobre gravação e prensagem em Porto Alegre, vide VEDANA (2006) e FRANCESCHI (1984, p.89–92; 2002, p.177–191). 17 Não é impossível que a hipótese de Santos não se confirme e que as tomadas para a série 108.000 tenham-se registrado em outro livro. Por outro lado, SANTOS et al. (1982, p.106–114) dão dezembro de 1912 como “data do lançamento” de trinta e três dos fonogramas da série 108.000. A pos- sibilidade do decurso de um período considerável de tempo entre a data de gravação e lançamento deve ser levada em conta. 18 Todos os títulos abaixo estão disponíveis, por streaming, no site do IMS. 19 De acordo com a ficha do fonograma do acervo Tinhorão (o único no qual esta gravação está disponívelonline ), um “lundu alegre”. 20 Para VASCONCELOS (1977, p.284), um “lundu alegre”. 21 Anunciado no fonograma como “uma noite agitada numa república de estudantes”. 22 Para VASCONCELOS (1977, p.332), Rolo em um bonde é uma “confusão cômica”, um “sketch certamente improvisado, durante o qual Mário Pinheiro canta uma modinha de um autor desconhecido”. 23 A referência ao acompanhamento de coro não é fornecida por SANTOS et al. (1982, p.115), mas aparece nos catálogos de 1915, 1918, 1919, 1920, 1924 e 1926. Segundo VASCONCELOS (1977, p.284), o coro é constituído por Mário Pinheiro e Nozinho (Carlos Vasques). O fonograma anuncia: “cantado e acompanhado ao violão por Eduardo das Neves e coro feito por Mário e Sinhozinho”. 24 A letra de O Aquidabã aparece em VASCONCELOS (1985, p.42–43) e LISBOA (1996, p.183). 25 Sobre “o crime do ano”, vide PINHEIRO (1906), BARBOSA (1923, p.97–102), ALENCAR (1976, p.100), XAVIER (2004), FERLIM (2006, p.76–77) e PORTO (2009, p.176–202). 26 TINHORÃO (1976, p.40–41) vai mais longe, atribuindo a Eduardo das Neves o papel de fundador da tradição, viva na primeira década do século XX, de cantar sempre o drama ocorrido na cidade, um caso escandaloso ou um acontecimento político. 27 É verdade que o crime da Rua da Carioca ainda era assunto em dezembro de 1907, quando Carletto e Rocca foram levados a julgamento. “Justiça, senhores da terra, justiça mais uma vez, trinta anos não é demais para quem tal crime fez”, canta Eduardo das Neves, seja solicitando a pena máxi- ma, antes do julgamento, seja endossando-a, depois.

69 PALOMBINI, C. Fonograma 108.077: o lundu de George W. Johnson. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.58-70.

28 Sobre a produção e a comercialização de cilindros no Brasil, vide FRANCESCHI (1984, p.11–52; 2002, p.15–59). 29 Fred Figner recebeu a prova da primeira chapa inteiramente produzida no Brasil em 21 de dezembro de 1912, embora não se saiba ao certo que fonogramas ela contivesse (FRANCESCHI 2002, p.203). 30 Em Registro sonoro por meios mecânicos no Brasil, Franceschi afirma que o selo Bandeira Brasileira aplicou-se a discos “prensados entre 1908 e 1912” (FRANCESCHI 1984, p.75). 31 SANTOS et al. (1982, p.52) apresentam Febre Amarela como uma “gargalhada”. 32 O primeiro volume da Discografia brasileira 78 RPM registra, sob o selo Zon-O-Phone, o primeiro da Casa Edison: Cometa Biela, uma “gargalhada”, com o ator Veloso, número de série 1.674 (SANTOS et al. 1982, p.17); América e Espanha, “gargalhadas”, com o ator Veloso, número de série X-816 (SANTOS et al. 1982, p.30); Cometa Biela, “gargalhadas”, com o ator Veloso, número de série X-821 (SANTOS et al. 1982, p.30). De acordo com SANTOS et al. (1982, p.31), as séries 1.500 e X-500 consistem de discos de sete e dez polegadas, respectivamente. Apesar da numeração inferior, elas seriam posteriores às séries Zon-O-Phone 10.000 e X-1.000, nas quais realizaram-se as primeiras gravações da Casa Edison. De acordo com SANTOS et al. (1982, p.32), “as séries Zon-O-Phone devem ir até meados de 1904, quando Figner passa a usar a Odeon”. 33 De acordo com FRANCESCHI (2008), os cilindros brasileiros eram constituídos de um núcleo de cera recoberto por uma camada externa raspável, também de cera. Com o calor, a dilatação do núcleo produzia fissuras na camada externa, menos facilmente dilatável, que terminava por fender-se. 34 O texto da “nova gargalhada” de Eduardo das Neves mostra, já em 1905, o costume latino-americano de chamar os brasileiros de “macaquitos” (vide NEVES 1905, p.34). 35 Citado por João do Rio em 1908, com variações, na coletânea A alma encantada das ruas (BARRETO 1910, p.305–306). 36 Sobre Johnson, vide ABBOT e SEROFF (2002, p.93 e 103–4), BROOKS (2004, p.13–71) e SALEM (n.d.). Toda esta seção baseia-se na primeira parte do livro de Brooks. 37 As gravações originais, em cilindros revestidos de folha de estanho, sendo muito perecíveis, esta questão dificilmente será esclarecida. 38 Um minstrel show era “um espetáculo teatral de longa duração estrelando intérpretes com os rostos pintados de preto que executavam canções, danças e números cômicos baseados em paródias e estereótipos da vida e dos costumes dos americanos africanos” (BURNIM e MAULTSBY 2006, p.646). 39 O texto reproduzido baseia-se no da partitura de 1894, com alterações em função da gravação listada nas referências e do texto fornecido por BROOKS (2004, p.31). Como não se utilizava ainda o sistema de matrizes, cada execução gerava três ou quatro cilindros vendáveis. As performances gravadas podiam, portanto, diferir consideravelmente. Por outro lado, a partitura está muito longe da variedade rítmica da criação de Johnson. 40 É curioso observar que a pecha de janota foi lançada contra Eduardo das Neves pelo escritor (dândi mulato, homossexual, cocainômano e imortal) João do Rio em 1908: “o Eduardo das Neves tinha sido bombeiro, antes de ser notavel. Quando foi numero de music-hall, perdeu a tramontana e passou a andar de smoking azul e chapéo de seda” (BARRETO 1910, p.305). 41 Há aqui um trocadilho intraduzível entre apple of their eye, literalmente “a maçã de seus olhos”, significando “a menina de seus olhos”, e quince, literalmente, “marmelo”, mas também, “uma pessoa fraca, efeminada; uma pessoa indecisamente tola” (PARTRIDGE 1989, p.360). 42 In the sweet by and by, traduzido aqui por “se deus quiser”, é uma referência ao hino de Sanford Fillmore Bennett e Joseph P. Webster In the Sweet Bye and Bye, publicado em 1868. 43 “Estilo de canção popular do final do século XIX e início do XX que apresentava uma visão estereotipada dos americanos africanos, frequentemente interpretada por cantores brancos com as caras pintadas de preto” (BURNIM e MAULTSBY 2006, p.644). 44 “Dança que parodia o comportamento da classe superior branca, originalmente executada por escravos americanos africanos; a melhor performance recebia um prêmio, normalmente um bolo, ao qual a dança deve seu nome” (BURNIM e MAULTSBY 2006, p.644). 45 Traduzido ao alemão e publicado no Illustrierte Zeitung Leipzig em 1903, At a Georgia Camp Meeting tornou-se “uma das peças mais populares na Alemanha e na Áustria, presumivelmente contribuindo para a divulgação (da música) do cakewalk nos países de língua alemã” (HARER 2006, p.137 e 140). 46 Sou grato à pesquisadora austríaca Ingeborg Harer por ter identificado, no fonograma Victor, ocakewalk de Mills, tendo me transmitido esta infor- mação em mensagem eletrônica de 16 de abril de 2008. 47 No início dos anos 1900, Sylvester Russell tornou-se o primeiro crítico profissional de música de ascendência americana africana (ABBOT e SEROFF 2002, p.190). 48 Fundado em 1888 por Edward Elder, que fugira da escravidão no sul para instalar-se em Indianápolis em 1882, o semanário Indianapolis Freeman tornou-se rapidamente uma das publicações negras de maior circulação, sendo adotado por profissionais do espetáculo e músicos negros como fonte principal de notícias e fofocas (ABBOT e SEROFF 2002, p.xii). 49 Sobre o lundu, vide o capítulo “Doces lundus, pra nhonhô sonhar...” no livro de Carlos SANDRONI (2001, p.39–61). 50 Sobre esta problemática, vide BÉHAGUE 2002.

Carlos Palombini doutorou-se em Música pela Universidade de Durham, no Reino Unido, com a tese “Pierre Schaeffer’s Typo-Morphology of Sonic Objects” (1993). Desenvolveu atividades de pesquisa e ensino na PUC-SP, Unicamp e UFPE antes de tornar-se professor de Musicologia na UFMG. Seus artigos e resenhas aparecem nos periódicos Computer Music Journal (MIT Press), Music and Letters (Oxford University Press), Leonardo (MIT Press), Organised Sound (Cambridge Uni- versity Press), Echo (UCLA) etc. É pesquisador do CNPq e da FAPEMIG. Com a colaboração de Sophie Brunet, reconstituiu o Essai sur la radio et le cinéma: esthétique et technique des arts-relais, um original inédito de Pierre Schaeffer recente- mente publicado na França (Paris: Allia, 2010).

70 ALBINO, C.; LIMA, S. R. A., C. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.71-81.

O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro

César Albino (UNESP/FMCG, São Paulo, SP) [email protected]

Sonia R. Albano de Lima (UNESP/FMCG, São Paulo, SP) [email protected]

Resumo: O artigo teve como objetivo investigar em que medida a improvisação e a tradição oral permitiram a consoli- dação do ragtime e do choro em gêneros musicais com aceitação popular na virada do século XIX. A escolha concen- trou-se nas semelhanças formais existentes entre ambos e nos caminhos percorridos por ambos para essa consolidação. A partir dos conceitos de territorialização e desterritorialização criados por Gilles Deleuze e Félix Guattari, incorporados à improvisação musical por Rogério Costa, verificamos o tipo de improvisação utilizado nesses dois gêneros. O re- lato histórico reafirma a ideia de D. Bailey de que a improvisação está sempre presente na criação de novos sistemas notacionais, gêneros e estilos musicais, ainda que nos processos de transmutação, ela saia de cena. O texto é parte da dissertação de mestrado defendida no IA-UNESP. Palavras-chave: ragtime; choro; improvisação; música popular brasileira; música popular norte-americana.

The historical path of improvisation in ragtime and choro

Abstract: This study aims at investigating to what extent improvisation and oral tradition allowed for the consolidation of ragtime and choro into musical genres which became popular in the turning of the nineteenth century. The choice was concentrated on the formal similarities existing between both kinds of music and in the paths taken by both of them in their process of consolidation. As far as the concepts of territorialization and de-territorialization coined by Gilles De- leuze and Félix Guattari, and incorporated in musical improvisation by Rogério Costa, it was possible to verify the type of improvisation used in these two genres. Historically, it re-states D. Bailey’s idea that improvisation is always present in the creation of new notational systems, genres and musical styles, even if it leaves the scene during the transmutation processes. This article derives from the first author’s Master of Arts dissertation (IA-UNESP, Brazil). Keywords: ragtime, choro; improvisation; Brazilian popular music; North-American popular music.

1 - Ragtime, choro e improvisação: um Derek BAILEY(1993), no livro Improvisation: its nature and recorte histórico practice in music fala das dificuldades em se promover No universo musical observa-se que as práticas improvi- uma abordagem histórica da improvisação devido à natu- satórias sempre estiveram presentes na gênese das novas reza não-documental da atividade. Nessa publicação ele se concepções que viriam a se tornar estilos ou na criação de reporta a Ernest Ferand para demonstrar a intensa presen- novas modalidades notacionais, contribuindo, mesmo que ça dessa atividade em toda a história da música, mesmo de forma nebulosa, para o desenvolvimento das mesmas. em um terreno aparentemente inóspito como a Europa: Muitos relatos comprovam a presença da improvisação This joy in improvising while singing and playing is evident in al- na criação de novos sistemas notacionais, gêneros e es- most all phases of music history. It was always a powerful force tilos musicais, no entanto, à medida que esses sistemas in the creation of new forms and every historical study that con- e gêneros se consolidavam, a improvisação saia de cena. fines itself to the practical or theoretical sources that have come Encontrar um ponto de equilíbrio entre esses dois opos- down to us is writing or in print, without taking into account the improvisational element in living musical practice, must of neces- tos parece ser a questão primordial a se trabalhar para a sity present an incomplete, indeed a distorted picture. For there continuidade dessa prática performática. is scarcely a single field in music that has remained unaffected

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 13/11/2009 - Aprovado em: 22/06/2010 71 ALBINO, C.; LIMA, S. R. A., C. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.71-81.

by improvisation, scarcely a single musical technique or form of a melhor definição para eles é fornecida por Geraldo SU- composition that did not originate in improvisatory practice or ZIGAN (1986, p.35), que se refere a essa música como o was not essentially influenced by it. The whole history of the de- velopment of music is accompanied by manifestations of the drive quarto gênero musical - a “Música das Américas” - uma to improvise (Ferand, 1961 Apud BAILEY, 1992, p.ix e x) 1 música que oferece um alto grau de ineditismo harmô- nico e rítmico, improvisação e uma gramática própria. Hoje, os jogos improvisatórios e algumas práticas impro- O autor sugere atenção das Instituições de ensino e dos visatórias têm sido empregados com certa frequência nos educadores no estudo desse repertório, pela importância cursos de musicalização e iniciação musical com o intuito que o mesmo representa para a nossa cultura. de incentivar a criatividade musical e a desenvoltura mu- sical, entretanto, esses procedimentos não se caracteri- Esses estilos musicais, embora provenientes de vários pa- zam como práticas improvisatórias performáticas. íses da América, apresentam características semelhantes, a saber: nasceram das tentativas locais de tocar a polca Na música erudita, a forte tradição escrita e o número e outros tipos de danças europeias, mescladas ao sotaque pequeno de composições destinadas à improvisação im- do colonizador e à influência negra, gerando em pouco possibilitaram a proliferação dessa habilidade, fato que tempo, uma serie de “estilos híbridos” como polca-haba- não ocorreu na música popular, pois nesse universo ela nera, polca-schottisch, polca-lundu, polca-mazurca, que obteve níveis de aceitação plena. mais tarde, após um período de gestação que pode chegar a quase um século, seriam sintetizados em um “estilo” Considerando-se a amplitude e a complexidade do as- identificável com características próprias, sofrendo, de- sunto, foi necessário adotar uma linha de investigação vido à origem, influências religiosas e culturais que lhe que pesquisou de que forma a improvisação e a tradição são determinantes (KIEFER, 1990, p.21). Originaram-se oral foram contempladas em dois gêneros musicais pro- em cidades portuárias, em uma época de grande expan- venientes dos EUA e do Brasil: o ragtime e o choro. Tam- são urbana, principalmente, a partir da metade do século bém foram verificadas as semelhanças formais existentes XIX (fim da escravatura e expansão do industrialismo). Na entre esses dois gêneros e o percurso trilhado por eles, virada do século XIX, esses estilos já se encontravam con- que permitiu a consolidação de novos gêneros musicais, solidados e amplamente difundidos, agradando as diver- entre eles, o jazz, o bebop e outros. sas camadas da população (CAZES, 1998, p.17; COLLIER, 1995, p.9). Havia neles a presença efetiva das síncopes e Para o recorte histórico recorremos a um tipo específico de uma variedade de conotações, mudanças de significado música executada no continente americano em meados e uso frequente e impróprio de palavras, não apenas no do século XIX, que não se caracteriza nem como música campo da música popular, mas também na música eru- folclórica, nem como música erudita, muito embora te- dita (KIEFER, 1990, p.24). Um exemplo dessa prática está nha sofrido suas influências. Esse tipo de música também presente em diversas partituras denominadas “tango” ou difere da música popular mais recente, divulgada maciça- “tango brasileiro”, hoje consideradas choros, o que im- mente nos meios de comunicação a partir da década de plica em uma confusão terminológica, falta de informa- 1930 (cinema, rádio, disco e posteriormente a televisão), ção, ou ainda, a “vergonha” de atribuir à música, o nome necessariamente cantada. Essa música contempla alguns verdadeiro -“maxixe”-, uma dança de bordel. Empregar a gêneros basicamente instrumentais, semi-eruditos, no palavra “tango” oferecia um risco menor para a época e sentido estrito do termo, sofisticados, todos provenientes passava a ideia de uma pseudo-erudição. do continente americano: o tango instrumental argentino e uma diversidade de ritmos caribenhos conhecidos por O ragtime e o choro do início do século XX apresentam salsa, identificados hoje por “música afrocaribeña”, que inúmeras semelhanças: ambos eram executados ao piano, apesar de ser tocada em vários países como Porto Rico, muitas vezes pelos próprios compositores; havia a utili- República Dominicana, Colômbia e Venezuela, tem sua zação efetiva das síncopes, muito comum na música afri- origem em , o ragtime nos EUA e o choro no Brasil. cana, mescladas às características de danças oriundas da Europa, como é o caso da polca. Esses estilos, gêneros, ou ainda idiomas, como têm sido recente chamados por alguns autores, têm em comum a 2 – O ragtime peculiaridade de terem transcendido o aspecto ligeiro e O ragtime, publicado pela primeira vez em 1895, tornou- dançante de suas origens, graças ao empenho de alguns se conhecido nos EUA em pouco tempo. Em 1900 já era compositores em elevá-los a um patamar mais erudito, muito popular, encontrado nas partituras2, nos registros possibilitando então a sua apreciação em ambientes mais fonográficos, nos piano rolls 3, executado nos teatros, propícios à audição, sem vínculos com a dança. Dentre bares e bordéis, impulsionando o mercado de partituras, esses autores podemos citar: Ernesto Nazareth, Duke de pianos e gravações (fonógrafos nessa fase) (SAGER, Ellington, Astor Piazzolla, Tom Jobim e George Gershwin. 2009)4. Tais considerações são relevantes ao que é co- nhecido como o ragtime clássico (classic rag), a fase áu- Henrique CAZES (1998, p.17) identifica-os com o termo rea desse gênero, em que ele aparece estabilizado como música popular urbana, pelo forte vínculo estabelecido estilo e escrito em notação tradicional, representado com determinadas cidades onde eles se originaram, mas principalmente por Schott Joplin. No entanto, os termos

72 ALBINO, C.; LIMA, S. R. A., C. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.71-81.

associados ao ragtime têm definições inexatas, receben- A síncope e outras soluções também sincopadas são mui- do muitas vezes rótulos oportunistas de acordo com o to comuns na música executada “de ouvido”, encontrada momento e com os interesses comerciais da época. em todo o Caribe e estados do sul dos EUA. A facilidade dos escravos em executá-la oralmente, foi com certeza São confundidos como ragtime os seguintes nomes, re- determinante para a música desse continente. A síncope, ferentes a estilos, danças, canções, etc: cakewalk; mar- porém, foi raramente encontrada em publicações ameri- cha (característica); two-steps; coon song (estilo vocal canas antes de 1880. pré-ragtime popular até 1901, com letras cruéis e racis- tas frequentemente cantadas por cantores com o rosto Acredita-se que o ragtime tenha nascido da tentativa maquiado de negro - uma das razões da má reputação dos pianistas negros de adaptar ao piano, por meio da atribuída ao ragtime); folk ragtime (de tradições orais); oralidade, aquilo que os músicos itinerantes tocavam no classical rag (o ragtime popularizado por Scott Joplin e banjo. Em 1989, o ensaísta Lafcadio Hearn fez o seguinte James Scott por meio de partituras); fox-trot; novelty comentário: “Did you ever hear negroes play the piano piano; stride piano; etc. (Jasen Apud SAGER, 2009). by ear?... They use the piano exactly like a banjo. It is good banjo-playing but no piano-playing”6 (Hearn Apud É difícil definir com clareza o que é oragtime . A definição SAGER, 2009) que se segue é mais adequada ao ragtime clássico: É difícil saber o que ocorreu anteriormente à fase escrita Ragtime - A genre of musical composition for the piano, gener- e consolidada do ragtime devido à falta de documentação. ally in duple meter and containing a highly syncopated treble lead Não se pode explicar o a partir da primeira publi- over a rhythmically steady bass. A ragtime composition is usually ragtime composed three or four contrasting sections or strains, each one cação, é preciso investigar como se chegou a ela. De nossa being 16 or 32 measures in length. (SAGER, 2009) 5 parte, podemos afirmar que a improvisação deve ter feito parte do processo que culminou nessas publicações, mas, Essas soluções pianísticas agradavam muito ao público nessa fase, ela já não fazia mais parte desse processo. O e foram posteriormente adaptadas para as bandas, em classic rag foi o tipo de ragtime que se perpetuou, devido forma de arranjos. Arthur Pryor - assistente de regente e justamente à escrita. O mesmo ocorreu com as famosas trombonista da famosa banda de John Philip Sousa, aju- improvisações de Bach ao órgão. Elas só são conhecidas dou a difundir esse gênero musical na Europa, em 1900, pelos relatos de seus contemporâneos, pois o que ficou quando para lá excursionou. Ele não apenas compôs a para a posteridade são apenas suas obras escritas. maior parte do material da banda, como também ensinou aos seus integrantes, a maneira de executar as síncopes No início do século XX o ragtime exige para sua inter- de uma forma bem mais tranquila. Apesar do sucesso da pretação uma técnica apurada, alcançada apenas por banda, suas músicas eram publicadas apenas como adap- pianistas com familiaridade em executar as síncopes. tações para piano solo (SAGER, 2009). Apresentamos a seguir um exemplo didático (Ex.1) ex- traído do livro School of Ragtime: 6 Exercises for Pia- A emoção do sincopado, muito presente no ragtime, ge- no, de Schott JOPLIN (1908, p.vii). Como se observa no ralmente causa no ouvinte, um sentimento de propulsão, exemplo, o estilo sincopado da melodia se contrapõe ao de movimento, uma vontade de dançar. Esse deslocamen- acompanhamento mais marcado (stride), o que resultou to das batidas tem forte conotação com a música negra em um estilo balançado e movimentado. executada nas cidades que margeavam o rio Missouri, re- pleto de bares, bordéis e cabarés, lugares esses, onde um O ragtime, assim como o choro, foi escrito em compasso pianista com um repertório digno podia ter um nível de binário de 2/4, como se escrevia comumente a polca. Os vida decente (SAGER, 2009). músicos de jazz, mais tarde, preferiram adotar o compas-

Ex.1 - School of Ragtime: 6 Exercises for Piano, de Schott Joplin: Exercício #1. O autor, que foi também professor de piano e teoria musical, teve a preocupação de escrever a melodia em uma pauta anexa facilitando a visualização das antecipações

73 ALBINO, C.; LIMA, S. R. A., C. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.71-81.

so 4/4 ou 2/2. No início tentou-se escrever o swing, onde blues). Dessa maneira, portamentos, vibratos, glissandos o tempo é dividido em duas partes desiguais - a primeira e outras inflexões executadas com facilidade pela voz hu- nota tem uma duração maior que a segunda na razão de mana, podem ser reproduzidos pelos instrumentistas de 2/3 até 3/4 do tempo. Utilizava-se então uma colcheia sopro no jazz (MALSON & BELLEST, 1989, p.14). pontuada seguida de uma semínima (Ex.2). A não adoção dos elementos verticais da música negra no ragtime pode estar associada ao fato de ser uma música composta quase que essencialmente para o piano - um instrumento que não permite alterações sonoras signifi- Ex.2 – Notação inicial do swing no jazz cativas, pois dispõe de poucos recursos de dinâmica de- pois de ter suas notas articuladas. O mesmo não ocorre Essa escrita não vingou. Os músicos preferiram escrever com os instrumentos de arco e de sopro, vez que eles as colcheias de forma simples (50% do seu valor), como podem produzir alterações propositais após a nota ser mostra o Ex.3. articulada, como crescendos, decrescendos, portamentos, vibratos, alterações de afinação, etc. Tais recursos foram utilizados somente no jazz.

Quanto aos aspectos harmônicos provindos da música ne- Ex.3 – Notação mais comum do swing no jazz gra, o melhor exemplo está no blues. Esse gênero musi- cal, inicialmente cantado, é um gênero-forma inédito no Que deveria ser interpretada da maneira mostrada no Ocidente, geralmente com 12 compassos que utiliza os Ex.4. acordes que representam as funções básicas da tonalidade maior (I, IV e V) dispostos em ordem não convencional (a dominante antecede a subdominante no compasso 9). Com o tempo, agregaram-se a esses acordes, sétimas menores, conferindo à harmonia uma sonoridade peculiar prove- niente da melodia. A melodia blues utiliza notas estranhas Ex.4 – Realização do swing no jazz à harmonia: as blue notes [notas de blues], (b3, b5 e b7) le- vemente bemolizadas (pois não seguem o temperamento), sendo assim melhor interpretadas por instrumentos sem A tarefa da execução do swing fica a cargo do intérpre- afinação fixa. O blues é mais uma forma do que um estilo, te quando a indicação “swing” aparece como uma das adotada pelos jazzistas, formando parte de seu repertório instruções da partitura. O intérprete de jazz deve saber básico. Mais tarde, o blues foi utilizado por músicos de ou- executá-las (tocar a primeira nota com maior duração tros gêneros, como o rock. O grupo Beatles, por exemplo, que a segunda: quanto maior for a permutação, maior surgiu de tentativas de tocar o blues que ouviam em Liver- será o swing). Por isso Jacques RIZZO escreve na contra- pool, cidade que mantém uma base militar americana, re- capa de seu livro Reading Jazz: “no jazz, aquilo que você pleta de soldados negros que praticavam o blues na época. vê não é o que você tem”. Até hoje o intérprete de jazz tem presente essa regra. A Rhapsody in Blue (1924) para piano e orquestra de George Gershwin (1898-1937) é um exemplo típico da O ragtime foi um gênero musical importante até próximo utilização desses recursos musicais verticais. Gershwin, de 1917 (ano da morte de Joplin). Posteriormente, o jazz compositor americano, judeu, filho de russos, que morava executado desde o início do século, começa a superá-lo. no Brooklin - um bairro negro de New York - soube como O ragtime não se transformou no jazz, mas contribuiu poucos, explorar essa sonoridade americana. Já no início para sua formação, sendo até hoje executado sem gran- da obra, o compositor difunde no solo do clarinete a so- des inovações. Em 1920 seus intérpretes já estavam qua- noridade jazzística. Os intérpretes atuais já incorporaram se que esquecidos. em suas execuções alguns desses recursos sonoros que não estão escritos de forma clara na partitura, como o Apesar de os dois gêneros musicais (o jazz e o ragtime) glissando inicial, possível apenas no clarinete, enrique- terem sofrido influência direta da música negra, guardam cendo demais a orquestração, bem como alguns bends certas diferenças. O swing é um dos principais diferen- (desafinações para baixo) que o clarinete faz logo em se- ciais. Isso é bastante perceptível em uma interpretação guida e uma série de recursos utilizados por músicos de jazzística e pode ser observado, por exemplo, nas grava- jazz, como surdinas nos trompetes e trombones, trillos ções de Jelly Roll Morton interpretando classic rags e nas executados de uma forma diferenciada (shakes - um trillo antológicas gravações do Modern Jazz Quartet quando característico do jazz em intervalo de terça menor, come- interpreta Bach com roupagens jazzísticas. No ragtime a çando mais lento com acelerando). Muitos desses outros influência negra está concentrada na rítmica, no jazz ela recursos verticais foram empregados na obra. Gershwin se estende também para os recursos musicais verticais7 consegue incorporar o piano nesse ambiente sonoro, in- melódicos e harmônicos, muito comuns na música ne- clusive como instrumento solista. Na maior parte da peça, gra rural e religiosa americana do século XIX (spirituals e o piano soa como um piano clássico, em outros, o autor

74 ALBINO, C.; LIMA, S. R. A., C. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.71-81.

tenta explorar a sonoridade jazzística dentro de suas pos- Só no final de 1920 o jazz tornou-se uma música para sibilidades8, pois utiliza muitos elementos harmônicos e solista improvisador. Foram Sidney Bechet e Louis Arms- melódicos provindos do blues. trong os responsáveis por essa primeira grande transfor- mação, ao criarem o solo improvisado. Como comenta Outra diferença entre o jazz e o ragtime está no em- Bob Wilber, enquanto Armstrong procurava o caminho, prego da improvisação. Como já foi dito, possivelmen- Bechet já o havia encontrado: “Falando de um modo ge- te, o improviso fez parte da formação do ragtime, mas ral, embora Sidney, no blues, improvisasse livremente, ele como o acesso se dá apenas por meio de partituras, fica nem por isso deixava de seguir a forma do tema e varia- praticamente impossível um resgate de uma tentativa ção, desenvolvendo com segurança um chorus de outro” mais sólida nesse sentido, ficando apenas a suposição (in COLLIER, 1995, p.45). Isso significa que Sidney estava de que a improvisação tenha existido nesse estilo. Por criando melodias novas e ao mesmo tempo respeitando a outro lado, como o jazz praticamente nasce juntamente estrutura rítmica e harmônica do chorus. com o rádio e o disco9, a impressão é outra. Graças à tecnologia, O jazz pôde revitalizar o uso da improvisação Um exemplo de chorus está na canção When the Saints na música popular do Ocidente, reacendendo uma ideia Go Marching In, um hino evangélico tradicional america- musical esquecida: a de que execução e criação musical no tocado frequentemente em funerais de New Orleans não são atividades necessariamente separadas (BAILEY, (Ex.5). Foi muito executada por músicos de jazz, que uti- 1993, p.48). Contrariando o senso comum, o jazz não é lizavam apenas a primeira parte (apresentada aqui) com uma música totalmente improvisada. Há momentos em uma conotação mais alegre. Os músicos solistas improvi- que um dos integrantes tem liberdade para criar suas savam, repetindo a estrutura quantas vezes desejassem. próprias melodias (o momento do solo). Isso acontece A mesma estrutura devia ser obedecida também pelos sobre o chorus – a estrutura harmônica e rítmica de músicos encarregados do acompanhamento. uma melodia que é utilizada como tema. A improvisa- ção também acontece no acompanhamento, que não é A eficiência dos solos sobre o chorus nessa fase do jazz escrito e deve ser executado sobre a mesma estrutura ocorreu devido à utilização de sequências harmônicas harmônica. Essa característica, entretanto, não esteve simples, simétricas (com estruturas múltiplas de 4 com- presente desde sua implantação: passos, geralmente 16 ou 12, como ocorre no blues) Essas bandas inicias, portanto, desenvolveram-se da tradição de curtas e intuitivas. Tais estruturas possibilitavam aos uma música que era, sem dúvida alguma, tocada em conjunto e músicos a criação de novas melodias independentes do não essencialmente improvisada. Os músicos podiam “ornamen- tema e relacionadas à estrutura harmônica, afastando- tar”, mas na banda de marcha esperava-se que tocassem mais ou se, portanto, das variações sobre o tema, ou adornos e menos de acordo com uma linha preestabelecida; o interesse esta- va nas diferentes entradas dos instrumentos, sem contar, é claro, embelezamentos melódicos como se fazia anteriormen- com o elemento rítmico. (COLLIER, 1995, p.36) te. Essa concepção possibilitou ao jazz um desenvolvi-

Ex.5 - When the Saints go Marchin In, Hino religioso tradicional, segue a estrutura rítmica e harmônica (cifrada) da canção de 16 compassos

75 ALBINO, C.; LIMA, S. R. A., C. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.71-81.

mento improvisacional baseado na harmonia, atingindo música, impedindo que a atividade viesse a desapare- um alto grau de eficiência já na década de 40. Foi por cer, como sempre ocorreu no desenvolvimento musical meio dessa concepção que músicos como Charlie Parker, de formas, estilos e sistemas musicais onde um dia a John Coltrane, Miles Davis e tantos outros, puderam se improvisação esteve presente. desenvolver como improvisadores e elevar o jazz à ca- tegoria de música feita por improviso, mesmo que isso O terceiro momento revolucionário do jazz, conhecido não fosse totalmente verdadeiro, mas que lhe conferiu o como free jazz, trouxe consigo um intenso desejo de título de ter reintroduzido a improvisação no Ocidente, renovação, uma proposta radical que teve como lema o que é uma verdade. a negação das leis, das regras idiomáticas e da gramá- tica dos sistemas. Tentou romper com idiomas, clichês Outra característica importante que permitiu ao jazz se e gestos, rumo à liberdade total, mas ainda assim, con- manter vivo, tendo a improvisação como principal ver- tinuou jazz, pois manteve aspectos comuns ao gênero tente criativa, foi a sua incrível capacidade de absorver executado por seus antecedentes, não conseguindo se influências externas sem se desestruturar. O jazz sofreu desvincular dessas características. Como exemplos de influências do ragtime, do blues, da música erudita, da músicos que adotaram essa linha avant-gard citamos: música flamenca, da música brasileira, etc. e ao mes- Ornette Coleman, Archie Shepp, Eric Dolphy, Don Cherry mo tempo em que foi influenciado, também influenciou, e posteriormente John Coltrane, Charles Mingus e Cecil como ocorreu com a bossa nova. São muitas as oportu- Taylor (HOBSBAWM, 2008, p.12). nidades de ouvir músicos de jazz americanos tocando bossa nova com músicos brasileiros: João Gilberto & Após essa experiência radical, a improvisação continuou Stan Getz (1964), Tom Jobim & Frank Sinatra (1967); seu curso básico dentro dos moldes introduzidos por Be- Milton Nascimento & Wayne Shorter (1975), etc. Nessas chet, sempre considerando o respeito à improvisação e ao oportunidades, a bossa nova para esses músicos ameri- improvisador, sendo esse o foco dessa maneira de tocar, canos se desenvolveu como um tipo de jazz (brazilian que independente dos momentos de inovação-tradição- jazz), assim como outras possibilidades: latin jazz; gipsy renovação, manteve a improvisação em um fluxo de ener- jazz; free jazz; cool jazz. Ao ponto de podermos encon- gia constante e renovador, quase como um ideal. trar composições típicas da bossa nova compostas por músicos de jazz americanos, como Pensativa (1962) de 3 – O Choro Clare Fischer e Alone in the morning (1994) de Joshua A improvisação na música popular brasileira se desenvol- Redman. Isso só foi possível com a adoção do chorus, veu de forma bem diferente da verificada nos EUA, apesar que delimita claramente o campo de ação do improvisa- das características semelhantes verificadas nos principais dor, da forma como é entendida no jazz. estilos desses dois países antes do século XX. Podemos di- zer que as influências religiosas e culturais foram deter- O jazz experimentou mais de uma vez o rompimento com minantes nessas diferenças. A religião predominante nos a o passado, buscando novos horizontes. A primeira vez EUA é a protestante, não tão permissiva como a católica, foi por volta de 1930, situação já comentada, com a in- predominante na América Latina. Nos EUA, o negro de- venção dos solos, a segunda com o bebop (meados de veria cantar os hinos evangélicos, em língua inglesa, não 1940) e a terceira, com o free jazz (1960), o que demons- podendo, por exemplo, dançar, tocar um tambor, ou falar tra a sua forte vocação para a renovação. seu idioma nativo. Isso também ocorreu na América Latina, mas sem tanta restrição. Dessa maneira a música negra da O bebop praticado a partir da segunda metade da dé- América Latina é basicamente alegre e dançante, já o blues cada de 1940 constituiu-se em um ato de rebeldia dos americano é arrastado, pesado, chorado, um lamento. jazzistas contra o jazz orquestrado, arranjado e escri- to, tocado pelas orquestras de dança no entre guerras O principal gênero popular no Brasil foi o choro, que (orquestras de swing). Nessas formações orquestrais, apresenta uma história de 130 anos, um período de tem- os músicos tinham cada vez menos espaço para im- po considerável para nossa cultura. Surgiu no início dos provisar. Uma das questões fundamentais do bebop foi anos 1870, antes do ragtime, e assim como outros gêne- o ressurgimento da improvisação nos moldes introdu- ros sul-americanos, teve raízes na forma de executar a zidos por Bechet no final dos anos 1930. Sua execu- polca� (TINHORÃO, 1991, p.103). ção em andamentos rapidíssimos, com harmonias mais complexas, revolucionou a forma de executar o jazz, Assim como ocorreu nos EUA e Caribe, a influência da implicando em sua modernização. Nenhum músico ao música negra na música popular brasileira se fez pre- tocar o bebop poderia fazê-lo da forma como era exe- sente basicamente na rítmica, utilizando muito pouco cutado o swing, pois as antigas soluções simplesmente dos recursos verticais, tão familiares ao jazz e apesar não funcionavam nos andamentos do bebop – muito de sua origem dançante (polca), o choro constituiu-se mais rápido. A atitude de músicos como Thelonious em uma música instrumental para ser ouvida. Contou Monk, Charlie Parker e Dizzy Gillespie, conhecidos por para essa tarefa com músicos consagrados como: An- “inventar” o bebop (HOBSBAWM, 1989, p.365), reite- tonio da Silva Callado, Ernesto Nazareth, Chiquinha rou a importância da utilização da improvisação nessa Gonzaga, dentre outros.

76 ALBINO, C.; LIMA, S. R. A., C. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.71-81.

Da mesma maneira como ocorreu no ragtime, são en- Tanto a oralidade, como a improvisação, foram componen- contrados no Brasil, muitos compositores que executa- tes importantes no desenvolvimento do choro. Comumen- vam seus próprios choros, mesmo que ainda não rece- te, o que se executava musicalmente não era o que estava bessem tal rótulo. Muitos músicos de choro provinham escrito na partitura. É o típico caso de uma música que ainda de bandas musicais, comuns em eventos cívicos estava sendo criada e modificada ao mesmo tempo em que e religiosos. Essas bandas revelaram-se boas formado- era executada. A notação musical transcrita servia apenas ras de músicos e maestros, supõe-se, portanto, que es- de guia para os solistas, da mesma forma como ocorreu ses músicos sabiam ler partituras (CAZES, 1995, p.33; com a música executada no período Barroco. TINHORÃO, 1997, p.118). Recentemente tem surgido uma série de publicações vi- Enquanto o ragtime teve sua produção basicamente diri- sando resgatar o material sonoro deixado pelo choro, de gida para o piano, no choro as execuções se desenvolve- forma fidedigna. As dificuldades têm sido enormes, como ram em conjuntos típicos formados por flauta, cavaqui- nos conta a pianista Maria José CARRASQUEIRA na re- nho, pandeiro e violão - as “rodas de choro”. Só depois de cente reedição da obra do flautista Pattápio Silva: algum tempo o choro foi adaptado para o piano, exigindo ambientes mais aristocráticos. O para piano teve É de suma importância ressaltar que nem sempre Pattápio foi choro fiel ao texto impresso das obras que gravou, mesmo porque, suas como ícone a figura de Ernesto Nazareth (1863-1934), composições ainda não estavam editadas nessa época. Nosso pro- que preferiu adotar a denominação “tango brasileiro” pósito é aclarar somente as diferenças mais significativas, reite- para suas peças, por rejeitar a ideia de que sua música rando seu caráter inventivo de músico-criador, em interpretações pudesse ser considerada “popular”. surpreendentes para um jovem músico de apenas 22 anos de idade (CARRASQUEIRA, 2001, p.14). Nas rodas de choro participavam tanto intérpretes al- Como no ragtime, a presença das síncopes no choro é fabetizados musicalmente como músicos que “tocavam predominante, entretanto, aqui elas aparecem também de ouvido”. Antonio da Silva Calado, considerado um dos no acompanhamento. Observe a presença delas tanto na maiores flautistas de seu tempo, era o único que sabia ler mão direita de Odeon de Ernesto Nazareth (Ex.6), como partituras em seu grupo de choro: na esquerda, diferentemente do que ocorre no ragtime. Ficou então constituído o mais original agrupamento reduzido do nosso país – O Choro, de Calado. Constava ele desde a sua origem O choro, como o ragtime, utilizou preferencialmente a de um instrumento solista, dois violões e um cavaquinho, onde forma rondó “ABACA” com modulações – forma muito somente um dos componentes sabia ler a música escrita: todos os comum em músicas realizadas por bandas e piano no sé- demais deviam ser improvisadores do acompanhamento harmôni- co. (Siqueira, Apud TINHORÃO, 1991, p.104) culo XIX. Essa forma se mostrou bastante inapropriada à

Ex.6 - Utilização de síncopes em Odeon (c.18-25) de Ernesto Nazareth.

77 ALBINO, C.; LIMA, S. R. A., C. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.71-81.

improvisação como a utilizada pelo jazz no final da déca- Expressões “inseridas previamente” e “uma improvisação da de 1930 como explica Paulo SÁ. já ensaiada” estão em desacordo com a concepção de im- provisação como a oferecida, por exemplo, pelo Dicionário Sua forma tradicionalmente ternária com cinco sessões ABACA, Groves de Música: “a criação de uma obra musical, ou de não propicia o mesmo tipo de improviso realizado no jazz, isto é, o chorão não se propõe a expor um tema e depois improvisá-lo sua forma final, à medida que está sendo executada”. Elas na íntegra, porque sua música já é suficientemente rica em sua não trazem a ideia fundamental da improvisação que é a melodia, e além disso os trechos a serem improvisados ficam a criação no momento da execução. Outros dicionários dão critério do chorão e não prescindem de um momento predeter- definições semelhantes (Oxford, 1997; Harvard dic- minado (SÁ, 2000, p.67). tionary of music, 1969; Diccionario de la música Começa a ficar claro que o foco do chorão está na me- Labor, 1954). No entanto, tais práticas são empregadas lodia e não na harmonia. Assim, o desenvolvimento da e entendidas como sendo improvisação por parte dos músicos de choro, equivocadamente, no nosso modo de improvisação no choro não se deu como no jazz. “[...] faz parte do choro entender o chamado improviso através entender. O que ocorre de fato é que a tradição pede que de um pensamento melódico-improvisatório baseado na o músico ao tocar um choro, não respeite plenamente a própria melodia chorona que está sendo executada”(SÁ, partitura, nesse aspecto, alguns improvisam efetivamente 2000, p.67). Mais adiante Paulo Sá declara: e outros, menos capazes de improvisar, aplicam variações “previamente ensaiadas”. Porém, é no acompanhamento No caso do choro não existe um improviso nascido de divaga- do choro que a improvisação ocorre em maior grau, man- ções, isto é, não se espera do músico chorão que ele simplesmen- tendo-se em um nível semelhante ao que deve ter sido te improvise melodias que porventura venham à sua mente ou a no passado. Em cada repetição, em cada nova execução, seus dedos, compondo assim uma espécie de choro instantâneo. percebe-se que esses acompanhamentos são executados O improviso chorão nasce de um choro previamente concebido, portanto, ele possui um referencial que será também o seu limite. de maneira diversa e espontânea. Apesar das restrições Mas tendo em vista que o tipo de improviso que se costuma fazer formais, o choro tem mantido a presença da improvisa- no choro é fundamentado na melodia, o que ocorre, portanto, é ção, sendo, ainda hoje, o gênero onde mais se improvisa e que esta é permanentemente lembrada ou citada durante a im- onde mais se respeita o improvisador no Brasil. provisação. Trata-se por conseguinte de uma variação melódica. [...] No entanto, o problema maior da conceituação dessa maneira chorona de improvisar está justamente no fato que as variações Da mesma forma que o ragtime, a partir de 1930 o cho- realizadas são também improvisadas. [...] a aplicação de variações ro cai no esquecimento, apesar dos 60 anos anteriores de melódicas memorizadas em momentos predeterminados implica glória, perdendo espaço para gêneros cantados nas rádios, na ausência de um improviso [...] embora na compreensão de al- guns chorões estas variações memorizadas continuem a ser o que provenientes do samba (samba-canção, samba-exaltação, eles chamam de improviso (SÁ, 2000, p.69). etc.), gêneros que tiveram como base o próprio choro. Pou- cas intervenções modificaram esse quadro, como a de Ja- Fica claro ainda que o conceito de improviso no choro cob do Bandolin, um dos grandes nomes da música popular é um tanto nebuloso ou impreciso, mesmo entre alguns brasileira. O choro virou uma música de “velhos” e teve de chorões (SÁ, 2000, p.66). Ou seja, muitos músicos dizem esperar até a década de 1970, quando ocorreu um verda- estar improvisando sem, no entanto, estarem. deiro revival� sendo redescoberto por jovens músicos do Rio de Janeiro e Brasília. É hoje uma música muito executada Nas gravações existentes, observa-se recorrentemente e estudada nesses centros, contando com algumas inova- que o músico que executa a melodia (músico solista), ções, ainda tímidas no que se refere à improvisação. não foge muito dela, pois tais modificações seriam “perseguidas” facilmente pelos habilidosos e intuitivos Esse é um componente que se quer preservar. Nos atuais músicos acompanhantes. Esse pensamento norteou intérpretes de choro, percebe-se a tentativa de encontrar grandes músicos, como Callado, Pixinguinha, Pattápio novos espaços para a improvisação. No entanto, é difícil e Jacob do Bandolim. O flautista Daniel DALAROSSA desvencilhar-se das estruturas formais do passado, pro- descreve o que acontece em uma roda de choro no que duto dos 130 anos de tradição. É preciso encontrar uma diz respeito à improvisação: forma de romper com tais amarras caso se queira avançar e manter a improvisação em um patamar mais alto de Numa roda de choro, uma característica importante é a liberdade utilização nesse gênero tão interessante e tão genuina- dada ao solista para conferir sua própria interpretação à música que executa, não tendo necessariamente de seguir a partitura em mente brasileiro de tocar. Fazer o que fez o jazz, se auto- todos seus detalhes. revolucionando, mas não da forma como ele o fez, tendo em vista que as soluções encontradas são incompatíveis Isso faz parte do espírito do Choro. O Chorão interpreta um dado com a forma de pensar do músico de choro (melodia ver- Choro utilizando ornamentos (trilos e mordentes são muito co- muns) previamente inseridos na frase musical, ou cria frases de sus harmonia). Há de se encontrar uma solução inovadora acordo com sua personalidade, ensaiando tudo isso previamente. que possa partir da própria improvisação, mas para isso O Chorão também pode simplesmente improvisar, criando frases seria necessário dar mais espaço e importância a ela. não existentes na partitura original. Rogério Costa, baseado no pensamento de Deleuze, dá Com muita frequência, o Chorão aperfeiçoa uma dada improvi- sação ou criação já ensaiada e tocada muitas vezes em sua vida uma explicação para o fenômeno da improvisação, que musical, até incorporar a frase em seu repertório e consagrá-la pode por sua vez explicar porque o choro reluta em ino- como sua “marca-registrada” (DALAROSSA, 2008, p.17). var: em um primeiro momento criam-se os territórios�.

78 ALBINO, C.; LIMA, S. R. A., C. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.71-81.

Isso se dá por meio da repetição periódica dos compo- potências é que vão fazendo suas transformações ou nentes, criando membranas que o separam do mundo o começo de transformações. Nesse processo de im- exterior. Nesse início, existe apenas o plano, as maté- provisação em que Gismonti se liberta das formas de rias e as energias não formadas. Ainda não há qualidade compreensão de mundo anteriores, consolida-se um nem permanência para se tornar forma. Não há ainda novo território (GODOY, 2000, p.58). um discurso analítico, sistematizador. Só há virtualida- des sendo atualizadas. Em algum momento se atinge a 4. Considerações finais “maturidade” (o segundo momento) do território com Os dois primeiros momentos (os dois primeiros ritornelos suas referências históricas e geográficas, possibilitando de Deleuze) descritos acima ocorreram no choro e no rag- o idioma (o estilo), a expressão e a improvisação idio- time: nasceram do caos, consolidaram-se como estilos, mática, que depois de estabelecidos, oferecem resistên- criaram uma gramática e uma sistemática própria, cria- cia às novas configurações. Por isso as mudanças são ram suas membranas separando-os do caos. Quanto ao lentas e graduais. Os ritornellos (as tais repetições pe- terceiro momento (terceiro ritornelo de Deleuze), o que riódicas), as redundâncias e tudo o que dá identidade e de fato ocorreu em relação a esses dois idiomas? qualidade à performance, acabam gerando membranas tão espessas que acabam impossibilitando o ritmo e a No ragtime, não houve o terceiro momento e o estilo produção. Surge então uma fórmula abstrata, um sis- tornou-se “clássico”, cristalizado, com membranas fecha- tema de reprodução, uma superfície de captura e uma das para o novo, preferindo ser perpetuado nas partituras gramática, possibilitando a sistematização e a criação que ficaram para a posteridade. Nesse instante, nasce o de uma escola a ser imitada (parte abstrata do idioma) jazz (seria ele o terceiro momento renovador?), que por (COSTA, 2003, p.75-6). sua vez, recusou o conformismo, mantendo sempre que possível as membranas abertas para outras possibilidades Nessa territorialização, um ser vivo estabelece suas mem- inovadoras e restauradoras, tendo a improvisação como branas, seus territórios, seus limites, sempre a partir de importante ferramenta de experimentação. procedimentos repetitivos. Porém, após a estabilização do território (o segundo momento), é preciso que se abram Podemos dizer, seguindo o mesmo raciocínio, que o choro e poros nas membranas constituídas e ai, o ritornelo apre- os músicos de choro criaram membranas tão espessas que senta por sua vez um caráter dinâmico e não estático, impossibilitaram a existência do terceiro momento descri- de equilíbrio entre a atitude que visa a manutenção da to acima, preferindo permanecer dentro do conforto ofe- identidade de cada meio em manter tal membrana e uma recido pela tradição a se arriscar por novos horizontes. No atitude inversa que visa sua diluição. Em outras palavras, entanto, temos ouvido cada vez mais intérpretes e músicos da mesma forma que um plano tende a se territorializar�, de choro buscando inovações, adotando a improvisação. tende também a se desterritorializar�, em um processo Esperamos que essas intervenções permitam essa renova- continuo e alternado que depende da fluência do ritmo ção que ainda não ocorreu nesse gênero musical. Permitir entre os diversos meios e da permeabilidade da membra- espaço para improvisação significa aqui renovação, revo- na de cada um (COSTA, 2003, p.66). lução, como ocorreu no início, na gênese dos novos esti- los, inclusive no choro. Precisamos ainda considerar, como Num terceiro momento, partem linhas de fuga por den- mostra a história, que a improvisação é o meio pelo qual tro do território (pequenas escapadas, indisciplinas, que essas novas descobertas serão conhecidas. É por meio dela acontecem em direção ao caos: a viagem de Colombo) que se consegue aglutinar ideias aparentemente desco- que vão lentamente desestruturando o idioma (desterri- nexas em soluções criativas e originais que possibilitam a torialização), e também as infiltrações do caos nos siste- descoberta de um caminho novo, original. mas fechados (as invasões). Aqui, há uma volta da produ- ção em um processo que o autor denomina de bricolagem O choro tenta manter a improvisação em seu escopo, (raspagem), onde acontecem as revoluções, as transfor- como se disso dependesse sua própria vida, talvez sa- mações a partir do que existia. Assim nasceu o Bebop. bendo que se ela desaparecer, ele também desaparecerá, cristalizando-se em uma forma por demais endurecida Sibila GODOY, também baseada em Deleuze, reflete pro- como ocorreu com o ragtime. A solução dos músicos de cesso semelhante vivido pelo músico Egberto Gismonti jazz, que no início também eram músicos de ragtime, foi em suas renovações por meio da improvisação: manter a todo custo a vertente improvisacional, transfor- mando o ragtime, ou qualquer outra influência em jazz Na improvisação, num primeiro momento Gismonti se - uma forma libertária de tocar. Puderam, por meio dessa depara com o caos, para, a seguir, selecionar elementos ideologia, alcançar um alto grau de desenvolvimento nas heterogêneos e organizá-los num “espaço-limitado” questões improvisatórias, que foram solucionadas pelas onde ganham forma e autonomia expressiva. Coloca- próprias possibilidades da habilidade. Curiosamente, o do numa situação em que é obrigado a funcionar a jazz consegue manter-se vivo e inovador, sendo o gênero partir do caos e depois numa organização do caos, o mais influente e desenvolvido no uso dessa habilidade. compositor se abre para forças futuras, arrisca-se im- Esperamos também que o choro encontre soluções ousa- provisando. Arriscando-se, descobre potências e essas das e personalizadas que permitam o desenvolvimento da

79 ALBINO, C.; LIMA, S. R. A., C. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.71-81.

improvisação em níveis mais acentuados. Sabemos, como ção nesse processo. É preciso estudar e sistematizar todo mostra a história, que essas soluções serão encontradas esse conhecimento adquirido em 130 anos de tradição, por meio da própria improvisação, assim, quanto maiores para que se possa então ter coragem e fundamentação forem as oportunidades, maiores serão as possibilidades para transgredir a ordem estabelecida, saindo em busca de inovação. Resta acrescentar ainda o papel da educa- do terceiro momento inovador levantado por Deleuze.

Referências ANÔNIMO. When the Saints go Marchin In. Partitura digitalizada em Finale. BAILEY, Derek. Improvisation: its nature and practice in music. USA: Da Capo Press, 1993. BERLIN, Edward A. A biography of Scott Joplin. Scott Joplin International Ragtime Foundation. 1998. in http://www.scot- tjoplin.org/biography.htm acessado em 28/04/2009. CARRASQUEIRA, Maria José (coordenação). O livro de Pattápio Silva: obra completa para flauta e piano.São Paulo: Irmãos Vitale, 2001. CAZES, Henrique. O Choro: do quintal ao municipal. São Paulo: Ed. 34, 1998. COLLIER, James Lincoln. Jazz: a autêntica música americana; tradução Carlos Sussekind, Teresa Resende da Costa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. COSTA, Rogério Luiz Moraes. Improvisação livre e idiomática: a máquina e o mecanismo, o que deve comunicar a música? In: Música Hodie; Revista do programa de Pós-Graduação Stricto-Senso da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás. Vol. 2 (n. 1/2, 2002): UFG, 2002. COSTA , Rogério Luiz Moraes. O músico enquanto meio e os territórios da livre improvisação. Tese apresentada ao curso de Doutorado do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, 2003. DALAROSSA, Daniel. Uma palavra sobre interpretação e improvisação: In Ernesto Nazareth: clássicos do Choro brasileiro, vol. 1. São Paulo: Global Choro Music Corporation, 2007. DELEUZE, Gilles: GUATARI, Félix. 1837 – A cerca do ritornelo. In mil platôs, vol. 4. Tradução Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997. DICCIONARIO DE LA MUSICA LABOR. Barcelona: Editorial Labor, 1954. DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS. Versão 1.0. Editora Objetiva Ltda., 2001. DICIONÁRIO GROVE DE MÚSICA. Edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994 GODOY, Sibila. Dança das cabeças: a trajetória musical de Egberto Gismoni. In Pesquisa e Música. Revista do Conservató- rio Brasileiro de Música, Volume 5, Número 1, p.58-65, 2000. HOBSBAWM, Eric J. História social do jazz. Tradução Ângela Noronha. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 1989. <> acessado em 22/04/2009. <> acessado em 19/10/2009. JOPLIN, Scott. School of ragtime: exercises for piano by Scott Joplin. New York: Scott Joplin, 1908. KIEFER, Bruno. Música e dança popular: sua influência na música erudita. Porto Alegre: Editora Movimento, 1990. MALSON, Lucien: BELLEST, Christian. Jazz. Tradução Paulo Anderson Fernandes Dias. Campinas: Papirus, 1989. NAZARETH, Ernesto. Odeon. Partitura digitalizada em Finale. RIZZO, Jacques. Reading jazz: the new method for learning to read written jazz music. Miami: Belwin, 1989. SÁ, Paulo. O Improviso do choro. In Pesquisa e Música. Revista do Conservatório Brasileiro de Música, Volume 5, Número 1, p.66-70, 2000. SAGER, David. A History of Ragtime. in: << http://lcweb2.loc.gov/diglib/ihas/loc.natlib.ihas. 200035811/default.html>> acessado em 4/10/2009. SUZIGAN, Geraldo: SUZIGAN, Maria Lúcia. Educação musical: um fator preponderante na construção do ser. São Paulo: CLR Balieiro, 1986. Coleção ensinando-aprendendo, aprendendo ensinando. Cadernos brasileiros de educação. THE NEW HARVARD DICTIONAY OF MUSIC. USA, Harvard University Press Reference Library, 1969. THE OXFORD COM- PANION TO MUSIC: New York: Oxford University Press, 1997. TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema em debate. São Paulo: Editora 34 Ltda. 1997, 3ª edição. _____. Pequena história da música popular brasileira: da modinha à lambada. São Paulo: Art Editora Ltda., 1991.

80 ALBINO, C.; LIMA, S. R. A., C. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.71-81.

Notas 1 Tradução: Essa alegria de improvisar enquanto se canta e se toca um instrumento é evidente em quase todas as fases da história da música. Essa foi sempre uma força poderosa na criação de novas formas, e todo o estudo histórico que se limita à prática ou às fontes teóricas que nos foram deixadas de forma escrita ou impressa, sem levar em conta o elemento de improvisação e a vivência da prática musical, deve ser considerado ne- cessariamente como algo incompleto, certamente um retrato distorcido. Pois quase não há um único campo na música que não tenha sido afetado pela improvisação, nem uma única técnica musical ou forma de composição que não tenha tido origem na prática improvisadora, nem que não tenha sido influenciado essencialmente por ela. Toda a história do desenvolvimento da música é acompanhada por manifestações de impulsos para se improvisar. 2 A venda de partituras para o piano foi sempre um aspecto muito relevante nesses gêneros e comprova que nessa fase a oralidade e a improvisação já não estavam mais presentes no ragtime. Em 1914 a partitura do rag “Maple Leaf Rag”, de Schott Joplin, publicada pela primeira vez em 1899, atinge a marca de um milhão de cópias (SAGER, 200?). 3 Um piano roll é um rolo de papel com perfurações acionado por um dispositivo conhecido como “bar tracker”. A posição e tamanho das perfurações no papel determinam quando e quais notas serão tocadas no piano. Assim que uma perfuração passa a nota soa. É, portanto, um meio de armazena- mento musical, utilizado para gravar, operar ou reproduzir um piano. Foi o primeiro meio que permitiu copiar industrialmente uma execução musical. Tiveram uma produção em massa a partir de 1896. Hoje eles foram substituídos por arquivos MIDI, uma forma moderna de armazenar e controlar os dados de uma execução, que podem por sua vez acionar via eletrônica, o mecanismo de um piano. Muitos softwares de música apresentam uma interface inspirada no piano roll, podendo ser muito mais precisa que a notação musical tradicional. (http://en.wikipedia.org/wiki/Piano_roll) 4 O texto encontra-se no site da Biblioteca do Congresso Americano << http://lcweb2.loc.gov/ diglib/ihas/loc.natlib.ihas. 200035811/default.html>> acesso em 19 de outubro de 2009. Nele não consta a data exata de sua publicação. Sabemos apenas que é posterior ao ano 2000, daí a não inclusão do ano neste texto. 5 Tradução: Ragtime: um estilo de composição musical para o piano, geralmente em compasso binário que contém um alto grau de sincopado na clave aguda, sobre o ritmo estável da clave grave (stead). Uma composição ragtime é geralmente composta de três ou quatro seções contrastantes, cada qual com 16 ou 32 compassos de duração. 6 Tradução: “Você já ouviu negros tocar piano de ouvido?...Eles usam o piano exatamente como um banjo. É um bom tocador de banjo, mas não um pianista”. 7 Utilizaremos o termo “recursos verticais” para referendar os aspectos relativos à altura das notas musicais. São aspectos que não são basicamente rítmicos (horizontais): são o sistema de afinação, os portamentos, os glissandos, a harmonia e uma série de sonoridades encontradas principalmente na música negra americana, e aqui se evidencia a influência religiosa. Esses aspectos são muito difíceis de serem transcritos no sistema de notação tradicional. É quase impossível escrever literalmente a interpretação de Ray Charles em Georgia on my mind. No entanto, ainda que isso pudesse ser realizado, seria impossível interpretá-la de forma semelhante utilizando apenas a partitura e quanto mais detalhada a partitura, maiores as chances de soar falso. 8 Os músicos de jazz sabem utilizar muito bem o piano no blues, buscando efeitos compatíveis com os outros instrumentos, como apogiaturas e clusters. Um bom exemplo a ser ouvido é o pianista Jelly Roll Morton (1890-1941), que se auto intitula o inventor do jazz com gravações disponíveis inclusive em piano-roll. 9 Não exatamente no mesmo instante, mas no momento em que tanto o rádio como o disco tornam-se populares e acessíveis à população em geral. 10 A polca foi apresentada no Rio de Janeiro em 1845 e causou um verdadeiro fascínio nas Américas, servindo inicialmente ao gosto da recente classe média surgida da revolução industrial. O ritmo em 2/4, em andamento allegretto transmitia uma vivacidade inédita e ao mesmo tempo coerente com a euforia econômica do momento. Essa dança de par unido, como a valsa, era tocada ao piano - um instrumento considerado mais aristocrático naquela época. Ela influenciou outros gêneros musicais provenientes da América do Sul a partir da metade do século XIX, como o choro e o tango. Não se tem certeza de que o ragtime americano tenha recebido essa influência. Não há dúvidas, porém, de que a sincopação desse estilo tenha tido suas raízes na música negra. José Ramos Tinhorão declara que o escritor Machado de Assis, que tinha como tema predileto para suas obras a vida carioca, mais especificamente a das elites e da alta classe média da segunda metade do século, cita a polca em oito de suas obras (TINHORÂO, 1991, p.59-60). 11 Interesse renovado por certo costume, tendência, estilo de música, de literatura etc. (In: HOUAISS) 12 Conceito baseado na Ontologia. DELEUZE assim entende o território: “O território é primeiramente a distância crítica entre dois seres de mesma espécie: marcar suas distâncias. O que é meu é primeiramente minha distância, não possuo senão distâncias. Não quero que me toquem, vou grunhir se entrarem no meu território, coloco placas” (DELEUZE & GUATARI, 1997, p.127). “O território é o produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos. [...] Ele é construído com aspectos ou porções de meios. Ele comporta em si mesmo um meio exterior, um meio interior, um intermediário, um anexado. Ele tem uma zona interior de domicílio ou de abrigo, uma zona exterior de domínio, limites ou membranas mais ou menos retráteis, zonas intermediárias ou até neutralizadas, reservas ou anexos energéticos. Ele é essencialmente marcado por “índices”, e esses índices são pegos de componentes de todos os meios: materiais, produtos orgânicos, estados de membrana ou de pele, fontes de energia, condensados percepção-ação. [...] Há território a partir do momento em que há expressividade do ritmo. (DELEUZE & GUATARI, 1997, p.120-1). 13 Ações e repetições (ritornelos) dos seres vivos dentro dos territórios que têm dentre outras funções, delinear o território. Por exemplo, os diversos cantos dos pássaros. 14 Outro tipo de ação, o ritornelo do segundo tipo, uma força evasiva que parte de dentro do território para fora dele em busca do desconhecido (a viagem de Colombo).

César Albino é Mestre em Música pelo IA-UNESP, Bacharel em Saxofone e Licenciado em Música (FMCG). Estudou sa- xofone com Roberto Sion, José Carlos Prandini e Eduardo Pecci no CMBP e CLAM. Possui pós-graduação lato sensu em educação musical, área de concentração-Práticas pedagógicas (FMCG). Leciona improvisação, instrumento e prática de conjunto nos cursos de Bacharelado em Música popular da FMCG. É professor da Escola Técnica do Governo do Estado de São Paulo de Artes (ETEC) e da Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP). Autor dos métodos de saxofone (2003) e flauta transversal (2005) pela editora Gondine. Sonia Albano é Doutora em Comunicação e Semiótica, área de Artes-PUC-SP; Pós-Doutora em Educação (GEPI-PUC- SP); Especialista em interpretação musical e música de câmara (FMCG); Bacharel em Direito (USP); Diretora e coor- denadora pedagógica dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da FMCG; Professora do Mestrado e Doutorado em Música do IA-UNESP; pesquisadora do GEPI-PUC/SP; possui várias publicações em anais nacionais e internacionais, revistas, além de livros e coletâneas.

81 COSTA, A. Tiger Rag na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.82-88.

Tiger Rag na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France: história, análise e práticas de performance

Adriana Costa (Orquestra Opus, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: Estudo sobre a assimilação do jazz na cultura popular francesa dos anos de 1930 e criação de uma sociedade de entusiastas desse estilo, especialmente em torno do Le Quintette du Hot Club de France. A transcrição e análise de Tiger Rag, música dos membros da Original Dixieland Jazz Band (Nick La Rocca, Eddie Edwards, Tony Sbarbaro, Larry Shields e Harry da Costa) na interpretação do Le Quintette (LE QUINTETTE DU HOT CLUB DE FRANCE, 1934, remas- terizado em 1993) revela suas práticas de performance, especialmente de seus solistas: Django Reinhardt, no violão, e Stephane Grappelli, no violino. Palavras-chave: Django Reinhardt; Stephane Grappelli; jazz na França, Le Quintette du Hot Club de France.

Tiger Rag as performed by the Quintet of the Hot Club of France: history, analysis and performance practices

Abstract: Study about the assimilation of jazz into French popular culture of the 1930s and the emergence of a society of jazz enthusiasts, especially around Le Quintette du Hot Club de France. The transcription and analysis of Tiger Rag, composed by the members of the Original Dixieland Jazz Band (Nick La Rocca, Eddie Edwards, Tony Sbarbaro, Larry Shields and Harry da Costa) and performed by Le Quintette reveal performance practices of its main soloists: Django Reinhardt on the guitar and Stephane Grappelli on the violin. Keywords: Django Reinhardt; Stephane Grappelli; jazz in France, Le Quintette du Hot Club de France.

