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O SENADO DA CÂMARA DA VILA DE RIO DE CONTAS-BA: CONFLITOS POLÍTICOS E APRENDIZADO NA CRISE DA INDEPÊNDENCIA (1821-1823)

Luana Teixeira Barrosi Maria Aparecida Silva de Sousaii

Introdução

Ao implantar os mecanismos de exploração colonial na América portuguesa, estabelecida a partir do século XVI, o poder monárquico instalou as primeiras câmaras como representação da autoridade régia nas localidades. Tal iniciativa baseava-se na estrutura política-administrativa tradicional de organização do Estado português, cuja lógica consistia na submissão dos poderes locais ao poder central da Coroa. Assim, conforme a fundação das vilas e cidades ia se ampliando, os órgãos camarários foram se estabelecendo do litoral aos sertões da Colônia, a fim de atingir “aos propósitos da centralização política portuguesa do século XVI” (SOUSA, 1996, p. 26). Em seu estudo sobre a importância da administração camarária e de sua influência na vida social, tendo como foco a capital Salvador, Avanete Pereira Sousa (2013) sinaliza que a formação do Senado da Câmara seguia os princípios da legislação nas Ordenações Filipinas, que exigia dos membros para constituírem o poder camarário a condição de “homens bons”. Para isso, era preciso possuir certo prestígio social e econômico em comparação aos demais habitantes das vilas e cidades o que, certamente, limitava o número dos qualificados. Todavia, o entendimento de quem seria um “homem bom” variava de lugar para lugar considerando as distintas condições de riqueza material e de inserção política, sobretudo nas vilas menores. Vale ressaltar ainda que, na maior parte das vezes, esses membros representavam posicionamentos políticos e interesses particulares heterogêneos dentro da instituição camarária. Não havia, portanto, homogeneidade nem uma lógica uniforme dentro desses órgãos administrativos do Governo Geral que desempenhavam uma ampla atuação, desenvolvendo funções diversas para o ordenamento e controle da população local. Para Caio Prado Júnior, definir o caráter das funções exercidas pelas câmaras implica em um grau de complexidade que deve ser levado em consideração. É por essa diversidade inserida no quadro de interesses distintos, tendo como base a realidade e a experiência política e social de cada região, que se torna “difícil precisar o que é da competência privativa da

Câmara”, visto que seu papel presenciava a “intervenção de outras autoridades, sobrepondo-se a ela ou correndo-lhe parelhas”. (PRADO JÚNIOR, Caio, 1992, p. 317). Dada essa complexidade, não há na historiografia brasileira um consenso no que diz respeito às funções exercidas pelas câmaras, nem da sua relevância para a manutenção do sistema político-administrativo. Embora essa discussão seja ponto de divergência entre os autores, a abordagem se torna um ponto em comum e necessário ao estudo da dinâmica interiorana no período colonial, bem como na formação e estruturação do império brasileiro. Karla Maria da Silva (2009), em sua pesquisa sobre o papel da câmara no Antigo Regime Colonial, sintetiza algumas dessas análises históricas levando em consideração os estudos de alguns autores essenciais à escrita da história do Brasil. Sobre a autonomia das câmaras, Hélio Viana, assim como Maria Beatriz Nizza da Silva, ressaltam o lugar de destaque empenhado pelas instituições do poder municipal que possuíam certa liberdade de atuação, visto que a sede do Governo Geral estava fixada em uma localidade específica, no primeiro momento na cidade de Salvador (1549) e em seguida no Rio de Janeiro (1763). Logo, a distância era um elemento propício ao surgimento de dificuldades na comunicação entre as esferas de poder local e as autoridades régias. Como consequência, as câmaras passaram a ter maior controle e autonomia não só sobre as funções administrativas, mas sobretudo nos posicionamentos políticos e na conduta dos seus próprios projetos políticos. Mesmo que essa autonomia fosse de caráter relativo, as câmaras exerceram uma influência significativa nas vilas e cidades em detrimento da autoridade metropolitana. Assim sendo, as instituições camarárias, ainda que inseridas em uma hierarquia administrativa, foram as principais unidades de exercício político no Sistema Colonial, seguindo com um papel legítimo e tradicional mesmo após a crise do Antigo Regime em fins do século XVIII. Nesse contexto, Será esta a origem da força com que contarão mais tarde as Câmaras para agir efetivamente, como de fato agiram, e intervir, muitas vezes decisivamente, nos sucessos da constitucionalização, independência e fundação do Império. Será o único órgão da administração que na derrocada geral das instituições coloniais, sobreviverá com todo seu poder, quiçá até engrandecido. (PRADO JÚNIOR, 1992, p. 319).

