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PODER CENTRAL X JUSTIÇA COMUNITÁRIA: OBSERVAÇÕES SOBRE O SIS-TEMA PORTUGUÊS E SUA APLICAÇÃO NO MUNDO LUSÓFONO

CENTRAL POWER X COMMUNITARIAN JUSTICE: COMMENTS ON THE POR-TUGUESE SYSTEM AND ITS APPLICATION IN LUSITANIAN WORLD

Delton Ricardo Soares Meirelles

RESUMO Este artigo busca reconstruir a formação do aparelho judiciário de e sua herança para os paises colonizados. Em seguida, verifica em que medida houve continuidade ou ruptura no processo de independência das colônias para, ao final, analisar o caso brasileiro. A hipótese aqui apresentada é a de que o formalismo e o estatismo lusitanos contribuíram para a formação de estruturas judiciárias refratárias à participação popular, a despeito de tolerar algumas formas de justiça comunitária (porém não democráticas), o que não abreviou a corrente tensão entre centralização e poderes locais, presente ao longo da história do Império português. PALAVRAS-CHAVES: JUDICIÁRIO PORTUGUÊS – JUDICIÁRIO COLONIAL – INDEPENDÊNCIA.

ABSTRACT This article attempts to reconstruct the formation of the Judiciary of Portugal and its legacy for the colonized countries. After that, it verifies extent to which there was continuity or rupture in the process of independence of the colonies for, finally, analyzing the Brazilian case. The hypothesis presented here is that the formalism and statism Lusitanian contributed to the formation of refractory judicial structures for popular participation, despite tolerate some forms of community justice (but not democratic), which is not cut short the current tension between centralization and local authorities, present throughout the history of the . KEYWORDS: PORTUGUESE JUDICIARY - COLONIAL JUDICIARY - INDEPENDENCE.

Introdução

O panorama mundial merece ser contextualizado, para se melhor compreender os problemas do Judiciário brasileiro. Sendo a jurisdição atividade estatal, torna-se necessário abordar a construção de nosso Estado, a fim de verificar se reunimos algumas condições para a incorporação destas novas perspectivas sobre a Justiça contemporânea. Para tanto, parte-se inicialmente da observação de RAYMUNDO FAORO: “o pensamento político brasileiro, na sua origem, é o pensamento político português”[1], pois “o mundo colonial deveria ser, pelas normas absolutistas vigentes, uma cópia do mundo português”[2]. Esta advertência inspira a compreensão da questão judiciária brasileira a partir do método histórico-comparativo[3], mais adequado para a análise mais precisa de nossa cultura jurídica, especialmente no campo do direito processual, consoante leciona OVÍDIO BAPTISTA: (...)este é o ramo do direito mais comprometido com a história, uma vez que lhe cabe não apenas prescrever regras hipotéticas, como o faria o jurista do direito material, mas diretamente intervir nos conflitos sociais, impondo, aqui e agora, uma determinada regra de conduta[4].

Com efeito, a literatura nacional ainda recorre mais à comparação internacional do que às investigações genéticas de nosso direito, a despeito de todas as dificuldades metodológicas apontadas por referências teóricas como os trabalhos de MAURO CAPPELLETTI e RENÉ DAVID[5]. Além dos problemas conceituais, o crescente dinamismo[6] e complexidade das relações sócio-jurídicas, aliadas ao processo de globalização cada vez mais intenso, tornam extremamente árdua a tarefa de estabelecer critérios seguros de confronto entre sistemas alienígenas. Cuida-se de técnica assaz delicada, em que há o risco considerável de análise meramente superficial e formal, sem que efetivamente seja alcançado um objetivo que não ilustrativo ou pitoresco, quando não meramente contemplativo. Fora o “complexo de vira-lata” tão bem descrito por NELSON RODRIGUES, em que o brasileiro se coloca em posição de inferioridade em relação ao resto do mundo, inclusive o jurista que tende a culpar o povo pelo insucesso de institutos estrangeiros aqui aplicados. Como observa FÁBIO KONDER COMPARATO, “no afã de imitarmos os países tidos como modelares, voltamos as costas ao passado, que se nos afigura em geral vulgar e sem brilho, e não hesitamos em procurar colher os frutos antes de plantar as árvores”[7]. Neste trabalho, preferiu-se utilizar como parâmetro a influência do direito português no sistema jurídico de suas ex-colônias. A hipótese aqui apresentada é a de que o formalismo e o estatismo lusitanos contribuíram para a formação de estruturas judiciárias refratárias à participação popular, a despeito de tolerar algumas formas de justiça comunitária (porém não democráticas), o que não abreviou a corrente tensão entre centralização e poderes locais, presente ao longo da história do Império português. Questionar-se-á também como as colônias lusas se comportaram a partir de suas respectivas independências, verificando-se em que medida houve rupturas com o antigo sistema metropolitano.

I Portugal

Até o século XII, no atual território português conviviam comunidades políticas de diferentes origens étnicas (iberos, celtas, mouros, germânicos etc.). Depois de um longo processo, a assinatura do Tratado de Zamora (1143) conferiu independência ao Condado Portucalense (doravante Reino de Portugal), sob a regência de D. Afonso Henrique, primeiro da dinastia afonsina. Sua liderança política e militar foi fundamental pois,

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6127 This version of Total HTML Converter is unregistered.

diante das guerras externas de defesa do território, conquistou o apoio de diversas comunidades locais para seu projeto de unificação, por meio da cessão de suas prerrogativas militares, fiscais e “jurisdicionais” em favor do rei, escapando dos domínios de senhores feudais e Igreja[8]. Sobre a função “jurisdicional”, a atuação de D. Afonso Henrique e seu sucessor D. Sancho I foi decisiva para a progressiva substituição dos julgamentos comunitários pela autoridade imposta. Neste sentido, leciona JOSÉ MATTOSO: Só alguns membros da cúria régia, imbuídos das ideias jurídicas inspiradas no Direito Romano, atribuíam-lhe, desde a década de 1190, autoridade de verdadeiro rei, e não apenas de primus inter pares. Para isso contribuiu, por um lado, a concepção, já antiga, da realeza como autoridade responsável pela manutenção da justiça e da paz, acima da que os senhores e os concelhos[9] podiam assegurar, e o verdadeiro carisma de guerreiro que os eclesiásticos reconheciam em Afonso Henriques, e que seu filho Sancho I procurou também merecer.

Na segunda metade do século XIII houve progressiva centralização de poderes, especialmente durante os reinados de D. Afonso III (1248-1279) e D. Dinis (1279-1325)[10]. Não apenas nos campos político e administrativo, mas especialmente na reorganização do sistema de Justiça: criação de aparelho judicial capaz de assegurar a justiça sob o controle dos meirinhos-mores, mesmo contra os senhores (nobres ou eclesiásticos), instituição de corregedores para aperfeiçoarem o sistema judicial, organização do notariado, formação de um corpo de escrivães régios junto dos concelhos, controle das eleições dos magistrados municipais etc. Mas a centralização maior surge no século seguinte. Estando o rei afonsino D. Fernando (1345-1383) pendendo mais para a nobreza e aumento de seus privilégios (como a transferência involutiva de jurisdição para seus domínios), “o povo – a burguesia comercial – reclamava, nas Cortes (1372), contra a política retrógrada: queria que a ‘justiça não tivesse senhores’, que o monarca reservasse, para si, ‘a maior justiça’”[11]. Este momento foi decisivo para a construção daquilo que RAYMUNDO FAORO conceituará como “Estado patrimonial de estamento”, cuja “forma de domínio, ao contrário da dinâmica da sociedade de classes, se projeta de cima para baixo”[12]. Com a Revolução de 1383-1385 e a instauração da Casa de Avis, a burguesia se aproxima do poder, mas de uma forma bem diferente do que viria a acontecer na França de 1789. Observa FAORO que “há um rumor antiaristocrático na reorganização política e administrativa do reino, antiaristocrático com o sentido de oposição à nobreza territorial, sem caracterizar um movimento democrático”[13]. Assim, “burgueses e legistas velavam para que a monarquia, duramente construída, não se extraviasse numa confederação de magnatas territoriais, enriquecidos com as doações de terras, outorgadas para recompensar serviços e lealdades”[14]. Desta forma, o “absolutismo” português (termo rejeitado por FAORO, para quem este modelo não se adequa ao caso lusitano) surge como fruto de acordo político provocado pela burguesia, a qual se mostra mais favorável à concentração de poderes em um rei ao qual teriam um melhor acesso, tendo em vista que a agricultura não seria suficiente para sustentar economicamente o reino. Assim, este centralismo é “a pálida imagem de uma monarquia vergada debaixo da tarefa a que se propôs, no tour de force contra os meios de sua débil economia autônoma” [15]. Consequência deste processo é o enfraquecimento do direito consuetudinário local e o fortalecimento do direito escrito régio[16]. Significativa neste sentido foi a regência de D. Afonso V, em que houve um notável processo de compilação legislativa, resultando na primeira das Ordenações do reino português (1446)[17]. Com isto, buscou-se uniformizar e sistematizar o direito, de forma a reforçar a autoridade central e coibir eventuais interpretações abusivas pela nobreza. ANTÔNIO MANUEL HESPANHA, contrário ao pensamento predominante, afirma que a “ordem jurídica letrada não promovia tanto como se tem dito a concentração de poderes nas mãos do rei”[18]. Entre outros argumentos, defende a tese de que as Ordenações surgem mais como um instrumento de segurança jurídica do que controle estatal, nos seguintes termos: (...) até os finais do séc. XVII, elas não representam uma intenção de centralização do poder monárquico, inovando o direito por meio da lei régia, mas antes um desejo de corresponder aos pedidos dos povos de, pela redacção escrita, se tornar mais certo o direito consuetudinário tradicional. Neste sentido, este movimento de promoção da legislação real não significa ocaso do pluralismo medieval, que apenas ocorrerá, muito mais tarde, quando a lei reclamar o monopólio, ou uma eminência absoluta.[19]

O reinado de D. João II (1481 - 1495), conhecido como o Príncipe Perfeito, caracterizou-se pelo confronto ainda mais aberto com a nobreza, sufocando todas as tentativas de conspiração[20]. Esta política agradou aos procuradores dos concelhos que, conhecendo por certo já o perfil do novo monarca, e aproveitando-se da conjuntura favorável do início de um outro reinado, pediram, metódica e programadamente, reformas na justiça, na fazenda e na defesa. Queriam ver diminuídos os poderes jurisdicionais dos senhores e eliminadas as opressões que infligiam aos povos, como não menos pretendiam órgãos régios com funções rigorosamente definidas e oficiais competentes e zelosos, nunca não-cumpridores ou abusadores[21].

O tema da Justiça foi o principal das Cortes de Évora de 1490, foro político em que se observou a habilidade de D. João II. Como já havia expurgado os nobres que lhe faziam oposição, tornou-se mais fácil administrar as reivindicações daqueles que se mantiveram fiéis, sem ceder substancialmente sua autoridade. Após apresentar dados estatísticos sobre os pedidos formulados nas Cortes de Évora, a historiadora da Universidade de , MARIA HELENA DA CRUZ COELHO, assim analisa: O maior número de pedidos destina-se a precisar a eleição e as competências ou a morigerar abusos dos oficiais régios, sejam da justiça – desembargadores, corregedores, meirinhos da correição, oficiais da corte, juizes de fora, juizes dos resíduos e órfãos -, militares – anadel dos besteiros -, fiscais - siseiros das carnes, almotacé-mor, alcaides das sacas e portageiros -, ou da escrita - escrivães e tabeliães. E, curiosamente, todos os pedidos foram contemplados com deferimentos totais ou em parte e alguns sob condições. Certas questões de índole jurídica ou judicial se lhe juntaram, procurando os povos aliviar os gravames da complexidade judicial, mostrando-se o monarca aqui mais reservado, não querendo inovar, indeferindo ou sendo evasivo[22].

Coincidindo com a expansão marítima, no reinado de D. Manuel (1495-1521) houve profundo fortalecimento da Administração portuguesa, sendo relevante citar sucessivas reformas judiciárias[23] e as segundas Ordenações (1521). Estas vigoraram até a União Ibérica, ocasião em que o Rei Filipe II da Espanha assume o trono luso com o desaparecimento de D. Sebastião (1580), passando a ser conhecido

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como D. Felipe I de Portugal (1580-1598). Sua grande obra legislativa foram as Ordenações Filipinas, sancionadas em 1895 mas que somente entraram em vigor com a Lei de 11 de janeiro de 1603, já sob o reinado de seu filho Felipe II/Filipe III. No sistema colonial regulado pelas Ordenações, previa-se uma organização judiciária com divisão em instâncias[24]. Povoações com população entre vinte e cinquenta habitantes e que não constituíam um município dispunham do juiz de vintena, escolhido entre os moradores do lugar pela Câmara Municipal mais próxima. Municípios maiores possuíam juízes ordinários, eleitos pela sua própria Câmara[25]. Até mesmo pelo escasso número de bacharéis (pela ausência de ensino superior na colônia brasileira), estes juízes não eram letrados[26]. Em oposição aos juízes honorários eleitos pela comunidade colonial, as ordenações previam juízes de fora, letrados e de nomeação régia[27]. De uma forma geral, reconhece-se a oposição entre o juiz ordinário, eleito pelos homens-bons e legitimado comunitariamente[28], e o juiz de fora, representante da autoridade metropolitana[29]. Isto nada mais é do que o transplante do conflito político entre poder local e poder central para a produção do Direito, potencializado na transição entre a Idade Média e a formação dos Estados Absolutistas. Percebe-se, na literatura especializada, a tendência à revisão crítica da tradicional associação entre medievalismo e atraso, tida como uma das “Mitologias Jurídicas da Modernidade” pelo historiador PAOLO GROSSI[30], tendo em vista o caráter ideológico de tal assertiva, difundida para valorizar o perfil institucional desejado pelo Estado. Também se deteve no tema ANTÔNIO MANUEL HESPANHA, abordando a marginalização do “direito rústico”[31] pelo “direito erudito”, denuncia: o investimento na ideia de que o saber jurídico letrado (tal como é entendido nos meios eruditos da época medieval e moderna) é a única base legítima da justiça funciona como meio de expropriação dos poderes periféricos e é comparável a outras formas contemporâneas de centralização do poder[32].

