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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP Júlio de Mesquita Filho Instituto de Geociências e Ciências Exatas - IGCE Campus Rio Claro

NA BELEZA DO LUGAR, O RIO DAS CONTAS INDO... AO MAR

Rita Jaqueline Nogueira Chiapetti

Orientadora: Profª. Drª. Lívia de Oliveira

Rio Claro - SP 2009

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP Júlio de Mesquita Filho Instituto de Geociências e Ciências Exatas - IGCE Campus Rio Claro

NA BELEZA DO LUGAR, O RIO DAS CONTAS INDO... AO MAR

Rita Jaqueline Nogueira Chiapetti

Orientadora: Profª. Drª. Lívia de Oliveira

Tese de Doutorado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, na Área de Organização do Espaço, para obtenção do título de Doutora em Geografia.

Rio Claro - SP 2009

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A Jorge, Emília e Isabela, amores da minha vida...

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AGRADECIMENTOS

Como o poeta Fernando Pessoa, acreditei que “navegar era preciso” e, por isso, sonhei uma grande viagem... a do conhecimento... pelas águas do rio das Contas, na , “terra” que escolhi, com o coração, para viver! Agora... quero externar meu reconhecimento e minha eterna gratidão àqueles que viajaram comigo... na realidade ou na imaginação... cada um no seu espaço, no seu tempo e do seu jeito! O rio das Contas é um ser vivo, do qual brota a vida, que se manifesta nas pessoas do rio... Com ele senti a indescritível sensação de estar mais perto da vida, ao exercitar a fraternidade com suas águas e sua gente, no amor à natureza! Agradeço ao rio e às pessoas do rio de Itacaré, pela colaboração na pesquisa e pela oportunidade de aprender com eles... À minha orientadora, Professora Doutora Lívia de Oliveira, agradeço pela orientação desta tese, pelo que me ensinou e acrescentou em meu crescimento profissional e, também, na vida... À Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC, em Ilhéus; ao Departamento de Ciências Agrárias e Ambientais - DCAA e ao Colegiado de Geografia, agradeço pelo apoio e liberação. E, agradeço, especialmente, aos professores do curso de geografia, que me substituíram neste período... De modo especial, agradeço ao meu marido, Jorge, pela escolha da Geografia. Assim, a família ficou unida, estudando... Também reconheço seu amor, carinho, apoio, paciência, companheirismo, compreensão, atenção, auxílio na pesquisa de campo, preocupação e cuidado com a família... De maneira muito especial, pois ainda são crianças, agradeço à minhas queridas e amadas filhas, Emília e Isabela. Espero que um dia entendam esta fase importante da minha vida... difícil para elas... mas, que, para mim, era preciso! Involuntariamente e de maneiras diferentes, elas ajudaram-me a viver esta etapa, sendo compreensivas, dando-me amor e carinho, força e sentido à minha vida. Viajaram comigo pela vida... pelo rio das Contas... e eu, nunca deixei de me dedicar a elas, dentro do possível e do impossível... Às minhas famílias de Francisco Beltrão-PR, os Nogueira’s e os Chiapetti’s, agradeço o carinho com que sempre nos acolheram e torceram por nós. Afinal, escolhemos morar em Rio Claro, neste período, também, para ficar mais perto deles! À minha amada mãe, serei eternamente grata, porque sempre me incentivou e apoiou nas escolhas da vida... e vibrou muito (do seu jeito) quando passei no concurso da UESC e no doutorado. Agora, imagino como deve estar feliz! Também, sou muito grata às minhas queridas irmãs Rachel e Sarita, pela força nas mudanças... Também da família (mas, que mora em Florianópolis-SC), minha estimada irmã Ruth, agradeço pelos ensinamentos sobre cartografia e pelos papos de tese. À minha cunhada Sandra (que mora em Toledo-PR), sempre muito prestativa e competente, agradeço pela revisão da tese... À Ana e ao Valério, no tempo de Piracicaba, sou grata por me acolher, juntamente com minha família, no período da seleção para o doutorado e, ainda, por cuidar das minhas filhas nestes dias... Aos Professores Doutores da UNESP, Lúcia Helena Gerardi, agradeço por me receber na Pós, João Afonso Zavattini, por me acolher no doutorado, no lugar da Lívia; e à Lucy Marion Calderini Philadelpho Machado, pelas contribuições no Exame de Qualificação. Sou grata, ainda, à Professora Doutora da UEL, Lúcia Helena Batista Gratão, também pelos ensinamentos no Exame de Qualificação e, especialmente, pela maravilhosa disciplina com que presenteou àqueles que tinham curiosidade e interesse em aprender sobre Geopoética e Imaginação Geográfica. Sempre ficará na minha memória... Agradeço, também, ao Professor Doutor Werther Holzer, da UFF, pela atenção e contribuição, mesmo sem me conhecer...

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Ao Instituto Floresta Viva (IFV), de Ilhéus, nas pessoas de Rui, Xavier, Sayonara e Vivaldo, agradeço, imensamente, pelo imprescindível apoio na pesquisa de campo em Itacaré... À Dona Otília, de Itacaré, sou grata pela grande colaboração na pesquisa de campo e, principalmente, por permitir usar na minha tese, parte da sua obra inédita sobre Itacaré... Ao Jeferson, de Itacaré, também agradeço pela preciosa ajuda na pesquisa de campo... À Isa, agradeço pelo acolhimento em sua fazenda, na beira do rio das Contas, pela disponibilização da sua poesia e, ainda, pelo carinho, presenteando-me com o livro de Eric Dardel... A todos e a tantos amigos especiais de Ilhéus, inclusive os da UESC... agradeço pela grande amizade, incentivo, apoio, ajuda, visita... São tantos amigos, que prefiro não nomear, para não cometer o terrível ato do esquecimento do nome de alguém: aqueles que nos visitaram em Rio Claro; que nos enviaram material para a tese; que cuidaram dos nossos interesses em Ilhéus, durante nossa ausência.... Serei eternamente grata... Aos novos amigos de Rio Claro, que também não nomearei, sou grata pelo acolhimento; pela confiança; pelos bons momentos da vida paulista; pelo cuidado com a Conny... Espero que nos visitem em Ilhéus, para podermos retribuir um pouquinho do carinho e da amizade dispensados... Aos amigos muito especiais do doutorado, sejam paulistas ou não: Mirlei, Amanda, Sérgio, Inês, Samira, Marcos, Adriano, Célia, Cecília, Vilma, Bruna e Simone, agradeço por tê-los conhecido e aprendido muito com eles nesta viagem intelectual. Continuemos nossa amizade para sempre... À família Copriva Clemente: Adriana, Isaías, Amanda e Luana, sou muito grata pela irrestrita amizade; pela compreensão dos distanciamentos (em muitos momentos); pelas vezes que deram uma força, com relação às minhas filhas... enfim, pela amizade incondicional. Eles são especiais; estão e estarão sempre em meu coração e da minha família... À Sra. Sílvia e ao Sr. Osmar Rossini, agradeço por nos receber, literalmente, em sua casa e socorrer-nos sempre que precisamos... À Maíca, Denise, Inajara e Ubirajara da Pós e Nilza da Biblioteca, sou grata pelo carinho... A todos da família My House, agradeço pela atenção e desvelo às minhas filhas, no período da tarde... À Milena, sou grata pelo carinho com minhas filhas e pelo seu trabalho em minha casa, aliviando-me nas atividades domésticas... Enfim, agradeço a todos que, de alguma forma, contribuíram com minha vida e com minha tese.

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O rio das Contas, com suas águas e alegria, namora cada canto, da nossa linda Bahia!

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O rio

Ser como o rio que deflui Silencioso dentro da noite. Não temer as trevas da noite. Se há estrelas nos céus, refleti-las.

E se os céus se pejam de nuvens, Como o rio as nuvens são água, Refleti-las também sem mágoa Nas profundidades tranqüilas.

Manuel Bandeira (1886 - 1968).

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NA BELEZA DO LUGAR, O RIO DAS CONTAS INDO... AO MAR

RESUMO

O rio das Contas é o principal elemento de confluência e de convergência das relações sociais e da subjetividade humana no espaço geográfico da sua bacia hidrográfica, relações estas representadas nas paisagens dos lugares. Esta tese tem a proposição de compreender o significado do rio das Contas na vida das pessoas de Itacaré, município do sul do estado da Bahia, registrando os sentimentos e os olhares destes indivíduos de diversas idades e profissões que experienciam, vivenciam o espaço-lugar-rio das Contas. Como estratégia da pesquisa de campo optamos pela história oral e, para coleta das informações, utilizamos a entrevista aberta. Entrevistamos 41 sujeitos em três locais, quais sejam: cidade de Itacaré, distrito de Taboquinhas e ao longo do rio. A partir das entrevistas, elaboramos quatro categorias, com a intenção de reunir os significados dados ao rio, pelos sujeitos da pesquisa: trabalho, subsistência, pertença e alegria. A água do rio provoca reflexões, não meramente geográficas... mas, carregadas de afetos... emoções... sentimentos... que, no dia-a-dia, constroem vínculos hidrotopofílicos entre as pessoas e o rio e, ainda, promovem a construção da identidade do rio- lugar. O rio das Contas é um lugar e um elemento da paisagem itacareense, percebido e vivenciado pelas pessoas que vivem próximas a ele, através de uma intensa relação afetiva... uma geograficidade... que se realiza na existência humana.

Palavras-chave: Geografia Humanista; paisagem; lugar; geograficidade; rio das Contas; Itacaré.

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IN THE BEAUTY OF THE PLACE, RIO DAS CONTAS FLOWING… TO THE SEA

ABSTRACT

Rio das Contas is the main confluence and convergence element of the social relations and the human subjectivity in the geographic space of its hydrographic basin, relations which are represented in the landscapes of the places. This thesis has the proposition of understanding what Rio das Contas means to the people from Itacare, a city in the south of Bahia state, registering the feelings and the views of these individuals of varied ages and occupations, people who experience the space-place-Rio das Contas. We have chosen the oral history as field research strategy and used open interview for information collection. We interviewed 41 subjects in three places, namely: Itacaré city, Taboquinhas district and along the river. Based on the interviews we elaborated four categories, with the intention of gathering the meanings given to the river by the subjects of the research: work, subsistence, belongness and happiness. The water of the river provokes reflections which are not merely geographic… but filled with affection... emotions... feelings... which day by day build hydrotopophilic bonds between the people and the river and, still, promote the construction of the identity of the river-place. Rio das Contas is a place and an element from the landscape of Itacaré, perceived and experienced by the people that live nearby through an intense affective relation... a geographicity which manifests itself in the human existence.

Key words: Humanistic Geography; landscape; place; geographicity; rio das Contas; Itacaré.

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LISTA DE FIGURAS

Página

1. Localização da Bacia Hidrográfica do rio das Contas no estado da Bahia ...... 25 2. Imagens e paisagens ao longo do rio das Contas, BA ...... 27 3. Domínios geomorfológicos da BH do rio das Contas, BA ...... 28 4. Hipsometria da BH do rio das Contas, BA ...... 32 5. Esboço da distribuição pluviométrica da BH do rio das Contas na BA, 2003 ..... 34 6 Uso e cobertura da terra na BH do rio das Contas, BA ...... 37 BH do rio das Contas com os municípios que têm as áreas urbanas localizadas 7. nas margens do rio ...... 43 Principais rodovias federais e estaduais e ferrovia que cruzam a BH do rio das 8. Contas, BA ...... 45 9. Serra do Tromba no município de Piatã, BA ...... 49 10 e 11. O rio das Contas cruzando os municípios de Jequié e de Itacaré, BA ...... 50 12 Caminho-rio das Contas na Chapada Diamantina, Piatã-BA ...... 52 13. Homens na canoa... rio das Contas, Itacaré-BA ...... 58 14. Vista panorâmica da cidade de Piatã, BA ...... 60 Vista parcial da cidade de , na Chapada Diamantina, com o rio das 15. Contas em segundo plano ...... 61

16. O rio das Contas cruzando a cidade de Jequié, BA ...... 62 17. Ponte sobre o rio das Contas na BR 116, em Jequié-BA...... 63 18 e 19. Usina Hidrelétrica e Balneário de Pedras no rio das Contas, Jequié-BA ...... 64 20. Usina Hidrelétrica do Funil no rio das Contas, Ubatã-BA ...... 65 21. Reportagem sobre a poluição do rio das Contas em Jequié-BA, 2006 ...... 65 22. Rafting nas corredeiras do rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA ...... 69 23. Cânion do rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA ...... 69 24 Trecho navegável do rio das Contas, município de Itacaré-BA ...... 70 25. Rio das Contas: da Chapada Diamantina ao Oceano Atlântico ...... 72 26. Otília Maria Nogueira ...... 76 27. Pescador de acaris no rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA ...... 96 28. Pescador com munzuá no rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA ...... 96

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LISTA DE FIGURAS (Continuação)

29. Paisagem do entardecer no rio das Contas, Itacaré-BA ...... 104 30. Barcos no anoitecer do rio das Contas, Itacaré-BA ...... 105 31. Paisagem vivida por Manoel Palada no rio das Contas em Itacaré, BA ...... 106 32. Sede de uma fazenda de cacau, nas margens do rio das Contas, Itacaré-BA ...... 109 33. Roça de cacau nas margens do rio das Contas, Itacaré-BA ...... 110 34. Cânion do rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA ...... 111 do Fumo e Pé da Pancada, no rio das Contas em Taboquinhas, 35 e 36. Itacaré-BA ...... 111 37 e 38. Corredeira e rafting no rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA ...... 112 39. Prainha do rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA ...... 113 40. Paisagem do passeio de turistas pelas águas do rio das Contas em Itacaré-BA ... 113 41. Restaurante na beira do rio das Contas em Itacaré, BA ...... 113