As Câmaras na Independência

Em finais do século XVIII e início do XIX, o Brasil passou por transformações políticas significativas. Os acontecimentos revolucionários do período propiciaram a expansão das ideias liberais e exigiram novas formas de organização do poder. Na prática, isso significou uma crítica mais profunda sobre as bases de sustentação do Estado absolutista e a mobilização de indivíduos em amplas partes do mundo Ocidental pela implantação de repúblicas ou monarquias constitucionais. No caso específico do Império português, as alterações mais amplas se iniciaram com a Revolução do Porto, em 1820, quando o monarca d. João VI ainda se encontrava no Rio de Janeiro, onde havia se estabelecido a família real anos antes, em 1808, após abandonar o reino português em virtude do avanço das tropas napoleônicas. Em 10 de fevereiro de 1821, a aderiu às Cortes portuguesas e a partir daí várias alterações políticas ocorreram na província. Entre os meses de março e maio de 1822 ocorreram várias resistências na cidade de Salvador em razão da determinação das Cortes de nomear o brigadeiro português, Inácio Luís Madeira de Melo, para ocupar o cargo de Comandante das Armas na Bahia. Segundo Tavares (2005), não havia a priori o objetivo de lutar pela proclamação da Independência na Bahia. Na verdade, o que possibilitou condições para a eclosão da guerra pela independência foi a necessidade que o recente Exército Libertador tinha em expulsar o governador das Armas e toda a Legião Lusitana do domínio político na província, já que essa autonomia dava aos portugueses o controle militar, econômico e comercial da Bahia. A “Revolução do Brasil”, como chamou o brigadeiro Madeira de Melo, não se restringiu ao centro urbano de Salvador. Em meio à instabilidade da capital, muitos civis e militares que se viram ameaçados pelo controle português se refugiaram no Recôncavo e nas vilas interioranas. Algumas dessas vilas, como Santo Amaro, e , se tornaram sedes de reuniões políticas organizadas pelos proprietários da região e por aqueles que migraram da capital. Entre as pautas discutidas, estava a de implantar um exército e marinha próprios do Brasil, assim como uma Junta governativa formada a partir da eleição do “povo”, no intuito de expulsarem os portugueses ocupantes de Salvador. (SOUZA FILHO, 2003; TAVARES, 2005). A repercussão da guerra foi ampliada até as vilas interioranas, pelo papel significativo que desempenhavam ao fornecer recursos essenciais à manutenção da guerra, como disponibilização de gêneros de primeira necessidade, auxílio financeiro e militar, e, sobretudo, apoio das instituições políticas de poder, com destaque para o Senado da Câmara. De fato, os