A intenção governamental seria controlar a formação de um direito contrário que lhe fosse prejudicial, visto seu papel fiscalizador do cumprimento das normas jurídicas oficiais[33]. Além disso, reforçaria o domínio do poder central pois, como nota RAYMUNDO FAORO, “a introdução dos juízes de fora já havia aviltado a autoridade do juiz ordinário, filho da eleição popular”[34]. Contestando esta afirmação comum na literatura, HESPANHA apresenta os seguintes dados: Contrariamente a uma ideia corrente, as justiças de uma esmagadora maioria dos concelhos eram, ainda nos séculos XVII e XVIII, justiças honorárias. Nos meados do séc. XVII, havia 65 juizes de fora num total de mais de 850 concelhos, o que corresponde a dizer que apenas 8% das terras com jurisdição separada tinham justiças de carreira. Nos restantes concelhos existiam os dois juizes da Ordenação, não letrados e honorários. Durante a segunda metade do século XVIII, o número de juizes de fora aumenta, mas nunca ultrapassando a quota de 20%[35].

Assim, o historiador português problematiza a ideia corrente da efetividade do papel centralizador do juiz de fora. Concorda que o juiz de fora representava um elemento perturbador dos arranjos políticos locais. No entanto, além do fato da rede dos juízes de fora ter sido insuficiente para ter tamanho impacto centralizador, acresce o autor que mais do que longa do poder central, o juiz togado é um elemento de: enfraquecimento das estruturas locais que, se joga indirectamente a favor da coroa, reverte imediatamente a favor do fortalecimento da rede burocrática de que juízes de fora, corregedores e provedores fazem parte e que (...) filtra toda a comunicação entre o centro e a periferia[36]

Em sentido semelhante, a pesquisa de ARNO e MARIA JOSÉ WEHLING, ainda que assumidamente prejudicada pela escassez de fontes, mostra que “o juiz ordinário teve significativo papel na unidade político-administrativa e jurídica colonial, aplicando o direito português ao mesmo tempo que possuía, na maior parte das vezes, certa margem de atuação para fazer valer os interesses locais”[37]. Em outra passagem, assinalam que a historiografia, embora ainda com pequena sustentação empírica, vem demonstrando no caso do Brasil colonial é que nem sempre a bipolaridade centro x periferia ocorria conforme o desejado pela legislação, constatando-se a imersão de juízes de fora nas redes locais de poder[38].

Por fim, após apresentar alguns casos concretos de insubordinação e abuso de poder de magistrados, concluem que “as relações entre juizes de fora e autoridades [estavam] longe de ser tranquilas” [39]. Em fins do séc. XVIII, mudanças surgem no cenário político-jurídico português. Durante o reinado de D. José, seu Primeiro-Ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal) reestruturou por completo a administração regencial, empreendendo uma série de mudanças fundamentais, compreendendo RAYMUNDO FAORO que “a base das reformas pombalinas renovará o Estado, com a restauração da autoridade pública, fraca, corrupta e atrasada” [40]. Este projeto político, segundo ANTÔNIO MANUEL HESPANHA, “significou, no plano do imaginário e das estratégias de poder, a abertura – que depois continuará no liberalismo político – de estratégias de ‘racionalização’ e de disciplina da sociedade e de centralização e estadualização do poder”[41]. No campo jurídico, a Lei da Boa Razão (1769) formaliza o sistema jurídico, fixando normas sobre a aplicação dos costumes[42] e reduz o papel do direito canônico (enfraquecido após a ruptura das relações do Estado com a Igreja Católica), substituído por um direito civil laico inspirado no direito natural. Além disso, merecem lembrança a reformulação do direito penal e a reforma do ensino universitário. Após a morte de D. José e do Marquês de Pombal, o golpe fatal nos juízes ordinários foi dado com o Alvará de 28 de Janeiro de 1785. Por determinação da Rainha D. Maria I, os juizes locais perderam grande parte de sua autoridade, pois suas decisões deveriam ser despachadas pelos juizes de paz, restando-lhes apenas o papel de publicar as sentenças: Eu, a Rainha, faço saber aos que este Alvará com força de Lei virem: (...) que alguns Juizes pela Ordenação, nas Villas, que promiscuamente se subordinárão à inspecção de hum só Juiz de Fora, na ausencia deste, se oppunhão aos seus mandatos, livravão toda a qualidade de réos, sem appellação, nem aggravo, fosse roubo, traição, morte, ou outro qualquer delicto; razão, por que os Cartorios clamavão contra estes desacertos; os insensatos atrevião-se, e os Ministros sentião; E querendo Eu abolir absurdos tão perniciosos, conformando-me em tudo com os pareceres da sobredita Meza: Sou Servida declarar, e ordenar aos ditos respeitos o seguinte: (...) Que nas Villas, que promiscuamente se achão subordinadas á inspecção de hum só Juiz de Fóra, em quanto este existir, em qualquer dos lugares, ou Villas da sua jurisdicção, não possão os Juizes pela Ordenação despachar, nem

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6129 This version of Total HTML Converter is unregistered.

mandar despachar, os feitos por Assessores alguns, mas sim os remettão aos Juizes de Fóra a qualquer das Villas, em que existirem para os despacharem, os quaes depois de os terem despachados, os remetterão aos ditos Juizes pela Ordenação, para estes os publicarem na Audiencia que fizerem.

Por este sobrevoo na histórica política portuguesa, podem-se verificar sucessivas tensões entre a autoridade central régia e as composições locais fundadas nas práticas costumeiras. Entretanto, diversamente do que ocorreu em outros países, o Judiciário luso institucionalizou-se verticalmente, tendo as instituições judiciárias centrais sufocado as alternativas comunitárias, marcando a vitória do projeto autoritário. Neste sentido, apontam WEHLING & WEHLING: Para além da estrutura formal da justiça, seu traço invariável foi o de existir um esforço centralizador por parte da autoridade real, caracterizado pela adoção de uma legislação superveniente, de origem estatal, embora longe de possuir exclusividade como fonte do direito, aplicada pela magistratura e por um esboço de ministério público. A este esforço centrípeto na área da justiça, semelhante a outros ocorridos nas áreas fazendária, militar e eclesiástica, corresponderam reações centrífugas, algumas alicerçadas na tradição jurídica, outras em fatores novos, que dela se utilizaram ou que se valeram de instrumentos até então inexistentes. Este esforço centralizador, entretanto, não deve ser superestimado, pois o equilíbrio alcançado pelas monarquias nos séculos XVI e XVII somente seria rompido a favor do centro político com o chamado ‘despotismo esclarecido’, no qual efetivamente existe todo um esforço administrativo e legislativo a favor da centralização.[43]

Cumpre agora analisar o impacto deste modelo judiciário português em suas colônias, e em que medida foram preservadas algumas de suas instituições nos processos de emancipação.

II África[44]

No caso das ex-colônias africanas, as guerras de independência contribuíram para o desgaste e consequente queda do Estado autoritário português, sacramentada pela Revolução dos Cravos de 1974. Como este processo coincidiu com a Guerra Fria, a resistência africana contou com o apoio dos blocos capitalista e socialista, ambos interessados na ampliação territorial de alianças no continente. Tendo sido vitoriosos os movimentos apoiados pela URSS, os novos Estados acabaram por incorporar institutos do direito soviético[45], tais como os tribunais populares. A Constituição Soviética de 1977[46], em seu artigo 151, incluía os tribunais populares e locais como órgãos judiciários[47], compostos por juízes eleitos pelo povo[48] e que deveriam respeitar costumes locais como a língua[49]. Contudo, ao contrário do que havia em sociedades antigas, a constituição destes juízos não era feita espontaneamente pelo corpo social, e sim burocratizadas pela autoridade governamental. Neste sentido, FOUCAULT esclarece que justiça popular não é sinônimo de tribunal popular, criticando-o profundamente ao associá-lo ao aparelho de Estado[50]. Além disso, argumenta que muitas revoluções buscaram eliminar as instituições judiciárias para substituí-las por órgãos julgadores civis[51], como se vê nestas passagens de seu debate com militantes maoístas em 1971, diante da proposta de criação de tribunais populares para julgar a polícia: esta justiça deve ser o alvo da luta ideológica do proletariado e da plebe não proletária; por isso, as formas desta justiça devem ser objeto da maior desconfiança para o novo aparelho de Estado revolucionário. Há duas formas às quais este aparelho revolucionário não deverá obedecer em nenhum caso: a burocracia e o aparelho judiciário; assim como não deve haver burocracia, não deve haver tribunal; o tribunal é a burocracia da justiça. Se você burocratiza a justiça popular, você lhe dá a forma do tribunal. (..) As massas − proletárias ou plebeias − sofreram demasiado com essa justiça, durante séculos, para que se continue a impor−lhes sua velha forma, mesmo com um novo conteúdo. Elas lutaram desde os confins da Idade Média contra essa justiça. Afinal de contas, a Revolução Francesa era uma revolta anti−judiciária. A primeira coisa que ela explodiu foi o aparelho judiciário[52].

Outro fator importante para a compreensão da organização judiciária local da África Portuguesa independente foi o retorno aos sistemas jurídicos anteriores à colonização, inserindo-se no contexto comum de reabilitação dos valores tradicionais pelos demais países recém-emancipados do continente[53], como informa RENÉ DAVID: A descolonização foi frequentemente acompanhada por declarações que deixavam bem expresso o desejo de fazer justiça ao direito consuetudinário; desejava-se, a crer nos dirigentes, reabilitar o direito tradicional, reagindo contra a atitude de condescendência e de desprezo que muitas vezes imperou durante a época colonial.[54]

Diante desta dupla influência, não é de se estranhar que tais nações tenham organizado tribunais populares oficiais, mas que julgavam conforme os costumes locais. Atendia-se ao projeto estatizante soviético, ao mesmo tempo em que reforçava a legitimidade entre seus pares, fundamental nestes países em que não há como se admitir uma identidade nacional homogênea, tendo em vista a multiplicidade tribal e o método colonial de divisão territorial. Em trabalho intitulado “From Customary Law to Popular Justice”[55], BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS apresenta dados de pesquisa realizada em Cabo Verde[56], tendo como objeto os tribunais populares constituídos após sua independência (1975). Como alternativa ao modelo colonial português, centralizador e formalista, instituíram-se órgãos mais informais no sistema de Justiça. Assim, Para substituir em parte, o Estado de Cabo Verde criou – em paralelo à justiça profissionalizada, de tipo ocidental, reservada para os crimes mais graves ou para os litígios mais importantes – uma rede de tribunais populares espalhados pelos bairros urbanos e pelas aldeias mais remotas do país, constituídos por juízes leigos, designados por iniciativa do PAICV, e sujeitos a ratificação popular, entre as pessoas mais respeitadas ou mais activas da comunidade. Com competência para dirimir os litígios de pequena monta, com fraco poder de coerção, privilegiando as soluções de mediação e de conciliação e funcionando no seio das comunidades e com a activa participação destas, estes tribunais têm vindo a contribuir de modo decisivo para a construção de uma nova administração da justiça neste jovem país[57].