1 - As origens do Le Quintette du Hot Club Desde a sua formação em 1932, os diretores do Hot Club de France planejavam formar uma orquestra para enfatizar o valor Depois de alguns anos de exposição ao jazz, os músicos do então chamado “hot” jazz. O pianista negro norte- franceses começaram a formar suas próprias bandas no americano Freddy Johnson liderou a primeira orchestra final dos anos 1920. No começo, os esforços desses pio- do Hot Club, a qual ele chamou de Os Harlemitas. John- neiros eram tênues em comparação com as bandas norte- son foi à França pela primeira vez em uma turnê com a americanas. Entretanto, no começo dos anos 1930, a Fran- orquestra de Sam Wooding em 1928; em 1929, ele fixou ça se tornou um dos primeiros países europeus a produzir residência na França e formou sua própria banda. Os um grupo de músicos de jazz de reconhecida competência Harlemitas eram formados por Arthur Briggs no trompe- internacional. Para elevar o nível de compreensão e apre- te, “Big Boy” Goodie no sax tenor, Peter Duconge na cla- ciação do jazz na França, Hughes Panassie, um entusiasta rineta, Marceo Jefferson na guitarra, Juan Fernandez no do jazz, criou e presidiu uma associação: o Hot Club de baixo, e Billy Taylor na bateria (DELAUNAY, 1985, p.64). France (daqui para frente chamado apenas de Hot Club). O resultado mais importante do clube, entretanto, foi a Segundo Laurie Henshaw, que escrevia para a revista bri- formação de uma banda oficial para representar a orga- tânica Melody Maker, Os Harlemitas “tocavam sucessos nização: Le Quintette du Hot Club de France (daqui para musicais com muito swing, sob a batuta de Freddy Jo- frente chamado apenas de Le Quintette). nhson” (HENSHAW, 1942, p.4; todas as traduções são da

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 12/01/2010 - Aprovado em: 22/06/2010 82 COSTA, A. Tiger Rag na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.82-88.

autora do presente artigo). Embora obtendo um suces- quando Andre Ekyan, Jungo [sic.] Reinhardt, seu irmão so considerável, Johnson deixou a França em 1934 para e Al Romans se juntaram à Banda do ‘Big Boy’. Foi um tocar na Holanda. Sentindo que a falta de uma banda delírio encarnado, delírio que durou a noite toda” (DE- oficial poderia diminuir o interesse do público pelo jazz, LAUNAY, 1985, p.64). o secretário do Hot Club, Pierre Nourry, foi procurar um substituto a altura de Os Harlemitas. O jovem Django Reinhardt se destacou dos seus con- temporâneos franceses como um violonista que sabia Na época em que Johnson foi embora de Paris, ha- improvisar. Nourry planejava começar uma banda com via muitos outros músicos norte-americanos de jazz Reinhardt como líder, uma ideia que se tornou realidade tocando nos clubes e cabarés de Paris que poderiam quando o baixista Loius Vola formou uma banda para assumir o papel de promover o hot jazz. A banda de tocar na hora do chá no Hotel Claridge em Paris. Esta Willie Lewis tocava no Florence na Rue de Blance; a banda apresentava uma combinação de música popular banda do trompetista Harry Cooper tocava no Ponto 2 e, ocasionalmente, jazz, onde tocavam os melhores mú- todo sábado à tarde e tinha exelentes músicos como o sicos de jazz da França. A banda de Vola revezava com clarinetista Jerry Blake e o saxofonista Booker Pitman. a orquestra de tango de Manuel Pizarro. Enquanto a or- No começo do verão de 1934, o presidente honorário questra de tango tocava, os músicos da banda de Vola do Hot Club, Louis Armstrong, passou 18 meses em Pa- passavam o tempo livre nos bastidores. Num desses in- ris, onde fez dois concertos na Salle Pleyel em novem- tervalos, o violinista Stephane Grappelli foi trocar uma bro daquele ano. De acordo com o crítico e empresário corda de seu violino e encontrou o violonista Django de jazz francês Charles Delaunay, o Hot Club não tinha Reinhardt tocando. Grappelli se recorda que Reinhardt condições financeiras de contratar Armstrong, mas sua “me pediu para tocar uma frase que ele tinha acabado presença em Paris foi uma inspiração para os músicos de inventar. O resultado nos agradou e nós continua- parisienses. Portanto, até 1934, o Hot Club ainda não mos tocando outras músicas” (GRAPPELLI, 1992, p.56). tinha uma banda oficial. Dinah, uma canção popular dos anos de 1930 foi a pri- meira canção que eles tocaram juntos. No começo, eles Apesar do grande número de músicos norte-americanos tocavam para seu próprio divertimento, mas logo outros de jazz em Paris, os dirigentes do Hot Club sentiam a ne- músicos começaram a notar a banda. Um dia, o irmão cessidade de ter “uma banda apenas com músicos fran- de Reinhardt, Joseph, se juntou ao duo fazendo o acom- ceses” (KENNEY, 1984, p.19). Acima de tudo, eles espe- panhamento no violão e Vola se juntou a eles no con- ravam quebrar o mito vigente de que apenas os negros trabaixo. Os encontros diários no Hotel Claridge foram norte-americanos sabiam tocar jazz. No começo dos seguidos por ensaios à tarde no restaurante Alsace em anos 1930, a ideia de “jazz francês” ainda era recebida Montmartre; o quarteto passou a causar sensação na com ceticismo. O musicólogo francês Blaise Pesquinne pequena comunidade de jazz francesa. afirmou que, “não apenas é impossível para um francês escrever um bom jazz, mas, mesmo que conseguisse, não A originalidade do grupo, tocando com instrumentos nor- haveria ninguém para tocar” (JORDAN, 1934, p.280). Em malmente associados à música erudita, chamou a aten- 1933, entretanto, o jazz francês já apresentava um mo- ção de Pierre Nourry, o secretário do Hot Club. A princi- vimento de expansão que permitia outras interferências, pio, Nourry tinha a intenção de contratar o quarteto para como pode ser exemplificado pela iniciativa do Hot Club acompanhar um jovem cantor francês, Raymond Valeda. que começou a misturar músicos franceses a norte-ame- Em setembro de 1934, Nourry, convidou Charles Delaunay ricanos nos seus concertos. para ouvir o quarteto e ter uma segunda opinião. Delau- nay descreveu o que ele ouviu: “Lá em um canto, quatro Em 10 de novembro de 1933, dois jovens músicos to- homens tocavam uma música surpreendente pela sua veia caram pela primeira vez no Hot Club: Noel Chiboust no melódica, pela delicadeza de sua improvisação, pela preci- trompete e Alix Combelle no saxofone (DELAUNAY, 1985, são de seu acompanhamento” (DELAUNAY, 1985, p.70). A p.66). Em fevereiro do ano seguinte, o violonista Django banda impressionou Delaunay. Ele previu uma coisa única: Reinhardt, então com 24 anos, também se apresentou a ideia de que “jazz sem trompetes ou bateria” agradaria pela primeira vez. O crítico da revista Jazz Tango Jaques ao público francês (SMITH, 1987, p.61). Ele entendeu que Bureau escreveu a respeito da performance de Reinhardt, pessoas que não gostavam de jazz com trompetes, iriam “pode-se dizer que ele foi a revelação do concerto. Ele é gostar de jazz com instrumentos de cordas. Além disso, os um músico curioso com um estilo como nenhum outro” instrumentos de cordas formam a base da música clássica e concluiu “nós agora temos um grande improvisador em europeia e estariam mais em sintonia com o gosto francês Paris” (DELAUNAY, 1985, p.64). “do que o som dos instrumentos de metal das bandas norte- americanas” (KENNEY, 1984, p.20). Enquanto os diretores do Hot Club procuravam por uma expressão francesa do jazz, ocorria também um mistura Atraídos pela ideia de um grupo só com instrumentos de espontânea de músicos norte-americanos e franceses. A cordas, a diretoria do Hot Club sugeriu uma gravação do respeito de uma apresentação no Hot Club em março de grupo com a gravadora Odeon. Para este propósito, o quar- 1934, a revista Jazz Tango observou: “Foi o fim do mundo teto adicionou uma terceira guitarra rítmica por sugestão

83 COSTA, A. Tiger Rag na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.82-88.

de Reinhardt, que sentiu que deveria ter duas guitarras simplesmente como “o violinista de Django” (MORGENS- o acompanhando quando ele fazia os solos, assim como TERN, 1967, p.18). A contribuição de Grappelli no desen- acontecia com Grapelli. Portanto, assim nasceu a combi- volvimento do Le Quintette, entretanto, não deve ser su- nação que se tornou a banda oficial do Hot Club. No final, bestimada: ele era o principal arranjador do quinteto, além Grappelli e Reinhardt eram os líderes do Le Quintette, com de ser o responsável pela transcrição das músicas, já que Joseph Reinhardt e Roger Chaput nas guitarras rítmicas Reinhardt não sabia notação musical e tocava tudo de e Louis Vola no contrabaixo. Embora este fosse o acordo ouvido. Algumas das canções famosas do quinteto, como inicial, logo no começo, Reinhardt já detinha o maior pres- Minor Swing e Djangology foram escritas em parceria. Gra- tígio no meio jazzístico francês. Para melhor entender a ppelli fornecia estabilidade, responsabilidade, e manteve o singularidade do Le Quintette, vamos analisar sua música grupo operante mesmo durante as inúmeras ausências de e compreender o desenvolvimento de suas figuras centrais. Reinhardt, que muitas vezes preferia jogar cartas a cumprir seus compromissos com o Le Quintette. Além disso, como 2- Django Reinhardt (1910-1953) explica Alain Antonietto, “o sucesso do grupo era devido, Reinhardt era cigano e herdeiro de uma tradição musi- sobretudo, à mistura perfeita de temperamentos musicais cal que tinha como característica “a variedade rítmica, que eram completamente diferentes, antagônicos mesmo” as síncopes, a música dançante, o virtuosismo, a paixão e (ANTONIETTO, 1990, p.12). O estilo de Grappelli, cheio da a complexidade na improvisação” (KENNEY, 1984, p.17). elegância e imaginação, complementava o senso rítmico e Sua habilidade de construir um vocabulário musical vindo harmônico de Reinhardt. Junto com outros pioneiros como da tradição cigana, que incluía incríveis frases cromáti- Joe Venuti e Stuff Smith, Grappelli deu um passo à frente, cas, trilos, vibrato rápido, e aplicar estes efeitos ao jazz introduzindo o violino como um instrumento que poderia norte-americano, o tornou uma lenda do violão no jazz. ser usado no jazz. Ele de fato se tornou uma lenda do vio- O que também contribuiu para sua fama de Reinhardt foi lino no jazz. Grappelli, que foi o membro do Le Quintette o fato de que ele tocava passagens incrivelmente rápidas com maior longevidade, morreu aos oitenta e nove anos, com apenas 2 dedos (indicador e médio) de sua mão di- alguns meses após ter dado seu último concerto. reita. Isto se devia ao fato de que os outros 2 dedos (anu- lar e mindinho) ficaram paralisados devido a queimaduras 4-Gravações do Le Quintette du Hot Club de decorrentes de um incêndio no trailer onde ele morava, France quando tinha 18 anos de idade. Reinhardt conseguia oca- Durante sua existência entre 1934 e 1948, Le Quintette sionalmente tocar acordes usando os dedos paralisados. realizou 265 gravações. Destas, 125 foram feitas entre 1934 e 1939 e tiveram Grappelli ao violino. Em 1940, no Quando Reinhardt estourou na cena do jazz no final de início da Segunda Guerra Mundial, o quinteto estava em 1934, seu impacto no desenvolvimento do violão como turnê na Inglaterra, onde era muito popular. Grappelli de- um instrumento solo no jazz foi inigualável. De 1928 até cidiu ficar na Inglaterra durante a guerra, enquanto que alguns meses antes de sua morte em 1953, Reinhardt Reinhardt e os outros membros do grupo retornaram à gravou mais de 850 faixas, na maior parte jazz norte- França, ocasionando uma cisão na história do quinteto. americano, e também suas próprias composições. Até De volta a Paris, Reinhardt continuou a tocar e gravar hoje, muitos o consideram como o único jazzman euro- com diferentes grupos. Um ano mais tarde, ainda sem um peu a “ter dado à América um estilo instrumental novo co-líder, Reinhardt remontou o Le Quintette (mantendo tão influente quanto qualquer outro desenvolvido na pá- o nome original), substituindo Grappelli pelo clarinetista tria do jazz” (CHERRET, 2001, p.58). Este estilo teve mui- Hubert Rostaing. Em vez de uma segunda guitarra rít- tos seguidores nos Estados Unidos e na Europa, e tornou- mica, Reinhardt contratou o baterista Pierre Fouad. O Le se mais tarde conhecido como gypsy jazz (jazz cigano). Quintette com clarineta e bateria, “americanizado” em sua instrumentação, se tornou extremamente popular Os solos de Reinhardt cheios de lirismo e virtuosidade lhe durante a ocupação nazista. Entre 1940 e 1943, o novo valeram o título de gênio. “Um gênio no jazz,” escreveu quinteto gravou pelo menos 27 faixas. Com o final da George Hoefer para a revista de jazz Down beat, é o ins- guerra, Grappelli retornou a Paris e o antigo quinteto foi trumentista “que ao improvissar, o faz de uma forma tão reagrupado em 1946. De 1946 a 1948, o antigo quinteto genuína e inimitável, que foge de categorias pré-estabe- (com Grappelli) e o novo (com o clarinetista Hubert Ros- lecidas, como é o caso de Duke Ellington, Art Tatum e taing) gravaram pelo menos 105 faixas. Django Reinhardt.” (HOEFER, 1966, p.21). Ao longo de sua carreira, Reinhardt obteve uma imensa fama tanto na Eu- 5- Origem do ragtime ropa quanto nos Estados Unidos, onde, em 1946, foi um O rag ou ragtime é um gênero musical precursor do jazz, convidado por Duke Ellington para uma turnê. originado com os negros da região do meio-oeste norte- americano e que alcançou grande popularidade entre o 3 - Stephane Grappelli (1908-1997) final do século XIX e meados dos anos de 1930. Inicial- O outro solista do Le Quintette teve a difícil tarefa de ser mente idealizado para o piano, o ragtime absorveu in- parceiro de um gênio. Por causa da fama de Reinhardt, fluências de formas musicais europeias, em particular a alguns críticos não reconheceram inteiramente a contri- marcha (SCHULLER, 1968, p.34). Assim como ocorre na buição de Grappelli para o quinteto, referindo-se a ele marcha, a forma do ragtime é baseada em uma estrutura

84 COSTA, A. Tiger Rag na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.82-88.

de 4 seções, (com versos para cada seção, no caso do rização de 1993 da Classics Records francesa (LE QUIN- ragtime cantado) sendo que o Trio, que ocorre na terceira TETTE DU HOT CLUB DE FRANCE, 1934, remasterizado seção, geralmente há uma modulação para a subdomi- em 1993). Nela, foi utilizado o sistema tradicional de nante. Outras semelhanças entre as duas formas musicais notação com seus símbolos para dinâmica, fraseado, são o andamento 2/4 ou 4/4 e, em muitos casos, a indi- acentos e ataque. Entretanto, devemos lembrar, como cação Tempo de marcia, como no Maple Leaf Rag de Scott Robert Witmer explica, que “a essência do jazz encon- Joplin, um dos mais populares de todos os tempos. tra-se precisamente nas características que a notação padrão não pode facilmente mostrar” (KERNFELD, 1988, Entre os compositores mais importantes de ragtime es- p. 923). Portanto, elementos como sutilezas na afinação tão James Scott e Joseph Lamb, sendo que o primeirp e ritmo são difíceis de representar no papel. Para forne- ganhou maior notoriedade tanto nos Estados Unidos cer uma representação mais aproximada das gravações, quanto no exterior, chegando a influenciar composito- alguns sinais e símbolos foram acrescidos. Por exemplo, res eruditos como Eric Satie, Claude Debussy e Charles ghost notes (“notas fantasmas”), cuja articulação sutil e Ives, que também escreveram neste estilo (TIRRO, 1993, quase que apenas percussiva as tornam características, p.19). A História do Soldado de Igor Stravinsky de 1918 são representadas por um “x”; os glissandi são notados traz, entre os seus movimentos e ao lado de um Tango com uma linha reta; o bend (“entortada”ou seja, ligeira e uma Valsa, um Ragtime, refletindo três estilos musi- caída na afinação seguida imediatamente por um retor- cais dançantes em voga no período da I Guerra Mundial no à nota original) é notado como um “v”. (BORÉM, 2003). Tanto a Seção A quanto a Seção B têm oito compassos Embora a forma do ragtime varie de uma composição para cada. Nesta transcrição, cada chorus (repetição com- outra, a estrutura mais comum segue a seguinte sequência: pleta da forma), que ocorre na seção D é mostrado pela barra dupla na partitura e pelo número da repetição. Introdução: 4 c. A numeração dos compassos de cada chorus é sempre Seção A: 16 c. com repetição de 1 a 32. Assim, a indicação chorus 2 - c.23-24, por Seção B: 16 c. com repetição exemplo, significa os compassos 23 a 24 do segun- Seção C ou Trio (modulação para a subdominante): do chorus. Na discussão da transcrição, a oitava que 16 c. com repetição vai do Dó central até o Si logo acima, será chamada Seção D: 16 c. com repetição de terceira oitava; assim, essas notas são designadas como Dó3 ao Si3; na oitava acima desta, são desig- A harmonia empregada geralmente é convencional, ba- nadas como Dó 5 a Si 5, e assim por diante. Outros seada principalmente nas relações de tônica, dominante elementos que aparecem na forma em Tiger Rag são e subdominante. O ritmo geralmente se caracteriza por uma coda e um break (interrupção curta da música du- uma melodia sincopada que se apóia sobre uma linha rante um solo por todos, incluindo a seção rítmica). O não-sincopada no baixo (Ex.1). sistema de notação da harmonia utilizado é o de sím- bolos de acordes baseado no nome das notas em inglês 6-Considerações gerais sobre a transcrição começando pelo Lá: A, B, C, D, E, F e G. Os acordes da de Tiger Rag transcrição anotados são os acordes ouvidos na grava- Tiger Rag foi gravada pelo Le Quintette em 1934 e re- ção, embora os mesmos possam diferir dos acordes ori- lançado diversas vezes. A transcrição que serviu de ginais da canção. Todas as colcheias, a menos que seja base para o presente artigo (ORIGINAL DIXIELAND JAZZ indicado, soam como swing eights (“colcheias swinga- BAND, 2011, veja a partitura completa neste volume de das”), ou seja, duas colcheias seguidas soam como uma Per Musi às p.89-92 foi feita a partir de uma remaste- semínima seguida de colcheia em tercinas.

Ex.1 – Típico padrão de melodia sincopada sobre baixo não-sincopado do ragtime.

85 COSTA, A. Tiger Rag na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.82-88.

7 - Práticas de Performance em Tiger Rag (c.28-29) com ataques percussivos (Ex.4). Aqui, Reinhardt Uma análise da transcrição da gravação de Tiger Rag explora seguidamente o motivo formado por três semicol- (veja a edição de performance completa neste número cheias cromáticas ascendentes, motivo que reflete uma téc- de Per Musi) pelo selo Ultraphone (P-77162) revela bem nica instrumental muito idiomática e comum no violão. Ao o estilo do Le Quintette. Considerado um clássico do acentuar a primeira das três notas deste motivo, ele reforça ragtime, Tiger Rag era tradicionalmente tocado em an- a ideia de uma métrica ternária (3/8) dentro da rítmica bi- damento rápido; nesta versão do quinteto o andamento nária prevalente (2/4), recurso que se tornou cada vez mais é a semínima a 165. A forma e harmonia originais da comum na improvisação do jazz. O break é finalizado por música são as seguintes: uma extensão do motivo cromático, cujo caráter conclusivo é enfatizado pela aceleração do mesmo por meio de fusas. Seção A: 8 compassos repetidos em SibM Seção B: 8 compassos em Fá M A Seção D em Lá b M é a seção dos solos de improvisação, Seção A: 8 compassos em SibM composta de quatro choruses. Reinhardt começa sua im- Seção C (Trio): 24 compassos em MibM provisação no chorus 1 com uma anacruse de Lá b (sobre Seção D: 32 compassos em LábM um acorde de Mi b M) no compasso 49, antecipando a tô- nica do acorde seguinte. Mas, ao invés de confirmar esta A versão do Le Quintette manteve a forma original. Na tônica e de uma maneira incomum para a época, ele toca a Seção A, c.1-8, em Sib M, Reinhardt e Grappelli tocam sétima maior do acorde (a nota Sol 4), como mostra o Ex.5. sua versão do tema em sextas paralelas como podemos observar no (Ex.2). Com uma palheta, Reinhardt era capaz de tocar tremo- li extremamente rápidos, como ocorre, por exemplo, no Na Seção B, nos c.10-17, o violino toca o novo tema em chorus 1 (c.21-24), uma habilidade provavelmente ad- Fá M. Após o retorno da Seção A, nos c.18-25, segue a vinda da tradição cigana. Grappelli começa seu solo no Seção C , o trio, (c.26-49) em Mib M. Nesta seção, Gra- chorus 2 tocando um motivo de duas notas, Mib 6 e Dó 6 ppelli toca uma frase diatônica descendente no c.26-27 (c.1-5). Ele varia as duas notas mudando seu ritmo cada que se distancia da melodia original, dando a ela um efei- vez que elas aparecem. No chorus 2 (c.23 e c.25), Gra- to blues, ao tocar a terça do acorde como terça menor (a ppelli toca notas blue: a sétima Dób 6 sobre o acorde nota Solb 5, no c.26) e também a sétima como sétima de Db M. O chorus 3 começa com um solo do contrabai- menor (Réb 5, no c.27) sobre o acorde de Mib M (Ex.3). xo (c.1-14) de Louis Vola consistindo de frases escalares, mas o que segue, ao invés de uma continuação da impro- Diferentemente do estilo de frases em legato de Grappelli, visação, é um arranjo do grupo onde parte da melodia é Reinhardt toca o próximo break de dois compassos executada pelo violino e, depois, pelo violão.

Ex.2 – Tema de Tiger Rag em sextas paralelas na performance de M, Reinhardt e S. Grappelli

Ex.3 – Notas blue em improviso de S. Grappelli em Tiger Rag.

86 COSTA, A. Tiger Rag na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.82-88.

Ex.4 – Motivo cromático sugerindo métrica ternária na improvisação de D. Reinhardt na seção C de Tiger Rag.

Ex.5 – Improvisação de D. Reinhardt em Tiger Rag com ênfase na sétima maior.

Ex.6 - Improvisação de S. Grappelli em Tiger Rag utilizando apenas duas notas.

Grappelli antecipa sua improvisação no chorus 4 (o último) Phillipe Brun chegou a tocar bem o trompete num estilo al- de uma maneira parecida com o chorus 3, isto é, alternan- tamente influenciado por Bix Beiderbecke. No começo de sua do entre duas notas e variando seu ritmo, desta vez por carreira, Andre Ekyan soava bem parecido com Frank Trum- bauer no saxofone do alto. O jovem Alix Combelle só pensava sete compassos (c.145-151): o Láb 6 e o Fá 6, que são a tô- em Coleman Hawkins. nica e a sexta do acorde de Láb M, respectivamente (Ex.6). Entretanto, Reinhardt e, talvez com menos destaque, 8 - Considerações finais mas igualmente importante, Grappelli, se destacaram O violonista Django Reinhardt e o violinista Stephane Gra- entre seus contemporâneos europeus, sendo os primei- ppelli lideraram, a partir de 1934 e por quase 15 anos, um ros a desenvolver um estilo altamente pessoal dentro dos melhores grupos de jazz que surgiram na Europa. No do jazz na Europa. Sua importância histórica ainda desejo de conciliar a música clássica com o jazz, a comu- pode ser observada pelas constantes re-edições das nidade francesa interessada no gênero estimulou e apoiou gravações do Le Quintette, que parecem ter um público a ascensão do Le Quintette du Hot Club de France. Nas big sempre renovado. bands dos anos da década de 1930, a seção rítmica consis- tia principalmente de piano, guitarra, bateria, e baixo. En- O estilo de improvisação de Reinhardt e Grappelli pode tretanto, a originalidade do Le Quintette, formado por um ser verificado através de uma análise da transcrição de violino e um violão solistas, acompanhados por dois violões Tiger Rag, onde podemos também constatar a opinião e um baixo, aliados ao virtuosismo e genialidade de Django comum, de que Reinhardt geralmente exibia uma impro- Reinhardt e Stephane Grappelli, contribuiu para uma nova visação mais sofisticada do que Grappelli. formação instrumental no jazz e ajudou a elevar o nível de apreciação e de sua performance na França. Ainda nos dias de hoje, bandas que tocam no estilo do Le Quintette podem ser encontradas em locais referenciais Até o começo dos anos de 1930, a maioria de músicos como o Hot Club of San Francisco, Hot Club of Detroit, e de jazz franceses imitava os jazzistas norte-america- outros lugares em todo o mundo, demonstrando que o nos, o que é ilustrado na fala do musicólogo de jazz gypsy jazz e as tradições do grupo Le Quintette du Hot William KENNEY (1984, p.22): Club de France continuam vivas.

87 COSTA, A. Tiger Rag na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.82-88.

Referências de texto ANTONIETTO, Alain. Djangology. Notas do CD.EMI France, v.1-11, 1990, p.12. BORÉM, Fausto. O anticlímax da História do Soldado de Stravinsky: proporção, coerência harmônica e relação texto- música na sequência Pequeno Coral, Canção do Diabo e Grande Coral. Em Pauta. v.12. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p.131-154. CHERRET, Ted, ed. The Genius that was Django Reinhardt. London: privately printed, 2001, p. 58. DELAUNAY, Charles. Delaunay’s Dilemma: De la Peinture au Jazz. Macon: Editions W, 1985, p.64. GRAPPELLI, Stéphane avec Joseph Oldenhove, Jean Marc Bramy. Mon Violon pour tout Bagage: Mémoires. Paris: Calmann- Lévy, 1992, p. 56. HENSHAW, Laurie. “Swing Guitars.” Melody Maker Agosto 1942, p. 4. HOEFER, George. “The Magnificent Gypsy.” Down Beat 14 July 1966 : p. 21-24. JORDAN, Matthew F. “Jazz Changes: A History of French Discourse on Jazz from Ragtime to Be-Bop.” Ph.D. Disserta- tion, Claremont Graduate School, 1998, p.281. KENNEY, William Howland. “Le ‘Hot:’ the Assimilation of American Jazz in France, 1917-1940.” American Studies 25 (Spring 1984): p. 5-24. KERNFELD, Barry, ed., The New Grove Dictionary of Jazz London: Macmillan Press, 1988, p.932, s.v. “Notation” by Robert Witmer. MORGENSTEN, Dan. “Jazz Fiddle.” Downbeat 34 February, 1967, p.16-19. SCHULLER, Gunther. Early Jazz. Oxford University Press: New York, 1968, p.34. SMITH, Geoffrey. Stéphane Grappelli. London: Pavilion, 1987, p.61. TIRRO, Frank. Jazz.: A History. W.W.Norton& Company: New York, 1993, p.19.

Referência sonora LE QUINTETTE DU HOT CLUB DE FRANCE. Tiger Rag. In: Chronological Django Reinhardt: 1934-1935. Classics Records, França, remasterizado em 1993.

Referência de partitura ORIGINAL DIXIELAND JAZZ BAND. Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette du Hot Club de France. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.xxx-xxx.

Adriana Costa é Mestre em Música e Doutora em Música pela Shennadoah University (EUA), violinista da Orquestra de Câmera OPUS, pesquisadora e professora de violino. Tem trabalhos publicados na área do jazz pela International Association of Jazz Educators Journal e Nottingham Univesity Press. Além disso, já apresentou trabalhos de pesquisa na International Association of Jazz Educators Conference nos EUA e na Hot and Cool Conference em Seysses na França.

88 ORIGINAL DIXIELAND JAZZ BAND. Partitura de Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette ... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.89-92.

Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette du Hot Club de France (1934)

Transcrição de Adriana Costa Ed. Adriana Costa e Fausto Borém

Ragtime swing Original Dixieland Jazz Band solo de violino e violãoq = 165 em sextas (Nick La Rocca,Eddie Edwards, Tony Sbarbaro, A paralelas (S. Grapelli + D. Reinhardt) Larry Shields e Harry da Costa)

B B F 7 B 1 b b b violino œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bb 2 œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ‰ & violão4 œ œ œ œ œ œ œ œ œ J œ œ œ B B B B F 7 b b 5 b b 1 2 œ œ œ œ œ œ œ b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ n b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ≈ . œ Œ b & œ œ œ œ œ œ œ

solo de violino (S. Grapelli)

B C 7 F C 7 F C 7 F C 7 F 10 œ. œ. œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ b & b J J ‰‰ J J ‰‰J J ‰‰ J J J ‰‰ J J ‰‰J J ‰‰ J b

solo de violino e violão em sextas A paralelas (S. Grapelli + D. Reinhardt) B F 7 Bb 18 Bb b œ œ œ œ œ œ œ œ œ b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ J ‰ & œ œ œ œ œ œ œ B B F 7 B 22 b b b œ œ œ œ œ œ b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ b & b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ‰ J b b œ œ œ œ œ œ œ solo de violino (S. Grapelli) break instrumental C (solo de violão sem acompanhamento: D. Reinhardt) E 26 b Eb œ œ ≈ bœ œ œ œ bbb œ œ œ bœ œ œ œ œnœ œ & œ œ œ#œ œ#œ œ œ > #œ nœ œ œ nœ œ #œ nœ #œ > > > >

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 21/12/2009 - Aprovado em: 15/03/2010 89 ORIGINAL DIXIELAND JAZZ BAND. Partitura de Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette ... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.89-92.

break instrumental solo de violino (S. Grapelli) (solo de violão sem acompanhamento: D. Reinhardt) E 30 b Eb œ œ œ œ œ œ b œ œ. œ œ t nœ bœ & b b œ œ nœœ œ. œ œ. œ & œ. œ. œ œ. nœ solo de violino (S. Grapelli) E E E b E B 7 34 b b b b œ nœ œ œ œ œ nœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ b œ œ b b œ nœ œ œ œ œ nœ œ œ œ œ œ œ ‰ J œ bœ & 3 break solo de violino (S. Grapelli) B 7 3 B 7 39 b (contrabaixo solo: Louis Vola) b 3 œ œ œ œ œ œ œ œ b œ. ? œ œ œ œ œ & b b œ œ nœ bœ œ Œ & œ œ nœ E b E b Ab E A B Eb 44 œ b b b œ œ ˙ œ œ nœ œ ^ b œ bœ œ œ œ œ œ b b & b b œ œ b b Chorus 1 D1 solo de violão (D. Reinhardt)

A A E 7 A b b E 7 50 A A A b b b b b ^ b ^ ^ b b ^ œ & b b œ œ œ Œ œ œ œ œ œ œ J œ œ nœ œ œ œ œ œ œ.

3 E 7 E 7 E 7 b E 7 E 7 b E 7 E 7 E 7 58 b b b b b b >œ > > ^ œ bb b œ œœ Ó œ ‰ œ ‰ Œ nœ œ œ nœ œ œ œ œ œ ≈ œ œ œ œ œ œ œ J ‰ œ œ & b œ œœ œ J J

A A A 7 A 7 D D 66 A b b Ab b b b b b b b j j >œ >œ >œ ˙ ˙ ˙ ˙ & b b œ ‰ œ ‰ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ æ æ æ æ > > >

D D m A F 7 74 b b b B 7 Eb7 E 7 Eb7 œ œ b b œ œ œ b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ J & b bb ‰J œ œ œ nœ œ œ œ Ó Ó ‰

90 ORIGINAL DIXIELAND JAZZ BAND. Partitura de Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette ... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.89-92.

Chorus 2 D2 solo de violino (S. Grapelli) A A A A A A b b 82 b b b b œ œ œ. œ œ œ œ. œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ b b ≈ œ œ & b b J ‰ J ‰ ≈ J J ≈ J

7 E E 7 E 7 b b E 7 b 7 88 œ b Eb Eb7 b ≈ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ≈ œ œ.œ œ œ œ œ & b bb ≈ œ œ œ œ œ œ nœ bœ œ œ œ œ nœ bœ œ nœ

Ab E 7 A A A 94 b E 7 bo bo b b œ œ b b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ nœ nœ œ œ œ œ J œ & b b ‰ J ≈ nœ œ œ œ œ nœ ‰ nœ nœ œ nœ nœ Ab7 Ab A Db D 100 b √ b œ œ œ bœ œ b œ ≈ œ œ œ œ œ œ œ. œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ≈ œ œ & b bb ≈ R J ≈ J ‰ ≈ R

D Dbm A 106 b b F 7 Bb7 Eb Ab Ab bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bb b œœ œ œ œ œœ œœ nœ œœ œ œ œ t & b ‰ J ≈ ≈ œ œ Œ Ó

Chorus 3 D3 solo de contrabaixo (Louis Vola) A A E 7 E 7 114 A A b A A b b b b b b b œ t œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bbbb ‰ J œ œ œ

E 7 E 7 E 7 122 b b E 7 Eb7 b E 7 Ab A œ œ b œ b b t œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bbbb œ œ J ‰Œ & Ó

91 ORIGINAL DIXIELAND JAZZ BAND. Partitura de Tiger Rag (1917) na performance do Le Quintette ... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.89-92.

solo de violino (S. Grapelli) A A A b Ab b b A 7 A 7 D D 130 b b b b œ nœ œ œ œ nœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ b b ≈ nœ œ nœ œ ≈ œ & b b Œ solo de violino solo de violão (D. Reinhardt) (S. Grapelli) F 138 Db Dbm Ab B 7 Eb7 Ab E 7 b b œ√œ b b œ bœ œ œ œ nœ œ œ œ œ & b b Œ nœ œ ˙ ‰ J Chorus 4 D4 solo de violino (S. Grapelli) A A 146 (A√) A b b A b b Ab b b œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ & b bb ‰ J ‰ J ‰ J

E 7 (√)E 7 E 7 b E 7 152 b b E 7 E 7 b œ œ œ œ b b œ nœ bœ œ œ b œ œ œ ≈ œ œ œ œ œ œ œ & b bb J ‰ ‰ ‰ J ‰ J

E 7 E 7 b 158 b A A A œ œ b b b 3 œ œ œ œ œ œ bb b J ‰ ‰ J œ œ nœ bœ j ‰ & b œ œ œ œ œ œ nœ

A A 163 b b A A 7 3 3 3 b 3 b œ j bbbb œ ‰ œ ≈ œ. & œ œ œ œnœ œ œ œ nœ œ œ œ œ œ œ œ nœ J

D D m A 7 D b b F 7 167 b b A√ œ œ œ œ œ bœ œ b b œ œ œ œ œ ≈ œ œ & b bb œ Œ ‰ J ‰ J

√ E 7 A b 7 174 B 7 b G 7 G F 7 E7 E 7 A b œ œ œ œ œ œ œ œ œ b b b b J & b bb ‰ œ bœ œ Œ Rit . . . œ nœ œ

92 MOREIRA JÚNIOR, N. A..; BORÉM, F. Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.93-102.

Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha: composição, performance e iconografia após a viagem a Paris em 1922

Nilton Antônio Moreira Júnior (UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ) [email protected]

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte. MG) [email protected]

Resumo: Estudo analítico e comparativo sobre os choros Segura ele e Um a zero de Pixinguinha que, na histórica viagem do grupo de choro Oito Batutas a Paris em 1922, conviveu com músicos de jazz norte-americanos. Observam-se cara- cterísticas do ragtime em Segura ele a partir das gravações no CD Pixinguinha 100 anos, o qual inclui performances do compositor no saxofone e na flauta. Uma comparação entre elementos formais, harmônicos, rítmicos, motívicos, de instrumentação e iconográficos mostra que o choro de Pixinguinha foi influenciado em vários níveis pelo gênero popular norte-americano. Palavras-chave: Pixinguinha; choro; ragtime; música popular brasileira; análise musical.

Ragtime traces in the choro Segura ele [Hold him!] by Pixinguinha: composition, performance and iconography after the trip to Paris in 1922

Abstract: Analytical and comparative study about Segura ele and Um a zero, two choros by Brazilian composer and in- strumentalist Pixinguinha, who embarked to Paris in 1922, on the historical trip with his choro group Oito Batutas (Eight Smarties), where he met American jazz musicians. It shows traits of ragtime in Segura ele departing from the recordings of the works in the CD Pixinguinha 100 anos, which includes performances by the composer on both the saxophone and flute. A comparison among formal, harmonic, rhythmic, motivic, instrumentation and iconographic elements reveal that Pixinguinha´s choro style was influenced by the US popular music genre in several levels. Keywords: Pixinguinha; choro; ragtime; Brazilian popular music; musical analysis.

“ O artista é o melhor dos veículos para a aproximação dos povos” (Oscar Guanabarino, citado por MARIZ, 1989, p.62)

1 – Introdução Alfredo da Rocha Vianna, mais conhecido como Pixingui- que, apesar dessas músicas compartilharem elementos nha (1897-1973), deixou um grande número de composi- comuns do gênero, a segunda revela traços do gênero ções, especialmente choros, que se tornaram referenciais norte-americano ragtime. na música brasileira. A versatilidade da atuação de Pixin- guinha nesse gênero - no qual foi compositor, flautista, Uma das ferramentas mais eficientes da nova musico- saxofonista, arranjador e regente – aliada à sua criati- logia para se perceber o cerne da realização musical é a vidade e curiosidade, o permitiu criar uma linguagem análise de gravações, a exemplo do que tem sido desen- pioneira para suas demandas musicais, e que se tornou volvido no CHARM (Centre for the HIstory and Analysis of modelo para todas as gerações de chorões que se segui- Recorded Music) na Inglaterra, sendo uma de suas ver- ram (CABRAL, 1997, p.13). Uma comparação entre Um tentes a transcrição musical baseada na audição atenta a zero e Segura ele, dois choros de sua autoria, mostra de gravações. A transcrição e análise de linhas solísticas

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 05/11/2009 - Aprovado em: 18/06/2010 93 MOREIRA JÚNIOR, N. A..; BORÉM, F. Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.93-102.

e de acompanhamento, harmonias, ritmos, dinâmicas, século XIX, uma música que pudesse ser reconhecida como articulações, instrumentação, timbres, efeitos instru- genuinamente brasileira – surgida no meio popular e não mentais e timing dos eventos musicais tem auxiliado na no círculo erudito – permaneceu dentro de nossas fron- descrição estilística de importantes compositores e ins- teiras e não recebeu o patrocínio imperial, como a mú- trumentistas brasileiros (ALMEIDA, 2005; FABRIS, 2005; sica marcadamente europeia de Carlos Gomes, Leopoldo FREITAS, 2005; ARAÚJO COSTA, 2006; FABRIS e BORÉM, Miguez, Henrique Oswald, Francisco Braga e Alberto Ne- 2006; MOREIRA JUNIOR, 2006; GOMES, 2007; LINHA- pomuceno, para citar alguns (APPLEBY, 1983, p.28-93). Só RES, 2007; NUNES, 2007; SILVA , 2007; SOARES, 2007; em 1923, após a Semana de Arte Moderna, é que H. Villa- MAGALHÃES PINTO, 2009; BORÉM e GARCIA, 2010; Lobos conseguiu se mobilizar para ir à França mostrar sua CANÇADO, W. 2010; COSTA-LIMA NETO, 2010; VALENTE, música, fato que ainda é considerado o principal marco da 2011; LINHARES e BORÉM, 2011). produção de uma música nacional fora do país. Entretanto, a ida de Pixinguinha com seu grupo a Paris é anterior - A sistematização de características do choro proposta por coincide com o ano da Semana de Arte Moderna de 1922. ALMEIDA (1999) e corroborada por SANTOS (2001) é um Assim, podemos considerar Pixinguinha um dos primeiros importante referencial tanto para a análise composicional casos, senão o primeiro, em que coincidem, no exterior, a quanto para a identificação de práticas de performance do exposição de uma música nacional e a absorção de ele- gênero. Idealmente, o cenário ideal para esta identifica- mentos de uma música estrangeira. ção combina a percepção da música anotada e realizada, ou seja, as fontes primárias representadas por partituras e Pixinguinha, em última análise, também atenderia à mo- gravações. No caso de Pixinguinha, temos à disposição um dernidade advogada por Mário de ANDRADE (1942, p.15) rico acervo, constituído por partituras e leadsheets1 edi- e seus colegas, sintetizadas em três princípios: (1) a atu- tadas ou manuscritas e por gravações representativas de alização da inteligência artística brasileira (por exemplo, suas performances, ou de colegas com os quais comparti- levando sua música a um centro artístico mundial, Paris), lhava o que poderíamos chamar de estilo do choro. (2) a pesquisa estética (por exemplo, miscigenando esté- ticas diferentes, como a do choro e a do ragtime) e (3) Logo após a consolidação dos gêneros ragtime e blues a consolidação da criatividade brasileira (por exemplo, nos Estados Unidos, na última década do século XIX, tornando-se o modelo do choro por excelência, apesar dos muitos grupos de músicos norte-americanos se bene- riscos de reinventá-lo). A universalidade de Pixinguinha, de ficiaram de sua grande aceitação no meio musical eu- que nos fala BASTOS (2005; veja mais detalhes à frente), ropeu, ambos popular e erudito. Foram ágeis para logo é bem ilustrativa pelo fato de envolver três países: o Brasil absorver os traços marcantes do ragtime na sua música, (a música original), a França (o local) e os Estados Unidos compositores como Debussy (Goliwog´s cake-walk do ál- (a influência). Esse processo de hibridação, que pode ser bum Children´s corner, 1908) e Stravinsky (Ragtime para observado historicamente na música brasileira, se tornaria onze instrumentos, 1918; o Ragtime de A História do cada vez mais comum ao longo do século XX, envolvendo soldado, 1918; Piano-Rag music, 1919) (KAMIEN, 1992, praticamente todos os principais movimentos da música p.434; MACHLIS, 1990, p.476). A Paris do final do século popular, como a chanchada, a bossa-nova, a jovem guarda, XIX e início do século XX era considerada o centro cul- o tropicalismo, o Clube da Esquina, o rock brasileiro etc.2 tural do mundo e atraía grandes artistas de toda parte. Bandas de jazz norte-americanas começaram a viajar Da viagem de Pixinguinha com os Oito Batutas à França, para a Europa, levando o ragtime, já no ano de 1900 Sérgio Cabral nos fala como o contato com músicos norte- (SAGER, 2010) e, logo, se tornaram modelos para a mú- americanos implicou em inúmeras mudanças na vida mu- sica popular instrumental daquele continente. No final sical dos músicos brasileiros: dos anos de 1920 já se observavam as primeiras bandas de jazz formadas por músicos franceses, pioneiros na Eu- “os integrantes dos Oito Batutas falaram da convivência com os ropa neste estilo. Em 1932, surgiu o músicos de quatro jazz-bands, com os quais chegaram a tocar jun- Hot Club de France tos” CABRAL (1997, p.80). cujo Le Quintette atingiu reconhecimento internacional, especialmente com as brilhantes atuações de dois de “Além de Pixinguinha na flauta e no sax, Palmieri no bandolim seus membros: Django Reinhardt, no violão, e Stephane e China no vocal e no violão, os novos Oito Batutas passaram a Grappelli, no violino (COSTA, 2011, p.82-88, neste volu- contar com um pianista (J. Ribas), um pistonista (Bonfiglio de Oli- veira...), um trombonista (Euclides Galdino), um baterista (Eugê- me de Per Musi). nio de Almeida Gomes, o Submarino) e mais um saxofonista (Luís Americano)” CABRAL (1997, p.35). Antes do início do processo de exportação de uma músi- ca tipicamente brasileira, a miscigenação, que sempre fez Rafael José de Menezes Bastos também fala deste con- parte do longo processo de formação da cultura brasileira, tato de Pixinguinha com a música norte-americana em acontecia dentro do país. A presença do lundu na música Paris em 1922, destacando que erudita, que remonta a 1819 na obra para piano O Amor “foi a partir dessa jornada que Pixinguinha começou a criar víncu- brazileiro, foi possível com a vinda de um europeu – Sigis- los musicais e compatibilizar sua música com o jazz, que na época mund Neukomm – para o Rio de Janeiro (APPLEBY, 1983, se encontrava em franco processo de se estabelecer como o novo p.61; NEUKOMM, 2006). Entretanto, ao longo de todo o universal da música popular” BASTOS (2005, p.179).

94 MOREIRA JÚNIOR, N. A..; BORÉM, F. Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.93-102.

Propõe-se, neste estudo de caso, explicar práticas de per- Lima (bandolim e ganzá) e Luís de Oliveira (bandola e formance nos choros de Pixinguinha a partir dos aconte- reco-reco) (CABRAL, 1997, p.45; MARCONDES, ed., 1998, cimentos históricos e de seus reflexos nas suas partitu- p.583), para tocarem na sala de espera do cinema Palais, ras e gravações. Para isso, o recorte das fontes primárias no Rio de Janeiro.3 Essa formação de os Oito Batutas, é limitou-se à análise de duas obras: Um a zero, escolhida bem próxima da instrumentação dos chamados regionais por ser emblemática das características do choro e por 4 que predomina até hoje nos grupos de choro, se ocupava ter sido composta provavelmente em 1919 (apesar de ter de apresentar um repertório, nos primeiros anos de exis- sido gravada pela primeira vez apenas em 1946 e Segura tência do grupo, exclusivamente de músicas brasileiras, ele, por ter sido composta em 1929 (após a viagem de como mostra um programa apresentado em 7 de julho de 1922 de Pixinguinha à França) e conter mudanças esti- 1921 (CABRAL, 1997, p.68): lísticas que refletem a influência do ragtime. Ambos os choros têm gravações históricas incluídas no CD Pixin- 1º - De bocca em bocca. (Samba) 2º - Remeleixo (Choro) por A. Vianna (seu autor) guinha 100 anos (PIXINGUINHA, 1998), disco que tem a 3º - Bem te vi (Poesia de Catullo Cearense), por O. Vianna. participação do próprio compositor como instrumentis- 4º - Agueia Chiquinha (embolada), por João Pernambuco. ta: no choro Segura ele, Pixinguinha toca flauta e, em 5º - Preto Limão e Bernardo Nogueira (Desafio), por O. Vianna e Um a zero, toca saxofone (ficando o solo de flauta nesta J. Pernambuco. 6° - Graúna (Grande Choro), pelo exímio flautista Pixinguinha. música por conta de Benedito Lacerda). Para este estudo, além das gravações de Pixinguinha, serão utilizadas como A crescente popularidade do grupo permitiu que Pixingui- fontes primárias as de e leadsheets Um a zero Segura ele nha juntamente com os Oito Batutas viajasse pelo Brasil editadas por CARRASQUEIRA (1997). - São Paulo e Minas Gerais em 1919, Bahia e Pernambuco em 1921 - e se preparasse para vôos mais altos - Paris em Há controvérsias sobre a data de composição de Um a 1922 e Argentina em 1923. Curioso e ávido, Pixinguinha Zero. Alexandre Zamith Almeida relata o ano de 1949 procurava a cor da música local em cada região que toca- e atribui uma co-autoria a Benedito Lacerda (ALMEI- va. Pelo Brasil, notou as diferenças regionais. No programa DA,1999, p.151). Carlos Sion e Tarik de Souza, no texto de concerto acima, percebe-se a inclusão de dois gêneros do encarte do CD Pixinguinha 100 anos, afirmam que sua nordestinos – a embolada e o desafio, além de uma com- gravação é anterior, de 1946 (SION e SOUZA,1997), o que posição original sua com versos do poeta, teatrólogo, can- contradiz a informação de Almeida. Por outro lado, pers- tor e compositor maranhense Catulo da Paixão Cearense pectiva que adotamos, Sérgio Cabral defende que a obra (1866-1946) (MARCONDES, ed., 1998, p.190). remonta a 1919, período em que Pixinguinha e Lacerda ainda não trabalhavam juntos, e que sua composição te- A estadia de os Oito Batutas em Paris, financiados pelo ria sido inspirada na conquista do Campeonato Sul-Ame- milionário Arnaldo Guinle (MARCONDES, ed., 1998, ricano pela seleção brasileira de futebol, na qual venceu p.583), foi longa. Durou aproximadamente seis meses e a seleção uruguaia por um a zero (CABRAL, 1997, p.49). ocasionou mudanças profundas na estética do grupo, es- pecialmente a partir da convivência com músicos norte- Esses dois choros foram escolhidos para ilustrar o contras- americanos na cena musical eclética da capital cultural te estilístico em Pixinguinha, como compositor e como in- (BASTOS, 2005). Pixinguinha trouxe, de Paris, um saxofo- térprete. Em Um a zero, tomado aqui como representante ne para si (MARCONDES, ed., 1998, p.634). Notadamente, de um “grupo de controle”, pode-se observar claramente a estas mudanças ocorreram na instrumentação, na inclu- presença dos elementos tradicionais do choro (ALMEIDA, são de novos gêneros e na forma de arranjar: 1999; SANTOS, 2001). Já em Segura ele, embora algumas características do choro permaneçam, verificam-se tra- As influências do jazz, sofridas no exterior, tornaram-se evidentes, ços de uma forte influência do ragtime norte-americano, pela inclusão de saxofones, clarinetas e trompetes, pela utiliza- cujas características são descritas por Tânia Mara CAN- ção de arranjos instrumentais no estilo das jazz bands e pelas alterações no repertório, que passou a incluir fox-trots, shimmys, ÇADO (1999) e pelo próprio compositor e pianista norte- ragtimes e outros ritmos estrangeiros da moda (MARCONDES, ed., americano do início do século XX, Scott Joplin, considera- 1998, p.584). do o maior expoente do gênero (CHASE, 1957). A nova instrumentação do grupo mudou substancialmen- 2 – Vestígios iconográficos da mudança estéti- te sua sonoridade. Em muitas músicas houve a substitui- ção de instrumentos tipicamente brasileiros - como o ca na música de Pixinguinha e dos Oito Batutas cavaquinho e o pandeiro - por outros, populares nos esta- A documentação iconográfica da produção de Pixingui- dos Unidos - como o banjo e a bateria. Um programa de nha revela sua relação com o gosto do público e suas mu- concerto de 1923 com a relação das músicas de um show danças em função de sua “modernização” após a viagem realizado na cidade de Santos (CABRAL, 1997, p.68), já a Paris no início de 1922. Quatro anos antes, no Rio de após o retorno de os Oito Batutas da França, explicita o Janeiro de 1919, Pixinguinha liderou a criação de os Oito caminho híbrido escolhido: Batutas, cuja formação inicial tinha ele próprio na flauta e (violão), China (canto, violão e canto), Nélson 1º Marcha “Meu passarinho” (Jazz Band Os Batutas) Alves (cavaquinho), Raul Palmieri (violão), Jacob Palmie- 2º Fox trot “Positively Absolutely” (Delsol and Nata) ri (bandola, pandeiro e reco-reco), José (“Zezé”) Alves de 3º Fox-blue “224” Effeito de Pistão (Jazz Band Os Batutas)

95 MOREIRA JÚNIOR, N. A..; BORÉM, F. Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.93-102.

4º Dança Americana (Miss. Nata) 3 – Aspectos do choro tradicional em Um a zero 5º Electrico – Solo de saxophone (Euclides) Se as origens do choro remontam ao final do século XIX 6º Tango Argentino “Roxo” (Trio dos Batutas) e tem referências fundamentais na obras de Chiquinha 7º Dança excêntrica “Lucky Day” (Mr. Delsol) Gonzaga, Joaquim Calado e Ernesto Nazareth (VERZONI, 8º Courdy Fox (Jazz Band Os Batutas) 2000) com outras designações como maxixe, tango brasi- 9º One step (Delsol and Nata) leiro e polca, foi somente a partir da década de 1910 que 10º Samba “Não posso comer sem molho” (Jazz Band o termo choro se consolidou (CAZES, 1998). Como acon- Os Batutas) tece em muitos dos gêneros musicais populares, os mais 11º Fantasia do “Charleston” (James Black) conhecidos compositores de choro tendem a ser seus me- lhores intérpretes FERRER (1996). Pixinguinha surgiu com Observa-se aí a inclusão de gêneros relacionados às ban- as primeiras gerações dos chamados chorões e ainda é das de ragtime norte-americanas, como a marcha militar, considerado seu maior expoente. o fox trot, o blues e, ainda que com denominações pouco claras, alusões a uma “dança americana”, a uma “dança Um a zero, seja na sua partitura ou na gravação incluída excêntrica”, a um “one step”, e ao “Charleston”. Em meio no CD Pixinguinha 100 anos, é tomado aqui como mode- ao maciço abandono da música nacional que se observa lo do choro por diversas razões. Ele confirma a formação neste programa, há lugar até para um “tango argentino”. instrumental do regional tradicional das rodas de choro: A internacionalização de os Oito Batutas é também visível solistas (flauta e saxofone realizando contrapontos) e na própria maneira de se dirigir ao público, em que pode acompanhantes (violão, cavaquinho e pandeiro). Os solis- ser inferida certa valorização da cultura estrangeira, em tas são esporadicamente substituídos por outros instru- detrimento da nossa, na excessiva utilização da língua mentos melódicos, como a clarineta e o bandolim, entre inglesa: o programa denomina o grupo de “Jazz Band”; a outros. A informalidade na convivência e na realização preposição que une os co-autores do Fox trot “Positively musical, verificada no ambiente das rodas de choro por Absolutely” é um “and” e não um “e”; há um espaço pri- LARA FILHO, SILVA e FREIRE (2011, p.148-161, nesse vo- vilegiado para solos de trompete e saxofone. Em meio às lume de Per Musi), parece se refletir na realização rítmica onze peças apresentadas, há apenas um gênero brasileiro: mais relaxada do gênero, que se traduz em síncopas, como o samba “Não posso comer sem molho”, mas que, mesmo veremos em alguns exemplos, tanto nas linhas melódicas, assim, é tocado por uma “Jazz Band”. quanto nas linhas de acompanhamento.

Ex.1 - Baixo condutor harmônico realizado pelo violão 7 cordas na gravação de Um a zero (CD Pixinguinha 100 anos).

Ex.2 – Contracanto de Pixinguinha na gravação de Um a Zero (CD Pixinguinha 100 anos).

96 MOREIRA JÚNIOR, N. A..; BORÉM, F. Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.93-102.

Ex.3 – Acompanhamento sincopado do cavaquinho em Um a zero (CD Pixinguinha 100 anos)

Ex.4 – Ritmo em trecho de Um a zero (c.5-6 da Seção A) na partitura e na sua realização antecipada por Benedito Lacerda (CD Pixinguinha 100 anos).

Ex.5 – Simplificação melódica e antecipações em trecho deUm a zero (c.49-51 da Seção C) na partitura e na sua reali- zação por Benedito Lacerda (CD Pixinguinha 100 anos).

Na gravação, observa-se claramente o “baixo condutor No acompanhamento harmônico, pode-se observar a pre- harmônico”, descrito por ALMEIDA (1999) e SANTOS sença do timbre penetrante do cavaquinho que realiza (2001), no início da repetição da Seção A (Ex.1), baixo um padrão sincopado característico (Ex.3). cujos graus conjuntos e ritmo sincopado o aproximam da natureza melódica dos solos. Quanto à interpretação do solista Benedito Lacerda, podemos observar a liberdade rítmica com que toca a Estudando traços típicos da música popular brasileira, melodia, sem a preocupação de alinhamento vertical Acácio PIEDADE (2011, p.103-112, nesse volume de Per com o acompanhamento. Algumas notas são anteci- Musi) destaca a tópica “brejeiro”,5 muito encontrada no padas, ilustrando o caráter que SANTOS (2001, p.5) choro e caracterizada por “. . . subversões, brincadeiras, descreve como uma “realização do ritmo de forma re- desafios, exibindo e exigindo audácia e virtuosismo, mas laxada em relação ao pulso”. O Ex.4 mostra primeiro, tudo isto de forma organizada, elegante, altiva, por ve- os c.5-6 da Seção A de Um a zero como normalmente zes sedutora, maliciosa.” Encontramos esse elemento nos aparecem nas partituras da música e, depois, a trans- contracantos improvisados ao saxofone por Pixinguinha, crição da realização do mesmo trecho na interpretação que além da função ornamental melódica, ainda cum- de Benedito Lacerda. prem a função de condução harmônica para o solo de flauta de Benedito Lacerda, como pode ser observado nos O Ex.5 também mostra, nos c.49-51, além de mais duas c.1-4 de Um a zero (Ex.2). Nesses contracantos podemos ocorrências desse tipo de antecipações, duas simplifica- também observar ainda as antecipações típicas da flexi- ções rítmicas na realização de Benedito Lacerda, da Se- bilidade rítmica do choro, o graus conjuntos e cromatis- ção C de Um a zero, o que é também outra característica mos observados também na linha do baixo. na performance do choro.

97 MOREIRA JÚNIOR, N. A..; BORÉM, F. Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.93-102.

4 – Aspectos do ragtime em Segura ele “Desde o final do século XIX e início do XX, a França O ragtime surge no fim do século XIX nos Estados Unidos, já vinha sendo “invadida” pelas danses exotiques e como um desdobramento e fusão das plantation songs� danses nouvelles (Apprill e Dorier-Apprill, 2001, p.31). com os cakewalks. A veiculação e refinamento dessa ex- As primeiras incluíam tudo que fosse estrangeiro; as pressão artística afro-norte-americana acontecia princi- segundas, especialmente as manifestações artísticas palmente no ambiente musical dos minstrel shows �: provindas das Américas – o cake walk norteameri- cano, o tango argentino, o maxixe brasileiro, o paso “Os cantos acompanhados ao banjo dos músicos negros das plan- doble espanhol, a rumba cubana, entre outros”. tations haviam sido a principal fonte da música que os músicos brancos criaram para a minstrelsy antes da Guerra Civil. . . Nas dé- cadas subsequentes à guerra, o estilo dos músicos de banjo e o rit- Na gravação de Segura ele, podemos reconhecer muitos mo empertigado do cakewalk fundiram-se num novo tipo de mú- elementos do choro tradicional, como aqueles observados sica para piano que se chamou ragtime”. (SABLOSKY, 1994, p.91) em Um a zero. Um dos elementos comuns entre o choro e o ragtime é sua estrutura formal a qual, assim como em di- No livro Do salmo ao jazz, CHASE (1957, p.397) destaca a versos outros gêneros populares, é baseada no rondó ABA- proximidade entre os gêneros, argumentando que “... uma CA.� Mas traz também, e integrados à sua textura, elemen- pequena lacuna separa as mais genuínas canções mins- tos estranhos à roda tradicional de chorões e que podem trel do século dezenove do autêntico estilo ragtime que ter significado uma grande mudança estilística na época. emergiu poucas décadas depois”, lacuna que do ponto de vista instrumental foi preenchida pelo piano, que se tor- Em depoimento a VALENTE (2011)?? sobre as diferenças na nou característico ao estilo na sua migração das fazendas improvisação no choro e no jazz e suas relações com as mãos para os bares e salões das cidades. A disseminação do esquerda e direita no piano, Nailor “Proveta” de Azevedo fala ragtime nas cidades levou ao surgimento de uma varie- da natureza da linha do baixo em ambos os gêneros: melódi- dade de intérpretes do gênero: ca e ritmicamente mais criativa no brasileiro, e mais contrita e subserviente à linha dos solistas no caso norte-americano. “. . . entre 1890 e 1920, havia ragtime bands, cantores de ragtime, No ragtime, isto é bastante perceptível na rítmica de ori- tocadores de banjo no ragtime, e, juntamente com os pianistas gem militar do acompanhamento simples, característica que de ragtime que tocavam apenas a música escrita, havia também pianistas de ragtime que improvisavam” (GRIDLEY, 1988, p.42). CANÇADO (1999, p.172-174) descreve como um “constante ritmo de marcha na linha do baixo”, marcha que pode ser O afro-americano Scott Joplin (1868-1917) tornou-se o ouvida na gravação de Segura ele no CD Pixinguinha 100 mais popular compositor e pianista americano do gênero, anos (Ex.6). Outro elemento característico do ragtime, e es- “conhecido no final do século XIX como o Rei doRagtime ” tranho ao choro tradicional, perceptível na audição desta (GROVE, 1994, p.479). No seu estilo de maturidade, Joplin faixa é a presença do banjo na instrumentação. chegou a uma fusão entre a herança escrava e a escrita Outra característica na gravação de Segura ele, que pode ser rela- da música europeia de salão. cionada ao ragtime, é o padrão rítmico cubano chamado cinquillo, observado no banjo e que, por meio de uma síncope sobre o segun- Mas o caminho do ragtime até a música brasileira não foi do tempo, resulta em cinco notas por compasso (daí a origem do nome em espanhol, como mostra o Ex.7). Segundo CANÇADO (1999, o mais curto, mas sim via Europa. BASTOS (2005, p.180) p.152), esse padrão rítmico seria uma variação das “oito semicol- fala da presença de cakewalk, seu precursor, na França: cheias com uma ligadura entre os tempos”, comum no ragtime.

Ex.6 – Padrão rítmico da marcha militar do ragtime observado na linha do baixo (instrumento não identificado) de Segura ele no CD Pixinguinha 100 anos.

Ex.7 – Padrão rítmico do cinquillo cubano realizado pelo banjo em Segura ele no CD Pixinguinha 100 anos.

98 MOREIRA JÚNIOR, N. A..; BORÉM, F. Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.93-102.

Finalmente, recorremos à fala do maior compositor de 5 – Considerações finais ragtimes, Scott Joplin, para reconhecer outra possível A postura aberta de Pixinguinha em relação ao conta- influência deste gênero na interpretação de Segura ele to com outras culturas permitiu que ele absorvesse e por Pixinguinha. Em um método no qual pretendia en- incorporasse elementos que contribuíram na formação sinar como tocar sua música, Joplin (citado por CHASE, de seu estilo musical maduro e eclético. Suas deman- 1957, p.408-409) diz que, para se obter os efeitos mu- das por uma música mais universal passam, primeiro, sicais que desejava, era necessário dar “. . . a cada nota por uma ampliação de seus horizontes dentro do próprio a sua duração exata e observando escrupulosamente as país e, depois, fora dele. Sua estadia em Paris, em 1922, ligaduras” e também que “. . . os exercícios estão har- juntamente com seu grupo Oito Batutas, significou uma monizados na suposição de que cada nota será tocada rica via de mão dupla, em que ele levou, pioneiramente, conforme está escrita, visto que o sentido que se quer uma cultura musical genuinamente brasileira e conso- dar à música depende disso e também da duração exata lidada à Europa e trouxe, na bagagem, instrumentos, que se dá às notas.” De fato, na gravação de Pixinguinha formas de tocar e de se relacionar com o público que de Segura ele há um grande cuidado em alinhar verti- ampliaram a estética e vocabulário do choro. calmente a melodia com a linha do baixo, evitando-se as assincronias decorrentes da liberdade rítmica do cho- Na gravação de Um a zero, composta antes da viagem ro tradicional (especialmente antecipações e atrasos), de Pixinguinha à França, vimos que ele e Benedito como aquelas observadas na gravação de Um a zero, na Lacerda optaram por uma interpretação mais atenta performance do próprio Pixinguinha. às características tradicionais do choro. A instrumen- tação privilegia o cavaquinho, o violão, a flauta, e o Tematicamente, podemos estabelecer uma conexão entre o pandeiro (apesar da sonoridade presente do saxofone, choro Segura ele e um dos mais famosos ragtimes de todos já incorporado no choro à época da gravação, mas não os tempos, o The Entertainer de Scott Joplin. Trata-se de na época da composição). Do ponto de vista da reali- um motivo formado por uma apojatura seguida de sínco- zação rítmica, percebe-se o ritmo sincopado (mesmo pa. Este motivo ocorre nas seções C de ambas as músicas nas linhas de acompanhamento) e a liberdade rítmica (Ex.8). Em Segura ele, este motivo (com as mesmas notas!) do solista em relação ao pulso. é utilizado primeiro na cabeça do tempo e sem a síncopa e, depois, deslocado como anacruse. Esse deslocamento é um Por outro lado, na gravação de Segura ele, composta após a desafio rítmico para ouvidos não acostumados ao repertó- viagem de Pixinguinha à França, vimos que ele rompe com rio, pois dá a sensação de uma métrica ternária (um 3/8) cânones do choro tradicional ao buscar inspiração nos rag- na rítmica tradicionalmente binária do choro, o que pode times das jazz bands e nos elementos formativos deste gê- explicar o título escolhido por Pixinguinha. nero norte-americano com os quais teve contato. Na instru-

Ex.8 – Motivo comum entre a Seção C (c.53 e c.55) do ragtime The Entertainer de Scott Joplin e a Seção C (c.33-34) do choro Segura ele de Pixinguinha.

99 MOREIRA JÚNIOR, N. A..; BORÉM, F. Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.93-102.

mentação, inclui a sonoridade exótica do banjo. Na linha do termos na língua inglesa nos títulos das composições e baixo, recorre aos ritmos militares simples e sem síncopas. suas descrições nos programas impressos. Ainda no acompanhamento, incorpora o ritmo do cinquillo nas levadas de preenchimento harmônico. Nesse ambiente, Se houve uma falta de apoio governamental à primeira o molejo e flexibilidade brasileiros dão lugar a uma verticali- música de fato brasileira a ser ouvida na Europa e uma dade sincrônica à qual o solista, ele, procura se ater. relativa subestima nos círculos eruditos, Radamés Gnat- tali, possivelmente o compositor que melhor sintetizou Atestam também esta mudança estética em Pixinguinha e compreendeu a integração entre as músicas erudita e na história do choro brasileiro, por conseguinte, as no- e a popular no Brasil, buscou reparar essa negligência vidades e modismos que se observam na comunicação histórica, homenageando-o como personagem central entre os chorões e seu público, como a inclusão de gê- em um dos movimentos de sua Suite retratos (LIMA, neros musicais estrangeiros nos concertos, a adoção de 2011,p.113-123, nesse volume de Per Musi).

Referências ALBINO, César; LIMA, Sonia R. Albano de. O percurso histórico da improvisação no ragtime e no choro. Per Musi, v.23. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p.71-81. ALMEIDA, Alexandre Zamith. Verde e amarelo em preto e branco: as impressões do choro no piano brasileiro. Campinas: Instituto de Artes, Universidade de Campinas, 1999. Dissertação (Mestrado em Música). ALMEIDA, Hermínio Carlos de. Viver de Amor de Toninho Horta e Ronaldo Bastos: aspectos composicionais e de perfor- mance em um arranjo para trio de oboé, trompa e piano. Belo Horizonte: UFMG, 2006. (Dissertação de Mestrado) ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. Rio de Janeiro: casa do Estudante, 1942. APPLEBY, David. P. The music of Brazil. Austin: Texas University Press, 1983. ARAÚJO COSTA, Fabiano. Análise e realização de 4 leadsheets do Calendário do Som de Hermeto Pascoal segundo os conceitos harmônicos de Schoenberg. Belo Horizonte: UFMG, 2006. (Dissertação de Mestrado) BASTOS, Rafael José de Menezes. Les Batutas, 1922: uma antropologia da noite parisiense. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, 2005, v.20, n.5, p.177-196. BORÉM, Fausto; GARCIA, Maurício Freire. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos em uma obra- prima para flauta. Per Musi, v.22. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p.63-79. CABRAL, Sérgio. Pixinguinha, vida e obra. Rio de Janeiro: Editora Lumiar, 1997. CANÇADO, Tânia Mara Lopes. An Investigation of West African and Haitian Rhythms on the Development of Syncopation in Cuban Habanera, Brazilian Tango/Choro. Shenandoah Conservatory, Virginia, USA, 1999. (Tese de Doutorado em Música). CANÇADO, Wilson Lopes. Novena, Crença e Gira Girou de Milton Nascimento e Márcio Borges: análise de suas três pri- meiras composições criadas em uma noite de 1964. Belo Horizonte: UFMG, 2010. (Dissertação de Mestrado) CARRASQUEIRA, Maria José. O melhor de Pixinguinha. São Paulo: Editora Irmãos Vitale, 1997. CAZES, Henrique. Choro, do quintal ao Municipal. São Paulo: Editora 34, 1998. CHASE, Gilbert. Do salmo ao jazz: a música dos Estados Unidos. Trad. Samuel Reis e Lino Vallandro. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1957. COSTA, Adriana. Tiger Rag na interpretação do Le Quintette du Hot Club de France: história, análise e práticas de perfor- mance. Per Musi, v.23. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p.82-88. COSTA, Pablo Garcia da; CASTRO, Beatriz Magalhães. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho: questões sobre iconografia musical em suas capas de disco entre 1950 e 1960. Per Musi, v.23. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p.124-137. COSTA-LIMA NETO, Luiz. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, v.22. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p.44-62. FABRIS, Bernardo Vescovi. Catita de K-Ximbinho e a interpretação do saxofonista Zé Bodega: aspectos híbridos entre o choro e o jazz. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Dissertação (Mestrado em Música). FABRIS, Bernardo Vescovi; BORÉM, Fausto. Catita na leadsheet de K-Ximbinho e na interpretação de Zé Bodega: aspec- tos da hibridação entre o choro e o jazz. Per Musi, v.13. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p.5-28.