42. Lavadeiras no rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA ...... 114 43 e 44. Pescadores no rio das Contas, Itacaré-BA ...... 114 44 e 45. Canoagem no rio das Contas, Itacaré-BA ...... 115 46. Água escura no rio das Contas, Itacaré-BA ...... 116 Baronesas na superfície da água do rio das Contas e acumuladas nas margens 46 e 47. do mesmo rio, em uma praia do centro da cidade de Itacaré-BA ...... 116 48. Mangue na margem do rio das Contas, Itacaré-BA ...... 117 49. Coroa no estuário do rio das Contas, Itacaré-BA ...... 117 50 e 51. Visão de parte do distrito de Taboquinhas e da cidade de Itacaré, BA ...... 118 52. Balsa II, Itacaré-BA ...... 118 53. Despejo de esgoto no rio das Contas, centro de Itacaré-BA ...... 119 54. Locais da pesquisa de campo no município de Itacaré-BA, 2007 ...... 133 Parte de um texto de divulgação do rio das Contas, disponível em um site da 55. Internet ...... 158 Espacialização dos significados atribuídos ao rio das Contas pelos sujeitos da 56. pesquisa em Itacaré-BA ...... 192 57 e 58. Foz do rio das Contas, praia da Concha e espigão do Farol em Itacaré-BA ..... 196 59 e 60. O rio das Contas chegando em Itacaré... a cidade “olhando” o rio e o mar ...... 197

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LISTA DE POESIAS

Página

1. Canção ...... 55 2. O que é um rio...... 57 3. Como um rio ...... 57 4. De costas para o rio ...... 59 5. Rio e oceano ...... 71 6. Nas águas do rio de Contas ...... 95 7. Nosso rio ...... 119 8. Soneto do amor como um rio ...... 142 9. História do rio de Contas de Lino Goiano ...... 144 10. Meditation sur l´eau ...... 190

LISTA DE TABELAS

Página

Número absoluto e relativo dos sujeitos que participaram da pesquisa de campo no 1. município de Itacaré-BA, 2007...... 132

2. Distribuição dos sujeitos da pesquisa por faixa etária e sexo, em Itacaré-BA, 2007 135

Distribuição dos sujeitos da pesquisa por ocupação e escolaridade, em Itacaré-BA, 3. 137 2007

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LISTA DE SIGLAS

APA Área de Preservação Ambiental ARIE Área de Relevante Interesse Ecológico BH Bacia Hidrográfica CBHRC Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio de Contas CEPLAC Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira CERC Centrais Elétricas do Rio das Contas CHESF Companhia Hidrelétrica do São Francisco CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente CONERH Conselho Estadual de Recursos Hídricos CRA/BA Centro de Recursos Ambientais da Bahia CTIL Câmara Técnica de Assuntos Institucionais e Legais DBO Demanda Bioquímica de Oxigênio DEF Deficiência Hídrica DNOCS Departamento Nacional de Obras Contra a Seca EMARC Escola Técnica de Uruçuca EXC Excedente Hídrico FCP Fundação Cultural Palmares IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IFV Instituto Floresta Viva MMA Ministério de Meio Ambiente ODER Organização em Defesa do Rio das Contas RPGA Região de Planejamento e Gestão das Águas II SEI/BA Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia SEMA/BA Secretaria do Meio Ambiente da Bahia SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservação SRH/BA Superintendência dos Recursos Hídricos da Bahia UC Unidade de Conservação UESC Universidade Estadual de Santa Cruz UH Usinas Hidrelétricas

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SUMÁRIO Página DE INÍCIO, PENSANDO... O RIO DAS CONTAS ...... 14

Capítulo 1 CONHECENDO... O RIO DAS CONTAS ...... 21 O rio das Contas e sua bacia hidrográfica ...... 23 As “curvas” do rio das Contas: da Chapada ao Oceano ...... 48

Capítulo 2 PERCEBENDO... O RIO DAS CONTAS ...... 73 Um rio chamado Contas: um lugar chamado rio das Contas ...... 76 . O rio das Contas “na escrita” de uma moradora de Itacaré...... 78 Rio das Contas: um olhar afetivo e imaginativo ...... 93 Rio das Contas: um contemplar da paisagem ...... 100 . O rio das Contas “na construção” da paisagem itacareense ...... 109

Capítulo 3 VIVENCIANDO... O RIO DAS CONTAS ...... 121 Um “olhar” sobre a pesquisa ...... 124 A oralidade como trajetória da coleta de dados ...... 126 “Navegando”... no lugar-rio das Contas em Itacaré ...... 132 . Preparação do material coletado ...... 139 O rio das Contas... das pessoas de Itacaré ...... 140 . O rio como fonte de trabalho ...... 156 . O rio como subsistência ...... 176 . O rio como pertença ...... 180 . O rio como um lugar de alegria ...... 185

AO FINALIZAR: O RIO DAS CONTAS CHEGANDO... AO SEU DESTINO .... 195

REFERÊNCIAS ...... 203

BIBLIOGRAFIAS CONSULTADAS ...... 212

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Rio das Contas, BA.

De início,

PENSANDO... O RIO DAS CONTAS

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DE INÍCIO, PENSANDO... O RIO DAS CONTAS

[...] sur le domaine continental, les eaux lacustres et fluviales, les étanges et les sources jouent um rôle preponderant. Là où manquent les eaux, l’espace a quelque chose d’incomplet, d’anormal [...]. Le domaine des eaux, inséparable de l’espace vert, est du côté de la vie (DARDEL, 1990, p. 26 e 27).

A epígrafe que inicia esta tese expressa que o espaço tem qualquer coisa de incompleto, quando a ausência da água se faz sentir, pois as águas são inseparáveis do espaço verde, do espaço da vida... Além de sustentar a vida, a água nos seduz com sua beleza, tanto no irromper das nascentes... no movimento dos rios... no cair da chuva... no jorrar de uma fonte... na calma dos lagos... quanto no vigor e vivacidade das cachoeiras, das corredeiras, dos estreitos dos rios... A água encanta nossos sentidos e reporta-nos à nossa essência, pois simboliza a pureza, o inconsciente, as emoções, os ciclos da vida... Para Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 19), “a água simboliza a vida [...]. A água primeira, a água nascente, que brota da terra e da aurora branca, é feminina [...], terra grávida, de onde a água sai para que, desencadeada a fecundação, a germinação se faça” (Grifos dos autores). Esta valorização feminina da água doce dos rios, também existe em Bachelard (2002, p. 136): “um traço do seu caráter feminino: ela embala como uma mãe. [...]. A água leva-nos. A água embala-nos. A água adormece-nos. A água devolve-nos a nossa mãe”. A mãe que nos dá a vida, assim como a água convida-nos à vida, já que possibilita o sustento da vida: água para beber, para cultivar, para pescar... Mas, também, “a água convida-nos à viagem imaginária” (p. 137). As águas de um rio, por suas características, permitem-nos navegar... passar... deslocar... viajar... e, ainda, dão prazer... felicidade... Um rio pode ser vivido por quem o percorre, por quem flui junto às suas águas que correm... Mas, um rio também está ligado ao seu fluir... no movimento contínuo da sua corrente... e à “segurança” das suas margens por onde escorre... Margens estas que separam, mesmo que seja uma separação só aparente, pois um rio pode delimitar, separar ou juntar, depende da nossa percepção. Como escreve Arbués

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(1997 p. 26), “no rio que banha dois lados, tudo se mistura numa coisa só. Não se sabe se a lavadeira que está desse lado nasceu cá ou lá, pois as águas e as tradições se confundem”. Os rios quase sempre estiveram no centro da história, como fronteira ou limite de países, estados, municípios, bairros, propriedades rurais; como separadores de povos ou, ainda, como “estradas aquáticas”, transportando riquezas e pessoas, situações que fazem fluir dentro deles diferentes culturas e conhecimentos. Resgatamos Ramos (1999b), em sua obra sobre A poética da água, de Thiago de Mello e García Lorca, para revelar que foi através da água, “matéria que nutre, que dá substância à imaginação, ao devaneio”... que tivemos a imaginação de estudar o rio das Contas, um rio de “água doce, que em sua supremacia sobre a água salgada, flui viva para a vida” (p. 37). Como todos os rios, a presença do rio das Contas, em Itacaré, sempre teve destaque na vivência das pessoas. Isto levou-nos à escolha do tema da pesquisa, ou seja, a percepção geográfica do rio das Contas por pessoas que habitam próximas a ele. Nesta tese, a percepção é abordada no sentido da interpretação dos aspectos afetivo-emocionais dos sujeitos da pesquisa, vinculados ao meio em que vivem. Nossa proposição é compreender como as pessoas de Itacaré percebem este importante elemento geográfico da paisagem itacareense, qual é o significado do rio para elas, registrando suas emoções, seus sentimentos e os olhares destes sujeitos de diversas idades e profissões que experienciam e vivenciam o lugar-rio das Contas. Lançamos mão da história oral como estratégia da pesquisa de campo e, para buscar as informações, fizemos entrevistas a 41 sujeitos de Itacaré, com a intenção de compreendê-los como pessoas que têm visões de mundo particulares e, ao mesmo tempo, sociais, buscando o sentido dos significados do rio em suas vidas, desvelando seus mundos vividos, suas experiências, suas vivências. Também realizamos registros de situações e paisagens, através de fotografias e, ainda, fizemos observações no espaço geográfico do rio das Contas em Itacaré, para conhecermos, convivermos e interagirmos com os sujeitos da nossa pesquisa, enfim, vivenciarmos diretamente os locais da pesquisa. A nossa pesquisa insere-se em um contexto da Geografia Humanista, ou seja, considera a afetividade humana. Com isto, pretendemos dar uma contribuição, no sentido de ampliar o conhecimento sobre a relação que as pessoas têm com o seu lugar, valorizando o rio das Contas enquanto um elemento geográfico importante para Itacaré, bem como, subsidiar ações de agências públicas e privadas, com relação a este elemento hídrico. Propomos a tese de que existe uma intensa relação afetiva entre o rio das Contas e as pessoas que habitam seu espaço geográfico-hídrico, relação esta desvelada pelos significados 16

dados ao rio, transformando-o em um lugar de vida, de sentimentos, de experiências, de vivências... paisagens hidrotopofílicas! O estudo por nós realizado, encontra-se assim organizado: o capítulo 1: Conhecendo... o rio das Contas, está dividido em duas partes: a primeira com uma descrição da Bacia Hidrográfica do rio das Contas (de oeste para leste, no mesmo sentido das suas águas), acompanhada por mapas que representam as características principais da bacia. Nesta parte do trabalho, buscamos conhecer os elementos físicos, os quais juntos com as atividades humanas sobre o espaço geográfico do rio, ao longo do tempo, formaram as paisagens. A segunda parte trata, especificamente, do rio das Contas, desde a nascente (município de Piatã) até a foz (cidade de Itacaré), desvendando-o fisicamente e afetivamente. O rio representa o elemento de confluência e de convergência das relações sociais e da subjetividade humana neste espaço. A contribuição deste capítulo dá-se, no sentido de apresentar o espaço geográfico de um rio que promove a confluência entre os três biomas do estado da Bahia, quais sejam: Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica. O capítulo 2: Percebendo... o rio das Contas, encontra-se organizado em três partes: a primeira tem o propósito de estudar o rio das Contas como um lugar, através de um poema inédito escrito por uma moradora de Itacaré, uma mulher simples que, com toda sua emoção, demonstra como este rio foi e ainda é muito importante para a Bahia e, principalmente, para os itacareenses. Os laços topofílicos da autora com as águas que fluem no leito do rio, em Itacaré, transparecem na concretude do lugar-rio das Contas. Esta poetisa, guiada pelas águas e pela vivência deste elemento hídrico, experiência-o cotidianamente, transformando sua experiência em conhecimento e imaginação geográfica. Esta imaginação mexe com seus sentimentos... suas emoções escorrem pelas águas do rio... e ela canta em versos, as histórias e as paisagens de todo o seu percurso. Na segunda parte, o rio das Contas revela-se na sua afetividade e imaginação, para aqueles que o vivenciam. Este herói líquido é concreto e ao mesmo tempo imaginário, povoado de sonhos, devaneios, imaginação e criatividade para os pescadores itacareenses, que o sentem com uma intensa afetividade, construindo uma verdadeira geograficidade do afeto... uma paisagem-espaço-lugar-vivido. A emoção, evocada pela lembrança, incute fortes imagens no imaginário destes homens, criando vínculos efetivos de fortalecimento intensos e duradouros, capazes de perdurarem por uma vida inteira. Eles “retiram” do rio seus medos, suas histórias, seus mitos, suas lendas... além do alimento para sua sobrevivência. São manifestações ilusórias mas, necessárias, que enfeixam as relações entre o “ser pescador” e o

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“ser rio”. É como se o rio adquirisse uma capacidade quase sobrenatural em ditar as ordens da vida cotidiana aos homens que sobrevivem das suas águas. E, na terceira parte deste capítulo, discutimos sobre as diferentes paisagens marcadas pela história do rio das Contas, paisagens estas vivenciadas pelas pessoas de Itacaré e pelos turistas que visitam o local, com a intenção de praticar esportes de aventura, nas águas agitadas e estreitas das suas corredeiras e do seu cânion. A paisagem geográfica não é, na sua essência, somente para ser contemplada mas, refere-se à inserção das pessoas no mundo, um lugar de luta pela vida, uma manifestação do seu ser com os outros, base de seu ser social! Portanto, a paisagem pressupõe a presença das pessoas, mesmo quando estão fisicamente ausentes, pois expressa sua realização e existência na Terra. São as águas do rio das Contas que expressam o sentimento topofílico. Mas, são as suas paisagens que guardam as vivências das pessoas, em sua familiaridade. São, portanto, paisagens vividas, em que são evidentes as mais íntimas relações existenciais das pessoas com o seu rio-lugar... sendo substrato das suas experiências no rio. O encontro das águas do rio das Contas com as pessoas da foz, no litoral... inspira paisagens imaginadas da nascente, na Chapada... de um outro rio, no sertão... enfim, paisagens reais de um rio que vai escrevendo sua trajetória ao longo do tempo e, em suas margens vai desenhando, sucessivamente, paisagens marcadas na história da Bahia, nos 500 quilômetros de extensão aproximada, em que cruza o Estado. Paisagens vividas por mineradores, indígenas, escravos, exploradores europeus, colonizadores portugueses, piratas- ladrões, canavieiros, habitantes das vilas e depois das cidadezinhas que foram se formando em suas margens ao longo do tempo, cacauicultores, condutores de barcos, canoeiros, balseiros, pescadores, marisqueiras, lavadeiras de roupas, quilombolas, guias turísticos, instrutores de rafting, turistas, esportistas, contempladores, habitantes de Itacaré... paisagens construídas por pessoas que construíram e continuam construindo a identidade do rio. É como se o rio das Contas fosse despejando em suas margens, paisagens que vêm transportando em suas águas desde tempos imemoráveis, tornando-se memória da história baiana e, quiçá, do Brasil. Como exemplo, em suas margens ele abriga raízes culturais de habitantes do passado, como no caso das Comunidades Quilombolas Rurais de Itacaré e das fazendas cacaueiras, as quais historicamente mantêm-se produzindo da mesma maneira. As paisagens registradas nas margens e nas águas desta estrada fluvial, em todo seu percurso, são manifestações concretas da relação da sociedade com o seu espaço geográfico, sendo, portanto, expressão da existência humana e, ao mesmo tempo, expressão do imaginário