Todavia, a mesma pesquisa aponta um dado inquietante: aos poucos, estes tribunais locais incorporaram práticas formais do Judiciário tradicional. Não apenas por uma questão simbólica, como diriam BOURDIEU e FOUCAULT, mas talvez pela influência partidária e consequente controle do processo decisório, consequências possíveis da administração socialista, consoante expõe BOAVENTURA: pude identificar uma série de sinais que preocupantemente apontavam para uma aproximação da justiça informal comunitária, se não às formas, pelo menos à lógica das formas de justiça profissional clássica. Entre muitos sinais, referirei alguns a título de exemplo: um aumento da distância entre as partes e os juízes; o destaque dado aos símbolos oficiais; o recurso à presença da polícia; o uso de uma linguagem técnica popular (...); a aspiração de status e de * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6130 This version of Total HTML Converter is unregistered.

profissionalização por parte dos juízes; a presença maciça do Partido e a consequente identificação da justiça popular com o aparelho do Estado; o recurso a formas processuais e a formulários semelhantes aos correntes na justiça profissional; a aspiração manifestada por muitos juízes populares de estreitarem as relações com os juízes profissionalizados de modo a “aprender com eles como resolver os casos”. Todos estes sinais apontam, a meu ver, para a duplicação, uma vez que, através deles a justiça popular parece renunciar ao seu estatuto dicotômico de justiça alternativa.[58]

Seguindo a linha de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, outro pesquisador da Universidade de Coimbra, ODAIR BARTOLOMEU VARELA (professor da cabo-verdiana Universidade Jean Piaget) observa que, nas colônias portuguesas na África, os tribunais populares visavam “a promoção do espírito da libertação da auto-estima, da autocapacitação de emancipação e de resistência à ideia de que ‘vocês não conseguem viver sem nós’, veiculada pela metrópole”[59]. Também anota que tais tribunais não se confundiam com juízos comunitários, pois aqueles eram “instâncias de administração da justiça e órgãos de poder e participação populares”, integrados ao aparelho político de Estado e dependentes do partido oficial[60]. Com o colapso da União Soviética (aliado do governo revolucionário) e as primeiras eleições legislativas em 1991, foi instaurada a democracia representativa, substituindo o modelo de tribunais populares aplicadores do direito consuetudinário pelo monismo estatal e respectivos órgãos judiciários oficiais. Também integrando este grupo de pesquisa do CES/Coimbra, SARA ARAÚJO examinou o acesso à Justiça em Moçambique, revelando um dado peculiar: como o governo revolucionário socialista desconfiava dos líderes tribais, supostamente fiéis ao antigo regime, institui-se uma justiça popular formada por juízes eleitos e juízes profissionais[61]. De forma semelhante ao que ocorrera em Cabo Verde, a democracia liberal instituída pela Constituição de 1990 extinguiu os tribunais populares, sendo substituídos por tribunais comunitários com natureza extrajudicial (que até o momento da pesquisa não haviam sido formalmente regulamentados).

III Ásia

No caso das ex-colônias portuguesas na Ásia, BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS coordenou ampla pesquisa em Macau, tendo como um dos objetos a administração da Justiça durante o processo de cessão à China (1999). Após expor vários aspectos da transição entre os modelos judiciários luso e oriental[62], assim analisa: “a conclusão principal da análise dos dados do movimento judicial é que a procura dos serviços judiciários é, em geral, baixa e extremamente selectiva e distorcida em relação ao que é comum nas sociedades democráticas ocidentais que estabeleceram e consolidaram o desenho institucional dos tribunais”. Isto se explicaria pelo fato de que: a sociedade chinesa é conhecida pela diversidade e força dos seus sistemas de controlo social informal, os quais incluem, por via de regra, mecanismos de resolução de conflitos. Numa fase de instabilidade e de mudança cujas coordenadas são pouco conhecidas ou controláveis, é natural que estes mecanismos informais e não oficiais de controlo social e de resolução de conflitos adquiram uma legitimidade e uma eficácia maiores pela função securizante que desempenham. Podem, pois, ser socialmente úteis e como tal aceites ou mesmo incentivados[63].

DANIEL SCHROETER SIMIÃO, pesquisando outra ex-colônia portuguesa (Timor Leste) para sua tese de doutorado em Antropologia (UnB), apresentou dados relevantes no 28º Encontro Anual da ANPOCS (2004). Chama a atenção da existência de quatro sistemas jurídicos aplicados, revelando a tensão entre a justiça comunitária local e as tentativas oficiais de formalização (colonial português, domínio indonésio e o independente com colaboração da ONU[64])[65]. Conforme leciona MARCELO DOLZANY DA COSTA, tanto Portugal quanto Indonésia toleravam o “sistema doméstico da administração da Justiça”, diante da impossibilidade de imposição uniforme de seus sistemas diante da realidade local [66]. SIMIÃO, com maiores dados empíricos, relata a atuação do “lia na’in” (operador da justiça local) em um típico conflito de vizinhança: Um lia na’in de Dili relatou-me um exemplo desse tipo de atitude em relação a um caso de conflito entre vizinhos. Um morador levara o caso à sua presença acusando o vizinho de ter matado um porco seu. O vizinho explicou que o porco estava destruindo sua roça e que advertira anteriormente o acusador para que este prendesse seu porco. Como o porco não fora preso e continuou a destruir sua roça, o vizinho matou o porco. No julgamento feito pelo lia na’in, a reação do vizinho fora justa e, portanto, não lhe cabia culpa pela morte do porco. O porco fora morto pela negligência de seu dono, e não cabia neste caso multa ou reparação.[67]

IV América Portuguesa

IV.1. Bases histórico-políticas da colonização

Chegando à nossa realidade mais próxima, percebe-se que o processo de emancipação brasileira distingue-se nitidamente das demais colônias portuguesas, não apenas quanto ao contexto histórico, mas principalmente na formação política do Estado nacional. Durante o domínio português, as instituições judiciárias seguiam o padrão metropolitano, com as adaptações necessárias à extensão territorial e a distância em relação a Portugal[68]. JOSÉ DA SILVA PACHECO chega a afirmar que “foi o município português transladado, com organização e atribuições políticas, administrativas e judiciais, semelhantes às da metrópole, de que provinha” [69]. Por ser a colônia mais importante, já que constituía a base econômica do Império, a ponto de se afirmar que “Portugal tornara-se pensionista do Brasil”[70], em princípio haveria um controle maior, inibindo-se uma maior autonomia local e, principalmente, participação popular na administração. Quanto a isto, de fato houve sucesso: como lembra OLIVEIRA VIANNA, “nós nunca tivemos, nem conhecemos o governo direto do povo-massa; as assembleias populares do antigo direito foraleiro já haviam desaparecido com as primeiras Ordenações. Quando fomos descobertos e colonizados, já dominava a aristocracia dos ‘homens bons’”[71]. Por outro lado, “a especificidade da estrutura colonial de Justiça favoreceu um cenário institucional que inviabilizou, desde seus primórdios, o pleno exercício da cidadania participativa e de

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práticas político-legais descentralizadas, próprias de sociedade democrática e participativa”[72]. No entanto, com relação à autonomia local, a questão se torna mais complexa. Como já foi exposto por HESPANHA, se na Metrópole já era muito difícil o controle absoluto dos conflitos locais, no Brasil se tornava praticamente impossível a centralização completa, diante do distanciamento e das redes burocráticas portuguesas[73]. Mas a ausência do poder metropolitano não foi suficiente para a formação de autogovernos democráticos, consoante observação de RAYMUNDO FAORO: Nesse feixe de conselhos – sob o comando do conselho do rei –, a direção régia e ministerial vê sua autoridade dilacerar-se, com o esfriamento do tempo de ação. Os assuntos brasileiros, meticulosamente medidos e previstos, com as decisões tardas, ficam a cargo, desta sorte, de outros funcionários e agentes, nas medidas urgentes. Interfere, entre a metrópole e a colônia oficial, larga parcela de arbítrio do setor privado, que, desta sorte, usurpa funções públicas. (...) Daí não se originou, todavia, um campo de self-government local, ou do exercício de liberdades municipais. Cria-se um governo, ao contrário, sem lei e sem obediência, à margem do controle, inculcando ao setor público a discrição, a violência, o desrespeito ao direito. Privatismo e arbítrio se confundem numa conduta de burla à autoridade, perdida esta na ineficiência. Este descompasso cobrirá, por muitos séculos, o exercício privado de funções públicas e o exercício público de atribuições não legais[74].

O sistema de sesmarias[75], justificado pela necessidade de povoamento da vasta extensão territorial e pelo modo de produção extrativista, permitiu a constituição de uma solidariedade própria, assentada sob o domínio da família senhorial. OLIVEIRA VIANNA, como outros pensadores, chega a associar esta estrutura rural colonial brasileira ao feudalismo, a ponto de afirmar que “o clã parental e a sua projeção na esfera das instituições políticas e a sua condição [ser] um dos mais ativos agentes da constituição do nosso direito público costumeiro”[76]. É claro que Portugal manifestou, em vários momentos, a intenção de preservar sua autoridade sobre esta estrutura, como no estabelecimento do Governo-Geral para restringir a ampla autonomia dada aos capitães donatários nos primórdios da colonização[77], e a institucionalização de ouvidores como superintendentes das terras senhoriais. Como relata CAPISTRANO DE ABREU, diante da anarquia descrita pelas cartas de (donatário da capitania de Pernambuco), o remédio preferido por d. João III consistiu em tomar posse da capitania deixada devoluta pela morte de Coutinho, com os recursos da coroa estabelecer uma organização mais vigorosa, criar um governo geral, forte bastante para garantir a ordem interna e estabelecer a concórdia entre os diversos centros de população[78].

Apesar dos esforços da Coroa, os conflitos muitas vezes eram decididos territorialmente, com base em práticas aceitas e impostas pela autoridade local, sem intervenção do poder metropolitano. Nem a ameaça de penas como a perda de jurisdição e degredo, previstas nas Ordenações Manuelinas e Filipinas para os casos de autotutela, eram suficientes para inibir os fidalgos[79]. Mesmo assim, havia o cuidado das elites locais em normatizar diversas de suas condutas, até para demonstrar sua lealdade e manter a confiança do rei. Pesquisa feita pelo historiador português FRANCISCO RIBEIRO DA SILVA (catedrático da Universidade do ) comprova o acolhimento de reivindicações brasileiras, a ponto de terem sido encontrados 23 atos régios requeridos por instituições municipais coloniais e acolhidos pela Coroa[80].

IV.2. Independência

Ao contrário dos movimentos afro-asiáticos do século XX, a transição da América portuguesa para o Estado brasileiro caracterizou-se mais pela continuidade do que pela ruptura[81]. Claro que isto não significa desprezo pelas lutas anticoloniais[82], algumas delas ignoradas ou desconsideradas pela historiografia oficial clássica, mas que reconhecidamente não tiveram o mesmo ímpeto de outras revoltas emancipatórias dos séculos XVIII e XIX. JOSÉ MURILO DE CARVALHO atribui isto ao problema da construção da cidadania na Colônia brasileira, determinando rebeliões pontuais entre elite local e Metrópole sem maior envolvimento popular[83]. RAYMUNDO FAORO ressalta a ausência de um pensamento nacional homogêneo[84], argumento presente também em BÓRIS FAUSTO, para quem as lutas “foram movimentos de revolta regional e não revoluções nacionais”[85]. De qualquer forma, percebe-se que a independência se deveu mais ao desgaste das relações entre a nativa elite brasileira e a administração metropolitana, do que necessariamente amparada em movimentos de resistência popular[86]. Todavia, o que é mais notável neste processo (constituindo traço distintivo da independência das colônias hispano-americanas) é a preservação da unidade territorial, objeto da clássica tese “A construção da ordem: a elite política imperial”, de JOSÉ MURILO DE CARVALHO. A contribuição do Direito para a formação do Estado brasileiro foi objeto de vários estudos sobre o tema[87]. Mas nenhum outro trabalhou com tanta base empírica, demonstrando como a “adoção de uma solução monárquica no Brasil, a manutenção da unidade da ex-colônia e a construção de um governo civil estável foram (...) consequência do tipo de elite política existente à época da Independência”, elite esta caracterizada pela “homogeneidade ideológica e de treinamento” [88], obtida por meio de um hábil sistema que envolvia faculdades de direito e mobilidade de acesso aos cargos públicos, “ocupação que mais favorecia uma orientação estatista e que melhor treinava para as tarefas de construção do Estado na fase inicial de acumulação de poder”[89]. Destacava-se a escolha de magistrados, “os mais completos construtores de Estado no Império” [90], e que “estiveram entre os primeiros funcionários do Estado moderno a se organizarem em moldes profissionais”, constituindo “corporações mais ou menos estruturadas, com maior grau de coesão interna do que os outros setores [tornando-se] atores políticos coletivos com muito maior poder de barganha” [91]. Assim, a independência brasileira se caracteriza mais pela preocupação em conservar o Estado do que revolucioná-lo, preservar a autoridade do que democratizar o poder. A sociedade civil foi coadjuvante no processo de emancipação das elites locais do domínio português, ainda que estas tenham mantido muito da ideologia metropolitana. RAYMUNDO FAORO ressalta que o pensamento político brasileiro construiu-se de forma bem peculiar: sob influência do pombalismo, é centralizado no Estado, e não no indivíduo. Além disso, “sua preocupação estará não em proteger a liberdade, mas, temendo a democracia, vigiá-la num equilíbrio de poderes, dos quais nenhum tem realmente origem popular”[92]. Ao lado deste liberalismo à brasileira, FAORO enxerga na nossa organização estatal o patrimonialismo[93]. Demonstrando a formação do Estado brasileiro desde suas origens lusitanas, Faoro se vale de dois conceitos * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6132 This version of Total HTML Converter is unregistered.

weberianos (Estado patrimonial e estamento), para identificar “uma forma de domínio, ao contrário da dinâmica da sociedade de classes, [que] se projeta de cima para baixo”[94]. Assim, “o governo, o efetivo comando da sociedade, não se determina pela maioria, mas pela minoria que, a pretexto de representar o povo, o controla, deturpa e sufoca”[95]. Consequentemente, “no governo estamental (...)há necessariamente, como sistema político, a autocracia de caráter autoritário e não a autocracia de forma totalitária. (...) A autocracia autoritária pode operar sem que o povo perceba seu caráter ditatorial”[96]. Neste sentido, associa-se o Estado ao autoritarismo. MARIO STOPINO aponta três contextos: estrutura de sistemas políticos, disposições psicológicas e ideologias políticas. No primeiro caso, são chamados de autoritários os regimes que privilegiam a autoridade governamental e diminuem de forma mais ou menos radical o consenso, concentrando o poder político nas mãos de uma só pessoa ou de um só órgão e colocando em posição secundária as instituições representativas”[97], o que nos permitiria identificar, em graus variáveis historicamente, no Estado brasileiro um modelo de regime autoritário em vias de modernização[98], o qual pode ser encontrado em vários países do terceiro mundo [que] surgem em sociedades caracterizadas por uma modernização ainda muito débil e obstaculada por vários estrangulamentos sociais. Eles pretendem reforçar e tornar incisivo o poder político para superar os impasses no caminho do desenvolvimento. [...] A força de penetração do regime é limitada pela consistência das forças sociais conservadoras e tradicionais e pelo atraso geral da estrutura social e da cultura política.[99]