desdobramentos nas diversas províncias do Brasil após a Revolução do Porto (1820) estimularam as discussões e participação nas decisões camarárias não apenas daqueles que compunham a sua direção, como também de parte da população atraída pelas possibilidades de alteração dos rumos do Reino do Brasil, ainda que não se tivesse clareza sobre as alternativas de mudança. Segundo Sousa (2008), uma importante contribuição desses descontentamentos sociais foi o aprendizado político, ou seja, a formação de uma consciência política advinda das experiências individuais e coletivas que, provavelmente, não possuíam antes do movimento vintista objetivos claros de independência, mas que influenciaram, mesmo que de forma indireta, na guerra para a construção de uma nova dinâmica política. Os anos de 1822 a 1823 deram origem a uma guerra com ampla rede interesses distintos e oposições, formação de identidades políticas e desenvolvimento do sentimento antilusitano. Existia rivalidade entre as províncias e mesmo no interior destas, os interesses políticos se manifestavam de forma muito mais local. Não havia uma identidade nacional consolidada a ponto de defender interesses voltados para o conjunto da nação, ou seja, pela pátria. Os proprietários de terras e de escravos, por exemplo, queriam um governo que proporcionasse a manutenção do comércio de mão de obra escravizada. Os escravos eram, sem dúvida, uma parte importante para a manutenção dos privilégios sociais dos grandes proprietários (GUERRA FILHO, 2004) Em meio aos conflitos pela Independência e na formação do Estado e nação brasileiros enquanto “corpo político autônomo” (JANCSÓ; PIMENTA, 2000; SOUZA, 1998), o poder camarário serviu tanto como instrumento da Coroa para obter o apoio à “Santa causa do Brasil” pelas vilas interioranas, bem como representando os interesses da população local em seus conflitos internos. Desse modo, as câmaras não ficaram imunes ao impacto gerado pelas transformações políticas na degradação do Império luso-brasileiro. O poder camarário, que no período colonial constituiu um aprendizado político haja vista a abrangência de suas funções exercidas, teve sua atuação limitada na crise pela Independência devido à multiplicidade de poder agravada pela conjuntura dos acontecimentos políticos. A instalação de juntas provisórias e governos provinciais, a exemplo da Junta Provisória em Rio de Contas e o Conselho Interino de Governo da Bahia, limitou a relativa autonomia que as câmaras municipais vinham adquirindo desde o período colonial. Logo, as decisões e as demandas das vilas não eram tomadas sem a intervenção desses novos aparelhos políticos, considerando as distintas condições de cada localidade.

Na vila de Rio de Contas, as tensões políticas agravadas pela relação nada amistosa entre os “filhos da terra” e os lusitanos que residiam na vila desencadearam um cenário político de violência e convulsão social (SOUZA FILHO, 2003). Mesmo afastadas do espaço central da guerra, as áreas sertanejas possuíam núcleos dinâmicos de grande relevância para a província. Assim, dissensões políticas, disputas pelo controle local e presença de ações independentes significaram mais um obstáculo que a nova administração provincial teria que lidar, além do próprio exército lusitano em Salvador.

O Senado da Câmara na Vila de Rio de Contas Localizada no Alto Sertão da Bahia, Rio de Contas pertencia à Comarca de e foi elevada à condição de vila em 1724, sendo transferida em 1745 para a região atual do município com o nome de Vila Nova de Nossa Senhora do Livramento de Rio de Contas. Segundo Kátia Lorena (2012), entre os séculos XVIII e XIX a vila era predominantemente rural e pouco povoada. Desempenhava um papel econômico importante para a metrópole pelo fato de possuir ouro em sua extensão territorial, e mesmo após a crise mineradora e com a reordenação econômica passou a desenvolver ainda mais a produção agrícola e pecuária, aspecto fundamental à subsistência e ao comércio. O Senado da Câmara de Rio de Contas foi instalado com a elevação do povoado a vila, assim como o Tabelionato de Ofícios e a Casa de Câmara e Cadeia. Conforme determinações, o objetivo era atender as demandas políticas-administrativas da localidade, atendendo as orientações metropolitanas, cuja finalidade era explorar economicamente o território por meio das relações escravistas ali estruturadas. A intervenção do Senado da Câmara também foi fundamental para o desenvolvimento e estrutura da vila. Segundo os viajantes Spix e Martius (1818), era uma região interiorana que se destacava das demais tendo em vista sua dinâmica econômica e social. Cabia ainda à Câmara o controle sobre o comércio e a agricultura, sobretudo nos tempos de crise, problemas como a péssima condição das estradas também era levado em consideração, já que era a principal via de comunicação com a capital em uma distância significativa de 100 léguas. Distância essa que, por um lado, possibilitava condições para o desenvolvimento de relativa autonomia e, por outro, criava dificuldades de meios para o auxílio da vila, sendo de tal modo um território pouco vigiado.