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humano. Elas guardam as intenções e as ações das pessoas sobre o meio, pois vão sendo impressas marcas sobre as paisagens originais, as quais registram os acontecimentos ao longo do tempo, considerando diferentes fatores naturais e culturais. Por isso, as paisagens são resultado de uma sucessão de fatores superpostos intrincados, os quais ficam registrados na memória coletiva, tornando-se elementos poderosos de identificação cultural, que estão permanentemente se atualizando. O Capítulo 3: Vivenciando... o rio das Contas, está escrito em quatro partes principais. Na primeira constam: a escolha do tema e do local da pesquisa e a sua justificativa; na segunda relatamos a opção pela oralidade, como instrumento de coleta das informações em campo; na terceira parte deste capítulo explicamos como fizemos a pesquisa de campo e a escolha dos sujeitos, incluindo sua caracterização e, na quarta e última parte, qual seja, O rio das Contas... das pessoas de Itacaré, interpretamos as entrevistas feitas na cidade, no distrito de Taboquinhas e ao longo das margens do rio. Esta interpretação revela os principais significados dados ao rio pelos sujeitos da pesquisa. Significados estes agrupados em quatro categorias, com o objetivo de desvelar os sentimentos destas pessoas que vivenciam, cotidianamente, o lugar-rio das Contas. Expressada pelos sentimentos, a afetividade transparece, o tempo todo, nas relações dos sujeitos da pesquisa com o seu meio, ou seja, o espaço geográfico do rio das Contas. Mas, é no lugar-rio que eles adquirem conhecimento, vivem seus momentos de rio e manifestam suas visões de mundo e, assim, vivem suas experiências cotidianas, aprendem a partir da própria vivência no rio e constroem paisagens... paisagens estas entendidas através da interpretação das camadas de significados que as envolvem. O rio das Contas é um elemento organizador do seu espaço geográfico, é fonte de alimento e de contemplação, é uma estrada fluvial, é um recurso econômico, através da atividade turística e da pesca... é muito[s outros rios. Mas, enquanto um lugar, o rio das Contas é único e particular para cada sujeito entrevistado, que por razões, emoções e experiências próprias experimenta-o, vivencia-o e relaciona-se com ele, atribuindo significados de acordo com sua percepção, cognição, experiência, familiaridade e consciência. A última parte do trabalho: Ao finalizar: o rio das Contas chegando... ao seu destino, tem o propósito de finalizar a tese. Para tanto, escrevemos sobre o rio das Contas enquanto um atrativo turístico, com a valorização da sua beleza natural e respeito aos sentimentos e saberes das pessoas que habitam o lugar e, ainda, a apreciação dos sabores do espaço-lugar-rio das Contas, em Itacaré.

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Então... para conhecer, perceber e vivenciar o rio das Contas... façamos uma viagem imaginária pelas suas águas, através deste trabalho... com curiosidade, prazer, paixão e encantamento...

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Serra do Tromba, Piatã-BA.

Capítulo 1 CONHECENDO... O RIO DAS CONTAS

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Capítulo 1

CONHECENDO... O RIO DAS CONTAS

A água é objeto de uma das maiores valorizações do pensamento humano: a valorização da pureza (BACHELARD, 2002, p. 15).

É muito importante conhecer os lugares os quais estamos estudando, principalmente se formos perguntar às pessoas que moram nestes lugares o que significam (para elas) determinadas coisas ao seu redor. Por isso, a primeira parte deste capítulo diz respeito a todo o espaço geográfico da Bacia Hidrográfica (BH) do rio das Contas, porém com um vínculo mais próximo ao seu principal fluxo de água, ou seja, o próprio rio das Contas. Para tanto, efetuamos um levantamento sobre dados e informações disponíveis em sites de órgãos federais e estaduais baianos, em bibliografias e, ainda, em documentos técnicos para fazer uma descrição da BH do rio das Contas, com o objetivo de reunir esses dados e informações e disponibilizá-los para consulta, através da publicação de artigos científicos, depois da pesquisa concluída. Para Gratão (2002, p. 12):

a bacia hidrográfica (área drenada pelo rio) - território municipal, estadual, nacional e internacional - (onde os únicos limites são os divisores d’água) - é uma manifestação [das relações sociais, do meio ambiente e da subjetividade humana]. E o rio representa o elemento e/ou a substância e/ou o canal de confluência e de convergência dessas relações.

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Nesta perspectiva, nesse capítulo procuraremos primeiro contribuir para ampliar, tanto a compreensão da realidade da BH do rio das Contas, como de suas águas, reconstruindo o percurso do rio, o cotidiano das suas águas... das suas margens... O rio das Contas não é apenas um rio que nasce num oásis dentro do sertão baiano (Chapada Diamantina), que o atravessa sem secar suas águas, representando a subsistência do homem sertanejo, depois transpõe a floresta e deságua no mar. Mas, é um rio histórico, como todos os grandes rios que, até bem pouco tempo atrás, eram referências para a grande maioria das sociedades humanas. Pela correnteza das águas dos rios entrava e saía “a sorte da garantia de vida” das pessoas e dos demais seres vivos, como as riquezas e os mantimentos, pois os rios eram as principais estradas. Quase tudo era movido pela ação e orientação dos rios. Ainda hoje, isso continua sendo assim, para um grande número de comunidade, cidade e país, nos quais a vida seria insuportável se não existissem os rios. Por isso, os rios carregam, simbolicamente, a existência humana e toda a sua imensidão de desejos, sentimentos, intenções e ações.

O rio das Contas e sua bacia hidrográfica

O curso de um rio, seu discurso-rio, chega raramente a se reatar de vez; um rio precisa de muito fio de água para refazer o fio antigo que o fez (MELO NETO, 1979, p. 26).

Esse texto tem o objetivo de conhecer a BH do rio das Contas através de um olhar sobre o caminho das águas no leito do seu rio principal, o qual tem vínculo com toda a área abrangida pela sua bacia. Tudo que ocorre em um determinado local, dentro da área de uma bacia hidrográfica tende a repercutir na bacia como um todo, pois a água que desce para o nível, cada vez mais baixo, leva consigo as marcas de todos os locais. Precisamos entender que grande parte do que está acontecendo em um local dentro de uma bacia hidrográfica é reflexo de outro, ou seja, geralmente, o que afeta um determinado local desce pelos veios de água abaixo, afetando também outros locais e dando uma identidade ao espaço geográfico da bacia hidrográfica.

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Segundo Ortiz e Pompéia et al. (s.d., p. 24), uma “bacia hidrográfica é uma região dividida por morros e montanhas cujas nascentes de água convergem aos veios d’água”. Estes descem formando córregos que desembocam em rios pequenos até chegar à formação de um rio maior. Como a água sempre procura descer até o ponto mais baixo do terreno, devido à força da gravidade, podemos considerar a calha do rio das Contas como o ponto mais baixo e, portanto, o pivô da sua bacia hidrográfica. Para Barbosa; Paula e Monte-Mór (1997, p. 258), “o termo ‘bacia hidrográfica’ refere- se literalmente a ‘divisor de águas’. Essa definição é utilizada, portanto, no sentido de instrumentalizar a identificação de uma área geográfica bem delimitada pela hidrografia, onde as questões ambientais se interpenetram”. Ou ainda, uma bacia hidrográfica é o conjunto de terras drenadas por um rio principal e seus afluentes, cuja delimitação é dada pelas linhas divisoras de águas que demarcam seu contorno (GUERRA, 1993). Ao utilizar a noção de bacia hidrográfica estaremos referindo-nos a esta unidade espacial em sua acepção geográfica. Dessa forma, podemos dizer que bacias são sistemas terrestres e aquáticos geograficamente definidos, compostos por sistemas físicos, econômicos e sociais. Assim, uma bacia hidrográfica tem considerável mérito enquanto unidade física e econômica de análise, dada a interação entre a geologia, geomorfologia, solo, clima, vegetação, uso da terra e o homem. A maioria dos efeitos físicos de relevância e das interações de ecossistemas está presente dentro de um sistema definido por um divisor de águas. A BH do rio das Contas pertence à grande Bacia Hidrográfica do Nordeste Brasileiro ou Região Hidrográfica do Atlântico Leste. De acordo com a maneira como fluem as suas águas, ela é exorréica, isto é, quando as águas drenam direto para o mar. Está localizada na porção centro-sul do estado da Bahia e é a maior bacia inteiramente baiana, com uma área de drenagem de aproximadamente 55.334 km2, correspondendo a pouco mais de 10 % do território baiano (Figura 1). Estende-se de forma alongada no sentido oeste-leste, entre os paralelos 12º 55’ e 15º 10’ S e entre os meridianos 42º 35’ e 39º 00’ W, conectando os biomas: Cerrado, Caatinga (bacia superior e média) e Mata Atlântica (bacia média e inferior), dentro do estado da Bahia. Cerca de 75 % da área da bacia situam-se no Polígono das Secas. Segundo o Sistema Estadual de Informações Ambientais (SEIA, 2009), o Cerrado aparece em áreas de altitudes superiores a 1.000 m e em solos mais arenosos no lado oeste da BH do rio das Contas, mais precisamente na área ocupada pela Chapada Diamantina. Como a maior parte da Chapada dentro da bacia está acima dos 1.000 m, optamos por caracterizá-la como área ocupada pelo bioma Cerrado.

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Figura 1 – Localização da Bacia Hidrográfica do rio das Contas no estado da Bahia.

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Já o bioma Caatinga aparece em áreas abaixo dos 1.000 m dentro da Chapada Diamantina (pequena extensão) e em toda a área da bacia de clima semi-árido; e o bioma Mata Atlântica ocorre no lado leste da bacia (Figura 2). Considerando os domínios geomorfológicos, a área da BH do rio das Contas, coberta pelo bioma Cerrado, é chamada de Chapada Diamantina (Figura 3), a qual em pleno sertão baiano é uma paisagem de relevo antigo e desgastado, com montanhas, planaltos dissecados e chapadões que se sobressaem esculpidos pela água e pelo vento, cortados por vales profundos, por cânions e seus rios (BRASIL, 1981). É mister reconhecê-la como participante da Serra do Espinhaço, um grande sistema de montanhas desenvolvido segundo uma direção sul-norte. O relevo que compõe a Chapada Diamantina decorre da erosão ao longo de milhões de anos. Como algumas rochas sedimentares são mais compactas e outras mais permeáveis, isto é, mais fáceis de serem infiltradas pelas águas, com o passar dos tempos umas foram resistindo, outras foram sendo mais desgastadas. O arenito, por exemplo, mais resistente ao desgaste pela água, continua nas maiores altitudes até os dias de hoje. As fendas nas rochas facilitam a infiltração de água que, assim, vão erodindo os níveis rochosos menos resistentes, ainda com o auxílio das variações climáticas. O lado ocidental da Chapada Diamantina foi uma área submetida a dobramentos, reconhecidos pelas barras e cristas alinhadas de maneira característica, e a falhamentos, identificados através de profundos sulcos retilinizados e das escarpas que se elevam paralelamente a estes vales adaptados à estrutura e escarpas de falha (BRASIL, 1981). As serras do Atalho e do Tromba (lado ocidental) são consideradas as mais conservadas da Chapada. O lado escarpado destes relevos, geralmente, é constituído por uma cornija rochosa na parte superior, seguida de um talus detrítico já dissecado no sopé. A rede de drenagem destas serras ocidentais dirige-se para o rio das Contas, o qual tem suas nascentes no extremo sul da Sinclinal de Piatã, na Serra do Tromba. Nesta parte da bacia, podemos citar como exemplo os municípios de Abaíra e Rio de Contas, que têm nos seus relevos um aspecto peculiar, em virtude das serras elevadas e dos vales de ordens variadas, das nascentes dos pequenos rios, das corredeiras e cachoeiras desses rios, afluentes do expressivo rio das Contas. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 1960) a região da Chapada Diamantina, da mesma forma que todo o sertão nordestino, foi sujeita a uma série de sistemas morfoclimáticos diversos. Inicialmente, houve um período úmido quando os vales foram entalhados e iniciou-se a inversão do relevo na série de dobras semelhantes à evolução

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Rafting Cacau Cânion

- -

2 4 13 - 11 - Fazenda cacaueira 1 1

10 - Mata Atlântica

15 - Taboquinhas

16 - Casa quilombola 8 1 9 - Jequié

7 1

6 5

1 1

4 1 e o e rio

3 2 1 1

17 - Itacaré

1

1

10 de Pedras 8 - Represa 9

18 - Farol na fozdo rio

8

7 5 7 - Caprinocultura

6

na Bahia, 2009. Bahia, na

4

6 - Caatinga 3 1

2

rio das Contas das rio

Cerrado

- 5 Figura 2 – Imagens e paisagens ao longo paisagensdo ao e 2 – Imagens Figura

Piatã

- 2 - Serra 3 do Tromba 4 - Jussiape 1- Chapada Diamantina

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Figura 3 – Domínios geomorfológicos da BH do rio da 3 – DomíniosFigura Contas, BA. das geomorfológicos 28

do relevo jurássico. Posteriormente, o clima tornou-se mais seco, as rochas graníticas foram removidas mais rapidamente, ficando proeminentes os arenitos e os calcários. Com o clima seco, ampliaram-se as planícies intermontanas e os depósitos constituídos por sedimentos calcários finos, conhecidos como calcário da caatinga. Estes sedimentos é que dão indícios de que a região esteve sujeita à alternância de climas. Quando o clima tornou-se mais úmido, os rios começaram a entalhar seus leitos no calcário. Porém, posteriormente, ao advir outra fase seca, eles começaram a ser entulhados novamente por depósitos trazidos pela ação das águas das chuvas. Esta alternância climática ocorreu nos períodos geológicos pleistoceno e holoceno. As oscilações climáticas do pleistoceno afetaram todas as superfícies antigas, introduzindo uma série de alterações na evolução das vertentes, podendo-se vislumbrar a ação de sistemas morfoclimáticos diversos. Assim, encontram-se, no alto da superfície da Chapada Diamantina, alguns relevos residuais que correspondem a inselberg (relevos residuais cristalinos que sofreram os efeitos pronunciados da pediplanação). Também aí se encontram as mesmas superfícies que evoluíram por pediplanação, modificando bastante o relevo original destas antigas superfícies de denudação (BRASIL, 1981). Para entendermos a evolução da paisagem da Chapada Diamantina, devemos ter em mente que a formação das rochas e o seu modelado em paisagens são processos distintos, que ocorreram em tempos geologicamente muito afastados entre si. O embasamento cristalino ocupa aproximadamente 2/3 da área da BH do rio das Contas, representado principalmente por ortognaisses, paragnaisses e granitos (gnaisses e migmatitos), atravessados por intrusões ácidas e básicas. Na área ocupada pela Chapada Diamantina, as camadas que constituem a sua topografia são representadas por arenitos, quartzitos e conglomerados e são constituídas por formações do Pré-Cambriano Médio, correspondendo ao Grupo Chapada Diamantina, pertencente ao Supergrupo Espinhaço. Abrangem, principalmente, as rochas metassedimentares dobradas e falhadas da Formação Caboclo e da Tombador-Lavras (BRASIL, 1981). Há evidência da atuação da tectônica sobre a região pela presença de extensas falhas longitudinais e falhas transversais menores. Enfim, trata-se de um domínio tipicamente serrano, estruturado em rochas metassedimentares, nas quais os quartzitos e os arenitos apresentam-se como litologias dominantes. De acordo com a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI, 1994), a área da BH do rio das Contas, coberta pelo bioma Caatinga, é atravessada pelas Depressões Periféricas e Interplanálticas e pelo Planalto Sul-Baiano. Segundo Brasil (1981), estas áreas correspondem ao domínio das Depressões Interplanálticas.