Certamente que havia a necessidade de modificação da estrutura administrativa, a fim de se desvincular das instituições lusitanas. Com relação ao Judiciário, o novo Estado substituiu a Casa de Suplicação pelo Supremo Tribunal de Justiça, ampliou os tribunais de Relação, e modificou os critérios para a investidura dos magistrados. Todavia, a distinção entre juizes leigos e juizes letrados foi mantida pela legislação imperial. A literatura jurídica da época acentuava bem a diferença: “o Juiz póde ser letrado ou leigo; aquelle deve ser formado em algum dos cursos jurídicos; este é o que não tem essa qualidade”[100]. A carreira dos juizes letrados iniciava-se com o cargo de juiz municipal pelo imperador, o qual nomeava bacharel em direito que tivesse um ano de pratica[101] do foro, contado da sua formatura[102]. Gozava de mandato de quatro anos[103], sendo competente para a prática de diversos atos processuais[104]. Após o mandato como juiz municipal, era possível ao bacharel ascender na carreira da magistratura. Como informa PIMENTA BUENO, descrevendo a legislação vigente à época: Os juizes de direito são nomeados pelo Imperador d’entre os bacharéis formados em direito maiores de 22 annos, bem conceituados, e que tenham servido como distincção, ao menos por quatro annos, os cargos de juizes municipaes ou promotores públicos: lei art. 24º, cód. do proc. art. 44º e regula. art. 199º. Sua primeira nomeação não póde ser feita sinão para comarcas de 1ª entrância: resol. Nº 559 de 28 de junho de 1850 art. 1º.[105]

Os juízes leigos, por sua vez, estavam presentes no tribunal do júri, na justiça de paz e, na segunda metade do século XIX, nos tribunais do comércio[106]. Os jurados, leigos que foram o colégio do tribunal do júri, tiveram sua atuação reforçada pela constituição de 1824[107]. Em seu art. 151, dispunha que “o poder judicial é independente, será composto de Juízes e Jurados, os quais terão lugar assim no cível como no crime, no caso e pelo modo que os Códigos determinarem”. Os jurados eram escolhidos entre cidadãos eleitores, reconhecidamente de bom senso e probos[108], a partir de lista organizada por uma junta composta do juiz de paz, do pároco ou capelão e do presidente ou algum vereador da Câmara Municipal[109]. Em matéria cível, não houve tal regulamentação[110]. Entretanto, o tribunal do júri ocupa papel central no Código de Processo Criminal de 1832, tido por RAYMUNDO FAORO como uma das medidas que consagraram “a autonomia local, medidas arrancadas à reação e partejadas com dor” [111]. Como noticia JOSÉ REINALDO DE LIMA LOPES, cuida-se da “grande vitória legislativa dos liberais, logo após a abdicação de D. Pedro I. (...) Põe fim, praticamente, ao sistema judicial antigo, introduz novidades completas, trazidas da Inglaterra, especificamente o Conselho de Jurados (tribunal do júri) (...)” [112]. Outra figura de destaque no Código de Processo Criminal de 1832 era o juiz de paz, eleito localmente[113]. Assim como os juizes municipais, usufruíam um mandato de quatro anos[114]. Gozavam de atribuições policiais e judiciais, sendo competente para: a) os procedimentos relativos à formação da culpa (produzir as provas relativas à comprovação da existência do crime e de sua autoria); b) prender os culpados; c) julgar crimes de menor importância; d) participar da elaboração da lista de jurados, juntamente com o pároco ou capelão e o presidente ou algum dos vereadores da Câmara Municipal. Sua origem é assim resumida por EDSON ALVISI NEVES: O juiz de paz pautado no poder local apresentou-se como uma alternativa à expansão da estrutura administrativa perante a decadência do juiz ordinário e as práticas formalistas da ineficiente lentidão da máquina judicial, denominada por Thomas Flory como “uma espécie de guerrilha burocrática”. A sua criação fora sugerida pelo relatório do Manuel Inácio de Melo e Souza (barão de Pontal), ouvidor em São João Del Rei de 1814 a 1820, que, após apresentar o caótico estado do direito processual e da administração da Justiça, fez diversas sugestões capazes de melhorar a administração da Justiça(...)[115]

Em âmbito cível, o papel constitucional dos juizes de paz era de estimular a conciliação como etapa pré- processual[116], já que “nenhum cidadão, por mais elevada que seja a sua jerarquia civil, militar, ou ecclesiastica, está isento da jurisdicção conciliatória do juízo de paz”[117]. O Código de Processo Criminal regulava a matéria, afirmando que sua competência era: a) conciliar, por todos os meios pacíficos ao seu alcance, as partes, que pretendem instaurar demanda; b) processar, e julgar em forma verbal, e sumaríssima, as pequenas demandas, que não exceder a sua alçada; c) processar, e julgar as causas de almotaceria, não excedentes de sua alçada; d) processar, e julgar todas as ações derivadas e contratos de locação de serviços[118]. Todavia, a importância dos juízes de paz não se exauria em sua jurisdicional, pois lhes foram dados extensos poderes (alguns pertencentes a outras autoridades até então), a ponto de constituírem figura central para a compreensão da política brasileira no séc. XIX, conforme sintetiza IVAN VELLASCO: A criação do juizado de paz marcava uma mudança importante na configuração do poder judiciário e criava um personagem que marcaria toda a década seguinte, alterando profundamente o cotidiano da justiça. Com atribuições administrativas, policiais e judiciais, o juiz de paz, eleito, acumulava amplos poderes, até então distribuídos por diferentes autoridades (juízes ordinários, almotacés, juízes de vintena) ou reservados aos juízes letrados (tais como

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julgamento de pequenas demandas, feitura do corpo de delito, formação de culpa, prisão etc.), que passavam então a ter de compartilhá-los com esse intruso personagem. O exercício do juiz de paz envolvia a justiça conciliatória e o julgamento de causas cujo valor e/ou a pena não ultrapassasse certo limite, a imposição do termo de bem viver, a manutenção da ordem pública e emprego da força pública, vigiar o cumprimento das posturas municipais, a condução das eleições, enfim, funções administrativas, judiciais e policiais as mais amplas[119].

Essa “experiência republicana” de escolha popular de magistrados, ocorrida durante a Regência, não durou por muito tempo. A reforma conservadora de 1841 suprimiu, entre outros avanços, os poderes dos juízes de paz, sob o argumento que este modelo teria sido deficiente. ANDREI KOERNER colhe várias justificativas da literatura para a atribuição das funções judiciais aos magistrados profissionais: ignorância dos procedimentos legais pelos juizes leigos, falta de treinamento para a aplicação das normas legais, corrupção, parcialidade etc.[120] Um dos expoentes do conservadorismo imperial brasileiro, o jurista Paulino José Soares de Sousa (visconde de Uruguai), também utiliza como argumento o excesso de funções dadas aos juizes, por herança do direito português, sujeitando-lhes aos riscos da politização e consequente perda de independência[121]. No entanto, mais do que eventuais deficiências técnicas, a supressão dos poderes dos juizes leigos merece ser observada a partir de suas implicações políticas. E, neste ponto, significativa foi a contribuição do historiador norte-americano THOMAS FLORY. Em sua obra mais conhecida, demonstra como o juiz de paz desatou uma violenta controvérsia acerca do Estado brasileiro, além de polarizar o pensamento institucional deste país: Los reformadores liberales hcieron al juez de paz el portaestandarte de sus propias preocupaciones filosóficas y prácticas: formas democráticas, localismo, autonomía y descentralización. Por otro lado, los tradicionalistas y conservadores vieron en el magistrado local una versión de mal agüero de la autoridad central y una amenaza al control social en el vasto imperio. Como el primer paso para alejarse de la herencia legal colonial, la reforma adquirió una identificación simbólica con el propio liberalismo brasileño. Los liberales la defendieron apasionadamente, y sus oponentes la atacaron sin cuartel. (...) La historia de la institución refleja toda la complejidad de las tendencias intelectuales y de las tensiones políticas y sociales del Brasil del siglo XIX[122].

Os estudos de THOMAS FLORY desvendam a articulação da elite imperial e do governo central com os juízes profissionais[123], a fim de preservar o projeto de unidade política do recém-independente país[124]. Em um primeiro momento, o juiz de paz foi saudado por se mostrar alternativo à magistratura erudita, associada ao colonizador pela sua formação jurídica coimbrã e com quadros remanescentes da indicação por autoridades régias portuguesas. Para os liberais, diante da ameaça de restauração[125], seria importante fortalecer as redes de poder locais, por meio de eleições conduzidas pelas elites provincianas. Entretanto, a morte de D. Pedro em 1834 (com consequente extinção do movimento restaurador) e a sucessão de revoltas locais, entre outros motivos, contribuíram para a revisão do sistema judiciário. Dentro de uma visão política instrumentalista, “si se acepta la estabilidad como un fin que justifica la oligarquia y la fueza como um medio, entonces pude argumentarse que éste fue un resultado feliz para el Brasil independiente”[126]. Neste sentido, o discurso oficial era bem claro: os juizes profissionais restauraram a ordem perdida. VICTOR NUNES LEAL, avaliando a experiência dos juízes de paz, destaca que “à sua ineficácia como instrumento de prevenção e repressão da criminalidade atribuíram-se todos os atentados, desordens, motins e revoluções que caracterizam o conturbado período regencial”[127]. De fato, ocorreu a vitória do movimento conservador[128], para quem “urgia reformar o Código de 1832 no plano nacional, dotando o executivo de extensos poderes para manter a ordem pública e a unidade nacional, entendidos os conceitos de ordem pública e de unidade nacional segundo os critérios mais caros à mentalidade conservadora e centralizadora”[129]. Em outras palavras, para o movimento vencedor, “o código de 1832 estava lançando o país na anarquia; a lei de 3 de dezembro [de 1841] é que restabelecera a ordem, mantendo a autoridade do governo”[130]. RAYMUNDO FAORO, por outro lado, chama a atenção para a aplicação artificial da magistratura inglesa, modelo inspirador dos liberais brasileiros: O salto era imenso: da centralização das Ordenações Filipinas à cópia do localismo inglês (...). A maré democrática, depois de submergir a regência, chegava ao seu alvo: o autogoverno das forças territoriais, que faziam as eleições, recebendo a parte do leão na partilha, o senhorio da impunidade na sua violência e no seu mandonismo. O centro do sistema estava no juiz de paz, armado com a truculência de seus servidores, os inspetores de quarteirão, de triste memória nos anais do crime e da opressão.(...) Dessa contrafação do self- governement americano não é, porém, a ordem que sai, como não podia sair; mas, sim a intranquilidade, a violência, a desordem e, por fim, a anarquia[131].

JOSÉ MURILO DE CARVALHO enxerga de forma diferente a Reforma de 1841, por não concordar com o suposto “esmagamento do poder local” acusado pelos liberais. Em sua perspectiva, Foi antes a instauração do governo como administrador do conflito local, sobretudo do conflito entre poderosos. O juiz de paz eleito, representante de algum poderoso, tendia a entrar em constantes atritos, não só com os funcionários públicos (juízes, párocos, oficiais de justiça), mas também com outras autoridades eletivas e também representantes de poderosos locais (...).O governo trazia para a esfera pública a administração do conflito privado mas ao preço de manter privado o conteúdo do poder (...). O arranjo deu estabilidade ao Império, mas significou, ao mesmo tempo, uma séria restrição à extensão da cidadania e, portanto, ao conteúdo público do poder[132].

Verifica-se que a profissionalização dos magistrados encontra raízes na preocupação estatal em ceder poder a legitimados locais. Fortalece-se o aparelho governamental em detrimento das práticas comunitárias realmente democráticas, como sempre ocorrera na história da administração judiciária portuguesa. Detendo- se no tema, OVÍDIO BAPTISTA argumenta: Contribuiu sobremodo para exacerbar a secular separação entre o “direito dos sábios” e aquele direito produzido pela experiência forense, a circunstância de nossa formação cultural de país colonial, agravada pela ausência de uma cultura comunitária sólida. As precárias condições locais de transporte e comunicação, nas comunidades de nosso imenso sertão, onde a maior parte da população era analfabeta, estimulava ainda mais o sentimento centralizador e imperial herdado do Direito Romano, pois seria impensável a formação de direitos locais, suficientemente sólidos para opor-se ao direito imperial, imposto pela metrópole[133].