O início dos anos 20 no século XIX foi marcado por uma forte crise econômica e política. Com o declínio do preço do algodão e a guerra pela independência do Brasil na província baiana, os sertões, especialmente Rio de Contas, foram tomados por uma convulsão social e violência política generalizada, dado ao crescente estado de desassossego pela influência dos acontecimentos gerais e pelos próprios conflitos internos da vila impulsionados pelas disputas de poder (SOUZA FILHO, 2003; FRUTUOSO, 2015). Assim, o Senado da Câmara que já desempenhava uma forte posição política na dinâmica da vila teve um papel fundamental no decorrer dessas mudanças políticas, por se tratar do mais antigo espaço de exercício do poder local. A Junta Governativa de Rio de Contas foi estabelecida em 14 de agosto de 1822, antes mesmo da instalação do Conselho provisório na vila de Cachoeira em 6 de setembro. Esse novo órgão local deliberativo era composto “majoritariamente de portugueses natos”, embora seus membros se autodenominassem brasileiros (FRUTUOSO, 2015). Dada as circunstâncias, tal acontecimento foi comunicado ao Conselho Interino pelo Senado da Câmara. É necessário enfatizar que o contexto que orientou a formação de algumas juntas provisórias no interior da província baiana foi a aclamação da figura imperial representada por D. Pedro. Essas juntas governativas não foram bem vistas pelo Conselho de Cachoeira e as vilas sertanejas, especialmente a de Caetité, justificou que a instalação do órgão provisório foi necessária por não existir na província um poder central organizado que desse conta das demandas locais no período (SOUZA FILHO, 2003). Essa multiplicidade de poder feria a direção política conduzida pelo Conselho Interino instalado em Cachoeira, já que o novo órgão almejava o contato direto com o Imperador sem intervenções do governo da província. Além de lidar com a guerra na capital e Recôncavo contra as tropas portuguesas e com as contradições dentro do órgão governativo de Salvador, as tensões políticas nas vilas interioranas se tornaram mais um obstáculo para o Conselho Interino, levando esse a repreender os governos temporários com a justificativa de que só por meio da centralização do poder se manteria a ordem nas vilas. De forma mais específica, o que o governo provincial pretendia era a dissolução da Junta em Rio de Contas. Conforme observam Argemiro Ribeiro (2003) e Moisés Frutuoso (2016) em estudos de significativa contribuição à historiografia baiana, sobretudo nos estudos das áreas sertanejas que carecem de maior aprofundamento, o Conselho Interino não acatou a posição do capitão José Valentim de Souza como membro e deputado representante da comarca de Jacobina no