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As Depressões Periféricas e Interplanálticas compreendem uma larga faixa interiorana deprimida entre planaltos de regiões adjacentes. Abrangem relevos evoluídos sobre rochas altamente metamorfizadas, áreas de escudos cristalinos que se caracterizam por terem sido submetidas à remoção intensa e, nas quais, predominam, no modelado, influências morfoclimáticas sobre estas estruturas (BRASIL, 1981). A litologia na área de caatinga da bacia é composta por rochas do Pré-Cambriano Indiferenciado, principalmente metatexitos, gnaisses e migmatitos, e do Pré-Cambriano Médio, representado pelo Complexo de e Grupo Contendas-, além de intrusões graníticas (BRASIL, 1981). A área caracteriza-se por um modelado bastante uniforme, com um intenso fraturamento que submete toda a dissecação como o principal fator de individualização. A atuação da tectônica deixou sua marcante contribuição no direcionamento dos vales, os quais não possuem predominância de direção. É preciso destacar a existência de áreas rebaixadas com relevo plano e morros estruturais, mas também morros alongados, cujo agrupamento recebe o nome de serra e são cobertos por pastagens. O lado leste da BH do rio das Contas ou aquele inserido no bioma Mata Atlântica possui um relevo topograficamente rebaixado em relação ao Planalto Sul-Baiano, são o Planalto Pré-Litorâneo e o Planalto Costeiro. Abrangem relevos montanhosos com feições de serras, entremeados por áreas relativamente planas, com altitudes decrescentes em relação ao litoral (BRASIL, 1981). O lado ocidental do Planalto Pré-Litorâneo encontra-se com intensa atuação dos processos de erosão através de ravinamentos e movimentos de massa. As rochas parecem estar próximas da superfície, observando-se afloramentos, principalmente, sob a forma de matacões e blocos basculados nas encostas, os quais mostram indícios de fragmentação. Trata-se de uma área de ocorrência de granulitos migmatizados, piroxênio-granulitos e de metatexitos do Pré-Cambriano Inferior, além de pequenas intrusões localizadas de sienitos, gabros e granitos. No Planalto Costeiro, parte mais oriental da BH do rio das Contas, o relevo é bastante uniforme, mesmo que a erosão tenha dissecado, intensa e indiferentemente, os granulitos e charnockitos muito alterados do Pré-Cambriano Inferior. Os solos dominantes são os álicos, devido à alta umidade e elevada temperatura, representados por latossolos e podsolos. Ainda dentro do bioma Mata Atlântica, nas proximidades da foz do rio das Contas, no município de Itacaré, representada pela região geomorfológica Planície Litorânea, encontram- se Planícies Marinhas e Fluviomarinhas, as quais englobam modelados de origem marinha, fluviomarinha, coluvial e eólica, que traduzem as etapas de evolução do litoral e dos cursos

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inferiores dos rios (BRASIL, 1981). As formas de ocorrência mais comuns são extensas praias, às vezes, limitadas por bancos de arenitos. Eventualmente, as planícies marinhas formam terraços, reelaborados pelas ações fluviais e marinhas, apresentando pequenos desníveis em relação às formas mais recentes. Nesta parte da bacia os solos são aluviais e hidromórficos. A hipsometria da BH do rio das Contas está representada na Figura 4, na qual podemos observar que as maiores altitudes estão no lado oeste, ou seja, no bioma Cerrado e, vão diminuindo no sentido leste, até o litoral. A Chapada Diamantina, pertencente à área do bioma Cerrado, dentro da BH do rio das Contas é um conjunto topograficamente elevado, com altimetria quase sempre superior a 800 m, nas áreas mais planas e, passando rapidamente a mais de 1.500 m, nos trechos de relevo mais movimentado. As serras encontram-se em posição altimétrica, quase sempre acima de 1.000 m de altitude e, nelas estão localizados os pontos mais altos do estado da Bahia e do nordeste brasileiro, com altitudes próximas a 2.000 m. No município de Abaíra, quase no limite com Piatã, encontram-se os cumes mais elevados do estado da Bahia: o pico do Barbado, com 2.033 m e o pico Itubira, com 1.970 m (estão representados na Figura 4, em área limítrofe, no lado oeste da bacia, dentro da Chapada Diamantina). No restante da área do Cerrado na BH do rio das Contas, as altitudes variam entre 600 m a 1600 m. A maior parte da bacia está inserida no bioma Caatinga, no domínio dos planaltos cristalinos, encontrando-se entre 400 e 800 m de altitude, com patamares geomorfologicamente caracterizados por relevos dissecados, alongados no sentido norte/sul, bastante uniformes, compondo sucessões de amplas lombadas e colinas baixas (topos residuais). Nos vales do rio das Contas e seus afluentes, as altitudes vão de aproximadamente 200 m a 400 m. No bioma Mata Atlântica, bacia média e inferior, a altitude diminui drasticamente de 200 m para o nível do mar, com trechos rebaixados chegando a menos de 100 m, enquanto alguns topos residuais atingem cotas superiores a 1.000 m. Os aspectos climáticos da BH do rio das Contas estão condicionados às condições climáticas do estado da Bahia, que sofre influência do Centro de Alta Pressão do Atlântico Sul, estendendo-se em todo sertão baiano. Esta circulação apresenta condições gerais de estabilidade e aridez, mas no seu percurso para o litoral brasileiro adquire umidade, transformando-se na Massa Tropical Marítima, também constante e estável.

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Figura 4 - Hipsometria da Contas, Hipsometria BHdas 4 - do rio Figura BA. 32

A Massa Tropical Marítima sofre perturbações no interior do continente causadas tanto pela irregularidade do relevo, assim como pelo avanço da Massa Polar Marítima, sendo o fator principal da ocorrência de chuvas na BH do rio das Contas. À medida que a massa de ar se interioriza, o volume de precipitações diminui. Nestas condições, a BH do rio das Contas é caracterizada pela alternância de duas estações: uma chuvosa no verão e outra seca no inverno. Com exceção dos trechos próximos à costa, o período chuvoso acontece nos meses de novembro a fevereiro, com o trimestre de novembro a janeiro mais chuvoso. Os demais meses representam a estação seca (março a outubro), com destaque para o trimestre junho/julho/agosto como o mais seco. No litoral não há déficit hídrico devido à alta pluviosidade, em torno de 1.500 mm a 2.500 mm anuais, ocasionada, principalmente, pelos ventos alísios de sudeste. Este regime pluviométrico simples mas, contrastante, por sua vez, condiciona a hidrologia, a vegetação e, conseqüentemente, a morfologia atual. A distribuição das chuvas na BH do rio das Contas decresce de leste para oeste (Figura 5), sendo que nos Planaltos Pré-Litorâneo e Costeiro, área de Mata Atlântica, os índices pluviométricos giram em torno de 2.000 mm anuais, a umidade relativa supera os 80 % e o excedente hídrico é elevado durante a maior parte do ano. Na parte da bacia caracterizada pelo clima semi-árido, o regime pluviométrico é contrastante: distribuição irregular das precipitações durante o verão e um período de estiagem bem acentuado, que varia de 5 a 9 meses por ano, quando as chuvas se reduzem a 500 mm e 600 mm nos anos normais e a 300 mm e 400 mm nos anos secos. Coberta pela caatinga, a soma das precipitações equivale a apenas um quinto das médias registradas no domínio dos cerrados (AB’SÁBER, 2003). Ainda, no domínio do sertão, também denominado de semi-árido, nos quase oito meses de ausência de chuvas anuais, as características edafoclimáticas são semelhantes às de outros climas semi-áridos quentes do mundo: secas periódicas e cheias freqüentes dos rios intermitentes, solos arenosos, rasos, salinos e pobres em nutrientes essenciais ao desenvolvimento das plantas; o que explica a presença da caatinga como sendo a vegetação básica do sertão. Tal vegetação apresenta grande variedade de formações, todas adaptadas à prolongada estação seca. Já, na área da BH do rio das Contas dentro do bioma Cerrado, quanto mais próximo dos divisores d’água a precipitação aumenta, podendo atingir 1.000 mm anuais, com um clima considerado de montanha (frio e úmido). A Chapada Diamantina corresponde a um enclave dentro da região tropical semi-árida , predominando o clima tropical sub-

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Figura 5 - Esboço da distribuição da da Contas Esboço pluviométrica na BHdas do rio 5 - Figura BA, 2003. 34

quente a sub-úmido. Situada dentro de uma grande zona semi-árida, esta região se diferencia pelo aspecto de relevo, considerado montanhoso, cujas altitudes elevadas (1.000 m a mais de 2.000 m) proporcionam temperaturas baixas e altos índices pluviométricos, muitas vezes, condicionados por chuvas orográficas. No que concerne às temperaturas, verifica-se o seguinte na BH do rio das Contas: a área coberta pelo bioma Caatinga é a mais quente, com as maiores temperaturas que vão decrescendo para os limites da bacia, nos divisores d’água. A região de menores temperaturas encontra-se na área do bioma Cerrado (Chapada Diamantina), mais especificamente na Serra do Tromba, coincidindo com as suas maiores altitudes (ver a Figura 4). Um exemplo a ser citado é Piatã, que tem como características principais ser o município mais frio da Bahia, com temperaturas que variam de 2º C a 17º C durante o inverno e, ainda, ser o município mais alto do norte e nordeste brasileiros, com 1.268 m de altitude. Normalmente, os meses mais quentes são janeiro e fevereiro e julho é o mês mais frio em toda a bacia. Com relação à hidrologia, a BH do rio das Contas apresenta um ligeiro Excedente Hídrico (EXC) de 30 mm a 80 mm e Deficiência Hídrica (DEF) abaixo de 13 mm, no seu lado noroeste. É a área em que o fator orográfico é determinante, por favorecer a intensificação das chuvas de maneira expressiva. O EXC é a água desnecessária, sujeita à infiltração ou percolação e ou escoamento superficial na estação chuvosa, sendo definido pelo número de meses em que este excesso permanece no solo. A DEF corresponde à insuficiência de água no solo. Em outras palavras, é a água que deixa de ser evapotranspirada no período seco, sendo contabilizada pelo número de meses com deficiência. De acordo com a Superintendência dos Recursos Hídricos da Bahia (SRH/BA, 1993), a disponibilidade hídrica da BH do rio das Contas é, em média, de 143,30 m³/s. Os rios dentro do sertão baiano (incluindo a Chapada Diamantina), como toda a hidrologia do nordeste seco brasileiro, são íntima e totalmente dependentes do ritmo climático sazonal dominante no espaço geográfico dos biomas Cerrado e Caatinga. Todas as cabeceiras dos rios secam nos períodos de estiagem - com exceção do rio das Contas, que é intermitente na nascente - o lençol freático se aprofunda e se resseca, desaparecendo, são os rios que passam a alimentá-lo. A respeito desse fenômeno, popularmente, diz-se que a drenagem cortou. Portanto, toda a rede hidrográfica dos biomas Cerrado e Caatinga é intermitente (com exceção do rio das Contas) mas, nestas circunstâncias, a população descobriu um modo de utilizar o leito arenoso dos rios cavando poços, pois eles possuem água por baixo das areias de seu leito seco, capazes de fornecer água para fins domésticos e dar suporte para culturas de