É claro que esta conclusão é generalizante, pois nem sempre a atividade judicial é pautada pela racionalidade estrita. Neste ponto, merece nota a pesquisa de IVAN DE ANDRADE VELLASCO, professor da Universidade Federal de São João d’El-Rei. Após analisar processos da antiga comarca do Rio das Mortes (MG), descobre uma “sedução da ordem”, na medida em que a população buscava a justiça para a

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efetivação de seus direitos, e não para ser oprimida e controlada pelo Estado, até porque “qualquer regra é melhor do que jogar o destino ao arbítrio e ao capricho da sorte” [134]. Com isso, sustenta que o recurso ao Judiciário poderia ser visto como exercício de cidadania, contestando a interpretação autoritária de seu papel, nos seguintes termos: Uma imagem instrumental do poder judiciário e suas relações com a população faz parecer que esta apenas assistia passivamente os exercícios de poder de uma burocracia que, em última instância, era somente uma fachada legal para o domínio e controle estatal em consonância com os interesses políticos e econômicos dos potentados locais. Esta visão historiográfica tem sido consistentemente questionada a partir de trabalhos que, ao deterem-se sobre os processos criminais e fontes judiciárias, revelam que homens e mulheres pobres, mestiços e escravos aí aparecem não apenas como réus, mas como vítimas e queixantes que demandam a ação e intervenção da justiça[135].

Os autos investigados por este cientista social mineiro revelam aumento do número de processos e consequente incremento na produtividade judicial, no período inicial de vigência do Código de Processo Criminal[136], o que seria concomitantemente explicável pela cooperação entre os novos juizes de paz e a competitividade destes com os magistrados letrados[137]. IVAN VELLASCO, ao confrontar seus dados com a tese de FLORY, concluiu que esta dependia da conjuntura local em que atuassem os juizes leigos: nos centros urbanos desenvolvidos, os arranjos institucionais garantiam estabilidade ao sistema; nas regiões rurais mais afastadas, a precariedade daqueles arranjos permitiu a utilização da estrutura judiciária local como instrumento para realização de interesses privados e vinganças pessoais[138]. Mesmo admitindo a imprecisão da ideia geral de centralização, isto não desqualifica o fato de que a Reforma de 1841 acabou por frear o avanço do papel dos juízes de paz, visto que estes passaram a ser meramente conciliatórios. A resistência aos juizes leigos, escolhidos comunitariamente, encontrou adeptos entre os juristas, os quais contribuíram para a formação de uma ideologia favorável à utilização de magistrados profissionais[139]. Ainda que haja majoritariamente simpatia ao tribunal do júri, como uma conquista liberal, não esconde os preconceitos em relação àqueles estranhos ao círculo do bacharelismo. Mais tarde, com a Consolidação das leis processuais, organizada pelo Conselheiro Ribas em 1876, estabelece-se uma nova área de atuação[140] e disciplina das funções do juiz de paz[141]. Escrevendo sobre o período, PIMENTA BUENO destaca que “suas attribuições, além da conciliação tem variado, e hoje é limitada em conformidade da lei de 3 de dezembro de 1841, art. 91”[142]. De qualquer forma, o dano já havia sido criado. Consolidou-se um modelo formalista de administração judiciária, no qual o senso comum acabou por pender para a promessa de qualidade técnica dos bacharéis em direito, desprezando-se a alternativa comunitária. Os juizes de paz foram mantidos pela República[143], porém assumindo funções eminentemente conciliatórias e graciosas. Pontualmente, outros juizes leigos integrariam nosso Judiciário (como nos Tribunais do Comércio e na Justiça do Trabalho), só que legitimados pelo pertencimento a uma determinada categoria profissional. Entretanto, mesmo nestes casos a corporação leiga não conseguiu evitar a perda do espaço e a conservação do poder pelas forças corporativas judiciárias, não apenas pela sua movimentação no campo político, como também pela construção de uma ideologia jurídica peculiar[144]. A desconfiança para com os juizes não-iniciados foi habilmente disseminada na cultura jurídica brasileira. Acostumamo-nos a valorizar o bacharel, associando a decisão judicial ao conhecimento erudito do Direito, aliado à submissão à autoridade oficial do Estado. Mesmo nos dias de hoje, não há reivindicações fortes da sociedade civil para reassumir o poder decisório em âmbito local, nem como manifestação política de conquista democrática na administração da Justiça. Referências

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[1] FAORO, Raymundo. “Existe um pensamento político brasileiro?”, p. 46. [2] ibidem, p. 55. [3] A análise histórica do Direito ainda não se encontra consolidada entre os juristas brasileiros, os quais não se habituaram ao rigor metodológico típico dos historiadores. Não são raras as obras em que a “evolução histórica” serve mais como curiosidade do que fundamento, sem falar em observações anacrônicas ou gigantescos saltos cronológicos. Aos poucos, o campo vem sendo construído, como se observa nos congressos organizados pelo IBHD (Instituto Brasileiro de História do Direito) e nos grupos de trabalho presentes nos encontros do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito) e nos simpósios da ANPUH (Associação Nacional de História). [4] SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 179. [5] Resenha das várias perspectivas epistemológicas do tema pode ser lida em DANTAS, Ivo. “Direito Comparado como Ciência”, pp. 231/249. [6] Como anota JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, “tem o sabor do óbvio o asserto de que os ordenamentos jurídicos se acham em constante evolução – nos dias que correm, provavelmente, com maior rapidez do que noutros tempos. Ao estudioso não é lícito deixar de tomar em consideração este dinamismo. Semelhanças e dessemelhanças podem aumentar e diminuir, quiçá desaparecer. Nem é necessária, às vezes, uma expressa reformulação de textos legais. À margem deles, mudanças culturais fazem sentir-se na maneira de compreender e valorar comportamentos humanos. A interpretação e aplicação das normas jurídicas não escapa a esse processo evolutivo. É oportuno, para não dizer indispensável, que de vez em quando se retomem as comparações, a fim de verificar se ocorreram modificações capazes de tornar obsoletas posições clássicas, ou se – e em que medida – ainda é possível reputá-las válidas” (“O processo civil contemporâneo: um enfoque comparativo” in Temas de direito processual: nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 41). [7] COMPARATO, Fábio Konder. “Prefácio” de FAORO, Raymundo. A república inacabada, p. 08. [8] Este processo é assim descrito pelo historiador português JOSÉ MATTOSO: “em 1131 Afonso Henriques [fixou-se] em Coimbra e [assumiu] o comando ativo da guerra externa, com o apoio, embora não necessariamente com a participação ativa direta, dos chefes das linhagens nortenhas. As necessidades da guerra levaram, porém, Afonso Henriques a encabeçar também outras forças, as dos concelhos, que constituíam, por assim dizer, a fonte abastecedora dos efetivos de massa e a melhor garantia da defesa fronteiriça em caso de invasão. Essas comunidades não nobres, mas com verdadeira autonomia local, que tinham criado as suas estruturas peculiares numa espécie de terra de ninguém entre as duas fronteiras, a cristã e a muçulmana, aliando-se ora com um lado ora com outro, que tinham feito da pilhagem modo de vida, aceitaram a autoridade régia como forma de garantir uma parte da sua autonomia face à crescente invasão senhorial dos barões de Entre-Douro-e-Minho. Cedendo uma parte das suas prerrogativas ao rei nas áreas militar, da justiça e do fisco, evitavam a submissão aos poderes senhoriais dos nobres e da Igreja. Podiam negociar com o rei o reconhecimento de importantes privilégios e prometiam a colaboração dos seus exércitos na luta antiislâmica. A chefia militar do rei trouxe consigo, portanto, a associação dos concelhos e da nobreza senhorial. Essas comunidades, tendencialmente opostas umas às outras, podiam assim manter as suas posições sob a proteção do rei e evitar lutas estéreis entre si. A formação de uma unidade política possibilitou também a integração das cidades organizadas em concelhos no espaço nacional, sem os sujeitar aos senhorios particulares (excetuando, até o século XIV, as cidades do Porto e de Braga) e, desde Afonso III (1248-1279), a sua subordinação política econômica orientada pela coroa” (“A formação da nacionalidade”, pp. 13/14). [9] Utiliza-se “concelhos” no sentido original português, i. é, como divisão administrativo-territorial; não o confundindo com seu parônimo “conselho”. [10] “A montagem de um aparelho estatal capaz de exercer uma influência efetiva e verdadeiramente unificadora sobre todo o País, tirando o antecedente efêmero de Afonso II, data efetivamente da segunda metade do século XIII. Até essa altura, havia relações entre as diversas comunidades que se sujeitavam ‡ autoridade do mesmo rei, havia também movimentos de tropas e de populações que abarcavam todo o território nacional, mas o País era constituído por um conjunto de unidades com uma considerável dose de independência, ligadas entre si por vínculos tênues, e, como conjunto, destituído de laços verdadeiramente coerentes” (MATTOSO, José, op. cit., p. 15). [11] FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 51. [12] ibidem, p. 62. ARNO e MARIA JOSÉ WEHLING apontam a dificuldade na análise do direito português pela literatura, ao afirmar que “a justiça do Antigo Regime não se insere numa estrutura estatal plenamente burocrática, conforme definido por Weber; não trabalha com categorias jurídicas cartesianamente articuladas e auto-referentes; e não é leiga, nem pela fundamentação que a legitima, nem pelo direito que aplica” (Direito e Justiça no Brasil Colonial – O Tribunal de Relação do Rio de Janeiro (1751-1808), p. 28). [13] ibidem, p. 63. [14] ibidem, p. 57. [15] FAORO, Raymundo. “Existe um pensamento político brasileiro?”, p. 51. [16] “O direito português (...) serviu à organização política mais do que ao comércio e à economia particular. Articulou-se no Estado de estamento, como elo de união, cimento de solidariedade de interesses, expressando sua doutrina prática e sua ideologia. O incremento da ideia de regular as relações jurídicas por meio de normas gerais, e não de regras válidas caso a caso, coincide com o aumento da autoridade do rei, sobretudo em desfavor dos privilégios do clero e da nobreza” (FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 83). [17] Lembra JÔNATAS LUIZ MOREIRA DE PAULA : “As Ordenações Afonsinas, vigentes na época do descobrimento do Brasil, pode ser considerada como a primeira legislação processual em vigor na Terra de Santa Cruz” (História do Direito Processual Brasileiro: das origens lusas à Escola Crítica do Processo, p. 144). Esta observação, ainda que verdadeira no sentido formal, poderia ser objeto de questionamento, tendo em vista a ausência de comprovação empírica da aplicação de um “direito processual” nos primórdios da colonização, ainda mais nas duas primeiras décadas do século XVI. [18] HESPANHA, Antônio Manuel. O direito dos letrados no império português, p. 134. [19] idem, Cultura Jurídica Europeia, pp. 247/248. [20] Atribui-se a D. João II a emblemática frase: “eu sou o senhor dos senhores, não o servo dos servos”, para demonstrar sua superioridade sobre os nobres. [21] COELHO, Maria Helena da Cruz. “O final da Idade Média, p. 20. [22] COELHO, Maria Helena da Cruz, op. cit., p. 27. [23] Interessante é a observação de ALEXANDRE MÁRIO PESSOA VAZ, ao abordar uma das contribuições deste período: “nossa primeira instituição oficial dos juízes conciliadores (os ‘Aviadores’ ou ‘Concertadores de demandas’ criados por Regimento de D. Manuel, de 25 de * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6137 This version of Total HTML Converter is unregistered.