governo de Cachoeira. Foi convocada uma nova eleição na qual seria mediada pelos “homens de bem”. Já que a eleição não foi realizada pela Câmara e sim pela Junta Provisória, órgão que o Conselho Interino cortou comunicação, dirigindo suas correspondências somente à Câmara daquela vila. Assim, toda posição tomada pelo Conselho a respeito da eleição foi apresentada aos membros da instituição camarária de Rio de Contas. Entre esses comunicados estava o de não conceder nenhum apoio financeiro ao deputado José Valentim de Souza, nem mesmo atender à solicitação feita ao capitão-mor da vila, Antônio Rocha de Bastos, de auxiliar na realização de uma nova eleição. É válido salientar que o capitão era também membro da junta provisória, mas esse não descumpriu o pedido do Conselho. Além disso, foi também delegado à administração das instituições camarárias das vilas da comarca de Jacobina a função de produzirem gêneros de primeira necessidade para auxiliar na manutenção do exército formado pelos homens da terra no Recôncavo. Houve também um apoio financeiro retirado do “Tesouro público” da vila de Rio de Contas e remetido ao Conselho Interino de Governo por ordens do juiz comissário após realização de uma sindicância na Câmara. (SOUZA FILHO, 2003; FRUTUOSO, 2016). Ao prezar pela centralização do poder em um período político tão conturbado, o imperador interveio na composição do governo provincial da Bahia, ordenando que fosse feita uma redução no número de membros e que nenhum desses fosse representante municipal. Com a limitação das vilas nas decisões de âmbito provincial, o Conselho Interino passou tomar decisões sem nenhum parecer das vilas interioranas. (FRUTUOSO, 2015; SOUZA FILHO, 2003). As distintas posições políticas manifestadas na dinâmica do poder local na vila Rio de Contas, assim como outros problemas, eram discutidas nas sessões da Câmara. Após julho de 1822, com a divulgação da imprensa sobre os movimentos a favor do Príncipe Regente, uma das questões tratadas foi sobre a aclamação de D. Pedro enquanto príncipe regente pela vila de Rio de Contas, como fora solicitado pelo governo interino provincial em correspondência aos membros do senado, mas tal festividade fora impedida por Miguel Joaquim de Castro Mascarenhas, o juiz bacharel e ex-juiz de fora. A aclamação só foi realizada na vila de Rio de Contas em 14 de agosto em paralelo à formação da Junta Provisória de Governo. (SOUZA FILHO, 2003). Ao mesmo tempo, a competitividade pelo controle do poder local entre os filhos da terra e lusitanos tomava um rumo violento, sobretudo entre os membros dos órgãos governativos da

vila na defesa de projetos distintos. Os portugueses europeus que residiam na vila de Rio de Contas possuíam forte influência na política local, e embora tivessem seus próprios interesses, prestaram apoio ao príncipe regente para que não perdessem seus cargos e influência na política local. Nesse momento de instabilidade, alguns indivíduos com certa autoridade política compartilhavam dos mesmos interesses emancipatórios que a junta rio-contense. Esse grupo político, que posteriormente se auto identificara como brasileiros, seguia a mesma posição que os membros do Senado da câmara e se posicionaram a favor da administração da província, representada pelo Conselho Interino de Cachoeira, alegando que os membros da Junta, na verdade, lideravam o partido europeu na vila (FRUTUOSO, 2015). Em uma das sessões no Senado da câmara realizadas em outubro de 1822 teve como pauta a eleição, mencionada anteriormente, de um deputado para compor a constituição do Conselho Interino e que pudesse representar os interesses da Vila de Rio de Contas. A figura política que defendeu essa pauta no senado era José Honório, membro do grupo de identidade brasileira e contestador as decisões tomadas pela junta rio-contense, que mais tarde seria assassinado por expressar o sentimento antilusitano, pouco depois de discutir com o padre Ignácio Ferreira da Silva, o secretário da junta na época. Participar da sessão da Câmara no dia 1° de novembro de 1822 era um risco que José Honório estava ciente de ser cometido, dado ao momento e lugar propícios a posicionamentos divergentes. Esse assassinado modificou os rumos da política de Rio de Contas e agravou os conflitos políticos internos na vila, levando os parentes de José Honório e aliados à Santa Causa Brasileira a buscarem meios judiciais para responsabilizar o sargento-mor e membro da junta, Antônio Rocha de Bastos, e seus aliados pelo homicídio de um filho da terra, bem como afastar os portugueses dos cargos políticos de maior relevância ou, pelo menos, limitar sua influência. (FRUTUOSO, 2015). O fato é que a Junta Temporária assumiu uma postura dúbia com o Conselho Interino. Para evitar uma interferência mais direta do governo de Cachoeira sobre a dinâmica local da vila, a junta procurou expressar apoio por meio de recursos financeiros para que o Exército Libertador tivesse êxito na retomada à capital. Após isso, a junta rio-contense organizou um grupo armado no intuito de garantir a “ordem” entre os moradores o que, na verdade, era uma medida contra possíveis manifestações de brasileiros para derrubar os representantes da junta e conter a influência portuguesa ou de qualquer apoiador do chamado partido europeu. Essa ação coercitiva afetou ainda mais a autonomia do Senado da Câmara sobre à dinâmica política de Rio de Contas. Só após a devassa política, instalada pelo Conselho para averiguação do caso