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vazantes. Em muitos locais, quando os rios secam, o próprio leito dos cursos d’água é parcialmente utilizado para produção agrícola, centrada em produtos alimentares básicos; estas áreas são chamadas de sequeiro. Os principais rios da bacia em questão são: Brumado e seu principal afluente, o rio do Antônio; Gavião; do Peixe e , na margem direita; e Sincorá; Jacaré e Jequiezinho, na margem esquerda (ver Figura 5). Segundo o SRH/BA (1993), a BH do rio das Contas é bem dotada de recursos hídricos e condições topográficas para produção de energia elétrica, possuindo apreciáveis desníveis naturais na região da sua nascente e caudais elevados na porção oriental, já próximo à sua foz. Ao mesmo tempo, há também o grave problema de lançamento de efluentes tóxicos e lixos nos rios de toda bacia, por indústrias e pela população urbana. Aparentemente, considerando o que ocorre nas bacias hidrográficas vizinhas (Recôncavo Sul e Leste), os terrenos da BH do rio das Contas não apresentam grandes disponibilidades de água em mananciais subterrâneos, o que pode ser explicado pela maior parte da região estar sobre o embasamento cristalino. Associado às baixas vazões, ocorre o problema da má qualidade das águas deste sistema aqüífero, bastante salinizado, restringindo seu uso para a maioria das atividades. Na faixa litorânea, com precipitação maior, esta disponibilidade de água é mais promissora (SRH/BA, 1993). A cobertura vegetal da BH do rio das Contas é formada pelo cerrado (em áreas de altitudes superiores a 1.000 m e em solos mais arenosos) e campos rupestres (no alto dos maiores picos) na Chapada Diamantina; pela caatinga (em áreas abaixo dos 1.000 m) na maior parte da bacia, correspondendo ao sertão baiano; pela Mata Atlântica no lado leste, mais precisamente a Floresta Ombrófila Densa; além da presença de mangue e restinga (Figura 6). A vegetação sempre está relacionada com os tipos climáticos, com a distribuição das chuvas, com a altitude e, ainda, com a natureza dos solos. Dentro da área da Chapada Diamantina, a presença do cerrado é caracterizada por um tipo de vegetação na qual predominam espécies herbárias e pequenos arbustos, típicos dos cerrados brasileiros. Este tipo de vegetação campestre é denominado localmente de “campos gerais”, tendo seu porte arbóreo-arbustivo em solos arenosos ou cobertos por fragmentos de rochas (BRASIL, 1981). Outro tipo de vegetação da Chapada Diamantina são os campos rupestres, mas com menor expressão. Conhecidos também como campos de altitude, os campos rupestres são formações que ocorrem exclusivamente no alto de algumas serras brasileiras, situadas em altitudes acima de 1.200m. Em geral, são campos abertos e atravessados por inúmeros riachos

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BH do na coberturaterra Contas, BA. e da das Uso rio 6 - Figura

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e rios permanentes; as temperaturas neste ecossistema são sempre mais baixas que nos seus arredores. A biodiversidade deste ecossistema é grande, variando inclusive de uma região para outra. Os campos rupestres da Chapada Diamantina, portanto, estão condicionados às partes mais elevadas e úmidas, tal como é sua característica, tendo as gramíneas como as espécies predominantes, muitas vezes, associadas a pequenos arbustos e a poucas árvores esparsas, que não passam dos 2 m de altura. O ambiente, portanto, é seco, mas as plantas desenvolveram adaptações diversas para resolver o problema da falta de água. No sudoeste da Chapada Diamantina (local da nascente do rio das Contas), apesar dos campos rupestres ocuparem áreas em que o turismo ecológico é a principal atividade econômica (municípios de Piatã, Abaíra e Rio de Contas, por exemplo), este tipo de vegetação está sendo descaracterizado por diversas agressões, tais como: desmatamento, pastagem, queimada e extração de espécies nativas para comercialização. A BH do rio das Contas tem como vegetação predominante a caatinga (vegetação do tipo xerófita ou que se adapta às condições de aridez), sendo a vegetação principal em clima semi-árido. Por isso, a falta de água é o seu fator limitante, o que faz as árvores e arbustos perderem as folhas durante o período da seca, a fim de diminuir a transpiração ao mínimo. A caatinga é o único bioma exclusivamente brasileiro, o que significa que grande parte do seu patrimônio biológico não pode ser encontrada em nenhum outro lugar do planeta. Antigamente, considerava-se que a caatinga seria o resultado da degradação de formações vegetais mais exuberantes, como a Mata Atlântica ou a Floresta Amazônica. Essa opinião sempre levou à falsa idéia de que o bioma Caatinga seria homogêneo, com biota pobre em espécies e em endemismos, estando pouco alterada ou ameaçada, desde o início da colonização do Brasil, tratamento este que tem permitido a degradação do meio ambiente e a extinção, em âmbito local, de várias espécies, principalmente, de grandes mamíferos. Entretanto, estudos e compilações de dados mais recentes apontam a caatinga como rica em biodiversidade e endemismos, e bastante heterogênea. Muitas áreas de caatinga que eram consideradas como primárias são, na verdade, o produto de interação entre o homem nordestino e o seu ambiente, fruto de uma exploração que se estende desde o século XVI. Porém, este patrimônio nordestino se encontra ameaçado. A exploração feita de forma extrativista pela população local, desde a ocupação do semi-árido, tem levado a uma rápida degradação ambiental. Segundo estimativas, cerca de 70 % da caatinga já se encontram alterados pelo homem e, somente 0,28 % de sua área encontra-se protegida em Unidades de Conservação (UC). Estes números conferem à caatinga a condição do bioma menos preservado e um dos mais degradados do Brasil.

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Na BH do rio das Contas, da mesma forma que em todo nordeste brasileiro, a caatinga se encontra completamente degradada, sendo pouquíssimas as áreas que não sofreram a intervenção humana, através de cortes sucessivos para a retirada de lenha ou para a implantação de diversas culturas de subsistência. Para Ab’Sáber (2003), não existe melhor termômetro para delimitar os ambientes semi-áridos do que os extremos da própria vegetação da caatinga. “O mapa da vegetação é mais útil para definir os confins do domínio climático regional do que qualquer outro tipo de abordagem, por mais racional que pareça” (p. 86). Numa faixa mais a leste, dentro da região semi-árida da BH do rio das Contas já existe mata. Segundo Ab’Sáber (2003), a umidade atlântica é a principal responsável pela denominação destas matas das terras baixas, quentes e úmidas e das matas de rebordos orientais do Planalto Sul-Baiano, que atingem um trecho restrito do reverso da serra (lado ocidental), tomando aí o nome popular de matas frias. Dentro do domínio dos Planaltos Costeiro e Pré-Litorâneo encontra-se o bioma Mata Atlântica, vegetação primitiva bastante devastada e substituída por culturas (cacau principalmente) ou por pastagens. Sua folhagem é sempre verde, mas no dossel superior pode apresentar árvores sem folhas durante alguns dias. A altura das árvores varia de 20 a 30 m, mas algumas chegam a alcançar em torno de 40 m (BRASIL, 1981). É importante salientar que os remanescentes da Mata Atlântica encontram-se, apenas, nos relevos tabulares do Planalto Costeiro, nos topos e encostas do Planalto Pré-Litorâneo ou, ainda, relacionam-se às plantações de cacau, pois a floresta é utilizada como sombreamento para o seu cultivo (plantio em forma de cabruca, como é chamado este sistema agroflorestal, na região). Trata-se de uma área de ocupação antiga, em que o desmatamento e a substituição da vegetação natural por pastagens, outra atividade praticada na região, levou à aceleração dos processos erosivos, intensificando os movimentos de massa com o pisoteio do gado. Ainda dentro do bioma Mata Atlântica, próximo à desembocadura do rio das Contas, com influência fluviomarinha e marinha, as vegetações características são o mangue e a restinga, respectivamente. O mangue ocorre ao longo da costa, nas embocaduras dos rios e dos córregos e, é conseqüência do fluxo das marés que, em seu constante movimento, arrasta diversas partículas em suspensão, as quais floculam na água salgada e depositam-se por gravidade, nos períodos de maré cheia, formando um substrato aluvial fluviomarinho, composto por solos indiscriminados, ricos em detritos orgânicos (BRASIL, 1981). É uma vegetação arbórea, com poucos sinais de interferência antrópica na área em estudo.

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As restingas são constituídas por espécies com altura máxima de 5 m, predominando a palmeira coco-da-baia. Entre as faixas de restinga aparecem gramíneas, alguns arbustos, coqueiros-anões, bromeliáceas e pequenas cactáceas. O relevo no cerrado e o clima na caatinga da BH do rio das Contas, agravados pelos solos pouco férteis, foram os principais fatores que não possibilitaram um tipo de exploração econômica que propiciasse um povoamento denso. Contudo, na área de mata, o densamento populacional é maior em relação aos outros biomas da bacia, devido ao tipo de exploração econômica que ocorreu no lugar. Dentro da área ocupada pela BH do rio das Contas, a Chapada Diamantina foi o local de maior importância econômica nos séculos passados. Apesar de já ser habitada pela população indígena, começou a ser mais intensamente povoada no final do século XVI, estimulada pela política da metrópole de distribuição de terras (Sesmarias) ou motivada pela própria ambição dos homens. As expedições que buscaram atravessar a porção central da Bahia para atingir a BH do Rio São Francisco se depararam, ao meio do caminho, com este lugar de relevo acidentado e de difícil acesso. Contudo, a maioria desses pioneiros apenas o contornou, sem desbravá-lo, pois o relevo parecia intransponível (IBGE, 1960). Segundo Teixeira et al. (2005), foi somente no século XVII que, aos poucos, ocorreu sua ocupação, no sentido das bordas para o interior, com núcleos populacionais ligados à pecuária. Depois de expulsar ou escravizar os índios, as glebas de terras no rio das Contas começaram a ser distribuídas e, em 1663, o lado sudoeste da Chapada Diamantina, local das nascentes do rio das Contas, já se encontrava totalmente apropriado e ocupado por grandes latifúndios de criação de gado. No século seguinte (XVIII), o processo de fixação do homem na Chapada Diamantina ganhou impulso extraordinário com o ouro encontrado no cascalho de seus rios, fato que a transformou em importante pólo de convergência dos movimentos migratórios da época. Mesmo sendo proibida pela Coroa Portuguesa, durante aproximadamente duas décadas, a exploração clandestina do ouro logo tomou conta dos rios da região. Data deste período a exploração de ouro nas margens do rio das Contas Pequeno, atual rio Brumado. Em 1720, a metrópole retrocedeu e decretou livre a exploração do ouro, com o pagamento da quinta parte à Coroa. Foi, então, que surgiu o primeiro povoamento - Freguesia de Santo Antônio de Mato Grosso ou, simplesmente, município de Rio de Contas, como passou a se chamar em 1885. A cidade de Rio de Contas (no sudoeste da Chapada Diamantina), juntamente com (no norte da Chapada Diamantina), foram as mais

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prósperas do ciclo do ouro da Bahia, tanto que chegaram a se equiparar, em pompa e refinamento, com cidades do Recôncavo Baiano Açucareiro (TEIXEIRA et al., 2005). A partir do rio das Contas, a frente de exploração do ouro,, avançou no sertão baiano, sendo criados povoamentos e vias de comunicação terrestre em boa parte do lado ocidental da Chapada Diamantina. Bom Jesus do Rio de Contas, atual Piatã, é um exemplo de cidade que nasceu neste período. Antes que completasse um século de efervescência, a região aurífera da Chapada Diamantina entrou em declínio. O ouro de aluvião escasseou, veio a crise e nos primeiros anos do século XIX, a mineração já era, então, uma atividade praticada por poucos garimpeiros. As frágeis cidades mineradoras estruturadas econômica e administrativamente, com vistas a dar quintas (impostos) à metrópole, viram-se condenadas ao esquecimento. Na primeira metade do século XIX, entretanto, teve início a fase mais próspera da Chapada Diamantina com a descoberta de grandes depósitos de diamantes no leito do rio Mucugê. Supõe-se que os garimpeiros já sabiam da existência desse mineral há um século, mas, como Portugal, mais uma vez, tinha proibido sua exploração, a não ser no estado de Minas Gerais, tudo ficou na clandestinidade. As origens das atividades mineradoras do diamante na região foram as mesmas que a do ouro, uma vez que, no Brasil, os aluviões diamantíferos ocorrem, geralmente, associados aos auríferos. No ano de 1832, dez anos após a Proclamação da Independência do Brasil, foi revogada a lei que proibia a exploração diamantífera fora de Minas Gerais. Começou, então, o período que a Chapada se tornou diamantina de fato. Inicialmente, encontrou-se o valioso mineral na região norte da Chapada. Mas, foi no sul, por volta de 1844, às margens dos riachos das Combucas e do Mucugê, que se identificou diamante de melhor qualidade, num local em que, até então, só se praticava pecuária (TEIXEIRA et al., 2005). Rapidamente, os riachos foram tomados por mineradores de todo tipo e origem e, desta vez, em número muito superior ao que viera no século anterior, em busca do ouro. Reviraram os cascalhos de todos os riachos, rios, encostas de serras, tudo que supunham ser produtivo. Muitos povoados surgiram e os que já existiam cresceram junto com a mineração. Este ciclo diamantífero foi efêmero, mas representou a redenção da Chapada Diamantina, sendo seu principal fator de povoamento. Com a descoberta de grandes jazidas na África do Sul, em 1867, despencou o preço do diamante no mercado internacional e acabou com a hegemonia do Brasil. Ao mesmo tempo, os aluviões e conglomerados chapadinos tiveram redução na sua capacidade produtiva, o que pôs fim a este período

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diamantífero. Mas, o oásis no meio do sertão baiano, um lugar de paisagens sem igual, continuou sendo chamado de Chapada Diamantina. Nos 100 anos seguintes, aproximadamente (1870 - 1980), a mineração continuou de forma incipiente, entretanto, suficiente para causar degradação em grandes áreas da Chapada Diamantina. Depois de um período (1980 - 1990) de muitos confrontos entre garimpeiros e órgãos governamentais de proteção ambiental - que estavam tentando intervir quanto à utilização de dragas na mineração, as quais alteravam, significativamente, as paisagens dos vales dos rios – a partir dos anos 1990, os dias são marcados por uma postura preservacionista da maioria da população local. Mas, sem dúvida alguma, o responsável pelo fim da mineração na Chapada Diamantina foi o segmento da população, que já estava envolvido nas questões ambientais, fazendo denúncias, documentando as irregularidades e, também, porque já se previa o turismo, como uma alternativa econômica para a região. A população das cidades da Chapada Diamantina, outrora tão acostumada ao garimpo, criou outra forma para viver. Um exemplo a ser citado é a cidade de Piatã, cuja população preserva as águas cristalinas das nascentes do rio das Contas, que brotam da Serra do Tromba, criando um cenário de beleza sem igual. Hoje, a ocupação humana no bioma Cerrado da BH do rio das Contas (dentro da Chapada Diamantina) está condicionada pela estrutura do relevo, restringindo-se à atividade agrícola nos fundos dos vales e ao turismo nas serras. Por exemplo, nos municípios de Abaíra e Rio de Contas, entre as cristas das serras dissecadas pelos rios, cultivam-se arroz e cana-de- açúcar irrigada e, nas serras, o turismo de aventura é predominante. A BH do rio das Contas abrange 74 municípios baianos de forma total ou parcial, segundo dados da SRH/BA (1993), sendo que o rio principal atravessa cerca de 30 municípios. Destes, somente Jussiape (Cerrado), Jequié (Caatinga), Jitaúna, Ipiaú, , Ubatã, , e Itacaré (Mata Atlântica) têm suas sedes banhadas pelo rio das Contas (Figura 7). A população residente em toda a área da bacia é de aproximadamente 1.550.000 habitantes. Entre estes, cerca de 300.000 vivem nas cidades que margeiam o rio das Contas (SRH/BA, 1993). As cidades de maior população são: Vitória da Conquista, Jequié e Brumado (bioma Caatinga) e Ipiaú (bioma Mata Atlântica), as quais se destacam na economia da bacia por possuírem uma produção econômica mais diversificada. Concentradas nas áreas da Chapada Diamantina e da Mata Atlântica seguem as atividades de turismo e lazer de aventura.