100 MOREIRA JÚNIOR, N. A..; BORÉM, F. Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.93-102.

FERRER, Marcus. Uma música dinâmica e aberta. Revista Roda de Choro. Rio de Janeiro, 1996, v. 3, p.12-15. FREITAS, Marcos Flávio de Aguiar. O choro em Belo Horizonte: aspectos históricos, compositores e obras. Belo Horizonte: UFMG, 2005. (Dissertação de Mestrado) GOMES, Wagno Macedo. Chorando baixinho de Abel Ferreira: aspectos interpretativos do clarinetista compositor e do clarinetista Paulo Sérgio Santos. Belo Horizonte: UFMG, 2007. (Dissertação de Mestrado) GRIDLEY, Mark C. Jazz Styles: History and Analysis. 3ª Edição. New Jersey/ USA: Editora Prentice-Hall, 1988. KAMIEN, Roger. Music: an appreciation. 5a. ed. New York: McGraw-Hill, 1992. LARA FILHO, Ivaldo Gadelha de; SILVA, Gabriela Tunes da; FREIRE, Ricardo Dourado. Análise do contexto da Roda de Choro com base no conceito de ordem musical de John Blacking. Per Musi, v.23. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p.148-161. LIMA, Luciano Chagas. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, v.23. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p.113-123. LINHARES, Leonardo Barreto; BORÉM, Fausto. A composição e interpretação de Victor Assis Brasil em Pro Zeca: hibri- dismo entre o baião e o bebop. Per Musi, v.23. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p.28-38. LINHARES, Leonardo Barreto. Pro zeca de Victor Assis Brasil: aspectos do hibridismo na música instrumental brasileira. Belo Horizonte: UFMG, 2007. (Dissertação de Mestrado) MACHLIS, Joseph; FORNEY, Kristine. The Enjoyment of music. 6a. ed. New York: W. W. Norton, 1990. MAGALHÃES PINTO, Marcelo Gama e Mello de. Frevo para piano de Egberto Gismonti: uma análise de procedimentos populares e eruditos na composição e performance. Belo Horizonte: UFMG, 2009. (Dissertação de Mestrado) MARCONDES, Marcos (Ed.). Enciclopédia da música brasileira: popular, erudita, e folclórica. 2ª ed. Org. São Paulo: Art Editora, 1998. MARIZ, Vasco. Heitor Villa-Lobos. 11 ed. Coleção Reconquista do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989. MAURITY, Fernando Trocado. Improvisação em Victor Assis Brasil. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2006. MOREIRA JUNIOR, Nilton Antonio. Características do choro em Um a zero e do ragtime em Segura ele em duas gravações de Pixinguinha. Belo Horizonte: UFMG, 2006. (Dissertação de Mestrado) NEUKOMM, Sigismund. O amor brazileiro, para piano. Ed. Fausto Borém. Belo Horizonte: Musa Brazilis, 2006. (Partitura) NUNES, Alvimar Liberato. Raphael Rabello e Odeon de Ernesto Nazareth: interpretação, arranjo e improvisação. Belo Horizonte: UFMG, 2007. (Dissertação de Mestrado) PIEDADE, Acácio. Expressão e sentido na música brasileira: retórica e análise musical. Revista Eletrônica de Musicologia, v.XI, 2007. ______. Jazz, música brasileira e fricção de musicalidades. Opus. v.11. Dez, 1985. In: www.anppom.com.br/opus (Acesso em 28 de fevereiro de 2009). ______. Musica Instrumental Brasileira e Fricção de Musicalidades, In Rodrigo Torres (ed.) Música Popular em América Latina: Actas del llo. Congresso Latinoamericano del IASPM. Santiago de Chile: Fondart, 1999. ______. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo, musicalidade e tópicas.Per Musi. N.23. Belo Hori- zonte: UFMG, 2011. p.103-112. PINTO, Marco Túlio de Paula. Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee School of Music (1969-1974) em seu estilo composicional. Per Musi, v.23. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p.45-57. PIXINGUINHA. Pixinguinha 100 anos. Org. Carlos Sion e Tarik de Souza. São Paulo: Sony e BMG (CD 743214628621), 1998. SABLOSKY, Irving. A musica norte-americana. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994. SADIE, Stanley (Ed.). Dicionario Grove de música: edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. SAGER, David. A History of ragtime. http://lcweb2.loc.gov/diglib/ihas/loc.natlib.ihas. 200035811. (Acesso em 03 de fe- vereiro, 2010. SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros Canhoto e Manhosamente de Radamés Gnat- tali, Per Musi. Belo Horizonte: UFMG,2001, v.3, p.5-16. SILVA, Flávio Mateus da. Marcos Leite e o grupo vocal Garganta Profunda: aspectos históricos e estilísticos no arranjo vocal de O Pato. Belo Horizonte: UFMG, 2007. (Dissertação de Mestrado) SION, Carlos e SOUZA, Tarik de. Pixinguinha 100 anos. Compact disc. BMG Brasil. São Paulo, 1997. SOARES, Márcio Ronei Cravo. A canção Todo o Sentimento, de e Cristóvão Bastos: um exercício de leitura verbo-musical. Belo Horizonte: UFMG, 2007. (Dissertação de Mestrado) VALENTE, Paula Veneziano. Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho no choro brasileiro. Per Musi, v.23. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p.162-169. VERZONI, Marcelo Oliveira. Os primórdios do “choro” no Rio de Janeiro. UNIRIO, Rio de Janeiro, 2000. Tese (Doutorado em Música).

101 MOREIRA JÚNIOR, N. A..; BORÉM, F. Traços do ragtime no choro Segura ele de Pixinguinha... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.93-102.

Notas 1 Lead sheet é uma partitura simplificada, geralmente de músicas populares, que “geralmente inclui apenas a melodia e os acordes simplificados na forma de cifras e, algumas vezes, detalhes rítmicos (“convenções”) ou de instrumentação. (FABRIS, 2005). 2 Para algumas discussões sobre hibridação na música popular brasileira, veja PIEDADE (2011; neste volume de Per Musi) e ALBINO e LIMA (2011; neste volume de Per Musi); para estudos de caso sobre K-Ximbinho, veja FABRIS e BORÉM (2006); COSTA e CASTRO (2011; neste volume de Per Musi) e VALENTE (2011; neste volume de Per Musi); sobre Hermeto Pascoal, veja BORÉM e GARCIA (2010) e COSTA-LIMA NETO (2010); sobre Victor Assis Brasil, veja LINHARES e BORÉM (2011; neste volume de Per Musi); PINTO (2011; neste volume de Per Musi), MAURITY (2006); PIEDADE (1985) e PIEDADE (1999). 3 O número de músicos no grupo dos Oito Batutas, mais tarde renomeado simplesmente como Batutas, variou ao longo de sua história, chegando a contar com 12 membros (MARCONDES, ed., 1998, p.584). 4 O regional de choro é um grupo instrumental geralmente formado por instrumentos de acompanhamento, como o cavaquinho, violão de 7 cordas, violão de 6 cordas (opcional), pandeiro e outros instrumentos de percussão (opcionais), e instrumentos solistas, como a flauta, clarineta, bandolim, cavaquinho e acordeom. 5 Tópicas são figuras de retórica utilizadas como elemento característicos de expressão e de sentido na música. Veja mais em PIEDADE (2011, 2007). 6 Plantation songs são canções autênticas dos negros das fazendas do sul dos Estados Unidos no final do século XIX, normalmente apresentadas em espetáculos dos brancos e geralmente acompanhadas pelo banjo (GROVE, p.11). 7 Minstrel shows eram espetáculos de variedades, nos quais intérpretes de rostos pintados de preto parodiavam os negros, onde se cantavam as plan- tations songs e o cakewalk (GROVE, p.11). 8 Para outras semelhanças e diferenças entre o choro e o ragtime, veja ALBINO e LIMA (2011), às p.71-81 nesse volume de Per Musi.

Nilton Moreira é Doutorando em Música pela UNIRIO, Mestre em Música e Bacharel em Flauta Transversa pela UFMG. Atualmente é bolsista do CNPq, sendo orientado pelo professor Sérgio Barrenechea. Foi orientado no Mestrado pelos professores Maurício Freire e Fausto Borém na UFMG, onde foi bolsista da CAPES. Estudou com Artur Andrés, Toninho Guimarães, fez máster classes com os professores Michel Debost (França), Michael Heisel (Alemanha), Renato Axelrud, Odette Ernest, Andréa Ernest, Toninho Carrasqueira, entre outros. Atua junto à Orquestra Filarmônica do Espírito Santo como músico convidado. Já atuou como músico convidado junto à Orquestra Sinfônica Nacional e Orquestra Ouro Preto. Foi professor da Universidade Vale do Rio Verde, no curso de Licenciatura em Música em 2007 e 2008 e professor de Flauta Transversa na Faculdade de Música do Espírito Santo em 2009. Na área da MPB, integra o Sexteto Patápio Silva, com o qual tem um CD gravado. Ganhou os concursos Jovem Solista da UFMG (2003), Jovem Músico BDMG (2004) e “Orquestra para Todos” da Orquestra Sinfônica Brasileira (2005).

Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa e Túlio Mourão. Participou do CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa.

102 PIEDADE, A. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo...Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.103-112.

Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo, musicalidade e tópicas

Acácio Piedade (UDESC, Florianópolis, SC) [email protected]

Resumo: Discussão sobre os conceitos de hibridismo, musicalidade, fricção e fusão de musicalidades e tópicas da musi- calidade brasileira. O objetivo é refletir sobre a questão da mudança e a transformação nos gêneros musicais, bem como a da permanência de elementos e figurações musicais que, por sua vez, carregam consigo nexos sócio-culturais e históricos que, de alguma forma, são experimentados pelos músicos e audiências. Tendo como foco questões da música brasileira, este artigo apresenta a busca de tópicas musicais (“brejeiro”, “época-de-ouro” e “nordestina”) como uma ferramenta para enfrentar o problema das transformações no mundo da música. Palavras-chave: hibridismo; musicalidade; tópicas musicais; música brasileira.

Pursuing clues to the puzzle: thoughts on hybridism, musicality and topics

Abstract: Discussion about concepts such as hybridism, musicality, friction and fusion of musicalities, and the topics of the Brazilian musicality. It aims at reflecting on the question of the change and transformation in musical genres, as much as that of the permanence of musical elements and figurations that, in its turn, carry socio-cultural and historical connec- tions that are somehow experienced by musicians and audiences. Focusing on questions of the Brazilian music, this article presents the search for musical traces called topics (“brejeiro” [maliciously smart ], “época-de-ouro” [good times], and “nor- destina” [northeasterly Brazilian]) as a tool to face the problem of the transformations in the world of music. Keywords: hybridism; musicality; musical topics; Brazilian music.

1 - Hibridismo Fala-se muito de hibridismo nos estudos de música popu- criados artificialmente a partir do cruzamento de espé- lar, principalmente no que tange à constituição e mudan- cies naturais. Trata-se da criação de um novo corpo: nos ça nos gêneros e linguagens musicais. Gostaria de refletir termos da genética atual, um novo DNA. No campo das sobre este conceito. Para os gregos antigos – tomemos humanidades, o termo hibridismo aparece como metáfora este ponto como originário -, a hybris nomeava uma for- biológica já em escritos oitocentistas sobre raças huma- ça excessiva que violava as leis naturais. Esta ideia foi nas. O paradigma evolucionista imperava no pensamento sendo historicamente transformada e filtrada, primeira- antropológico, e temos aqui não apenas o uso do termo mente pelos romanos antigos e depois pela cultura eu- hibridismo em um contexto que hoje entendemos como ropeia dos primeiros séculos, passando pelo sentido de racista, como também a ideia de que o hibridismo, apli- transgressão de parentesco em direção àquele do orgulho cado ao mundo social, porta um componente ideológico, que rompe com a lei moral. No século XIX, Mendel con- uma remissão à questão de poder, seja isto consciente solidou o uso de termo híbrido para nomear organismos ou subliminarmente. Este vínculo congênito tem sido re-

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 29/01/2010 - Aprovado em: 22/06/2010 103 PIEDADE, A. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo...Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.103-112.

velado especialmente nos estudos do pós-colonialismo lo, ambos estando dispostos em um corpo que não é C, mas (BHABHA, 1994). Tomando os processos de mudança e AB. Em AB, é importante que A se mostre como A e que B fertilização cruzada como legítimos agentes das forças se mostre como B. Mais propriamente, A necessariamente de poder no mundo, o discurso anti-essencialista do hi- se afirma enquanto A perante B e vice-versa. A é contras- bridismo permeia várias teorias da globalização há pelo tivo em relação a B no corpo AB, cujo cerne é justamente menos duas décadas (ver CANCLINI, 1995). esta dualidade. Se este corpo AB, no qual a identidade de A e B se apresentam conjunta e contrastivamente, pode Atualmente, aparentemente estamos longe dos sentidos ser chamado de híbrido, então podemos falar aqui de um antigos de hybris, nós que habitamos o mundo da velo- hibridismo contrastivo. cidade e da mudança: o excesso e a transformação pare- cem ter-se instaurado no calor da sociedade ocidental e Assim, vamos considerar o hibridismo na música. Vamos falar aí serem tomados como processos naturais. Digo “calor”, de A e B em AB não como suas seções formais, mas como aqui, no sentido levi-straussiano de sociedades quentes motivos ou frases específicas em modos determinados, pro- (LÉVI-STRAUSS, 1989), ou seja, aquelas que concebem o gressões harmônicas típicas, ritmos padronizados, timbres devir como História, dirigindo-se para o futuro através do denotativos, ou combinações de tudo isso em estruturas cur- progresso e da transformação tecnológica. Note-se que, tas. Creio que, ao menos na música, na maioria dos casos se para LATOUR, a modernidade é iniciada pela separação trata do segundo tipo de hibridismo, o contrastivo, e é por entre mundo social, mundo natural e religioso, e a própria isso mesmo que eu gostaria destacar a importância da retóri- palavra “moderno” implica em uma mediação entre estes ca musical aqui. Em AB, o elemento A está ali para ser ouvido mundos, onde há misturas de gêneros completamente no- enquanto A, e o elemento B também se apresenta como B, vas, os “híbridos de natureza e cultura” (LATOUR, 1994). O para o ouvinte. Cada um deles tem um papel na expressão processo de hibridização seria, desta forma, congênito ao musical e por isso são criados para serem reconhecidos. Ou espírito moderno e à sociedade quente ocidental. seja, na composição musical, tanto quanto na improvisação, a enunciação destes elementos é voltada para a audiência Na literatura das humanidades, as transformações da em busca de compreensão. Isto configura o viés expressivo, a cultura e a criação de categorias híbridas não são enten- necessidade de comunicação, a retórica por trás do hibridis- didas como uma violação da natureza, nem como ato da mo contrastivo. Vou retomar isto mais adiante. soberba humana que se põe acima da moralidade, e nem sempre como processos que envolvem ideologias implíci- Uma das limitações da abordagem acima é que ela é vol- tas. No entanto, talvez um pouco de tudo isso esteja em tada para o objeto em si, mas talvez no campo da música jogo quando olhamos para os fenômenos cobertos pela o microscópio deva se tornar um macroscópio, pois o ob- metáfora do hibridismo no campo da cultura, e talvez jeto, música, porta consigo necessariamente nexos sócio- possa haver laços com o sentido originário. culturais e históricos cuja imbricação semântica com os sons torna difícil considerá-los exteriores. Ou seja, os fa- No contexto da temática do hibridismo na virada do séc. tos culturais que permeiam e constroem os gêneros mu- XX para o XXI, podemos perguntar: as teorias do hibri- sicais fazem parte do objeto tanto quanto os sons. Claro dismo cultural anunciam este estado híbrido como uma que podemos isolar os sons, criar partituras, observar os nova roupa da cultura? A hibridez cultural depende do mecanismos musicais, analisar tecnicamente, trata-se de multiculturalismo? O hibridismo surge como uma con- um passo fundamental no entendimento dos processos sequência da modernidade? Muitas destas questões já teóricos em música, mas no momento em que se preten- se encontram bem trabalhadas na vasta literatura das de lançar um olhar compreensivo2, é necessário recompor ciências sociais a respeito1. Gostaria de pontuar aqui as a integridade do objeto. Nesta direção, vamos pensar a seguintes questões: o corpo híbrido traz em si elemen- retórica por trás hibridismo através dos conceitos de mu- tos divergentes que, uma vez incorporados, pacificam- sicalidade e de tópicas musicais. se mutuamente? Senão há uma paz, haveria ao menos uma lei social necessária para regular os elementos hi- 2 - Musicalidade bridizados, e então será que o corpo híbrido é regulado Em estudos sobre o jazz brasileiro (PIEDADE 1997, 2003, por um terceiro, que coloniza os elementos no processo 2005, 2010; PIEDADE & BASTOS 2007), musicalidade é de hibridização? Gostaria aqui de pensar estes pontos uma memória musical-cultural compartilhada constituída no campo da música. por um conjunto profundamente imbricado de elementos musicais e significações associadas. A musicalidade é de- De início, vamos identificar dois tipos de hibridismo: cha- senvolvida e transmitida culturalmente em comunidades memos de hibridismo homeostático aquele que pressupõe estáveis no seio das quais possibilita a comunicabilidade o corpo híbrido como domesticado, equilibrado, onde há na performance e na audição musical. Vamos entender uma real fusão, ou seja, A deixa de ser A enquanto tal e aqui comunidade no sentido de agrupamento social com B deixa de ser B enquanto tal para que se encontrem em valores compartilhados, como em BAUMAN (2003), seja conjunção na construção de um novo corpo estável, C, o este grupo territorializado ou não3. Qualquer grupo social híbrido; no outro tipo de hibridismo não há fusão, nem é sujeito a permanentes transformações, daí que “estabi- equilíbrio, A não pode deixar de ser A, e nem B pode fazê- lidade”, aqui, significa uma duração historicamente ob-

104 PIEDADE, A. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo...Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.103-112.

servável de um agrupamento, à qual se atribui significân- social. Sobretudo, é o tempo histórico que possibilita a cia em termos metodológicos. fusão. Creio que este movimento de fusão é permanente na história da música e que é justamente este processo Mais do que uma língua musical, portanto, musicalidade que está na base da invenção das tradições (HOBSBAWM é uma audição-de-mundo que ativa um sistema musical- & RANGER, 1983): uma tradição é sempre entendida pe- simbólico através de um processo de experimentação e los nativos como realidade homeostática, porém há na aprendizado que, por sua vez, enraíza profundamente sua origem um acordo esquecido, um contraste diluído. esta forma de ordenar o mundo audível no sujeito. No Há que haver um esquecimento do contraste inicial: a jazz brasileiro, chamado de pelos nativos de “música tradição é A que, na verdade, é um C, ou seja, um AB. Se instrumental”, há uma relação típica com o jazz norte- não houvesse este tipo de esquecimento, a humanidade americano que é ao mesmo tempo de tensão e de síntese, não poderia ouvir música, pois toda a multiplicidade ime- de aproximação e de distanciamento. A forma como a morial de gêneros e elementos que fundam as músicas se musicalidade brasileira e a norte-americana se encon- exporia diante de nossos ouvidos. tram no jazz brasileiro confere com a ideia de hibridis- mo contrastivo: as tópicas musicais presentes nos temas O esquecimento ou a naturalização da diferença são, de e improvisações estabelecem uma relação de fricção de fato, processos congênitos da memória e, portanto, da musicalidades4. Esta revela a sua relação com discursos história (ver RICOEUR, 2000; ZUMTHOR, 1997). Sobretu- sobre imperialismo cultural norte-americano, identidade do, sem o esquecimento de que o tradicional, o gênero brasileira, globalização e regionalismo. “raiz”, é na verdade um híbrido, produto da circulação transnacional das ideias musicais, as comunidades não Entretanto, a musicalidade não é um sistema fechado e poderiam chamar alguma música de tradicionalmente imutável. Um indivíduo pode tentar desenvolver seu ouvido sua. O tradicional é transnacional por natureza. Na histó- musical em um outro sistema musical, e com isso ele está ria da música, há o constante desenrolar de um proces- desenvolvendo uma outra musicalidade, o que significa o so de fricção e fusão de musicalidades: tópicas, estilos e exercício de uma competência em uma pedagogia estética gêneros contrastivos são reunidos e diluídos em outros sonora particular. O que HOOD (1960) chamou de “bi-mu- de sua espécie, e estes, por sua vez, avançam, formando sicalidade” começou a apontar nesta direção. O que hoje se novas tópicas, estilos, gêneros, unidades com identidade torna claro é que este processo de musicalização envolve própria que podem vir a se fundir. decisões eminentemente sócio-culturais, e estas são toma- das ainda que inconscientemente. Ou seja, um indivíduo O que eu gostaria de destacar é que, quando se fala de pode buscar tornar-se nativo de uma comunidade musical “influência”, trata-se de reconhecer as musicalidades através de uma autodeterminação em absorver aquela for- constituintes de um estilo, seja pela análise das mais ma particular de musicalidade, mas este afinco necessaria- evidentes, contrastivas, ou por uma arqueologia que mente inclui elementos simbólicos que coordenam os ne- revela mesmo no mais auto-regulado dos estilos uma xos sócio-culturais da musicalidade: estes fazem parte do diversidade de vínculos distantes. Por exemplo, no caso pacote absorvido pelo estudante. Por isso, a musicalidade da linguagem musical de J. S. Bach, já é bem conhecido não está no indivíduo, não depende de sua habilidade, mas o fato de que este compositor estudou muito a música se encontra sim na comunidade e seus gêneros musicais, barroca italiana, conhecendo profundamente os estilos que estão em permanente trânsito e transformação. de Frescobaldi, Vivaldi, Corelli, e formas como concerto e ricercare (ver WOLFF et al, 2010). Para o ouvinte regular Falamos de hibridismo contrastivo e fricção de musicali- contemporâneo, entretanto, este eco se encontra fun- dades, mas e o hibridismo homeostático na música, seria dido na musicalidade bachiana, juntamente com outras possível? Esta situação de contraste ou conflito poderia musicalidades que constituem seu estilo. Além disso, o ser um período transitório que tenderia à construção de estudo da integridade sócio-cultural das musicalidades uma estabilidade de gênero? E este poderia reiniciar o nesta fusão pode revelar aspectos sociais, políticos e re- ciclo entrando em fricção com outro conjunto? A fricção ligiosos importantes para uma compreensão mais funda pode ser vista como uma fase de um processo que leva a da música, da pessoa e do tempo de Bach: nexos ativos, um estado de homeostase que se poderia chamar de “fu- reconhecidos na sua época, como as figuras de retórica, são de musicalidades”. Como a musicalidade é uma me- e mesmo outros mais subliminares, relacionados a ques- mória, as musicalidades constituintes da fusão não mais tões políticas e sociais (MCCLARY, 1987). Outro exemplo se farão distintas no mundo nativo e não haverá, portan- é a presença da modinha na música brasileira, já exaus- to, nenhuma fricção. Para que esta fusão pudesse ocorrer tivamente estudada (VEIGA, 1998). Dada como gênero seria necessário que os elementos sócio-culturais ineren- atualmente extinto, a modinha teve grande sucesso no tes às musicalidades, referentes a aspectos existentes no Brasil a partir do século XIX, principalmente na corte (ver mundo social das comunidades musicais, também entras- MONTEIRO, 2008), e penetrou na musicalidade brasileira sem, de alguma forma, em alguma espécie de diluição. O de forma definitiva, sobrevivendo através de tópicas tre- conflito existente no contraste haveria de ser apaziguado mendamente ativas em vários repertórios da música bra- por um consenso ou acordo: este seria eminentemente sileira5: trata-se de uma parte fundamental do universo simbólico, pois a desigualdade é congênita ao mundo de tópicas época-de-ouro (adiante tratarei mais disso).

105 PIEDADE, A. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo...Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.103-112.

Pode-se mencionar também a musicalidade caribenha no Muitas vezes se utiliza o conceito de hibridismo para tra- samba-canção, via bolero (ARAÚJO, 1999), que marcou tar da imbricação de elementos estilísticos que sintetizam uma parte importante da bossa nova: tópicas caribenhas uma obra ou gênero musical. Esta mistura de elementos é estão vivas em diversos repertórios brasileiros, especial- normalmente positivada, tomada como índice de comple- mente a batida de bongô. Estes casos podem ser consi- xidade ou sofisticação. Pressupõe-se assim a possibilidade derados exemplos de fusão de musicalidades, pois apa- de síntese, de fusão, mas esta nem sempre implica em uni- rentemente não há conflito inerente: ao contrário, parece dade, ainda que a consciência perceptiva tenda de início a ter havido um consenso tácito na geração destes gêneros tomar o corpo sonoro como uno e estável. Tenho trabalha- que lançou para o esquecimento a multiplicidade original do a noção de tópicas musicais da musicalidade brasileira (que, no entanto, não deixa de existir e de se revelar seja para tentar identificar e isolar estes elementos A e B que no discurso do senso comum quanto na análise). Haveria são utilizados em largo espectro em diversos repertórios centenas de exemplos como estes a dar: de fato, creio que da música brasileira, com a particularidade de se fazerem este processo de fricção e fusão de musicalidades se dá contrastivos entre si a ponto de se destacarem no tecido constantemente em vários sistemas musicais do mundo musical e de portarem remissões significativas a elemen- todo. Acho que o cenário das musicalidades, como aque- tos culturais. Estes elementos, creio, podem ser agrupados le das culturas, é de permanente encontro, intercâmbio em um número reduzido de categorias gerais, os universos e mudança ocorrendo em diferentes intensidades e ve- de tópicas. Entre os universos de tópicas mais centrais da locidades. Há setores da música mundial que são mais musicalidade brasileira, há as tópicas “brejeiro”, “época- propensos às mudanças rápidas, enquanto outras regi- de-ouro” e “nordestinas”. Abaixo vou apresentar um resu- ões musicais trabalham mais pela permanência. Ou seja, mo destes três universos de tópicas, conforme exposto em usando novamente o conceito de Lévi-Strauss, creio que PIEDADE (2007) e PIEDADE & BASTOS (2007). há musicalidades frias e quentes.

Ex.1 - Cadências “nordestinas” em Sol.

106 PIEDADE, A. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo...Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.103-112.

3 - Tópicas manifesta no gingado da capoeira: o corpo faz gestos Desde cedo, na literatura, o nordeste se apresentou como surpreendentes, o oponente toma uma rasteira e cai. O Brasil profundo, e a musicalidade nordestina levou a um brejeiro se consolida na figura mítica do malandro, que universo de tópicas muito importante na música brasi- ginga a sociedade com seus pés, desafia a legalidade com leira. Não basta ser dórico ou mixolídio, com ou sem 4ª sua esperteza. Ou seja, desloca o tempo forte e o acentua aumentada, para levantar uma evocação do nordeste: é no fraco, realiza a “quebrada”, ataca uma nota com uma preciso que estas alturas apareçam em figurações es- ornamentação cromática que causa a impressão de erro, pecíficas, como a cadência nordestina. No Ex.1, acima, mas que revela a precisão de uma transformação brejeira. encontra-se a cadência nordestina em Sol com variações Vou apresentar alguns exemplos, alguns destes já men- adequadas ao dórico e ao mixolídio. cionados em BASTOS (2008), onde há vários exemplos de tópicas no choro e no jazz brasileiro. Um exemplo é o As tópicas nordestinas são peças-chave do repertório do bem conhecido deslocamento rítmico da segunda parte baião, e dali migraram para uma parcela enorme dos gê- de Lamentos, de Pixinguinha, conforme mostra o Ex.2: neros musicais brasileiros. Criou-se o mito do nordeste musical, o mistério do nordeste profundo, que foi fonte A métrica do choro é tipicamente bastante regular, de exuberante para compositores nacionalistas e continua modo que estes deslocamentos se destacam como figura- sendo, passando por Elomar, o movimento armorial, o jazz ções bem marcantes. No Ex.3 temos outro deslocamento brasileiro e muitas outras paragens. rítmico brejeiro que se dá no início do choro Um a Zero, de Pixinguinha. O brejeiro é aquele estilo em que as figurações apare- cem transformadas por subversões, brincadeiras, desafios, É interessante notar que esta melodia foi escrita para exibindo e exigindo audácia e virtuosismo, mas tudo isto flauta, de modo que o trecho remete ao canto insistente de forma organizada, elegante, altiva, por vezes sedutora, de um pássaro que atravessa a música. O brejeiro também maliciosa. Trata-se de um gesto eminentemente individu- se apresenta na composição Joaquim Virou Padre, de Pi- alista: o indivíduo se destaca da massa, como que zom- xinguinha, nas suas subidas e descidas cromáticas surpre- bando de sua regularidade e previsibilidade monótona. O endentes para os anos 20 e que lembram a irreverência de brejeiro está profundamente relacionado a alguns gêne- Thelonius Monk em Well You Needn’t, de 1957. As tópicas ros, como o choro, ali transparecendo originariamente no brejeiro aparecem também no tom lascivo e debochado papel do flautista dos grupos formados no final do século de algumas melodias que vão ser importantes na gafieira, XIX, que usualmente desafiava seus acompanhantes com notadamente nos solos de trombone, mas já no Trombone frases irregulares e rápidas, exibindo algum virtuosismo atrevido, também de Pixinguinha, as notas repetidas evo- instrumental. O brejeiro na musicalidade brasileira se cam esse espírito. No choro Na Glória, de Ary dos Santos

Ex.2 - Deslocamento “brejeiro” em Lamentos.

Ex.3 - Deslocamento “brejeiro” em Um a Zero.

107 PIEDADE, A. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo...Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.103-112.

Ex.4 - Tópicas “brejeiro” na terceira seção de Na Glória.

e Raul de Barros, esta tópica brejeiro aparece na terceira melódicos em certas frases, padrões harmônicos, orna- seção. Esta parte se inicia com arpejos sincopados de Si mentação típica (muitas apojaturas e grupetos) que estão bemol, lembrando um toque militar carnavalizado, e em fortemente presentes nas modinhas, polcas, no choro e, seguida aparece uma tópica bebop (ver PIEDADE 1997, a partir daí, em vários outros repertórios de música bra- 2003; PIEDADE & BASTOS, 2007) que, aliás, muitas ve- sileira, e mesmo em segmentos de obras de um estilo zes é executada com swing de jazz. Em seguida, citações completamente diferente do ambiente época-de-ouro. diretas brejeiramente evocam o militar, com o hino do Para ficar com Pixinguinha, o Ex.5 apresenta um trecho expedicionário e a cerimônia de casamento, com trecho da valsa Rosa com várias tópicas época-de-ouro, como o da marcha nupcial de Mendelssohn. Vejamos esta densa grupeto, o volteio e as apojaturas 6-5 e 2-1. passagem no Ex.4, acima. Este tipo de figuração vem adentrando a musicalidade A citação direta é mais do que simplesmente uma paró- brasileira aos poucos ao longo do século de XIX e se con- dia, é uma “citação em contexto” (PIEDADE, 2005): tí- solida na obra de compositores como Ernesto Nazareth, pica desta do espírito brejeiro, trata-se de encaixar um que se inspirava no lirismo romântico europeu de compo- tema na estrutura da peça que está sendo executada sitores como Chopin (MACHADO, 2007). Surge em modas, um tema, de forma que este outro tema seja reconheci- polcas, maxixes, sambas, marchas-rancho, obras eruditas do pela audiência. Há um contexto específico em toque: de compositores como Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, este encaixe envolve estratégia, perícia, malícia brejeira, Francisco Mignone, canções de Chico Buarque, temas de e isto também deve ser reconhecido pela audiência. Eis Hermeto Pascoal, improvisos de Toninho Horta, enfim, é aqui uma situação típica da retórica. Ao mesmo tempo, o uma faceta viva da musicalidade brasileira que traz como tema citado porta uma significação própria que, injetada nexo simbólico a nostalgia, a flecha que aponta para no tecido que lhe acolheu, cria uma conotação implícita. o passado, o interno, a tradição, a raiz. Como veremos Neste caso, há claramente uma paródia à rigidez mili- adiante, trata-se de uma ficção absolutamente necessá- tar, mas também uma referência aos Estados Unidos via ria para que haja vínculo social. Estes universos de tópi- tópica jazz, e por fim, o casamento, talvez índices que cas flutuam acima da divisão entre o erudito e o popular�, apontam para o quartel e a igreja do bairro. De qualquer em uma esfera onde, articulados entre si e com outras forma, a audiência ela mesma costura estas significações, musicalidades que surgem, são discursos fundamentais ainda que tacitamente. para imaginar a música brasileira.

O universo de tópicas época-de-ouro inclui floreios me- Gostaria de comentar aqui um aspecto das tópicas épo- lódicos das antigas modinhas, polcas, valsas e serestas ca-de-ouro: é o conjunto de tópicas “de banda”. Um dos brasileiras. A execução de traços destas melodias orna- nós da musicalidade brasileira encontra um nexo nas mentadas evoca a simplicidade, a singeleza e o lirismo do bandas militares. A formação aparentemente chega ao Brasil antigo. Este Brasil profundo se expressa em floreios Brasil com a corte de D. João VI (BINDER, 2006)�, as ban-

108 PIEDADE, A. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo...Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.103-112.

Ex.5 - Tópicas “época-de-ouro” em Rosa.

Ex.6 - Deslocamentos de acentuação na marcha, marcha-rancho e frevo.

das militares formaram um modelo que a sociedade civil copa. O Ex.6, acima, traz um esquema simplificado destas podia reproduzir, e assim foram criadas sociedades musi- relações, sobra as quais continuarei tratando adiante. cais em vários municípios brasileiros, chamadas de “Lira”, “Filarmônica”, “Orfeão”, “Associação” ou “Corporação”, O éthos militar atravessa estes gêneros não apenas em ou mesmo “Banda”. Os trajes militares e a formação típica termos rítmicos, mas como uma musicalidade plena. Em se mantiveram, configurando quase que grupos “travesti- todos os casos, ele porta traços de um antigo símbolo de dos” de soldados: havia nas bandas civis um éthos militar alta classe: as bandas tocavam em festas da nobreza, em (BINDER, 2006, p.77-82). Este é um aspecto importante: grandes recepções e cerimônias oficiais da corte imperial, do universo militar a sociedade deseja emular a ordem, os “rituais de monarquia” (como fala BINDER, 2006, p.90). a utopia de uma disciplina ausente na sociedade. A obe- Uma música “elevada” para ocasiões “elevadas”, a força do diência às regras espraia-se na obediência ao maestro, a metal aponta para a altivez, o vigor do Estado. Estes nexos, banda funcionando como alegoria da sociedade ideal. O juntamente com a nostalgia típica do universo época-de- lugar da banda é o coração da cidade, o coreto da praça ouro, estão presentes na realidade musical das tópicas de principal, onde se encontra também a igreja matriz, e aos banda: quando elas soam, soa também a doçura passageira domingos se desenrola o ritual de uma sociedade per- do vigor juvenil e da utopia de transformação social. Como feita, simples, ordenada, religiosa. Estes nexos ecoam no disse Chico Buarque na sua famosa canção, “tudo tomou imaginário nativo quando as tópicas “de banda” apare- seu lugar depois que a banda passou”. cem. A música da banda, por excelência, é a combinação do som dos sopros com a rítmica da marcha, o dobrado. Na capital do Brasil no início do século XX, a musicalidade das bandas vai influenciar a formação do mundo do carna- O militar na musicalidade das bandas remete, portanto, à val com o surgimento da “marchinha”: a marcha-rancho. ordem, disciplina, à perfeição do mundo social, e no frevo Pode-se dizer que ela mesma é um fruto híbrido: de um e marcha-rancho, à sua subversão carnavalizada pela sin- lado, a ênfase melodiosa legato típica das tópicas de se-

109 PIEDADE, A. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo...Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.103-112.

resta e modinha e, de outro, o pulso bem marcado da rít- desvio de olhar do texto musical, desvio que é herdeiro da mica das tópicas de banda. Nesta mistura musical e sócio- velha crítica kermaniana ao formalismo da análise musical cultural, nesta fusão de musicalidades, anseios sociais são (KERMAN, 1987; ver COOK & EVERIST, 2001). Para mim, tratados de maneira ritualizada (ver ARAÚJO et al, 2005). uma forma de superar estes dilemas é analisar a mecânica do hibridismo através da musicalidade e das tópicas mu- No Recife, a aceleração do dobrado e sua fusão com sicais, buscando recompor o significado a partir do ouvido outras musicalidades geraram o frevo, que efetiva uma e da análise musical e através de uma hermenêutica só- espécie de carnavalização da musicalidade das bandas cio-cultural. Entretanto, tal tarefa se torna cada vez mais civis através das tópicas brejeiro. Quero dizer, o frevo, complexa no mundo atual devido ao constante armazena- além do andamento rápido, traz figurações melódicas mento e disponibilização de repertórios musicais, que infla de grande agilidade, terminações acentuadas em tem- e gera a imensa diversidade da música composta, tocada e po fraco, tipicamente instrumentais. Há no frevo uma ouvida hoje em dia, bem como devido ao fluxo das culturas transgressão do militar, um espírito guerreiro (ARAÚJO, mundiais em aceleração aparentemente irrefreável. 1997) que pode remeter a um nexo afro-brasileiro ou indígena. De início música instrumental (SUASSUNA et O cenário mundial das músicas é estruturado por uma al, 1997, p.223), o frevo foi se transformando em dança, assimetria de centro e periferia, sendo que o fluxo cultu- carnaval típico, frevo-canção e gênero musical estável ral torna a periferia mais receptora de bens materiais ou na música brasileira. No entanto, no frevo ainda sobre- simbólicos emanados a partir do centro, embora o fluxo vivem os pilares da marcha militar, nele ainda está ativo contrário exista, aliás, sob a vigência de um sistema de o nexo aerofônico com a musicalidade das bandas. Por propriedade bastante desigual (MALM, 2008). Segundo isso, além do universo brejeiro, o gênero frevo partilha HANNERZ (1991) isto faz parte de um processo de homo- do universo de tópicas época-de-ouro. Entre os compo- geneização global da cultura que pode levar a duas possi- sitores atuais que cultivam tópicas de banda, especial- bilidades: uma é a “saturação”, na qual o fluxo de influên- mente via frevo, se encontram Hermeto Pascoal, Egberto cia transnacional seria tal que tomaria completamente a Gismonti e Marlos Nobre. sensibilidade de uma cultura periférica, tornando-a cada vez mais indistinta em relação ao centro. É a versão global 4 - Considerações Finais da ideia de assimilação, ou integração. Outra tendência é O que eu estou tentando mostrar com estes exemplos é o que este autor chama de “maturação”, onde as culturas que o conceito de hibridismo nos estudos musicais funcio- periféricas poderiam colonizar este fluxo através de pro- na em uma camada tal que muitas vezes oculta um proces- cessos como a criolização, hibridismo, sincretismo, entre so interior e anterior cuja investigação tem, a meu ver, bom outros, o que acabaria por dissolver a polarização cen- rendimento através da musicalidade e do ensejo retórico tro-periferia nos fluxos culturais. Não compartilho desta implícito nestes gêneros. O termo hibridismo ganhou mui- utopia de dissolução da polarização global, mas acredito, to peso nos estudos literários e humanidades a partir de como este autor, que a cultura é ela mesma uma virtua- BAKHTIN (2008), porém, com a crítica cultural dos anos 70, lidade em fluxo (ver HANNERZ, 1997). Ou seja, a cultura os estudos do pós-colonialismo (BHABHA, 1994) impingi- é um fluxo, seu aspecto estável decorre da necessidade ram na ideia de hibridismo seu necessário caráter ideoló- de criação de tradições e territórios particulares com os gico que, apesar de indubitavelmente importante, muitas quais um grupo se identifica: é a necessidade humana de vezes simplesmente não é o caso nos estudos musicais. pertencimento a um grupo limitado, contrastivo em rela- ção a outros que cria a cultura�. A música é um fenôme- O debate sobre transformações e mudanças no universo no fundamental neste processo, mas as músicas também da música é, em geral, tratado através do típico discurso são fluxos, tramados ao calor da história. Gêneros, estilos, das “influências”, que acaba esterilizando processos cuja motivos, frases, harmonias que se atravessam formando pertinência excede o indivíduo e abrange a comunidade ou novas combinações: o hibridismo é um processo congêni- a cultura. Se a musicologia contemporânea tem se debru- to e inevitável na música. Através das tópicas, como elas çado intensivamente sobre esta abrangência sócio-cultural são cristalizações estáveis destes conteúdos, talvez seja das músicas (ver ARAÚJO et al, 2008; CLAYTON et al, 2003; possível perseguir algumas linhas que costuram os tecidos STOBART, 2008; WILLIAMS, 2007), ao mesmo tempo há um mutantes que compõem as músicas no século XXI.

110 PIEDADE, A. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo...Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.103-112.

Referências AGAWU, V. Kofi. Playing with signs: a semiotic interpretation of classic music. Princeton: Princeton University Press, 1991. ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Carnaval do Recife: a alegria guerreira. Estudos Avançados, vol.11, n.29, 1997, p.203-216. ARAÚJO, Samuel. The Politics of Passion: The Impact of Bolero on Brazilian Musical Expressions.Yearbook for Traditional Music, Vol. 31, 1999, p.42-56. ARAÚJO, Samuel et al. Entre palcos, ruas e salões: processos de circularidade cultural na música dos ranchos carnavales- cos do Rio de Janeiro (1890-1930). Em Pauta, 16, 26, 2005, p.73-94. ARAÚJO, Samuel et al (eds) Música em Debate – perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj, 2008. BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo/ Brasília: Hucitec/Editora Unb, 2008. BARTH, Fredrik. Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture difference. Prospect Heights, Illinois: Waveland Press, 1998. BASTOS, Marina Beraldo. Tópicas na música popular brasileira: uma análise semiótica do choro e da música instrumental. Monografia de Conclusão de Curso de Graduação. Florianópolis: Udesc, 2008. BAUMANN, Zygmund. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. BHABHA, Homi K. The Location of Culture. London: Routledge, 1994. BINDER, Fernando Pereira. Bandas Militares no Brasil: difusão e organização entre 1808-1889. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Unesp, 2006. BRAH, Avtar & COOMBES, Annie (eds.) Hybridity and its Discontents: Politics, science, culture. London: Routledge, 2000. CANCLINI, Néstor García. Hybrid Cultures: Strategies for Entering and Leaving Modernity. Minneapolis: University of Min- nesota Press, 1995. CAZARRÉ, Marcelo. A trajetória das danças de negros na literature pianística brasileira: um estudo histórico-analítico. Pelotas: Ed. da Ufpel, 2001. CLAYTON, Martin et al (eds.). The Cultural Study of Music: A Critical Introduction. New York and London: Routledge, 2003. CLIFFORD, James. Routes: Travel and Translation in the Late Twentieth Century. Cambridge: Harvard University Press, 1997. COOK, Nicholas & EVERIST, Mark (eds.) Rethinking Music. Oxford: Oxford University Press, 2001. FEATHERSTONE, Mike & LASH, Scott M. (eds.) Spaces of Culture: City, Nation, World. London: Sage, 1999. GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997. HANNERZ, Ulf. Scenarios for Peripheral Cultures. In Anthony King (ed.) Culture, Globalization and the World-System. London: Macmillan, 1991, p.107- 128. HANNERZ, Ulf. Fluxos, Fronteiras, Híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional. Mana 3(1), 1997, p.7-39. HATTEN, Robert S. Interpreting musical gestures, topics, and tropes: Mozart, Beethoven, Schubert. Bloomington and India- napolis: Indiana University Press, 2004. HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (eds). The Invention of Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. HOOD, Mantle. The Challenge of Bi-musicality. Ethnomusicology, 4, 1960, p.55-59. KERMAN, Joseph. Musicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1987. LATOUR, Bruno. Jamais fomos Modernos: Ensaios de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. LÉVI-STRAUSS, Claude. O Campo da Antropologia. In (do autor) Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Bra- sileiro, 1989, p.11-40. LIMA, Edilson de. As Modinhas do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001. MACHADO, Cacá. O enigma do homem célebre: ambição e vocação de Ernesto Nazareth. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007. MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo na sociedade de massa. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1987. MALM, Krister. A expansão dos direitos de propriedade intelectual e a música – uma área de tensão, in Samuel Araújo et al (eds) Música em Debate – perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj, 2008, p.87-98. MCCLARY, Susan. The Blasphemy of Talking Politics during Bach Year. In Richard Leppert & Susan McClary (eds.) Music and Society: The Politics of Composition, Performance and Reception. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p.13-62. MONTEIRO, Maurício. A construção do gosto: música e sociedade na corte do Rio de Janeiro 1808-1821. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008. NEDERVEEN PIETERSE, Jan. Globalization as Hybridization. In Mike Featherstone et al (eds.) Global Modernities. London: Sage, 1995, p.45-68. NEDERVEEN PIETERSE, Jan, Hybridity, So What? – The Antihybridity Backlash and the Riddles of Recognition. Theory, Culture & Society, 18, 23, 2001, p. 219-245.

111 PIEDADE, A. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo...Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.103-112.

PIEDADE, Acácio & BASTOS, Marina. Análise de improvisações na música instrumental: em busca da retórica do jazz brasileiro. Revista Eletrônica de Musicologia, v.XI, 2007. PIEDADE, Acácio & BENKE, Ester. Tópicas em Camargo Guarnieri: uma análise da Sonatina Nr. 1. Anais do XIX Congresso da ANPPOM. Curitiba, 2009. PIEDADE, Acácio. Música Instrumental Brasileira e Fricção de Musicalidades. Antropologia em Primeira Mão, v.21, PPGAS/ UFSC, Florianópolis, 1997. PIEDADE, Acácio. Brazilian Jazz and Friction of Musicalities. In E. Taylor Atkins (ed.) Planet Jazz. Jackson: University Press of Mississippi, 2003, p.41-58. PIEDADE, Acácio. Jazz, música brasileira e fricção de musicalidades. Opus, v.11, 2005, p.113-123. PIEDADE, Acácio. Expressão e sentido na música brasileira: retórica e análise musical. Revista Eletrônica de Musicologia, v.XI, 2007. PIEDADE, Acácio. Tópicas em Villa-Lobos: o excesso bruto e puro. Anais do Simpósio Internacional Villa-Lobos. São Paulo, no prelo (s/d). PIEDADE, Acácio. “Música Instrumental” In David Horn, Dave Laing & John Shepherd (eds.) Encyclopedia of Popular Music of the World - Vol. IX, Genres of Caribbean and Central and South American Origin. New York - London: Continuum, 2010. RATNER, Leonard G. Classic music: Expression, form, and style. New York: Schirmer Books, 1980. RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Éditions du Seuil, 2000. STOBART, Henry (ed.). The New (Etnho)musicologies. Lanham: Scarecrow Press, 2008. SUASSUNA, Ariano et al. O Nordeste e sua música. Estudos Avançados, vol.11, n.29, 1997, p.219-240. VEIGA, Manoel. O estudo da modinha brasileira. Latin American Music Review,19,1,1998, p.47-91. ZUMTHOR, Paul. Tradição e Esquecimento. São Paulo: Hucitec, 1997. WERBNER, Pnina & MODOOD, Tarig (eds.) Debating Cultural Hybridity: Multi-Cultural Identities and the Politics of Anti- Racism. London: Zed Books, 1997. WILLIAMS, Alastair. Constructing Musicology. London: Ashgate, 2007. WOLFF, Christoph et al. “Bach”. Grove Music Online/Oxford Music. Disponível em http://www.oxfordmusiconline.com/ subscriber/article/grove/music/40023, acessado em 10/10/2010.

Notas 1 Para referências básicas no debate do hibridismo na atualidade, incluindo autores que criticam este conceito, ver BHABHA (1994), BRAH & COOM- BES (2000), CLIFFORD (1997), FEATHERSTONE & LASH (1999), NEDERVEEN PIETERSE (1995, 2001) e WERBNER & MODOOD (1997). 2 Compreensão no sentido de uma hermenêutica da cultura (Cf. GEERTZ, 1997). 3 Ver também a ideia de “tribos contemporâneas” (MAFFESOLI, 1987). 4 Tópicas são figuras de retórica. O termo é oriundo do conceito aristotélico topoï, parte do jargão filosófico dos estudos de Retórica. O que alguns musicólogos têm denominado topics envolve uma teoria analítica da expressividade e do sentido musical que se pode chamar de “teoria das tópi- cas” (RATNER,1980; AGAWU,1991; HATTEN;2004).O universo estudado por estes autores é o da música europeia do período clássico e romântico. No entanto, creio que a teoria das tópicas é uma excelente via na compreensão da significação musical e da musicalidade em geral, sendo que sua adaptação para o âmbito da música brasileira é uma maneira fértil de lidar com o aspecto expressivo da musicalidade brasileira (ver PIEDADE, 2007). 5 LIMA (2001) traz partituras e análises de uma coleção de modinhas do século XVIII. Ali se pode encontrar diversas figurações de tópicas época-de- ouro que ainda hoje transitam pela música brasileira. 6 Como exemplos do estudo de tópicas na música de concerto, posso mencionar CAZARRÉ (2001), que estudou tópicas nas danças negras (batuques, sambas, jongos, lundus, etc), parte do repertório pianístico brasileiro desde 1850. Camargo Guarnieri emprega amplamente tópicas caipiras e época- de-ouro (PIEDADE & BENCKE, 2009), e o estilo de Villa-Lobos tem como um de seus marcos as tópicas indígenas e ecológicas, além de um profundo idioma época-de-ouro (PIEDADE, s/d). 7 BINDER na verdade afirma que a formação das bandas é anterior à chegada da corte (2006, p.62). 8 A contrastividade é mesmo um fator fundante da própria identidade e etnicidade (BARTH, 1998).

Acácio Tadeu de C. Piedade é bacharel em Composição (UNICAMP), mestre e doutor em Antropologia (UFSC). Atual- mente é professor associado do Departamento de Música e do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), onde ministra aulas de Análise Musical e Musicologia-Etnomusicologia. Suas pesquisas envolvem a análise musical e a música em seu contexto sócio-cultural e histórico. Suas publicações envolvem estudos sobre música indígena, música popular e erudita brasileira.

112 LIMA, L. C. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.113-123.

Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali

Luciano Chagas Lima (Université de Montréal, Canadá) [email protected]

Resumo: Composta por Radamés Gnattali (1906-1988) em 1956 para bandolim solista, conjunto de choro e orquestra de cordas, Retratos é uma suíte em quatro movimentos onde são homenageadas algumas das mais expressivas per- sonalidades do cenário da música popular brasileira: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. O que dá forma e sustenta a narrativa da obra é a ideia de que os movimentos constituem retratos musicais destes compositores. Assim, a estrutura de cada movimento foi elaborada a partir de um modelo, ou seja, de cada com- positor Gnattali escolheu uma peça que serviria de roteiro para o processo criativo dos retratos. Este estudo tem como foco o segundo movimento da suíte, a valsa, observando como está relacionado ao seu respectivo modelo, a valsa Expan- siva de Ernesto Nazareth (1863-1934). Para ilustrar o paralelo será apresentada uma análise mais comparativa do que formal, procurando ampliar a visão do contexto histórico com evidências musicais, concentrando-se principalmente nos elementos comuns a ambas as peças. Palavras-chave: Radamés Gnattali; Ernesto Nazareth; valsa; Retratos; Expansiva.

Ernesto Nazareth and the waltz from Radamés Gnattali’s Suíte Retratos

Abstract: Written in 1956 by Brazilian composer Radamés Gnattali (1906-1988) for solo mandolin, choro ensemble and strings orchestra, Retratos (namely, Portraits in Portuguese) is a four movement suite that pays homage to some of the most significant personalities in the history of Brazilian popular music: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros and Chiquinha Gonzaga. What shapes and supports the suite’s narrative is the idea that the movements rep- resent musical portraits of these composers. As a result, each movement was structured after a model, that is, Gnattali has chosen a particular piece by each composer that would serve as a blueprint for the creative process of the portraits. The focus of this study is the suite’s second movement, the waltz, observing how it is related to its respective model, the waltz Expansiva by Ernesto Nazareth (1863-1934). In order to illustrate this parallel, a more comparative than formal analysis will be provided, in an attempt to expand the view from the historical context to musical facts, drawing special attention to all cross-references present in the work. Keywords: Radamés Gnattali; Ernesto Nazareth; waltz; Retratos; Expansiva.

1- Introdução Uma das obras mais significativas da produção de Rada- ZES, 1998, p.35), com o elemento do maxixe. A escolha més Gnattali, Retratos é uma suíte em quatro movimen- destes quatro estilos pode ser interpretada também como tos onde são homenageados quatro grandes represen- uma breve amostra de alguns dos vários elementos que tantes da cultura musical brasileira: Pixinguinha, Ernesto definiram o perfil da música brasileira: o choro como o Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. principal símbolo da música urbana; a herança europeia A escolha destes compositores justifica-se também pelo representada pela valsa e pelo schottisch; e o ingrediente fato de cada um deles simbolizar um estilo, ou melhor, africano presente no rítmico corta jaca. Definida a estru- pelo fato de suas trajetórias musicais revelarem obras que tura da suíte, os movimentos de Retratos foram designa- podem ser consideradas como paradigmas de um deter- dos da seguinte forma: I - Pixinguinha (choro); II - Ernesto minado estilo. Assim, Pixinguinha entra como o repre- Nazareth (valsa); III - Anacleto de Medeiros (schottisch); sentante maior do choro; Nazareth através da elegância IV - Chiquinha Gonzaga (corta jaca). Dito isto, cabe aqui de suas valsas; Anacleto, maestro da Banda do Corpo de esclarecer que toda menção ao nome de Ernesto Naza- Bombeiros, famoso pelos seus schottisches; e Chiquinha reth ao longo do texto refere-se ao compositor e não ao Gonzaga, “a primeira chorona e primeira pianeira” (CA- título do segundo movimento da suíte.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 26/11/2009 - Aprovado em: 22/06/2010 113 LIMA, L. C. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.113-123.

Vale ainda observar que: também amigos próximos do compositor. Nas palavras no próprio Gnattali: “eu sempre escrevi música para os ...a escolha dos homenageados também está de acordo com o for- meus amigos. Quando eu compunha uma peça para vio- mato de uma suíte, combinando complexidade, diferentes texturas e andamentos em uma coleção de padrões rítmicos contrastantes, loncelo, era para Iberê [Gomes Grosso] tocar. Ele tinha evocando de alguma forma o elemento de dança presente em uma muita bossa, muito jeito para música brasileira” (BAR- suíte barroca (LIMA, 2008, p.1). BOSA, 1984, p.65). A Suíte Retratos foi então dedicada a Jacob Bittencourt, mais conhecido como Jacob do Ban- Mas o que caracteriza a essência de Retratos é o fato dolim, um ícone da história do choro por quem Gnattali de cada movimento ser baseado em um modelo. Gnattali tinha muito apreço. A primeira audição deu-se na Rádio escolheu de cada compositor uma determinada peça que Nacional, curiosamente tendo como solista não Jacob e serviria de roteiro para o processo criativo dos retratos; nem sequer um bandolinista, mas Romeu Seibel, o Chi- seguindo este princípio, o primeiro movimento foi cons- quinho do Acordeon, que executou a parte do bando- truído a partir do choro Carinhoso, de Pixinguinha; o se- lim ao acordeon. Após um decurso de oito anos desde a gundo elaborado sobre a valsa Expansiva, de Ernesto Na- composição em 1956, a estreia oficial aconteceu no dia zareth; o terceiro sobre Três Estrelinhas, de Anacleto de 24 de agosto de 1964, ocasião do lançamento da gra- Medeiros; e o quarto movimento sobre o maxixe Gaúcho, vação realizada seis meses antes, no saguão do Museu também conhecido como Corta Jaca, de Chiquinha Gon- Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, tendo Jacob zaga. É importante ressaltar que os movimentos da suíte como solista e Gnattali como regente. de forma alguma podem ser qualificados como arran- jos ou que foram meramente “inspirados” nestas peças. Gnattali explora sim os modelos à risca, mas transforma 2- Ernesto Nazareth os elementos originais e dá a Retratos uma identidade Compositor e pianista, Ernesto Nazareth nasceu no Rio de própria que a sustenta como obra artística. Presente no Janeiro no dia 20 de março de 1863. Iniciou os estudos dia da gravação, uma tarde chuvosa de quinta-feira, o de piano com sua mãe, aperfeiçoando-se mais tarde com jornalista e musicólogo Lúcio Rangel observa: Eduardo Madeira e Lucien Lambert que lhe transmitiu um profundo entendimento da música de Chopin, uma gran- Na “suíte”, os retratos são padrões de originalidade e, ao mesmo de influência na sua obra. Enfrentando sérios problemas tempo, dão ideia perfeita de quatro grandes músicos que são Pixin- de saúde mental, Nazareth foi internado na Colônia Ju- guinha, Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth e Chiquinha Gon- zaga. Não direi que Radamés dignificou esses músicos já digníssi- liano Moreira, em Jacarepaguá, vindo a falecer no início mos: compreendeu, que é melhor. E criou, não “à manière de”, mas de fevereiro de 1934. na maneira de Radamés (RANGEL in GNATTALI, 1964, CBS 60099). Nazareth teve uma participação marcante na cena mu- Escrita originalmente para bandolim solista, orquestra sical do Rio de sua época, onde “seus tangos foram exe- de cordas e conjunto regional, Retratos não deixa tam- cutados e gostados, se espalharam, e o compositor teve bém de fazer alusão à forma concerto. Em uma crítica a glória de ser tão familiar na pátria inteirinha [...]” (AN- sobre a suíte, o crítico e musicólogo Eurico Nogueira DRADE, 1926, p.121). E um dos espaços a acolher e fazer França comentou que Radamés Gnattali havia composto as honras de vitrine para a música de Nazareth foi o Cine “uma espécie de concerto – sem buscar nenhuma es- Odeon. Inaugurado em 1909, este lugar logo se instaurou pécie de ligação com o conceito tradicional da forma” como um pólo cultural que reunia a elite da época. (apud BARBOSA, 1984, p.66). Até mesmo na contraca- pa do disco da primeira gravação (GNATTALI, 1964, CBS Dentro de um programa de ‘atrações’, as empresas exibidoras davam-se ao luxo de apresentar ao público, na ‘sala de espera’, 60099) consta a inscrição “Concerto para bandolim, or- audições com os melhores conjuntos musicais, que em tournées questra de cordas, violão e cavaquinho”. Mas, segundo passavam pelo Rio [...] e, como atração nacional,[...] Ernesto Naza- Hermínio Bello de Carvalho, Radamés não aprovava o reth. Sua presença no Odeon tornou-se acontecimento significati- título de “Concerto”, dado à sua revelia, e preferia ver vo para a vida musical da cidade. Havia muita gente que comprava o ingresso e, em lugar de entrar nas salas de projeção, ficava ali, Retratos denominada como “Suíte”. “Concerto ou Suíte? junto do estrado, a ouvi-lo tocar horas a fio (PINTO, 1963, p.41). Música, eis tudo” (CARVALHO in GNATTALI, 1980, Atlan- tic BR 20.055). Retratos teve desde então uma série de Dentre as personalidades de destaque que frequentavam versões, sendo arranjada pelo próprio compositor para o cinema e que apreciavam a música de Nazareth, figu- a Camerata Carioca; piano e orquestra; orquestra sem ravam Ruy Barbosa, Darius Milhaud, Henrique Oswald, solista; dois violões; três violões; para o seu quinteto Villa-Lobos, Arthur Rubinstein, Tomás Téran, entre ou- (dois pianos, baixo, guitarra e bateria); além de inúme- tros. Mas também havia gente que, sem recursos para ros arranjos elaborados por outros músicos. A partitura pagar o ingresso, ouvia Nazareth do lado de fora do ci- utilizada como referência neste estudo é a da versão nema. Conforme observa BARBOSA (1984, p.17), “ouvir para dois violões (Ed. Sérgio e Odair Assad) publicada Ernesto Nazareth ‘do lado de fora’ do cinema Odeon foi pela casa editora Henry Lemoine, Paris. para Radamés, se não o ideal, o suficiente para perceber todas as nuances de interpretação daquele já consagra- Radamés conviveu ao longo da sua carreira com a “fina do pianista”. Mas, como prova o testemunho abaixo, o flor dos intérpretes brasileiros” (BARBOSA, 1984, p.65), contato de Gnattali não se restringiu à distância do es- dos quais alguns, além de grandes instrumentistas, eram pectador sem ingresso:

114 LIMA, L. C. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.113-123.

Foi em 25 ou 26, no Cinema Odeon, na Rio Branco esquina com plemento consequente, repetindo parte do conteúdo do Sete de Setembro. Eu vinha andando pela avenida e ouvi um som primeiro grupo e concluindo com uma cadência perfeita. de piano. Era o Nazareth tocando e eu já conhecia as músicas dele. Nazareth tocava num piano de armário em cima de um estrado, perto de umas cadeiras de veludo, atrás de uma parede de vidro Gnattali mantém na valsa da Suíte Retratos estes tra- na sala de espera. Toquei várias vezes pra ele (Gnattali citado por ços formais que definem o contorno deExpansiva , porém DIDIER, 1996, p.75-76) vistos através de um viés diferente. Talvez a principal di- ferença em termos estruturais seja a presença de uma in- Gnattali tanto admirava a música de Nazareth que gravou trodução e uma Codeta, assim como realizado no primeiro em 1954 um disco dedicado exclusivamente à obra do movimento da suíte. No entanto, esta Codeta não passa pianista (Continental LP-V-2001). O repertório incluía Ex- de uma variação dos cinco últimos compassos da seção pansiva, Tenebroso, Ameno Resedá, Odeon, Fon-Fon, Apa- A, sendo inserida no mesmo ponto estrutural, comple- nhei-te Cavaquinho, Confidências e Batuque. Coinciden- tando o arco de trinta e dois compassos. A forma rondó é temente, outro grande admirador da arte de Nazareth foi preservada, apresentando apenas algumas alterações: ao Jacob do Bandolim. Segundo PAZ (1997, p.98), “para ele, passo que Nazareth faz uma repetição literal do A após o Nazareth não apenas fotografou e criou a alma brasileira. B em Expansiva, Gnattali apresenta na valsa da suíte uma ‘Ele foi mais eclético. Foi mais além das nossas fronteiras. versão transformada e abreviada deste segundo A, con- O fraseado dele é uma coisa muito mais ampla do que os tendo apenas dezesseis compassos. Finalmente, a terceira limites do Brasil’”. Jacob não só estudava a fundo a obra parte da valsa de Retratos possui um ritornello que não de Nazareth, como provam as análises, notas e observa- ocorre em Expansiva. Assim, as estruturas de ambas as ções feitas pelo bandolinista nas partituras encontradas peças poderiam ser resumidas da seguinte forma: no seu arquivo, mas também, “das coisas mais simples às mais complexas, seu forte compromisso com a verdade Expansiva: A – B – B – A – C – A levou-o, como no caso de Ernesto Nazareth, a desvendar Retratos – valsa: Introdução – A – B – B – A’ – C – C – A – Codeta os mistérios que cercaram sua morte” (PAZ, 1997, p.25). Como intérprete, Jacob foi um grande divulgador da obra Tendo em vista um resultado mais idiomático, a tonali- de Nazareth, incluindo várias composições do pianista em dade original de Expansiva foi transposta para Dó maior discos seus, com destaque para Jacob Revive Músicas de na valsa da suíte, favorecendo assim uma textura mais Ernesto Nazareth (RCA Victor BP-1) de 1952. apropriada para o bandolim que segue o mesmo padrão de afinação do violino em intervalos de quinta (Sol, Ré, 3- Elementos comuns entre a valsa de Retra- Lá, Mi). Todavia, Gnattali em nada altera o esquema har- tos e Expansiva mônico original, mantendo a mesma proporção do quinto Nazareth compôs diversas peças dentro dos diferentes e quarto graus para a segunda e terceira partes de sua estilos em voga na sua época, tangos brasileiros, polcas, valsa. Já no tocante à quadratura das frases, apesar de choros, mas talvez o que pudesse melhor representar “a Gnattali preservar a mesma moldura de dois grupos de força conceptiva, a boniteza da invenção melódica, [e] dezesseis compassos em cada parte, a valsa da suíte não a qualidade expressiva” (ANDRADE, 1926, p.124) da sua apresenta exatamente a mesma simetria de Expansiva. música fosse a valsa. Dentre as suas 41 valsas, Gnattali escolheu Expansiva para servir como modelo para o se- Após a introdução, da qual trataremos mais adiante, a gundo retrato da suíte. Curiosamente, esta valsa é a peça exposição da valsa de Retratos é claramente derivada do que abre o disco gravado por Gnattali acima mencionado, modelo original, com a longa sustentação da terça na sendo também gravada por Jacob em 1960 no disco Val- melodia (Ex.1 e Ex.2). Visando ilustrar com mais clareza sas Brasileiras de Antigamente. Apesar da manifesta in- o paralelo proposto neste estudo, todos os exemplos a fluência de Chopin na obra de Nazareth, Expansiva parece seguir terão Expansiva transposta meio tom abaixo. ter sido inspirada em uma peça de outro grande composi- tor do universo pianístico, Liebestraum n.3 do húngaro Com relação ao contorno descendente do baixo, em Ex- Franz Liszt. Mas isto é objeto para um futuro estudo, já pansiva esta linha combina posições fundamentais com que uma análise mais detalhada sobre o assunto foge do inversões, partindo de um Dó para um Mi uma sexta me- âmbito desta pesquisa. nor abaixo, resultando em um total de sete compassos. Já na valsa de Retratos, esta linha é transformada e compri- Escrita em 1912, Expansiva apresenta a estrutura de um mida em uma unidade de três compassos, mas preserva rondó de três partes, uma forma típica da tradição do ainda o mesmo intervalo de sexta menor. choro. A tonalidade original é Ré bemol maior, dando se- quência a um esquema harmônico onde a segunda e ter- No entanto, apesar de ambas as peças compartilharem a ceira partes exploram o quinto e quarto graus (Lá bemol mesma ideia desta linha de baixo descendente, na valsa da maior e Sol bemol maior), respectivamente. Com relação suíte os acordes estão todos em posição fundamental. Mas à quadratura, as frases em Expansiva são organizadas tanto Nazareth quanto Gnattali incorporam neste trecho em dois grupos de dezesseis compassos, onde o primei- uma nota de passagem não pertencente à escala da pri- ro assume uma função de antecedente, encerrando com meira parte: o acorde diminuto no terceiro compasso de uma cadência imperfeita, e o segundo representa o com- Expansiva e o acorde de F#m7(b5) no segundo compasso

115 LIMA, L. C. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.113-123.

Ex.1: Retratos – valsa c.19-22 (início da seção A)

Ex.2: Expansiva c.1-5 (início da seção A)

Ex.3: Harmonia dos sete primeiros compassos da exposição da valsa de Retratos (c.20-26) e Expansiva (c.1-7)

da exposição da valsa de Retratos (ver Ex.1 e Ex.2). Em Um detalhe interessante deste trecho é que, estendendo relação à distância entre a tônica inicial e a nota de passa- a linha do baixo no âmbito de uma oitava (Ex.4 penta- gem, o acorde diminuto de Expansiva está um tom abaixo grama superior), Gnattali de certa forma retifica não só da tônica; na valsa de Retratos, embora a linha descenden- o cromatismo delineado no baixo dos quatro primeiros te do baixo esteja comprimida, Gnattali estende esta dife- compassos de Expansiva, mas também a compressão rença, aumentando o intervalo para uma quinta diminuta da ideia original discutida anteriormente. Retornando abaixo. Salvo algumas alterações, o tratamento harmônico à introdução, é possível observar que ela contém suas de ambas as peças é bastante similar (Ex.3). próprias referências cruzadas, sendo de certa forma um sumário de toda a estrutura da peça. A anacruse em Após praticamente citar os compassos iniciais de Expan- colcheias, que é um material novo não derivado do mo- siva, a valsa Retratos explora um conteúdo melódico in- delo, é um dos motivos centrais da introdução (Ex.5). teiramente novo sustentado por um conceito harmônico Aliás, esta é uma diferença marcante entre a valsa de diferenciado. Ao atingir o ponto estrutural de uma es- Retratos e Expansiva, sendo que a última começa todas perada repetição na primeira parte, precisamente após o as três partes de forma tética enquanto que Gnattali usa primeiro grupo de dezesseis compassos onde Expansiva o impulso de uma anacruse para cada parte. repete literalmente o mesmo material de seus primeiros oito compassos, Gnattali dá sequência ao segundo grupo Após estes compassos iniciais, a sequência descendente com uma versão transformada deste material (Ex.4). de acordes pode ser relacionada à linha descendente do

116 LIMA, L. C. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.113-123.

Ex.4: Retratos – valsa c.36-39 (início do segundo grupo)

Ex.5: Retratos – valsa c.1-5 (introdução – anacruse)

Ex.6: Retratos – valsa c.6-10 (introdução – acordes descendentes)

Ex.7: Retratos – valsa c.11-14 (final da introdução)

117 LIMA, L. C. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.113-123.

baixo na seção A que, assim como na exposição, serve rítmica é idêntica ao modelo original, mas agrupada também como um tapete harmônico para a nota longa de um modo diferente: em Expansiva há uma ideia sustentada da melodia (Ex.6 c.6-7). Em seguida, a figura básica encerrada em um grupo de dois compassos pontuada (Ex.6 c.8-9) pode ser encarada como uma refe- (Ex.9 c.33-34, c.35-36, etc.) ao passo que na valsa da rência ao ritmo empregado no início da seção B. suíte esta ideia é expandida para um grupo de quatro compassos (Ex.8 c.52-55, etc.). Finalmente, encerrando a introdução, há um movimento melódico com um caráter quase cadencial articulado em A figura rítmica pontuada e a escala ascendente em col- dois grupos de colcheias, como em um compasso de 6/8, an- cheias que se segue constituem os elementos principais tecipando o contorno que será usado na terceira parte (Ex.7). comuns a ambas as peças, uma vez que Gnattali e Naza- Dando continuidade à análise, a segunda parte da reth transitam por caminhos harmônicos distintos. Mas valsa da suíte tem início com uma anacruse, assim há ainda outro vínculo, um motivo elaborado a partir de como ocorre nas demais seções. A seguir, a inflexão um desenho de apogiaturas presente na primeira me-

Ex.8: Retratos – valsa c.51-56 (início da seção B)

Ex.9: Expansiva c.33-37 (início da seção B)

Ex.10: Expansiva c.39-41 (apogiaturas)

118 LIMA, L. C. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.113-123.

Ex.11: Retratos – valsa c.62-64 (apogiaturas)

Ex.12: Expansiva c.23-26 (acorde de sexto grau abaixado em terceira inversão – c.25-26)

Ex.13: Retratos – valsa c.93-96 (acorde de sexto grau abaixado em segunda inversão – c.95)

tade da seção B de Expansiva (Ex.10). Neste trecho as Dentro da forma rondó, a seção A após a segunda par- apogiaturas ornamentam um arpejo descendente sobre te em Expansiva é repetida exatamente como no início. a tônica, formando um grupo de dois compassos com a Na valsa de Retratos, entretanto, este segundo A não repetição do mesmo arpejo uma oitava abaixo. segue as mesmas diretrizes estabelecidas pelo modelo. Conforme discutido anteriormente, Gnattali faz uma re- Gnattali mantém o motivo das apogiaturas, mas in- petição abreviada de dezesseis compassos (exatamente serido em outro ponto estrutural e em um contexto a metade do esperado) e também muda o conteúdo me- harmônico na dominante (Ex.11). Além disso, esta ideia lódico, dando-lhe um caráter de variação temática com é apresentada de uma forma mais curta na valsa de um contínuo fluxo de colcheias. O que é interessante Retratos já que começa na segunda metade do primei- é que neste ponto finalmente surge uma referência ao ro compasso em questão. atraente acorde de sexto grau abaixado em terceira in-

119 LIMA, L. C. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.113-123.

versão presente no final da seção A de Expansiva (Ex.12 a valsa de Retratos apresenta no mesmo trecho um con- c.25-26), mas apenas como um breve acorde de passa- torno melódico mais contido, mas com um movimento gem (e em posição fundamental) para alcançar a tônica harmônico variado em cada compasso. em segunda inversão (Ex.13 c.95). Nazareth faz desta seção um grande moto perpétuo A terceira parte da valsa de Retratos é nitidamente valendo-se de uma malha costurada por colcheias do desenvolvida a partir da seção equivalente de Expan- começo ao fim. Gnattali, entretanto, interrompe o fluxo siva, também iniciando no terceiro grau da escala inicial de colcheias com valores rítmicos diferenciados, (Ex.14 e Ex.15). criando uma atmosfera de caráter improvisatório muito peculiar ao seu estilo. No exato instante onde isto acon- Esta frase em Expansiva, essencialmente um arpejo tece (c.110) a harmonia volta a reproduzir o conteúdo do construído sobre o primeiro grau, projeta-se através de modelo, como se procurasse de alguma forma compensar um grande arco ascendente partindo de um Lá-2 até a transformação melódica para que a música ainda per- alcançar um Ré-6, totalizando uma extensão de três oi- manecesse conectada à fonte (Ex.16). tavas e uma quarta justa. Em contraste à exuberante fartura de um piano, a extensão prática de um bando- Na sequência, o segundo grupo de dezesseis compassos lim não passa de três oitavas (e ainda assim de Sol-2 a (c.118) começa exatamente como o primeiro, da mes- Sol-5). Gnattali busca então outra solução para trans- ma forma que Nazareth procede em Expansiva. Apesar mitir a sensação de movimento gerada pelo trânsito do fato de ambas as peças apresentarem um tratamento das diferentes oitavas, e o resultado é realizado através harmônico distinto neste início de frase, elas acabam se de um ritmo harmônico mais acelerado. Desta forma, reencontrando no mesmo acorde diminuto que prepara o observa-se que no início da terceira parte de Expansiva desfecho cadencial (Ex.17 e Ex.18). o movimento melódico é mais acentuado e a harmonia mais estática (Nazareth simplesmente alterna a posição A única diferença é o uso do primeiro grau em segunda fundamental com sua segunda inversão); inversamente, inversão após o acorde diminuto em Expansiva, o qual é

Ex.14: Retratos – valsa c.101-106 (início da seção C)

Ex.15: Expansiva c.97-101 (início da seção C)

120 LIMA, L. C. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.113-123.

Ex.16: Harmonia compartilhada: Retratos –valsa (c.110-117) e Expansiva (c.105-112)

Ex.17: Retratos – valsa c.126-129 (acorde diminuto)

Ex.18: Expansiva c.121-124 (acorde diminuto)

121 LIMA, L. C. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.113-123.

substituído na valsa da suíte pela primeira inversão se- 4- Considerações finais guida do sexto grau antes das dominantes finais. É fascinante como Gnattali atinge na valsa da su- íte um resultado com uma identidade própria tão Um detalhe relacionado ao aspecto formal é que am- marcante sendo ainda tão fiel ao modelo escolhido, bos os compositores apresentam leituras diferentes no a valsa Expansiva (esta afirmação, aliás, estende-se que diz respeito às repetições dentro da estrutura ron- para os demais movimentos de Retratos e seus res- dó. Em Expansiva, por exemplo, Nazareth não requer pectivos modelos). Para alguém que tem intimidade uma repetição para a terceira parte; Gnattali, entre- com o repertório do choro, uma primeira impressão tanto, preserva o padrão tradicional repetindo esta se- ao ouvir esta obra mostra algo de familiar, deixando ção, compensando de certa forma a inserção abrevia- uma ligeira sensação de déjà vu. Traçando o caminho da da seção A que antecede a terceira parte. De fato, inverso do processo da composição, uma análise mais esta repetição na valsa de Retratos surte um efeito de detalhada revela um mapa onde os caminhos percor- maior contraste em virtude de uma textura mais dinâ- ridos por Gnattali e Nazareth se cruzam no momento mica em comparação ao movimento contínuo de Ex- da criação. E a originalidade de Retratos encontra-se pansiva. Finalmente, a re-exposição da primeira parte exatamente nesta fronteira de contrastes: música de encerra a moldura da forma rondó. Seguindo o mesmo concerto, mas com raízes no choro, desde a escolha procedimento usado no movimento anterior, Pixingui- dos modelos e da instrumentação até a figura do so- nha (choro), a valsa também termina com uma Codeta. lista. Sob o ponto de vista interpretativo, um estudo Mas, enquanto que no choro a Codeta acrescenta ma- comparativo entre os retratos e os modelos contribui terial novo à estrutura, na valsa ela é inserida de modo para o esclarecimento de vários problemas que sur- que apenas completa a frase anterior, incorporando ri- gem ao executar obras com este perfil, onde um dos gorosamente a mesma sequência harmônica dentro do maiores desafios é saber equilibrar os elementos das mesmo espaço de cinco compassos. esferas popular e de concerto.