Janeiro de 1519) parece ser, ao que supomos, a mais antiga da Europa, anterior portanto em algumas décadas ao conhecido e célebre Bando Bolonhês de 1574, e em mais de 250 anos aos juizes de paz franceses criados em 1790. Daí que os nossos legisladores liberais de 1820 falassem da conciliação como uma instituição ‘tão nossa, tão portuguesa’” (Direito Processual Civil: do antigo ao novo código, pp. 275/276). [24] Ressaltando-se a inexistência de uma separação rígida de funções estatais, havendo muitas vezes confusão entre as atribuições dos juízes e demais autoridades, como apontam WEHLING & WEHLING (op. cit., pp 51/84). [25] Ordenações Manuelinas, Livro I, tít. 44; Ordenações Filipinas, Livro I, tít. 65 [26] Assim descreve ANTÔNIO MANUEL HESPANHA: “um ponto que, na literatura corrente sobre o tema, merece, a nosso ver, revisão é o dos padrões de julgamento dos juizes locais; pois, dado o seu frequente analfabetismo, não poderiam aplicar o quadro de fontes de direito escrito e letrado” (Cultura Jurídica Europeia, p. 190). [27] Figura presente já nas Ordenações Afonsinas, Livro I, Título XXV. [28] Ainda que, no plano formal, houvesse a preocupação de se isolar o juiz ordinário do cotidiano municipal, já que “o exercício da atividade judicial era regido por uma série de normas que objetivavam coibir envolvimento maior dos magistrados com a vida local, mantendo-se eqüidistantes e leais servidores da Coroa” (WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil, p. 64). [29] O simbolismo estava presente até em detalhes como o porte de varas de cores diferenciadas. Impunham as Ordenações Filipinas que os juizes letrados carregassem varas pintadas de branco, enquanto os leigos deveriam usar varas vermelhas (Livro I, tít. LXV, 1). Na colônia, observa CÂNDIDO MENDES DE ALMEIDA, “não obstante a legislação em vigor, os Juízes de Fora e Ordinários usavão no Brasil da vara, quando incorporados com as Câmaras, servindo-se ordinariamente, para distinctivo de sua autoridade, de uma meia lua de vime enrolada em panno de seda branca ou vermelha, se não pintada dessas côres, pregada na aba direta das casacas. Ignoramos a razão de semelhante usança” (Código philippino ou Ordenações e leis do Reino de Portugal, p. 134). Já os juizes de paz, por força do Decreto de 14 de Junho de 1831, deveria portar uma faixa a tiracolo com três tarjas, sendo duas verdes e uma amarela no centro. [30] Expressão cunhada por PAOLO GROSSI, presente em vários artigos compilados no livro “Mitologias Jurídicas da Modernidade”. [31] “’Rústicos’ não era, de facto, uma expressão neutra no discurso da Baixa Idade Média. Longe de constituir uma simples evocação do mundo rural, ela continha uma conotação nitidamente pejorativa equivalente a ‘grosseiro’ (grossus, grossolanus), ‘rude’ e ‘ignorante’, por oposição a um ideal de cultura literária que, cada vez mais, se vinha impondo” (HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Jurídica Europeia, p. 274). [32] Ibid., p. 278. [33] Sustentando tal tese, CÂNDIDO MENDES DE ALMEIDA, em suas anotações às Ordenações Filipinas: “O fim principal da sua criação foi a usurpação da jurisdição, para o poder régio, dos juízes territoriais; o que pouco a pouco se foi fazendo, com gravame das populações, a que a instituição sempre pareceu e foi obnóxia” (Código philippino ou Ordenações e leis do Reino de Portugal. Livro I, p. 134). [34] FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 217. [35] HESPANHA, Antônio Manuel. O direito dos letrados no império português, p. 261. [36] Ibid., p. 363. [37] Direito e Justiça no Brasil Colonial – O Tribunal de Relação do Rio de Janeiro (1751-1808), p. 69. Reconhecem os autores a existência de duas limitações da jurisdição dos juizes ordinários: de direito (controle hierárquico pelos juizes de fora, ouvidores e Relações) e de fato (justiça privada do mandonismo local). [38] Ibid., p. 72. [39] Ibid., p. 76. [40] FAORO, Raymundo. “Existe um pensamento político brasileiro?”, p. 66. [41] HESPANHA, Antônio Manuel. O direito dos letrados no império português, p. 272. [42] “Declaro, que os estilos da Corte devem ser somente os que se acharem estabelecidos, e aprovados pelos sobreditos Assentos na Casa da Suplicação: E que o costume deve ser somente o que a mesma Lei qualifica nas palavras = Longamente usado, e tal, que por Direito se deva guardar = Cujas palavras Mando; que sejam sempre entendidas no sentido que correrem copulativamente a favor do costume; de que se tratar, os três essenciais requisitos: de ser conforme às mesmas boas razões, que deixo determinado, que constituem o espírito das Minhas Leis: De não ser a elas contrario em coisa alguma: E de ser tão antigo, que exceda o tempo de cem anos. Todos os outros pretensos costumes, nos quais não concorrerem copulativamente todos estes três requisitos, Reprovo, e Declaro por corruptelas, e abusos: Proibindo, que se aleguem, ou por eles se julgue, debaixo das mesmas penas acima determinadas, não obstantes todas, e quaisquer Disposições, ou Opiniões de Doutores, que sejam em contrario (...)” [43] Direito e Justiça no Brasil Colonial – O Tribunal de Relação do Rio de Janeiro (1751-1808), p. 37 [44] A pesquisa não encontrou dados substanciais sobre o tema em Angola, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. [45] Como observa RENÉ DAVID. em seu tratado de direito comparado, “admitiu-se a União Soviética que pudessem existir diferenças entre os direitos das democracias populares e o direito soviético. É natural que se afastem do modelo soviético. Os desvios devem, contudo, obedecer a certos limites, se um Estado pretende continuar na família dos países socialistas; na Rússia, observa-se com certa preocupação o desejo manifestado por alguns de construir ‘um novo modelo de sociedade socialista’. Teme-se que, sob pretexto desta fórmula, se venham a abandonar certos princípios, julgados fundamentais pelo socialismo, interpretando de maneira diferente da russa a doutrina básica do marxismo-leninismo” (Os grandes sistemas do direito contemporâneo, pp. 222/223) [46] A Constituição Soviética de 1977 foi a quarta na história socialista da extinta URSS (precedida pelas de 1918, 1924 e 1936). [47] “In the USSR there are the following courts: the of the USSR, the Supreme Courts of Union Republics, the Supreme Courts of Autonomous Republics, Territorial, Regional, and city courts, courts of Autonomous Regions, courts of Autonomous Areas, district (city) people's courts, and military tribunals in the Armed Forces”. (retirado de ) [48] Art. 152: “People's judges of district (city) people's courts shall be elected for a term of five years by the citizens of the district (city) on the basis of universal, equal and direct suffrage by secret ballot. People's assessors of district (city) people's courts shall be elected for a term of two and a half years at meetings of citizens at their places of work or residence by a show of hands”. [49] Art. 159: “Judicial proceedings shall be conducted in the language of the Union Republic, Autonomous Republic, Autonomous Region, or Autonomous Area, or in the language spoken by the majority of the people in the locality. Persons participating in court proceedings, who do not know the language in which they are being conducted, shall be ensured the right to become fully acquainted with the materials in the case; the services of an interpreter during the proceedings; and the right to address the court in their own language”. [50] “O tribunal não é a expressão natural da justiça popular mas, pelo contrário, tem por função histórica reduzi−la, dominá−la, sufocá−la, reinscrevendo−a no interior de instituições características do aparelho de Estado” (FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, p.39). [51] “Compreende−se porque na França e, creio, na Europa Ocidental, o ato de justiça popular é profundamente anti−judiciário e oposto à própria forma do tribunal. Nas grandes sedições, desde o século XIV, atacam−se regularmente os agentes da justiça, tal como os agentes do fisco e, de uma maneira geral, os agentes do poder: abrem−se as prisões, expulsam−se os juizes e fecha−se o tribunal. A justiça popular reconhece na instância judiciária um aparelho de Estado representante do poder público e instrumento do poder de classe”. (Ibid., p.43). [52] Ibid., pp.60/61 [53] Sobre a tradição africana, merece destaque o estudo comparativo de OSCAR CHASE, envolvendo o sistema jurídico norte-americano e as práticas dos Azande, tribo do Centro-Norte africano, assim analisadas: “the process the Azande used for resolving their disputes were a link in a circular chain from belief to authority to action and back to belief: the central role of the oracle as a fact finder supported their system of social stratification, their ideas about appropriate gender relations and their metaphysics. This is the ‘lesson’ of the Azande ” (Law, Culture and Ritual, p. 29) [54] DAVID. René. Op. cit., p. 641. [55] Publicado no Journal of African Law, vol. 28, Março de 1984, pp 90/98. [56] Os melhores dados sobre o tema estão nas investigações desenvolvidas pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, coordenadas por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS. Após o clássico estudo sobre a composição de conflitos em favelas no Rio de Janeiro, realizados nos anos 1970, o CES passou a investir em estudos neste campo, como se observa em diversos relatórios e publicações, além de sucessivas teses acadêmicas. [57] SANTOS, Boaventura de Sousa. “O Estado e o Direito na Transição Pós-Moderna: para um Novo Senso Comum sobre o Poder e o Direito”, p. 29. [58] SANTOS, Boaventura de Sousa. “O Estado e o Direito na Transição Pós-Moderna: para um Novo Senso Comum sobre o Poder e o Direito”, p. 29. [59] VARELA, Odair Bartolomeu. “A Extinção dos «Tribunais Populares» em Cabo Verde Perante o Processo de Globalização Hegemónica

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6138 This version of Total HTML Converter is unregistered.

do Direito: A Reinvenção Contra –Hegemónica é Mito ou Realidade?”, p. 08. [60] Ibid., p. 12. [61] “Em 1975, estabelecida a independência do país, o projecto socialista moçambicano passava pelo «escangalhamento» de todos os vestígios coloniais e pela construção de uma nova sociedade. O Estado procurou pôr fim à justiça dualista e às autoridades tradicionais, vistas como aliadas do poder colonial, e criar um sistema de justiça que se pretendia indígena, mas não tribal. Assim, em 1978, foi aprovada a Lei Orgânica dos Tribunais Populares, que previa a criação de tribunais populares em diferentes escalões territoriais, onde juízes profissionais trabalhavam ao lado de juízes eleitos pela população. Na base da pirâmide, os tribunais de localidade ou de bairro funcionavam exclusivamente com juízes eleitos, desprofissionalizados, que conheciam das infracções de pequena gravidade e decidiam de acordo com o bom senso e a justiça e tendo em conta os princípios que presidiam à construção da sociedade socialista (...). Os tribunais populares de base deveriam substituir as autoridades tradicionais ao nível das funções judiciais. Contudo, a estas cabiam, ainda, funções administrativas, que, na estrutura estabelecida pelo Estado moçambicano, passariam a ser desempenhadas pelos Grupos Dinamizadores (GDs). Ora, isto não significa que as autoridades tradicionais tenham desaparecido, de facto, do mapa da administração e da justiça moçambicano. A realidade nem sempre correspondeu à retórica do Estado e em diversos contextos (sobretudo rurais), as ATs sobreviveram, mantiveram a legitimidade e vieram a colmatar um vazio tantas vezes deixado pelo Estado” (ARAÚJO, Sara. “Acesso à justiça e pluralismo jurídico em Moçambique. Resolução de litígios no bairro ‘Jorge Dimitrov’”, p. 07). [62] O relatório observa a presença de um verdadeiro pluralismo jurídico na região, pois “o direito é uma configuração plural de direitos em que se combinam o direito português, o direito da Administração portuguesa de Macau, o direito internacional luso-chinês, o direito chinês, os usos e costumes do Sul da China e, especificamente, de Macau e alguns ramos do direito (nomeadamente, o direito económico, direito contabilístico e direito comercial) de Hong Kong”. [63] SANTOS, Boaventura de Sousa. “A justiça e a comunidade em Macau: problemas sociais, a administração pública e a organização comunitária no contexto da transição”. [64] Curiosa foi a atuação da ONU, por meio da operação apelidada UNTAET (“United Nations Transitional Administration in East Timor”), pois foi a primeira vez que as Nações Unidas tomavam a si a montagem dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de um país em formação, conforme autorizava a Resolução nº 1272 (1999) do Conselho de Segurança das Nações Unidas. [65] SIMIÃO, Daniel Schroeter. “Representando corpo e violência: o combate à violência doméstica em Timor Leste”, in Anais do 28º Encontro Anual da ANPOCS. Com algumas alterações, este trabalho veio a ser republicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais. [66] COSTA, Marcelo Dolzany da. “O Sistema Judiciário em Timor Leste (1999-2002)”, pp. 39/49. [67] SIMIÃO, Daniel Schroeter. Op. cit., p. 144. [68] Sobre a colonização e aplicação do direito português, merece nota a observação de ANTÔNIO CARLOS WOLKMER: “a compreensão, quer da cultura brasileira, quer do próprio Direito, não foi produto da evolução linear e gradual de uma experiência comunitária como ocorreu com a legislação de outros povos mais antigos. Na verdade, o processo colonizador, que representava o projeto da Metrópole, instala e impõe numa região habitada por populações indígenas toda uma tradição cultura alienígena e doto um sistema de legalidade ‘avançada’ sob o ponto de vista do controle e da efetividade formal” (História do Direito no Brasil, p. 45). ARNO E MARIA JOSÉ WEHLING ressaltam que “a versão tradicional na historiografia, inclusive na historiografia jurídica, é a do puro e simples domínio da ordem jurídica europeia” (Op. cit., p. 19). No entanto, ainda que admitam a necessidade de maiores pesquisas sobre o tema, apresentam tipologia sobre as regras jurídicas nos seguintes territórios no Brasil-colônia: a) áreas de aplicação do direito português (presença maior do Estado); b) comunidades indígenas isoladas ou de contato intermitente com os brancos; c) áreas de justiça privada latifundiária; e d) comunidades resistentes de origem africana (ibid., pp. 21/22). [69] PACHECO, José da Silva. Evolução do processo civil brasileiro (desde as origens até o advento do novo milênio), p. 11. [70] FAORO, Raymundo. “Existe um pensamento político brasileiro?”, p. 63. [71] VIANNA, Francisco José Oliveira. Instituições políticas brasileiras, 135. Em seguida, o jurista afirma: “os elementos da população das vilas, termos e comarcas, que chamamos, realmente, hoje povo estavam excluídos praticamente – e também legalmente – da incumbência de concorrer para a constituição dos poderes públicos municipais – como eleitores, e também do próprio exercício destes poderes – como representantes. Durante cerca de 300 anos, não colaboraram portanto, nem podiam colaborar, na administração local – nem como eleitores (jus sufragii), nem como titulares qualificados (jus honorum)” (ibid., p. 137). [72] WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil, p. 71. [73] Ressalta BÓRIS FAUSTO que “o Estado português não se ajusta à ideia de uma máquina burocrática esmagadora, transposta com êxito para a Colônia. A tentativa de transpor a organização administrativa lusa para o Brasil chocou-se com inúmeros obstáculos, dada a extensão da Colônia, a distância da Metrópole e a novidade dos problemas a serem enfrentados. O Estado foi estendendo seu alcance ao longo do tempo, diríamos melhor ao longo dos séculos, sendo mais presente nas regiões que eram o núcleo fundamental da economia de exportação. Até meados do século XVII, a ação das autoridades somente se exerceu com eficácia na sede do governo-geral e das capitanias à sua volta. Nas outras regiões predominaram as ordens religiosas, especialmente a dos jesuítas, considerada um Estado dentro do Estado, ou os grandes proprietários rurais e apresadores de índios” (História concisa do Brasil, p. 37). [74] FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 210. [75] Sobre as polêmicas acerca na natureza jurídica das sesmarias, ver TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social, pp. 16/32. [76] VIANNA, Francisco José Oliveira. Op. cit., p. 208. Outra referência fundamental na história do Brasil, CAPISTRANO DE ABREU relata que “nas terras dos donatários não poderiam entrar em tempo algum corregedor, alçada ou outras algumas justiças reais para exercer jurisdição”. Isto se justificaria pelo seguinte fato: “convicto da necessidade desta organização feudal, D; João III tratou menos de acautelar sua própria autoridade que de armar os donatários com poderes bastantes para arrostarem usurpações possíveis dos solarengos vindouros, análogas às ocorridas na história portuguesa da média idade”(Capítulos de História Colonial, p. 49). Para uma melhor compreensão das polêmicas literárias, há a síntese de ANTÔNIO MANUEL HESPANHA (Cultura jurídica europeia, pp. 183/189). [77] BÓRIS FAUSTO observa que “a instituição de um governo-geral representou um esforço de centralização administrativa, mas o governador-geral não detinha todos os poderes, nem, em seus primeiros tempos, podia exercer uma atividade muito abrangente. A ligação entre as capitanias era bastante precária, limitando o raio de ação dos governadores. A correspondência dos jesuítas dá claras indicações desse isolamento. Assim, em 1552, escrevendo da Bahia aos irmãos de Coimbra, o padre Francisco Pires queixa-se de só poder tratar de assuntos locais porque ‘às vezes passa um ano e sabemos uns dos outros, por causa dos tempos e dos poucos navios que andam pela costa e às vezes se veem mais cedo navios de Portugal que das capitanias’. Um ano depois, metido no sertão de São Vicente, Nóbrega diz praticamente a mesma coisa: ‘Mais fácil é vir de Lisboa recado a esta capitania que da Bahia’” (História concisa do Brasil, p. 21). [78] Capítulos de História Colonial, p. 56. [79] WEHLING, Arno & WEHLING, Maria José. Op. cit., pp. 45/48. [80] SILVA, Francisco Ribeiro da. “Instituições municipais no intercâmbio com o Brasil: expressão e reprodução de identidade”, pp. 108/110. [81] Como bons exemplos da identidade entre estes dois países, basta mencionar a abdicação de D. Pedro para assumir o trono português, em sua luta liberal contra o irmão D. Miguel; e as semelhanças entre as constituições brasileira de 1824 e portuguesa de 1826. Como observa FRANCISCO RIBEIRO DA SILVA, “a expressão mais flagrante desse parentesco surge nas duas leis fundamentais de cada um dos países: na Constituição Brasileira de 25 de Março de 1824 e na Carta Constitucional de 1826, dada por D. Pedro IV, os artigos sobre as Câmaras Municipais são 3 e são copiados ipsis verbis de uma para outra” (Op. cit., p. 111). [82] Além das rebeliões pré-1822, como Inconfidência Mineira (1789), Conjuração dos Alfaiates na Bahia (1798) e Revolução Pernambucana (1817); merece destaque o sentimento antilusitano crescente após a Independência. GLADYS SABINA RIBEIRO, historiadora da UFF, ao pesquisar a construção da cidadania nacional, afirma: “o que podemos chamar hoje de identidade do ‘ser brasileiro’ era traçada contra o ‘ser português’, o ‘outro’ em diferentes planos” (“Nação e cidadania no jornal O Tamoio. Algumas considerações sobre José Bonifácio, sobre a Independência e a Constituinte de 1823”, p. 55). [83] “Foram raras (...) as manifestações cívicas durante a Colônia. Excetuadas as revoltas escravas, das quais a mais importante foi a de Palmares, esmagada por particulares a soldo do governo, quase todas as outras foram conflitos entre setores dominantes ou reações de brasileiros contra o domínio colonial. No século XVIII houve quatro revoltas políticas. Três delas foram lideradas por elementos da elite e constituíam protestos contra a política metropolitana, a favor da independência de partes da colônia.(...) Chegou-se ao fim do período colonial com a grande maioria da população excluída dos direitos civis e políticos e sem a existência de um sentido de nacionalidade” (CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho, pp. 24/25). [84] “O elemento nacional está no sentido certo: não se trata de um pensamento nacional, de um país como Nação, mas como núcleos não homogêneos, com um projeto – apenas como projeto – nacional” (FAORO, Raymundo. “Existe um pensamento político brasileiro?”, p. 79). [85] História concisa do Brasil, p. 62. [86] Destaca RAYMUNDO FAORO que “a política de contemporização da Corte encontra os obstáculos irremovíveis da administração