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Figura 7 - BH do rio das Contas com os municípios que têm as áreas urbanas localizadas nas urbanas áreas margens do rio. têm as BHdas do rio localizadas 7 - que Figura Contas os municípios com 43

Nos municípios de Piatã, Abaíra, Rio de Contas e Jussiape (Chapada Diamantina), a prática de traking e caminhada ecológica aos picos tem sido realizada por brasileiros adeptos ao turismo de natureza mas, principalmente, por estrangeiros. Tal fato explica-se por esta área ser ainda pouco conhecida no cenário nacional e de difícil acesso. Por isso, encontra-se bastante preservada, com suas serras grandiosas, sua biodiversidade vegetal e animal e seus rios de águas límpidas. Vale ressaltar que os referidos municípios estão incluídos na Área de Preservação Ambiental (APA) da Serra do Barbado. As principais rodovias federais que cruzam a BH do rio das Contas, no sentido norte/sul são: a BR 116, na área do bioma Caatinga e a BR 101, na área do bioma Mata Atlântica (próximo ao litoral). No sentido leste/oeste, as principais rodovias federais são: a BR 330, que liga a BA 101 à BA 026, passando por Jequié; e a BR 030, que atravessa todo o território da bacia, indo desde Maraú (leste) até Caetité (oeste). É a BA 026 que faz a ligação entre as rodovias BR 330 e BR 030 (Figura 8). A BR 116 promove a ligação das regiões norte, nordeste, sudeste e sul dentro do território brasileiro, permitindo a interligação dos maiores pólos econômicos regionais. Por isso é considerada uma das principais vias responsáveis pelo comércio nacional. Na BH do rio das Contas, ela atravessa o rio dentro da cidade de Jequié, faz a ligação desse município com Vitória da Conquista e segue na direção sul, até o limite da bacia com o estado de Minas Gerais. A BR 101 é considerada a rodovia do turismo, pois acompanha o litoral brasileiro, quase sempre muito próximo à costa. Dentro da BH do rio das Contas as principais cidades que a BR 101 atravessa são Aurelino Leal e Ubaitaba, as quais têm o rio das Contas dividindo seus perímetros urbanos. Quanto à presença de rodovias estaduais na BH do rio das Contas, a BA 001 passa bem próxima ao litoral, chegando, em alguns trechos, a margear a linha da praia. Dentro do município de Itacaré, a BA 001 atravessa o rio das Contas, bem próximo da sua foz. Esta rodovia tem muita importância na região, devido à atividade de turismo, que vem crescendo na economia regional. Devemos citar ainda a BA 148, por atravessar o sudoeste da Chapada Diamantina, no sentido norte/sul, indo desde a BR 030 até a nascente do rio das Contas, na altura do município de Jussiape, inclusive margeando-o em alguns trechos. De acordo com o Centro de Recursos Ambientais do Estado da Bahia (CRA/BA, 2000), os principais usos da terra na BH do rio das Contas, além da presença de cidades, contemplam as atividades de irrigação, mineração, agropecuária e geração de energia elétrica.

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Figura 8 - Principais rodovias federais e estaduais Principais rodovias e que 8 - Figura a federais ferrovia cruzam Contas, BA. e BHdas do rio 45

As atividades de irrigação concentram-se nos biomas Cerrado e Caatinga, apesar de ocuparem um espaço reduzido no cenário regional. Segundo a SRH/BA (1993), o principal projeto de irrigação, dentro da área da bacia, fica localizado no município de Brumado, razão, inclusive, de alguns conflitos de uso da água. Tal como ocorre em outras bacias hidrográficas, os principais conflitos pelo uso da água presentes na BH do rio das Contas decorrem, naturalmente, pela exigência da população ao direito de ter água potável, bem como, por problemas de disponibilidade. Segundo estudos do Ministério de Meio Ambiente (MMA), a presença de minerais nesta bacia é mais expressiva em áreas localizadas próximas às nascentes do rio das Contas e dos seus afluentes e nas áreas situadas ao sul da cidade de Jequié. Nos municípios de Caetité e de , por exemplo, ficam as maiores reservas de urânio do país. Contudo, sua exploração pode ser prejudicada pela escassez da água, característica principal do bioma Caatinga. Além do urânio, minas de manganês, de talco, de dolomita e de calcário também são encontradas nesta região. Os minérios utilizados como materiais de construção (areia lavada, seixo, pedras decorativas, argila e cascalho) ocorrem, praticamente, em todos os rios da bacia. Entretanto, é importante destacar a retirada desordenada de areia do leito do rio das Contas no município de Jequié, o que vem contribuindo para a sua difícil sobrevivência. Já, em todos os espaços colinosos do bioma Caatinga dominam as velhas práticas de pastoreio extensivo, com gado solto por entre arbustos e capim nativo. Vale ressaltar que, o solo tem pouquíssima matéria orgânica. Dentro desse bioma, os municípios de Jequié, Vitória da Conquista, Caetité e Brumado são os que mais se dedicam à pecuária, criando gado, principalmente, para o corte. A produção de leite é pequena. Todavia, no bioma Mata Atlântica há um predomínio quase absoluto de lavouras (ver a Figura 6), com destaque para o cultivo do cacau consorciado com a mata. Este tipo de cultivo é chamado de sistema tradicional ou cabruca, o qual

mantém parte do estrato arbóreo da mata original para servir de sombreamento ao cacau, já que é uma cultura que não suporta exposição ao sol. Com essa prática, evita-se a erosão do solo e, como resultado, preserva- se o sistema hidrológico, pois boa parte ocupa área de declive (ROCHA, 2008, p. 20).

Durante quase todo o século XX, o cacau foi o principal gerador de riqueza da Região Sul Baiana. No entanto, o plantio de cacau no continente africano acabou reduzindo o preço do produto, explicando, em parte, a diminuição da produção baiana. Além disso, a 46

disseminação do fungo “vassoura-de-bruxa” ou Crinipellis perniciosa (doença que compromete a produção de frutos de cacau), também contribuiu para o declínio da produção baiana de cacau. Contudo, poucos cultivos agroflorestais são tão adequados para a preservação dos solos, das florestas e dos recursos hídricos como os de cacau, mesmo que haja degradação (é pequena se comparada a outras formas de cultivo), justificando todos os esforços para a sua recuperação econômica. As indústrias voltadas para a produção de alimentos se concentram, de maneira geral, nos municípios situados entre a BR 116 e a faixa litorânea, na área do bioma Mata Atlântica, principalmente nos municípios de Ipiaú, Ubatã, Ubaitaba e Aurelino Leal. São indústrias de secagem e pré-torrefação do café, produção de farinha de mandioca e de azeite de dendê. Na BH do rio das Contas, a área coberta pela Mata Atlântica é bastante divulgada pela mídia brasileira, devido à tradicional cultura do cacau. Entretanto, nos últimos anos, tem sido difundida a idéia da beleza da sua costa, por ainda preservar a mata e também pela presença do rio das Contas, principalmente, no município de Itacaré, o qual vem se despontando no turismo brasileiro. O rio, com suas corredeiras, seu cânion e suas quedas d’água, proporciona inúmeras atividades de recreação e de aventura, tendo o trecho que cruza o distrito de Taboquinhas, como seu maior exemplo. Os principais impactos na BH do rio das Contas estão diretamente relacionados à destruição da cobertura vegetal, por atividades agropecuárias e agroindustriais. As iniciativas de reflorestamento para a recuperação das áreas degradadas, em toda bacia e, dos cultivos de cacau, dentro da Mata Atlântica, ainda são muito incipientes. As poucas iniciativas restringem-se à pesquisadores da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC - órgão federal autárquico, criado para “desenvolver” a lavoura cacaueira) e à pesquisas desenvolvidas por professores da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), instituições localizadas na Região Litoral Sul da Bahia. Por tudo isso, a BH do rio das Contas é muito peculiar e requer uma especial atenção das autoridades federais e estaduais. O argumento econômico soma-se aos de origem ecológica, já que esta bacia e regiões próximas reúnem todas as condições ambientais e culturais favoráveis, para se transformar em um local de grandes projetos de desenvolvimento humano. Dentro dessa perspectiva, a proteção dos recursos hídricos adquire uma importância ímpar, justificando, ainda mais, quaisquer iniciativas de revitalização agroflorestal na bacia e de projetos que atendam às necessidades das pessoas que mais precisam. Do ponto de vista da Geografia Humanista, além de uma bacia hidrográfica ser uma área banhada por um rio principal e seus afluentes é, também, uma manifestação das relações

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sociais, do meio ambiente e da subjetividade humana e o seu rio principal pode representar o elemento de confluência e de convergência dessas relações (GRATÃO, 2002). Assim, por estes motivos, passaremos a conhecer o rio das Contas no mesmo sentido de suas águas, ou seja, da nascente à foz, com o desejo fluente de desvendar este elemento da natureza na perspectiva humanista.

As curvas do rio das Contas: da Chapada ao Oceano

O rio é certeza de que existe lugar [...] (SOUZA NETO, 1997, s. p.).

Um rio é uma corrente natural de água que flui com continuidade, possui um caudal considerável e desemboca no mar, num lago ou em outro rio, e em tal caso denomina-se afluente. Segundo Guerra (1993, p. 369) rio é uma “corrente líquida resultante da concentração do lençol d’água num vale”. Quando um rio nasce, sempre numa região elevada, é leve e buliçoso, como qualquer criança ou filhote de animal. Ele corre, salta, ora atirando-se de grandes alturas, ora saltitando rumoroso por entre os seixos, ora tranqüilo e descansando, arquejante em seu leito. O aspecto da sua água é saudável e límpido (quando não poluído), irradiando pureza e refletindo o azul do céu. Seu alimento, ou seja, a água, é o que proporciona o seio fértil da Terra-mãe. Essencialmente baiano, o rio das Contas nasce a aproximadamente 1.500 metros de altitude, em planaltos e maciços centrais do estado da Bahia, na majestosa Serra do Tromba (Figura 9) (sul do município de Piatã), pertencente às serras da Borda Ocidental da Chapada Diamantina; e “navega” por vários municípios baianos, percorrendo cerca de 500 quilômetros em direção leste, até a sua foz, no município de Itacaré, quando então, deságua no Oceano Atlântico.

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Fonte: : http://images.google.com.br. Acesso em: ago. 2006.

Figura 9 - Serra do Tromba no município de Piatã, BA.

O rio das Contas pode ser dividido em três trechos ao longo de sua extensão, devido aos diferentes tipos de biomas que atravessa (ver Figura 2): a) Trecho que banha o bioma Cerrado - área da Chapada Diamantina, com 135 km, aproximadamente. b) Trecho que corta o bioma Caatinga - área do sertão baiano, com 225 km, aproximadamente. c) Trecho que atravessa o bioma Mata Atlântica - área de floresta, com 125 km, aproximadamente. Inicialmente, dentro da área municipal de Piatã, o rio das Contas, que é uma drenagem intermitente, possui direção de fluxo para norte até a confluência com o rio Gritador e com o rio Três Morros, passando, então, a fluir para nordeste. Mais à jusante, na confluência com o riacho do Vão, toma a direção sudeste no sentido do município de Abaíra (já em Depressões Periféricas e Interplanálticas), quando, então, corre no sentido sul, passando por Jussiape e, depois, por Rio de Contas (margem direita), município que faz o limite sul da Chapada Diamantina (na sua margem esquerda tem o município de Ituaçu, que está fora da área da Chapada Diamantina); este é o percurso do rio das Contas no bioma Cerrado. Dentro do bioma Caatinga, desde o município de Ituaçu o rio das Contas atravessa as Depressões Periféricas e Interplanálticas e o Planalto Sul-Baiano e, sempre em direção leste corta a região semi-árida da Bahia, até o município de Jequié (Figura 10). Ainda em sentido leste, a partir dos municípios de Itagi e Jitaúna mas, agora, dentro do bioma Mata Atlântica, o seu leito transpõe os Planaltos Pré-Litorâneo e Costeiro e segue por entre a mata, até sua desembocadura na cidade de Itacaré (Figura 11).

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Fonte: Jequié Notícias, 23/06/2006. http://images.google.com.br. Acesso em: ago. 2006 e maio 2007.

Figuras 10 e 11 - O rio das Contas cruzando os municípios de Jequié e de Itacaré, BA.