Referências ANDRADE, Mário de. Música, doce música. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1976. BARBOSA, Valdinha; DEVOS, Anne Marie. Radamés Gnattali: o eterno experimentador. Rio de Janeiro: Funarte, 1984. CARVALHO, Hermínio Bello de. In: GNATTALI, Radamés. Tributo a Jacob do Bandolim. São Paulo: ATLANTIC BR 20.055, 1980. 1 disco sonoro. CAZES, Henrique. Choro: Do Quintal Ao Municipal. São Paulo: Ed.34, 1998. DIDIER, Aluísio. Radamés Gnattali. Rio de Janeiro: Brasiliana, 1996. GNATTALI, Radamés. Suite Retratos. Ed. Sérgio and Odair Assad. Paris: Henry Lemoine, 1987. 1 partitura (20p.). Dois violões. LIMA, Luciano Chagas. Radamés Gnattali e Pixinguinha: Carinhoso no Choro da Suíte Retratos. Anais do Simpósio de Pesquisa em Música, Curitiba, SIMPEMUS5, p.1-5, 2008. NAZARETH, Ernesto. Expansiva. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 1939. 1 partitura (4p.). Piano. PAZ, Ermelinda A. Jacob do Bandolim. Rio de Janeiro: Funarte, 1997. PINTO, Aloysio de Alencar. In: Revista Brasileira de Música 6. Rio de Janeiro: Editora e Gráfica Polar, 1963. RANGEL, Lúcio. In: GNATTALI, Radamés. Retratos – Jabob e seu Bandolim com Radamés Gnattali e Orquestra. São Paulo: CBS 60099, 1964. 1 disco sonoro.

Leitura recomendada BÉHAGUE, Gerard. The Beginnings of Musical Nationalism in Brazil. Detroit: Information Coordinators, 1977. ______. Music in : An Introduction. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1979. ______. “Nazareth, Ernesto.” The New Grove Dictionary of Music and Musicians, ed. Stanley Sadie and John Tyrrell. Lon- don: MacMillan, 2001. Vol. 17: 720-721.

122 LIMA, L. C. Ernesto Nazareth e a valsa da Suíte Retratos de Radamés Gnattali. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.113-123.

Discografia recomendada ALMEIDA, Laurindo; BARBOSA-LIMA, Carlos; BYRD, Charlie. Music of the Brazilian Masters. Estados Unidos: Concord Jazz 4389, 1989. 1 CD. ASSAD, Sérgio e Odair. Duo Assad – Gnattali, Rodrigo, Piazzolla. São Paulo: Con Anima 004-1988, 1988. 1 disco sonoro. ______. Latin American Music for Two Guitars. Holanda: Nonesuch 79116, 1992. 1 CD. ______. Alma Brasileira. Holanda: Nonesuch Records 79179, 1988. 1 CD. BITTENCOURT, Jacob. Jacob Revive Músicas de Ernesto Nazareth. Rio de Janeiro: RCA Victor BP-1, 1952. 1 disco sonoro. ______. Valsas Brasileiras de Antigamente. Rio de Janeiro: RCA Victor BBL 1100, 1960. 1 disco sonoro. CANAUD, Fernanda; NASCIMENTO, Joel. Valsas Brasileiras. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2008. 1 CD. GNATTALI, Radamés. Ernesto Nazareth. Rio de Janeiro: Continental, LP-V-2001, 1954. 1 disco sonoro. ______. Retratos – Jabob e seu Bandolim com Radamés Gnattali e Orquestra. São Paulo: CBS 60099, 1964. 1 disco sonoro. ______. Tributo a Jacob do Bandolim. São Paulo: Atlantic BR 20.055, 1980. 1 disco sonoro. LIMA, Arthur Moreira. Interpreta Ernesto Nazareth n.2. São Paulo: Marcus Pereira MPA 9364/65, 1977. 1 disco sonoro duplo. NASCIMENTO, Joel. Joel Nascimento and the Brazilian Sextet, Live! Estados Unidos: Santa Fe Chamber Music Festival, 1990. 1 CD. NOGUEIRA, Gisela; COSTA, Gustavo. Tocata Brasileira para Pinho e Arame. São Paulo: CPC – UMES, 1998. 1 CD. OFICINA DE CORDAS. Oficina de Cordas apresenta Retratos em Vários Compassos. Campinas: Ministério da Cultura / Se- cretaria da Música e Artes Cênicas, 2001. 1 CD. ORQUESTRA ARMORIAL. Orquestra Armorial - vol 5. Pernambuco: Conservatório Pernambucano de Música, 1981. 1 disco sonoro. ORQUESTRA DE CÂMARA RIO STRINGS. Retratos do Brasil. Rio de Janeiro: Rádio MEC, 2004. 1 CD. RABELLO, Rafael. Rafael Rabello. Rio de Janeiro: Visom LPVO 018, 1988. 1 disco sonoro. TRIO OPUS 12; NÚCLEO HESPÉRIDES MÚSICA DAS AMÉRICAS. Retratos de Radamés. São Paulo: Produção Independente, 2007. 1 CD. VÁRIOS. Pixinguinha 70. Rio de Janeiro: Copacabana COLP 12118, 1968. 1 disco sonoro. ______. Retratos: Radamés Gnattali. Rio de Janeiro: Kuarup Discos KLP 044, 1990. 1 disco sonoro. ______. Prêmio Visa de MPB Instrumental. São Paulo: Eldorado, 1998. 1 CD. ______. Ao Jacob, Seus Bandolins. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2003. 1 CD duplo.

Luciano Lima é Doutor (D. Mus.) pela Université de Montréal (Canadá), Mestre pela McGill University (Canadá) e Bacharel em violão pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Como pesquisador, defendeu sua tese de doutorado sobre os Quatro Concertos para Violão Solo de Radamés Gnattali, além de ter artigos publicados em anais de eventos acadêmicos como XIX Congresso da ANPPOM, SIMPEMUS 5, e II Simpósio Acadêmico de Violão da Embap. Fez parte do quadro de professores da École des jeunes e do Service d’activités culturelles da Université de Montréal, no Canadá, e também das 20ª, 27ª e 28ª edições da Oficina de Música de Curitiba, do 29º Festival de Música de Londrina e do III Simpósio Acadêmico de Violão da Embap. Conciliado às atividades de ensino e pesquisa, Luciano desenvolve carreira como arranjador, solista e camerista, tendo se apresentado no Canadá, Estados Unidos e Brasil.

123 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho: questões sobre iconografia musical em suas capas de disco entre 1950 e 1960

Pablo Garcia da Costa (UnB, Brasília, DF) [email protected]

Beatriz Magalhães Castro (UnB, Brasília, DF) [email protected]

Resumo: K-ximbinho participou juntamente com outros músicos entre as décadas de 1950 e 1960 de um processo que visava modernizar o samba e o choro pela introdução dos elementos diversos do jazz. Esse processo de mistura entre gêneros musicais distintos, compreendido entre os músicos da época como “samba-jazz” ou “choro jazzístico”, não se limitava em misturar elementos rítmicos harmônicos e melódicos, mas também negociar a presença de termos, imagens e vestimentas da cultura estadunidense no Rio de Janeiro pré Bossa Nova. É possível verificar nas capas de discos gravados por K-ximbinho que essa negociação entre duas culturas se manifestava em forma de imagens e textos e visavam informar ao consumidor a que cada obra se destinava, ressaltando a inovação do samba e choro e propondo a criação desse novo estilo musical. Palavras-chave: K-ximbinho; jazz; choro; iconografia musical.

Extra-musical elements in the work of K-Ximbinho: questions about musical iconography in their record covers between 1950s and 1960s

Abstract: K-Ximbinho participated along with other musicians from the 1950s and 1960s in a process aimed at mod- ernizing the samba and choro in the introduction of various jazz.elements into Brazilian traditional styles. This blending of different musical genres, known at the time as “samba-jazz” or “choro jazz” was not limited to mixing rhythmic, harmonic and melodic elements, but also in the negotiation of present expressions, images and ways from North- American culture in Rio de Janeiro in a pre Bossa Nova era. It’s possible to verify on the covers of albums recorded by K-Ximbinho that the negotiation between these two cultures is manifested in the form of images and texts meant to inform the consumer how each work was intended, highlighting the innovation of samba and choro and proposing the creation of this new musical style. Key Words: K-ximbinho; jazz, choro; musical iconography.

1 - Introdução K-ximbinho foi compositor e instrumentista, protagonis- Diante dessa estrutura, verifica-se na trajetória de K-xim- ta de uma fase de transformação na música brasileira. binho, assim como das orquestras Tabajara de Severino Questões como a mistura entre o samba, o jazz e choro Araújo, e do Maestro Cipó entre outros arranjadores e ins- na sua música e os diversos ambientes profissionais em trumentistas da época, um processo de adaptação e reor- que atuou estão presentes num processo modernizador ganização de saberes musicais para a formatação de um da música em meio ao contexto de globalização. Esse novo estilo musical, com elementos harmônicos do jazz contexto se caracteriza pela organização de uma cultura e elementos rítmicos do choro, que permitisse aos músi- de massa, pela disseminação da informação musical pro- cos lugar de destaque no cenário musical. Da intenção de movida pelo rádio e o circuito musical de apresentações e inovar ou modernizar o samba e o choro, nos deparamos festas nas casas noturnas do Rio de Janeiro, promovidas com denominações para estilos e gêneros musicais novos; por uma elite econômica que cumpria, além do papel de samba-jazz e, especificamente discutido por K-XIMBINHO consumidor, também o papel de financiadores e promoto- (1980b), o choro-jazz. Apesar da trajetória de K-ximbinho res da relação entre a música do Brasil e Estados Unidos. se estender até o fim da década de 1970, o período entre

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 22/12/2009 - Aprovado em: 22/06/2010 124 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

1950 e 1960 desponta de forma significativa por verificar quando este, além de seus contemporâneos não escondiam que a efervescência cultural daquela época coincide com o interesse e admiração pelos arranjos e composições das a fase mais atuante do compositor. Dessa época temos big-bands estadunidenses e demais artistas daquele país. o lançamento de três dos seus quatro discos de carreira investigados nessa pesquisa, como também a participação Em outras ocasiões, a atração da noite era o conjunto do saxofo- nista e maestro Cipó, que contava, no seu conjunto, com K-xim- de K-ximbinho como solista ou arranjador em outros dis- binho (clarinete e sax alto), Julinho (piston), Paulinho Magalhães cos de cantores, colegas arranjadores ou grupos formados (bateria) e Chaim Lewak (piano). Nesta boate, como contou Juli- por sindicatos de músicos ou gravadoras. nho, quase não se tocava música brasileira; o que estava na moda eram as melodias francesas e americanas, principalmente aquelas que faziam sucessos nos filmes da época. [...] também fazia parte O levantamento que se pretendeu nessa pesquisa, teve da programação da boate noites em que o artista principal era como estratégia o mapeamento de estudos sobre pro- algum cantor importante da época, como Murilinho de Almeida, cessos composicionais caracterizados pela hibridação, Jamelão e até Ella Fitzgerald (SARAIVA, 2007, p.29-30). mistura e fusão na obra de K-ximbinho: composições, arranjos e improvisação. Foram selecionados trabalhos GARCIA CANCLINI (2001) discute os processos de mis- que analisam tendências e transformações no sam- tura entre elementos de gêneros musicais distintos, so- ba entre as décadas de 1950 e 1960 (SARAIVA, 2007) bre artistas que têm o propósito de criar e/ou pesquisar e obras de outros instrumentistas contemporâneos e/ os elementos que formam suas obras. A hibridação no ou parceiros de K-ximbinho, como Zé Bodega (FABRIS, conceito proposto pelo autor descarta a velha limitação 2005). A escolha dos autores citados dá suporte para biológica em que só é híbrido aquilo que nasce de fontes recriar e entender o contexto sócio-econômico, cultural puras. Em ciências sociais a hibridação é um processo e o pensamento musical em que se inseria o compositor cíclico e dinâmico, e por vezes identificaremos o híbrido na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 do híbrido, facilitando a percepção de novas estruturas e 1970. Feito o mapeamento dos trabalhos citados, ain- e a busca de distinção entre tudo aquilo que se produz da é possível perceber escassez de trabalhos específicos na sociedade. sobre a obra de K-ximbinho que reflitam sobre a relação entre contexto, discurso e prática. Enquanto as discus- O foco não é a hibridez, mas sim o processo de hi- sões de SARAIVA (2007) abordam questões mais abran- bridação. Contudo deixaremos claro que, analisar a gentes sobre o contexto cultural da época, o trabalho de obra de K-ximbinho tendo o processo de hibridação FABRIS (2005) trata de questões especificamente per- como suporte para definir a metodologia de análise, formáticas sobre suas composições. não imprime na obra do compositor esse caráter, pois como alerta KARTOMI (1981/01), a terminologia pode Surge aqui a necessidade de explicitar e entender a mes- não ter grande significado para o compositor ou gru- cla desses elementos, oriundos do jazz, do samba e do po social em que se insere. Tal terminologia não serve choro na obra de K-ximbinho. Considerando que há um como adjetivo para a obra analisada, mas os processos consenso entre os executantes, compositores, estudiosos de produção da obra de K-ximbinho assim como o con- e demais interessados pelos gêneros musicais em questão, texto, o contato, as trocas de experiências, nos levam a admitiremos que o jazz, bem como o choro, são gêneros crer que a definição de GARCIA CANCLINI (2000, 2001) que se consolidaram pela mescla de diversos elementos para processos de hibridação se assemelha às escolhas musicais: instrumentação, arranjos, melodias e “jeito” de e experiências vividas pelo compositor e corroboradas tocar. Todos com referências europeias e africanas que, pelos personagens que descrevem tal história por meio ao se misturarem, resultaram em algo novo, cada um com de depoimentos e entrevistas. características específicas do contexto cultural em que O conceito de hibridação no contexto sócio-cultural foram produzidos (BERENDT, 1975, CAZES, 1999). ajuda a entender mesclas fecundas. O termo hibridação como processo e não como produto põe em evidência a GARCIA CANCLINI (2000) enumera uma série de conse- produtividade e o poder inovador de muitas mesclas in- quências oriundas do processo globalizador, algumas com terculturais, a saber, alguns exemplos: a relação da mú- características de interdependência entre sociedades, ou- sica indiana com os ingleses The Beatles, Paul Simon e tras que julgamos mais adequadas à análise e entendi- o grupo sul-africano Ladysmith Black Mambazo. Numa mento que se pretende em nossa pesquisa. síntese rápida sobre essas relações, percebe-se que esses “Estas mudanças na produção são acompanhadas pela formação grupos ou artistas solo se unem e conseguem produzir de uma “cultura internacional popular” que organiza os consumi- uma música que terá referências particulares de cada dores de quase todos os países com informação e estilos de vida uma das fontes. O processo de readequação não supri- não homogeneizados, mas sim compartilhados em um imaginá- miu nenhuma fonte anterior, o resultado não deve ser rio multi-local constituído por ídolos do cinema de Hollywood e a música pop, os heróis do esporte e design de moda.” (GARCIA classificado como híbrido, mas como um novo produto CANCLINI, 2000, p.4) de significado diferente daquilo que foi produzido antes por cada um dos artistas. Essa criatividade coletiva utiliza Esta citação, corroborada pela descrição de SARAIVA saberes e referências anteriores e as remodela para um (2007) abaixo, alinha-se à observação sobre as influências novo contexto, sugerindo uma nova interpretação diante e fontes musicais que permeiam a obra de K-ximbinho, das quebras de barreiras culturais.

125 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

O que diferirá os exemplos citados acima do caso anali- nas capas, segundo SARAIVA (2007) outra forma de divul- sado nessa pesquisa é o fato de K-ximbinho, no contexto gar um artista era citar seu sucesso no exterior: brasileiro, estar envolto por uma teia de relações muito específica, que diz respeito à questão globalizadora e à Um pouco mais à frente, ainda na mesma avenida, estava a boi- te Fred´s. Esta casa era mais especializada em grandes atrações presença e interferência da cultura dos Estados Unidos, (e pelos anúncios no jornal, investia-se alto na divulgação). Por representada musicalmente pelo jazz, na vida cotidiana exemplo, no dia 23 de novembro de 58, o anúncio da próxima e cultural das capitais Natal e Rio de Janeiro. Em termos atração ocupava metade da página do jornal: “No Fred´s Leny gerais as relações políticas Brasil - Estados Unidos e a Eversong. A cantora brasileira mais aplaudida nos Estados Unidos”. Já naquela época, falar do sucesso adquirido lá nos EUAs era uma indústria musical versus produto artístico. ótima jogada de marketing (SARAIVA, 2007, p.27).

A preocupação para que o objeto de estudo esteja focado A pergunta geral em torno das análises e observações sobre no processo de hibridação e não no híbrido mostra que por o contexto e os personagens que circundam K-ximbinho é meio de estratégias de reconversão de patrimônios, práti- como se dá a influência, nas gerações seguintes da música cas e estruturas, a hibridação interessará “tanto a setores brasileira, de um compositor que possui poucas obras, cerca hegemônicos como aos populares que querem se apropriar de trinta composições. Em seguida surgem indagações sobre dos benefícios da modernidade.” (GARCIA CANCLINI, 2001, o ambiente cultural, a presença da rádio e suas consequên- p.17). Este conceito de modernidade está associado à ino- cias e interferências no modo de pensar e fazer música entre vação e não se contrapõe diretamente com o conceito de os compositores de um dado lugar, e como os músicos de um tradicionalidade. Dessa forma poderemos observar que grupo social se articulam entre si construindo uma espécie transformações podem ocorrer num processo evolutivo, sem de tendência e/ou estilo composicional e interpretativo mar- descartar elementos canonizados que regem ou resguardam cantes na história de um gênero musical. um determinado gênero musical, evitando a perda de suas referências pelo erro da resistência ou total desfiguração. Sem excluir tal possibilidade, não há o propósito especí- fico nesse trabalho de discutir as questões de conflito ou O ambiente, o bar, encontros musicais, diálogos e termi- construção de identidade nacional a partir do choro pro- nologias dos chorões�, são comumente observados a fim duzido por K-ximbinho, tampouco reforçar características de compreender que o choro, como gênero musical, pos- que possam estratificar elementos oriundos do jazz e do sui um jogo de relações que influenciam a performance. choro. A forma como K-ximbinho constrói suas ideias mu- Embora performance não seja o foco dessa pesquisa, ob- sicais e o discurso que ampara e justifica sua obra, além servar esses elementos auxilia na compreensão da noção das articulações entre o compositor e colegas de trabalho, de musicalidade - adequada por K-ximbinho a determi- motivam essa e outras discussões em torno do tema. nados intérpretes, principalmente na situação em que se analisa a mistura de elementos de dois gêneros musicais Muitos dos elementos que K-ximbinho considera como performaticamente bem distintos; choro e jazz. importantes para definir as características do jazz, do samba e do choro, puderam ser verificados em seus de- No caso da música feita por K-ximbinho, a transferência poimentos e confirmados por meio de análise das parti- de lugar onde se fazia e tocava choro, saindo da roda de turas e gravações de algumas de suas composições. Mas choro e dirigindo-se para as boates e demais casas notur- além desse material surgiram, ao longo das observações, nas, revela a percepção dos elementos do jazz, exigindo elementos não musicais que se ligavam diretamente às outra técnica de improvisação pela presença de blue no- estratégias de promover uma mudança no samba e no tes, e a alteração da formação dos acordes, mantendo a choro entre as décadas de 1950 e 1960. ideia de identificação, comparação e análise de elemen- tos entre gêneros musicais que se influenciam, se trans- Uma breve observação sobre as capas dos discos que K- formando por meio de mistura. ximbinho lançou ou das quais participou, sugere a re- lação entre Brasil e Estados Unidos não só pela música, Como forma de entendermos estas questões, propõe-se mas adota a cultura daquele país como um avatar que um estudo a partir das capas de discos de K-ximbinho, simula ou atesta a prática e o estilo musical do jazz que observando elementos extra-musicais. Muito do que se K-ximbinho e seus contemporâneos admiravam. observa por meio das palavras, imagens, listagem e iden- tificação das músicas de cada disco revela como o com- 2 - Análise das capas de disco positor intervinha na produção dos discos, ao negociar a SARAIVA (2007) fez um trabalho de investigação históri- presença dos elementos extra-musicais que remetem ao ca, seguindo um caminho temporal inverso; parte de uma jazz, ao samba e ao choro. Essa comunicação pelas capas coleção de discos relançados em CD e percebe que muitos nos mostra como os músicos daquela época pretendiam desses discos, além de sugerir um gênero musical, tam- veicular as propostas para modernizar gênero e prática bém ressaltavam a intenção de propagandear uma nova musical, além de estabelecer um vínculo comercial com tendência ou sucesso em realizar uma espécie de samba o público consumidor por jogadas de marketing em que o novo. Esse novo passa a ser verificado como “sambajazz” jazz representava objeto de valor agregado ao samba e ao e, da mistura desses nomes percebe-se que a novidade é choro. Essa estratégia de propaganda não estava somente constatada não só pelos elementos melódicos, rítmicos

126 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

ou instrumentais do jazz. Verifica-se também que, duran- o jazz representava elemento estratégico comercial não te as décadas observadas, uma tendência em consumir somente apresentar uma música era suficiente, mas ca- determinada música envolvia os bares, cafés e boates na racterizar o ambiente e os músicos garantiria veracidade noite de Copacabana. Grande número de músicos se firma e autenticidade; jazz supostamente autêntico tocado no como operários da música, chegando a tocar em lugares Brasil, como mostra a foto de divulgação da Boite Beguin diferentes na mesma noite. Dentre esses, destacavam-se (Ex.1) em que aparace K-ximbinho e seus colegas trajan- aqueles que assumiam a iniciativa de lançar formas di- do paletós e exibindo instrumentos musicais que, para a versas para promover a mudança do samba, e por sua época, faziam referência maior ao jazz do que ao choro. vez em K-ximbinho o choro, adotando não só a música vinda dos Estados Unidos, mas também expressões do Foram analisadas capas de discos da orquestra, além de idioma inglês, vestimentas, comidas, composição visual. discos do próprio K-ximbinho, e nelas há o apelo comer- Esse ambiente não só se destacava pela música produzi- cial que visa informar ao consumidor o objetivo daquele da, mas também era responsável por uma forma especí- material fonográfico pelos seus título e faixas executa- fica de veicular o produto musical que ofereciam. Como das. Frases de efeito no título dos discos como “no hit

Ex.1 - Concerto de jazz realizado na Boite Beguin, em junho de 1954. Em sentido horário, Enedir Santos (trompete), K-ximbinho (clarinete), Malagutti (contrabaixo), Dick Farney (piano).

Ex.2 - Ritmos e Melodias, Odeon 1956. Capa e contra-capa.

127 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

parade” ou “play-boys”, músicas com o título em inglês samba e choro tocado no formato instrumental de or- (mesmo algumas compostas por brasileiros), sinalizavam questras populares2. a flexibilidade das orquestras com os novos ouvintes. Títulos com as palavras “dança” ou “festa” sugeriam a Ainda sobre os instrumentos listados, ganham destaque proposição de cada álbum; simular em casa, por meio da na frente da capa o violão e o contrabaixo acústico, en- audição dos discos, a sensação de festa pela música, em tendidos aqui como elementos que reforçam a ponte en- referência às festas e bailes em que o conjunto musical tre samba e jazz no disco e na música. do compositor toca. Mesmo que haja a proposta de tocar músicas do cancio- Não há classificação de importância entre cada álbum neiro estadunidense, especificamente nesse disco verifi- para esse trabalho, qual atuação é mais ou menos im- ca-se a tradução de alguns títulos. Talvez na tentativa de portante, pois cada material há de compor um quadro da ainda preparar o consumidor ou gerar alguma identifica- atuação de K-ximbinho e sua relação com os elementos ção entre o disco e o ouvinte que não estivesse familiari- do jazz, do samba e do choro no resultado musical. zado com expressões do idioma inglês. Assim “Unchained melody” aparece com o título Esperando Você, “Washer 2.1 - K-Ximbinho e seu Conjunto: Ritmos e Woman” traduzida para Suba Espuma, I’d Forgive Myself Melodias (1956) traduzida como Nunca me Perdoei e o caso mais curio- Ritmos e Melodias é o primeiro compacto de K-ximbinho so para Rock Around The Clock que ficou traduzida como a ser publicado com mais de duas músicas. Segundo CÂ- Ronda das Horas excluindo a palavra rock do título suge- MARA (2001) há discos anteriores de K-ximbinho con- rido em português e ilustrado pelo desenho de um híbrido tendo apenas uma música em cada face. O repertório é entre bateria e relógio despertador, onde o prato se as- formado por oito composições, nenhuma de sua autoria. semelha ao sino do relógio e os ponteiros e horas estão Verbalmente o álbum não comunica muito, mas visual- estampados no centro do bumbo. mente (Ex.2) já podemos perceber a intenção do compo- sitor em ilustrar a formação instrumental da banda que Outro detalhe a se observar, e de certa forma irônico, é o acompanhava (Ex.3). a presença de cachimbos na boca de alguns integrantes sugerindo associação com o apelido de Sebastião Bar- A formação instrumental escolhida por K-ximbinho re- ros, K-ximbinho. Esse detalhe se choca principalmente montava àquela praticada pela Orquestra Tabajara, com a com a declaração que deu à Fundação José Augusto (K- intenção de tocar samba com instrumentação e arranjos XIMBINHO, 1975) sobre não aprovar fumo de espécie semelhantes aos das big-bands dos Estados Unidos. Além alguma e o receio de receber um apelido que sugerisse de constar no repertório músicas, como diria K-ximbinho, associação com a prática de fumar. Além, claro, de ne- internacionais, a presença no repertório de músicas bra- gar outra associação, também desmentida pelo compo- sileiras como Jura, Gosto que me enrosco de Sinhô e Mur- sitor de o nome K-ximbinho referir-se ao cachimbo que murando do Maestro Fon-Fon serviam como exemplo de empresta formato ao saxofone.

Músicos participantes: Lista de músicas Lado A: K-Ximbinho (arranjos e clarinete) Jura (Sinhô) Leal Britto (piano) Unchained Melody (Zaret e North) Orlando Silveira (acordeon) Washer woman (Morales e Sunshine) Scarambone (vibrafone) Love me or leave me (Donaldson e Kahn) Lado B: Geraldo Miranda (guitarra) Gosto que me enrosco (Sinhô) Walter Rosa (sax-tenor) Rock around the clock (Freedman e De Knight) Julinho Barbosa (trompete) I´d never forgive myself (Martin e McAvoy) Trinca (bateria) Murmurando (Fon-Fon) Jorge Marinho (baixo)

Jorge Viñolas (bongô)

Mario Godoy (percussão)

Ex.3 - Ritmos e Melodias, Odeon 1956, K-ximbinho e Seu Conjunto, Lista de músicas e instrumentistas.

128 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

2.2 - Quinteto de K-Ximbinho: Em Ritmo de referência de modernização os arranjos e improvisos dos Dança vol.3 (1958) integrantes sobre as músicas listadas. Mesmo a composição Em Ritmo de Dança Vol.3 foi lançado em 1958 e já sugere de “I’ve got you under my skin” de Cole Porter é apresentada uma formação instrumental compacta (Ex.5) em relação ao como ultrapassada e ganha renovação pelos arranjos suge- disco anterior. A formação de quinteto sugere um grupo me- ridos. Também é o primeiro álbum do próprio K-ximbinho a nor para tocar em pequenas boates, e pelo título e imagem conter entre o repertório, músicas de sua autoria3. podemos perceber clara sugestão em oferecer ao ouvinte simulação do evento em que se produzia a música do disco. Foi nossa intenção neste LP, apresentar o conjunto, ou melhor, o Esse é o primeiro álbum entre os listados que além da infor- Quinteto de K-ximbinho, em arranjos dançantes e modernos, que procuram fugir um pouco a vulgaridade reinante no gênero, seja mação visual pelas imagens traz um texto explicativo sobre pela valorização harmônica e contrapontística do material me- o compositor e o repertório. O texto na contra-capa do ál- lódico, seja pela atuação individual dos executantes, cada qual bum, além de já relacionar música com dança, traz como verdadeiro mestre do seu instrumento.

Ex.4 - Em Ritmo de Dança; vol. 3, Polydor 1958. Capa e contra-capa.

Músicos participantes: Lista de músicas K-ximbinho - Clarinete Lado A: Walter Gonçalves - Piano Lá vem a baiana - samba () Pedro Vidal Ramos - Contrabaixo An affair to remember - fox (Adamson, McCarey, Chandler, Warren) Hugo Tagnin - Bateria Zezinho teimoso - choro (Nestor Campos) Nestor Campos - Guitarra Tá? - baião (K-ximbinho - Hianto de Almeida) Por causa de você - samba-canção (Antônio Carlos Jobim, Dolores Duran) Mambo do Panamá - mambo (Steve Bernard) Lado B Teleguiado - choro (K-ximbinho) Love me forever - calypso (Lynes, Guthrie) Não diga não - samba-canção (Tito Madi, Georges Henry) I’ve got you under my skin - fox (Cole Porter) Penumbra - choro (K-ximbinho) Se acaso você chegasse - samba (Lupcínio Rodrigues, Felisberto Martins)

Ex.5 - Em Ritmo de Dança; vol. 3, Polydor 1958, Quinteto de K-ximbinho, Lista de músicas e instrumentistas.

129 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

O repertório, além de incluir dois clássicos do nosso cancioneiro 2.3 - K-Ximbinho e Seu Conjunto: O Samba popular (Lá vem a baiana e Se acaso você chegasse), apresen- ta também dois números da nova geração de autênticos valores de (1958) (Por causa de você e Não diga não). O clássico de Cole Porter (I’ve Samba de Cartola foi lançado no mesmo ano do álbum got you under my skin) em roupagem nova e brilhante, além de anterior, 1958. Antes de desenvolver qualquer discussão dois números da parada de sucessos atuais (Love me forever e An affair to remember), juntamento com o Mambo do Panamá que sobre o trabalho, vale citar o texto que descreve a propos- defendem a parte internacional. Incluímos também quatro núme- ta do álbum na contra-capa do disco (Ex.6). ros dos próprios executantes do Quinteto (Tá?, Zezinho teimoso, Penumbra e Teleguiado), onde chamamos a atenção dos ouvintes À primeira vista, o título deste LP dá a impressão de que a ideia era para as passagens improvisadas, verdadeiros achados no gênero. vestir o samba com roupagem de salão de festas, tira-lo do morro (K-XIMBINHO, 1958a) e do asfalto, jogando entre as quatro paredes de um ambiente “snob” e falsamente erudito. Na verdade quando imaginamos esse álbum, juntamente com o O título poderá sugerir que outros álbuns em série fo- completo musicista K-ximbinho, o que esteve sempre presente, foi ram produzidos pelo mesmo grupo, mas após verificar apresentar o que de melhor já se compôs ontem e hoje, em con- outros discos da época, foi constatado que algumas cepções modernas e arrojadas, utilizando os recursos da harmonia dessas séries tinham em cada volume um músico ou contemporânea, os efeitos instrumentais agora em voga, tudo dentro das possibilidades técnicas da alta fidelidade. grupo diferente. O repertório clássico, bem como as baladas românticas hoje em grande evidência garantem a facilidade do entendimento temático As imagens sobrepostas na capa (Ex.4) não mostram cla- deste novo idioma aqui expressado por K-ximbinho. ramente casais ou grupo de pessoas dançando, apenas um Alguns puristas poderão ver nesses arranjos uma forte influência da linguagem “jazzística”, mas por outro lado, chamamos a aten- homem diante de uma mulher, talvez a convidando para ção para o fato de se ter abolido o piano e em seu lugar aparecer dançar, mas sugere o ambiente de boate a meia luz, com a guitarra, o que vem trazer ao conjunto aquela sonoridade das pessoas bem vestidas e garrafas de vinho o que se pode antigas serenatas (no caso serenatas à la 1958). relacionar com a classe social e econômica a que se des- Do repertório não há muito o que explicar, uma vez que, se trata de títulos todos eles por demais conhecidos e já permanentemente tinava o álbum. Conforme verificado por SARAIVA (2007), incluídos no cancioneiro popular de nossa gente.[...] Os que gos- entre outras a boate Sacha’s, onde tocava K-ximbinho, tam, encontrarão neste micro-sulco uma forte motivação para tal, oferecia cardápios variados de bebida e comida, mas a e os que preferirem apenas ouvir, temos a certeza, terão muito taxa de consumação, artístico e preço dos produ- o que apreciar e assimilar neste “revolucionário” (se é que assim couvert podemos chamar...) lançamento da Polydor. (K-ximbinho, 1958b) tos no cardápio eram sempre caros o que já segregava e determinava a condição financeira dos frequentadores. A Embora se verifique o esclarecimento sobre evitar a pri- autora também observa que alguns desses lugares não se meira impressão em associar samba vestido de cartola, de destinavam somente à dança, mas também apenas ver e fato é o que a imagem da capa sugere (Ex.6); um mulato ouvir os grupos musicais. carioca sambista de traje de gala. Nesse caso as impres- sões vão além. Antes de consultar as capas do álbum e [...] No Sacha´s uma porção de faisão custa 700 cruzeiros, couvert e whisky 130. No Arpège a consumação mínina é de 400 cruzei- colher o depoimento de K-ximbinho sobre as intenções ros, o que dá pra três doses de whisky ou um estrogonoff e duas com a produção desse disco, havia a suspeita de que o ál- cubas-libres. No Fred´s o couvert é de 500 cruzeiros e mais 500 bum fosse todo constituído de músicas do sambista Age- de consumação mínina porque está em temporada internacional nor de Oliveira, o Cartola (1908-1980). Alguns dicionários com Roy Hamilton. (...) Para termos uma ideia de custos, o dólar está a 141,30 cruzeiros, uma cadeira numerada no maracanã 150, ditos especializados (CÂMARA, 2001) listam esse álbum arquibancada 34, e salário de uma garota propaganda de TV em na discografia de K-ximbinho, mas não dão maiores in- fase de inicio é de 4000. (apud SARAIVA, 2007, p.30) formações sobre as músicas que compõem o repertório o que dificultou parte da investigação. Esse é o único álbum Sobre as músicas é possível verificar que o gênero ou do qual, até o fechamento da pesquisa, não dispusemos estilo musical já era citado ao lado dos títulos das dos arquivos de áudio. composições (Ex.5), embora se verifique que, no álbum anterior essa informação também estava disponível, Não sabemos se na elaboração desses textos das contra- mas apenas no selo sobre as faces do disco. Aqui a capas tinham participação de K-ximbinho, mas já diziam citação dessas músicas ainda não sugere a quantida- muito sobre os processos composicionais e observações de de estilos e gêneros musicais, conforme observado do compositor e produção com o mercado musical. É o por SARAIVA (2007), que viriam a surgir pela tentativa único álbum até aqui inteiramente composto por músicas de promover a modernização ou mudança no samba. brasileiras, algumas de compositores que mais tarde pro- Mas já ressalta a noção de diversidade musical entre tagonizariam a Bossa Nova; Tito Madi e Antônio Carlos músicas brasileiras e estrangeiras. A classificação das Jobim. Também não há informação sobre gênero ou esti- músicas de K-ximbinho por samba-jazz ou choro-jazz lo musical ao lado das composições nas capas, conforme ainda não está evidente, mas já se pode verificar que descrito (Ex.7), o que se alinha com a discrição no texto os elementos de cada cultura musical já vinham se sobre não precisar falar muito sobre o repertório. misturando, a definição desse resultado só acontece em seguida por meio de termos e expressões específi- Pode se notar certo cruzamento e divergência entre novo cas. Muitas ditas somente entre os músicos, mas não e velho, moderno e tradicional quando, na justificativa, se explicitadas nas capas de disco. falam de “concepções modernas e arrojadas, utilizando

130 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

Ex.6 - O Samba de Cartola, Polydor 1958. Capa e contra-capa.

Músicos participantes Lista de músicas August Keller e Hans Breittinger - Oboé Lado A Luiz Barbosa Mendes - Trompete Viva Meu samba - Billy Blanco Nestor Campos - Guitarra Agora é cinza - Bide e Marçal Pedro Vidal Ramos - Contrabaixo Chove lá fora - Tito Madi Paulo Fernandes Magalhães - Bateria Aquarela do Brasil - Milton Marçal e K-ximbinho - Seção de ritmo E eu sem Maria - Alcyr Pires Vermelho - Dorival Caymmi Ary Paulo da Silva - Trompa A voz do morro - Zé Keti Aderbal Moreira - Saxofone barítono Lado B Onde o céu azul é mais azul - João de Barro, Alberto Ribeiro e Juarez Assis de Araújo - Saxofone tenor Alcyr Pires Vermelho Jorge Ferreira da Silva - Saxofone alto Se você jurar - , Nilton Bastos e Francisco Alves Meireles e Antônio Souza - Flauta Sucedeu assim - Antônio Carlos Jobim e Marino Pinto K-ximbinho - Arranjos e clarinete João valentão - Dorival Caymmi Ai! Que saudades da Amélia - Ataulfo Alves e Mário Lago Falsa baiana - Geraldo Pereira

Ex.7 - O Samba de Cartola, Polydor 1958, K-ximbinho e Seu Conjunto, Lista de músicas e instrumentistas.

os recursos da harmonia contemporânea, os efeitos ins- entre 1951 e 1954, para garantir um diferencial que lhe trumentais” e a defesa, quando se fala da substituição do faltava no ensino de música popular no Brasil. piano pela guitarra associada à “sonoridade das antigas Nota-se também que a percepção da tecnologia como serenatas”. Essa atribuição de que o piano seria o gran- aliada no registro e veiculação da obra musical já entra de responsável pela execução da “linguagem jazzística” como elemento estratégico na propaganda do disco. Alta não parece menos diferente da proposta de K-ximbinho fidelidade é o que se esperava de um disco que contives- quando se utiliza dos “recursos da harmonia contempo- se arranjos com harmonias contemporâneas e garantisse rânea”, visto que o compositor declara que esse aprendi- uma experiência auditiva satisfatória, a altura da propos- zado veio, com as aulas que teve com H. J. Koellreutter ta “revolucionária” a que se intitulava o disco.

131 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

Ainda assim, se não houve sugestão direta, pelo repertó- O texto na contra-capa (Ex.10) foi escrito como se intera- rio, de algo que remetesse à influência da cultura dos Es- gisse com o ouvinte nesse caso a associação com festa é tados Unidos, a citação da expressão “linguagem jazzís- maior, mas agora sugerindo que a festa seja em casa e não tica”, a referência visual do mulato de fraque e cartola e mais na boate. O repertório (Ex.9) continua a misturar mú- a instrumentação utilizada no disco resguardavam a ten- sicas estrangeiras entre músicas brasileiras e novamente a dência em promover, agora de forma discreta, a mudança presença de referências da Bossa Nova pela música Che- ou modernização do samba pelos elementos da cultura ga de Saudade. Essa observação levanta a discussão sobre estrangeira. Segundo depoimento de K-ximbinho, tanto o uma formatação já bem sucedida de música dos Estados termo “cartola” nesse disco, como “playboy” no próximo Unidos e música brasileira, ou jazz e samba, especifica- disco a ser analisado refletiam a intenção do compositor mente. Podemos verificar que a década de 1950 passa por em acrescentar novo elemento ao samba. todo um processo de divulgação e experimentação dos ele- mentos musicais de dois países na busca pela moderniza- K-ximbinho – [...] na Polydor gravei dois discos. O primeiro foi ção do samba. Esses elementos se encontram ao longo da Samba de Cartola, sambas com arranjos modernos porque o con- junto que eu introduzi aqui foi aproveitando alguns instrumentos década, mas ainda distintos, mas a Bossa Nova talvez aqui de orquestra sinfônica dentro da música popular. Com esse tipo de no disco de K-ximbinho sugira um resultado bem sucedido conjunto eu gravei dois discos; Samba de Cartola e K-ximbinho e de mistura, embora ainda se precise atender à demanda de Seus Playboys Musicais. Nesse tempo essa palavra playboy tava na consumo tocando ainda a música A, de fora e B, nacional. moda, então eu aproveitei e pus o título. Depois fiquei gravando, fiquei fazendo festivais dejazz com esse tipo de conjunto também. (K-XIMBINHO, 1980b) Sobre os estrangeirismos pelas palavras verificamos di- versos exemplos; play-boy, descrevendo pessoas descon- 2.4 - K-Ximbinho e Seus “Play-Boys” Musicais traídas e de bem com a vida, party substituindo festa, (1959) talvez sugerindo maior animação, El-Rey Whisky e outras Conforme citado anteriormente, K-ximbinho gravou esse bebidas destiladas que muito pouco se equivalem com a álbum pela Polydor em 1959, mas ao contrário do que tríade samba, suor e cerveja, mas sim com vestimentas está dito e, talvez por esquecimento, o compositor gra- elegantes, músicas de salão e civilidade financiados por vou três discos e não dois pela gravadora. A capa desse um alto nível financeiro. álbum (Ex.8) traz mais referências e de forma mais direta sobre a presença da cultura dos Estados Unidos na obra 2.4 – 2º Concerto de Jazz de Camera no Teatro de K-ximbinho, sugerindo também um estilo de vida no Municipal (1960) Rio de Janeiro daquela década. Nesse sentido as imagens Desse álbum destacaremos a presença de K-ximbinho sugerem que a orquestra ou banda de boate foi à rua pela com uma formação por ele denominada como tenteto, ilustração dos ladrilhos e da moto. Sobre os instrumentos, termo que sugere aportuguesação de tentet. A denomina- a presença do pandeiro, do afoxé e do violão juntos de ção soa confusa e deveria sugerir um grupo formado por trombone e trompete sugere a formação instrumental das dez integrantes. Mas se observarmos a lista de músicos orquestras populares assegurando o ritmo do samba e a participantes (Ex.12), perceberemos, além de K-ximbinho, melodia do fox-trot ou beguine, conforme classificação doze músicos que se revesam. Essa formação tem Paulo das músicas na contra-capa (Ex.9). Moura tocando saxofone alto. Ressaltamos a presença de

Ex.8 - K-ximbinho e seus “play-boys” musicais, Polydor 1959. Capa e contra-capa.

132 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

Lado A: Lado B: Deixa por minha conta - Cipó Convite ao samba - Gaúcho e Inaldo Villarin De corazon a corazon - Ruiz/Mendes Em meus braços - Almeida Rego e Irany de Oliveira Exaltação a Mangueira - Enéas Brites e Aloísio Costa Mistura Fina - Luis Bandeira

Eu quero é sossego - K-Ximbinho The song is you - versão cantada - Kern/Hemmerstein

I´ve got you under my skin - versão cantada - Cole Porter Chega de Saudade - Antônio Carlos Jobim e Carioca 1954 - Ismael Netto A woman in love - Frank Loesser Ex.9 - K-ximbinho e Seus “play-boys” musicais, Polydor 1959. Lista de músicas.

Ex.10 - K-ximbinho e seus “play-boys” musicais, Polydor 1959. Texto contra-capa.

Moura aqui por dois fatos específicos; o saxofonista sola A importância de que se mantivesse no evento um pro- o tema Just Walking de K-ximbinho e em entrevista nos grama exclusivamente jazzístico é evidenciado pelo re- conta sobre ter dado o nome a música. pertório escolhido por K-ximbinho, além dos Standards citados (Ex.12), Just Walking é a que menos se assemelha Essa é a única composição de K-ximbinho com título em com as demais de sua autoria e o tema da parte A remete inglês e foi composta especialmente para esse evento. O ao tema inicial da composição Autumn Leaves de Joseph grupo é composto por muitos dos músicos presentes nos Kosma e Jacques Prévert.4 discos anteriores. Essa formação é descrita pelo composi- tor como aquela que lhe permitiu trabalhar melhor essa Segundo K-ximbinho, essa banda o acompanhou em ou- combinação de samba com jazz e está presente nos discos tros festivais de jazz entre Rio de Janeiro e São Paulo anteriores publicados pela Polydor. Nota-se que a presença que aconteciam sob organização de Paulo Santos, des- da bateria paralela à seção rítmica revela as bases rítmicas crito pelos jornais da época (Ex.13) como disc-jockey e responsáveis por evidenciar de forma mais característica responsável por eventos e lugares diversos selecionando o jazz ou o choro conforme a música tocada no programa. grupos de jazz. Esses concertos pareciam ter grande re- ceptividade ou pelo menos despertavam interesse de um Esse evento em especial teve como regra que seus público específico, uma vez que K-ximbinho cita cerca de participantes apresentassem músicas novas, que es- três eventos dessa natureza. treariam naquela ocasião. Segundo Paulo Moura Just Walking não tinha título e como o evento era de jazz, K-ximbinho - Com esse tipo de conjunto eu gravei dois discos; K-ximbinho lhe perguntou que título seria adequado Samba de Cartola e K-ximbinho e Seus Playboys Musicais. [...] De- para a peça. Embora o título remeta à prática walking pois fiquei gravando, fiquei fazendo festivais dejazz com esse tipo de conjunto também. do jazz, MOURA (2008), em entrevista, não deu maio- Lílian – Quando, esses festivais de jazz? res detalhes sobre o porque desse nome, além da esco- K-ximbinho – Isso faz muito tempo, 1955, 1957, sob a direção de lha pelo idioma em inglês. Paulo Santos, nosso locutor.

133 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

Lílian – Mas eles eram realizados no rádio? 3 – Considerações finais K-ximbinho – Não. Eram realizados em palcos, em teatros, como o Os elementos verificados na obra de K-ximbinho pas- teatro municipal. Ele realizou vários concertos desse. Então tinham vários conjuntos, dos quais o meu. saram por adaptações e experiências diversas ao longo Lílian – Mas eram conjuntos de músicas nacionais? [...] os músicos de seus discos. A frase, “modernizei meu choro, sem eram brasileiros? descuidar do roteiro tradicional” (apud CAZES 1999, K-ximbinho – Não. São jazz, conjuntos com música americana, p.119), sintetiza todo o processo e trajetória do com- música variada, mas predominava mais jazz. [...] Brasileiros, mú- sicos brasileiros. O músico brasileiro é versátil. Depois no Copaca- positor. Conclui-se então que, processos de mudança bana Pallace, dessa vez organizado pelo Sindicato dos Músicos... O não acontecem da noite para o dia, mas levam tempo Paulo Santos é pioneiro nessa questão de organização de festivais para ajuste e não significam sucesso garantido sempre. e em todos eles eu fiz parte. (K-XIMBINHO, 1980b)

Ex.11 - 2º Concerto de Jazz de Camera no Teatro Municipal, 1960. Capa de disco.

Músicos participantes Lista de músicas K-Ximbinho - clarinete DICK FARNEY TRIO Augusto Keller - oboé - solo faixa 05 01 - Risque (Ary Barroso) Ary Paulo - trompa 02 - Um Tema em Fuga (Dick Farney) Juarez - sax tenor 03 - We’ll Be Together Again (Fisher - Laine) Aurino - saxofone barítono TENTETO DE K-XIMBINHO PauloMoura - saxofone alto - solo faixa 06 04 - Scarlet’s Gone (Vrs. Paulo Santos) Luiz Mendes - piston 05 - Sophisticated Lady (Duke Ellington) Pedro Vidal Ramos - baixo 06 - Just Walking (K-Ximbinho) Paulinho “Baterista” - bateria faixas 05 e 06 BRAZILIAN JAZZ QUARTET Oswaldo Oliveira Castro - bateria faixa 04 07 - Not So Sleepy (Mat Mathews) Ramon, Rubens Bassini, Jorginho - seção rítmica 08 - Smoke Signal (Gigi Gryce) ALL-STARS 09 - Tema sem Nome (Cipó)

Ex.12 - 2o Concerto de Jazz de Câmera no Teatro Municipal, Prestige 1960. Tenteto de K-ximbinho, Lista de músicas e instrumentistas.

134 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

Ex.13 - Recorte de notícias sobre o 2o concerto de jazz. Paulo Santos acima à direita e K-ximbinho em duas imagens no centro à direita.

O novo ou o moderno, no caso de K-ximbinho, seriam as Novo de , trabalho que tem a participação palavras que anunciariam um processo e intenção de mu- de J.T. Meirelles e Os Copa 5, e inicia uma carreira que dança, o jazz escrito junto da palavra samba seria a cons- leva Jorge Ben a produzir o estilo que hoje conhecemos tatação da presença desse outro, que tem lugar de origem como samba-rock. confirmado. Não se pretendia criar umjazz brasileiro, mas sim inovar o samba e, consequentemente o choro, e o que Diante desse contexto consideramos a Bossa Nova como hoje temos paralelo aos dois gêneros, chamado de músi- o ápice do processo que teve várias etapas: o samba, o ca instrumental brasileira. Essa inovação do samba e do samba novo, o samba-jazz e a Bossa Nova. Cumprindo choro se fazia pela utilização de elementos claramente assim uma linha de desenvolvimento onde esse último definidos por K-ximbinho; o ritmo e os instrumentos do gênero definitivamente tem características próprias, samba e do choro manteriam a noção de música brasileira não mais se configurando como um pastiche. Alinha- como lugar de origem da sua música, e o jazz garantia a do com a reflexão de SARAIVA (2007), a trajetória de representação “fiel” da cultura dos Estados Unidos. experiências daqueles gêneros anteriores à Bossa Nova O discurso sobre uma nova proposta para o samba pode não pode ser pensada como exemplo paralelo sobre um ser verificado em SARAIVA (2007) pelos muitos exem- jeito certo ou errado de misturar samba, choro e jazz, plos de discos que apresentavam termos como “novo”, mas sim perceber que até hoje reflexos desses processos “esquema novo” e por fim samba-jazz. Esse mesmo permitem novas formas de repensar práticas, gêneros e exemplo pode ser verificado no álbumSamba Esquema estilos musicais.

135 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

Referências BERENDT, Joachim E. O Jazz: do rag ao rock. Tradução de Júlio Medaglia. Coleção Debates: Música. São Paulo: Ed. Pers- pectiva, 1975. CÂMARA, Leide. K-ximbinho. In: Dicionário da Música do Rio Grande do Norte. Natal: Acervo da Música Potiguar, 2001. CAZES, Henrique (1959). Choro: do quintal ao municipal. São Paulo: Ed. 34, 2ª edição 1999. FABRIS, Bernardo. Catita De K-Ximbinho e A Interpretação do Saxofonista Zé Bodega: aspectos híbridos entre o choro e o jazz. (Artigo de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Música) – Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais, 2005. GARCÍA CANCLINI, Néstor. La globalización: ¿productora de culturas híbridas?. Actas del III Congreso Latinoamericano de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular. Bogotá, 2000. Disponível em http://www.hist.puc.cl/ historia/iaspm/pdf/Garciacanclini.pdf. Acesso em: 21 nov. 2007. ______, Néstor. Culturas hibridas: Estrategias para entrar y salir de la modernidad. Buenos Aires: Paidós, 2001. KARTOMI, Margareth J. Procesos y resultados del Contacto entre Culturas Musicales: Una Discusión de Terminología y Conceptos,1981. In: CRUCES, F. et al., Lecturas de etnomusicología. p.357-381. Madrid: Trotta, 2001. K-XIMBINHO. Fundação José Augusto, Natal, RN. 3 fev. 1975. Entrevista concedida a Tarcísio Gurgel e demais entrevis- tadores. (CD) ______. Produção para a série radiofônica Chorinhos e Chorões - Rádio MEC. Redação e produção Lilian Zaremba, abril de 1980b, Tijuca, RJ. Entrevista concedida a Lilian Zaremba. (CD) SARAIVA, Joana Martins. A invenção do sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de 1950 e início dos anos 1960. 109 p. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

Leitura Recomendada CARVALHO, J. J. As Duas Faces da Tradição. O Clássico e o Popular na Modernidade Latinoamericana. DADOS, v. 35, n. 3, p.403-434, 1992. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O samba, a opinião e outras bossas na construção republicana do Brasil. In: Berenice Cavalcante; Heloísa Starling; José Eisenberg. (Org.). Decantando a república. 1ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, v. 1, p.37-68. COSTA, P. G. “Modernizei meu choro sem descuidar do roteiro tradicional”: tradição e inovação em K-ximbinho (Sebastião Barros). 132 p. Dissertação (Mestrado em Música em Contexto) - Universidade de Brasília, Brasília, 2009. FABBRI, Franco. A Theory of Musical Genres: Two Applications. In HORN, David e TAGG, Philip (org.). Popular Music Pers- pectives. Londres e Göteborg: IASPM, 1982. Disponível em: http://www.tagg.org/others/ffabbri81a.html. Acesso em: 11 maio 2009. K-XIMBINHO. Choros de K-ximbinho: para clarinete, piston ou sax tenor e sax alto. Músicas de K-ximbinho. São Paulo/ Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, [1956?] ______. Álbum de choros: K-Xim-Temas. Músicas de K-ximbinho. São Paulo/ Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, [1977?] ______. Produção para a série radiofônica Chorinhos e Chorões - Rádio MEC. Redação e produção Lilian Zaremba, abril de 1980a, Tijuca, RJ. Entrevista concedida a Paulo Moura. (CD) ______. In: Saudades de um clarinete. São Paulo: Estúdio Eldorado: 50.81.0387 (LP de vinil 33 RPM, contracapa) 1980. Entrevista a Paulo Moura. O melhor do Choro Brasileiro: 60 peças com melodia e cifras, 2º volume. São Paulo. Ed Irmãos Vitale, 1998. MOURA, Paulo. Hotel Kubitschek Plaza, Brasília, DF, 02 out. 2008. Entrevista concedida a Pablo Garcia. (MP3) OLIVEIRA, L. L. Identidade e alteridade no Brasil: o contraponto norte-americano. In: Berenice Cavalcante; Heloisa Star- ling; José Eisenberg. (Org.). Decantando a República. 1ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, v. 2, p.89-104. PIEDADE, A. T. C. Jazz, música brasileira e fricção de musicalidades. Opus: Revista da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - ANPPOM, ANPPOM/Ed. da UNICAMP, v. 11, n. 1, p.113-123, 2005. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-33. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2001. VALENTE, P. V. Horizontalidade e Verticalidade: dois modelos de improvisação no choro brasileiro. Dissertação de mestra- do. Programa de Processos de Criação Musical, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, 2009.

136 COSTA, P. G.; CASTRO, B. M. Elementos extra-musicais na obra de K-ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.124-137.

Discografia K-XIMBINHO. Ritmos e Melodias: K-ximbinho e Seu Conjunto. K-ximbinho: composição, regência e clarinete. São Paulo: ODEON 3039 (LP de vinil 33 RPM), 1956. ______. Em Ritmo de Dança vol.3: Quinteto de K-ximbinho. K-ximbinho: composição regência e clarinete. Rio de Janeiro: Polydor LPNG 4015 (LP de vinil 33 RPM), 1958a. ______. O Samba de Cartola: K-ximbinho e Seu Conjunto. K-ximbinho: regência e clarinete. Rio de Janeiro: Polydor 4025 (LP de vinil 33 RPM), 1958b. ______. K-ximbinho e Seus “Play-boys” Musicais. K-ximbinho e Seu Conjunto. K-ximbinho: composição, regência e clari- nete. Rio de Janeiro: Polydor 4048 (LP de vinil 33 RPM), 1959.

Notas 1 Terminologia utilizada para designar os músicos que tocam e pertencem à comunidade do choro. 2 Usaremos o termo “orquestra popular” para estabelecer associação com a definição de K-ximbinho, assim teremos distinção de banda de música, associada à banda militar, orquestra erudita, associada ao repertório de música erudita e orquestra popular, associada às big-bands. 3 Composições anteriores como “Sonoroso” e “Sonhando” foram gravadas pela Orquestra Tabajara em 1946, tendo K-ximbinho como integrante tocando saxofone alto. Em seguida o compositor publica em disco compacto as composições “Perplexo” e “Tudo Passa” no ano de 1952. 4 Autumn Leaves foi composta pelos autores franceses citados acima em 1945 com o título de Les Feuille Mortes, recebeu letra em inglês de Johny Mercer em 1945, em seguida foi assimilada pelo cancioneiro estadunidense e pelo repertório standard do jazz. 5 Philips, 1963.

Pablo Garcia da Costa iniciou sua formação no programa de Bacharelado Geral em Música pela Universidade Estadual do Ceará, concluído em 2002. Recetemente concluiu o curso de mestrado pelo programa de pós-graduação Música em Contexto na Universidade de Brasília, defendendo dissertação sobre tradição e inovação, os elementos do jazz e choro e os processos de mistura entre gêneros musicais na obra de K-ximbinho em 2009. Publicou os trabalhos “O tradicional e o moderno no discurso de K-Ximbinho” no primeiro volume da Revista “O Mosaico” de Pesquisa em Artes / Faculdade de Artes do Paraná e “Modernizei meu choro sem descuidar do roteiro tradicional”: tradição e inovação em K-ximbinho (Sebastião Barros)” no XIX Congresso da ANPPOM, 2009, Curitiba.

Beatriz Magalhães Castro iniciou a sua formação em música em Brasília com Nivaldo de Souza e Odette Ernest Dias. Único artista latino-americano a receber o Primeiro Prêmio em flauta do Conservatório Nacional Superior de Música de Paris, e a obter ainda doutoramento na mesma área na Juilliard School of Music. Realizou pós-doutoramento na Uni- versidade Nova de Lisboa na área de Musicologia. É Professor Adjunto IV na UnB, onde foi responsável pela instalação do Programa de Pós-Graduação - Música em Contexto e atua como Editora da Revista do programa. Suas publicações incluem a inclusão na coletânea “Music’s Intellectual History: founders , followers, and fads” (Nova Iorque, 2009), volu- me inaugural da série RILM perspectives series. Recentemente recebeu o Prêmio Bolsa de Pesquisa do MinC – Fundação Biblioteca Nacional (edição 2009-2010). Em 2010, realizará o projeto “Beatriz interpreta Tacuchian” sob a coordenação do compositor, a ser lançada pelo selo ABM-Digital da Academia Brasileira de Música, numa proposta de valorização da produção musical brasileira contemporânea.

137 LACERDA, B. R. Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.138-147.

Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio

Bruno Renato Lacerda (Universidade Estadual Paulista, São Paulo, SP) [email protected]

Resumo: Revisão biográfica sobre o músico brasileiro Guerra-Peixe e sua carreira como arranjador de orquestras de rádio. Objetiva-se compreender como compositores clássicos, como Guerra-Peixe, encontraram na esfera popular um meio de vida. Inclui dados biográficos pouco conhecidos sobre o compositor. Palavras-chave: Guerra-Peixe; música popular brasileira; orquestra de rádio, arranjo.

Guerra-Peixe: an arranger of radio orchestras

Abstract: Review of literature about Brazilian musician Guerra-Peixe and his career as an arranger of radio orchestras. It aims at understanding how classical composers such as Guerra-Peixe found in the popular sphere a way of living. It also presents some lesser known biographical data on the composer. Keywords: Guerra-Peixe; Brazilian popular music; radio orchestra; arrangement.