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portuguesa (...), na verdade o Estado, exposto na centralização, no sistema tributário e no favorecimento estamental ao colonizador. Formara-se, ao lado da burocracia estamental e portuguesa, uma subcamada brasileira, discriminada no exército e na administração civil” (“Existe um pensamento político brasileiro?”, p. 95). [87] Entre outros, ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira; BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil; COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro; FALCÃO NETO, Joaquim de Arruda. Os cursos jurídicos e a formação do Estado Nacional; NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil; VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo: 150 anos de ensino jurídico no Brasil. [88] CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial, p. 21. [89] ibidem, p. 99. [90] Idem. [91] ibidem, p. 148. [92] FAORO, Raymundo. “A República inacabada”, p. 110. [93] “O patrimonialismo, organização política básica, fecha-se sobre si próprio com o estamento, de caráter marcadamente burocrático. Burocracia não no sentido moderno, como aparelhamento racional, mas da apropriação do cargo – o cargo carregado de poder próprio, articulado com o príncipe, sem a anulação da esfera própria de competência. O Estado ainda não é uma pirâmide autoritária, mas um feixe de cargos, reunidos por coordenação, com respeito à aristocracia dos subordinados” (FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p.102). [94] ibidem, p. 62. [95] ibidem, p. 109. [96] ibidem, p.829. [97] STOPINO, Mario. “Autoritarismo”, p. 94. [98] Sobre as polêmicas teóricas presentes no pensamento social brasileiro, no tocante à antinomia “Estado forte/Estado fraco”, merece leitura a obra de EDMUNDO CAMPOS COELHO (As profissões imperiais, especialmente as páginas 59/64). [99] STOPINO, Mario. Op. cit., p. 101. O autoritarismo no processo brasileiro é bem marcado na Exposição de Motivos do Código de 1939, da lavra de FRANCISCO CAMPOS, cujo discurso mostra bem a concepção de Estado da época: “O regime instituído em 10 de novembro de 1937 consistiu na restauração da autoridade e do caráter popular do Estado. O Estado caminha para o povo e, no sentido de garantir-lhe o gozo dos bens materiais e espirituais, assegurado na Constituição, teve que reforçar a sua autoridade, a fim de intervir de maneira eficaz em todos os domínios que viessem a revestir-se de caráter público. Ora, se a justiça, em regime liberal, poderia continuar a ser o campo neutro em que os interesses privados procurariam, sob a dissimulação das aparências publicas, obter pelo duelo judiciário as maiores vantagens compatíveis com a observância formal de regras de caráter puramente técnico, no novo regime haveria de ser um dos primeiros domínios, revestidos de caráter público, a ser integrado na autoridade de Estado. Do que fica dito resulta, necessariamente, o sistema que foi adotado no projeto. A questão de sistema não é uma questão a ser resolvida pelos técnicos; é uma questão de política legislativa, dependendo, antes de tudo, do lugar que o Estado, na ordem dos valores, destina à justiça, e do interesse maior ou menor que o Estado tenha em que ela seja administrada como o devem ser os bens públicos de grau superior. Ora, ninguém poderá contestar que no mundo de hoje o interesse do Estado pela justiça não pode ser um interesse de caráter puramente formal: a Justiça é o Estado, o Estado é a Justiça. À medida que crescem o âmbito e a densidade da justiça, a sua administração há de ser uma administração cada vez mais rigorosa. mais eficaz, mais pronta e, portanto, requerendo cada vez mais o uso da autoridade pública” (“Exposição de motivos do Projeto do Código de Processo Civil”, p. 166). [100] CARVALHO, Alberto Antônio de Moraes. Praxe Forense ou Directorio Pratico do Processo Civil Brasileiro conforme a actual legislação do Império, p. 38. [101] “Este anno de pratica é contado do dia, em que o bacharel formado se inscreve na classe dos advogados dos auditórios de uma cidade, ou villa; e é de sua obrigação provar cumpridamente a sua frequencia, e o seu exercício do foro durante esse anno de pratica” (PINTO, José Maria Frederico de Souza. Primeiras linhas sobre o processo civil brasileiro, p. 17). [102] Conforme disciplinavam a lei de 03/12/1841 (art. 13) e o regulamento de 31/01/1842 (arts. 34 e 35), como descreve BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro, p. 44. [103] Regulamento de 31/01/1842, art. 34: “O juiz municipal é quatriennal: findos os quatro annos, tendo servido bem, é promovido a juiz de direito, havendo vaga; ou é reconduzido, ou nomeado para outro lugar melhor, por outro tanto tempo” (PINTO, José Maria Frederico de Souza. Op. cit., p. 17). Este prazo é contado “do dia em que o juiz toma posse do seu lugar, ainda mesmo que seja provisoriamente nomeado pelo presidente da província, sendo a nomeação posteriormente confirmada por decreto, e carta imperial (circul. 27 jan 1846, declarando o art. 9 do regulamento 31 janeiro 1842 e o aviso 10 jul. 1844)” (ibid., p. 17). [104] “A estes juizes compete: 1º processar, e julgar definitivamente todas as causas cíveis, que perante elles fôrem instauradas, tanto ordinárias como summarias, á excepção das que tem fôro privilegiado; 2º exercer a jurisdicção dos juizes de orphãos nos termos, em que os não houver; 3º julgar as suspeições no caso da Ord. Liv. 3, tit. 21, § 8, onde não houver juizes do cível; 4º providenciar que no seu juízo se não deixe de promover as solemnidades legaes, para obrigar os interessados ao pagamento da taxa das heranças e legados; 5º exercer jurisdicção indistincta e cumulativa nas grandes povoações, em que estiverem em numero de dous ou mais; 6º conceder cartas de legitimação a filhos illegitimos, e confirmar as adoções; 7º a insinuação das doações; 8º a subrogação dos bens, que são inalienáveis; 9º supprir o consentimento do marido para a mulher revogar em juízo a alienação por elle feita; 10º admitir caução de opere demoliendo; 11º permitir aos escrivães e tabelliães que tenha cada um seu escrevente juramentado, para escrever nos casos, em que as leis o consentem; 12º processar e julgar contenciosa e administrativamente as causas da competência da provedoria das capellas e resíduos; 13º pela mesma fórma processar e jugar, ainda mesmo que no lugar haja juiz do cível, as causas de almotaceria, que excederem a alçada dos juizes de paz; 14º executar nos seus respectivos termos todos os mandados e as sentenças cíveis, quer sejão por elles mesmo proferidas, quer por outros juizes ou tribunaes, á excepção só e unicamente das que estiverem dentro da alçada dos juizes de paz; 15º exercer, na fórma das leis em vigor, toda a sua jurisdicção civil, que exercião os juizes do cível; 16º da mesma sorte exercer a jurisdicção dos juizes de orphãos nos termos, em que os não houver, ou por não terem sido creados, ou em que as suas funcções não fôrem exercidas pelos juizes do cível”. (PINTO, José Maria Frederico de Souza. Op. cit., pp. 18/20). [105] BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro, p. 43. Frise-se que, assim como há atualmente, os juizes imperiais possuíam assessor, tido como “uma pessoa graduada, adjuncta a um juiz principal, e particularmente para o aconselhar nas sentenças que dá, e julgar juntamente com elle” (PEREIRA E SOUZA, Dicionário Jurídico, apud CARVALHO, Alberto Antônio de Moraes. Op. cit., p. 52). Em outras palavras, “o assessor deve ser formado em direito, e homem que goze de boa fama” (Id., ibid.). [106] Merece destaque o intenso trabalho de pesquisa desenvolvido por EDSON ALVISI NEVES, em sua obra Magistrados e negociantes na corte do Império do Brasil: o tribunal do comércio (1850-1875). [107] Até então, o júri era limitado aos crimes de imprensa, conforme previa uma das últimas leis do reino unido (Lei de 18 de junho de 1822). [108] Código de Processo Criminal de 1832, art. 23: “são aptos para serem jurados todos os cidadãos que podem ser eleitores, sendo de reconhecido bom senso e probidade”. [109] Código de Processo Criminal de 1832, art. 24: “as listas dos cidadãos, que estiverem nas circumstancias de serem jurados, serão feitas em cada Districto por uma Junta composta do Juiz de Paz, Parocho, ou Capellão, e o Presidente, ou algum dos Vereadores da Camara Municipal respectiva, ou, na falta destes ultimos, um homem bom, nomeado pelos dous membros da Junta, que estiverem presentes”. [110] Destaque-se que o Brasil apenas teve um código nacional de processo civil em 1939. Até então, a legislação processual encontrava-se espalhada em vários dispositivos, como a Consolidação Ribas, o Código Comercial, os códigos estaduais republicanos etc. [111] FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 351. [112] LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias, p. 289. [113] Sobre o processo eleitoral para a escolha dos juizes de paz, ver a síntese legislativa de ROSA MARIA VIEIRA (O Juiz de Paz: do Império aos nossos dias, pp. 171/191) Vale destacar, que no referido período histórico, JOSÉ MURILO DE CARVALHO, acentua que o Brasil apresentava uma legislação eleitoral extremamente liberal: “A Constituição regulou os direitos políticos, definiu quem teria direito de votar e ser votado. Para os padrões da época, a legislação brasileira era muito liberal. Podiam votar todos os homens de 25 anos ou mais que tivessem renda mínima de 100 mil- réis. Todos os cidadãos qualificadados eram obrigados a votar. As mulheres não votavam, e os escravos, naturalmente, não eram considerados cidadãos. Os libertos podiam votar na eleição primária. A limitação de idade comportava exceções. O limite caía para 21 anos no caso dos chefes de família, dos oficiais militares, bacharéis, cléricos, empregados públicos, em geral de todos os que tivessem independência econômica. A limitação de renda era de pouca importância. A maioria da população trabalhadora ganhava mais de 100 mil- réis por ano. Em 1876, o menor salário do serviço público era de 600 mil-réis. O critério de renda não excluía a população pobre do direito