O rio das Contas tem vazão de cerca de 1,76 m3/s na Chapada Diamantina, chegando a aproximadamente 100 m3/s próximo a sua foz, apresentando-se perene em todo seu curso (com exceção da nascente). Porém, a maioria dos seus tributários é intermitente (nos biomas Cerrado e Caatinga). Seu regime fluvial é de caráter essencialmente torrencial. Isto ocorre em decorrência do relevo movimentado e da baixa retenção de água, aliados à baixa permeabilidade de alguns tipos de solos que se localizam na área, facilitando o escoamento. As irregularidades pluviométricas ao longo do ano causam acentuada variabilidade nos seus deflúvios, existindo grande diferença de escoamento ao longo do seu per(curso), devido aos rigores do clima semi-árido, quando há grande perda de água por evaporação, contribuindo, consideravelmente, para diminuição do seu volume de água. Já na direção do litoral, os deflúvios do rio das Contas elevam-se novamente, não apenas devido ao clima mais úmido, mas, também, pela presença de reservatórios subterrâneos com capacidade de manter os deflúvios em época de estiagem (SRH/BA, 2004). A demanda atual de água no rio das Contas, em todo seu curso, é de 54,7 m3/s, sendo: abastecimento - 1,88 m3/s; irrigação - 10,08 m3/s; mineração - 0,02 m3/s e geração de energia - 42,00 m3/s. A disponibilidade hídrica superficial é de 143,30 m3/s. O rio das Contas já teve várias denominações desde o início da ocupação do território brasileiro. Os índios que habitavam as suas margens, antes da chegada dos europeus, chamavam-no de rio Juciape, que no vocabulário tupi juci-a-pê significa “lugar onde a caça bebe água”(www.brasilchannel.com.br/municípios, set. 2008). Silva Campos (2006) escreve que, de acordo com o professor e historiador português Duarte Leite, intérprete de mapas portugueses da época de 1535, o rio das Contas aparece

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como rio Santo Agostinho, nome dado por viajantes desconhecidos que navegavam próximos à costa da Terra de Vera Cruz e registraram em mapas a onomástica dos maiores rios que desaguavam no Oceano Atlântico. Este mesmo nome foi dado pelo perito da nossa cartografia antiga, Orville Derby, que o identificou como rio S. Agostinho em Os mais antigos mapas do Brasil. “Julgamos que em 1531, quando Martin Afonso por ali passava [...]” (p. 25), assim se referiu Silva Campos (2006) a uma interpretação feita à obra Diário de Navegação, de Pero Lopes de Souza, para mostrar que o rio das Contas era chamado na época de rio Santagostinho. Mas, para o renomado professor baiano Honório Silvestre, que escreveu o artigo O Sul da Bahia, na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, em 1926, “o rio das Contas ou Jussiape, dos indígenas, é, historicamente, o rio São Julião [...]” (p. 25), batizado por cronistas espanhóis que acompanhavam as expedições de Vicente Yañez Pinzón e Diego de Lepe às terras desconhecidas, antes de Pedro Álvares Cabral, feitas em 1499 e 1500, respectivamente (há muitas controvérsias quanto à realização destas expedições espanholas à costa oriental da América do Sul). Quanto à origem do seu atual nome, para Silva Campos (2006, p. 29) existem várias versões: Rio de Contas ou das Contas? Aristides Milton [Engenheiro Civil, professor, deputado e escritor baiano], nas “Efemérides Cachoeiranas” ([Salvador: Tipografia Baiana, 1903], p. 159), diz em nota: - “Digo Rio das Contas e não Rio de Contas, como, no entanto, é de uso quasi geral. O rio aludido não é cheio de contas, nem poderia ser formado por elas. Mas, como era a beira dele que os interessados na mineração do ouro se reuniam, nas épocas prefixadas, para ajustar as suas contas e fazer os respectivos dividendos, o rio naturalmente ficou denominado o Rio das Contas”. Segundo [Historiador baiano Francisco] Borges de Barros (Anais do Archivo Público do Estado da Bahia, 1933, II, p. 47), tal nome lhe foi aplicado devido a se encontrarem no seu leito umas pedras redondas e azuladas, idênticas às que corriam na Ásia como dinheiro. [O escritor baiano João] Guimarães Cova (Terra Prodigiosa, [Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1934], p. 14) apresenta esta variante da opinião de Aristides Milton: - “Os mineradores recebiam os seus salários num certo ponto de suas margens, onde se acertavam as contas, por isto eles diziam: lá no rio das contas”. Explica [o professor Luiz dos Santos] Vilhena ([Recopilação de notícias soteropolitanas e brasílicas contidas em XX cartas anotadas por Braz do Amaral. Salvador: Edição oficial do Estado da Bahia, 1921], v. II, p. 530) a origem do topônimo pela história de dois religiosos que, chegados à margem do rio, tinham de transpô-lo para a outra banda, onde viram grande número de índios ferozes. Então qualquer deles disse ao companheiro, aludindo à possibilidade de serem massacrados: - “Hoje, meu irmão, iremos às contas” (Grifos do autor).

Podemos perceber que essas denominações são reveladoras dos múltiplos sentidos que foram atribuídos ao rio das Contas, tanto que ele é apreendido, invocado ou representado por

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diversas funções, sentidos e olhares, sendo divisor e fixador a partir das relações espaço, tempo e história. Neste trabalho, optamos pela denominação RIO DAS CONTAS porque propicia a distinção entre o nome do rio e o nome do município Rio de Contas, localizado próximo a Piatã (local da nascente do rio das Contas), embora sejam usadas as duas denominações por diversas instituições federais e estaduais que se referem a ele. Como exemplo: o IBGE adota o nome rio das Contas e a SRH/BA atribui a ele a denominação rio de Contas. O rio das Contas teve e, ainda, tem muita importância para a ocupação humana de toda sua bacia hidrográfica. Já serviu e ainda serve de estrada ou caminho; serve para alimentar muitas famílias; serve para o gasto doméstico dessas famílias; serve como local de trabalho para marisqueiras, lavadeiras, pescadores, etc; serve para irrigar lavouras; serve para a criação de gado; serve de berçário para muitas espécies de peixes e mariscos; serve para a prática de esporte de aventura; serve para propiciar paisagens deslumbrantes... serve para embalar sonhos... serve para contar estórias... serve para fonte de inspiração poética... enfim, serve para... Como divisor, um rio é fronteira geográfica que pode separar pessoas, fazendas, sítios, bairros, cidades, municípios, estados e até países. Mas, ao mesmo tempo em que divide os lugares, um rio pode ser vetor de integração local, regional, estadual e nacional. “No sentido de travessia o rio é caminho, estrada, navegação, via fluvial [...]. O rio é, assim, uma individualidade viva, aglutinadora que nivela e aumenta [...], dispersa e fixa pessoas, escrevendo na face da terra [...] episódios de sua história física, social e cultural” (GANDARA, 2007, s. p.) (Figura 12).

Fonte: : http://images.google.com.br. Acesso em: ago. 2006. Figura 12 - Caminho-rio das Contas na Chapada Diamantina, Piatã-BA.

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Para Souza Neto (1997), um rio guarda em si múltiplas possibilidades. Chora e sorri enquanto corre... corre com sua fluidez... lava e conduz os homens no seu dorso... ensina e aprende... guarda em si todos os mistérios da natureza... e ainda é de uma simplicidade sem par. Enquanto, para Hesse (1972, p. 88):

O rio tem muitas vozes, um sem número de vozes, [...] não parece que ele tem a voz de um rei e as de um guerreiro, a voz de um touro e a de uma ave noturna, a voz de uma parturiente e de um homem que suspira, e inúmeras outras ainda?

Os rios estão na origem da agricultura, do comércio, da sedentarização do homem, desde a sua vida progressivamente nômade até a civilização baseada na produção de alimentos, arte, lei e ciência. O rio guarda elementos muito distintos entre si e pode caracterizar lugares, servir de muitos modos para a produção de alimentos, abastecimento de água, via de transporte, fonte de energia hidrelétrica e ainda expressar muitos significados. Por outro lado, muitas pessoas têm uma relação interessante com a água (rios, lagos) de seus lugares, muitas vezes, comparando a água com sentimentos de medo, sofrimento, dor... Diniz (1992, p. 156-157) em suas narrativas considera o rio São Francisco sob o mesmo prisma que um dos seus personagens tem: “Rio da unidade - uma ova! Rio da maldade [...]. Rio danado [...]”. Isso, talvez, por ter lhe acontecido algo com relação ao rio. O São Francisco é considerado o rio da unidade nacional, ou o mais brasileiro, para muitos brasileiros ou, ainda, o rio que leva água ao sertão. Assim, citamos o rio Amazonas, pela sua beleza e o Araguaia, pela sua pujança, pois a identidade de um rio ou a sua simbologia pode se manifestar de diferentes formas nas sociedades. Este sentimento de repulsa com relação ao rio pode ser explicado quando alguém “perde um ente querido” nas suas águas:

Um rapaz de 16 anos está desaparecido desde a última terça-feira (20/02/2007). [Ele] saiu com uns amigos para pescar no Rio das Contas, em Jequié, quando foi puxado por um redemoinho e levado pela correnteza. O corpo de bombeiros está fazendo buscas no rio. Há mais de uma semana chove na região. O alto nível do rio, aliado à forte correnteza, tem dificultado o trabalho (www.ibahia.com, 22/02/2007).

O rio tem vida e dá a vida, mas também tira a vida! É preciso ouvir a voz do rio, prestar atenção ao que ele diz, assim podemos aprender com ele e não morrer através dele,

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pois um rio nunca tem culpa pelas tristezas que proporciona, são as pessoas que não escutam o seu recado, como aconteceu com o adolescente da cidade de Jequié. O rio mata a sede e a fome, lava o corpo, lava a roupa, leva as pessoas para muitos lugares, rio acima, rio abaixo... Essa relação das águas com a vida, com o mundo dessas sociedades é o resultado do longo processo histórico e cultural das relações entre essas sociedades e a natureza. Para Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 781):

Seja a descer as montanhas ou a percorrer sinuosas trajetórias através dos vales, escoando-se nos lagos ou nos mares, o rio simboliza sempre a existência humana e o curso da vida, com a sucessão de desejos, sentimentos e intenções, e a variedade de seus desvios.

Mas, para Cirlot (1984, p. 499) o rio:

É um símbolo ambivalente por corresponder à força criadora da natureza e do tempo. Por um lado, simboliza a fertilidade e a progressiva irrigação da terra; por outro, o transcurso irreversível e, em conseqüência, o abandono e o esquecimento.

São vários os rios, como são várias as formas de apropriação simbólica e material, interpretadas por Souza Neto (1997, p. 63) como: “o rio é um mar de signos. É preciso desvendá-lo”. E, para Gandara (2007, s. p.):

Os rios são construtores de “mundos sociais” e aglutinam em torno de si uma boa quantidade de representações como “lugar de significação” que são. Servem de baliza ou marco quase míticos para estratégias sócio-culturais. Eles significam muito mais do que acidentes geológicos traçados nos mapas. Os rios não são simples suporte físico. É paisagem. Lugar onde as pessoas se abrem aos mistérios da natureza, ao patrimônio simbólico, possibilitando a interpretação como terreno da criação cultural, passagem de forças e encontro dos indivíduos. A categoria rio representa um sistema, indicador da situação espacial, concebido com base nas relações entre natureza e pessoas. Eles têm história.

Um rio é sempre um rio, mas o mundo vai mudando com o tempo e com isso o rio também muda, pois acompanha os períodos do crescimento populacional em regiões habitadas. Além do que, não podemos deixar de lembrar, que os rios vão amadurecendo dentro de um tempo geológico. Mas, a urbanização em suas margens acaba acelerando o assoreamento do seu leito e poluindo suas águas, principalmente em áreas agricultáveis e em áreas urbanas.

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A água, representada pelo rio, é prenhe de significados, é um elemento da vida que a encompassa e a evoca sob múltiplos aspectos, materiais e imaginários. É condição básica e vital para a reprodução da vida humana e de outras formas de vida, e também participa do mundo simbólico humano, juntando várias imagens e significados. Para Bachelard (2002), as águas dos rios, águas maternais, águas femininas, são comparadas com o amor de uma mãe, imensamente grande, eterno e projetado no infinito... assim, a natureza é para o homem adulto. O elemento água é feminino e uniforme, simboliza as forças humanas mais escondidas, mais simples e significantes. A água é a linguagem contínua fluída, é o símbolo universal da vida de fecundidade e de fertilidade. Segundo Cunha (2000, p. 16-17):

A água está na natureza e, a um só tempo, na cultura. Está nos mitos da história. Está no dia e na noite, nas estações do ano [...]. Está na vida dos amantes, nos encontros amorosos, nos beijos molhados, na dança dos corpos suados que se enlaçam e se fundem em ato de amor [...]. Está nas celebrações da vida e da morte, nas cerimônias de adeus, a água lágrima, no batismo, água-benta para a purificação divina.

No poema Canção, o autor usa a metáfora do rio que chora a ausência da mulher amada, quando na verdade é o movimento da água que o faz ouvir o barulho do rio. O poeta coloca a água do rio como lágrimas de um choro saudoso pela pessoa amada. O sujeito poético utiliza o rio como cenário do sofrimento que está sentindo pela ausência de quem ama e quem sabe poderá ouvir seus sentimentos, seus lamentos, levados pelo suave deslize das águas de um rio qualquer.

Canção (Autor: Carlos Reis)

Dedilhei acordes suaves em teu nome, Na cabana dos nossos amores, Ouvindo o rio que chorava tua ausência, Nas margens mansas guardando os sinais de ardores, Que lá deixamos e tão bem me lembro.

Foram tardes cheias de paixão e arfares, Noites límpidas de soluços no ar, Águas que desciam e se continham para nos observar, O cheiro a relva que jamais esquecerei, Pois trago no corpo seu perfume ainda.

Hoje que não estás, Pego na viola e componho, Canções que me saem sem pensar, Invento tons para te enviar,

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Em folhas viçosas que pouso na água e deixo deslizar, Amanhã quem sabe, Perto de um rio qualquer as ouvirás?!... Dlom, dlim, dlam, dlum, dlam, dlim…….

Fonte: REIS (2006).