1 – Introdução Essa recuperação da trajetória de Guerra-Peixe como ar- Ainda segundo o mesmo depoimento, o grupo era for- ranjador de orquestras de rádio traça em linhas gerais mado pelos seguintes instrumentos: bandolim (Guerra- a atuação musical dele no período de vigência dessas Peixe), trombone, clarinete, contrabaixo (rabecão), violão, orquestras e corresponde à contextualização do estudo surdo e outros instrumentos de percussão (GUERRA-PEI- analítico de seus arranjos realizada pelo presente autor XE, 1992b). em sua dissertação de mestrado intitulada Arranjos de Guerra-Peixe para a orquestra da Rádio Nacional do Rio Aos 11 anos de idade, ingressou no curso de violino da de Janeiro. Escola de Música Santa Cecília, na qual teve aulas com o professor de violino Gaó Omicht. Nesse curso, Guerra- César Guerra-Peixe nasceu na cidade de Petrópolis, esta- Peixe, de acordo com o seu depoimento, obteve avanço do do Rio de Janeiro, em 18 de março de 1914. Filho de acima da média que resultou em prêmios e, posterior- pais portugueses recém-chegados ao Brasil, Guerra-Peixe mente, na posição de professor auxiliar de violino (GUER- teve nove irmãos, sendo que um deles nasceu no navio RA-PEIXE, 1992b). durante a viagem a caminho do Brasil. Segundo o depoi- mento prestado pelo próprio GUERRA-PEIXE (1992b), o Em 1928, aos 14 anos de idade, ingressou como segundo sobrenome Peixe se deve ao fato de seu avô ter sido um violino da Orquestra do Cine Glória de Petrópolis (cinema pescador. Sua família foi a primeira com esse sobrenome mudo), emprego que lhe rendia o salário de seis mil réis no Brasil. por dia, 180 por mês, segundo ele, “mais do que muito pai de família recebia na época” (GUERRA-PEIXE, 1992b). Guerra-Peixe aprendeu violão e bandolim por meio do in- Aos 16 anos de idade, compôs uma peça para piano, um centivo e das instruções recebidas de seu pai e, aos oito tango intitulado Otília, em homenagem à sua namora- anos de idade, em 1922, já integrava o grupo de choro da. Seu pai apresentou a peça para o maestro da banda chamado Choro de Carvalho do botequim de portugueses. de Petrópolis, Firmino Borragio, que escreveu um arran-

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 22/01/2010 - Aprovado em: 22/06/2010 138 LACERDA, B. R. Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.138-147.

jo para ser tocado em uma das sessões do Cine Glória. gravados pelos cantores Gastão Formenti, Moacir Boe- Guerra-Peixe estudou a partitura desse arranjo e decidiu, no Rocha, Aurora Miranda ou, até mesmo, por Francisco a partir dali, compor as próximas peças já com instru- Alves. Por exemplo, este último gravou a música Sonhei mentação apropriada para os grupos disponíveis, mas com teus carinhos, de Sant-Clair Senna e Guerra-Peixe, sempre contando com os conselhos e a ajuda de Firmino lançada pelo selo Columbia. GUERRA-PEIXE (1979, p.27) Borragio. A partir desse momento, segundo o seu depoi- descreve como foi esse período de sua vida: mento, GUERRA-PEIXE (1992b) passou a ter seu interesse despertado para o lado da criação musical. Nesse senti- Comecei a me aprimorar e fazer arranjos para a Aurora Miranda, Francisco Alves, etc. Aliás, o Chico gravou um samba meu na épo- do, suas diversas leituras de partituras adquiriram uma ca, meu e do Sant-Clair Sena, chamado Sonhei com Teus Carinhos. nova perspectiva: a da compreensão da escrita musical Eu sei que dois dos meus arranjos foram parar na Odeon, numa enquanto criação. época em que Pixinguinha e o maestro Rondon, que estava do- ente e não podia orquestrar. Era um trabalho para os dois, mais ainda para um só. Foi quando o Vicente Paiva, na época diretor da Em 1932, aos 18 anos de idade, entrou no Instituto Na- gravadora, viu esses dois arranjos e me convidou para trabalhar cional de Música do Rio de Janeiro e por dois anos ia duas na gravadora. vezes por semana de Petrópolis ao Rio de Janeiro para ter aulas de violino com “Paulina D’Ambrósio, harmonia Nessa época de sua vida, Guerra-Peixe leu pela primeira com Arnaud Gouveia e conjunto de câmara com Orlado vez o livro, de Mário de Andrade, Ensaio sobre a música Frederico” (NEPOMUCENO, 2001, p.18). brasileira e chegou à seguinte constatação: “Foi aí que eu tive a primeira revelação (...) eu nem sabia que existia a Segundo o artigo escrito por AGUIAR (2007, p.130-131) tal música brasileira” (FARIA JR., 1997, p.9). no livro Guerra-Peixe: um músico brasileiro, em 1934, o compositor concluiu o curso de violino do Instituto Na- A soma desses fatores – contrato na Odeon, leitura das cional de Música do Rio de Janeiro e passou a residir nesta propostas de Mário de Andrade como estímulo aos com- cidade definitivamente. Começou a trabalhar como violi- positores brasileiros, o convívio com Radamés Gnattali, nista substituto em restaurantes, bailes e gafieiras e, após um músico que se sustentava com o trabalho de arran- três meses substituindo o violinista da Taberna da Glória, jador, o desgosto do trabalho instável de músico da noi- conseguiu emprego fixo neste lugar, sendo logo transfe- te e a finalização dos estudos de violino – contribuíram rido para a Orquestra da Casa Belas Artes, emprego que para que Guerra-Peixe tomasse a decisão de procurar um manteve até 1938 quando foi dispensado juntamente professor para aprofundar os seus estudos musicais. As- com toda a orquestra. sim, como citado por FARIA JR. (1997, p.9), Guerra-Peixe declarou: “procurei um professor e encontrei um ótimo Também segundo AGUIAR (2007, p.131), durante o pe- em Newton Pádua”. Com isso, de 1938 até 1943, Guerra- ríodo em que trabalhou como violinista da Orquestra Peixe teve aulas particulares com Newton Pádua apren- da Casa Belas Artes, Guerra-Peixe foi apresentado a Ra- dendo contraponto, fuga, composição, instrumentação, damés Gnattali pelo pianista da mesma orquestra, seu orquestração e harmonia. Nesse meio tempo, segundo vizinho do bairro do Andaraí: Newton Pinheiro. Os dois, ONOFRE (2005, p.240), entrou no Conservatório Brasileiro durante as folgas do café-concerto, passaram a fazer de Música, em 1941, sendo o primeiro aluno do estabele- frequentes visitas à Rádio Nacional do Rio de Janeiro. cimento e do Brasil a concluir o curso de Instrumentação Nas primeiras visitas, Guerra-Peixe apresentou seus e Composição, no final do ano de 1943. arranjos a Gnattali na busca de críticas e sugestões e, depois, Gnattali, ao conhecer a escrita de Guerra-Peixe, Com o progressivo avanço dos estudos, Guerra-Peixe de- estendeu-lhe o convite para escrever arranjos “para senvolveu o domínio da técnica de composição musical, a famosa Orquestra de Serenata (dois violinos, flauta, o que veio a se somar ao treinamento prático advindo da clarinete, violoncelo, piano, contrabaixo e bateria)”, feitura de arranjos fazendo com que assumisse a carreira orquestra responsável por executar música ao vivo em e a postura da profissão de arranjador e, logo, a de com- programas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. “Em positor – “e quando menos esperava virei compositor”, 1937, Radamés foi convidado por Ayres de Andrade, di- citado por FARIA JR. (1997, p.9). retor artístico do programa A Voz do Brasil do DPI [De- partamento de Imprensa e Propaganda] para participar 2 - Rio de Janeiro, 1942-1946: o trabalho do suplemento musical. Nesse programa, Radamés exe- na Rádio Tupi cutava várias valsas e choros de Guerra-Peixe”. Em 1942, o saxofonista dirigente de orquestras itineran- tes Otaviano Romero Monteiro (1908-1951) – o maestro Ainda em 1938, Guerra-Peixe foi convidado pelo compo- Fom-Fom –, que entrou e saiu só na Rádio Tupi do Rio sitor e diretor musical da gravadora Odeon Vicente Paiva de Janeiro mais de três vezes, convenceu o diretor supe- para trabalhar como arranjador substituto do maestro rintendente desta emissora, Theóphilo de Barros Filho, a Rondon nessa gravadora ao lado de Pixinguinha. Vicen- contratar Guerra-Peixe para o cargo de arranjador. Acon- te Paiva conheceu a trabalho de Guerra-Peixe por meio tece que Fom-Fom, como era conhecido, não possuía su- dos arranjos que ele fazia (muitas vezes de graça) para as ficiente conhecimento para realizar arranjos para orques- músicas de Ronaldo Lupo e Sant-Clair Senna, geralmente, tra de rádio, o que gerou o argumento de que não sabia

139 LACERDA, B. R. Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.138-147.

ler partitura, mas sabia comunicar aos músicos o que apresentam uma estética neoclássica com elementos queria. Assim, naquele ano se iniciou, formalmente, a car- extraídos da música popular brasileira, por exemplo, o reira de Guerra-Peixe como arranjador de orquestras de choro. Porém, segundo FARIA JR. (2000, p.173), esses rádio. Segundo o depoimento do próprio GUERRA-PEIXE elementos são usados como citação literal, ou seja, os (1992a), esse contrato não o impedia de realizar outros componentes usados nas composições ainda não são trabalhos, mesmo em outras emissoras, todavia, durante criações próprias do compositor. o seu contrato com a Rádio Tupi do Rio de Janeiro ele não fez arranjos para nenhuma orquestra de outra emissora. Nesse sentido, esse processo se assemelha ao trabalho do arranjador que toma, por exemplo, um tema de outro Seus primeiros arranjos na Rádio Tupi foram executados para explorá-lo e desenvolvê-lo como quer. Acredita-se contemporaneamente à estreia do programa História do que, também, tenha sido por meio desse processo que Rio pela música, que teve início no dia 21 de dezembro Guerra-Peixe passou de arranjador para compositor, o de 1942, sobre a organização do radialista Almirante. que torna ainda mais significativa o papel da sua carreira CABRAL (1990, p.213, 214) menciona que a orquestra da como arranjador de orquestras de rádio para o desenvol- emissora ainda contava com um coral e que os arranjos vimento de sua técnica composicional. de Guerra-Peixe eram regidos pelos maestros Fom-Fom e Milton Calazans. Entre março e maio de 1946, “toda quinta-feira, no horá- rio nobre das 21 horas, sob o patrocínio de Phymatosan”, No dia 4 de maio de 1943, estreou o programa Instantâne- Guerra-Peixe escreveu arranjos para o programa chamado os Sinfônicos Schenley, inspirado na estética composicio- Ritmos cruzados transmitido pela Rádio Tupi do Rio de Ja- nal de George Gershwin. O programa tinha um forte cunho neiro (AGUIAR, 2007, p.136). “Nesse programa, por exemplo, político de exaltação americana, sobretudo por causa da Guerra-Peixe brincava com os gêneros e ritmos: apresentava presença brasileira na Aliança contra o Eixo. O programa, sucessos populares com arranjos eruditos e transportava pe- patrocinado pela marca de uísque Schenley, que nunca ças clássicas, como as de Beethoven, para o ritmo de samba” chegou ao Brasil, contava com um elenco de cem pessoas, (NEPOMUCENO, 2001, p.24). “Desse modo, Moto perpétuo tendo como diretores Olavo de Barros e Paulo Porto, reda- toma forma de choro, Sonata ao luar de swing, Sobre as on- ção de Guilherme Figueiredo e direção geral de Theóphilo das e Danúbio azul, sambas. Até O Vira acaba transformado Barros Filho. Guerra-Peixe ganhava cerca de três contos em maracatu” (AGUIAR, 2007, p.136). de réis por programa tendo que escrever arranjos e com- por “quase uma hora de música orquestral em dois dias” Após quatro anos de serviço prestado à emissora da Rádio (AGUIAR, 2007, p.133). Segundo GUERRA-PEIXE (1979, Tupi do Rio de Janeiro, Guerra-Peixe encerrou definitiva- p.1-2) declarou, “o fato é que, durante dois anos, através mente seu vínculo de arranjador contratado dessa emis- do programa, tive uma orquestra sinfônica à minha dispo- sora, em maio de 1946. Segundo AGUIAR (2007, p.136), sição”. Vale dizer que, segundo o depoimento de GUERRA- nessa ocasião, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro ofereceu PEIXE (1992b), entre os músicos integrantes dessa orques- a Guerra-Peixe o salário de Cr$ 8.000,00 mensais (“cerca tra estava seu professor Newton Pádua executando ao de quarenta salários mínimos”) para trabalhar na função violoncelo os arranjos que Guerra-Peixe escrevia. de maestro nessa rádio. Contudo, em junho desse mesmo ano, ele começou a trabalhar na Rádio Globo e, a partir do O desenvolvimento de sua técnica composicional ocorreu dia 8 de agosto, passou a apresentar, “no horário nobre em paralelo ao aumento de seu prestígio como compo- das 20 horas, o programa Arranjos orquestrais, de caráter sitor. O envolvimento com o meio profissional das rádios acentuadamente dançante (...), Uma história em cada mú- forneceu oportunidades para Guerra-Peixe divulgar sua sica, bem como a trilha sonora da radionovela Amor eterno obra e se tornar conhecido no meio artístico da época. de Nelson Nobre, com direção de Amaral Gurgel”. Um exemplo disso foi o convite feito pelo empresário radiofônico Assis Chateaubriand para a apresentação da A opção pela Rádio Globo ao invés da Rádio Nacional do Rio Sinfonia nº 1 de Guerra-Peixe na inauguração dos novos de Janeiro, apesar do maior prestígio e salário oferecidos aparelhos transmissores da Rádio Tupi, que foi realizada pela segunda, se deve ao fato de que Guerra-Peixe queria no Teatro Municipal, no dia 9 de julho de 1944, como ter tempo para estudar música. Na época, o compositor lembra AGUIAR (2007, p.134). conversou com Radamés Gnattali, arranjador contratado da Rádio Nacional, e, a partir desse diálogo, percebeu que Guerra-Peixe adotou o nome Fase inicial para designar as a emissora exigia muito dos seus profissionais e isso iria composições de 1942 a 1943 e nessa fase incluiu apenas interferir em seus planos de estudo. Por isso a escolha pela duas obras: a Suíte Infantil e o hino patriótico Fibra de Rádio Globo, que lhe proporcionou melhores condições herói 1, também conhecido como Bandeira do Brasil, “com para desenvolver os seus estudos musicais, como explicou texto de Teófilo de Barros Filho e gravação original de GUERRA-PEIXE (1992a) em seu depoimento. Silvio Caldas” (MIGUEL, 2006, p. 24). Para o musicólogo FARIA JR. (2000, p.173), a Fase Ini- Com a dispensa da orquestra da Rádio Globo, no início de cial de Guerra-Peixe corresponde ao período de 1937 a 1947, emissora que passou a basear sua programação em 1944. Nesse período, as composições de Guerra-Peixe esporte, notícias e músicas transmitidas pelo disco, Guer-

140 LACERDA, B. R. Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.138-147.

ra-Peixe ficou um período afastado do trabalho de arran- A terceira opção era permanecer no Rio de Janeiro e con- jador de orquestras de rádio até ser contratado pela Rádio tinuar trabalhando na Rádio Nacional. Porém, possivel- Nacional do Rio de Janeiro, no dia 15 de abril de 1948. mente por motivos pessoais, em seu depoimento, GUER- RA-PEIXE (1992b) revela que considerava essa opção 3 - Rio de Janeiro, 1948-1949: o trabalho inaceitável, pois alegava que tinha que sair dessa cidade na Rádio Nacional do Rio de Janeiro de qualquer maneira. Do dia 15 de abril de 1948 a 1° de agosto de 1949, con- forme consta no documento arquivado (ficha funcional) Assim, sua decisão recaiu sobre a quarta opção: conciliar da sede da emissora, Guerra-Peixe teve sua primeira pas- o emprego de arranjador com as pesquisas de música fol- clórica que forneceria material sonoro para suas compo- sagem pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Segundo AGUIAR (2007, p.137), Guerra-Peixe foi efetivado a con- sições – seguindo a cartilha de Mário de Andrade. vite do então diretor Victor Costa para se responsabili- zar, entre outras tarefas, pelos arranjos para o programa Em junho de 1949, após tirar um mês de licença na , viaja para o Recife, a convite de Teó- chamado Dicionário Toddy, produzido por Fernando Lobo. Rádio Nacional philo de Barros Filho [ex-diretor da Rádio Tupi do Rio e atual diretor da No contrato de Guerra-Peixe com a Rádio Nacional es- de Janeiro Rádio Jornal do Comér- tão presentes as seguintes informações descritas por cio do Recife], para colaborar na comemoração do 1 PEREIRA (2006, p.71): aniversário da Rádio Jornal do Comércio. Da janela do hotel ouve um pregão de cocada que inspira sua pri- O contrato de Guerra-Peixe, que data de 4 de abril de 1948, é um meira obra nacionalista Suíte para cordas [quarteto documento todo datilografado. O contrato de número 64 indica o de cordas ou orquestra de cordas]. (...) Diante de uma cargo de Maestro e apresenta o seguinte, contendo as funções que proposta para trabalhar na Rádio Jornal do Comércio o funcionário se comprometeu a desempenhar: 1° o artista que se não titubeia em fixar residência na capital pernambu- contrata como maestro, se obriga a participar dos programas e ensaios, a fazer orquestrações e arranjos para orquestras e coros cana. Em 8 de dezembro de1949, casa-se no Rio com de música, a atuar como regente de orquestra e colaborar como a jovem Célia [da Rocha] Pinto [então Célia Guerra- música executante nos programas da Rádio Nacional. Peixe], de quem se separará em 1975. No dia seguinte ao casamento, parte para o Recife, aonde chega em 16 O ano de 1949 foi um ano de crise para Guerra-Peixe, de dezembro, permanecendo naquela cidade por três pois na época teve que tomar decisões difíceis e de con- profícuos anos (AGUIAR, 2007, p.137). sequências duradouras. Por um lado, Guerra-Peixe fez a crucial escolha do abandono do dodecafonismo e, por Antes de dar procedimento ao estudo de Guerra-Peixe outro, teve que escolher entre quatro opções de meio como arranjador da Rádio Jornal do Comércio de Recife, para a sua subsistência. A primeira era aceitar a pro- convém fazer uma observação sobre as atividades para- posta do regente alemão Hermann Scherchen2 que, em lelas que ele manteve como compositor dodecafônico e breve estada no Rio de Janeiro, fez questão de conhe- arranjador de música popular. Conforme MARIZ (1953, cê-lo e convidá-lo para trabalhar como arranjador em p.11) assinalou em artigo escrito para o jornal Correio programas de músicas populares e folclóricas, a princí- da Manhã, “na realidade, custa crer que o Guerra-Peixe pio, brasileiras, na Rádio de Zurique na Alemanha, como arranjador de sambas e baiões tenha escrito, ao mes- relatou a musicóloga ASSIS (2007, p.8). Esse emprego, mo tempo, peças de um cerebralismo atroz”. Entretanto, que lhe daria o direito de morar na casa do maestro GUERRA-PEIXE (1992a) explica claramente como conci- Hermann Scherchen, envolvia aulas de aperfeiçoamento liava as duas atividades, aparentemente, antagônicas: de regência com Scherchen e a oportunidade de prati- car os ensinamentos na Orquestra Sinfônica da Rádio de Eu sempre tive duas atividades. Uma como arranjador e outra , foi um convite recusado. como compositor. Eu sempre pensei que não tinha nada a ver uma Zurique coisa com a outra. Mas como arranjador eu tive uma experiência muito grande, certa ordem para ver as coisas, por ser uma coisa A segunda opção, de acordo com depoimento do pró- mais simples. Mesmo quando a gente faz uma coisa mais avança- prio GUERRA-PEIXE (1992b), seria aceitar a proposta do dinha para o público, sempre tem um limite. compositor Aaron Copland que, ao vir para o Brasil in- teressado em encontrar um compositor de até 30 anos Nesse depoimento, Guerra-Peixe se lembrou de uma a quem dar uma bolsa de estudos nos Estados Unidos, curiosa situação em que inseriu uma vinheta dodecafô- conheceu Guerra-Peixe pessoalmente, mas não pôde lhe nica especialmente composta para esta função em um dar a bolsa porque Guerra-Peixe já tinha 36 anos na programa radiofônico. O resultado foi o esperado: os téc- ocasião. Guerra-Peixe mostrou ao compositor america- nicos do estúdio tamparam os ouvidos e o diretor veio no algumas partituras de suas peças dodecafônicas e conversar com ele, e disse algo do tipo: “Olha, Guerra, Copland, examinando-as, teve sua estima despertada você tem que escrever algo que agrade ao ouvinte, nós pelo compositor e lhe garantiu um emprego de profes- temos que tocar aquilo que a gente sabe que o ouvinte sor de música em uma das universidades dos Estados vai gostar”. Uma grande mudança no nível de experi- Unidos, se ele tão somente aprendesse o idioma inglês. mentação em comparação com aquelas vinhetas que ele Convite também recusado. escrevia e os cantores queriam colocar letra para gravar.

141 LACERDA, B. R. Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.138-147.

Outra observação pode ser feita com referência ao perí- Nesse período, além de arranjos para programas de rádio, odo em que recebeu consideráveis propostas para atuar pesquisas e composições, Guerra-Peixe “foi professor de no exterior, pois, nessa época (1922-1945), era de vital Clóvis Pereira, que de gaitista passou a orquestrador, do importância para a consagração artística passar por uma famoso mestre Capiba [Lourenço da Fonseca Barbosa]”, experiência no exterior, como, por exemplo, aconteceu que teve importante papel como arranjador de músicas com o compositor Villa Lobos. Na maioria das vezes, esse apresentadas no Festival Internacional da Canção, na era um objetivo almejado por boa parte dos artistas, por década de 1960, e de (Severino Dias de Oliveira), servir também como forma de aperfeiçoamento técnico. “músico famoso internacionalmente e grande orquestra- dor”, como citado NONNO (1997, p.44). Entretanto, Guerra-Peixe sempre acreditou que tudo que um músico precisava aprender poderia ser encontrado Vale lembrar que Hermeto Pascoal tocava acordeom no no Brasil sem precisar viajar para o exterior. Ele pensava regional da Rádio Jornal do Comércio de Recife no período também que a principal lição para o músico brasileiro só em que Guerra-Peixe trabalhou como regente e arran- poderia ser aprendida no Brasil por meio de pesquisas de jador da orquestra dessa emissora. Nessa época, Pascoal campo como as que ele realizou, por exemplo, em Recife, ainda era jovem, mas muito observador, admirava a im- no interior e litoral paulista, e outros músicos e musicó- portância que Guerra-Peixe dava à música local. Pode- logos realizaram em outros locais do país. se dizer que o jovem talento teve sua estima despertada para a sua música cotidiana e natal por meio da observa- O fato é que, por diversos motivos já bastante explicados ção dos intensos estudos etnomusicológicos que Guerra- por outros pesquisadores, Guerra-Peixe abandonou defi- Peixe realizou em Recife. Pascoal também aproveitava nitivamente o dodecafonismo, em 1950, para se dedicar as oportunidades para assistir aos ensaios da orquestra à pesquisa e à composição, segundo o nacionalismo mu- realizados por Guerra-Peixe e observava atentamente sical proposto por Mário de Andrade. como o compositor experimentava na orquestra os ritmos folclóricos pesquisados. Pode-se dizer que tal experiência 4 - Recife, 1950-1953: o trabalho na Rádio tenha tido viva representatividade nas futuras composi- Jornal do Comércio ções de Pascoal. No entanto, Guerra-Peixe talvez tenha conhecido Hermeto Pascoal apenas como instrumentista. No seu primeiro trabalho para a Rádio Jornal do Comércio Ou ainda é possível que o futuro compositor lhe tenha de Recife, durante o mês de junho de 1949, Guerra-Peixe passado despercebido. compôs a Suíte para orquestra de cordas com a intenção de experimentar as danças nacionais. Essa suíte apresen- Na Rádio do Jornal do Comércio, Guerra-Peixe teve uma ta os seguintes movimentos: Maracatu, Pregão, Modinha nova experiência, pois o compositor explorou na orques- e Frevo. Vale ressaltar que essa música foi escrita para tra da emissora os ritmos e gêneros musicais diretamente os músicos dessa rádio, bem como executada e grava- ligados com as suas pesquisas. Em diversos testemunhos da por eles. Guerra-Peixe declarou ao ouvir a gravação: que deu, ele deixou claro o seu entusiasmo em poder “agrada muito como primeira composição nacionalizan- transferir para a formação instrumental das orquestras te” (ARAÚJO, 2007, p.3). de rádio os diversos ritmos folclóricos das músicas que estava pesquisando, como certa vez noticiou, no dia 23 Nos primeiros contatos de Guerra-Peixe com o Recife e de fevereiro de 1950, em correspondência a Mozart de com a Rádio Jornal do Comércio, os músicos da emissora Araújo: foram se entusiasmando com ele e ele com os músicos. Ele nutriu uma admiração pela riqueza e pela variedade das Maracatu – Já tive a ousadia de escrevê-los numa rapsódia que manifestações culturais do lugar e, por isso, combinou com fiz para um programa de rádio. Digo ousadia porque os músicos aqueles músicos que, assim que ele se desligasse da Rádio pregavam que a orquestra da rádio não tocava níquel do verda- deiro maracatu. Entretanto (...) a trompa tocou direitinho faltando Nacional do Rio de Janeiro, voltaria para o Recife para tra- somente um pouco de estilo que é coisa que virá a seu tempo (...) balhar como maestro da Rádio Jornal do Comércio. (FARIA JR., 1997, p.42).

Guerra-Peixe partiu do Rio de Janeiro para Recife no dia O período que permaneceu em Recife foi de grande im- 16 de dezembro de 1949 e voltou do Recife para o Rio de portância para a ampliação do material sonoro e musical Janeiro no dia 27 de novembro de 1952, após três anos de que Guerra-Peixe passou a empregar em suas composi- muita pesquisa e de muito trabalho. De fato, segundo ele ções, bem como para a aquisição de informações sobre mesmo declarou sua viagem, não foi a passeio (GUERRA- as manifestações folclóricas que, graças às suas coletas e PEIXE, 1979, p.27). registro de materiais, forneceram subsídios para a com- preensão de tais manifestações por parte de diversos mú- Entre os programas que Guerra-Peixe era responsável por sicos e musicólogos interessados no assunto. escrever, destacam-se os arranjos para a orquestra da Rádio Naquela época, Guerra-Peixe simplificou a sua escrita do Comércio, como Harmonias nitroquímicas, Jardim de me- composicional em uma clara oposição à estética dode- lodias (patrocinado pelo Regulador Xavier), Ritmos cruzados, cafônica praticada anteriormente. Tal fato também pode Arranjos orquestrais e Fantasia, este último como trilha para ser atribuído ao seu vínculo com a prática de arranjo para textos de Joel Pontes, de acordo com AGUIAR (2007, p.138). música popular que, por sua vez, visa essencialmente à

142 LACERDA, B. R. Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.138-147.

simplicidade como recurso para uma comunicação mais ramente recompensadoras dessa organização. Desse modo, direta com o público. Além disso, a visão política advin- de acordo com a pesquisa de PIRES (2000, p.202), enquanto da do seu pensamento partidário do realismo socialista houve um desfalque no corpo de profissionais das outras – comunismo – também explica seu objetivo de compor emissoras paulistas, ocorreu, ao mesmo tempo, um rápido músicas com maior facilidade de assimilação. crescimento da Rádio Nacional de São Paulo.

Talvez, Guerra-Peixe poderia ter permanecido mais tempo No setor musical o elenco foi formado por uma orques- no Recife, porém, segundo AGUIAR (2007, p.140), o seu tra de 45 instrumentistas que recebia arranjos e re- nome foi associado às ideias progressistas do movimento gência de maestros como Gaó (Odmar Amaral Gurgel), de esquerda em uma época em que isso gerava uma sé- Spartaco Rossi, Osmar Milani, Alberto Lazzoli, Oliver de rie de complicações pessoais, como as que foram geradas Sousa, além de Guerra-Peixe, segundo as informações para Guerra-Peixe: intrigas “promovidas por intelectuais de PIRES (2000, p.198). reacionários do Recife envolvendo o seu nome”. Segundo AGUIAR (2007, p141), no mesmo mês da inau- Com intenção de evitar maiores problemas, Guerra- guração Guerra-Peixe já estava incumbido de produzir Peixe voltou para o Rio de Janeiro, em 27 de novem- arranjos para o programa Ritmos e melodias Arno. Neste bro de 1952, onde permaneceu até se mudar para São programa, o repertório era mais voltado para a música Paulo, no início de 1953. popular urbana paulista, mas sempre que possível Guer- ra-Peixe incluía gêneros pernambucanos como o frevo. Com a mudança para São Paulo, segundo o musicólogo Tal programa mudou de patrocinador duas vezes, passou, FARIA JR. (1997, p.35), Guerra-Peixe pretendia dar conti- em 1955, para a empresa Ovomaltine, tornando-se Ritmo nuidade ao seu trabalho como compositor de trilhas so- e melodias Ovomaltine e, logo depois, para o Ritmo e me- noras para companhia cinematografia Vera Cruz, cumprir lodias brasilianas. contrato com a emissora Rádio Nacional de São Paulo e prosseguir com as pesquisas folclóricas, agora nas cida- A TV Paulista também estava sob a direção das Or- des do interior e do litoral paulista. ganizações Victor Costa. Essa emissora de televisão contava com o elenco de artistas de rádio para atuar Segundo a divisão estabelecida pelo próprio GUERRA- nos seus programas, e algumas transmissões ocorriam PEIXE (1992a), suas fases estéticas podem ser divididas simultaneamente nos dois veículos. Vale lembrar que da seguinte maneira: Fase inicial, de 1943 a 1944, Pri- naquela época a base para a realização de programas meira fase (dodecafônica), de 1944 a 1950 e Segunda televisivos vinha da rádio. Entre algumas das parti- fase, de 1950 a 1960, ou seja, a Segunda fase abrange o cipações de Guerra-Peixe nesses programas, AGUIAR período em que morou em São Paulo. (2007, p.142) lembra que:

Em 1956 passa a trabalhar na TV Paulista, criando os prefixos mu- 5 - São Paulo, 1953-1961: o trabalho na Rá- sicais para as Organizações Victor Costa. Juntamente com outros dio Nacional de São Paulo regentes participa do programa Quando os Maestros se Encon- No dia 1° de maio de 1952, o ex-diretor da tram, transmitido simultaneamente pela Rádio Nacional, espécie Rádio Na- de desafio entre os arranjadores, que permanece no ar até 1960. cional do Rio de Janeiro Victor Costa chegou a São Paulo No mesmo ano, aperfeiçoa-se como regente tendo aulas com o com autorização do governo federal, em nome de Getúlio maestro Eduardo Di Guarnieri. Em 1957, na Rádio Nacional produz Vargas, para comprar as instalações, o prefixo e a frequ- os programas Um milhão de Ritmos, Festa de Ritmos e Grande Es- ência da Rádio Excelsior, a fim de instalar em seu lugar petáculo, este último transmitido em conjunto com a TV Paulista. No mesmo ano, participa, ainda na TV Paulista, dos Recitais Cos- Rádio Nacional de São Paulo. Ao fazer isso, de acordo com mopolitas, onde faz a estreia de A Inúbia do Cabocolinho. No ano o radialista TAVARES (1999, p.70), Victor Costa rompeu seguinte, apresenta pela Rádio Nacional os programas Cancioneiro com um acordo tácito entre os proprietários das Emis- Armour e o curioso Desconversando em que analisa os últimos soras Associadas de São Paulo que impedia a transferên- lançamentos fonográficos. cia de prefixos entre emissoras radiofônicas. Com isso, a Aparentemente foi através desse último programa que se frequência e o prefixo da Rádio Transmissora passaram tornou conhecida a crítica positiva de Guerra-Peixe em a sintonizar a Rádio Nacional de São Paulo que, poste- favor da bossa nova. Nesse sentido, o jornalista CASTRO riormente, se tornou Rádio Globo, e a Rádio Transmissora (1999, p.242-243) menciona que: adquiriu novo prefixo e nova frequência tornando-se a Central Brasileira de Notícias – CBN. Com algumas exceções, como Gabriel Migliori e Oswaldo Borba, os demais maestros – Peracchi, Panicalli, Radamés e, claro, Lin- A primeira providência das foi dolfo Gaya e Moacir Santos – apoiaram ou aderiram abertamente Organizações Victor Costa à nova música. Os maestros jovens de São Paulo, como Rogério contratar os melhores profissionais das Empresas Associa- Duprat, Diogo Pacheco e Júlio Medaglia, estes se apaixonaram em das, inclusive o seu diretor e chefe Derminal Costa Lima. bloco, talvez porque, como Jobim e Severino Filho, dois cariocas, A partir da orientação de Victor Costa, a Rádio Nacional tivessem sido alunos do alemão radicado no Rio: Hans Joachim passou a formar um elenco com os principais Koellreutter. E outro maestro, Guerra-Peixe, ex-professor de [Ro- de São Paulo berto] Menescal, só faltou vestir a casaca para dar a sua opinião: nomes das diversas áreas de atuação da radiofonia paulista, “A bossa nova é uma inseticida sonora na aspereza batuqueira e sendo poucos os que não aceitaram as propostas financei- na castração bolerosa”.

143 LACERDA, B. R. Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.138-147.

Inclusive, foi com a interpretação do hino Fibra de herói uma maior maturidade na composição que, segundo citado que João Gilberto convenceu Oswaldo Gurzoni, um dos por MIGUEL (2006, p.39), teve início a partir do Quarteto donos da rede de lojas de discos Assumpção, a colocar n° 2 (02/03/1958), “referência para tudo o que vem depois”. o LP Chega de saudade à venda – “por toda São Paulo, o disco foi recordista de vendas dessa loja, aquele ano” De acordo com AGUIAR (2007, p.143), após oito anos pas- (CASTRO, 1999, p.188). A ligação entre Guerra-Peixe e sados na capital paulista, Guerra-Peixe teve o seu contra- João Gilberto não parou aí, pois sempre que o segundo to com a Rádio Nacional de São Paulo vencido e retornou precisava de uma palavra final sobre alguma produção ao Rio de Janeiro, em 27 de março de 1961. era a Guerra-Peixe que recorria e, ao receber a aprovação do compositor, efetuava a gravação com mais segurança. 6 - Rio de Janeiro, 1961-1967: o trabalho na Rádio Nacional do Rio de Janeiro Esses fatos se devem a uma vida na capital paulista “mar- A segunda contratação pela Rádio Nacional do Rio de Ja- cada pelo respeito e credibilidade”, pois foi reconhecido neiro foi cumprida do dia 2 de outubro de 1961 ao dia 1° como “um grande profissional do rádio, do cinema, da de maio de 1967, conforme consta em documento arqui- pesquisa folclórica e das salas de concerto”, tudo como vado (ficha documental) na sede dessa emissora. resultado de sua dedicação à música “sem fronteiras” (AGUIAR, 2007, p.141), reconhecimento este que lhe pro- Desde a sua volta ao Rio de Janeiro até o momento de sua porcionou prêmios nas diversas áreas em que atuou. contratação pela Rádio Nacional, Guerra-Peixe trabalhou como autônomo dando aulas particulares semelhantes às Neste período, Guerra-Peixe recebeu seis vezes os troféus que ele havia dado no período em que viveu em Recife, Roquete Pinto e Tupi mirim referentes ao melhor funcio- conforme notou AGUIAR (2007, p.142). nário do ano, oferecido pela AFEU – Associação dos Fun- cionários das Emissoras Unidas e Associadas de São Paulo. Nota-se que ainda não era possível, mesmo para um mú- sico de sua formação e experiência, viver como compo- No período em que morou em São Paulo, Guerra-Peixe re- sitor de música clássica no Brasil. A solução para esse cebeu uma média de seis convites por ano para viajar para impasse era a atuação como arranjador nas orquestras de o exterior, “além de uma bolsa oferecida pela UNESCO [Or- rádio. O fato de Guerra-Peixe retornar ao trabalho de ar- ganização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e ranjador de orquestras de rádio é exemplo disso. Esse era a Cultura] por dois anos, para divulgação das suas obras um trabalho, ainda na década de 1960, estável, com uma em Paris”. Nesse episódio, “houve a tentativa da parte do remuneração fixa e que tinha ligação com o que um com- compositor de permuta (...), em vez de Paris, o compositor positor realmente gosta de fazer: escrever e criar música. gostaria de ter ido para Angola, onde poderia desenvol- ver outras pesquisas; no entanto, a resposta foi negativa” Por ocasião da recontratação de Guerra-Peixe pela Rádio (DELL’ORTO, 1998, p.6). Pelo que se sabe Guerra-Peixe nun- Nacional, o radialista Paulo Tapajós estava reivindicando ca viajou para fora do Brasil, porém seu nome e sua música melhorias de salário para os arranjadores. Como forma de percorreram e ainda percorrem o mundo todo. argumentação, Tapajós lembrava a direção que:

Nesse período de sua vida, segundo entrevista concedida Lyrio Panicali, José Zimbres, Cid dos Santos e Romeu Fossati esta- pelo compositor (1971, p.4), ocorreram outros fatos im- vam sendo transferidos para o serviço público e, com isso, a emisso- ra estaria fazendo uma economia de aproximadamente Cr 133. 700, portantes referente à sua relação com o rádio, por exem- 00, quantia que poderia ser utilizada para reajustar o salário dos plo: a execução de sua Sinfonia n° 2 Brasília na Rádio do maestros que permaneceram na emissora (PEREIRA, 2006, p.56-57). Ministério da Educação e Cultura do Rio de Janeiro por ocasião de um concurso de composição, em 1960, no Acredita-se que parte dessa verba (Cr$ 25.000,00) tenha qual ficou em segundo lugar junto com Cláudio Santoro sido destinada à recontratação de Guerra-Peixe que, ao e Guerra Vicente (não houve primeiro lugar). Houve tam- voltar para a emissora naquele momento, também estava bém a realização de um recital sob sua direção e regência suprindo o desfalque ocasionado pela saída desses e de na demonstração de música popular brasileira para con- outros maestros, pois, segundo o levantamento de PEREI- gressistas estrangeiros que participavam do Congresso RA (2006, p.55-57), na década de 1960, foram desligados Internacional de Folclore, patrocinado pela Comissão do sete maestros da Rádio Nacional, “sendo a maioria trans- IV Centenário da cidade de São Paulo, realizado no audi- ferida para o serviço público”. tório da Rádio Nacional de São Paulo, em 1954. Na Tabela de Remuneração e Função dos Maestros da Rá- dio Nacional do Rio de Janeiro, apresentada pela pesquisa Foi também durante sua estada em São Paulo que aconte- de PEREIRA (2006, p.51), constam os seguintes dados so- ceram outros fatos relevantes na carreira de Guerra-Peixe, bre o contrato de Guerra-Peixe. como a nomeação para o cargo de chefe do setor musical Os arranjadores da Rádio Nacional do Rio de Janeiro não da Secretaria da Comissão Paulista de Folclore, a participa- ocupavam uma função específica indicada apenas pelo ção nos jornais O Tempo e A Gazeta, nos quais tinha colu- cargo de maestro. Assim, não é possível afirmar se Guer- nas semanais em que escrevia artigos sobre folclore mu- ra-Peixe ficava responsável pela elaboração de arranjos sical brasileiro e música popular urbana e a conquista de exclusivos para um determinado programa da emissora.

144 LACERDA, B. R. Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.138-147.

Sabe-se, no entanto, que ele teve seus arranjos executa- carreira de compositor” (FARIA JR., 1997, p.83). O ter- dos nos seguintes programas: ceiro ponto foi a retomada ao trabalho de composição, interrompido em 1960, tendo como última composição Alegria da rua, alma do Brasil, Cancioneiro romântico, Cantando daquele ano a Sinfonia Brasília n° 2, para reiniciar no para você, Carrossel musical, Dicionário Toddy, Flash musical, Isto é show, Jornal sem banca, Meio século de canções, No mundo das ano de 1966, com a composição do Ponteado para vio- notas, , Quando os maestros se encontram e Refres- lão e, logo, em 1967, com a Sonata para piano n° 2. O cando a memória. Guerra-Peixe também trabalhou na publicidade retorno à composição coincide com uma ênfase ainda [vinhetas] (PEREIRA, 2006, p.36-37). mais acentuada na simplificação da escrita: “reduz a dificuldade em benefício da praticidade de execução. Nas partituras com os arranjos de Guerra-Peixe selecio- Com isso, as peças ganharam extrema comunicabilida- nadas e impressas no Museu da Imagem do Som do Rio de” (MALAMUNT, 1999, p.51). de Janeiro também constam, entre outros, o nome dos seguintes programas: Paradas de sucessos, 21 anos de As últimas atividades que ocorrem em paralelo ao seu Manuel Barcelos, Paulo Gracindo, Cantando para você, contrato com a Rádio Nacional, como relatado por Musical romântico, Galeria musical, Três estrelinhas, Meu AGUIAR (2007, p.144), foram: o trabalho de arranjador Rio é assim e Estreia ao meio-dia. para a TV Tupi do Rio de Janeiro, do ano de 1966 até o final da década de 1970, e os arranjos escritos parao O nome da função preenchida nas fichas cadastrais, por de 1967. exemplo, como regente, arranjador, maestro ou orques- Festival Internacional da Canção trador, significava que esses músicos deveriam estar obrigados a “ensaiar, tocar, gravar, compor, arranjar, re- 7 - Últimos trabalhos como arranjador ger independentemente do nome de seus cargos, ou seja, Ao chegar aos 60 anos de idade, aposentado “por todos os tinham que fazer de tudo para manter seus empregos” lados” – “pelo INPS [Instituto Nacional de Previdência So- (PEREIRA, 2006, p.72). cial] há vinte anos, como compositor, músico; aposentado pela Orquestra Sinfônica Nacional [da Rádio MEC], que Ainda em trabalhos veiculados no rádio, nos anos de 1964 está nos quadros culturais da UFP, aposentado como pro- e 1965, Guerra-Peixe escreveu arranjos especiais para pro- fessor universitário” (CAVALCANTI, 2007, p.123) – Guer- gramas da Rádio e TV Globo, tal como Uma canção por dez ra-Peixe, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 10 de maio milhões. AGUIAR (2007, p.142) relata outras duas produ- de 1974, fez um balanço de sua carreira profissional. O ções importantes, veiculadas pelo rádio, desse período: título da reportagem já aponta sua atitude – “Agora é tempo de recuperar o tempo perdido”. Nessa reportagem Entre 1963 e 1968 redige o programa semanal Nossa Música... Nossa Alma... para a Rádio MEC, verdadeiro estudo sobre a nossa o compositor declarou para o entrevistador Edino Krieger: cultura musical, utilizando discos como exemplos ilustrativos. Em “Passei 43 anos fazendo arranjinhos de música popular fevereiro de 1964, em O Assunto é a Música, feito em colaboração para sobreviver; só agora que me aposentei é que vou com o Centro de Estudos e Pesquisas Musicais, do Sindicato dos poder me dedicar à música que quero fazer. Não faço Músicos Profissionais do Estado da Guanabara, produz uma série de programas sobre cinema, verdadeiras aulas sobre a evolução da mais arranjos para discos, nem música para cinema nada produção musical para esse meio (...). dessas coisas”. É claro que sua posição não permaneceu tão radical. A partir desse momento, de acordo com seu Três outros fatores chamam a atenção sobre a carrei- depoimento (1992a), sua tabela de preços para esse tipo ra profissional de Guerra-Peixe durante o tempo em de serviço passou a estar na média de quinze mil dólares que trabalhou na Rádio Nacional do Rio de Janeiro. pela produção de um disco com 12 faixas. O primeiro foi a volta ao seu instrumento: o violino, após ter passado cerca de vinte anos sem tocar. Em Apesar das frequentes solicitações dos canais de televisão 1963, Guerra-Peixe ingressou como violinista da Or- para que escrevesse arranjos tirados de discos, trabalho questra Sinfônica Nacional da Rádio MEC (Ministério que ele se recusava tenazmente a fazer, a partir de sua da Educação e Cultura), na qual permaneceu por cinco aposentadoria Guerra-Peixe não trabalhou mais como ar- anos até se aposentar da função de instrumentista, em ranjador contratado de nenhuma emissora de rádio, canal 1968. Um segundo fator foi a aceitação do convite fei- de televisão ou gravadora. to pelo compositor Heitor Alimonda para dar aulas de Harmonia nos Seminários de Música Pró-Arte: “ao que Os últimos trabalhos de maior repercussão como arran- parece, Guerra-Peixe se entusiasmou com a nova fren- jador foram: a realização do projeto de arranjos sinfôni- te de trabalho aberta pelo desenvolver natural de sua cos para songbooks, projeto organizado pelo publicitário

Ano Maestro Salário Função Observação 1962 Guerra-Peixe Cr$ 60.000,00 Arranjador e regente

Ex. 1: tabela de renumeração e função de Guerra-Peixe na função de maestro da orquestra da Rádio nacional do Rio de janeiro.

145 LACERDA, B. R. Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.138-147.

Marcus Pereira e gravado pelo selo Chantecler, presente Quando questionado sobre os profissionais que se dedi- na coleção intitulada A grande música do Brasil, uma cam à prática de arranjo para música popular, GUERRA- série de três discos separados por compositores: Tom Jo- PEIXE (1979, p.1-2) respondeu: bim, Chico Buarque e Luiz Gonzaga, lançado no final da década de 1970. E os arranjos sinfônicos (solo orques- O problema dessa gente é que não quer estudar. Uma das únicas exceções que conheço é a do Geraldinho Vespar, que levou a sério tral) para as músicas do disco chamado Afro Sambas, de o estudo. É um orquestrador consciente, sem dúvida. Muitos outros Baden Powell e Vinícius de Morais, lançado em 1966, aprendem um bocadinho e vão adivinhando. Compram métodos es- para o qual também tinha feito os arranjos para a gra- trangeiros e se limitam a aprender estilos alheios. Aliás, arranjador e vação do LP cantado. Segundo AGUIAR (2007, p.146), maestro são apelidos. Virou falta de respeito profissional. a execução de seus arranjos sinfônicos para os cantos Tal declaração revela o interesse do compositor em for- afro-brasileiros de Baden e Vinícius aconteceu em 1992, malizar o estudo da música popular com intenção de ele- no programa de televisão Os arranjadores transmitido var o nível técnico dos profissionais dessa área, bem como pela TV Cultura de São Paulo, sendo, simultaneamente, sua última aparição na televisão e a última regência de da própria música popular. Nesse sentido, um depoimento uma orquestra sinfônica3. Como últimos trabalhos na de um ex-aluno do curso de música popular de Guerra- área também incluem diversos arranjos escritos para Peixe confirma essa sua vontade: músicas apresentadas nos festivais de música da tele- Outra coisa que me influenciou no longo contato com o professor visão, como Ponteio e Upa neguinho de , além foi a seriedade com que ele encarava a música e a profissão de da participação como júri em alguns destes festivais. O músico. Apesar dele não falar clara e diretamente, eu sentia em último arranjo feito na sua vida foi o arranjo de cordas suas atitudes que ele não aprovava um músico fazer concessões para música , presente no LP , em sua carreira profissional quando essas concessões comprome- Cinema novo Tropicália II tessem a qualidade artística da música. Acredito que a minha con- gravado pelo selo Polygram, de e Gilber- cepção musical começou a tomar uma forma mais definida depois to Gil, conforme AGUIAR (2007, p.146). do meu envolvimento com o ensino e as ideias de Guerra-Peixe. A partir dessa fonte eu passei a encarar a profissão com mais serie- O último prêmio como arranjador foi a troféu Pixingui- dade e respeito (MAURO JR., 2007, p.199). nha – melhor orquestração, recebido no I Concurso de Além de Geraldo Vespar e Haroldo Mauro Júnior, nos Música Natalina, promovido pela Secretaria de Turismo cursos de Guerra-Peixe passaram nomes que tiveram de Guanabara, em 1969. expressiva atuação na música popular brasileira, como As atividades pedagógicas como professor de música Chiquinho Morais, Capiba, Sivuca, Rildo Hora, Baden ajudam a entender seu envolvimento com a música po- Powell, Formiga, Juca Chaves, Roberto Menescal, Jards pular, bem como seu interesse em passar o aprendizado Macalé, Nestor de Hollanda, Antônio Guerreiro, Ran- advindo da longa experiência de arranjador para os seus dolf Miguel, Guilherme Bauer, Jorge Antunes, Portinho, 4 alunos. É possível traçar um breve panorama do per- Antônio Adolfo e Moacyr Santos. curso de Guerra-Peixe no desempenho dessa função. De 1950 a 1952, deu aulas particulares no Recife. De 1954 a Guerra-Peixe faleceu no dia 26 de novembro de 1993. Se- 1959, deu aulas, palestras, conferências e cursos em São gundo os pesquisadores FARIA JR. (1997, p.120) e NEPO- Paulo. De 1961 a 1978, participou ativamente de alguns MUCENO (2001, p.54), somente nas últimas composições – , encomenda- cursos no Rio de Janeiro: Seminário de Música Pró-Arte, Rapsódia: Angustiante e Rapsodicamente da pelo , de 1963 a 1970; criação da Escola Brasileira de Música Departamento de Cultura do Estado de São Paulo em outubro de 1993; e no (piano, violino e violonce- Popular do Museu da Imagem e do Som, de 1968 a 1972; Trio lo), encomendado pela , incompleto aulas no Centro de Estudos Musicais, de 1972 a 1980; e Associação Rio-Arte por motivo de seu falecimento–, é que o compositor con- Oficina Musical de Guerra-Peixe ministradas na Escola sentiu em usar elementos de “música popularesca” em de Música Villa Lobos – RJ, de 1981 a 1991. Atuou ainda suas composições, recurso que Radamés Gnattali utilizou como professor de Composição da Escola de Música da sempre sem nunca precisar padecer para isso. Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, de 1980 a 1989 e, após ser transferido, como professor da Univer- sidade Federal do Rio de Janeiro, de 1989 a 1990. 8 – Conclusão O levantamento da carreira de Guerra-Peixe como ar- Em meio a essa intensa atividade pedagógica, o que ranjador de orquestras de rádio traz elementos novos na chama atenção era a sua intensa preocupação com a compreensão da vida musical do compositor. É relevante formação dos músicos brasileiros. Muitas vezes, ao per- o fato de que essa profissão foi a sua principal fonte de ceber o interesse de determinado aluno, aceitava dar renda durante toda a sua vida, como ocorreu com ou- aulas de graça por tempo indeterminado caso este não tros compositores contemporâneos brasileiros. Tal estudo pudesse lhe pagar. Inclusive, foi iniciativa sua a cria- demonstra que importantes compositores eruditos brasi- ção da Escola Brasileira de Música Popular, “objetivando leiros encontraram no campo de atuação profissional da elevar o nível técnico dos que se dedicam à música po- música popular a renda que não conseguiam obter por pularesca (...)” (GUERRA-PEIXE, 1971, p.5). meio apenas da música erudita.

146 LACERDA, B. R. Guerra-Peixe: arranjador de orquestras de rádio. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.138-147.

Referências ASSIS, Ana Cláudia de. Compondo a “cor nacional”: conciliações estéticas e culturais na música dodecafônica de César Guerra-Peixe. Per Musi. n.16. Belo Horizonte: UFMG, 2007. p.33-41 CABRAL, Sérgio. A MPB na era do Rádio. São Paulo: Ed. Moderna, 1990. CASTRO, Ruy. Chega de saudade: A História e as histórias da Bossa Nova. Rio de Janeiro: Ed. Companhia das Letras, 1999. DELL’ ORTO, Ângelo. Aspectos interpretativos da Sonata nº 2 de César Guerra-Peixe. 1998. Dissertação (Mestrado em Mú- sica) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998. FARIA JR. Antonio. Emanuel Guerreiro. Guerra-Peixe: Sua Evolução Estilística à Luz das Teses Andreanas. 1997. Disserta- ção (Mestrado em Música)-Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997. GUERRA-PEIXE, César. Melos e Harmonia Acústica. Princípios de composição musical. São Paulo: Irmãos Vitale, 1988. ______. Para onde vai à música popular brasileira. Arrastão. Jornal de Arte, Rio de Janeiro, p. 4, ago. 1965. ______. Depoimento. Série: Memória Arranjadores. FMIS de São Paulo, 1992 ______. Depoimento. Compositores brasileiros. FMIS do Rio de Janeiro, 1992. ______. Estudos sobre música popular urbana. Minas Gerais: Ed. Da UFMG/PETROBRÁS Cultural, 2007. LACERDA, Bruno Renato. Arranjos de Guerra-Peixe para a orquestra da Rádio nacional do Rio de Janeiro. 2009. Dissertação (Mestrado em Música)-Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2009. MALAMUT, S. V. A flauta na música de câmara de Guerra-Peixe. 1999. Dissertação (Mestrado em Música)-Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. MARIZ, Vasco. Jornal correio da manhã. César Guerra-Peixe. 1952-53, p. 11-12. MIGUEL, Randolf. A estilização do folclore na composição de Guerra-Peixe. 2006. Dissertação (Mestrado em Música)- Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. NEPOMUCENO, Rosa. César Guerra-Peixe: A música sem fronteiras. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2001. ONOFRE, Cíntia Campolina. O Zoom nas trilhas de Vera Cruz – A trilha musical da companhia cinematográfica Vera Cruz. Dissertação (Mestrado em Música)-Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. PEREIRA, Leandro Ribeiro. Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A música popular brasileira e seus arranjadores (Década de 1930 a 1960). Dissertação (Mestrado em Música)-Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. SÉRIE DE MÚSICA BRASILEIRA. Guerra-Peixe. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 7-28 nov. 1995. SERRÃO, Ruth. Guerra-Peixe: um músico brasileiro. Rio de Janeiro: LUMIAR, 2007. VIEIRA, Sonia. Maria. Características instrumentais na obra para piano de César Guerra Peixe. 1985. Dissertação (Mestra- do em Música)-Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1985.

Notas 1 Composto inicialmente para um programa de rádio este hino foi, depois de gravado, “oficialmente adotado nas escolas públicas da antiga Guanabara e outros Estados da Federação, em arranjos para duas ou três vozes. Este hino é também executado por bandas de música, inclusive nas paradas militares” (MIGUEL, 2006, p.24), como a de 7 de setembro entre outras solenidades, por exemplo, quando foi executado na inauguração do Estádio do Maracanã, em 16 de junho de 1950, segundo afirmou AGUIAR (2007, p.132). 2 Hermann Scherchen foi um profundo interessado na divulgação da música dodecafônica e foi por meio da execução de obras como o Noneto e Sinfonia nº1 (dodecafônica) de Guerra-Peixe que o maestro conheceu o compositor (ARAÚJO, 2007, p.31). 3 As partituras, tanto dos arranjos sinfônicos instrumentais, como do disco Afro-Sambas, encontram-se em posse de sua sobrinha neta, Jane Guerra- Peixe. Sem dúvida, esse material merece um estudo aprofundado que poderia resultar em uma ótima pesquisa, através da qual poderiam ser divul- gados outros aspectos interessantes da escrita criativa desse compositor. A fita de vídeo com a execução da ‘sinfonização’ dos Afro-sambas deve estar em algum arquivo cultural de São Paulo. 4 Quando Radamés Gnattali foi questionado pelo produtor musical Antonio Adolfo sobre quem seria o professor ideal para dar continuação aos seus estudos musicais – contraponto, harmonia, composição - ele respondeu de imediato: “procura o Guerra, Guerra-Peixe. Ele é o cara. Não tenha dú- vidas” (ADOLFO, 2007, p.189).

Bruno Renato Lacerda é Mestre em Música pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, maio de 2009, realizada com bolsa de estudos fornecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, de abril de 2008 a maio de 2009. Arquivista da Orquestra Experimental de Repertório do Estado de São Paulo, julho de 2009 até o presente momento. Graduação em Composição e Regência pela Faculdade das Artes Alcântara Ma- chado – FAAM –, dezembro de 2005. Prêmio Acadêmico obtido por ter estado entre os cinco melhores alunos da turma no ano de 2002, título atribuído pela instituição de ensino UniFMU – FIAM/FAAM. Monitor da disciplina Harmonia com a supervisão da Profª Mªs. Marisa Ramires nos anos de 2003, 2004 e 2005, durante o bacharelado. Professor substituto do Prof. Mestre Ricardo Rizek, ministrando aulas de Composição Musical para a turma do 6º semestre de bacharelado em Composição da faculdade FAAM, de fevereiro a junho de 2005.

147 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

Análise do contexto da Roda de Choro com base no conceito de ordem musical de John Blacking

Ivaldo Gadelha de Lara Filho (UNB, Brasília, DF) [email protected]

Gabriela Tunes da Silva (Câmara Legislativa do Distrito Federal, DF) [email protected]

Ricardo Dourado Freire (UNB, Brasília, DF) [email protected]

Resumo: A Roda de Choro oferece um rico ambiente para análise tanto do contexto musical da performance quanto do contexto social que nutre as relações musicais. No presente artigo, essa especificidade é analisada a partir do conceito de ordem musical estabelecido por John Blacking (1995). A coleta de dados da pesquisa foi realizada a partir de observações etnográficas e entrevistas com os músicos participantes do universo do Choro. A análise dos discursos e dos registros pode auxiliar na identificação dos elementos que compõem esta ordem musical dentro do Choro conforme a proposta do etnomusicólogo. O contexto ilustrado na discussão é uma Roda de Choro regularmente realizada em um bar de Brasília com a presença de músicos vindos de vários lugares do Brasil. Os relatos dos chorões apontam para a importância da existência de Rodas para manutenção e recriação da tradição musical do Choro. Foi possível compreender que, para esse gênero musical, uma série de fatores extra-musicais interfere de modo significativo nas performances dos músicos. Palavras-Chave: choro; roda de choro; etnomusicologia; John Blacking.

The Roda de Choro musical and social analysis based on John Blacking´s concept of musical order

Abstract: The Roda de Choro offers a rich environment in order to analyze the musical context of performance and the social context which nourishes the musical relations. This article aims at analyzing the relationship of both musical and social contexts according to the concept of musical order established by John Blacking (1995), who argues that “music cannot exist without the perception of order that organizes sound”. Empirical data was carried through interviews and based on ethnographic field work realized during eighteen months in a live music restaurant in Brasilia. Through discourse analysis and registers analysis it was possible to identify elements which form musical order inside the Choro according to the musician’s proposal. Analyses unveil the role of Rodas de Choro as social contexts for maintaining and to recreating choro musical tradition. As a musical gender, Choro involves a whole set of extra-musical factors that impacts musicians’ performance. Key-Words: Brazilian choro; roda de choro; ethnomusicology; John Blacking.