de José Honório, que a Junta foi perdendo o controle político, e mesmo com a prisão de alguns indivíduos simpatizantes da causa brasileira em janeiro de 1823, a milícia lusitana não teve êxito na acusação de desordem já que o então escrivão da câmara, José Hipólito Pereira, testemunhou a favor ao filhos da terra, alegando inocência dos mesmos, pois esses não apresentavam postura violenta. (FRUTUOSO, 2015). Com as repressões do Conselho, o fim do governo provisório em Rio de Contas marcou a retomada do controle pelo Senado da câmara nas decisões políticas da vila, permanecendo como instituição principal de exercício do poder local sem interferência da junta que, segundo Frutuoso, era um “órgão deliberativo [que] tinha uma proeminência em relação à Câmara, apesar da existência de vínculos comerciais e de sangue entre os indivíduos que ocupavam posições em tais espaços de poder.” (FRUTUOSO, 2015, p. 87). Dos acontecimentos gerados pelo movimento vintista até meados da década de 1830 os conflitos entre filhos da terra e portugueses foram ainda mais intensificados pela atmosfera da vila sertaneja, dando nome ao movimento antilusitano de mata-maroto. Alguns desses filhos da terra permaneceram ou foram eleitos a cargos políticos no Senado da Câmara, como Rodrigo de Souza Meira Sertão, José Antônio Severino Rio de Contas e João Ferreira Mucunã, vereadores que adotaram sobrenomes com características de identidade regional e política e permaneceram com vida política ativa até pelo menos 1831, ainda apoiando a dita causa brasileira, impulsionados pelo sentimento antilusitano.

Conclusão Diante da negação da Junta Governativa de Rio de Contas, o Conselho Interino buscava valorizar e realçar as ações feitas pelo Senado da Câmara. Nessa perspectiva, é possível destacar a significativa atuação e construção do aprendizado político desempenhado pelos membros da Câmara de Rio de Contas, sobretudo, durante as comoções sociais e disputadas no âmbito público e institucional dentro da dinâmica política local, bem como por parte da população local. Assim, órgãos deliberativos representados por figuras influentes na política geraram um notável impacto ao despertar atenção da província e da Corte para o crescente desassossego na vila sertaneja em meio às lutas pela Independência desencadeadas em Salvador e Recôncavo. Este estudo, fruto de uma pesquisa de Iniciação Científica, objetivou destacar o papel que as instituições camarárias, especificamente o Senado da Câmara de Rio de Contas, tiveram durante o processo tortuoso de crise política e formação do Estado e da Nação brasileiros. Cabe

aqui detectar que, em função da pandemia e seus efeitos, a pesquisa ficou limitada ao acesso de documentos online e escassas produções bibliográficas sobre o tema, com destaque para os trabalhos de Souza filho (2003) e Frutuoso (2015). Dado esse contexto de limitações, algumas questões surgiriam enquanto lacunas que carecem de maior exploração documental: quem eram os membros representantes da câmara de Rio de Contas? Como a autonomia e o poder de decisão da instituição camarária foram redefinidas com a instauração da Junta Governativa? Como se davam os posicionamentos e interesses políticos desse órgão deliberativo dentro da política da vila? Essas e outros questionamentos certamente serão importantes para o aprofundamento das particularidades políticas dos sertões da Bahia no período.

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