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do voto. Dados de um município do interior da província de Minas Gerais, de 1876, mostram que os proprietários rurais representavam apenas 24% dos votantes. O restante era composto de trabalhadores rurais, artesãos, empregados públicos e alguns poucos profissionais liberais. As exigências de renda na Inglaterra, na época, eram muito mais altas, mesmo depois da reforma de 1832. A lei brasileira permitia ainda que os analfabetos votassem. Talvez nenhum país europeu da época tivesse legislação tão liberal. (...) Esta legislação permaneceu quase sem alteração até 1881” (Cidadania no Brasil: o longo caminho, pp.29-30). [114] Código de Processo Criminal, arts. 9, 10, portaria de 8 jul 1834, aviso nº 1 de 19/02/1838, aviso nº 5/05/1840 e aviso nº 15/12/1840 (PINTO, José Maria Frederico de Souza. Op. cit., p. 26). [115] NEVES, Edson Alvisi, op. cit., p. 30. [116] Constituição de 1824, art. 161: “Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará Processo algum”; art. 162: “Para este fim haverá juizes de Paz, os quaes serão electivos pelo mesmo tempo, e maneira, por que se elegem os Vereadores das Camaras. Suas attribuições, e Districtos serão regulados por Lei”. O advogado JOSÉ MARIA FREDERICO DE SOUZA PINTO, em seu manual de processo civil, representa bem o pensamento da época sobre a conciliação, como se observa nesta passagem: “Na legislação pátria, de ha muito estava canonisado o principio de que as demandas encommodão ao estado, perturbão os tribunaes, destroem a paz em que devem viver os cidadãos uns com os outros, originão dissenções, e estabelecem odios entre elles; e que cumprindo evitarem-se estes enconvenientes, devião os juizes tentar reduzir as partes á concordia. Por fim, reconheceo-se que a conciliação é dever de necessidade, e não de honestidade; reconheceo-se que o juízo contencioso deve ser precedido pelo conciliatório; determinou-se muito expressamente que nenhum processo fosse instaurado no fôro contencioso, sem primeiro no juízo de paz ser tentada a conciliação entre as partes. Enquanto não foi definitivamente creado o juízo de paz, varias providencias se derão para que os povos entretanto gozassem o beneficio daquelle preceito constitucional. Hoje é da exclusiva competência dos juizes de paz conciliar, por todos os meios pacíficos ao seu alcance, as partes, que pretendem demandar; não lhes sendo permitido por principio algum constrangê-las a estarem pela conciliação, que propozerem” (Op. cit., pp. 127/128). No mesmo sentido, PIMENTA BUENO defende que “O pensamento do art. 161 da constituição é de prevenir demandas inconsideradas, e com ellas inimizades e prejuízos que causão males aos indivíduos, assim como á paz das famílias, e á riqueza publica. A instituição de magistrados electivos, de juizes populares, ou de paz, que a constituição estabelece em seu art. 162, é sem dúvida a mais apropriada ao fim a que ella se propõe” (Do direito publico brazileiro e analyse da constituição do império, p. 342). [117] PINTO, José Maria Frederico de Souza. Op. cit., p. 129. [118] Provimento, artigos. 1,2,3,3,5,6 e 7; decreto de 20/09/1829, art. 4; decreto 26/08/1830; lei de 03/12/ 1841, art. 114; lei de 11/10/1837; regulamento de 15/03/1842, art. 1, §§ 1,2,3,4 (ibid., p. 27). [119] VELLASCO, Ivan de Andrade. “O juiz de paz e o código do processo: vicissitudes da justiça imperial em uma comarca de Minas Gerais no século XIX”, pp. 68/69. [120] KOERNER, Andrei. Judiciário e cidadania na constituição da República brasileira. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 79. [121] “Portugal legou-nos com sua legislação, na época da Independência, a confusão do Poder Administrativo com o Judicial, confusão própria de um govêrno absoluto, e portanto de uma organização que não conhecia a divisão dos Poderes. Por aquela legislação exerciam os Juizes muitas e importantes atribuições administrativas. O direito civil e privado, o criminal, o comercial, o administrativo, e as jurisdições respectivas jaziam indiscriminadamente envolvidas no avultado montão das Ordenações e leis extravagantes. Estavam as coisas de modo que a administração não podia preencher a sua missão sem o auxílio do Poder Judicial, então seu instrumento e subordinado. Todos os interesses gerais e locais estavam confundidos, e entregues às mesmas mãos. A instituição das municipalidades, única que tinha alguns laivos de liberdade havia definhado, e perdido a cor à sombra do absolutismo. Cumpria, primeiro que tudo, separar a jurisdição administrativa da judicial; a polícia administrativa e preventiva da judicial. Sujeitar o que era administrativo ao Poder Administrativo sòmente; e dar-lhe sobre os seus agentes administrativos aquela ação sem a qual não pode preencher o seu fim. Reduzir a justiça judicial ao que deve ser, segundo nosso sistema, e assegurar-lhe então aquela independência que deve ter. Nada disso porém se fêz. Tratou-se sòmente de tornar a autoridade judicial, então poderosamente influente sôbre a administração, completamente independente do Poder administrativo pela eleição popular” (SOUSA, Paulino José Soares. Ensaio sobre o Direito Administrativo, pp. 370/371). [122] FLORY, Thomas. El juez de paz y el jurado em el Brasil Imperial, 1808-1871: control social y estabilidad política en el nuevo Estado, p. 81. [123] Como já assentado pela literatura especializada citada anteriormente, o bacharelismo foi fundamental para a manutenção da ordem imperial e a unidade do poder brasileiro. [124] FLORY, Thomas. Op. cit., pp. 313/319. [125] Vale lembrar que, embora minoritário, havia um movimento que pregava a reunificação dos reinos de Portugal e Brasil, sob a coroa de D. Pedro, que abdicara em 1831. Reunidos no Partido Restaurador ou Caramuru, mantinham o alerta da possibilidade de revisão da Independência. [126] FLORY, Thomas. Op. cit., p. 319. [127] LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil, p. 190. [128] PAULINO JOSÉ SOARES DE SOUSA, o Visconde de Uruguai, em seu Ensaio sobre o Direito Administrativo, vale-se do argumento cultural para criticar seus opositores liberais e naturalizar a concentração autoritária estatal: “herdamos a centralização da Monarquia Portuguesa. Quando veio a Independência e com ela a Constituição que nos rege, saiamos da administração dos Capitães Generais, dos Ouvidores de Comarca, dos Provedores, dos Juízes de Fora e Ordinários, dos Almotacés, das Câmaras da Ordenação do Livro 1º etc. Não tínhamos, como a formaram os ingleses por séculos, como a tiveram herdada os Estados Unidos, uma educação que nos habilitasse pràticamente para nos governarmos nós mesmos; não podíamos ter adquirido os hábitos, e o senso prático para isso necessários. Os homens mais adiantados em idéias liberais tinham ido bebê-las nas fontes as mais exageradas, e tendiam a tomar por modêlo as instituições dos Estados Unidos, como a mais genuína e pura expressão do liberalismo. Por outro lado, os homens chamados para o poder manifestavam tendências de conservar o que existia, e sòmente tinham estudado e conheciam, em lugar de se porém à frente de justas e razoáveis reformas práticas, acomodadas às circunstâncias do país, que operassem a transição ” (pp. 345/346). [129] LEAL, Victor Nunes. Op. cit., p. 192. [130] Ibid., p. 195. [131] FAORO, Raymundo. Os donos do poder, p. 353. [132] CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial, pp. 158/159. [133] SILVA, Ovídio Baptista da. Processo e ideologia, pp. 44/45. [134] “A justiça certamente ao mesmo tempo em que representou um espaço de efetivação de certos aspectos da cidadania e apresentou-se como a face visível e tangível do Estado para os não dominantes, desempenhou papel importante na ampliação e consolidação da base social de sustentação do Estado imperial, mais larga do que se supõe, quando se toma o conjunto da população como alheio ao que se passava na esfera pública; ela foi uma das engrenagens na montagem do campo de legitimação do poder imperial e, ao Império e aos seus homens de Estado, em suas ambições monopolizadoras, não passou desapercebida a sua função nem seu potencial de sedução para o campo da ordem” (VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração de justiça: Minas Gerais – século 19, pp. 225/226). [135] Ibid., p. 21. [136] “Somados os lançamentos dos últimos quatro anos, 1829 a 1832 portanto, aqueles que coincidem com a atividade dos juízes de paz na comarca, teremos um total de 90 registros, 31.5% de toda a amostra. Um montante superior ao total de registros de toda a década anterior, que cobre o período de maior crise na administração da justiça, alvo das críticas reformistas; somados os anos de 1819 a 1828 obtêm-se 83 registros, 29.3% em relação ao conjunto. Ainda considerados os anos que vão de 1813, início das atividades do juiz de fora, a 1818, os lançamentos somam 113, representando 39.5% do total. Parece inegável o aumento da atividade judiciária no último período da amostra, com a média de registros por ano passando de 8.3, na década que precede a mudança, para 22.5 nos últimos quatro anos. É visível, por outro lado, que o início das atividades do juiz de fora marca um forte implemento na produção judiciária, com apenas um juiz, Manuel da Costa Vilas Boas e Gama, respondendo pela maior quantidade de lançamentos por ano em toda a amostra. Isso, além de reforçar o que ficou dito anteriormente a respeito do papel que cumpre o juiz de fora na implementação da eficiência do sistema, certamente indica um represamento da ação judiciária, que viria se acumulando nos anos anteriores em função da ação, ou inação, dos juízes ordinários” (VELLASCO, Ivan de Andrade. “O juiz de paz e o código do processo: vicissitudes da justiça imperial em uma comarca de Minas Gerais no

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século XIX”, p. 72). [137] Ibidem, p. 74. [138] Ibidem, pp. 85/86. [139] Sobre as polêmicas conceituais acerca da ideologia, e sua aplicação no direito processual, referência necessária na literatura brasileira é OVÍDIO BAPTISTA (em especial, o capítulo I de seu livro Processo e Ideologia). [140] Art. 1º: “O districto dos Juizes de Paz é a fracção do município, marcada pela respectiva Câmara Municipal, devendo conter, pelo menos setenta e cinco casas habitadas” [141] Art. 2º: “As attribuições civis dos Juizes de Paz são: § 1º. Conciliar por todos os meios pacíficos, que estiverem ao seu alcance, as partes que pretenderem demandar, procedendo na fórma do art. 185 e seguintes; § 2º. Processar e julgar as causas cíveis, cujo valor não exceder a 100$000, com appellação para os Juizes de Direito, na fórma dos arts. 986 e seg. Exceptuam-se, porém as causas que versarem sobre bens de raiz, as fiscaes e as que tiverem foro privilegiado § 3º Conhecer das acções derivadas de contractos de locação de serviços, na fórma do art. 985 § 2º e seguintes”. [142] BUENO, José Antonio Pimenta. Do direito publico brazileiro e analyse da Constituição do Império, p. 342. [143] Com a federalização judiciária introduzida pela Constituição de 1891, competia aos Estados regular as atribuições dos juizes de paz, os quais retornaram ao texto constitucional em 1934 (art. 104, § 4º). O Ato Institucional nº 11, de 14 de Agosto de 1969. extinguiu a Justiça de Paz eletiva, sendo os juizes nomeados pelo Executivo (art. 4º e § único). [144] Neste sentido, merece mais uma vez destaque o trabalho de EDSON ALVISI NEVES, especialmente o item “Justiça profissional versus Justiça leiga – a organização judiciária na visão de Nabuco de Araújo”, em que se reconstrói a estratégia utilizada pelo “estadista do Império” – interpretar a lei e concentrar o poder de julgar nos magistrados bacharéis (op. cit., pp. 314/328)

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 6142