1- Introdução No Choro, assim como em qualquer outro tipo de mani- tante, mas foi na arte da interpretação que essa música festação de música popular, o estudo da prática da inter- alcançou seu elemento identificador mais contundente. pretação musical (performance) torna-se um desafio para Músicos e ouvintes do Choro, ao observarem performan- trabalhos de natureza acadêmica, pois inclui uma série ces de chorões, são capazes de emitir julgamentos sobre de elementos subjetivos e complexos para serem descri- ela. Mesmo divergindo muitas vezes sobre alguns aspec- tos com precisão. Todavia, a interpretação musical é um tos, esses julgadores, em sua grande maioria, convergem dos aspectos mais importantes no gênero, sendo uma de quanto à atuação. Isso permite inferir que há uma ordem suas marcas registradas. Em sua trajetória histórica, os que organiza o Choro como sistema musical, e que tal or- compositores e suas obras exerceram um papel impor- dem é reconhecida pelos chorões, músicos ou audiência.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 12/01/2010 - Aprovado em: 22/03/2010 148 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

Gerard BÉHAGUE (1984), em estudos sobre performance sempre estão diretamente ligados à prática musical. Com musical, afirma que a etnografia da perfomance deve tra- isso, BLACKING (1995) infere que é possível aprender mú- zer à luz os modos como os elementos não-musicais, numa sica simplesmente sendo parte de uma coletividade hu- determinada ocasião influenciam os musicais. O referencial mana, organizada por uma ordem que se expressa, entre fornecido por BÉHAGUE (1984) aponta para a impossibili- outros, na música dessa coletividade. dade de se compreender um sistema musical desvinculado do contexto geral em que se insere. O conhecimento do Contrariamente KERMAN (1987) afirma que toda in- contexto permite que as análises dos parâmetros musicais terpretação é individual, pois o músico deve imprimir sejam mais facilmente realizadas e compreendidas, porque à obra sua personalidade, seu sentimento e sua intui- abordadas a partir do conhecimento do ambiente musical ção. A interpretação é o modo como a individualidade do Choro, composto não somente pela música como tam- do músico influi na individualidade da obra. Ele ressal- bém por inúmeros outros elementos. ta que os músicos inseridos em uma tradição viva não precisam escrever ou falar sobre a música que execu- De acordo com diversos autores (dentre eles, podemos tam para manterem a tradição. Importante para isso é destacar BLACKING, 1973; e QURESHI, 1987), no estudo a constante produção, interpretação e reinterpretação de sistemas musicais não totalmente ancorados no re- das músicas. Na visão do autor, uma tradição musical gistro escrito convencional, é importante levar em con- não mantém sua “vida” ou continuidade por meio de sideração os conceitos, as teorias, e os conhecimentos livros e da sabedoria livresca. Ela é transmitida em li- musicais dos músicos que compõem tais sistemas. Isso ções privadas, não tanto por palavras, mas também pela quer dizer que o uso das ferramentas da teoria musical linguagem corporal; não tanto pelo preceito como tam- ocidental pode não ser adequado para o entendimento bém pelo exemplo. Afirma ainda que isso não significa e para as análises desses sistemas musicais. Para os mu- que os músicos não reflitam ou pensem sobre sua prá- sicólogos, os conceitos cunhados pelos próprios músicos tica musical; apenas não têm o hábito de articularem são aqueles que melhor representam seus sistemas mu- isso em palavras ou de registrarem em pentagramas. No sicais. Portanto, é tarefa do pesquisador identificar esses fundo, isso não é necessário, pois a prática musical já é conceitos e conhecimentos, tentando manter fidelidade suficiente. No Choro, ao contrário do que acontece na ao modo como são expressos dentro de seu sistema cul- música erudita, não é comum o registro detalhado por tural originário. Mesmo que um sistema musical não se escrito das interpretações. As gravações, contudo, dei- baseie em uma teoria musical, existem conhecimentos xam registradas interpretações que acabam se tornando subjacentes acerca da ordem sonora. Nas palavras de célebres. Desta forma fica eternizada a criatividade de John BLACKING (1973): grandes intérpretes que será exemplo para vários ins- trumentistas. Mas, de algum modo, ao seguir os exem- Quando afirmo que a música não pode existir sem a percepção da ordem que orienta o som, não estou argumentando que algum tipo plos e se deixar influenciar, o intérprete deve subverter de teoria musical deva preceder a composição e a performance a imitação do modelo, e criar seu estilo interpretativo musical: isso deve ser obviamente falso para a maior parte das próprio. John BLACKING (1995) afirma que, se a música grandes composições clássicas e para o trabalho dos chamados é o som organizado pelos homens, ela deve conter refle- músicos ‘folk’. Estou sugerindo que a percepção da ordem musical, não importa se inata ou aprendida ou ambas, deve estar na mente xos da organização social em que seus produtores este- antes de emergir como música. (BLACKING, 1973, p.11) jam inseridos. Se considerarmos que a interpretação é o modo como um indivíduo expressa sua pessoalidade em Tomando como válida a assertiva de BLACKING (1973), um sistema musical, pode-se inferir que a interpretação supõe-se possível identificar uma ordem sonora subja- deve conter, também, reflexos do modo como o intér- cente às performances do Choro; além de constatar que prete compreende sua realidade e seu sistema social. A os chorões têm consciência dessa ordem. No contexto do interpretação, portanto, traz elementos que estão além Choro, os entendimentos pessoais e individuais existentes do seu entendimento da ordem sonora de um sistema sobre a ordem sonora do Choro irão contribuir inclusive musical; levando em conta os conceitos de BLACKING para a consolidação dos estilos individuais de instrumen- (1995) e KERMAN (1987), é a verdadeira expressão de tistas. É possível também perceber elementos cuja pre- uma pessoa. Diante disso, percebe-se que o estudo da sença é crucial para as performances do Choro. performance e da interpretação irá acessar aspectos da ordem sonora de um sistema musical — reflexo da Desse modo, se a pesquisa investigar a percepção da or- ordem social que organiza uma coletividade; mas irá, dem musical dos músicos integrantes desse universo po- também, acessar os modos como cada intérprete com- derá identificar elementos dessa ordem. Uma forma de se preende tal ordem sonora, e como ele se vê e se insere ter acesso a esses conhecimentos é permitir aos músicos na ordem social da qual faz parte. a verbalização de seus conceitos e de suas percepções. BLACKING (1995) postula que o julgamento da perfor- A partir de uma análise categorizada do discurso dos cho- mance no âmbito de uma tradição musical, ou seja, a ca- rões de Brasília, foram identificados diversos elementos pacidade de dizer o que é bom ou ruim, certo ou errado musicais utilizados na avaliação da performance na roda em um determinado sistema musical, baseia-se em prin- de choro. Dentre eles podem ser destacados: sonoridade, cípios adquiridos na vida social em processos que nem formação instrumental, repertório, virtuosismo, expressi-

149 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

vidade e emoção, capacidade de decorar (não tocar len- que também alteram o contexto. Nesta visão, QURESHI do), erros (o modo como o músico lida com erros), ritmo (1987, p.65) afirma que o som musical varia com a va- (citado como balanço, ginga, malandragem – elementos riação no contexto da performance; no caso da Roda de próprios do Choro e de outras manifestações da cultura Choro, o inverso também é válido. brasileira), variações e improvisação. Roberto M. Moura (2004) realizou extenso trabalho 2- A Roda de Choro sobre a Roda de Samba, que pode servir de referência A Roda de Choro é um dos contextos de performance para a análise das Rodas de Choro, pois ambos os gêne- mais característicos do Choro, que pode ser considerada ros estão ligados desde sua origem, e as características sua matriz. Marcada pela informalidade, nela não estão das Rodas guardam importantes semelhanças. Do mesmo definidos, a priori, aspectos como: quem irá tocar, quan- modo, capoeira e candomblé são exemplos de manifes- do, como, com quem ou quanto irá tocar; trata-se de um tações de raiz negra que também reúnem características encontro entre músicos, com a presença de uma audiên- semelhantes às das Rodas de Samba e Choro. Para o caso cia; há um limite fluido entre músicos e audiência, pois da segunda, a análise de MOURA (2004) sobre as Rodas todos são audiência. Em geral, os músicos intercalam-se de Samba é particularmente pertinente, pois ambas são na performance, e cada músico é audiência dos outros manifestações culturais em que a música desempenha músicos no momento da execução do Choro. Podemos o principal papel, diferentemente da capoeira e do can- caracterizar a Roda como um conjunto de círculos con- domblé, em que elementos de luta, dança e religião são cêntricos, sendo que, no primeiro círculo, estão os mú- tão importantes quanto a música. Como no caso do sam- sicos (geralmente em volta de uma mesa); no segundo ba, a Roda antecede o Choro e é sua matriz física; não foi círculo, os interessados pela música (conhecedores desse o Choro que criou a Roda, mas o contrário. Ao longo de universo musical e participantes do ambiente de relações sua existência, o gênero incorporou instrumentos, alterou pessoais dos músicos); nos círculos subsequentes ficam formas e harmonias, criou novos estilos e sofreu uma sé- os frequentadores do ambiente musical — algumas vezes rie de outras modificações. Mas a Roda permaneceu. Mais interessados apenas na interação social. Muitas vezes, do que apenas um dentre vários contextos em que o Cho- essa classificação circular não é observada, e as pessoas ro ocorre, a Roda é elemento fundamental na geração, se misturam constantemente. preservação e divulgação desse gênero musical (MOURA, 2004, p.29). Assim, as características de performance e A Roda é um encontro de pessoas, e vincula-se ao lazer, contexto presentes na Roda são, sem dúvida, cruciais tendo, quase sempre, ares de festejo. Dois aspectos musi- para o entendimento da natureza do Choro. cais reforçam seu caráter informal: não há ensaio e ela é aberta. Sendo um encontro, para que aconteça a roda, não No livro No princípio Era a Roda: um estudo sobre sam- há sentido em realizar outros encontros preparatórios – os ba, partido alto e outros pagodes (MOURA, 2004), o autor ensaios. A Roda é também aberta, pois, a princípio, todos tenta refazer a trajetória histórica do Samba a partir das podem tocar, desde que tenham certo domínio técnico do Rodas de Samba no Rio de Janeiro desde o final do século instrumento e sejam aceitos pelos músicos do momento. A XIX aos dias atuais. Ele afirma que, embora seja um ritual, possibilidade de qualquer instrumentista presente na oca- cada Roda é única e não pode ser repetida. Seu código se sião da Roda ter a liberdade de tocar reforça também seu funda na família, na amizade, na lealdade, na pessoa e no caráter de encontro social. Ao contrário de muitas práticas compadrio (MOURA, 2004, p.28). Como em qualquer ritu- musicais abordadas em estudos etnográficos, nas quais a al, a Roda preserva e atualiza o que está em sua origem. música é apenas um dentre diversos elementos compo- Ela é antes de tudo um evento festivo de caráter plural, nentes de um ritual, a Roda de Choro tem a música por familiar; um espaço mítico resultante da dialética entre o objetivo, pois ela é o elemento principal, o fator agregador cotidiano e a utopia; ela instaura a ilusão da eternidade de pessoas. Diante do exposto, pode-se dizer que a música (MOURA 2004 p.23). É um espaço em que o que é íntimo origina o contexto, que, por sua vez, interfere na música. O se confunde e se mistura com o que é coletivo. Compre- ritual da Roda de Choro acontece porque existe a música; ende música, comida, bebida, alegria e um conjunto de são indissolúveis contexto e música. São fatores impor- relações, e funciona como suporte de processos de inte- tantes as pessoas presentes e as relações de troca que os ração e comunicação entre as pessoas. Não são os sam- músicos estabelecem entre si. bistas que formam a Roda, mas o contrário. Isso se deve em grande parte ao ambiente doméstico, familiar, íntimo, SCHUTZ (1977) defende que a música como modo de co- caseiro em que ela se dá (MOURA, 2004, p.39). municação não se baseia na transmissão de conteúdos sonoros, mas na possibilidade de instaurar relações in- Como referencial para suas análises sobre a Roda de terpessoais. No caso da Roda, instrumentistas de diversos Samba e o inexorável processo de profissionalização níveis tocam juntos, criando e recriando repertórios; nela dos sambistas e suas inserções no mercado fonográfico, a música exerce, dentre outras coisas, o papel de interlo- MOURA (2004) adota as categorias sociológicas “casa” e cução entre as pessoas. Assim, a Roda de Choro cria um “rua”, criadas pelo antropólogo Roberto DaMatta. Esses ambiente de relações e, em contrapartida, apoia-se nele. termos designam mais que simples espaços geográficos Com efeito, o contexto interfere nos elementos musicais, ou coisas físicas comensuráveis; designam:

150 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

(...) acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, pro- ele, a Roda não é nenhuma novidade, pois a primeira dan- víncias éticas, dotadas de positividade, domínios culturais insti- ça humana, expressão religiosa instintiva, a oração inicial tucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emoldu- pelo ritmo, deve ter sido em roda, dançada ao redor de um radas e inspiradas.” (DAMATTA 1997, apud MOURA, 2004, p.41). ídolo. Com efeito, encontramos inúmeras manifestações da cultura popular cuja organização se dá em forma de O autor afirma ainda que, do mesmo modo que é possí- roda. Mas teriam essas outras rodas características seme- vel fazer uma leitura do Brasil do ponto de vista da casa lhantes àquelas observadas nas Rodas de Samba, descritas em contraponto à rua, é possível ler o Samba através da por Roberto MOURA (2004), e nas de Choro? Tomemos a Roda em contraponto à Escola de Samba nascida como capoeira como exemplo. VIEIRA e ASSUNÇÃO (1998) afir- casa e transformada em rua. Assim, na casa/roda as lei- mam que o jogo da capoeira, até o início dos anos 30, turas ressaltam a pessoa; a casa propicia a formação da integrava-se às práticas cotidianas das classes popula- Roda como manifestação espontânea e festiva. Já na res de modo semelhante aos jogos de futebol informais escola/rua há uma ênfase no indivíduo, os discursos são (peladas), pois consistia em encontros entre pessoas cujo mais rígidos e instauradores de novos processos sociais aprendizado se dava no exercício prático do jogo. Havia (MOURA, 2004). Visto desta maneira, nota-se que a Roda pontos tradicionais de reunião dos capoeiristas, principal- não é passível de se transformar em produto, ao contrá- mente nos domingos à tarde, tais como bares, praças, mer- rio do samba. Ela é descrita antes como uma expressão cados e feiras. Não havia indumentária especial, mas os comunitária (mais utópica e amadora); seu aspecto mais capoeiras mais experientes costumavam trajar ternos de comercial caminha na direção da escola de samba (mais linho branco, pois sua destreza se demonstrava ao sair da pragmática e mercantil). brincadeira com a roupa perfeitamente limpa. Os autores enfatizam que, embora o universo da capoeira envolvesse A música que soa na Roda é, coerentemente com a abor- violência e frequentes embates entre grupos rivais e com dagem de SCHUTZ (1977), produzida verdadeiramente em a polícia, seu caráter essencial era lúdico. A roda de capo- conjunto. Para MOURA (2004, p.37), o ambiente musi- eira era vista como folguedo, encontro. Afirmam também cal da Roda não separa música e vida, lazer e produção, que a capoeira é marca identitária de seus praticantes, e sendo mais do que apenas um evento musical, mas uma apontam a malandragem, a mandinga, como um dos ele- opção política, um modo de vida, que inclui desde círcu- mentos mais valorizados na performance do capoeirista. los de amizade até vestimentas, comidas, bebidas, gestos, O duelo jocoso é a marca do jogo da capoeira; embora discursos e expressões. Muitos músicos realizam essa en- seja complexo a ponto de ser um jogo em que quase nun- trega total à música, de modo que o Samba (ou o Choro) ca é possível apontar um vencedor, há sempre o objetivo se torna sua principal marca de identificação. de derrubar o outro, por meio de golpes desequilibrantes. Todavia, nem sempre isso ocorre, e o jogo não perde seu A Roda apresenta muitas características das coletividades valor por isso. No mesmo sentido, REIS (1997) afirma que humanas, sendo a hierarquia uma delas. Todavia, os cri- o ethos da capoeira é marcado pela ambiguidade lúdico- térios delimitadores dessa hierarquia dentro de uma Roda combativa, que prefere o confronto indireto, disfarçado, de Choro ou de Samba são diversos daqueles passíveis de ao embate aberto. A malandragem é a maliciosa capaci- demarcarem hierarquias em outros ambientes. De modo dade de dissimular, de esconder as verdadeiras intenções simplificado, nada do que o sujeito é ou tem ou faz fora do jogador. A ginga, base móvel da capoeira, é um tipo da Roda importa para aqueles que estão dentro dela: de movimentação que permite ao capoeira utilizar ma- neirismos e mandingas que confundem o outro jogador. Pode (...) certo artista ser um indiscutível sucesso de vendas ou Desse modo, ele torna seu jogo completamente imprevisí- execução. Pode ser um ídolo do rádio, do cinema ou da televisão. vel, nunca sujeito a ser conhecido por antecipação, mes- Pode bater recordes. Nada disso lhe assegura qualquer respeita- mo nas últimas frações de segundo que antecedem sua bilidade ou diferenciação dentro da Roda. Seu lugar será sempre determinado pelo que for capaz de fazer ali – e ali não é lugar de movimentação. O jogo da capoeira é sempre improvisado. mentira. (MOURA, 2004: 44). Dentro da variedade de fontes que tratam da história do Sem dúvida, no caso do Choro, a performance do músico é gênero, destaca-se a obra Choro: A Social History of a o principal elemento que irá garantir sua respeitabilidade. Brazilian Popular Music (LIVINGSTON-ISENHOUR e GAR- Evidentemente, outros fatores podem intervir, tais como: CIA, 2005). Em um capítulo inteiro dedicado à Roda, os antiguidade na Roda, reconhecimento, histórico pessoal, autores destacam os aspectos musicais (a formação ins- ou até o carisma. Mas a performance, a capacidade de trumental, o repertório, a improvisação, o aprendizado, a tocar bem, a demonstração de talento e criatividade são interpretação, e outros) e também os sociais (os códigos cruciais para um músico na Roda. de conduta, o papel das amizades, a hierarquia, a intera- ção, a informalidade, a devoção, a paixão etc). Torna-se Muitas vezes, outras manifestações da cultura popular importante discutir os modos como os autores entendem brasileira que incluem a música têm na Roda sua matriz. a autenticidade de uma Roda. Para eles, existem dois ti- CÂMARA CASCUDO (2002, P. 592) afirma que as três et- pos: a Roda pura, considerada também como original, e a nias que deram origem ao povo brasileiro (negros, portu- Roda de Apresentação. Na primeira, os músicos não são gueses e índios) possuíam suas danças de roda. Segundo remunerados, qualquer um pode tocar e não existe ne-

151 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

nhum aparato tecnológico para a amplificação dos ins- nenhum outro objetivo a não ser o encontro de músi- trumentos. Na outra, os músicos são assalariados, con- cos, e sem interferências de elementos externos a ela tam com o apoio de uma infra-estrutura de sonorização própria e à música. e a participação de outros músicos dependerá do grau de intimidade tida com os outros membros da Roda. Os Propomos, aqui, um outro modo de entendimento da Roda autores afirmam que esse segundo modelo descaracteriza de Choro. Para tanto, será utilizada a abordagem metodo- a Roda pura, pois o fato de os chorões contarem com o lógica proposta por Max WEBER (1993), que se baseia na apoio de recursos tecnológicos instaura outros modos de construção de tipos-ideais. Um tipo-ideal é uma abstra- relação entre músicos e audiência. Ademais, o profissio- ção que contém um conjunto de elementos que, embora nalismo exigido reduz os espaços de expressão da pessoa- encontrados na realidade, não necessariamente o são do lidade, e cria um distanciamento entre músicos e músicos mesmo modo como estão na representação típica-ideal. e entre músicos e audiência. A Roda só é autêntica se O tipo-ideal não é uma representação nem uma descri- houver a máxima interação entre os músicos e a audiên- ção, mas sim um conceito que funciona como ferramenta cia. (LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA 2005, p.54). de análise, cuja finalidade é auxiliar a compreensão da realidade. Nas palavras de Weber: Nesse ponto, algumas considerações são pertinentes. O contraponto, por excelência, da Roda de Choro, é a Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande apresentação, geralmente realizada em teatros e ca- quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, sas de espetáculos, e cujas características são opostas que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por àquelas observadas na Roda. Em termos gerais, o reper- completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilate- tório é preestabelecido e a apresentação é precedida ralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. Torna-se impossível encontrar empiricamente na de ensaios. Por isso, são feitos arranjos para a maioria realidade esse quadro, na sua pureza conceitual, pois se trata de das músicas; em muitos casos, a estrutura e a forma do uma utopia. A atividade historiográfica defronta-se com a tarefa Choro são alteradas, justamente por existirem ensaios de determinar, em cada caso particular, a proximidade ou afas- prévios. A apresentação é marcada pela formalidade tamento entre a realidade e o quadro ideal (...) Ora, desde que cuidadosamente aplicado, esse conceito cumpre as funções es- e pelo profissionalismo. O público assume a postura pecíficas que dele se esperam, em benefício da investigação e da de espectador, ou seja, consumidor passivo do espetá- representação. (WEBER, 1993, p.137). culo apresentado. Para os músicos, não faz diferença quem os está assistindo, pois a distância que os separa A descrição da Roda, conforme proposta por Roberto da audiência é grande, tanto no âmbito físico quan- MOURA (2004), pode ser entendida como uma constru- to no psicossocial. Ocorre que, muitas vezes, as Rodas ção típico-ideal de um contexto em que o Choro ocorre; a de Choro acabam por incorporar alguns elementos da apresentação formal teria, então, características diame- apresentação, vez que são capazes de atrair público. tralmente opostas, sendo, também, um tipo-ideal. O que Então, é comum que produtores de eventos, donos de observamos no plano real, contudo, são situações híbri- estabelecimentos, entre outros, promovam Rodas de das desses dois contextos, que contêm elementos de um Choro periódicas, a fim de verem crescer seus negó- e de outro, em maior ou menor grau (Ex.1). cios. Todavia, para que aconteçam, para que atraiam o público, é preciso garantir, primeiramente, que exista A polaridade roda/apresentação é presente quase sempre um mínimo de músicos presentes, capazes de execu- nos discursos que tratam do Choro. Músicos, ouvintes, tar os Choros. Assim, nesses casos, um conjunto re- apreciadores, produtores, donos de comércio, intelectu- gional é contratado para garantir a música; todavia, ais, acadêmicos e artistas, enfim, todos que tem alguma não lhes são exigidos ensaios, repertórios definidos, e relação com o gênero, costumam possuir também opinião a participação de outros músicos é aberta. Em segun- formada acerca dessa polaridade. Alguns discursos valori- do lugar, é preciso amplificar o volume do som, para zam a apresentação em relação à Roda, apoiados na ideia que a audiência escute a música; existem, portanto, de que a formalização e a profissionalização indicam que Rodas de Choro com som amplificado. Por fim, em al- o gênero está sendo valorizado. De outra mão, há aqueles guns casos, quando alguma Roda de Choro começa a se que defendem a autenticidade do choro somente nas Ro- destacar pela qualidade musical, é comum que o dono das, onde existe informalidade e pessoalidade. Em defesa do estabelecimento e/ou os próprios músicos realizem da Roda, levanta-se o argumento da tradição: é comum filtragens daqueles que poderão participar, vetando a associar a origem do Choro ao ambiente das Rodas. A entrada de músicos muito iniciantes e inexperientes, partir daí, surge a ideia de que está havendo uma espécie que podem comprometer o nível da performance da de degeneração do gênero, cuja origem é a profissiona- Roda como um todo. LIVINGSTON-ISENHOUR e GAR- lização dos músicos e a associação do Choro com o co- CIA (2005) entendem que quando há som amplificado, mércio do entretenimento. Ao mesmo tempo, alimenta- pagamento de músicos fixos e filtragem de partici- se o desejo nostálgico de volta ao tempo do “verdadeiro” pantes, o evento, embora denominado Roda de Choro, Choro, aquele tocado em Rodas nos quintais e botecos. perde sua autenticidade como tal. Defendem esses au- Esse argumento contribui, também, para a criação de tores a ideia de que somente é autêntica aquela Roda uma visão romântica da Roda de Choro, como sendo um de Choro considerada pura, ou seja, que acontece sem local que as pessoas frequentam por motivos nobres e

152 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

RODAS APRESENTAÇÕES

Informais Formais Pessoais Impessoais Proximidade músicos / audiência Distanciamento músicos / audiência Não-remunerada Remuneradas Repertório definido na hora Repertório pré-definido Aberta a outros instrumentistas Fechadas a outros instrumentistas Ausência de equip. amplificação de som Equipamentos para amplificação do som Ao redor de mesas, em cadeiras comuns No palco

REALIDADE

(RODAS + APRESENTAÇÕES)

Características tanto das Rodas quanto da Apresentações, podendo estar mais próxima de uma ou de outra.

Ex.1: Resumo esquemático de dois contextos de performance típicos do Choro.

altruístas, movidas apenas pela beleza da música e dos bém música clássica. Então, quem veio primeiro: o encontros entre pessoas, onde reinam a mais perfeita quintal ou o Municipal? Puxo a brasa para a minha harmonia e as mais sólidas amizades, e onde não há lugar sardinha, e para o que penso ser o traço mais interes- para mesquinharias e outros sentimentos e atitudes vis e sante de tudo aquilo de vital que aconteceu e acon- baixos. Essa visão romântica é, obviamente, equivocada e tece na cultura carioca e brasileira: nem o quintal distante da realidade. nem o Municipal. O melhor acontece “entre”, na pos- sibilidade de ultrapassar as fronteiras rígidas que se- É interessante notar que CAZES (2005), faz referência ao param os vários mundos culturais, na tradução entre antagonismo Roda/Apresentação já no título – Choro: do as várias linguagens musicais, na genial atuação de quintal ao municipal. O título transmite a ideia de que o mediadores (entre-mundos, entre-linguagens) como Choro, em sua trajetória histórica, partiu de um ambien- Pixinguinha, Radamés Gnatalli(...). (VIANNA, Herma- te amador/informal (o quintal, local onde as Rodas mais no, In: CAZES, 2005, p.8-9) simples e espontâneas acontecem) para um formal/pro- fissional (o Teatro Municipal, ambiente glamoroso, onde Ao longo da história do Choro, conforme indicou Herma- somente grandes artistas se apresentam), obtendo mere- no Vianna, a polaridade roda/apresentação esteve sempre cido reconhecimento. Todavia, o prefácio do livro, escrito presente. Também é fato que, na maioria das vezes, os por Hermano Vianna, traz considerações sobre o título e músicos participantes das apresentações são os mesmos sobre o antagonismo roda/apresentação: frequentadores das rodas e conhecedores dos dois con- textos, das diferenças que guardam entre si e dos códigos Do quintal ao Municipal sim, mas também de volta de conduta em cada um deles. ao quintal novamente, e assim sem parar, num mo- vimento de ida e vinda (não se sabe ao certo qual é LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA (2005, p. 42) também o território de origem) que confunde muitas noções fazem referências à tensão roda/apresentação. Enfati- preestabelecidas, como a de alta e baixa cultura, ou zam a importância da Roda como matriz do Choro, e a como erudito e popular. Em cinquenta anos, a banda descrevem também em contraposição com o contexto de Anacleto de Medeiros já apresentara uma seleção da apresentação. Todavia, não refletem sobre a existên- de temas de II Guarany, Villa-Lobos já frequentava cia de situações híbridas, que misturam elementos dos as rodas de Choro na casa do pai de Pixinguinha; e o dois contextos. Segundo eles, para os chorões, o Choro pioneiro do violão chorista, Sátiro Bilhar, tocara tam- “verdadeiro” somente se ouve na Roda, e a qualidade

153 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

da Roda é julgada não somente pelo nível dos músicos, e pagos, a Roda tem falsa espontaneidade, e não deve mas pelo grau de participação: uma roda em que apenas ser considerada como tal. Além do pagamento, apontam poucas pessoas tocam (...) não é considerada “verdadeira”. a amplificação do som como outro elemento que desca- No capítulo que dedicam às Rodas de Choro, os autores racteriza a Roda de Choro: a questão da amplificação não fazem referência a várias delas. Uma ficcional, imaginada esteve presente em nenhuma das rodas que participamos, a partir dos relatos de Alexandre PINTO (1978) sobre o principalmente porque os requisitos estéticos de uma ambiente do Choro no início do século XX, com o ob- roda são substancialmente diferentes daqueles de um jetivo de descrever uma Roda antiga. Duas outras tive- concerto (LIVINGSTON-ISENHOUR e Garcia, 2005, p.56). ram participação dos autores do livro, e cuja realização se deu exatamente para que eles pudessem participar; Com base nessas observações, LIVINGSTON-ISENHOUR e a primeira foi considerada uma roda de amadores, por GARCIA (2005) concluem que: ser formada por músicos de nível técnico intermediário; a segunda foi definida como roda de profissionais, porque (...) houve uma mudança crucial nos últimos vinte anos na prática dela participaram músicos consagrados, como Joel Nasci- e na percepção do choro; ele deixou de ser uma tradição essen- cialmente participativa, baseada na roda, para ser uma tradição de mento, Maurício Carrilho e Luciana Rabello. Há também a apresentações e gravações, representada pelas gerações mais jo- descrição de uma Roda de Choro em Brasília, realizada na vens. O renascimento [do choro no final do século XX] introduziu o residência do Dr. Assis, chorão conhecido na cidade por choro a um novo setor social – a juventude universitária de classe- Six, pelo fato de possuir seis dedos nas mãos. Essa Roda média e classe-média-alta. Nesse processo, o choro foi adaptado às preferências e à sensibilidade musical dos novos chorões. Além de durou cerca de três dias, pois era costume do Six realizar serem capazes de ler e compor músicas, esses músicos geralmente eventos intermináveis, e contou com a participação de têm uma orientação cosmopolita que os distingue das gerações an- grandes nomes da música instrumental brasileira, como teriores de chorões (LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA, 2005, p.57) Arthur Moreira Lima e Carlos Poyares. Pela longa duração da festa, a roda teve momentos diferentes, alguns mais Desse modo, fica claro que, para LIVINGSTON-ISENHOUR formais, outros extremamente informais, e obviamente e GARCIA (2005), não existe meio-termo entre os con- muitos choros foram repetidos. textos da Roda e da Apresentação, pois cada evento deve ser enquadrado em uma ou outra categoria. Quando ele- Por fim, os autores descrevem a Roda do “Choro na Feira”, mentos típicos da Roda estão ausentes, eles a consideram que aconteceu em maio de 2003. Eles diferenciam essa falsa, mesmo que seja denominada como tal. Além disso, Roda das demais descritas por ser uma Roda de Apre- conforme indica a citação acima, esses autores relacio- sentação. Definem esse termo – Roda de Apresentação nam a redução das Rodas de Choro autênticas ao fenô- – como sendo um contexto em que, embora aparente ser meno contemporâneo do renascimento do Choro, cujos uma roda espontânea, na realidade consiste em um grupo protagonistas são, principalmente, jovens de classe-mé- de músicos, relativamente flexível, que se encontra todo dia bem formados e informados. Esse setor da socieda- sábado em Laranjeiras (LIVINGSTON-ISENHOUR e GAR- de dá alto valor às apresentações e gravações de discos; CIA, 2005, p.54). São, portanto, Rodas de Choro com ca- desse modo, realizam Rodas de Choro voltadas para um racterísticas de apresentação. Os autores chegam a afir- público com grupos fixos, pagos para tocar e, muitas ve- mar que, nesses casos, os músicos são pagos para agirem zes, com som amplificado. Para LIVINGSTON-ISENHOUR e como se estivessem em um “evento espontâneo”. Desta GARCIA (2005), essas não são Rodas verdadeiras. Todavia, maneira, nas rodas contratadas como eles as denominam, na história do Choro, sempre esteve presente a polari- haveria uma grande dose de cinismo, pois que preten- dade roda/apresentação e seus hibridismos. Os chorões dem literalmente enganar o público. Nelas, a aparente eram familiares aos ambientes informais tanto quanto espontaneidade confunde a audiência: o fato de não ha- aos mais formais possíveis, pois estavam acostumados a ver palco, e dos músicos tocarem fisicamente próximos se apresentar para a corte e a alta sociedade. Também da audiência, faz com que o público pense que se trata sempre foram comuns Rodas de Choro em estabeleci- de uma Roda. Quanto à participação de outros músicos, mentos comerciais, visando a aumentar o movimento, e afirmam que ela é limitada a instrumentos percussivos com retornos financeiros aos músicos. Conforme afirma auxiliares (qualquer um menos pandeiro e surdo). Toda- Hermano Vianna, o Choro não acontece nem no quintal via, descrevem uma situação em que um violonista des- nem no Municipal, mas no espaço entre esses dois mun- conhecido dos músicos solicitou a participação na Roda dos culturais aparentemente apartados. Com base nisso, e foi atendido; os solicitados, contudo, consideraram sua podemos afirmar que as Rodas do Choro na Feira não são, performance ruim e, embora o tenham tratado cordial- como afirmam LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA (2005), mente, demonstraram, com sutis expressões faciais, que falsas, mas possuem características diferentes daquelas não estavam apreciando. Apesar disso, deixaram-no tocar exclusivamente domésticas, sem, que por isso, sejam me- por um tempo. Para LIVINGSTON-ISENHOUR e GARCIA nos autênticas. De fato, não é possível sequer julgar em (2005), a participação do violonista foi possível porque qual contexto o Choro é “mais autêntico”, se na Roda ou o violão tem volume baixo, e não compromete tanto a na Apresentação, uma vez que ambos estiveram presen- sonoridade geral da Roda; caso fosse um trombonista, por tes ao longo da história do gênero, fazem parte dele e exemplo, certamente teria sua participação negada. Os são igualmente importantes para o seu desenvolvimento. autores entendem, assim, que quando há músicos fixos Podemos, ainda, afirmar que a polaridade roda/apre-

154 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

sentação reflete a tensão casa/rua, descrita por Roberto As primeiras rodas não tinham um grupo fixo de ins- DAMATTA (1997) e utilizada por Roberto MOURA (2004) trumentistas. Os músicos se sentavam ao redor de uma para explicar os contextos da Roda e da escola de sam- mesa comum, em que os irmãos ofereciam alguns petis- ba. A roda equivale à casa, em que imperam a informa- cos, uma garrafa de cachaça e cerveja. A audiência era lidade e a pessoalidade, e a rua equivale à apresentação, reduzida, e composta por amigos e por músicos. Numa marcada pela impessoalidade e pelo profissionalismo. A das primeiras Rodas, realizada em 20/10/2006, foi regis- partir desse aforismo, podemos dizer que o Choro ocor- trada a presença de 12 instrumentistas, do total de 30 re, na maior parte das vezes, não na casa, nem na rua, pessoas que estavam no local. Ao longo de um ano, as mas na calçada, ou no alpendre, com o portão aberto Rodas aconteceram sem um regional fixo, porém com a para quem quiser entrar. presença constante de 10 a 15 instrumentistas.

3- Estudo de caso: análise de uma Roda de A audiência, contudo, foi aumentando a cada semana Choro em Brasília – DF e, atualmente, varia entre 100 e 200 pessoas. O som de Em Brasília, Rodas de Choro ocorrem nos quintais das todos os instrumentos é, por necessidade, amplificado, belas casas dos Lagos Norte e Sul, nos apertados bares sendo que há microfones para instrumentos de sopro e e restaurantes do Plano Piloto, nas salas dos generosos cabos para os de corda. Hoje existe, também, um grupo apartamentos da Asa Sul e Asa Norte ou em bares e res- fixo de músicos contratados, que tem o compromisso da taurantes que abrem espaço para música ao vivo. Este presença em todas as Rodas, e cuja função é garantir que artigo realizou um estudo etnográfico sobre as rodas de a música aconteça, independentemente da presença ou choro realizadas em uma Lanchonete sempre às sextas- da ausência de outros instrumentistas. feiras. Essas rodas merecem destaque pela presença de muitos e importante músicos da cidade, bem como pela Muito embora sempre exista uma grande quantidade regularidade com que ocorrem desde 2004. de músicos na Roda, que por vezes chega a 20 ou 30, certas regras definem a composição do grupo que toca A Lanchonete Tartaruga Lanches localiza-se no Plano em cada momento. Sempre há somente um pandeiro, Piloto de Brasília, área nobre, de classe-média e classe- um violão de sete cordas e um cavaquinho fazendo o média alta. A Roda da Tartaruga reflete as características centro (harmonia e ritmo); outro violão pode auxiliar do ambiente do Choro na cidade. Entre os músicos que na harmonia e outro cavaquinho pode entrar para fazer frequentam a Roda, existe enorme diversidade de origens o solo. Quanto aos solistas, vários podem tocar a mes- familiares (cariocas, nordestinos, mineiros, sulistas, goia- ma música, porém sempre um de cada vez, dividindo nos, paulistas), de classes econômicas e níveis de renda, entre si as partes da música. As observações das Rodas de escolaridade e de formação musical. Há, também, pre- documentaram que já se apresentaram como solistas: dominância de jovens, entre 20 e 35 anos, embora a Roda clarineta, flauta, cavaco, bandolim, trombone, saxofone, seja constantemente visitada pelos chorões das velhas violino, gaita, trompa, acordeom e viola caipira. gerações. Dentre os ouvintes, predominam funcionários públicos, profissionais liberais e estudantes universitá- O objetivo da Roda de Choro é a possibilidade de os rios, ocupações típicas da classe média. A composição da músicos tocarem uns com os outros, sem ensaio ou audiência decorre, sem dúvida, do fato de a lanchonete pré-determinações de repertórios e arranjos. Por isso, a estar localizada em bairro nobre da cidade. Roda de Choro não dá espaço para grupos e regionais de Choro realizarem apresentações ensaiadas. Em Junho de As Rodas da Tartaruga Lanches tiveram início em meados 2007, a Roda recebeu a visita de um regional, residente de 2006, assim que a lanchonete/bar, de propriedade de nos Estados Unidos, que iria se apresentar no Clube do dois irmãos músicos e chorões, foi inaugurada no final Choro de Brasília. Eles chegaram, assumiram seus ins- da Asa Norte. Antes disso, funcionava em um pequeno trumentos, e começaram a tocar o repertório próprio do trailler de Kombi, sem motor, estacionado no Campus grupo. Um leve mal-estar pairou entre os demais mú- da Universidade de Brasília, ao lado do Departamento sicos, que rapidamente foram substituindo os forastei- de Música. Seus donos, Paulo e Rogério, desde a ado- ros, para que se misturassem com os instrumentistas da lescência estavam envolvidos com música, e participa- Roda e tocassem com eles. ram de várias bandas da cena da cidade. Na Tartaruga, iniciaram contato com os estudantes de música, dentre Esse episódio reforça o caráter de encontro da Roda. Sen- os quais alguns jovens chorões. Assim, Rogério come- do um encontro, os músicos se importam menos com a çou a estudar pandeiro e Paulão, bandolim. A partir de audiência do que com os próprios músicos. Em entrevista, 2004, a Tartaruga Lanches passou a promover modestos um dos músicos frequentadores dessas Rodas afirmou:na encontros, às sextas-feiras a partir das 18h00, entre es- roda, eu toco para os músicos, e, no palco, para o público. tudantes de música que gostavam de tocar Choro. As Outro objetivo da Roda de Choro é o aprendizado do gê- reuniões eram pequenas, com menos de 30 pessoas. Em nero, o conhecimento do repertório e a tomada de fa- 2006, os irmãos transferiram a Tartaruga Lanches para miliaridade com sua linguagem. A Roda é considerada a um local maior, no final da Asa Norte, e continuaram a escola por excelência do bom chorão, conforme indica o promover encontros musicais nas sextas-feiras à tarde. relato do violonista de sete cordas LP (Ex.2):

155 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

porque um bom número dos músicos participantes dela é LP: Geralmente quando a gente fala de choro, a gente fala de regional de choro, então fala de grupo, fala de pessoas. considerado como os “bons” de Brasília. Também contri- Ele pode ser um solista, tocar os temas, tocar sozinho, mas o bui para isso o hábito que os músicos têm de cobrar boas esquema da roda de choro é único. É diferente tocar sozinho atuações. Não são poupados comentários e brincadeiras; e tocar em grupo, acompanhado pelo pandeiro, pelo 7 cor- se um participante está a comprometer por demais a exe- das. É uma outra pressão, um outro entendimento. cução da música, é solicitado que algum outro músico assuma seu instrumento. Até mesmo músicos frequentes Ex.2: Relato de violonista acerca da importância da Roda são alvo de críticas que chegam a ser severas a da Roda de Choro. ponto de criar desentendimentos pessoais (Ex.4).

Mesmo reconhecendo o papel do aprendizado formal, HN, O cavaquinista, enquanto solava um baião rápido, olhava violonista de 7 cordas, atribui à Roda importância funda- para o pandeirista e tentava corrigir um erro que ele estava mental na formação do músico (Ex.3): cometendo naquele pedaço da música. Tanto o cavaquini- sta quanto o pandeirista são músicos habituais da Tar- taruga Lanches. Depois, chamou novamente a atenção do HN: Meu aprendizado musical eu devo muito mais às rodas pandeirista, dizendo “está caindo, está caindo”, referindo-se do que ao ensino formal e universitário. O conhecimento ao fato de o pandeirista estar atrasando um pouco o anda- acadêmico te orienta, mas pra você ser músico mesmo, aí mento da música. Após um breque, o pandeirista teve di- tem que tocar. Não deve ficar restrito à noite, tocar em ficuldades em voltar a tocar no tempo certo. O cavaquinista, boteco, isso não, porque aí o cara joga fora a vida dele então, fazia caras e bocas, dizia “não, não!”, e expressava toda. No boteco ninguém está ouvindo você tocar. Tem impaciência e descontentamento; demais participantes da que se gabaritar para ser um grande músico, sacou? Fazer Roda estavam levemente apreensivos. Alguns riam dos er- grandes trabalhos, isso é indispensável. A roda de choro, o ros do colega, outros aguardavam o desfecho da situação. boteco, ninguém está te ouvindo tocar, mas mesmo assim Quando a música terminou, iniciou-se o seguinte diálogo: você tem que tocar neles, acompanhar cantores e tudo o mais. Essa é a maior escola, sem desmerecer a Universi- Cavaquinista (dirigindo-se ao pandeirista): mas foi ruim dade, claro, porque as coisas se complementam. A Univer- demais, hein? Caiu muito [ou seja, o andamento ficou mais sidade te dá só um polimento. lento], caiu demais. Assim não dá. Pandeirista: mas também a música é rápida demais. Ex.3: Relato de violonista acerca da importância da Roda de Choro para o aprendizado do gênero. Cavaquinista: Pois é. Vou te dar um conselho. Volta para a Escola de Choro [Raphael Rabello]. Volta para lá, você con- segue até uma bolsa. Volta para lá para aprender a tocar. Observamos, pelo relato acima, que o chorão em questão Pandeirista (levantando-se e deixando o pandeiro sobre a mesa): Alguém vem tocar no meu lugar aqui, porque não tem conhecimento de diversos contextos em que o Choro tenho capacidade para tocar nessa Roda. acontece. Para ele, tocar na Roda de Choro é indispen- Nisso, alguns integrantes da Roda tentaram minimizar o mal- sável para o aprendizado do gênero, mas é igualmente estar, com frases do tipo: o que é isso, também não é assim, importante tocar em apresentações, gravações e em ou- calma, não liga não. tros contextos, bem como tocar outros gêneros além do Em vão, pois o pandeirista, visivelmente magoado, aban- Choro. Isso reforça a ideia de que a polaridade Roda de donou a Roda. Choro/apresentação é algo sempre presente na realidade desses músicos, pois faz parte de sua formação a perfor- Ex.4: Descrição de episódio ilustrando o modo como os mance em ambos os contextos. músicos cobram boas performances no contexto da Roda de Choro. Na Roda, há uma regra clara: quem quiser tocar, pode to- car, desde que seja na roda e que tenha capacidade para tal. Certa vez, na Tartaruga Lanches, um desconhecido De fato, o que se observa na Roda é que, embora sempre solicitou uma participação; como sua performance não se afirme que ela é aberta, tal abertura não é absoluta- foi condizente com o nível musical da Roda, foi sutilmen- mente irrestrita. As limitações se impõem, principalmen- te expulso, com frases incentivadoras, do tipo: “ô amigo, te, em função de performances não satisfatórias. O caso tente estudar mais um pouco”. descrito acima mostra a exclusão de um músico conside- rado de casa - cuja aceitação comumente não é posta em Diz-se que a Roda é aberta, ou seja, em princípio, nela é questão - em função de sua performance ter sido consi- permitida a participação de qualquer músico. A depender derada ruim naquele momento. do nível técnico e de conhecimento do Choro daqueles Em geral, a Roda fica sob o comando de um músico, defi- que a compõem, existe um grau de cobrança de desem- nido tacitamente entre todos; o critério para tal pode ser penho que pode excluir um grande número de músicos. A experiência, nível técnico ou de conhecimento musical. Roda da Tartaruga tem marcadamente essa característica. Se o “comandante” deixa seu posto, automaticamente o Muitos instrumentistas iniciantes relatam que não têm comando se transfere para outro. No Tartaruga, há a pre- coragem de tocar, acreditando não possuir nível suficien- sença constante de um cavaquinista cujo virtuosismo é te para participar. Essa impressão é causada, em parte, notável, embora seja muito jovem. Em geral, a Roda fica

156 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

sob seu comando. Algumas vezes, músicos mais velhos e to, o regional pode testá-lo também, fazendo variações experientes aparecem para participar; nesses momentos, rítmicas inesperadas – no caso do pandeiro e do cavaco -, é evidente a reverência com que são tratados por todos, e ou frases contrapontísticas do violão que tirem a concen- o comando da Roda lhes é gentilmente cedido. tração do solista, ou mesmo acelerando o andamento da música (embora nem sempre isso seja considerado leal). O Todavia, há casos em que instrumentistas virtuosos apa- solista “de casa” tem a incumbência também de “manter recem para tocar, músicos que vêm se apresentar no Clube seu reinado”. Por exemplo, quando um deles propõe uma do Choro ou músicos que não frequentam assiduamente música conhecida por ambos, o duelo então se acirra, por a Roda da Tartaruga. Nesses momentos, o comando da meio de improvisos e aumento dos andamentos, até que Roda fica em xeque (Ex.5). Observa-se, então, que se ini- fique claro qual deles se saiu melhor, ou até que a música ciam duelos entre solistas e, do mesmo modo, os acom- termine (Ex.7). Nem sempre sai um vencedor do duelo, panhadores são postos à prova. Quando isso acontece, os mas é certo que todos ganham nessas ocasiões, principal- músicos menos experientes ficam de fora, e são chama- mente a audiência de músicos e frequentadores: dos para compor a Roda somente aqueles considerados os melhores. Em entrevista, o cavaquinista MM afirmou: DD: Se eles [os músicos de casa] sacarem que o cara é carne nova no pedaço e vai dar uma canja, dependendo do cara, MM: [para tocar choro] tem que estar naquele convívio eles botam quente. Se eles sacarem que o cara toca bem e da Roda. Tem que ter aquele esquema do desafio. Eu acho está tocando tudo o que eles estão fazendo, uma hora eles que Roda de Choro é isso, o desafio, testar o cara para ver vão jogar uma música para ferrar o cara. Ou às vezes eles se ele vai dar conta. Se ele se ferrar, a galera vai ficar feliz, podem se ferrar. Eles acham que o cara não sabe, mas o cara porque você conseguiu derrubar o cara. Roda de Choro sabe. Como já aconteceu no Rio com E. Foram tocar uma tem muito isso música, acharam que determinada pessoa não sabia a músi- . ca, mas se ferraram, porque o cara sabia e tocou a música. Ex.5: Relato acerca da existência de duelos entre Depois E. jogou contra, e puxou uma música que eles não instrumentistas na Roda de Choro. souberam. Se ferraram. [Em outra ocasião], E. foi para São Paulo, e os paulistas tocavam altas músicas para sacanear, músicas que ninguém conhecia, e ele tocou todas. Então, Outro cavaquinista fez observações semelhantes (Ex.6): ele puxou uma música, aquela ‘pra esquecer’, do Waldir, aí os caras não foram. E. deixou o cavaquinho na mesa, saiu da roda e falou: vocês não tocam nada. Então, você pode se LB: Roda é isso, chega o solista e diz: vou tocar tal choro, surpreender, querer dar uma de bonzão e se dar mal. você tem que se virar pra acompanhar (...). O tom é tal, vamos atrás. Poyares fazia isso com a gente direto, às vezes Ex.7: Relato de violonista narrando um episódio em que inventava uma música e a gente tinha que acompanhar, um músico convidado foi testado pelos demais tinha que correr atrás. Às vezes, o cavaquinista dá uma em uma Roda de Choro. palhetada invertida, tira a acentuação do tempo, para ver se o solista também não se perde. Igual quando a gente vai tocar com o Evandro, ele enrola a galera. Pode estar Outro instrumentista também observou e comentou so- tocando o choro mais simples do mundo, o Carinhoso, que bre as mesmas situações (Ex.8): ele desloca a melodia, atrasa, adianta. Se o cara não estiver atento, cai na hora. É coisa da roda. Ex.6: Relato que demonstra a forma como os músicos HN: Assim, a roda de choro sempre tem o espírito de testar o outro. No Rio [de Janeiro], acho que se acentua mais esse testam uns aos outros na Roda de Choro. espírito, porque tem muita concorrência lá. Também tem esse lance, que está estampado na cara do carioca, de que ele é ma- landro. Então ele chega já botando uma música que ele sabe O duelo musical entre instrumentistas é, então, um dos que você não vai tocar, de uma maneira até meio perversa. Aqui elementos importantes da Roda de Choro. Consiste basi- em Brasília também tem isso, lógico. Mas tem um lance do de- camente na comparação entre as performances, em que safio saudável. Lá eles derrubam para ver teu oco, mas isso é o são julgados: técnica, conhecimento e criatividade para espírito do choro. Acho que ele foi formado assim, isso não é interpretar e improvisar. A responsabilidade daquele que uma coisa ruim. Acho que quando isso acontece, de você não não quer perder o comando da Roda é grande, pois ele saber tocar, isso te motiva a estudar mais, a conhecer mais rep- ertório. Tem que estar preparado para isso. não pode errar; por outro lado, tem a vantagem de “estar em casa”, ou seja, conhecer os acompanhadores e o am- Ex.8: Relato de violonista confirmando e reafirmando a biente. O forasteiro, por sua vez, pode testar o regional importância dos duelos e testes na Roda de Choro. como um todo: por exemplo, é considerado humilhante se ocorrer de ele propor uma música que os acompanhado- res não conheçam e não sejam capazes de executar. Por Embora seja inegável sua importância, nem sempre o outro lado, ele perderá a oportunidade de permanecer to- duelo está presente. Muitas Rodas acontecem em clima cando se cometer um deslize muito grave, como esquecer constante de amizade, compadrio e companheirismo, sem a música que ele mesmo propôs ou cometer um erro ru- por isso, serem consideradas piores. Outros fatores são dimentar (principalmente se perder o ritmo). Nesse pon- considerados importantes no contexto da Roda (Ex.9).

157 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

O termo brincadeira, na Roda de Choro, não é antagôni- DD: Eu acho [importante para a Roda] a descontração, en- contrar os amigos e aprender com o outro. Tem gente que co à seriedade. A música como brincadeira de roda pode, não traz coisas novas, tem um repertório de 15 músicas, mas porém, indicar uma resistência à institucionalização da tem muita gente que traz coisas novas, tem muita canja e Roda, que a converteria em espetáculo. Se ocorrer essa isso é legal. Tomar umas, descontrair. conversão, obrigatoriamente a Roda perderá algumas de suas características informais, dentre elas, a brincadeira e Ex.9: Relato de violonista enfatizando o caráter o jogo. No espetáculo, não há lugar para a imprevisibili- doméstico da Roda de Choro. dade do jogo, tampouco para a vulnerabilidade do jogador que pode cair ou perder a qualquer momento; nele, tudo Do mesmo modo como ocorrem nas rodas de samba deve ser ensaiado previamente. Então, o ambiente de festa (MOURA, 2004), as relações pessoais, de afeto e de ami- e encontro cederia lugar ao formal e profissional; nesse zade, importantes para a vida dos músicos mesmo fora do ponto, o evento não mais poderia ser considerado uma âmbito estritamente pessoal, tem relação com a Roda de Roda. Esse é, sem duvida, o risco de as Rodas de Choro Choro, pois ela é local de formação de vínculos (Ex.10), que assimilam elementos de apresentações formais (como conforme evidenciado no relato de AS: amplificação de som e pagamento de cachê) sempre cor- rerem. Caso as características da apresentação passem a AS: Se você toca numa roda de choro, já está fazendo ami- ter primazia sobre aquelas da Roda, ela pode, aos poucos, zade automaticamente. Claro que essa amizade, às vezes, se ir deixando de funcionar como tal, porque a Roda é resis- restringe mais ao campo profissional, mas não deixa de ser tente à institucionalização desde a sua essência. uma amizade. Também tem muitos músicos antigos aqui em Brasília, e a gente já toca há muito tempo. Então, a gente tem uma relação de amizade. Embora marcada pela informalidade e pela brincadeira, há aspectos da Roda tratados com verdadeira austeri- Ex.10: Relato sobre a Roda de Choro como local propício dade. Um deles é o repertório. Ele deve ser composto para formação de laços de amizade. majoritariamente por Choros, embora possam ser in- cluídos, com muito critério, sambas, baiões e outros ritmos. O repertório das Rodas da Tartaruga varia, evi- A existência, no mesmo ambiente da roda, de dois modos dentemente, com os músicos solistas presentes. Não há de relacionamento entre pessoas - desafio/competição nenhuma determinação prévia do que será tocado, mas e compadrio/amizade/afeto/lealdade – aparentemente algumas músicas fazem parte do cânone, e são tocadas contraditórios, revela um outro aspecto interessante da em praticamente todas as Rodas. Autores como Jacob Roda de Choro: seu caráter lúdico. A música como jogo do Bandolim, Pixinguinha, Waldir Azevedo estão sempre ou brincadeira amplia a sensação de informalidade e fes- presentes; e são tocados vários instrumentos. Uma re- ta (Ex.11). O seguinte relato menciona o desafio como gra rígida, em Brasília, consiste em não repetir a mesma brincadeira na roda de choro: música na mesma Roda. Portanto, se um solista chega depois do início da Roda, pergunta aos demais se de- LB: Não tem, na história do samba, grandes cantores. O que terminado choro já foi tocado. Outra regra firme é a importa não é a voz, é a interpretação, deslocando o tempo, proibição do uso de partituras ou outros registros escri- atrasando, adiantando. Isso pra mim é improvisar (...). Toda tos. É extremamente valorizada, por parte dos músicos, a roda, na cultura brasileira, tem esse negócio do desafio, a ampliação dos repertórios dos solistas, inclusive com do duelo. Na capoeira os caras são amigos, mas tão due- o acréscimo de composições contemporâneas. Também lando; na roda de partido alto, também. Era tudo improviso, se apreciam as inovações interpretativas trazidas pelos só tinha o refrão. Na roda de choro também tem esse lado; por ser roda, tem desafio. solistas. A Roda cobra dos músicos a variação nas inter- pretações, e critica, com sorrisos sarcásticos e olhares Ex.11: Relato de cavaquinista afirmando o caráter de de lado, as reproduções sempre iguais. Desse modo, a jogo e brincadeira da Roda de Choro. Roda torna-se um fator de preservação, divulgação e renovação da tradição do Choro.

PELLEGRINI (2005) também faz referência à brincadeira Normalmente, a Roda se inicia por volta das 18h30, com nessa modalidade musical: choros lentos e cadenciados, quando a audiência é ain- da pequena. A partir das 19h30, com público maior, são Pode-se testemunhar esse clima de brincadeira ainda hoje em tocados choros mais rápidos, e parte da audiência já se qualquer roda de choro em que, mesmo se tocando melodias co- nhecidas, vê-se o solista alterando as melodias de tal maneira que aglomera ao redor da mesa dos músicos, dançando ou sim- um acompanhamento pouco treinado, muitas vezes, acaba por se plesmente observando as performances de choros rápidos perder. (Pellegrini, 2005, p.25) e alguns lentos, com clara preferência dos músicos pelos mais rápidos. É comum aos solistas a realização de sequên- Imprimir a qualidade de jogo à música, contudo, não reduz cias de sambas, bossa-nova ou baiões, que são do agrado o respeito com que os músicos e audiência consideram- do público. A partir das 20h00, o clima de informalidade na. Para tocar na Roda, é necessário conhecer seus códi- aumenta, as pessoas falam mais alto e reagem aos aconte- gos e ter capacidade de tocar bem o instrumento; ou seja, cimentos musicais da Roda. Um improviso impressionante é preciso levar a sério a música e o ambiente da Roda. é reconhecido por gritos e palmas tanto dos demais mú-

158 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

sicos quanto da audiência. Quanto maior for o número de Os seguintes relatos expressam a opinião de músicos que pessoas, quanto mais sua atenção estiver voltada para a defendem maior parcimônia nos improvisos (Ex.12): música, quanto mais elas gritarem, maior será o incentivo para os músicos, e a Roda se torna mais vigorosa e cres- LB: O respeito na roda é todo mundo saber o que fazer e ce em volume de som e no andamento das músicas. Para quando fazer. Chego lá na roda da Tartaruga, e está todo a última música da Roda, os músicos guardam os choros mundo estudando improviso. Tocou a música, aí repete a “apoteóticos”; dentre os mais comuns tocados estão Brasi- segunda ou a terceira parte vinte vezes. Só o cara que está leirinho (Waldir Azevedo), Santa Morena (Jacob do Bando- improvisando é que está gostando. Quem é músico está en- lim) e Aquarela na Quixaba (Hamilton de Holanda). tendendo tudo. Mas imagina quem não é? O público não entende nada. Fica aquela coisa massante, igual ao Jazz. O tema dura 30 segundos, mas a música dura duas horas. Tudo Em todas as músicas do repertório, o improviso pode tem um limite. acontecer; é comum, contudo, que muitas músicas se- jam tocadas sem improvisos, às vezes com pequenas va- DD: Até nas repetições das músicas, a galera esqueceu da riações na linha melódica, ou sem variações. Existem al- forma das músicas (...). Faz três vezes a primeira, a segunda gumas consideradas mais “propícias” ao improviso: por faz uma vez, aí já muda pra terceira, faz três vezes a terceira. Aí confunde tudo, porque perde a forma. exemplo, podemos citar Cochichando, de Pixinguinha, e Noites Cariocas, de Jacob do Bandolim, como Choros em LB: Isso é primordial. A forma é primordial. Porque se é uma que o improviso é sempre presente. Quando são tocadas, música de improviso, você não sabe onde ela vai acabar e normalmente as partes são repetidas muitas vezes (al- o que vai acontecer. Então, pelo menos a forma tem que terando a forma da música) para que todos os músicos estar definida. participantes improvisem. Praticamente todos os músi- DD: Isso está acontecendo em Brasília, não é só na Tartaru- cos entrevistados afirmaram considerar o improviso im- ga, a gente tem a referência da Tartaruga, porque a maioria prescindível no Choro e na Roda. No improviso, o músico dos músicos de Choro está se encontrando lá, e ela se tornou se despe das preparações prévias à performance, e mos- a maior Roda de Choro aqui de Brasília. Os solistas, e até tra o seu real domínio e conhecimento da linguagem do mesmo os violonistas, ficam toda hora pedindo para improv- Choro. Além disso, traz a possibilidade de se expressar isar, toda hora falam tal parte para mim, para mim. Aí então individual e pessoalmente. Por isso, na Roda de Choro, acaba afetando a forma, porque é um tal de pedir para mim, contexto em que vigora o primado da pessoalidade, o para mim, que a gente não sabe se faz uma vez a [parte] A, outra vez a B. Porque as vezes você está na A, então alguém improviso é considerado fundamental. fala: três, três [solicitando a parte C, às vezes chamada de terceira ou parte três], eu pulo do A para o C, sem fazer a Há, porém, falta de consenso entre os chorões acerca da forma da música toda. Aí fica sem sentido a coisa, e a música quantidade de solos improvisados que uma performance mesmo, que era pra ser apresentada, não acontece. pode conter, bem como acerca do modo como são reali- zados. Há aqueles críticos dos músicos que exageram nos LB: Tem que apresentar o tema, e improvisar depois. improvisos; normalmente, é cobrada a apresentação do Ex.12: Relatos sobre improviso no Choro. tema. Todavia, alguns músicos consideram desnecessária a apresentação do tema em uma Roda de Choro (princi- palmente nas músicas muito conhecidas), e não se inco- É fato que, embora o improviso seja sempre aceito e modam de executar uma música inteira somente impro- considerado indispensável, há pontos de conflito rela- visando. Essas divergências resultam, ocasionalmente, em cionados a ele. Os músicos mais conservadores enten- discussões na Roda, por vezes no meio da música, como dem que o tema de uma música não pode desaparecer ilustra o episódio abaixo: por longos períodos em sua execução, como acontece no Jazz; também há polêmicas quanto à perda da lin- A música era Cochichando, havia três solistas (cavaqui- guagem do Choro, uma vez que muitos músicos, por nho, flauta e gaita), mais o violão de 7 cordas, o violão sua formação eclética, utilizam técnicas do Jazz para de 6, o cavaquinho-centro e o pandeiro. O cavaquinho improvisar. Por outro lado, outros defendem o aconte- puxou a primeira parte incluindo variações e improvisos; cimento de improvisos, principalmente nas Rodas de a flauta a repetiu sem improvisar. Na segunda parte, o Choro, longos e que tomam boa parte da execução da mesmo se sucedeu. A partir daí, o cavaquinista e o gaitis- música. Em virtude dessas divergências, o que se ob- ta intercalavam improvisos, pedindo as partes da música serva nas rodas é uma grande diversidade de modos aleatoreamente, sem respeitar a forma. A terceira parte de executar os choros, com ou sem improvisos; esses já havia sido repetida várias vezes (inclusive com impro- últimos podendo ser longos ou curtos, ser próximos ou visos dos violões), sem que o tema fosse apresentado. O distantes da melodia da música. cavaquinista-centro pediu, então, que algum dos solistas apresentasse o tema. Quando a música terminou, alguns Com efeito, controvérsias em relação ao improviso no Cho- músicos não esconderam a insatisfação, reclamando mui- ro não são recentes. CAZES (2005) afirma que a improvi- to do excesso de improvisos e do desrespeito à forma do sação, do surgimento do Choro até as primeiras décadas choro. Seguiu-se uma pequena discussão, até a próxima do século XX, era inexistente nas gravações, o que levou música fosse iniciada, e o entrevero esquecido. Hermano Vianna, no prefácio do livro Choro: do quintal

159 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

ao municipal (CAZES, 2005, p.8) a concluir que isso torna de. Também é nítido o caráter doméstico e familiar da muito provável a afirmação de que não se improvisava na relação entre músicos e boa parte da audiência. O fato roda de choro. KORMAN (2004), por outro lado, afirma que de os músicos tocarem para os músicos e da Roda cobrar o improviso esteve presente no Choro desde suas origens, que toquem juntos, sem predeterminações de arranjos ou ainda no século XIX. Segundo esse autor, no início do sécu- interpretações, reforça o caráter de construção coletiva lo XX, o Choro incorporou influências do jazz norte-ameri- da música. A tradição se renova, então, pela constante cano, do ragtime, dos fox-trots. Nas décadas de quarenta reformulação interpretativa das composições. e cinquenta, foi influenciado pelo bebop, cool jazz, swing, ballroom e hard bop.Em todos os casos, o uso de técnicas É preciso enfatizar, contudo, que a Roda da Tartaruga e de linguagens oriundas desses gêneros estrangeiros ge- Lanches incorpora alguns elementos típicos de apre- rava polêmicas e discussões entre os músicos brasileiros. A sentações, sendo os mais importantes a contratação de escassez de registros torna difícil saber se havia ou não im- um grupo fixo de instrumentistas, mediante pagamento provisos no Choro, bem como conhecer com precisão como de cachê, amplificação de som e presença de pessoas eram feitos. Mas o próprio CAZES (2005) afirma que as externas ao círculo de amizades e relações dos músi- gravações do início do século XX da flauta de Pixinguinha cos. Além disso, em determinadas situações, alguns apresentam o brilho especialíssimo de suas interpretações instrumentistas não têm acesso a participar da Roda, e de seus improvisos. É possível que improvisos estivessem principalmente em função do nível de habilidade. Esses ausentes das gravações, por questões de ordem técnica e elementos, porém, não fazem com que os músicos, nem financeira, mas isso não significa que, em outros contex- a audiência, deixem de considerar o evento como uma tos, notadamente com alto grau de informalidade como as autêntica Roda de Choro. Rodas de Choro, eles não ocorressem. Também são presentes nessa Roda formas de duelo mu- KORMAN (2004) afirma que na nova fase que o Choro sical, ocorridos quando um instrumentista desafia outros, vive, seus praticantes tem familiaridade com a lingua- transformando a música em uma espécie de jogo. Esse gem do jazz americano, e isso vem alterando o voca- modo de executar a música remete a outras manifesta- bulário de improvisação do Choro. O autor identifica ções de roda típicas da cultura afrobrasileira, baseadas algumas mudanças no modo de tocar o Choro, dentre em duelos e desafios. Já citados nesse trabalho como tais as quais as seguintes estão presentes nas Rodas da Tar- são a capoeira, com duelos corpóreos e improvisados, e taruga Lanches: a forma da música é alterada, possibi- o partido-alto, que consiste em duelos musico-verbais litando a improvisação sobre uma sequência harmônica também improvisados. É interessante ressaltar que os cíclica; aspectos da performance jazzistica estão sendo termos empregados pelos chorões, ao se referirem aos apropriados e usados livremente; repertório, fragmentos duelos, se assemelham àqueles do universo da capoeira melódicos e fraseados da tradição brasileira têm sido (cair, derrubar, levantar etc); em um dos relatos, inclusive, incluídos no vocabulário comum do Choro; praticantes um cavaquinista chegou a comparar o duelo da Roda de estrangeiros estão cada vez mais familiarizados com Choro com o jogo da capoeira. o gênero. Observamos, contudo, que a inserção dessas mudanças não se dá de forma harmoniosa, pois gera 4- Conclusão desavenças entre seus praticantes. Os relatos dos músi- Os relatos dos chorões apontam para a importância da cos também permitem concluir que, em geral, têm ple- existência de Rodas para manutenção e recriação da tra- na consciência desse processo de mudança pelo qual o dição musical do Choro. Podemos, então, afirmar que, do Choro está passando, e não se furtam a tomar posição mesmo modo como ocorre com o Samba (MOURA, 2004), perante elas, seja concordando ou discordando. A exis- a Roda é a matriz do Choro. E as características da Roda tência dessas controvérsias, bem como a possibilidade nos mostram que, para esse gênero musical, uma série de de introduzir inovações no modo de tocar o Choro, in- fatores extra-musicais interferem de modo significativo dicam que a Roda de Choro da Tartaruga é um contexto nas performances dos músicos, no desenvolvimento e na em que é possível a renovação da tradição do Choro. criação da música. Esse modo de conceber a arte é coe- rente com a perspectiva de Gerard Béhague, que afirma De fato, Roberto MOURA (2004), quando afirma que a que o sentido da música não pode ser compreendido a roda é a matriz do samba, está a dizer que é precisamente partir de uma única fonte (BÉHAGUE, 1984, p.8). As im- nesse contexto em que se processa o desenvolvimento do plicações dessa afirmação são inúmeras, e seria impossí- gênero; ou seja, é na Roda que as inovações são testadas, vel explorá-las todas aqui. Conseguir apreender o sentido podendo ser aceitas e incorporadas ou não ao gênero. O do Choro como gênero musical talvez seja o maior desafio mesmo é válido para o Choro. As Rodas da Tartaruga são da musicologia que pretende estudá-lo, e esse trabalho locais em que esses testes podem acontecer, e as polê- mostra que a Roda de Choro tem muito a nos revelar so- micas e controvérsias acerca das inovações ao gênero bre isso. Nessa modalidade os elementos não musicais podem ser discutidas e amadurecidas. As seguintes ca- encontram-se, de alguma maneira, dentro da música, racterísticas da Roda de Samba apresentadas por MOURA como partes importantes em sua execução, interpretação (2004) também estão presentes na Tartaruga Lanches: e criação. A Roda de Choro é um local em que a música compadrio, amizade, lealdade, hierarquia e informalida- é tão importante quanto a existência pessoal de músicos

160 LARA FILHO, I. G.; SILVA, G. T. da; FREIRE, R. D. Análise do contexto da Roda de Choro... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.148-161.

e ouvintes, porque não se separa dos demais aspectos da ro, como nos ensinam musicólogos como Jonh Blacking e vida, e funciona como ponte comunicativa, que permite o Gérard Béhague. Ela faz parte da música. Não existe siste- encontro e a relação entre pessoas. ma musical em que a música esteja separada dos aspectos não-musicais. A música é coisa dos homens, das coletivida- A imbricação entre música e contexto é tão marcante no des humanas organizadas por suas culturas. A ordem sono- Choro que não é possível falar de Choro sem se referir ao ra é reflexo da ordem vigente na sociedade. Então, a música seu contexto. Essa inseparabilidade não é exclusiva do Cho- está enraizada na realidade, e é daí que emana seu sentido.

Referências BÉHAGUE, Gerard. Performance Practice: Ethnomusicological Perspectives. Westport/London: Greenwood Press, 1984. BLACKING, John. Music, Culture and Experience. Chicago: The University of Chicago Press, 1995. CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 11ª edição, São Paulo: Global Editora, 2002. 768 pp. CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao municipal. 3ª Edição, Rio de Janeiro: Ed. 34, 2005, 224 pp. DAMATTA, Roberto. A casa e a rua. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1997. KERMAN, Joseph. O movimento da performance histórica. In: Musicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p.255-306. KORMAN, Clifford. A Importância da Improvisação na História do Choro. In: Anais do V Congresso Latino Americano da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular, Rio de Janeiro, 2004. [disponível em http://www.hist. puc.cl/iaspm/rio/Anais2004%20(PDF)/CliffKorman.pdf]. LIVINGSTON-ISENHOUR, Tamara E.; GARCIA, Thomas G. C. Choro. A Social History of a Brazilian Popular Music. India- napolis: Indiana University Press, 2005, 254 pp. MOURA, Roberto M. No princípio, era a Roda: um estudo sobre samba, partido alto e outros pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. 318 pp. PELLEGRINI, Remo T. Análise dos Acompanhamentos de Dino 7 Cordas em Samba e Choro. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, 2005, 250 pp. PINTO, Alexandre G. Choro: Reminiscências dos Chorões Antigos. Rio de Janeiro: Funarte, 1978. QURESHI, Regula B.. Musical Sound e Contextual Input: A Perfomance Model for Musical Analysis. Ethnomusicology, 31:1, 56-86, 1987 REIS, Letícia V.S. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil. São Paulo: Publisher, 1997. SCHUTZ, Alfred. Making Music Together – A Study in Social Relationship.In: Dolgin, J.L. Kemnitzer, D.S & Schneider, D.M. (eds), Symbolic Anthropology – A Reader in the Study of Symbols and Meanings. New York: Columbia University Press, 106-119, 1977. VIANNA, H. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1995. 193 pp. VIEIRA, Luiz Renato e ASSUNÇÃO, Matthias Rohrig. Mitos, Controvérsias e Fatos: Construindo a História da Capoeira. In: Revista de Estudos Afro-Asiáticos n° 34. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 1998. WEBER, Max. A Objetividade do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política. In: Metodologia das Ciências So- ciais. 2ª ed., São Paulo: Editora Cortez, 1993.

Ivaldo Gadelha de Lara Filho iniciou seus estudos na Escola de Música de Brasília, obteve o bacharelado em clarineta na classe do professor Ricardo Dourado Freire na Universidade de Brasília. Em 2009, concluiu seu mestrado na área de Musicologia no programa de Pós-Graduação Música em Contexto da Universidade de Brasília. Atualmente é técnico de música do SESC-DF. Gabriela Tunes da Silva iniciou a realização de trabalhos acadêmicos na área de biologia, na Universidade de Brasília. Seguiu nas ciências biológicas até terminar o Mestrado em Ecologia, pela mesma universidade, em 1999. Ingressou no Doutorado em Desenvolvimento Sustentável, ainda na Universidade de Brasília, em 2001, quando teve contato com as ciências humanas e sociais. Iniciou, então, a prática amadora de flauta transversal, aprendendo em aulas particulares, em rodas de choro e na convivência com a comunidade de músicos chorões de Brasília. Após o término do Doutorado, aprofundou leituras e estudos sobre história do choro e antropologia da performance musical. Atualmente, é servidora concursada da Câmara Legislativa do Distrito Federal, onde desempenha a função de consultora legislativa. Ricardo Dourado Freire cursou o Bacharelado em Clarineta na Universidade de Brasilía com o professor Luiz Gonzaga Carneiro. Continuou seus estudos na Michigan State University recebendo os diplomas de Mestrado em Música (MM), em 1994, e Doutorado em Artes Musicais (DMA), em 2000, sob a orientação da Dra. Elsa Ludewig-Verdehr. Sua tese intitulada a “Historia e Desenvolvimento da Clarineta no Brasil” serve como principal referência para os interessados na trajetória dos clarinetistas brasileiros. Realiza pesquisas nas áreas de Performance, Educação Musical, Psicologia Cognitiva vincu- lado ao aprendizado instrumental e Música Popular.

161 VALENTE, P. V. Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.162-169.

Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho no choro brasileiro

Paula Veneziano Valente (USP, São Paulo, SP). [email protected]

Sumário: Análise sobre os procedimentos de improvisação utilizados por Pixinguinha em 1 x 0 (1947) e por K-Ximbinho em Velhos Companheiros (1981). Uma comparação das diferenças e semelhanças entre suas abordagens mostra uma preferência pelos modelos estilísticos vertical ou horizontal. Palavras-chave: K-Ximbinho; Pixinguinha; choro; música popular brasileira; improvisação; análise musical.

Horizontal and vertical structures: Pixinguinha and K-Ximbinho’s models of improvisation in the Brazilian Music

Abstract: Analysis of the improvisation procedures of Brazilian instrumentalists Pixinguinha in 1 x 0 (One to zero; 1947) and K-Ximbinho in Velhos Companheiros (Old pals; 1981). A comparison of differences and similarities in their approach- es reveals a preference for horizontal or vertical stylistic models. Keywords: K-Ximbinho; Pixinguinha; Brazilian choro; popular music; improvisation; music analysis.

1 – Introdução O improviso é um procedimento comum a vários estilos nelas podemos perceber aspectos como articulação, dinâ- e épocas, possui grande importância dentro da criação mica, inflexão, variações de timbre e muitos outros efei- musical brasileira, e ainda é pouco considerado pela mu- tos instrumentais. sicologia nacional. Por serem relativamente recentes os estudos nesta área, existem poucos trabalhos referentes Destacamos neste trabalho, dois importantes improvi- a ele. Grande parte do material didático que temos dis- sadores da música popular brasileira: Pixinguinha e K- ponível para o estudo da improvisação se refere à música Ximbinho. Além de improvisadores, eles também foram americana, mais especificamente ao jazz, sendo raros os intérpretes, compositores e arranjadores. No entanto, será livros dedicados à música brasileira. O mercado norte- tema da nossa pesquisa somente o aspecto referente à americano de livros didáticos que se volta para a im- improvisação dentro de suas obras, e por meio de seus provisação é vasto, provavelmente este deva ser um dos exemplos musicais investigaremos os principais caminhos motivos da grande influência da improvisação jazzística e preferências de cada um deles. A escolha dos nomes Pi- dentro da música brasileira. Tendo em vista essa insufi- xinguinha e K-Ximbinho foi motivada pelo fato de acre- ciência de pesquisas e materiais de estudo, aqueles que ditarmos que eles representam dois modelos distintos de queiram se aprimorar na linguagem do choro e na im- abordagem de improvisação. provisação, voltam-se necessariamente aos discos ou aos próprios músicos para construir seu aprendizado. Nesse Pixinguinha nasceu no Rio de Janeiro em 1897, onde sentido, a observação das gravações é determinante, pois viveu toda sua vida, falecendo em 1972. K-Ximbinho,

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 03/02/2010 - Aprovado em: 22/06/2010 162 VALENTE, P. V. Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.162-169.

nasceu em 1917 em Natal/RN, e também passou grande da, que faz parte de uma importante fase de sua carreira, parte da vida no Rio de Janeiro, falecendo em 1981. A quando passou a tocar ao saxofone seus famosos “con- diversidade de suas concepções e de suas influências mu- tracantos”, enquanto a flauta de Benedito executava a sicais é fundamental para a nossa pesquisa, uma vez que melodia. Com a mudança de instrumento para o saxofo- transparecem em seus improvisos, e é por meio deles que ne, os improvisos de Pixinguinha, que antes eram feitos à conseguiremos ilustrar diferentes procedimentos dentro flauta como variações melódicas ou pequenas alterações de suas criações. rítmicas da voz principal, passaram a ter uma função mais subordinada à harmonia, ou seja, de acompanha- Em relação às influências observadas em cada um deles, mento desta voz principal. De K-Ximbinho, escolhemos notamos que para músicos populares, como no caso de uma parte de um choro gravado no disco Saudades de um Pixinguinha e K-Ximbinho, que circulavam por gêneros, clarinete, lançado em 1981. Neste disco, todas as faixas estilos e performances variadas, sobreviver dentro do são de sua autoria, bem como os arranjos e regências, e mercado de trabalho significava se adaptar aos gostos e entendemos que nesta fase seu estilo de improvisação já modas do público e da época. Tanto Pixinguinha quanto se encontrava consolidado e amadurecido. K-Ximbinho sempre se ajustaram ao mercado, e compu- nham além de choros, outros estilos. Essa flexibilidade Nossa principal fonte de estudo para o presente trabalho sempre fez parte da produção dos músicos brasileiros, e se constitui nas gravações, que serão transcritas e poste- a assimilação das novidades estrangeiras muitas vezes se riormente analisadas. Em muitos casos, a transcrição dos combinou às tendências musicais brasileiras. solos não é suficiente para a compreensão ampla da obra, sendo necessário a audição da própria gravação, que nos Pixinguinha foi considerado o primeiro grande improvisa- possibilite ouvir as sonoridades específicas do instrumen- dor no choro e, segundo CABRAL (1978, p.20) “soube reu- tista, suas inflexões, o tipo de interpretação que sugeriu nir uma série de elementos que andavam dispersos nas e em que contexto se deu o improviso. Apesar de não ser primeiras décadas do choro”. K-Ximbinho pode ser consi- o ideal para a análise de improvisos, esta será uma das derado um exemplo da continuidade dessa prática criati- fontes que utilizaremos, juntamente com as gravações. va dentro da música brasileira, mesmo com uma obra não tão numerosa quanto à de Pixinguinha, e também pelo Vale lembrar que o objetivo do pesquisador em música é fato de ser pouco estudado dentro das pesquisas acadê- tentar achar o sentido dentro da obra, que vai além das micas até o presente momento1. simples notações, partituras e o que elas podem revelar, percebendo as várias partes que compõem a estrutura to- Enquanto a obra de Pixinguinha já foi tema estudado, a tal, identificando pontos de reflexão, a fim de encontrar o de K- Ximbinho recebeu pouca atenção. Apesar de ter sido método mais eficiente de análise em cada caso específico. um compositor e instrumentista conceituado dentro da música brasileira, deparamo-nos com dificuldades em en- Acreditamos que a solução para a análise de um improviso contrar materiais sobre ele, tanto escritos quanto sonoros. seja primeiramente sua transcrição a partir de uma grava- A maioria de seus discos foi gravada junto à Orquestra Ta- ção (mesmo sabendo que dificilmente conseguiremos ob- bajara, de Severino Araújo, na qual atuou em grande parte ter uma descrição fiel do momento), e posteriormente, para de sua vida. Além dos discos com a Orquestra, gravou com complementação das análises, examinar as próprias grava- outras formações menores ou também acompanhando ções que transcrevemos a fim de observar fatores como: importantes cantores de sua época. As gravações de K- inflexões de frases, variação timbrística, articulações etc. Ximbinho estão dispersas e segundo nossas pesquisas, seu Em música popular, e mais ainda na música improvisada, o último trabalho pode ser encontrado em CD. performer, ou o músico tem muita liberdade em relação à partitura. Segundo NAPOLITANO (2002), tanto a estrutura Durante a criação de um improviso percebemos dois ca- quanto a performance são igualmente importantes, mas minhos básicos: um que se revela mais preocupado com uma não deve ser reduzida à outra. a harmonia e outro com a melodia. Essas duas linhas co- existem no mesmo discurso, mas notamos a predominân- Nossa sugestão de análise restringe-se à improvisação cia de uma delas em relação à outra, dependendo de cada dentro de um gênero definido, o choro; dentro de um ter- intérprete. Com as análises dos compositores escolhidos ritório específico, que supõe suas delimitações e regras, queremos exemplificar estes caminhos, demonstrando as citaremos Derek BAILEY (1993) que, na introdução de seu diferenças e semelhanças e traçando um modelo predo- livro, Improvisation - its nature and practice in music, ca- minante em cada um deles. racteriza as duas principais formas de improvisação - a idiomática e a não idiomática:

Para esse artigo, analisaremos apenas um trecho de im- Idiomatic improvisation, much the most widely used, is mainly proviso de cada autor: de Pixinguinha, o do choro 1 X 0 concerned with the expression of an idiom – such as jazz, fla- (de 1947); e de K- Ximbinho, Velhos Companheiros (de menco or baroque – and takes its identity and motivation from that idiom. Non idiomatic improvisation has other concerns and 1981). Como referências de repertório para a escolha dos is most usually found in so-called ‘free’ improvisation and, while improvisos selecionamos dois choros. De Pixinguinha, um it can be highly stylised, is not usually tied to representing an choro gravado em 1947, com o flautista Benedito Lacer- idiomatic identity2

163 VALENTE, P. V. Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.162-169.

Nossa pesquisa se refere à improvisação idiomática, ou tical a melodia é indicada pelo acorde, ela é concentrada seja, dentro de um idioma definido. Para auxiliar-nos nas em cada acorde da progressão. análises iremos examinar os conceitos citados pelo autor George Russell em seu livro The Lydian Cromatic Concept O outro modo de navegação por este rio é chamado de of Tonal Organization for Improvisation de improvisação horizontal. Nesta abordagem, a melodia é construída não vertical - que prioriza a harmonia – e horizontal – que com paradas e definições sobre cada acorde, e sim base- enfatiza a melodia. ada em uma escala relacionada a mais de um acorde, ou seja, ao centro tonal daquela progressão. O músico não Nossas análises têm como objetivo principal a caracte- precisa necessariamente definir cada acorde identifican- rização de dois caminhos que são tomados no decorrer do-os um a um, mas utiliza escalas comuns a mais de um das improvisações e a sua demonstração através dos dois acorde. Este tipo de abordagem não realiza paradas como compositores destacados. Denominaremos estes caminhos a vertical, em cada acorde e sim nos centros tonais. de vertical e horizontal, e iremos examiná-los a seguir. Quando encontramos uma única nota sustentada em 2- Improvisação horizontal e vertical mais de uma acorde, ou uma única escala utilizada atra- Para nos auxiliar na questão da análise de improvisações vés de vários compassos, podemos dizer que a melodia dentro do choro brasileiro, utilizaremos a obra de RUS- está baseada numa abordagem horizontal. SELL (2001) citada acima, em que o autor observa dois caminhos básicos dentro da improvisação que chama- Notamos em cada improvisador uma tendência ou pre- mos de “idiomática”. Segundo Russell, uma música pode ferência por um desses tipos de abordagem, mas ambos ser comparada metaforicamente a uma viagem através os modos caminham lado a lado e durante o improviso de um rio, e no caso da improvisação o músico tem a observamos, nem sempre muito claramente, as passagens possibilidade de fazer esta viagem de várias maneiras. Os de um modo ao outro. dois principais modos desta “navegação” são denomina- dos como o modo ou abordagem vertical e o outro que é Segundo BERTON (2005), baseado nos conceitos de Rus- chamado de horizontal. sell, define uma abordagem horizontal quando, por exem- plo: dentro de uma cadência típica da música popular, O músico que navega por este rio pelo modo que chama- Dm – G7 – C7M (ii,– V – I), o improvisador utiliza como mos vertical faz paradas em cada acorde, ou seja, cons- material fonte a escala de Dó Maior sobre os 3 acordes, trói uma improvisação através da escala relativa a cada gravitando em um só centro. Dentro desta abordagem acorde. Uma improvisação neste nível, ou seja, vertical utilizam-se mais padrões escalares. No Ex.1 podemos ver 3 requer que o músico projete a identidade harmônica de claramente a aplicação de uma escala blues em “Sol”, cada acorde com a melodia, definindo os tipos de acor- enquanto a progressão harmônica caminha, independen- de na medida em que eles aparecem dentro da música. temente desta, porém, gravitando no mesmo centro “Sol”. Para esta definição nota-se inicialmente uma construção baseada principalmente em terças e fundamentais dos Seguindo o raciocínio de Russell, através da dissertação acordes, e posteriormente, através da experimentação, de Berton, uma abordagem vertical seria quando o impro- outras notas além das estruturais do acorde também po- visador, dentro desta mesma cadência, utiliza três centros dem ser incorporadas, o que leva aos acordes extendidos de gravitação, correspondentes às três fundamentais de ou alterados. Por exemplo: em um acorde de C7 pode-se acordes envolvidas. Em Dm7, ele pensa no segundo modo adicionar um Db ou um Gb, assim este acorde se trans- de Do (dórico), no G7 pensa no quinto modo de Do (mixo- forma em C7/ b5/b9 (acorde dominante com a quinta lídio), e em C7M no primeiro modo de Do (jônico). Dentro diminuta e a nona menor). desta abordagem usam-se mais arpejos (Ex.2).

Criar uma melodia que se encaixe em cada acorde dentro Aplicando os conceitos de horizontalidade e verticalidade da respectiva progressão é o principal objetivo deste nível examinados acima, podemos notar a preponderância de “vertical”. O improvisador vertical sugere o tipo de acorde um destes aspectos dentro de cada compositor estudado. através da melodia do seu improviso. Na gravitação ver- Através deles pretendemos esclarecê-los e delinear ten- dências da improvisação dentro do choro brasileiro.

Ex.1 - Song of my father (Joe Henderson): exemplo de abordagem horizontal4

164 VALENTE, P. V. Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.162-169.

3- O desenho harmônico de Pixinguinha modo de análise nos parece mais adequado para de- Nossa análise fundamenta-se na fase em que Pixin- monstrar se seus improvisos estão fundamentados prin- guinha definiu sua maneira de improvisar, isto é, exe- cipalmente em estruturas verticais (baseadas em notas cutar ao saxofone suas linhas de contracanto6. Nela, de acorde) ou horizontais (baseadas em escalas referen- notaremos sua originalidade e as razões pelas quais tes às sequências harmônicas). é considerado um estruturador da linguagem do cho- ro ao transferir o tipo de improvisação característica Nota-se no Ex.3, que sem se descuidar da condução melódi- dos instrumentos acompanhadores (harmônicos) para ca, Pixinguinha descreve a harmonia praticamente em todo o instrumento solista (melódico). Pixinguinha criava o improviso, utilizando-se largamente das terças e sétimas essas linhas paralelamente aos solos da flauta, mas dos acordes, principalmente em tempos fortes, para melhor quando ouvimos suas gravações podemos observar que defini-la. Neste trabalho faremos uma análise simplificada, não eram totalmente improvisadas. Em gravações da colocando abaixo das notas que julgamos mais importantes mesma música, ouvimos frases bem parecidas - o que o número referente ao seu intervalo dentro do acorde. Por nos faz concluir que em sua mente existia um “cami- exemplo: 1- tônica; 3 - terça; 5 - quinta; 7 - sétima. nho” traçado pela harmonia da música, e no momento da execução poderia ou não repetir certos elementos Seguindo neste mesmo choro, podemos notar que o au- sempre criando linhas que revelavam claramente a tor utiliza nos compassos 17, 18 e 19 o que podemos harmonia. A concepção destas linhas é similar às do considerar uma abordagem horizontal (A.H.), mas logo a baixo (ou da “baixaria” como é denominado no choro) seguir mantém a preferência pelas notas do acorde em e podemos ouvi-las desde as primeiras gravações.� tempos fortes, desenho dos baixos descendo cromatica- mente, arpejos e alguns cromatismos (Ex.4). Para a análise dos choros de Pixinguinha, utilizaremos Para este presente artigo só analisaremos a primeira se- como ferramenta a relação entre o acorde dado e as ção deste choro, mas Pixinguinha continua em todas as notas da melodia criada sobre este mesmo acorde. Esse seções seguindo as mesmas preferências verticais. �

Ex.2 - Exemplo de abordagem vertical (Jamey Aebersold) 5

Ex.3 - Contraponto de Pixinguinha em 1 a 0, c.1-16 (100 Anos. BMG, 1997).

165 VALENTE, P. V. Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.162-169.

A seguir, o Ex.5 mostra uma tabela separada por seções Podemos notar sobreposições de arpejo, cromatismos, es- com o número de vezes que o autor utiliza em tempo cala de blues, escala bebop (passando pela sétima maior e forte as fundamentais, terças e sétimas. sétima menor), motivos melódicos característicos da lin- guagem do jazz, aproximações cromáticas e diatônicas. 4- O desenho melódico de K-Ximbinho Há uma preferência pela condução melódica – horizontal Na música “Velhos Companheiros”, choro de sua autoria, sem se preocupar tanto em delinear as harmonias como notaremos uma maior liberdade de criação e uma clara vimos anteriormente no choro 1x0, de Pixinguinha. No influência jazzística. CAZES (1998) acredita que K-Xim- caso de K-Ximbinho, observaremos principalmente esca- binho realizou um casamento perfeito entre o choro e las e os motivos melódicos (Ex.6). os elementos harmônicos oriundos do jazz, e afirma que “para se ter uma ideia da modernidade do autor, ele foi Examinamos aqui somente um exemplo de K-Ximbinho, o estudar com Koellreuter, o guru da vanguarda...” choro Velhos Companheiros. As análises de outros exem- Notamos em seus improvisos um claro pensamento meló- plos de sua improvisação, apresentadas na dissertação de dico (horizontal), diferente de Pixinguinha que se baseia mestrado da autora � confirmam as preferências horizon- principalmente no desenho harmônico (vertical). tais de K-Ximbinho.

Ex.4 - Contraponto de Pixinguinha em 1 a 0, c.17-32 (100 Anos. BMG, 1997).

Seções Fundamental (1) Terça (3) Sétima (7)

A1 11 9 4

A2 8 7 4

B 17 4 1

A3 12 3 2

C1 12 3 2

C2 12 3 3

A4 8 6 2

Ex.5 - Tabela com número de ocorrências em tempos fortes, de fundamentais, terças e sétimas, utilizadas por Pixinguinha no improviso do choro 1 x 0.

166 VALENTE, P. V. Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.162-169.

Como características principais, podemos observar que o horizontal, não prioriza a plena definição do caminho autor tem uma grande preocupação em apresentar fra- harmônico, apesar de sempre se adequar a ele. Gosta- ses longas com vários motivos rítmico-melódicos que são ríamos de ressaltar em algumas ocasiões a presença trabalhados criativamente alterando-os de diversas ma- da abordagem vertical, porém em poucas ocasiões se neiras. A valorização das linhas horizontais está presen- comparada às características horizontais. te de maneira marcante por meio dos desenvolvimentos motívicos, com preferência às escalas ao invés de arpejos. Nosso estudo não pretende afirmar que Pixinguinha só improvisa com base na harmonia sem se preocupar com O Ex.7 mostra uma tabela com o número de vezes que o desenho melódico, e tampouco que K-Ximbinho não encontramos fundamentais, terças e sétimas nos tempos utilizava o estilo contrapontístico, mas sim que notamos fortes em toda a peça. que há uma predominância de cada um destes tipos de pensamento no estilo de cada autor. 5 - Conclusão Na análise de Pixinguinha, vemos que o autor utiliza- Sobre esta questão, Nailor “Proveta” de Azevedo, em de- se amplamente de fundamentais, terças e sétimas nos poimento realizado em 25/08/2006 observa que “a im- tempos fortes, sempre com fundamentais ao final de provisação no jazz parte da mão direita do piano, em cada seção. Pixinguinha conduz sua melodia delineando cima das harmonias; já a brasileira nasceu a partir da toda a harmonia, isto é, a estrutura harmônica é clara- mão esquerda (baixos), desenhando as inversões”.Esta mente percebida através do desenho melódico de seu ideia ilustra de maneira simplificada duas tendências bá- improviso, graças ao uso de vários arpejos e tríades. Ou- sicas dentro da improvisação em geral e que transparece tras características encontradas são os cromatismos que ao analisarmos tanto os improvisos de Pixinguinha, vol- servem para se alcançar alguma nota do acorde, dan- tados às raízes do choro, quanto os de K-Ximbinho, com do fluência à linha melódica, uma relação direta com o forte influência da música norte americana. que chamamos de baixaria no choro. Quando existem acordes invertidos, muitas vezes eles são representados Através dessas análises, exemplificamos o conceito da no improviso para que fiquem claros. Encontramos rara- horizontalidade e verticalidade na improvisação e pode- mente uma abordagem horizontal. mos antecipar a existência dessas tendências em outros autores do choro. Examinando os improvisos de K-Ximbinho percebe- se sua preferência pela abordagem horizontal, pois Acreditamos que seja importante refletir sobre essas es- na maioria das vezes há preocupação com o aspecto colhas no momento da improvisação, analisar as caracte- melódico que se sobrepõe ao harmônico. Observamos rísticas musicais essenciais de cada uma delas, uma vez nesses exemplos que para K-Ximbinho a sequência de que isto dará suporte para o estabelecimento de padrões acordes não é determinante em sua forma de impro- e esquemas que, de maneira didática, lançará novas luzes visar e enfatiza principalmente o aspecto melódico nos estudos sobre a improvisação no choro brasileiro.

Fundamental 12

Terça 8

Sétima 6

Ex.7: Tabela com número de ocorrências em tempos fortes, de fundamentais, terças e sétimas, utilizadas por K-Ximbinho no improviso do choro Velhos Companheiros.

167 VALENTE, P. V. Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.162-169.

Ex.6 - Improviso de K-Ximbinho em Velhos Companheiros (Saudades de um clarinete. Eldorado,1981).

168 VALENTE, P. V. Horizontalidade e verticalidade: os modelos de improvisação de Pixinguinha e K-Ximbinho... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.162-169.

Referências BAILEY, Derek, Improvisation, its nature and practice in music, England Ashbourne: Da Capo Press, 1993. BERTON, Cesar Gabriel. Inventividade melódica: Uma outra abordagem das técnicas de análise, composição e improvisa- ção em música popular. Campinas: Unicamp (dissertação), 2005. CABRAL, Sérgio. Pixinguinha: Vida e obra. Rio de Janeiro: Lumiar Editora,1997. NAPOLITANO, Marcos. História e Música – história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. RUSSELL, George - Lidian Cromatic Concept of Tonal Organization - Concept Publish Company, 40 Shepard Street; Cam- bridge, MA 02138, 2001. VALENTE, Paula Veneziano. Horizontalidade e Verticalidade: dois modelos de improvisação no choro brasileiro. São Paulo: Eca/Usp, (Dissertação), 2009.

Referências sonoras K-XIMBINHO. Saudades de um clarinete. K-Ximbinho: composição, regência e clarinete. São Paulo: Gravadora Eldorado,1981 (CD digital estéreo). PIXINGUINHA: 100 Anos. BMG, 1997.

Leitura recomendada CÂMARA, Leide. K-ximbinho. In: Dicionário da Música do Rio Grande do Norte. Natal: Acervo da Música Potiguar, 2001. FABRIS, Bernardo V. Catita de k-ximbinho e a interpretação do saxofonista Zé Bodega: aspectos híbridos entre o choro e o jazz. UFMG/Música: (Dissertação), 2006. FRANCESCHI, Humberto Moraes. A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro: Sarapuí, 2002. MAGALHÃES, Alexandre Caldi. Contracantos de Pixinguinha: contribuições históricas e analíticas para a caracterização do estilo. Rio de Janeiro: Universidade do Rio de Janeiro, Música Brasileira, (Dissertação), 2001. PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. Jazz, Música Brasileira e fricção de musicalidades. Revista Opus. 11, 2005, p.197-207. _____ Análise musical e música popular brasileira: em busca de tópicas. II Jornada de Pesquisa do Centro de Artes, Florianópolis, 2006. Anais, Florianópolis: UDESC, 2006. _____ Expressão e sentido na música brasileira: retórica e análise musical. III Simpósio de Pesquisa em Música – SIM- PEMUS 3, Curitiba, 2006. Anais..., Curitiba: Editora do DeArtes, 2006, p.63-68. PINTO, Alexandre Gonçalves. O choro. Rio de Janeiro, Edição FUNARTE, 1978. SCHULLER, Gunther. Early Jazz: It’s roots and musical development. New York: Oxford University Press, 1986. SILVA, Marília Barboza da & OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de. Pixinguinha – filho de Ogum Bexiguento. Rio de Janeiro, Gryphus, 1998.

Notas 1 O material encontra-se nas referências do final do artigo. 2 A improvisação idiomática se preocupa principalmente com a expressão de um idioma - como o jazz, a música flamenca ou barroca - e tem sua identidade e motivação originada desses idiomas. A improvisação não idiomática tem outra preocupação e é mais encontrada no que chamamos de livre improvisação, que não está atrelada a nenhuma identidade idiomática (tradução da autora). 3 A escala blues é uma escala de seis notas. Quando comparada com uma escala maior, a escala blues é assim construída sobre os graus da escala de sete notas: 1, b3, 4, b5, 5, b7 . 4 Exemplo citado em BERTON (2005, p.72). 5 Exemplo citado em BERTON (2005, p.73). 6 No contexto do choro, contraponto ou contracanto é uma melodia de acompanhamento que dialoga com a melodia principal sendo uma das prin- cipais características desta linguagem. 7 Como exemplo, citamos o grupo Choro Carioca (1910 a 1915) em que Irineu de Almeida, professor de Pixinguinha, já fazia estes contracantos ao oficleide. 8 A análise integral deste choro encontra-se na dissertação de mestrado da autora. 9 VALENTE, Paula Veneziano. Horizontalidade e Verticalidade: dois modelos de improvisação no choro brasileiro. São Paulo: Eca/Usp, (Dissertação), 2009.

Paula Veneziano Valente é Graduada em Composição e Regência pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), Mestre pela USP, saxofonista e flautista da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo desde 1990. Na área didática atua como professora de saxofone e coordenadora de sopros populares na EMESP – Tom Jobim (antiga Universidade Livre de Música-ULM).

169 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental e de novos instrumentos musicais acústicos

Artur Andrés (UFMG, Belo Horizonte, MG) arturandres@ ufmg.br

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resumo: Estudo panorâmico sobre a história do grupo instrumental UAKTI, cobrindo desde a formação musical de seu idealizador, luthier, compositor e multi-instrumentista Marco Antônio Guimarães até a construção e utilização dos novos instrumentos musicais acústicos que norteiam sua estética e continuada produção no Brasil e no exterior por mais de três décadas. Palavras-chave: UAKTI; organologia; instrumentos musicais acústicos; música instrumental; música popular; com- posição; performance musical.

The Brazilian UAKTI group: three decades of instrumental music and new acoustical musical instruments

Abstract: Panoramic study on the history of Brazilian instrumental group UAKTI, ranging from the musical background of its mentor, composer, luthier and multi-instrumentalist Marco Antônio Guimarães until the construction and use of the new acoustical musical instruments that lead to the aesthetics and continued production in Brazil and abroad for over three decades. Keywords: UAKTI; organology; acoustical musical instruments; popular music composition; music performance.

“Os instrumentos acústicos tradicionais tiveram sua época áurea de desenvolvimento, tendo atingido um nível de perfeição muito grande. . . a época do Stradivarius. . . até hoje não foi superada. Um violão tem aquela forma há muito tempo; o violino, há séculos” (Marco Antônio GUIMARÃES, 1983).

1 – Introdução No mundo pós-guerra, grandes avanços tecnológicos de instrumentos acústicos convencionais sem os benefí- têm ocorrido em praticamente todas as áreas do conhe- cios da tecnologia. Neste cenário, o luthier, compositor, cimento. O impacto da ciência se fez sentir também na arranjador e instrumentista Marco Antônio Guimarães, comunicação e na música, especialmente com o adven- fundador e líder do grupo instrumental UAKTI, chama to da gravação sonora, do rádio, da televisão, dos dife- a atenção, na citação que abre este artigo, para uma rentes meios de suporte fonográfico e da tecnologia de inércia na história da luteria. De fato, observa-se que síntese e processamento digital do som. No que concer- o surgimento de novos instrumentos para concerto ne aos instrumentos musicais, ressalta-se o surgimento encontra-se praticamente estacionado desde o final do dos instrumentos elétricos e eletrônicos e sua rápida século XIX. De lá para cá, as principais mudanças nessa evolução, que tem acompanhado o desenvolvimento área se restringiram à melhoria dos métodos de fabrica- acelerado da informática. Entretanto, em meio a tantas ção e aperfeiçoamento dos princípios de funcionamento mudanças, ainda predomina a tradição de construção e produção do som.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 03/02/2010 - Aprovado em: 18/03/2010 170 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

2 – Pequeno panorama da criação de novos de produção do som como princípio básico para a divisão instrumentos acústicos classificatória, onde se destacaram. a princípio, quatro No campo da criação de novos instrumentos, o que se vê categorias de instrumentos musicais: os idiofones, que comumente ao longo da história da música são exemplos são instrumentos cujo próprio corpo em vibração gera o de aparecimento pontual de novos instrumentos que, por som; os membranofones, onde o som é produzido pela razões diversas, integraram-se ao cotidiano do fazer musi- vibração de uma membrana; os cordofones, onde o som é cal ou, então, permanecem como mera curiosidade ou pe- produzido pela vibração de cordas e os aerofones, onde o ças de museu. A partir da classificação convencional dos som é produzido pela vibração do ar. Posteriormente, foi instrumentos de orquestra em três grandes classes – cor- incluída uma quinta classe de instrumentos, a dos ele- das, sopros e percussão, pode-se notar alguns marcos his- trofones, instrumentos que produzem vibrações que pas- tóricos. No âmbito das cordas, o fim da Renascença marca sam por um alto-falante e se transformam em sons. Os o início da substituição da família da viola da gamba e da eletrofones por sua vez se dividem em duas sub-classes: braccio pela família do violino no contexto orquestral. Ins- os instrumentos eletromecânicos, baseados nas vibrações trumentos como o baryton, de seis cordas e registro grave, produzidas por meios mecânicos usuais e transformadas têm seus poucos exemplares históricos restantes datados em vibrações elétricas e os instrumentos radioelétricos, entre 1674 e 1799 e, hoje, só é lembrado pelo público de baseados em circuitos elétricos oscilantes. Em seu livro concertos graças a 175 obras compostas por Haydn, dedi- Historia Universal de los instrumentos musicales, SACHS cadas ao seu patrono Nikolas Joseph Esterházy, um aficio- (1947, p.9) justifica a criação desse novo sistema de clas- nado desse instrumento. O arpegione, instrumento grave sificação fundamentando-se na existência de um mesmo de seis cordas friccionadas como o violoncelo, e afinadas princípio básico para cada categoria, o que não ocorre como o violão, foi inventado por J. G. Staufer no início na divisão habitual dos instrumentos de orquestra em do século XIX e teve um curto período de sobrevivência. cordas, sopros e percussão: “Esta [antiga] classificação Hoje, sua lembrança deve-se à composição de uma única repousa sobre três princípios diferentes: o material sono- obra, a Sonata Arpeggione de Franz Schubert, especial- ro sobre aquilo que se está atuando, nas cordas; a força mente escrita para o virtuoso Vincenz Schuster. No âmbito atuante, nos sopros e a própria ação, na percussão”. Além dos instrumentos de sopro, destaca-se o aparecimento e a disso, considerou essa antiga forma de classificação ilógi- consolidação do fagote, também na Renascença, da clari- ca por não incluir os instrumentos modernos, assim como neta em meados do século XVIII e da flauta de metal e do “o infinito mundo dos instrumentos históricos, populares e saxofone na primeira metade do século XIX. A tuba wag- exóticos” (SACHS, 1947, p.9). O sistema de classificação neriana sobreviveu basicamente devido à finalidade ima- Hornbostel-Sachs ainda predomina e, em suas linhas ge- ginada pelo seu idealizador, o compositor Richard Wagner, rais, tem sido universalmente aceita pelos musicólogos. que a utilizou no Anel dos Nibelungos Na seção 6 deste artigo, é apresentada uma classifica- ção dos instrumentos o UAKTI dentro destas categorias. “. . . com a intenção de preencher a lacuna entre as trompas e os Dentro desses, o Aqualung, parece exigir uma categoria trombones. . . Seu som sombrio e majestoso atraiu muitos com- especial dentro da organologia, pois, basicamente trata- positores posteriores, em especial Bruckner, Strauss e Stravinsky, que utilizou-a em ‘O pássaro de fogo’ e ‘A sagração da primavera’” se de uma superfície de água tocada por uma coluna de (SADIE, 1994, p.968). água que cai. Entretanto, por praticidade, consideramos a superfície da água como uma membrana e, sendo assim, Entre os instrumentos de percussão, a primeira utilização o classificamos como um membranofone. do glockenspiel ocorreu na obra Saul (1739) de Haendel, onde ainda era chamado carillon e tinha teclado. Sua Apesar da grande influência da eletrônica e da computação técnica de performance com baquetas só veio a ser de- no período pós-guerra, um pequeno número de constru- senvolvida a partir de meados do século XIX. O desenvol- tores dedicou-se à tarefa de criação de novos instrumen- vimento da mecânica moderna dos tímpanos em 1820 os tos acústicos que, incorporando novos materiais e novas tornou instrumentos bem mais sofisticados musicalmen- formas de emissão sonora, sem depender de recursos ele- te, com possibilidades de execução de efeitos precisos e trônicos, resultaram na obtenção de sonoridades e timbres sofisticados como glissandi e passagens cromáticas rápi- singulares. Este vanguardismo construtivo, entretanto, não das. Entre os instrumentos musicais acústicos, o vibrafo- atraiu a atenção da maioria dos compositores, impedin- ne constitui uma rara exceção, pelo fato de sua criação do o desenvolvimento de um repertório específico para ter ocorrido, nos Estados Unidos, já no início do século XX. os mesmos, o que, de certa forma, explica a tendência de Em contraposição ao sistema classificatório convencional acumulação das funções de construtor e compositor de e partindo da premissa de que “a classificação tradicional novos instrumentos pela mesma pessoa. No século XX, da orquestra moderna não alcança categoria científica” antecedendo a experiência de Marco Antônio Guimarães (SACHS, 1947, p.9), Erich von Hornbostel1 (1877-1935) com o UAKTI, ressaltam-se o trabalho de dois construtores e Curt Sachs2 (1881-1959) criaram, em 1914, um novo de novos instrumentos acústicos que conseguiram integrar sistema para a classificação dos instrumentos musicais, suas novas fontes sonoras ao processo compositivo: Har- mais completo e de abrangência internacional. Em oposi- ry Partch, nos EUA e Walter Smetak, no Brasil. O norte- ção à divisão tripartida (percussão, cordas e sopros), esse americano Harry Partch (1901-1974) começou a tocar novo sistema propôs a utilização da característica física órgão de palheta, bandolim, violino e harmônica aos seis

171 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

anos de idade. Aos quatorze anos começa a se dedicar à criação de um Centro de Novos Instrumentos Musicais. Tal composição. Escreveu um quarteto de cordas no sistema de empreendimento tem o objetivo de contemplar, priorita- afinação justa, além de um poema sinfônico, um concerto riamente, o surgimento de novos instrumentos orques- para piano e cerca de 50 canções. Sua insatisfação com a trais no século XXI, reunindo, para isto, estudiosos de di- música tradicional o estimulou a procurar outras formas ferentes áreas. A partir da década de 1980, a construção de expressão sonora que culminaram numa ruptura radical de novos instrumentos musicais passou a congregar, cada com as convenções da música erudita europeia. Em 1930, vez mais, construtores, compositores e grupos de músi- de forma drástica, queimou propositalmente todos os seus cos. Desde 1986, o festival Sound Symposium, realizado manuscritos musicais compostos até aquela data e propôs bienalmente na cidade de Saint John’s, Newfoundland, uma abordagem musical radicalmente diferente, baseada Canadá, dedica-se à temática da construção de novos no conceito de corporalidade. A música não estaria mais instrumentos musicais e instalações sonoras. Este sim- dissociada dos impulsos humanos fundamentais do canto pósio reúne construtores e instrumentistas de diversos e da dança, elementos que seriam geradores dos impulsos países, promovendo o intercâmbio de ideias, experiências musicais básicos no corpo do ser humano. Ainda segundo construtivas e de performance. Partch, a associação desses três elementos - música, can- to e a dança, além de promover uma relação direta com 3 – A formação musical de Marco Antônio o momento presente, o “aqui e agora”, está diretamente Guimarães relacionada à existência e às diversas manifestações do universo tangível. Num sentido mais amplo, esse conceito “. . . somente numa família de certa tradição artesanal aconteceria de corporalidade levou Partch ao abandono do sistema de o despertar para a arte de fazer instrumentos musicais. Desde pe- queno, Marco Antônio viveu entre madeiras, couros e ferramentas afinação ocidental tradicional da escala temperada, base- na oficina de seu avô materno, aprendendo com ele a manejar uma ada na divisão da oitava em doze partes iguais, em favor plaina, um serrote, uma lixadeira. Com seus irmãos, inclusive e de um sistema de afinação próprio, baseado na afinação auxiliado por sua mãe, construía brinquedos até para os vizinhos” justa. De uma maneira simplificada, enquanto que a afi- (CICCACIO, 1978). nação temperada aplica um artifício matemático conve- A história do grupo UAKTI confunde-se com a trajetória niente para determinar a afinação de cada um dos doze musical de Marco Antônio Guimarães, nascido em Belo sons da escala cromática, a afinação justa segue uma Horizonte, em 10 de outubro de 1948. Sua mãe, Heloísa abordagem aritmética mais próxima daquilo que seria a Fonseca Guimarães (Formiga, MG, 1918-1978), possuía maneira natural do ouvido humano interpretar os interva- grande aptidão para atividades manuais. Na família, era ela los da escala musical. Sua pesquisa sobre a afinação justa a responsável por grande parte de reparos caseiros como o levou a construir instrumentos especiais para acomodar consertos em móveis, pinturas e serviços de bombeiro e 43 notas por oitava. Partch não se considerava um cons- eletricista. Assim como sua mãe, Marco Antônio também trutor de instrumentos, mas sim “um filósofo seduzido pela desenvolveu habilidades manuais e um espírito criativo carpintaria” (HOPKIN, 1996, p.51). Seus instrumentos tam- com seu avô materno, Camilo de Assis Fonseca. Em uma bém expressam esse senso de corporalidade, pois além de entrevista à revista Manchete, Marco Antônio revelou: buscarem grande beleza plástica, suas formas refletem a natureza dos materiais com os quais foram construídos. “Quando era criança, construía os próprios brinquedos. Meu avô Nos trabalhos musicais escritos por Partch, seus novos ins- tinha uma oficina e eu o admirava ali trabalhando. Por influência trumentos constituíam elementos essenciais para a elabo- dele, todos os seus filhos tinham oficina na garagem. Hoje não se encontra mais marceneiro, carpinteiro...” (GUIMARÃES, Minas não ração dos cenários, onde interagiam cantores, dançarinos trabalha em silêncio, 1989). e instrumentistas. Pode-se notar, em sua música, diversas influências, entre eles, música dos Índios Yaquis (Sonora, Nos fundos da casa do avô, no bairro Santo Antônio, em México), cantos fúnebres hebreus, hinos cristãos e música Belo Horizonte, filhos e netos aprenderam o manuseio de chinesa. Já Walter Smetak (1913-1984), compositor suíço equipamentos e ferramentas e produziam trabalhos em naturalizado brasileiro e professor da Escola de Música da madeira e metal, inventos e reparos em diferentes tipos Universidade Federal da Bahia, criou, entre 1958 e 1984, de equipamentos elétricos e mecânicos. Esta marcante mais de cento e quarenta instrumentos musicais originais, influência familiar proporcionou ao jovem Marco Antô- utilizando materiais alternativos como bambu, cabaça, ca- nio um estreito contato com o mundo das ferramentas e nos de PVC, tubos plásticos, placas de metal, madeira etc. materiais construtivos que, anos mais tarde, possibilitou Sua estética musical foi de fundamental na formação e no a concretização de sua carreira profissional como instru- trabalho de Marco Antônio Guimarães com o UAKTI, como mentista, compositor e criador de novos instrumentos será discutido, mais à frente, nesse artigo. musicais. Em1966, Marco Antônio mudou-se para Sal- vador com o intuito de estudar regência nos Seminários Na realidade, os trabalhos de Partch e Smetak são exce- de Música da UFBA. O principal fator que motivou sua ções dentro de um quadro onde há poucos estudos siste- transferência para a Bahia foi o fato de que ali se desen- máticos sobre a criação de novos instrumentos musicais. volvia, há vários anos, uma intensa e inovadora experiên- Na Inglaterra, um projeto pioneiro denominado Alterna- cia artística e cultural. Desde o início dos anos de 1950, a tive Tuning Projects dirigido por Ozzard-Low e conduzi- cidade de Salvador esteve sob um forte influxo de infor- do em parceria com a London Guildhall University, visa a mações internacionais, em grande parte provenientes das

172 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

vanguardas estético-intelectuais europeias do período decisiva, pois, a princípio, ele aspirava tornar-se regente e anterior à II Guerra Mundial, especialmente nas áreas de fagotista. Posteriormente, ele revelou outros aspectos do música, artes plásticas, teatro, dança, arquitetura e cine- trabalho do mestre suíço: ma. Importantes artistas de renome internacional, como H. J. Koellreutter, , Yanka Rudzka, Ernst Wi- “Na Bahia havia um trabalho muito intenso de música contempo- dmer, Carybé, Mário Cravo, Nelson Rossi, , rânea. Além de Ernst Widmer, outra influência grande que tive lá, foi o trabalho com Smetak, acompanhei o trabalho dele nos quatro Walter da Silveira, Pierre Verner e Anton Walter Smetak, anos que fiquei na Bahia, acompanhei a construção dos instru- trouxeram para a cultura local, influências da vanguarda mentos, toquei no concerto de apresentação dos instrumentos, europeia, promovendo o estímulo ao experimentalismo e peças inclusive escritas pelo grupo de compositores para os instru- à inovação. Durante o período de quatro anos em que mentos dele. . . Em sua oficina no porão da escola, ele tinha uma centena de instrumentos, um trabalho fantástico! Nessa época ele esteve na Bahia, Marco Antônio manteve contato com desenvolveu uma série de instrumentos que eu pude acompanhar, importantes músicos, mas foram os compositores Wal- muito interessantes, eram os instrumentos coletivos. Ele estava ter Smetak (1913-1984) e Ernst Widmer (1927-1990), desenvolvendo instrumentos que funcionavam com vários execu- ambos de origem suíça e radicados em Salvador desde tantes, inclusive instrumentos que não funcionavam se fosse uma só pessoa para tocar. Como exemplo, posso citar A Grande Virgem, meados da década de 1950, que contribuíram de forma uma flauta gigante para vinte e duas pessoas: um bambu inteiro, marcante para o direcionamento de sua futura carreira gigantesco, vinte e dois gomos, e um furo em cada gomo. Inclusive musical. Marco Antônio Guimarães é violoncelista, com- ele colocava onze mulheres de um lado e onze homens do outro, positor, arranjador e responsável pela criação do UAKTI, tinha que haver todo este ritual” (GUIMARÃES, 1981, p.1). sua direção musical e construção dos seus instrumentos não-convencionais desde 1978. Participou como arran- Nota-se que sua influência sobre Marco Antônio foi muito jador e instrumentista em discos de Milton Nascimento, além da criatividade e habilidades construtivas. Significou Paul Simon, The Manhattan Transfer, Matogrosso, a vivência da música dentro de uma perspectiva integra- Zélia Duncan, Maria Bethânia e Robertinho Silva dentre dora de questões mais amplas da vida. Seu mestre era um outros. Foi convidado pelo departamento de acústica do homem essencialmente místico, extraindo, muitas vezes, de diversas religiões orientais e escolas esotéricas, a ins- museu Exploratorium, São Francisco, EUA, como Artist in durante o mês de julho de 1990, para idealizar piração para seu trabalho de criação. Membro integrante Residence 3 e construir instrumentos, que lá permanecem em exposi- da Sociedade Brasileira de Eubiose durante as últimas três décadas de sua vida, Smetak buscou transmitir, por meio ção permanente. Realizou concertos com o grupo UAKTI por diversos países da Europa, entre eles Espanha, Fran- de seus novos instrumentos musicais, discos, composições, ça, Alemanha, Bélgica, Inglaterra, além de EUA, Canadá e textos e peças teatrais, um profundo conhecimento cos- Japão. É autor de cinco trilhas para balé, encomendadas mológico. Sua obra está repleta de símbolos, frutos de uma vida dedicada à busca do auto-conhecimento e de uma pelo Grupo Corpo, de Belo Horizonte: A Lenda (1989), 21 compreensão das leis gerais que regem o universo. Segun- (1991), I Ching (1994), Bach (1996) e A Música do Acaso (1997), ainda inédito. Compôs também três trilhas sono- do Smetak, os instrumentos musicais teriam um papel im- portante no processo de evolução do ser humano. No seu ras para cinema: Kenoma (direção de Eliane Caffé, 1997), ainda inédito livro (SMETAK, Primeiras Estórias (direção de Pedro Bial, 1998) e Lavoura Simbologia dos Instrumentos 1980) ele faz um jogo de palavras para propor Arcaica (direção de Luis Fernado Carvalho, 1999). Entre “. . . devol- os diversos prêmios que recebeu, destacam-se: Prêmio ver ao instrumento a sua real dignidade e a sua verdadeira . Quiz discutir, a partir Sharp de Música (Melhor arranjador, 1990), Prêmio Sharp missão, que é de instruir mentes” deste prisma, os motivos pelos quais ele dedicou grande de Música (Melhor grupo de música instrumental, 1990), parte de sua vida à construção de novos instrumentos mu- Prêmio Sucesso Mineiro (Prefeitura Municipal de Belo sicais. Durante uma turnê do à Espanha, Marco An- Horizonte, 1995), Prêmio Ministério da Cultura (Melhor UAKTI tônio uma vez mais reconheceu a estreita relação existente grupo de música instrumental, 1996), Prêmio Santista (Melhor grupo de Música Popular Brasileira, 1997) e o entre seu trabalho e o de Smetak: Prêmio Multicultural Estadão (1999). “No Brasil muitas vezes consideram-me como aquele que deu con- tinuidade ao trabalho de Smetak, apesar de que atuamos, hoje, em linha musicais bem distintas. Porém, é certo que, não fosse ele, eu 3.1 - Walter Smetak e Marco Antônio não teria feito nada disto” (GUIMARÃES, 1986). Guimarães Marco Antônio, ao descrever seus primeiros contatos com Bem mais tarde, ele também falou de alguns traços mar- Smetak, diz que o mestre aceitou suas visitas diárias ao velho cantes da personalidade de Smetak que o influenciaram: prédio da Universidade da Bahia, que lhe servia de oficina: “Smetak me deu papo, sentiu que meu interesse era verda- “Em Salvador eu descobri que, no porão da Escola de Música, ti- deiro. Ele era místico, trabalhava com extrema liberdade, nha um cara construindo instrumentos e fui lá saber o que era. fazia tudo que lhe desse na cabeça, e isso me fascinava Fiquei atordoado: era o violoncelista Walter Smetak, cercado por cada vez mais” (GUIMARÃES, Villa-Lobos na batida. . ., centenas de instrumentos esquisitos, extremamente coloridos. A 1997, p.6). Movido pela ideia de que uma nova humani- minha vida mudou quando entrei naquele porão” (GUIMARÃES, Villa-Lobos na batida. . ., 1997, p.6). dade requer uma nova música, que requer a construção de novos instrumentos musicais, Walter Smetak construiu, O contato com Smetak e seus novos instrumentos mudou durante seus últimos 26 anos de vida, 150 instrumen- as perspectivas profissionais de Marco Antônio de forma tos musicais, utilizando materiais diversos, como cabaça,

173 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

bambu, madeira, tubos de PVC, mangueiras plásticas etc. mo perdeu a “. . . centralidade que tinha antes, servindo Em 2006, com o patrocínio do Projeto Natura Musical, a agora de suporte para melodias harmonizadas” (WISNIK, exposição Smetak Imprevisto (SMETAK, 2010) apresentou 1999, p.42). Somente no início do século XX, quando a vida e a obra do eclético Walter Smetak: uma gama diferente de materiais sonoros não conven- cionais começa a ser descoberta musicalmente, é que o “... que tornou possível o restauro das mais de 100 plásticas so- ritmo, e com ele os instrumentos de percussão, voltam noras do artista. Uma cuidadosa catalogação e a digitalização do a recuperar sua autonomia. No balé , Erik Satie impressionante acervo deixado por Smetak tornaram permanente Parade o acesso à totalidade da obra neste site inédito. São poesias, peças emprega tiro de revólver, sirene e uma máquina de es- de teatro, registros sonoros, fotografias, partituras, ensaios e teo- crever como instrumentos de percussão. Luigi Russolo, rias...SMETAK IMPREVISTO possibilitou, ainda, a construção de um a partir de ruídos, utiliza os intonarumori na produção projeto educativo exclusivo que permitirá a educadores e alunos a de sua música. O interesse rítmico ocupa espaços antes exploração dos potenciais da obra do professor Smetak − o con- texto histórico, o sabor de construir novos instrumentos, as cores, destinados à melodia e harmonia, como na Sagração as formas, os timbres, as reverberações, sons e silêncios do mundo da Primavera de Igor Stravinsky. Arthur Honneger, com de fora e do mundo de dentro.” instrumentos convencionais, emula os sons de uma lo- comotiva na peça Pacific 1921. O compositor Aderbal 3.2 - Ernst Widmer Marco e Antônio Duarte, aluno da classe de composição de Widmer no Guimarães final da década de 1970, constata a ênfase do professor Nas raízes do processo de sua formação musical como na autonomia do ritmo: compositor, Marco Antônio reconhece em Ernst Widmer sua maior influência: “Widmer dava muito valor à existência do ritmo no contexto com- posicional, não meramente como acompanhamento, mas como uma coisa estrutural. . . em certos momentos você tem que parar “Na Bahia, estudei composição na escola onde Smetak ensinava, tudo e só deixar o ritmo sobressair” (LIMA, 1999, p.166). mas Widmer era o mestre de todos os compositores. Sua liberdade de compor me influenciou muito, tinha coragem de passear pelo atonalismo e pelo tonalismo” (GUIMARÃES, 1994, p.1). Por outro lado, Paulo Costa Lima, também discípulo de Widmer e autor do livro Ernst Widmer e o ensino de É comum, na obra de Widmer, encontrarmos elementos composição musical na Bahia, comenta o incentivo de temáticos típicos do folclore nordestino e da música Widmer aos alunos da classe de composição na experi- popular brasileira, mesclados a procedimentos compo- mentação das possibilidades dos instrumentos de per- sicionais característicos da música erudita contempo- cussão como “. . . um caminho inovador e autêntico na rânea, tais como atonalismo, clusters cromáticos e a direção da diversidade timbrística, relativização do pa- exploração de novos timbres e texturas sonoras que râmetro altura, do desafio de uma nova notação e um implicam, muitas vezes, no desenvolvimento de novas movimento de aproximação da realidade concreta do formas de notação musical. As experiências de Mar- som” LIMA (1999, p.71). As influências de Widmer e da co Antônio com a música popular não se limitaram escola de composição da Bahia como um todo, na obra ao período anterior a 1966, quando se transferiu para de Marco Antônio tornaram-se mais evidentes no lan- Salvador. Uma das características que sempre norteou çamento do primeiro disco do grupo em 1981, chamado seu trabalho musical foi a busca de conexões entre as apenas de UAKTI: estéticas musicais erudita e popular, visando promo- ver uma síntese dos elementos oriundos desses dois “Considerando-se que este trabalho é uma amostragem da pro- dução musical de Marco Antônio, pode-se dizer que ele faz sua universos sonoros, tradicionalmente separados. É ele música dentro dos parâmetros de uma modernidade instigante. A mesmo quem declara: chamada Escola da Bahia, uma das melhores do país no campo da música contemporânea, revela para nós todos um compositor de “O tempo em que estive na Bahia trabalhei com música erudita, talento, que dosa, com requinte de um estudioso inspirado, uma mas não deixei de trabalhar com música popular; sempre quis fa- linha melódica breve, envolvida por procedimentos nitidamente zer a fusão. Por exemplo, uma coisa que fiz muito lá foram arran- aleatórios e de música concreta. Ele consegue, em suas partituras, jos para coral de música popular. Fizemos vários concertos com extrapolar o popular, sem deixar de ser popular” (CARVALHO, 1981). corais da Bahia; às vezes pegávamos o instrumental mais usado em música popular junto com o coral, às vezes só o coro à capela. José Lutzemberger, agrônomo, ambientalista gaúcho e E o trabalho que eu faço atualmente tem um pouco dessa fusão, recebedor do Prêmio Nobel Alternativo de Ecologia, parte essa pesquisa que acontece na música contemporânea, aplicada 4 também à música popular” (GUIMARÃES, 1981, p.1). do conceito de Gaia para fazer um paralelo entre a arte e a ecologia: Outra característica estilística importante da obra de Widmer, amplamente encontrada no trabalho musical “O naturalista procura a integração, a harmonia, a preservação, de Marco Antônio, é a autonomia do ritmo, evidenciada o esmero, a contemplação estética. Ele está no mesmo nível do artista, do compositor, maestro, escultor, pintor, escritor, mas ele principalmente na percussão. A percussão, que apareceu trabalha dentro da disciplina científica, em diálogo limpo com a como elemento primário de manifestações musicais em natureza” (LUTZEMBERGER, 1990). culturas de todos os continentes “. . . ruidosa, brilhante Ele defende a ideia de que na natureza não existe subs- e [de] intensa ritualização da trama simbólica” (WISNIK, tância química ruim, mas sim, substância química no 1999, p.35), perdeu espaço no desenvolvimento da mú- lugar errado. Parafraseando o ecologista, Marco Antônio sica erudita europeia de concerto, uma vez que o rit- Guimarães, disse estar convencido de que “. . . não existe

174 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

música ruim: existe música no lugar errado” (GUIMARÃES, Desses, o Chori Smetano, o Iarragunga e o Peixe, todos UAKTI promove. . ., 1997), refletindo uma postura estética cordofones, foram os que se consolidaram e ainda per- aberta, que privilegia uma criação musical desarmada de manecem nos repertórios do UAKTI em sua concepção preconceitos e tradicionalismos, herdada de Widmer. Ele original. Em 1973, Marco Antônio transferiu-se para São segue em frente para comentar sobre a importância da Paulo onde, durante três anos, ocupou o cargo de violon- música para ouvir e da música para dançar: celista na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, sob a regência do maestro . Nesse pe- “É, quando eu ouvi isso, liguei imediatamente com a questão da ríodo, intensificou seu trabalho como construtor, ainda música. Sempre ouvi músicos, conceituados, famosos e que eu até dedicado principalmente aos instrumentos de cordas: admiro, falando a seguinte frase: ‘Eu gosto de qualquer música, sen- do boa, eu gosto.’ Eu sempre achei essa frase muito pouco inteligen- “Nesse período todo que trabalhei em [orquestras] sinfônicas, te, pois isso é algo absolutamente subjetivo, achar o que é bom e continuei construindo instrumentos, mas sem uma aplicação. Era o que não é. Levando isso em conta, comecei a observar a questão um trabalho pelo qual me interessei, me liguei quase como uma da música e cheguei a esta conclusão, na qual até hoje acredito: o necessidade. Cada instrumento sugeria um novo e chegou uma que existe é música no lugar certo ou errado. Se você tem um tipo época em que eu tinha uma quantidade enorme de instrumentos, de música, que coloca 100 mil pessoas dançando em uma praça, mas que não estava utilizando” (GUIMARÃES, 1981). essa música é ótima para isso, a função dela, ali, é colocar 100 mil pessoas dançando, durante horas. , consegue fazer isso, não é qualquer um que consegue fazer isso bem. Os compo- Esse período corresponde à primeira fase de seu trabalho sitores que fazem as músicas que ela canta, fazem isso bem, e os como construtor de novos instrumentos, em que, movido músicos de sua banda também. É um tipo de ritmo e de percussão por uma curiosidade de ver até que limites poderia ex- que controla uma multidão de 100 mil pessoas! Então, existe a mú- perimentar, não se preocupava, ainda, com a aplicação sica para dançar. A dance music é usada no Planeta inteiro. Você vai encontrá-la na Indonésia, no Japão, no Alaska. Onde você for, musical de suas descobertas. Paralelamente a isto, com- existe algum clube de dança tocando aquele tipo de música. E é pôs várias obras para grupos orquestrais, côro e música uma música muito simples, que tem uma batida binária, porque o de câmara. Datam desse período o Quinteto de cordas e ser humano tem dois pés e aquela é uma música feita para dançar. e os para orquestra e coro. Uma de suas Portanto, se você a fizer com um compasso de cinco, sua música piano Salmos 150 já não vai funcionar ali. Por outro lado, se você imaginar alguém obras mais conhecidas e executadas, a Oferenda musical, sentado num sofá, em casa, à noite e querendo ouvir uma música foi escrita especialmente para a Orquestra de Cordas da antes de dormir, claro que se escolher esse tipo de música, vai estar Fundação de Educação Artística, em1976, quando mu- errado. Esta música foi feita para dançar e ele vai achar que ela é dou-se novamente para Belo Horizonte. Na sua casa no ruim. Por outro lado, se você colocar um quarteto de Haydn, para 100 mil pessoas. . . Um quarteto de Haydn foi feito para se ouvir bairro São Lucas, Marco Antônio montou uma pequena calmamente e a dance-music foi feita para dançar. E mesmo essas oficina, dando continuidade ao seu trabalho de constru- músicas, consideradas de baixo nível… Cada época tem as suas, não ção de instrumentos. Algumas vezes, os instrumentos é? Quando eu era adolescente tinha a Jovem Guarda, o Iê-iê-iê. . . eram utilizados por grupo experimentais de música eru- não tem diferença nenhuma a música do Jerry Adriani, do Wan- derley Cardoso, para aquela que se faz hoje. É do mesmo tipo: uma dita e teatro, mas a necessidade de um grupo próprio, que música muito simples, que também é a música que toca no rádio, produzisse e interpretasse música especialmente para os que vai para a televisão, vende discos e junta milhares de pessoas. É, sons inéditos que surgiam, era cada vez mais premente. realmente eu acredito nisso mesmo” (GUIMARÃES, 1999). Em 1977, com a criação da Orquestra Sinfônica do Esta- do de Minas Gerais (OSMG), passou a conviver de perto Esta afirmação de Marco Antônio nos remete à questão com um grande número de instrumentistas de alto nível da funcionalidade da arte numa determinada cultura, dos e pôde aproximar-se daqueles cujos interesses musicais valores que pode ter, do papéis que cumpre, de iam além do repertório sinfônico. Em 1978, Marco An- “. . .ser eficaz, de uma determinada forma, dentro de um dado con- tônio Guimarães formou o grupo UAKTI, juntamente com texto. . . para os índios que vivem no Xingú. . . nem a Heróica Paulo Sérgio dos Santos, Décio de Souza Ramos Filho e de Beethoven, nem a obra de Chopin, Stravinski, Schoenberg. . . Artur Andrés. Paulo Santos (1954, Belo Horizonte, MG) representam para eles valores. Cantos monodimensionais simples, cursou História na Universidade de Brasília, onde iniciou ou formas de comunicação sonora, são para eles valores; para nós, muitas vezes, simples fatos antropológicos ou sociológicos” (KO- também seus estudos musicais, com o compositor Emílio ELLREUTTER, 1999). Terraza. Posteriormente, em Belo Horizonte, estudou cla- rineta com o professor Salvador Villa, composição com 4 - O retorno a Belo Horizonte e a criação do Rufo Herrera e percussão com Décio Ramos. Participou da grupo UAKTI Orquestra Sinfônica de Minas Gerais entre 1979 e 1986 e integra o grupo desde a sua formação. Participou Depois de quatro anos de estudos nos Seminários de Mú- UAKTI da gravação dos nove discos lançados pelo grupo , sica da UFBA, Marco Antônio retornou a Belo Horizonte, UAKTI em 1971, para ocupar o cargo de violoncelista na Orques- assim como em discos de outros artistas, com quem o tra Sinfônica da Universidade Federal de Minas Gerais grupo trabalhou, além de trilhas para balés e filmes. Pa- (UFMG) por dois anos. A criação de seus primeiros instru- ralelamente ao seu trabalho com o UAKTI, desenvolve mentos não-convencionais data desta época. trilhas sonoras para performances, instalações e vídeos, alguns em parceria com o video-maker Éder Santos, como “Em 1971, já de volta a Belo Horizonte, Marco Antônio começou a os premiados Rito e Expressão, Não vou à África, Essa Coi- fazer instrumentos experimentais, muitos dos quais permanecem sa Nervosa e Memórias de Ferro. Décio Ramos (1957, São em sua concepção original, enquanto outros foram sendo modi- Paulo, SP) iniciou seus estudos musicais na bateria com ficados com o passar do tempo e outros até abandonados num canto, aguardando novas experiências” (BRANT, 1981). João Rodrigues Ariza, percussão com Osmar da Cunha e

175 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

tímpanos com John Boudler e Carlos Tarcha. Bacharelou- 1980). A música escolhida foi Peixinhos do mar, tema do se em Percussão pela Faculdade Mozarteum, São Paulo, folclore mineiro, com arranjo de Marco Antônio. Segundo em 1985. Atuou como primeiro percussionista da OSMG, MILLARCH (1981): e como professor de percussão da Schola Cantorum da Fundação Clóvis Salgado, entre 1978 e 1987. É integran- “ ... o registro de Peixinhos do Mar estusiamou tanto o Bituca [ape- lido de Milton Nascimento], que este os convidou para mais duas te do UAKTI desde a formação do grupo. Artur Andrés faixas; ´Sueño com serpientes´ e ´Uma cafuné na cabeça, malan- Ribeiro (1959, Belo Horizonte, MG), um dos co-autores dro, eu quero até de macaco´”. do presente artigo, iniciou seus estudos musicais na Fun- dação de Educação Artística em 1974, com o flautista O sucesso do trabalho com Milton Nascimento propor- Expedito Viana. Estudou flauta também com os profes- cionou ao grupo a chance de participar, em 1981, da tur- sores Odette Ernst Dias, Bettine Clemen, Renato Axelrud, nê de lançamento do disco Sentinela por várias cidades e Antônio Carlos Carrasqueira. Estudou composição com brasileiras além de duas apresentações em Buenos Aires. Eduardo Bértola e Sergio Magnani. Obteve o Bacharelado Nesse período, numa entrevista ao jornal argentino ASI em flauta pela Escola de Música da UFMG (1981), onde en Cronica, Milton Nascimento comentou sobre as ori- se tornou professor dois anos mais tarde. Atuou como gens comuns, assim como a íntima relação musical exis- flautista na Orquestra Sinfônica do Estado de Minas Ge- tente entre ambos: rais (1980 a 1986), onde, por várias vezes, apresentou-se como solista. Com a pianista Regina Stela Amaral forma “O UAKTI e eu viemos de um mesmo lugar e essa questão da terra é para mim como um ritmo, uma melodia. Creio que é exatamente um duo de flauta e piano desde 1978, realiza recitais no isso que nos une, por ela estamos juntos. . . Os músicos do UAKTI, Brasil e no exterior e gravações (Encontro Barroco I, 1983; no seu estilo, e minha música se complementam no sentido de Encontro Barroco II, 1984; Duo, 1999). Como composi- que queremos expressar a mesma qualidade, vinda de uma mesma tor, escreveu e (CD , 1994) origem. Dos quase 40 instrumentos que eles já fabricaram, trou- Alnitak Turning point I Ching xemos apenas 10. O emprego de madeiras, bambus, pedras e água e O Segredo das dezessete nozes, Música para um Templo para produzir sons musicais é um dos fatores que une meu estilo Grego Antigo e Trilogia para Krishna (CD Trilobyte, 1997). ao deles” (NASCIMENTO, 1981). O grupo UAKTI contou também com a participação do violoncelista Cláudio Luz do Val, de 1978 a 1980, e do Trabalhando com Milton Nascimento, o UAKTI teve aces- violonista Bento Menezes, de 1981 a 1984. so ao circuito fonográfico, tendo participado em cinco discos do compositor,5 acompanhando-o em turnês na- O nome UAKTI -Oficina Instrumental deriva de uma lenda cionais e internacionais6 e assinado um contrato com a indígena dos índios Tukano do Alto Rio Negro descrita Ariola, para a gravação dos três primeiros discos solos pela compositora e etnomusicóloga Helza Camêu, pionei- do grupo,7 que tiveram a produção artística do próprio ra no estudo da música indígena brasileira: Milton Nascimento. O desejo de levar a música do UAKTI além das fronteiras nacionais fez com que o grupo se “Os estudos de E. Biocca sobre os índios Tukano, do rio Tiquiê, abrisse a novas parcerias musicais. O contato com a mú- (afluente do Alto Rio Negro) revelam mais um aspecto da criação sica popular se consolidou. As participações do grupo nos dos instrumentos. Uma lenda, referente ao herói Uakti, desses ín- dios, diz que ele violava e pervertia as mulheres, por isso foi captu- discos Brazil, do quarteto vocal de jazz norte-americano rado. Era um monstro de formas humanas, horrendo e tendo o corpo The Manhattan Transfer, em 1986 e The Rhythm of the aberto em buracos. O vento, ao atravessar-lhe o corpo, produzia Saints, de Paul Simon, em 1989, possibilitaram um con- sons soturnos e lúgubres. Uakti foi morto e sepultado. No lugar em tato mais estreito com o ambiente artístico internacional, que o enterraram nasceram três palmeiras altas, que passaram a guardar o grande espírito de Uakti. Desde então, os instrumentos de abrindo novas portas para o grupo. Assim, o UAKTI passou Uakti são feitos do caule dessa palmeira. O timbre dos instrumentos a atingir uma faixa de público mais ampla. O trabalho corresponde aos sons tirados pelo vento ao passar pelo corpo esbu- com Paul Simon marca a transição para a segunda etapa racado de Uakti. E em razão do comportamento de Uakti em vida, da história do grupo. A segunda etapa do foi mar- as mulheres que ainda vissem ou ouvissem o som do instrumento UAKTI ficariam imundas. Por isso, se uma coisa dessas acontece, a mulher cada pelo encontro com o compositor Philip Glass, ocorri- teria ou terá fatalmente que ser sacrificada” (CAMÊU, 1977, p.263). do em março de 1989 durante as seções de gravação com Paul Simon. GLASS (1999) reconheceu no trabalho do Em 28 de junho de 1980, o UAKTI realizou sua primeira grupo: “. . . uma bela contribuição ao novo e experimental apresentação pública, em um concerto apresentado no do mundo da música”. Foi nesta segunda fase que ocorreu teatro do Museu de Arte da Pampulha, dentro do Projeto o lançamento mundial dos quatro primeiros CDs do UAKTI Musicanto, promovido pela Fundação de Educação Artís- pelo selo Point-Music de Nova Iorque: Mapa (1992), I tica, sob o patrocínio da Secretaria Municipal de Turismo Ching (Point-Music, 1994), Trilobyte (Point-Music, 1997) e Esportes da Prefeitura de Belo Horizonte. e Águas da Amazônia (Point-Music, 1999). Neste período aconteceram também apresentações em conjunto com 5 – UAKTI: três décadas de música outros artistas, como o baterista Stewart Copeland e The No trabalho do UAKTI, iniciado em 1978 e desenvolvido Rhythmatists (1994); a realização de diversas turnês de em mais de 30 anos de atividade musical ininterruptas, concertos e workshops, pelos EUA, Europa e Brasil; a in- ocorreram importantes parcerias, que marcaram dis- tensificação das atividades didáticas - como o projeto tintas etapas da trajetória do grupo. Em 1980, o grupo UAKTI: Programa Artista Visitante na UFMG (1994-1995), foi convidado pelo compositor Milton Nascimento para e a elaboração de trilhas sonoras para balé, especial- participar de uma faixa do seu disco Sentinela (Ariola, mente compostas e gravadas para o Grupo Corpo: A Len-

176 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

da (1989), 21 (1992) e Sete ou Oito peças para um balé seguiu nenhum padrão pré-estabelecido. Cada um dos (1993). Em 1997, a trilha sonora 21, composta para o balé membros do UAKTI escolheu e arranjou temas de compo- do Grupo Corpo é finalmente lançada em CD. O texto de sitores de sua preferência. Já em agosto de 1999, o UAKTI apresentação resultou do encontro entre o grupo UAKTI e lançou o CD Águas da Amazônia, seu nono trabalho. Ao o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em 1996: mesmo tempo, saía o quarto CD editado mundialmente pela Point-Music, que inclui a trilha para balé Sete ou oito “. . . o sociólogo se encantou com um espetáculo no Heineken Festi- peças para um balé e um arranjo de Marco Antônio para val e entrou em contato com o grupo. Quando Herbert de Souza via- a composição , também de autoria do jou até a capital de Minas, ele foi recepcionado com uma apresen- Metamorphosis I tação particular na oficina do grupo no bairro Serra” (LANA, 1996). compositor norte americano Philip Glass. Isso concretiza- va um projeto iniciado em 1993, quando da gravação da Dessa visita surgiu a ideia do texto do encarte do CD trilha sonora para o balé de mesmo nome encomendado 21, onde Betinho fala sobre a mineiridade e o senso de pelo Grupo Corpo. No texto de apresentação do CD, Phi- integração entre os opostos, valores que compartilhava lip Glass escreveu sobre sua relação com o grupo UAKTI, com o grupo UAKTI: cujo reconhecimento nacional e internacional reflete a maturidade que o grupo atingiu a partir da construção de “Metade Deus. Metade Diabo. Na exata e mineira medida, como é novos instrumentos musicais acústicos: a vida. Num único espaço e tempo estão juntos porque necessa- riamente diferentes e necessários um ao outro: não há vida sem “Anos atrás, quando encontrei o UAKTI pela primeira vez, vi em morte, prazer sem dor, sim sem não, princípio sem fim, agudo sem sua música e performance algo único e uma bela contribuição ao grave, veloz sem lento, grande sem pequeno. Deus sem Diabo. Tudo novo e experimental no mundo da música. Me tornei, desde então, é metade e o contrário da outra parte, diferente para fazer a uni- amigo de todos eles; especialmente tornei-me um admirador da dade do que é contrário. Foi escutando o Uakti que aprendi o que extraordinária capacidade de Marco Antônio no que diz respeito sempre me recusei a aceitar: que todo diferente é, no fundo, parte ao ouvir e compor. Fiquei muito feliz, quando, anos mais tarde, eles de um mesmo igual. ‘Yin’ e ‘Yang’. Deus e o Diabo, num empate me propuseram um trabalho em parceria. Seria a partitura de um aceito pelos dois, eis o mistério. Negado em todas as partes, mas balé, composto para a companhia de dança ‘Grupo Corpo’, de sua não em Minas Gerais, onde o empate é reconhecido no “se”, no cidade, Belo Horizonte. Este CD representa uma verdadeira integra- “talvez”, no “não sei se sim ou se não”, na indefinição que define ção entre a minha música e a sensibilidade deles. Para mim, é um todo o saber e fazer. Em Minas o normal é o empate. O desempate deleite e um enorme prazer ouvir o resultado final” (GLASS, 1999). é puramente provisório. Minas Gerais, um estado particular e úni- co do Brasil. Central, no meio de tudo, com extremos, mas sem se Se a primeira fase do grupo, durante a década de 1980, foi definir. Um lugar onde a vida e a morte conversam todo o tempo sem se despedir. Terra de Milton Nascimento, de João Guimarães caracterizada por um empenho no sentido da consolidação Rosa e do Uakti, sem mar, mas com imensidão. Terra onde a li- do UAKTI como um grupo musical, poderíamos dizer que a berdade foi esquartejada na Inconfidência Mineira de Tiradentes segunda fase, durante a década de 1990, foi marcada por no século 18, mas permanece de corpo inteiro. O lugar onde a uma atuação mais voltada para sua inserção no cenário liberdade dura ainda que tardia. Enfim, o mistério. Foi lá que nas- ceu o Uakti e só poderia ser. Quatro anjos vertidos em demônios internacional da música. Já na terceira fase, adentrando o entraram na música e fizeram uma grande filosofia pela via das século XXI, pode-se perceber um enfoque maior do grupo notas, do estalo, do contraste, do espanto, da doçura e da violência em atuar, de forma mais abrangente, no seu próprio país. sem limites do som que ultrapassa todas as barreiras. Transcende- Comprova isto o fato de que, somente no período entre ram o tempo e o espaço, rescreveram Einstein por cima de toda relatividade. Foram tão acima de tudo que tiveram que inventar os anos de 2000 e 2004, foram realizados 146 concertos até os instrumentos. E inventaram como Deus fez no começo e o e 57 workshops no Brasil e apenas 13 apresentações e Diabo ajudou. Deus inventou a humanidade, o Uakti inventou o 5 workshops no exterior. Em 2000, as apresentações do instrumento da música. Não se pode entender o Uakti sem se levar grupo tiveram seu repertório centrado, em grande parte, esse choque do totalmente Deus e totalmente Diabo, uma coisa que todo mineiro entende e aqueles que podem praticam. O fim nas músicas do CD Águas da Amazônia. Com a participa- do mundo está no começo e o Uakti é esse Verbo” (SOUSA, 1996). ção especial da pianista Regina Amaral8 e da percussio- nista Josefina Cerqueira,9 foram realizados concertos em Neste período, o trabalho musical do UAKTI foi reconheci- Florianópolis, Belo Horizonte, Ouro Preto, Tiradentes, São do, também, em âmbito nacional, pela conquista de duas Paulo, Campinas, Brasília, Salvador e Belém. Este trabalho importantes premiações: o Prêmio Ministério da Cultura, do UAKTI em parceria com Philip Glass teve uma excelente como melhor grupo de música instrumental de 1996 e o receptividade por parte da crítica especializada: Prêmio Santista, como melhor grupo de Música Popular Brasileira de 1997. Esse período caracterizou-se ainda “...’Águas da Amazônia’ teve suas faixas batizadas com nomes de afluentes do rio Amazonas, tema que, não só toca na questão eco- pela intensificação dos trabalhos do UAKTI em todo o lógica, como se afina perfeitamente com o jeito de o grupo fazer Brasil: as primeiras trilhas sonoras para longa-metragens: sua inclassificável música... o grupo consegue despertar ondas de Kenoma, de Eliane Café; Outras Estórias, de Pedro Bial; entusiasmos por onde passa e arranca os mais impressionantes , de Luís Fernando Carvalho; concertos e adjetivos. O próprio Philip Glas elogiou o resultado do CD, enquan- Lavoura Arcaica to um crítico da revista musical Bilboard afirmou que ´nunca a workshops em diversas cidades brasileiras e uma turnê música de Glass soou tão orgânica e sem afetação como tocada nacional do show Atracatraca, em parceria com o per- pelo Uakti.´” (NUNES, 2000) cussionista . Em 1999, o UAKTI gravou o seu décimo disco, intitulado Clássicos, que foi lançado No âmbito educacional, começa a se consolidar o traba- no primeiro semestre de 2001. O título se refere à reunião lho em parceria com o grupo Tabinha,10 integrado por 30 de arranjos de obras de compositores eruditos consagra- crianças e adolescentes carentes da cidade de Uberlândia, dos, cuja seleção, bem como a estética dos arranjos, não MG. De forma a valorizar a genuína cultura que o cerca, o

177 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

Tabinha executa ritmos remanescentes de festas populares “. . . esses meninos (do Uakti) fazem a música de Deus. Quem me e religiosas, tais como o congo, a folia de reis, o gatupé e mostrou um trabalho deles, pela primeira vez, foi o Orlando Mo- raes. Ele me falou que eu precisava ouvir. Sentia que aquilo era o moçambique. Além de apresentações na região de Uber- eu, meu espírito. Fiquei louca. Comprei todos os discos possíveis e lândia, o Tabinha se apresentou também em Portugal, no quando fui a Belo Horizonte, os conheci. São extraordinários. Fico Festival do Ritmo de Aveiro, em 2000. No final de 2001, a orgulhosíssima de abrir um disco com essa qualidade, com esses convite da Orquestra Experimental de Repertório (São Pau- instrumentos, sentidos. Tudo deles é da alma.” lo), o UAKTI teve várias de suas composições rearranjadas para orquestra sinfônica. Os arranjos das músicas Raça, Em junho de 2004, a convite do compositor norte ame- Música para um Templo Grego Antigo, Alnitak, Mapa, Mon- ricano Philip Glass, o UAKTI participou do Projeto Órion, tanha, Bolero e Parque das Emas foram escritos por André estreado em Atenas, Grécia, juntamente com seis artis- Mehmari11 e os arranjos das músicas Onze e Hai-Kai n.6 tas de diferentes nacionalidades: Mark Atkins (Austrália), foram escritos por Marco Antônio Guimarães. Posterior- Wu Man (China), Ashley MacIssac (Canadá), Foday Musa mente, este repertório foi reapresentado com as orques- Suso (África), Ravi Shankar – Gaurav (Índia) e Eleftheria tras Jazz Sinfônica (São Paulo), Sinfônica da Petrobrás (Rio Arvanitaki (Grécia), sempre acompanhados pela Philip 12 de Janeiro) e Orquestra Sinfônica de Minas Gerais. O ano Glass Ensemble (PGE). Com o apoio da UNESCO, o co- de 2002 foi marcado por um outro importante projeto de mitê organizador das Olimpíadas Culturais de Atenas de cunho artístico e social do UAKTI: a montagem e apresen- 2004 convidou Philip Glass para compor uma obra musical tação do espetáculo Dança das Marés. Terceiro trabalho do extensa, em torno de noventa minutos, que marcaria a coreógrafo com um grupo de adolescentes abertura daquele evento. Orion, nome dado à constela- do Complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, este ção de estrelas pelos gregos da antiguidade, foi também o espetáculo teve seu roteiro escrito pelo médico Dráuzio nome escolhido por Philip Glass para essa obra. Segundo Varella, que se baseou em depoimentos dos próprios jovens ele, “quando olhamos as estrelas ficamos sonhadores. E de integrantes do grupo. Em cena, além de dançar, os meni- cada país, você consegue ver Órion.” (PEIXOTO, 2004). No nos e meninas, moradores da favela da Maré, falavam de ano seguinte, em meados de 2005, as apresentações de questões que marcam a passagem da infância para a ado- Orion ocorreram em Nova Iorque, Chicago e Los Angeles lescência, da sexualidade, da violência e dos problemas que (EUA), e Melbourne, na Austrália, quando um CD duplo, eles enfrentam no seu dia-a-dia. Integrado por 69 adoles- incluindo toda a obra, foi lançado. Ao final de 2004, com centes entre 11 e 20 anos, os jovens dançarinos tiveram vistas à documentação da história do grupo, foi lançado o uma carga horária bastante intensa de ensaios, visando à livro Uakti: um estudo sobre a construção de novos instru- montagem de um espetáculo com as exigências de uma mentos musicais acústicos, de autoria do flautista Artur obra coreográfica de nível profissional. Para este espetá- ANDRÉS RIBEIRO (2004), um dos co-autores do presente culo, Marco Antônio Guimarães compôs uma trilha sonora artigo. Este lançamento, patrocinado pela SEB – Southern que, além de incluir temas escritos especialmente sobre Eletric Brasil, baseou-se integralmente na tese de Douto- coreografias previamente criadas por Bertazzo, previa a rado homônima, defendida em 2000, na Escola de Música performance ao vivo do UAKTI. Além desses novos temas, da UFMG. O livro se divide em três partes principais. A algumas faixas do CD Clássicos foram incluídas no espe- primeira traz a trajetória histórica do grupo até 2004. A táculo. O espetáculo teve 28 apresentações na cidade do segunda parte do livro discute a construção de novos ins- Rio de Janeiro e 17 na capital paulista. No ano de 2003, o trumentos musicais acústicos, os processos de idealização UAKTI realizou uma série de oficinas dentro do Circuito Te- e construção de novos instrumentos musicais acústicos e lemig Celular de Cultura, em Belo Horizonte e em cidades o sistema integrado de elementos que permitiu a experi- do interior de Minas (Montes Claros, Varginha, Governador ência continuada do grupo UAKTI em seus mais de três Valadares, São Sebastião do Paraíso e Divinópolis). Foram décadas de trabalho ininterrupto. Na terceira parte, o livro realizados também concertos em Brasília, São Paulo, Santo apresenta um catálogo completo, descritivo e ilustrado, André e Rio de Janeiro. Este foi também o ano do show de de cada um dos setenta instrumentos criados por Marco lançamento do CD Clássicos, gravado alguns anos antes e Antônio. O Ex.1 mostra alguns desses instrumentos. já descrito anteriormente. Segundo o crítico musical João PAULO (2003), do jornal O Estado de Minas, o CD Clássicos Para o UAKTI, 2005 foi marcado pelo lançamento do CD Oiapok-Xui, que se baseou, fundamentalmente, em rit- “... é um disco marcante. Músicas conhecidas se tornam novas. mos e temas da música popular brasileira. Por outro lado, Instrumentação original alimenta nossa memória dos sons. Além o trabalho de oficinas musicais e workshops foi bastante do apenas belo, o Uakti anuncia seu diálogo dos tempos...” intensificado, envolvendo projetos de inserção social com jovens em situação de vulnerabilidade social, tanto em Ainda em 2003, o UAKTI participou da gravação do Belo Horizonte, quanto em cidades do interior do es- disco Brasileirinho, da cantora Maria Bethânia. A fai- tado de Minas Gerais, principalmente na região do Vale xa de abertura do CD, Salve as Folhas, teve arranjo de do Jequitinhonha. Em 2006, dando sequência ao trabalho Marco Antônio Guimarães. Os instrumentos do UAKTI iniciado em 2001, várias obras do grupo UAKTI , incluindo que acompanham a cantora nesta faixa são Torre, Chori sete arranjos escritos por André Mehmari, foram apre- Smetano,Tubo percutido, Planetário, Marimba de Vidro, sentadas com Orquestra Experimental de Repertório. Já o Marimba D´Angelim e Violão com Arco. A cantora falou CD Águas da Amazônia foi integralmente reorquestrado do grupo ao repórter Milton LUIZ (2003): para ser realizado com Banda Sinfônica do Estado de São

178 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

Paulo. As apresentações ocorreram no teatro São Pedro 30 anos de uma história contínua, dedicada à performan- em São Paulo, em outubro de 2006, com reapresentações ce e projetos educacionais voltados para a formação de no Teatro Cultura Artística, em março do ano seguinte. professores. Foram realizadas apresentações em várias Em meados de 2007, juntamente com a Orquestra Sinfô- capitais de cidades do interior do país assim como uma nica de Minas Gerais, os sete arranjos de Mehmari foram apresentação em Turim, na Itália, a convite da Secretaria reapresentados no Grande Teatro do Palácio das Artes, em de Estado da Cultura de Minas Gerais. Belo Horizonte, incluindo desta vez um arranjo orquestral de Artur Andrés para a música Arrumação do compositor Uma série de questionamentos e mudanças começou a baiano Elomar Figueiras. Ao final desse ano, a convite da ocorrer dentro do grupo em 2009, devido ao prenúncio da Orquestra de Câmera do Sesiminas, de Belo Horizonte, interrupção das atividades do Marco Antonio Guimarães em formação para cordas, piano e instrumentos originais como luthier e compositor do UAKTI. Artur Andrés, pri- do grupo, foram apresentadas obras e arranjos de Artur meiro co-autor do presente artigo, relatou ao jornal Esta- Andrés (Mapa, Alnitak, Turning Point, Trilogia para Krish- do de Minas: “Se por um lado [isto] gera insegurança, por na, Arrumação e Música para um Templo Grego Antigo), outro lado traz desafios e desperta potenciais criativos” Paulo Santos (Forró de Iarra) e Marco Antônio Guimarães (REIS, 2009). Por exemplo, para o novo CD do UAKTI, ain- (Maculelê de Marimba). Ainda em 2007, houve o lança- da a ser gravado e que deverá ser intitulado Em família, mento do primeiro DVD do grupo, intitulado simplesmen- todos os demais membros do UAKTI deverão se desdobrar te UAKTI e gravado no Grande Teatro do Palácio das Artes, como compositores e arranjadores. Este trabalho, que sob a direção do video-maker Éder Santos. As imagens terá obras encomendadas ao francês Philippe Kadosch e em movimento dos instrumentos registram pela primei- os brasileiros André Mehmari, Kristoff Silva e Alexandre ra vez, as diferentes técnicas e práticas de performance Andrés, incluirá uma participação bastante expressiva da em diversos dos novos instrumentos acústicos criados por voz humana, possivelmente da cantora paulista Mônica Marco Antônio Guimarães. Em 2008, o UAKTI completou Salmaso e seu marido, o flautista e saxofonista Teco Car-

Ex.1 – Uma das salas da oficina doUAKTI com alguns dos novos instrumentos criados por Marco Antônio Guimarães (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.121)

179 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

doso. O ambiente familiar do disco deverá se ampliado por ocasião da turnê de lançamento do CD: Regina Ama- ral (piano) e Alexandre Andrés (flautas, violão); Daniela Ramos (percussão) e Josefina Cerqueira (percussão).

Em 2010, além da gravação e turnê de um novo CD, o grupo deverá retomar o trabalho em conjunto com Philip Glass, na turnê Orion, pelo México e EUA. Numa parceria com a empresa de projetos culturais Bureau Santa Rosa, o UAKTI projeta a construção de sua sede em Belo Horizon- te, que será chamada de Centro de Referencia Uakti. REIS (2009) comenta sobre a futura sede, que além de salas de estudo de exposições, terá um teatro para 300 pessoas interligado a um estúdio de gravação:

“O prédio, de dois andares, a ser construído num terreno cercado de mata nativa na região da Pampulha, segue à risca a inspiração da lenda amazônica que batizou o grupo... Inspirado nela, o proje- to do Instituto, dos arquitetos Mariza Hardi e Fernando Maculan, cria espaços vazados, repletos de paredes de vidros e aberturas, capazes de integrar a natureza do entorno”.

6 – UAKTI: três décadas de novos instrumen- tos musicais acústicos Nos últimos trinta anos, Marco Antônio Guimarães tem construído novos instrumentos musicais em todas as cin- co categorias propostas por Hornbostel e Sachs. Ex.3 - Grande Pan: exemplo de aerofone de percussão Entre os aerofones do UAKTI , que podem ser de sopro criado por Marco Antônio Guimarães para o ou de percussão, estão o Borel, o Cachimbo, as Flautas Grupo UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.180) brancas, as Flautas Uakti I e II (veja Ex.2), o Taquará, o Trombone de chaves, o Trompetim, os Tubos soprados I e osTubos soprados II, o Grande Pan (veja Ex.3), o Pan Incli- nado, os Pius-pi e o Tri-Lá. Entre os idiofones do UAKTI estão a Caixa de madeira, a Centrífuga, as Figuras geométricas, o Garrafão, as La- tinhas, a Manfra, a Marimba D’Angelim, a Marimba de vidro (veja Ex.4), a Panela de alumínio com varetas de aço, o Panelário, a Peça de caminhão, o Tambor d’água, o Tampanário e os Tubos com joelhos de 90º .

Entre os membranofones do UAKTI estão os Tambo- res acoplados, os Tambores condensadores, a Trilobita (veja Ex.5) e os Tubos com latas de alumínio. Um tipo especial de membranofone é o mirliton, cuja membra- na tem a função de modificar um som originalmente produzido de outra forma. O Bocal chinês é o único instrumento do UAKTI que se enquadra nessa categoria e sua membrana é ativada pelo sopro ou pelo canto executados contra ela. Um caso especial, discutido an- tes nesse artigo, é o Aqualung (veja Ex.6), considerado membranofone por utilizar como membrana a superfí- cie da água.

Entre os cordofones do UAKTI estão o Chori Smeta- no, o Chorinho, o Colibri, a Flor, o GIG (veja Ex.7), a Iarragunga, o Peixe e o Planetário. Entre os cordofo- nes que têm cordas percutidas estão o Berimbau com Ex.2 - Flautas Uakti I e II : exemplos de aerofones de chave e o Jaburu. sopro criados por Marco Antônio Guimarães para o Grupo UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.176)

180 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

Os instrumentos eletromecânicos do UAKTI se dividem 7 – Conclusão em quatro categorias. Primeiro, aqueles que possuem A história do UAKTI se confunde com a história de vida de corda e são tocados mecanicamente, mas são inter- Marco Antônio Guimarães, que foi o idealizador do grupo rompidos ou selecionados pelos dedos do instrumen- e tem sido, ao longo de mais de três décadas, o projetista tista: a Roda e a Torre (veja Ex.8). Na segunda catego- e construtor dos novos instrumentos acústicos, o com- ria, em que o instrumentista meramente seleciona o positor de obras para estes instrumentos. Suas principais cilindro ou o rolo que determina a tonalidade a ser to- influências estão ligadas aos professores da Escola de cada, estão o Nastaré, o Toca-discos com braço central Música da UFBA Ernst Widmer e Walter Smetak, espe- e os Violões giratórios. Na terceira categoria, em que o cialmente este último pelo seu ecletismo e originalidade funcionamento dos instrumentos mecânicos depende em abordar a música de forma não tradicional. de corrente elétrica, estão o Ion e o Ventilador manual. Na quarta categoria, estão os instrumentos cujo som é Diferentemente da maioria das tentativas anteriores à sua produzido por procedimentos acústicos, tais como uso criação no cenário brasileiro ou internacional, o UAKTI se de cordas ou palhetas e então, amplificados ou modi- mostrou ser viável como um dos raros grupos que cria ins- ficados eletricamente. Entre eles estão a Cítara, o Sino trumentos musicais novos, compõe música para os mesmos de alumínio, o Sino elétrico, o Sino de madeira, a Tabla e as apresenta regularmente para um público em concertos elétrica e o Tatu. e CDs, o que realimenta este processo integrado.

Para fotos, utilização discográfica, história da criação, A perspectiva educacional do UAKTI é também uma fa- descrições detalhadas da forma, dimensões e princípios ceta importante do grupo e ultrapassa os limites entre a de funcionamento de todos os instrumentos do UAKTI, música popular e a música erudita, entre a música brasi- veja ANDRÉS RIBEIRO (2004). leira e a música universal.

Ex.4 – Marimbas de vidro: exemplos de idiofones criado por Marco Antônio Guimarães para o Grupo UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.190)

181 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

Ex.5 - Trilobita: exemplo de membranofone de percus- são criado por Marco Antônio Guimarães para o Grupo UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.200) Ex.6 - Aqualung: exemplo de membranofone de água criado por Marco Antônio Guimarães para o Grupo UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.196)

Ex.7: Gig: exemplo de cordofone criado por Marco An- Ex.8 - Torre: exemplo de instrumento eletromecânico tônio Guimarães para o Grupo UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, criado por Marco Antônio Guimarães para o Grupo 2004, p.207) UAKTI (ANDRÉS RIBEIRO, 2004, p.223)

182 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

Referências de livros ANDRÉS RIBEIRO, Artur. Uakti: um estudo sobre a construção de novos instrumentos musicais acústicos. Prefácio de Fausto Borém. Belo Horizonte, C/Arte, 2004. CAMÊU, Helza. Introdução ao Estudo da Música Indígena Brasileira. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura e Depar- tamento de Assuntos Culturais, 1977.p.263. LIMA, Paulo. Ernst Widmer e o ensino de composição musical na Bahia. Salvador: Fazultura/COPENE, 1999. SACS, Curt. Historia universal de los instrumentos musicales. Buenos Aires: Ediciones Centurion, 1947. p.456. SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. p.1048. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Editora Schwarcz, 1999. p.283.

Referências de jornais e periódicos ASI en cronica. Milton Nascimento, Cada vez mas brasileño. ASI en Cronica, Buenos Aires, 05/04/1981. p.15. (Tradução do autor) ÁVILA, Carlos. Todos os sons de Marco Antônio Guimarães e sua oficina instrumental UAKTI. O Estado de Minas, Belo Horizonte, 04/07/1981. Capa Segundo Caderno. CARVALHO, Ilmar. A nova música brasileira feita com tubos de PVC. Cia. Hansen Industrial, Joinville, Dezembro de 1981. CICCACIO, Ana Maria. A arte de criar instrumentos. O Estado de São Paulo, São Paulo, 1, fevereiro, 1978. GUIMARÃES, Marco Antônio. Todos os sons de Marco Antônio Guimarães e sua oficina instrumental UAKTI. Entrevista a Carlos Ávila, O Estado de Minas, Belo Horizonte, 4, julho, 1981. Capa Segundo Caderno. GUIMARÃES, Marco Antônio. A nova música brasileira feita com tubos de PVC. Entrevista a Ilmar Carvalho, Cia. Hansen Industrial, Joinville, dezembro, 1981. ______. Oficina Instrumental Uakti – O “design” espontâneo. Entrevista a Marcelo de Resende, Belo Horizonte, Revista Pampulha, dezembro, 1983.p.12-15. ______. Minas não trabalha em silêncio. Entrevista a Ricardo Rodrigues, Manchete, Rio de Janeiro, março, 1989. p.74-77. ______. Guru da world music vive no mato. Entrevista a Jotabê Medeiros, O Estado de São Paulo, São Paulo, 11, setembro, 1994. Capa Caderno 2. ______. Villa-Lobos na batida de uma nota só. Entrevista a Vitória Neves, O Tempo, Belo Horizonte, 11, maio, 1997. Magazine, p.6. ______. Uakti promove aula/show no Instituto Itaú. Entrevista a Jotabê Medeiros, O Estado de São Paulo, São Paulo, 11, julho, 1997. Caderno 2, D2. ______. Uakti comemora 20 anos com CDs e prêmio. Entrevista a do Vale. O Tempo, Belo Horizonte, 27, agosto, 1997. Magazine, p.04. KOELLREUTTER, Hans-Joachim. Sobre o valor e o desvalor da obra de arte. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da USP, Setembro-Dezembro, 1999. p.276. LANA, Fabiano. Oficina sonora em formato de CD. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7, dezembro,1996. Caderno B, p.2. LUTZEMBERGER, José. Gaia. Análise & Conjuntura. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1990. MILLARCH, Aramis. A água, o vento e a natureza na música de Smetak, Uakti e Falcão. Estado do Paraná, Curitiba, 1981. NASCIMENTO, Milton. Milton Nascimento, Cada vez mas brasileño. ASI en Cronica, Buenos Aires, 5, abril, 1981. p.15. ______. Milton: A força de um som novo para a música de todo o mundo. Entrevista a Zuza Homem de Melo, O Estado de São Paulo, São Paulo, 7, novembro, 1985. LUIZ, Milton. No tabuleiro de Bethânia tem... O Tempo, Belo Horizonte, 24, setembro, 2003. NUNES, João. O som original do Uakti. Diário do Povo, Campinas, 10, agosto, 2000. PAULO, João. Música absoluta. O Estado de Minas, Belo Horizonte, 28, outubro, 2003. PEIXOTO, Mariana. Música de invenção. O Estado de Minas, Belo Horizonte, 24, março, 2004. REIS, Sérgio Rodrigues. Uakti trilha novos caminhos. O Estado de Minas, Belo Horizonte, 13/12/2009.

Referência de site SMETAK, Walter. 2010). Walter Smetak. Site oficial. www.waltersmetak.com/index/acervo.php (Acesso em 1 de março, 2010).

Referências de discos GLASS, Philip. Águas da Amazônia. Nova Iorque: POINT-Music, 1999. Texto do encarte, (Trad. Francisca Andrés). SOUSA, Herbert de. 21. São Paulo, Brasil: Paradoxx, 1997.

183 ANDRÉS, A.; BORÉM, F. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.170-184.

Referência de entrevista GUIMARÃES, Marco. Entrevista de Marco Antônio Guimarães ao autor. Belo Horizonte, 15, setembro, 1999. Vide anexos tese de doutorado nas UFMG.

Notas 1 O austríaco Eric von Hornbostel dedicou-se à psicologia experimental e à musicologia, dirigindo o Phonogram-Archiv de Berlim entre 1906 e 1933. Demitido em 1933, emigrou para Nova Iorque e, em seguida, para Londres. Foi um pioneiro na aplicação de conceitos de fisiologia, psicologia e acústica a culturas musicais não-europeias e, com isso, fundamental na criação da musicologia comparada. Entre suas muitas publicações inclui-se a classificação padrão dos instrumentos juntamente com Curt Sachs em 1914. 2 Musicólogo alemão, Curt Sachs estudou história da música e história da arte em Berlim e, somente a partir de 1909, dedicou-se à música, tornando- se diretor da Staatliche Instrumentensammlung, destacada coleção de instrumentos musicais, tendo ensinado na universidade e em outros centros de música. Privado de todas as suas funções acadêmicas em 1933, emigrou para Paris e, em 1937, para os EUA, onde ensinou nas universidades de Nova Iorque e Columbia. Foi um dos fundadores da moderna organologia, tendo também escrito um dicionário bastante abrangente e uma história referencial dos instrumentos musicais. Interessou-se pela música não-ocidental, o que o levou a tornar-se um dos pioneiros da etnomusicologia. Escreveu também sobre a música do mundo antigo, ritmo e andamento, e sobre a relação entre a música e as outras artes. 3 A Sociedade Brasileira de Eubiose, que foi fundada em Niterói (RJ), em 1924, com o nome de Sociedade Teosófica Brasileira e recebeu seu nome atual em 1969, é uma sociedade espiritualista, constituída de livres-pensadores, cujo objetivo é o desenvolvimento cultural da humanidade. 4 Gaia, que significa planeta Terra, originou-se entre os antigos gregos e designava uma deusa grega. Ahipótese Gaia, em que trata-se de um ser vivo e não apenas meio para outras vidas, foi formulada pelo biólogo inglês James Lovelock e apresentada no seu livro Gaia: a new look at life on earth (Oxford University Press, 1982). 5 Além do disco Sentinela, o UAKTI participou dos seguintes trabalhos de Milton Nascimento: Caçador de Mim (Ariola-1981), nas faixas: De magia, dança e pés e Coração civil; Ânima (Ariola, 1982), na faixa Ânima; Encontros e Despedidas (Barclay, 1985), nas faixas Lágrima do Sul e Portal da cor; nas faixas Dança dos meninos e Carta à República (Yauaretê (CBS, 1987). 6 Durante o mês de julho de 1986, a convite do Ministério da Cultura Espanhol, o UAKTI participou de uma turnê de oito shows pela Espanha, ao lado de Milton Nascimento e da cantora catalã Maria Del Mar Bonet. 7 Uakti-Oficina Instrumental (Ariola, 1981), Uakti II (Ariola-Barclay, 1982) e Tudo e Todas as coisas, (Polygram, 1984). 8 Regina Amaral, Mestre em Música pela Escola de Música de Karlsruhe (Alemanha), foi professora de Piano e Música de Câmera da Escola de Música da UFMG. Recitalista e camerista, integra o Duo (flauta e piano) com Artur Andrés, com quem gravou seis discos:Encontro Barroco I (independente, 1984) e Encontro Barroco II (independente 1985); Duo (Sonhos e Sons 1999), Cantos e ritmos do Oriente (Sonhos e Sons 2001), Música dos Sayyids e dos Derviishes (Sonhos e Sons 2002) e Hinos, preces e ritos (Sonhos e Sons 2004). Gravou também um CD solo, “Klavinedotas”, com obras inéditas do compositor Arthur Bosmans (Sonhos e Sons, 2002). 9 Josefina Cerqueira estudou percussão na Fundação de Educação Artística (Belo Horizonte) com Décio Ramos e Paulo Santos em 1987. Dedica-se à luteria, tendo se especializado na construção de marimbas de vidro. Atualmente, toca com o Uakti e trabalha na manutenção dos seus instrumentos. 10 O grupo Tabinha, formado em 1998 em Uberlândia, tinha como propósito inicial, constituir a bateria-mirim da Escola de Samba Tabajaras do Patri- mônio, bairro histórico daquela cidade e berço da congada e folia de reis, em que a tradição musical tem sido passada de geração em geração. 11 André Mehmari, compositor, arranjador e multinstrumentista, nasceu em Niterói (RJ), é considerado pela crítica especializada um dos grandes ex- poentes da nova geração de músicos brasileiros. 12 A Philip Glass Ensemble (P.G.E.) é um grupo formado por onze instrumentistas, que acompanha Philip Glass há mais de três décadas. Inclui em sua formação, teclados eletrônicos, voz, sopros e percussão, sob a regência do maestro Michael Riesman.

Artur Andrés é membro do UAKTI desde sua criação, com o qual já gravou mais de 10 CDs e recebeu diversos prêmios. Doutor em Música pela Escola de Música da UFMG, onde ensina flauta, foi flautista da Orquestra Sinfônica do Estado de Minas Gerais de 1980 a 1986. Como solista tem se apresentado em importantes teatros do Brasil e do exterior e atuado ao lado de músicos como Milton Nascimento, Paul Simon, The Manhattan Transfer, Philip Glass, , Maria Bethânia, Caetano Veloso, José Miguel Wisnik, Skank, Zélia Duncan e Grupo Corpo. Com a pianista Regina Stela Amaral, forma um duo de flauta e piano desde 1978.

Fausto Borém é Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análi- se, musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Maurício Tizumba e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazil- ian Music for the Double Bass, o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier).

184 ROCHA, M. A. R. Leituras sobre música, as palavras e a voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.185-187.

PEGA NA CHALEIRA - RESENHAS

Leituras sobre música, as palavras e a voz

Maurilio Andrade Rocha (UFMG, Escola de Belas-Artes, Belo Horizonte, MG) [email protected]

Resenha do livro CLAYTON, Martin (Ed.). Music, Words and Voice: A Reader. Manchester and New York: Manchester University Press, 2008. 313p. US$ 26 nos EUA; R$ 60,63 no Brasil. Palavras-chave: canto; voz; fala e música; texto e música; etnomusicologia; sociologia da música.

Music, words and voice: a reader

Review of the book CLAYTON, Martin (Ed.). Music, Words and Voice: A Reader. Manchester and New York: Manches- ter University Press, 2008. 313p. US$ 26 nos EUA; R$ 60,63 no Brasil.

Keywords: singing; voice; speech and music; text and music; ethnomusicology; sociology of music.

A coletânea Music, Words and Voice: A Reader, editada Na primeira parte do livro, denominada de Words and em 2008 por Martin Clayton, foi inicialmente idealizada Music, o editor reúne sete trabalhos que discutem as para servir de fonte bibliográfica para os alunos do se- diferenças entre a fala e a canção e que questionam a minário Words and Music, oferecido pelo editor na Open origem da música e as formas como ela se relaciona com University. Assim, o livro reúne trinta e seis textos bas- a linguagem. O primeiro texto da seção foi extraído do tante diversificados, apresentados de forma parcial ou Essay on the origin of languages de Jean-Jacques Rous- na íntegra e organizados em cinco partes que abordam seau, onde encontramos sua teoria a respeito de uma as relações entre a voz, as palavras e a música dentro de origem comum para a fala e a música. Segundo o autor, variados gêneros musicais e contextos culturais. O vo- música e fala teriam emergido juntas no nascimento lume apresenta diversas transcrições de exemplos mu- da sociedade e, somente algum tempo depois, teriam sicais, fragmentos de letras de canções, índice remissivo se separado em modos verbais e musicais de comuni- e pode ser adquirido pela internet por cerca de £12.00. cação. Jaques Derrida se contrapõe ao ponto de vista

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 03/11/2009 - Aprovado em: 22/06/2010 185 ROCHA, M. A. R. Leituras sobre música, as palavras e a voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.185-187.

de Rousseau, defendendo que a fala e o canto nunca A quarta parte, Song and ritual, reúne sete trabalhos que estiveram realmente juntos, mas sim, em constante pro- focam na canção em contextos de performances rituais cesso de diferenciação desde o início da humanidade. sagradas ou profanas e na adaptação ou representação O texto seguinte, de Charles Myers, também discute a encenada de rituais em performances musicais. O artigo origem da música e sua raiz comum à fala dentro da de Palmer e Patten descreve e situa canções do gênero evolução humana. Geoge List, através do uso de um es- Wassails, utilizadas no contexto de remanescentes ri- pectrógrafo, buscou categorizar a grande diversidade de tuais de inverno no distrito de Somerset, Inglaterra. O formas vocais encontradas ao redor do mundo; o frag- fragmento do trabalho de Frank Howes aborda o gênero mento extraído do trabalho de Richard Wagner aborda de canção Carols cujos textos parecem sofrer marcada paradoxos nas relações entre a poesia e a música; e o influência da música gospel. Robert Hayburn discute a artigo de David Hughes apresenta o uso de sistemas de relação entre letra e música ao abordar o uso de textos sílabas para transmitir intervalos melódicos no processo sagrados na forma vernácula na música religiosa católi- de ensino da flauta noh japonesa. Finalmente, o traba- ca do século quatorze. Marina Roseman discute o papel lho de George Herzog discute o uso de tambores como curativo das canções em rituais do povo Temiar da Ma- imitação da fala em uma tribo africana. lásia. Naquele contexto, as canções atuam como pontes de ligação entre doentes e seus guias espirituais em di- Na segunda parte, Song, text and voice, encontramos reção à cura. Elizabeth Tolbert descreve o lamento, ao sete trabalhos que consideram as relações de com- mesmo tempo espontâneo e estilizado, dos refugiados plementaridade entre texto e voz na canção e entre o soviéticos da região de Karelia, no sudeste da Finlândia. significado das palavras e os outros aspectos do canto. Os artigos de Richard Taruskin e de Pieter van der Toorn O texto de Simon Frith aborda as várias vozes que se analisam um tradicional ritual russo de casamento e seu encontram na canção e as relações de identidade en- uso por Stravinsky na preparação de sua peça de balé tre o próprio e o outro daí decorrentes. Steven Feld Les Noces. A discussão sobre a música em contextos ri- e seus colaboradores discutem o jogo entre o sentido tuais ganha nova dimensão ao analisar-se sua apropria- do texto e os recursos vocais utilizados por um cantor ção em uma performance encenada. norte-americano de música country. Roland Barthes apresenta a música como uma forma de linguagem A quinta e última parte, Words music and narrative, reúne e discute a musicalidade de textos transformados em oito trabalhos que consideram as relações entre palavras canção. Tim Riley analisa a canção Hey Jude, dos Bea- e música na construção de narrativas. O texto gerado a tles, seu processo de composição e os significados de partir de uma entrevista realizada com Mauro Geraci des- sua parte final, desprovida de palavras. Virginia Daniel- creve a arte dos “cantadores” de histórias (storytellers) si- son analisa as relações entre texto e qualidade vocal cilianos que usam canções e palavras para contar histórias em uma performance do Alcorão islâmico. Sheila Dhar com temas antigos e contemporâneos. Nesse tipo de arte, e Peter Manuel analisam a voz dentro da canção india- a música presente no acompanhamento da guitarra apre- na Thumri, destacando aspectos de sua relação com o senta-se como suporte para o desenvolvimento da história erótico e com o desejo. contada. Edward Cone desvenda as várias vozes, literais e metafóricas, presentes na ópera ocidental, partindo dos A terceira parte, Song performance and society, apre- cantores, englobando as linhas instrumentais e chegando senta seis escritos que consideram o canto enquanto até a voz do compositor. Carolyn Abbate analisa as narrati- performance e dentro de seu contexto social. Viktor vas musicais do século dezenove com foco no papel da voz Zuckerkandl discute o significado do lugar social da na ária Bell Song da ópera Lakmé, de Léo Delibes. Gordon canção, onde a voz do indivíduo passa a representar Williams apresenta os processos de trabalho na criação de a voz de um grupo e a funcionar como um importan- uma cantata, descrevendo as relações de parceria entre o te fator de identidade. O trabalho de Hiromi Sakata compositor e o libretista e discute a pertinência de se ana- aborda aspectos do público e do privado e suas re- lisar os textos de tais obras fora de seu contexto musical. lações com questões sobre o gênero, dentro da per- A entrevista realizada com o compositor de canções para formance do lullaby no Afeganistão. Susan McClary a Broadway, Stephen Sondheim, apresenta aspectos de sua aborda questões sobre raça, classe social e gênero em técnica composicional e de sua visão sobre as diferenças seu estudo de caso sobre a ópera Carmen, de Georges entre a ópera e o teatro musical. O letrista de canções para Bizet. Richard Middleton discute o blues como forma musicais da década de 1940 na Broadway, Oscar Hammers- de expressão não somente dos africanos-americanos, tein, discute sua prática na criação de letras, com enfoque mas também dos brancos norte-americanos. Christo- para aspectos como rima, ritmo e fonética. Os excertos da pher Waterman descreve a juju music da Nigéria e as novela autobiográfica de Amit Chaudhuri traz um pouco funções sociais de sua execução ao vivo. Robert Walser de sua experiência adquirida em sessões de música na Ín- discute o papel das palavras e dos aspectos musicais dia e de sua relação com a voz dentro de canções indianas. na transmissão das mensagens políticas do grupo rap Encerra a seção e o volume, um extrato do livro No Cami- Public Enemy. Finalmente, Jan Bolwell analisa a intera- nho de Swann, onde Marcel Proust descreve a experiência ção entre gestos e linguagem na transmissão da men- de seu protagonista ao ouvir uma sonata composta pelo sagem das canções interpretadas por Keri Kaa. compositor fictício Vinteuil.

186 ROCHA, M. A. R. Leituras sobre música, as palavras e a voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.185-187.

A antologia reúne desde trabalhos escritos no século de- alizar adequadamente as proposições geradas pelo traba- zoito até textos inéditos, elaborados especialmente para lho desenvolvido. Nesse sentido, a intervenção presencial o livro. Por se tratar de uma coleção de textos utilizados do professor parece ser fundamental para suprir lacunas para um seminário de pós-graduação, alguns trabalhos deixadas pela forçosa redução de alguns textos. Ainda são apresentados no volume em excertos bastante redu- assim, a significativa diversidade dos trabalhos, aliada ao zidos, o que pode dificultar a compreensão mais ampla do abrangente período temporal em que foram escritos, nos pensamento dos autores. Um exemplo disso é o fragmen- oferece uma interessante visão do pensamento existente to do texto Working-class ‘country’, assinado por Steven sobre o tema e faz da coletânea um rico material para o Feld e colaboradores. Nesse caso específico, o texto me- aprofundamento da discussão sobre as interações entre rece ser lido na íntegra, ou melhor, talvez apenas com o as palavras, a voz e a música. livro Real Country de Aaron Fox, o leitor poderá contextu-

Maurilio Andrade Rocha é Professor da Escola de Belas Artes da UFMG onde ministra disciplinas relacionadas à música e à voz no teatro. Integra o grupo de pesquisa NACE (Núcleo de Pesquisa Transdisciplinar em Artes Cênicas) e é Doutor Colaborador do INET-MD (Instituto de Etnomusicologia – Música e Dança) da Universidade Nova de Lisboa. Suas inves- tigações e publicações têm se concentrado nas ligações entre a música popular, o teatro e a sociedade.

187 GOMES, R. C. S. Num velho exemplo, diferentes maneiras de fazer musicologia... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.188-190.

Num velho exemplo, diferentes maneiras de fazer musicologia: uma resenha do livro César Guerra-Peixe: Estudos de Folclore e Música Popular Urbana

Rodrigo Cantos Savelli Gomes (UDESC, Florianópolis, SC) [email protected]

Resenha do livro ARAÚJO, Samuel (org.) César Guerra-Peixe: Estudos de folclore e música popular urbana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007. 277p. R$40,00. Palavras-chave: Guerra-Peixe; musicologia brasileira; estudos musicológicos; música folclórica brasileira.

In an old example, different ways of doing musicology: a review of the book César Guerra- Peixe: Estudos de Folclore e Música Popular Urbana

Review of the book ARAÚJO, Samuel (org.) César Guerra-Peixe: Estudos de folclore e música popular urbana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007. 277p. R$40,00. Keywords: Guerra-Peixe; Brazilian musicology; musicology studies, Brazilian folkloric music.

Guerra-Peixe foi amplamente reconhecido como um ilus- Há não muito tempo atrás, o trabalho musicológico no tre compositor que com maestria, à moda nacionalista Brasil tendia a ser algo absorvente e pouco gratificante. de sua época, soube mesclar a estética clássica europeia A área carecia de profissionais qualificados, na melhor com a cultura popular e folclórica brasileira, como fize- das hipóteses os musicólogos costumavam ser “profes- ram Villa-Lobos, Guarnieri, Mignone, entre tantos. Bem sores de música, instrumentistas ou regentes que se menos conhecida, no entanto, foi sua produção como dedica[vam] aos estudos musicológicos nas horas livres pesquisador musicólogo, resgatada e sistematizada no e de modo pouco articulado com suas atividades prin- livro Estudos de folclore e música popular urbana. cipais” (NEVES, 1999, p.181). Além de poucos recursos para pesquisas, dificilmente musicólogos podiam ver Classificado modestamente como organizador, Samuel editados os resultados de seus trabalhos, fazendo com Araújo se lançou nessa aventura histórico-musicológica, que grande parte da sua possível produção não chegasse vasculhando acervos, bibliotecas, arquivos, depósitos, onde a completar seu próprio ciclo, não alçando, assim, sua se deparou com manuscritos, transcrições musicais nunca forma final (NEVES, 1999). O trabalho de Samuel Araú- antes publicadas, para dar forma a algo até então inédito em jo vem, portanto, atender a demanda brasileira, a qual nosso país: uma coletânea com a vasta produção musico- carece de levantamentos sistemáticos na área de mú- lógica de Guerra-Peixe, disseminada até então em diversos sica tradicional, folclórica e popular, de coleções e do- meios de difícil acesso. Tratava-se, pois, de uma produção cumentações etnográficas que possam contribuir para praticamente desconhecida pela musicologia brasileira, cuja uma avaliação mais exata da diversidade das culturas forma final foi esboçada por Guerra-Peixe antes de sua mor- musicais brasileiras num período onde estudos costu- te, mas só definitivamente finalizada nesta publicação. mavam ser escassos e esparsos.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 05/10/2009 - Aprovado em: 22/06/2010 188 GOMES, R. C. S. Num velho exemplo, diferentes maneiras de fazer musicologia... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.188-190.

Diferente, de certo modo, do grupo de “musicólogos nas za-de-defunto, sustentado por longas cantorias à capela. horas livres”, Guerra-Peixe teve a astúcia de integrar suas Na segunda seção – um compêndio de Artigos para jor- pesquisas à sua atividade principal como compositor e nais diários diversos¸ dirigidos a públicos distintos e com arranjador, como é o caso de inúmeras de composições teor e enfoques próprios em cada um deles – é possível inspiradas no material de campo coletado, por exemplo: encontrar, além de textos descritivos ao estilo folclorista, Inúbia do Cabocolinho (1956), Prelúdios Tropicais (1979), abordagens que se aproximam à musicologia comparati- No Estilo da Folia de Reis (1984), entre tantas. Recolher va. Nelas o autor procura identificar unidades de modo a elementos das culturas populares como forma de criar um reconhecer características próprias de determinadas prá- “grande banco ou reservatório do qual se deveria extrair ticas musicais, apontando para possíveis generalizações, elementos que revitalizassem a arte ‘elevada’ ou ‘erudi- como é o caso dos textos intitulados: Escalas musicais do ta’” (ARAÚJO, 2007, p.17) era uma prática comum entre folclore brasileiro, A execução do pandeiro no Brasil e Em os compositores da época. O diferencial de Guerra-Peixe, termos de Música Paulista. Na mesma seção são apresen- no entanto, foi o tratamento dado ao material coletado tados estudos que enfocam questões relativas à estética que, embora pouco valorizado pela academia brasileira, a musical, onde autor comenta sobre a origem de deter- qual por décadas privilegiou a música europeia em detri- minados gêneros musicais, processos de hibridização e mento da cultura local (BÉHAGUE, 1999), foi sistematiza- questões relativas à massificação do gosto, em especial a do e publicado pelo compositor em diversos meios. hegemonia do gosto carioca no território brasileiro: Va- riações sobre o Baião, Variações sobre o maxixe e A prová- Entre os 44 artigos e 4 esboços, a obra instiga ao menos vel próxima decadência do frevo. duas leituras: a de um documento histórico da diversidade cultural brasileira em meados do século XX, ao apresen- A última parte apresenta uma série publicada ao longo tar uma imensa quantidade de instrumentos, vestimentas, do ano de 1952 em uma coluna do Jornal Diário de Per- apetrechos, danças, repertórios, grupos musicais, fatos e nambuco. A série consiste em um levantamento de obras rituais, descritos e transcritos detalhadamente pelo com- e compositores pernambucanos dos últimos cem anos, positor; a de um documento da prática musicológica bra- resultado de uma sondagem realizada em acervos de lo- sileira, ao ilustrar diferentes abordagens para o tratamen- jas musicais da região especializadas em venda e registro to de questões de interesse musicológico, empregadas por de partituras. O autor depara-se aqui com um objeto de Guerra-Peixe nos diversos contextos abordados. estudo próximo à sua realidade artístico-profissional, ou seja, obras de compositores de seu meio social que, assim Na primeira parte do livro, onde estão reunidos os artigos como ele, transitaram entre a estética clássica europeia e publicados na Revista Brasileira de Folclore, Guerra-Peixe a música popular brasileira. Trabalhando com algo de seu segue uma abordagem descritiva predominante dos estu- meio e tempo próximo, Guerra-Peixe se posiciona como dos de folclore, possivelmente inspirado pela linha edito- um severo crítico de arte, ao molde jornalístico opinativo. rial da própria revista. Aqui o autor busca privilegiar “uma Além de revelar a público uma lista imensa de musicistas descrição objetiva dos diversos elementos constituintes de e peças esquecidas pelo tempo, o autor traz pequenos determinado sistema musical, isto é, instrumentos mu- comentários analíticos onde avalia as obras e os com- sicais, sistemas tonais, formas musicais, escalas, ritmo, positores de acordo a complexidade técnica e o estilo metro, harmonia, polifonia, etc, visando uma taxonomia estético-ideológico empregados nas respectivas compo- do vasto material utilizado, do que procurar estabelecer sições. Nacionalista ferrenho, Guerra-Peixe é implacável significados ou funções da música” (LAVIGNE, 2000, p.40). com os puristas da estética europeia e com aqueles que É uma abordagem se aproxima ao que IKEDA (1998) clas- considera de pouca habilidade técnico-musical. sificaria como musicografia “ou seja, trabalhos apenas de descrição do objeto estudado ou coleções de músicas e Assim, ao longo dos diversos artigos presentes nesta co- documentos de interesse musical, que propriamente de letânea, é possível observar Guerra-Peixe lançando mão musicologia, a qual exige análise, interpretação e compre- de diferentes abordagem (folclorista, etnomusicológica, ensão dos fatos” (IKEDA, 1998, p.64). Encontram-se aqui musicológica, jornalística), adaptando-se de acordo com descrições bastante detalhadas de manifestações como, o meio de publicação e o público alvo. Uma prática hoje por exemplo, dos grupos carnavalescos conhecidos como pouco comum. Atualmente, musicólogos costumam res- Cabocolinhos do Recife; das orquestras populares nordes- tringir a publicação de suas pesquisas a revistas cada vez tinas, chamadas de Zabumba ou Banda de Pife, entre ou- mais especializadas, de pouco conhecimento público, em tros nomes; e o rito de preparação para a morte daqueles linguagem rebuscada, raramente, por exemplo, divulga- que estão agonizando, popularmente conhecido como Re- das em revistas e jornais de ampla circulação.

189 GOMES, R. C. S. Num velho exemplo, diferentes maneiras de fazer musicologia... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.188-190.

Referências bibliográficas: ARAÚJO, Samuel (org.) César Guerra-Peixe: Estudos de folclore e música popular urbana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007. BÉHAGUE, Claude. A Etnomusicologia na América Latina. In: SIMPÓSIO DE MUSICOLOGIA II. Anais. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1999, p.41-70. IKEDA, Alberto T. Musicologia ou Musicografia?: algumas reflexões sobre a pesquisa em música. In: SIMPÓSIO DE MU- SICOLOGIA I. Anais. Mesa Redonda II: Perspectivas da Pesquisa Musicológica na América Latina (do séc. XVI ao XX). Curitiba. Fundação Cultural de Curitiba, 1998, p.63-68. LAVIGNE, Marcos Antônio. Folclore, música folclórica e música popular. In:Seminário Folclore e Cultura Popular: as várias faces de um debate. 2 ed. Rio de Janeiro: Funarte, Cnfp, 2000, p.39-43. NEVES, José Maria. Alguns problemas da Musicologia na América Latina. In: SIMPÓSIO DE MUSICOLOGIA II. Anais. Curi- tiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1999, p.175-189.

Rodrigo Cantos Savelli Gomes é mestrando em Música (Musicologia-Etnomusicologia) na Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC) e bolsista do Programa Pós-Graduação CNPq/UDESC. Graduado pelo Curso de Licenciatura em Música na mesma instituição, onde foi por três anos bolsista de iniciação científica. Suas últimas pesquisas enfocaram as relações de gênero na música brasileira, em especial no samba, rock, hip-hop e na música negra. Em 2008 recebeu o 3º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero e foi condecorado com menção honrosa no ano consecutivo.

190 MOREIRA, G. F. O livro Cavalo-marinho pernambucano de John Patrick Murphy. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.191-195.

O livro Cavalo-marinho pernambucano de John Patrick Murphy

Gabriel Ferrão Moreira (UDESC, Florianópolis, SC) [email protected]

Resenha do livro MURPHY, John Patrick. Cavalo-marinho pernambucano. Tradução de André Curiati – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, 159p. R$ 33,00 Palavras-chave: etnomusicologia, antropologia da performance musical, música folclórica brasileira, cavalo-marinho.

The book Cavalo-marinho pernambucano by John Patrick Murphy

Review of the book MURPHY, John Patrick. Cavalo-marinho pernambucano. Tradução de André Curiati – Belo Hori- zonte: Editora UFMG, 2008, 159p. R$ 33,00 Keywords: ethnomusicology, anthropology of music performance, Brazilian folkloric music, cavalo-marinho.

O livro Cavalo-marinho pernambucano é uma etnografia - da descrição de apresentações rurais e urbanas; musical da prática do Cavalo-Marinho – uma variação re- - da análise dos processos musicais e da continuidade gional dos tradicionais folguedos do Bumba-meu-boi, em histórica que liga o cavalo-marinho Pernambuco – escrita, primeiramente como tese de douto- - estudado a outras tradições de performance mais rado, pelo etnomusicólogo americano John Patrick Murphy disseminadas no Nordeste brasileiro; fruto das suas observações nos anos de 1990 e 1991. Ori- - da interpretação do cavalo-marinho como meio de ginalmente uma tese de doutorado, o texto foi traduzido acesso à visão moral de seus participantes. pelo pesquisador em Etnomusicologia e mestre em linguís- tica pela USP, André Curiati. O trabalho procura estabe- Acerca da teoria e metodologia desse trabalho, o autor lecer uma relação entre as transformações nessa prática afirma que se baseia em três pressupostos: cultural e as transformações nas relações de trabalho dos participantes (trabalhadores da cana-de-açúcar). - a música é um elemento básico na cultura e a pes- quisa de música pode revelar diversos elementos Está dividido em 5 capítulos os quais tratam, respec- sobre a cultura em que está integrada. tivamente: - a música codifica sentidos através dos sons e pode fun- cionar como um canal independente de comunicação, - do contexto social da encenação do cavalo-marinho aprofundando a textura de uma encenação dramática; e a história de vida de mestres brincantes: - o contexto de uma apresentação musical é um ce- - da contextualização do drama em termos de gênero nário estrategicamente importante para se estudar e sumariza seu conteúdo musical e textual; processos musicais.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.23, 195 p., jan. - jul., 2011 Recebido em: 17/10/2009 - Aprovado em: 22/06/2010 191 MOREIRA, G. F. O livro Cavalo-marinho pernambucano de John Patrick Murphy. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.191-195.

Através da observação dessas prerrogativas teóricas, possam ser assumidas. No fim do capítulo, Murphy relata Murphy desenvolveu perguntas de pesquisa – e ações no as diversas maneiras – e as circunstâncias - pelas quais trabalho de campo – que procuravam entender a ligação um grupo de cavalo-marinho pode ser formado. entre essa performance musical e os valores e visão de mundo de seus participantes, para compreender, assim, o No início do segundo capítulo – Cavalo-marinho: Gênero significado dessa prática para eles. e seu conteúdo - Murphy usa a categoria “Danças Dra- máticas” - termo criado por Mário de Andrade – enqua- A etnografia musical é utilizada como ferramenta de ob- drando o cavalo-marinho como uma manifestação cultu- servação na pesquisa narrada no livro. O autor vê, des- ral dessa espécie. De fato, para o autor, o cavalo-marinho sa forma, a música mais como prática cultural e crê que se designa como um reisado, uma brincadeira que que para ter essa visão do fenômeno deve considerar também tem uma diversidade de cenas e personagens, algumas sua estrutura apresentada em eventos concretos e seu vezes aleatórios – onde não se perceber sua necessidade contexto histórico e social. para o desenvolvimento do roteiro principal da história - os quais se encerram sempre com o bumba-meu-boi. Murphy se preocupa em contextualizar geografi- A partir dessa explanação inicial, o autor trabalha cada camente e historicamente a região na qual ocorre o uma das três categorias especificamente; os Reisados, o cavalo-marinho, a zona da mata em Pernambuco, nar- Bumba-meu-boi e o Cavalo-Marinho. rando a transição do sistema açucareiro do modelo de engenho para o engenho central e, finalmente, as Reisado se refere a adaptações dramático-coreográficas usinas, e procurará demonstrar como a mudança nas de romances e cantigas populares. “Bumba-meu-boi é relações de trabalho nesse sistema afetou a prática do a designação padrão para danças dramáticas que têm cavalo-marinho em Pernambuco. como elemento central a morte e ressurreição de um boi” (p.53). Murphy afirma que segundo Cascudo “bumba é No final do livro há um glossário onde os termos regionais uma interjeição, zás, dando impressão de impacto, pan- utilizados – nome de instrumentos, gêneros musicais, etc. cada, golpe. Bumba significa ‘bate, bate com chifre, meu – são explicados com maior detalhe. Há também um site boi’” (p.53). Existem diferentes versões de bumba-meu- onde o autor coloca informações adicionais, áudio e víde- boi nas regiões do país. os relacionados ao cavalo-marinho.1 “Cavalo-Marinho é a versão regional do boi de terreiro No primeiro capítulo, O contexto social da representação que é exclusiva da Zona da Mata Norte de Pernambuco do Cavalo-marinho, Murphy explicita as diversas dimen- e Paraíba” (p.53). Essa dança dramática tem esse nome sões constituintes do contexto que envolve a concepção e específico, pois não usa a Zabumba – referência instru- execução do Cavalo Marinho. Ele discorre acerca das rela- mental ao nome Bumba-meu-boi – então o nome da ções de trabalho, demonstrando que a grande maioria dos brincadeira foi mudado para outro personagem impor- brincantes2 obtém seu sustento das atividades relaciona- tante, o cavalo-marinho. das ao cultivo e processamento de cana-de-açúcar. Fala acerca das condições de vida simples da grande maioria Murphy mostra duas hipóteses para a adoção do nome dos brincantes e da religiosidade que eles possuem – um cavalo-marinho. Uma hipótese é que o cavalo-marinho catolicismo popular embebido em uma crença em feitiça- seria um cavalo importado do além-mar, Portugal. Em ria e pequenos focos de religiões afro-brasileiras. várias versões da brincadeira aparece a frase “Cavalo- Marinho dança muito bem” dando apoio a essa hipóte- As relações entre patrões e empregados desses enge- se, de que se refere à presença de um animal de qua- nhos na Zona da Mata Norte são consideradas dados lidade superior. importantes pela relação que será estabelecida entre essa dinâmica de trabalho e as representações de algu- A outra hipótese é que Marinho venha do sobrenome de mas personagens do cavalo-marinho. Questões relativas um grande Capitão da Capitania Hereditária da época ao baixo nível de instrução dos moradores da Zona da colonial na região. O nome da brincadeira não possui ne- Mata Norte (educação e alfabetização) e os altos índices nhuma relação com o animal cavalo-marinho (p.54). de violência dessa região também são apontados nesse capítulo para a constituição completa do cenário onde a Nessa seção do capítulo o autor se dedica à diferenciar o brincadeira surge e é executada. bumba-meu-boi do cavalo-marinho através das diferen- ças de instrumentação e entre algumas cenas entre os Murphy relata a história de vida de dois mestres do ca- dramas, como, por exemplo, o uso da rabeca no cavalo- valo-marinho pernambucano, Mestre Salustiano e Mestre marinho e sua ausência no bumba-meu-boi. Batista, além de outros mestres menos famosos. O autor discorre sobre a organização social do grupo de brincadei- Murphy cita Mário de Andrade, Borba Filho e Araújo ra, falando dos diversos papéis dos participantes na orga- como as fontes bibliográficas que se completaram para nização e representação da brincadeira. Discorre, também, o seu conhecimento do Cavalo-Marinho anterior à pes- sobre as competências necessárias para que tais funções quisa. O autor considerava necessário inserir uma versão

192 MOREIRA, G. F. O livro Cavalo-marinho pernambucano de John Patrick Murphy. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.191-195.

do que seu informante considerava como apresentação maioria dos brincantes dos sítios para as cidades. En- integral do cavalo-marinho, uma vez que cada apresen- tretanto, os informantes afirmavam que o sítio era o tação era particular, contendo cenas diferentes ou ex- lugar ideal para a execução do cavalo-marinho, onde cluindo algumas outras. ele era conhecido e respeitado, sem as restrições das autoridades municipais. A versão do Mestre Salustiano consistia em três partes, descritas com muito detalhamento no livro (p.56-60). As brincadeiras de rua se aproximam desse ideal, onde os A primeira parte é caracterizada pelo embate entre os brincantes – geralmente os trabalhadores do cultivo de vaqueiros e o Capitão pela posse do engenho. Após a cana, que agora moram na cidade – acordam com donos de vitória do Capitão sobre os vaqueiros, esses se tornam bares o valor pago ao grupo que representará a brincadeira. seus servos e irão mediar suas relações com os outros personagens restantes. De fato, o resto da brincadeira é Nas apresentações de festa, os grupos são contratados a festa do Capitão. para celebrações comunitárias dedicadas aos santos pa- droeiros. Já as apresentações urbanas são feitas em nú- Na segunda parte um grande número de personagens mero reduzido de locais e são financiadas pela Prefeitura contracenam com o Capitão com o intuito de negociar, Municipal de Recife. Nessas apresentações organizadas mostrar um problema a ser solucionado ou narrar uma o cavalo-marinho é tratado como folclore – fetichizada odisseia pessoal. No livro, Murphy cita detalhadamente como uma prática cultural ancestral preservada, e não cada personagem que aparece nessa parte (p.57). como nos engenhos - algo pertencente aqueles que a ‘performam’ viva dentro do sistema cultural atual que Na terceira parte, os personagens individuais se tornam mais eles vivem. No final do capítulo Murphy afirma que o ca- agitados conforme se aproxima a chegada do Boi. Nesse epi- valo-marinho não é brincado no carnaval, onde o Bumba- sódio, o Boi avança sobre os brincantes e a plateia, até que o meu-boi é executado. vaqueiro Mateus o mata. Depois do funeral do Boi, o médico é chamado para curá-lo. O Boi revive e dança outra vez. No capítulo quarto - Processos musicais e continuida- de histórica - o autor explicita a importância da música Após a sinopse da brincadeira, Murphy comenta acer- como elemento sustentador da prática do cavalo mari- ca do conjunto musical do cavalo-marinho. O conjunto nho. Também ressalta a importância da música de dança musical é formado por um vocalista principal, um ou (música que acompanha a dança das personagens) como mais vocalistas de apoio, rabeca, pandeiro, bage3, canzá elemento de contraste entre as partes faladas. Na página ou reco-reco e ganzá. O autor dedicará grande parte do 106 é apresentada uma tabela que organiza os eventos presente capítulo para uma descrição bastante detalhada da cena do Soldado – uma das cenas do cavalo-marinho sobre os instrumentos, principalmente a rabeca, sobre a - entre música e diálogo, demonstrando a importância da qual também se preocupa em falar sobre seus fabricantes alternância entre essas duas linguagens. A música tem o e especificações da construção do instrumento. papel de, na alternância com o texto, estruturar o tempo da performance e preservar a atenção dos ouvintes, bem Depois dessa descrição detalhada dos instrumentos, di- como conservar a energia dos brincantes. versos exemplos musicais são mostrados onde os pa- drões executados por cada instrumento e cantos do to- Após ressaltar a importância da música para o andamen- adeiro (cantor principal) são escritos. Murphy considera to da brincadeira, Murphy descreve a continuidade his- que a riqueza dos textos falados no cavalo-marinho de- tórica do cavalo-marinho e as mudanças que ocorreram manda um estudo à parte e, no fim desse capítulo, tam- na sua prática no decorrer da história da Zona da Mata bém há uma seção onde partes dos textos falados são Norte. Ele declara que muitas cenas que foram incluídas apresentadas, separados por gêneros, estilos, estratégias ou excluídas da representação refletem mudanças políti- de texto e meios de transmissão. cas e sociais (criação da CLT, mudança para a cidade, sur- gimento da televisão, mudanças no processo de produção No terceiro capítulo intitulado Cavalo-marinho brincando, o do açúcar) que interferiram na relação patrão-empregado autor descreve os diversos contextos onde o cavalo-marinho e também na concepção da mulher. é apresentado e as particularidades das apresentações nesses diversos ambientes: apresentações rurais, brincadeiras de rua, O autor mostra a continuidade das tradições do cavalo- apresentações de festa, apresentações urbanas. marinho através da demonstração das semelhanças entre o cavalo-marinho atual e as versões mais antigas copi- Nas apresentações rurais, se joga4 em três lugares especí- ladas em diversos livros que utilizou como base para a ficos: (1) na rua, em pequenas cidades independentemente análise da continuidade e mudança no gênero. de festas de santos padroeiros, (2) na rua, como parte de festas de santos padroeiros ou (3) em engenhos ou sítios. Ainda nesse capítulo, Murphy descreve as particularida- des do Bumba-meu-boi em Pernambuco (uma vez que, Murphy comenta que são raras as apresentações em como já dito anteriormente, há várias versões do bumba- sítios e engenhos, pela mudança de residência da meu-boi em diversos estados brasileiros).

193 MOREIRA, G. F. O livro Cavalo-marinho pernambucano de John Patrick Murphy. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.191-195.

No capítulo final, Uma interpretação do cavalo-marinho A edição do livro Cavalo-marinho Pernambucano é uma como visão moral, devoção religiosa popular e arte cômi- iniciativa bastante válida da etnomusicologia brasileira. ca, Murphy revela sua percepção acerca do cavalo-mari- Muito embora seja uma tradução de uma obra americana, nho como representação de uma visão moral e devoção sua edição por uma editora brasileira é uma iniciativa lou- religiosa próprias dos camponeses, bem como um produto vável. Entretanto, faltam imagens que seriam essenciais concebido como artístico. para a descrição dos instrumentos, indumentária e rostos dos informantes principais como Salustiano e Batista. Ele reitera que para se entender esses significados é imprescindível ter em mente o contexto no qual se de- Pelo fato de ser uma obra escrita originalmente para leitores senvolve a brincadeira, de trabalhadores da cana de estrangeiros, relata bastantes coisas que para um ‘nativo’ – açúcar recentemente proletarizados, e dedicará um tó- no caso um brasileiro – são conhecidas de antemão – como pico do capítulo para o entendimento desse fenômeno. a composição dos instrumentos musicais - tornando a leitu- Após o esclarecimento desse contexto ele comenta a ra do livro - em algumas dessas seções - um pouco tediosa. visão moral contida dentro da representação. A cena da disputa entre o capitão e os vaqueiros pela posse Murphy fez uma extensa pesquisa acerca do cavalo-mari- da terra demonstra a punição merecida dos vaqueiros nho e sua pesquisa bibliográfica o dotou de um vasto co- por desobedecerem ao Capitão, e não é uma crítica à nhecimento do status da brincadeira em outros tempos, atitude enérgica do capitão; é uma visão de respeito à o que propiciou sua análise das mudanças e continuida- autoridade patronal. des presentes nas brincadeiras que observou e na prática narrada pelo seu informante principal, Mestre Salustiano. Murphy admite que inicialmente percebeu o cavalo- marinho como uma crítica ferrenha ao ‘patronato’, mas Contudo, a maneira pela qual ele organiza as informações logo compreendeu que a crítica era aos maus patrões e em seu livro dificulta um entendimento amplo da brin- maus empregados, e exaltação daqueles que ocupavam cadeira, na medida em que ao trabalhar com o contexto de maneira honesta e justa seus papéis dentro desse sis- social da representação do cavalo-marinho – no primeiro tema. Também se percebe o fundo de devoção religiosa capítulo – ele cita cenas e personagens da brincadeira do bumba-meu-boi, a temática da morte e ressurreição quando essa só será explicada no segundo capítulo. do Boi, e a ligação desses com o suprimento das necessi- dades mais básicas daquelas pessoas. Por fim, o título da obra em inglês Performing( a moral vision) o forte conteúdo etnográfico e a conclusão da No fim do capítulo o autor demonstra que a interpretação obra sendo a interpretação do cavalo-marinho em ter- mais recorrente do cavalo-marinho por seus brincantes é mos antropológicos – como antropologia da performance de arte cômica, onde o humor é valorizado e necessário – entendo que a obra situa-se dentro da Antropologia da para a existência da brincadeira. Música, onde a música serve como elemento aglutinador de valores morais, éticos e religiosos daqueles que a exe- Ele também afirma que, apesar da existência desses cutam (musica inserida dentro da cultura - numa visão elementos morais e religiosos no cavalo-marinho, não semelhante à MERRIAM (1964), muito embora haja bas- há garantia de que todos seus participantes estejam de tante transcrições musicais e informações sobre instru- acordo com essas representações, sendo que muitos deles mentos, não são elaboradas interpretações musicológicas permanecem na superfície da brincadeira onde os ele- dessas estruturas musicais) de forma diferente da etno- mentos artísticos e cômicos são melhor percebidos. De musicologia mais voltada para a interpretação dos signos fato, o cavalo-marinho deve ser percebido nessa sua mul- musicais para o entendimento de como se processam e se tiplicidade na possibilidade de interpretação e impacto desenvolvem dentro de uma cultura particular – também artístico e, como diz Murphy na página 138, “talvez seja tendendo para uma interpretação do ‘humano’ por detrás por isso que permanece como uma tradição viável”. desses signos musicais (BLACKING,1973).

194 MOREIRA, G. F. O livro Cavalo-marinho pernambucano de John Patrick Murphy. Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.191-195.

Referências BLACKING, John. How musical is man? Seatle: University of Washinghton Press, 1973. MURPHY,Jonh Patrick. Cavalo-marinho pernambucano. Tradução de André Curiati – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, 159p. MERRIAM, Alan. The anthropology of music. Evanston: Northwestern University Press, 1964.

Notas 1 web3.unt.edu/murphy/brazil. 2 Categoria nativa que se refere aos participantes do Cavalo-marinho. 3 “A bage é um pedaço de taboca sem nó, de 45-50 cm por 8,5 cm da extensão da taboca. Esta superfície serrilhada é friccionada com um bastãozinho de perfil triangular (p.68). 4 Categoria nativa que significa participar do cavalo-marinho.

Gabriel Ferrão Moreira é Mestrando em Música – linha de pesquisa Musicologia-Etnomusicologia pela Universidade do Estado de Santa Catarina - possui graduação em Licenciatura em Música pela mesma universidade (2008). Atualmente pesquisa as representações musicais de brasilidade na obra de Heitor Villa-Lobos, orientado pelo Prof.Dr. Acácio Tadeu de Piedade Camargo. Nessa mesma pesquisa procura orientar-se também, pela disciplina História, onde pôde apresentar seu trabalho no XXV Simpósio Nacional de História na Universidade Federal do Ceará, em 2009. Também trabalha com proje- tos musicais e organização de eventos musicais na Comunidade Batista de Ingleses, Florianópolis – SC. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Música, atuando principalmente nos seguintes temas: composição, música erudita, musica popular, clássico-romântico e educação musical. É bolsista do CNPQ/CAPES.

195