Entre a ficção e a realidade, os rios sempre foram usados para muitos fins. Ao mesmo tempo, os rios são universais porque existem rios em todo lugar e, particulares, individualizados pela relação que os homens estabelecem histórica e culturalmente com eles. O que significa dizer que a cultura se esboça na água, naquilo que ela correntemente oferece (SOUZA NETO, 1997). Nesta perspectiva, podemos afirmar que as águas do rio das Contas carregam diferentes culturas em todo seu percurso, principalmente porque são drenadas em três diferentes biomas dentro do estado da Bahia, com pessoas culturalmente diferentes, a exemplo do sertanejo e do litorâneo. As pessoas que moram no sertão (talvez) têm uma relação muito mais íntima e necessária com um rio, do que aquelas que têm água em abundância, dentro do bioma Mata Atlântica. Os rios são vistos como elementos da organização espacial. Os homens seguiram os cursos correntes de água ou foram conduzidos por eles, por toda parte. Através desses caminhos líquidos, o mundo foi povoado. Como falar da África e do Egito sem o Nilo, da Ásia e da China sem o Yang-Tsé-Kiang e o Mekong, do Brasil sem o Amazonas ou, ainda, do nordeste brasileiro sem o São Francisco, de São Paulo sem o Tietê, de Recife sem o Capibaribe, de Paris sem o Sena, de Lisboa sem o Tejo, de Buenos Aires sem o Prata? Os rios são personagens feitos de água, como se fossem memórias vivas! Como poetizar um rio? Ou o que dizer de um rio, já que ele não é nada mais do que, simplesmente, um rio? Poetizar é dizer aquilo que não poderia ser dito de outra maneira, é buscar as palavras no silêncio...! É tirar da sua paisagem a inspiração para compor uma música, escrever uma poesia ou simplesmente pensar! Qualquer expressão de arte pode ser uma maneira direta no objetivo de alcançar a sociedade, pois rompe as que existem entre as classes sociais, as culturas e as diferentes morais, promovendo um diálogo, um encontro entre elas. Nesta perspectiva, para um artista, o rio das Contas é semelhante desde a nascente até a foz, mesmo que passe por diferentes culturas... levando muitas visões de mundo em suas águas... ele é sempre um rio... pode ser uma fonte de inspiração!

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Para muitos poetas, não é arbitrário que a água surja, numerosas vezes, em seus poemas, seja na forma de rio, seja como um elemento volátil que se ajusta a qualquer forma.

O que é o rio (Autor: Marcos Siscar)

O rio é uma ponte entre mundos distintos é o abismo sertão da própria vereda é uma estrada deitada sobre o abismo refletindo o avesso de campos e matas uma nascente a precipitar-se nas noites escuras perturba o sossego de toda a natureza.

Fonte: SISCAR [s. d.].

O poeta cria a sua poesia através da sua leitura de mundo, seduzido pelas metáforas, tão utilizadas neste tipo de arte. Com seu devaneio (sonho desperto), liga os homens a si mesmos e aos rios, através do imaginário.

Como um rio (Autor: Thiago de Mello)

Ser capaz, como um rio Como um rio, aceitar que leva sozinho essas súbitas ondas a canoa que se cansa, feitas de águas impuras de servir de caminho que afloram a escondida para esperança. verdade nas funduras. E de lavar do límpido a mágoa da mancha, Como um rio, que nasce como um rio que leva, e lava. de outros, saber seguir junto com outros sendo Crescer para entregar e noutros se prolongando na distância calada e construir o encontro um poder de canção, com as águas grandes como o rio decifra do oceano sem fim. o segredo do chão. Mudar em movimento, Se tempo é de descer, mas sem deixar de ser reter o dom da força o mesmo ser que muda. sem deixar de seguir. Como um rio. E até mesmo sumir para, subterrâneo, (Na Freguesia do Andirá, janeiro de 1981). aprender a voltar e cumprir, no seu curso, o ofício de amar.

Fonte: MELLO, T. (1981, p. 26-27).

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Assim... a imagem de um rio pode estar na água da poesia, que com seu carinho amacia e transforma... A idéia de rio para o poeta Thiago de Mello é, como um rio, fazer sua poesia de modo espontâneo, natural, como que fluindo levemente por entre as margens da terra. Para Ramos (1999a, p. 147), “A água, para o poeta, é antes de tudo, [...] uma possibilidade de (re)nascimento, de renovação, de aprender a voltar e cumprir o ofício”. É o contato íntimo do poeta com o rio que alimenta a sua imaginação criadora. Como elementos do quadro natural, os rios compõem parte do ciclo hidrológico, ao carrear o excedente de água de uma bacia hidrográfica e um conjunto de detritos resultantes da meteorização da superfície da mesma, para outro rio, lago, mar ou oceano. A análise das águas de um rio e de seus afluentes permite desconstruir e reconstituir as relações entre as atividades antrópicas e o meio ambiente. A análise físico-química de suas águas fornece uma visão estática, um retrato momentâneo da drenagem da sua bacia, expressa em índices e medidas de elementos físico-químicos em suas águas. A análise da biodiversidade encontrada nas águas de um rio permite identificar processos mais permanentes, na medida em que a sobrevivência e/ ou o desenvolvimento de certos organismos vivos refletem as condições ambientais presentes no seu leito em períodos mais dilatados. O rio com sua bacia hidrográfica, com suas nascentes e seus tributários dá idéia de unidade - terra, água e homem - todos caminhando/convivendo, um ao lado/junto do/com o outro, com afetividade (ou não). Homem e demais elementos da natureza de mãos dadas! A Figura 13 foi colocada propositalmente, pois reúne os três elementos: rio, homem e terra.

Fonte: http://images.google.com.br. Acesso em: maio 2007.

Figura 13 - Homens na canoa... rio das Contas, Itacaré-BA.

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Como exemplo, no trecho dentro do cerrado, com o relevo privilegiado da Chapada Diamantina, o rio das Contas vive de mãos dadas com os demais elementos da natureza, proporcionando às pessoas: turismo de aventura, esporte, paisagens exuberantes e muita inspiração poética. Ele não se encontra poluído neste local, ao contrário, suas águas são límpidas, cristalinas.... No entanto, a impressão que se tem é que no trecho do sertão baiano, os moradores de Jequié não comungam com o pensamento de navegarem juntos, pois soltaram as mãos e distanciaram-se do rio das Contas, usando-o de maneira errada, poluindo-o! A poesia De costas para o rio, escrita por uma moradora da cidade, diz tudo...

De costas para o rio (Autora: Val Rodrigues)

Uma cidade de cara para o sol e costas para o rio, berço legítimo de governantes ausentes, banhada por um rio esquecido, triste e sozinho sem embarcações e pescadores.

A bola não rola mais nas tardes molhadas do areão. Não faz bem banhar-se nas águas desse rio, não há mais peixes nem água limpa. Um caldo podre e fétido dos fundos dos quintais escorre e espalha.

Há de chegar o dia da cidade prestar contas ao rio.

Com tuas águas retidas por uma represa de pedra te vejo hoje fio de contas, riacho de lodo, veio exposto de uma cidade seca a céu aberto espelhando o sol. Um rio não escolhe a aldeia para traçar o seu curso. Ela, a aldeia, se forma à sua margem e deve se orgulhar disso.

À borda da mata, refúgio feliz de um inconfidente, nasce o torrão de uma gente pacata e bruta, cujo rio faz parte da história e, ofendido, presta contas ao mar.

Fonte: RODRIGUES (2006).

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A imagem deste poema é uma representação da vida que se construiu no espaço geográfico do rio, em Jequié. Ela é fonte e leitura de um mundo que existiu no passado e no presente não existe mais. É como se o rio das Contas vivo, de alguma maneira, sentisse a cidade lhe comendo e, aos poucos, transformando-se e transformando-o em um pequeno rio poluído. “Há de chegar o dia da cidade prestar contas ao rio”! Mas, como todo rio, ele continua seu percurso e mesmo triste chegará ao seu destino... O poema traduz o sentimento da autora pelo seu rio, pelo rio da sua cidade, a qual não tem o mesmo sentimento pelo seu rio! O rio das Contas foi e ainda é um elemento organizador do espaço social na área da sua bacia, foi fixador de fazendas ao longo do seu vale, que se transformariam, mais tarde, em vilas e cidades. Da mesma forma, ao longo de seu leito implantaram-se municípios, cidades e organizaram-se atividades humanas. Ele promoveu e promove o encontro de culturas, banhando os seguintes municípios dentro do bioma Cerrado: Piatã (nascente) (Figura 14), Abaíra, Mucugê, Jussiape (área urbana), , Rio de Contas, Ituaçu e Brumado.

Foto: Rui Rezende. Fonte: http://images.google.com.br. Acesso em: ago. 2006.

Figura 14 - Vista panorâmica da cidade de Piatã, BA.

Na Chapada Diamantina, chamamos a atenção para Piatã por ser o local da nascente do rio das Contas, mesmo que este município tenha somente a sua porção sul inserida na área da sua bacia. Mas é importante destacar Jussiape (Figura 15), por ser o único perímetro urbano localizado na margem (esquerda) do rio, dentro da Chapada Diamantina, e porque tem o mesmo nome que os índios deram ao rio no passado.

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Foto: Leandro Souza Medrado. Fonte: http://images.google.com.br. Acesso em: maio 2007.

Figura 15 - Vista parcial da cidade de Jussiape, na Chapada Diamantina, com o rio das Contas em segundo plano.

A descoberta do local, onde hoje é o município de Jussiape, está ligada ao movimento expansionista do século XVIII, resultado da penetração dos bandeirantes no sertão, quando subiram o rio das Contas à procura de pedras preciosas e de ouro. Assim, com o reconhecimento dos terrenos auríferos nas margens do rio, próximos a Serra do Tromba, onde haviam negros amocambados desde 1681, trataram logo de fundar uma fazenda de criação de gado, que passou a ser denominada Fazenda do Gado, transformando-se rapidamente num ponto de parada de tropeiros. Em pouco tempo, o local se tornou um arraial. Em 1876 foi criado o distrito de Vila de Jussiape, pertencente ao município de ; contudo, só foi instalado em 1898 e só passou à categoria de cidade em 1962. Hoje, Jussiape faz parte do circuito do ouro, tem um grande potencial turístico, uma riquíssima história, preserva seus costumes e suas tradições folclóricas e, ainda, agrega belezas cênicas singulares em seu território, como: cachoeiras, serras; antigos garimpos, balneários de rios e os próprios rios Água Suja, Taquari e das Contas; dentre outras atrações turísticas. Há também sítios arqueológicos significativos, a exemplo das representações pictóricas inéditas da Serra da Tapera e das pinturas rupestres. Ao entrar em área de caatinga, com toda sua imponência cruzando uma região semi- árida, o rio das Contas continua, com a sua água, presenteando as pessoas, as lavouras, os rebanhos bovinos e caprinos e, ainda, contribui para produção de energia elétrica através do seu represamento, mesmo que isso venha acentuar seu caminho para a sua morte. Os municípios banhados pelo rio das Contas dentro do bioma Caatinga são: Tanhaçu, Mirante, Contendas do Sincorá, Barra da Estiva, Manuel Vitorino, , Maracás e Jequié

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(perímetro urbano). Neste trecho, é a cidade de Jequié (nome que tem origem na língua dos índios tapuias, seus primeiros povoadores; para eles o termo Jequie designava onça ou cachorro) que está situada linearmente às margens do rio das Contas (altitude média de 215 m), característica pela qual é importante citá-la, até porque o rio faz parte da sua vida, da sua formação, da sua história... (Figura 16). O município de Jequié foi originado da Sesmaria do Capitão-Mor João Gonçalves da Costa, que sediava a fazenda Borda da Mata, a qual mais tarde foi vendida e posteriormente dividida em vários lotes, sendo que um deles foi chamado de Jequié. Em pouco tempo, ele se tornou distrito de Maracás e, em 1897, desmembrou-se, tornando-se município em 1910 e uma das principais cidades baianas, também chamada de Boca do Sertão.

Fonte: http://images.google.com.br. Acesso em: jan. 2009.

Figura 16 - O rio das Contas cruzando a cidade de Jequié, BA.

O rio das Contas era uma importante via de transportes neste período. Pelo seu curso navegável que, na época, era mais volumoso e estreito, e cercado por uma extensa mata, desciam barcos de pequeno calado transportando os produtos necessários à subsistência dos habitantes de suas margens: cereais, hortifrutigranjeiros e manufaturados. Assim, Jequié se desenvolveu, a partir da movimentada feira que atraía comerciantes de todos os cantos da região. Depois da terrível enchente do rio das Contas, em 1914, que destruiu quase tudo em Jequié, a cidade passou a se desenvolver em direção às partes mais altas do município. Para Gomes (1994, p. 23):

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A cidade como ambiente construído, como necessidade histórica, é resultado da imaginação e do trabalho coletivo do homem que desafia a natureza. Além de continente das experiências humanas, com as quais está em permanente tensão, a cidade é também um registro, uma escrita, materialização de sua própria história.

O município de Jequié, com uma população de aproximadamente 148.000 habitantes (IBGE, 2006), comporta paisagens opostas, mas que se complementam; as suas terras se distribuem entre a caatinga árida e a mata, em plena transição. Na porção oeste do município, região semi-árida, prevalece a criação de gado e na porção leste, úmida, o cultivo do cacau tem sua importância destacada. Esta cidade também é cortada pela rodovia federal BR 116, na qual tem uma ponte sobre o rio das Contas (Figura 17).

Fonte: http://images.google.com.br. Acesso em: maio 2007.

Figura 17 - Ponte sobre o rio das Contas na BR 116, em Jequié-BA.

Quando um rio torna-se mais maduro, ele cresce, suas águas se avolumam, ficam tranqüilas e, então, os homens represam-no, reprimem sua água, subjugam-no, fazendo-o repousar. Foi assim que aconteceu com o rio das Contas, quando os homens construíram cerca de 19 barramentos (2,2 milhões de m3) e inúmeros açudes para abastecimento humano e animal em todo o seu percurso. Segundo a SRH/BA (1993), essas pequenas barragens são voltadas para o controle das cheias e para suprir pequenos projetos de irrigação. Os aproveitamentos hidrelétricos, atualmente existentes e operantes no curso fluvial do rio das Contas, consistem em duas usinas de represamento, as Usinas Hidrelétricas (UH) de Pedras e do Funil, que começaram a operar conjuntamente a partir de 1969. As usinas de represamento são aquelas que possuem um reservatório com uma razoável capacidade de regularização e, por esta razão, podem modular as descargas de forma conveniente ao sistema 63

de geração de eletricidade; desta forma, pode-se trabalhar com vazões regularizadas (SRH/BA, 1993). A UH de Pedras foi implantada no rio das Contas entre 1964 e 1969, pelo Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) e fica localizada a 18 km a montante da cidade de Jequié, num lugar denominado de Pedra Santa, sendo atualmente operada pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF). Com capacidade de acumulação de 1,7 bilhões de m3 constitui um reservatório criado para controle de cheias e que foi aproveitado posteriormente para geração de energia elétrica, com cerca de 20.007 quilowatts de potência (Figura 18). Também, a Represa de Pedras acabou proporcionando um “balneário” às pessoas, como opção de divertimento (Figura 19).

Fonte: : http://images.google.com.br. Acesso em: maio 2007.

Figuras 18 e 19 - Usina Hidrelétrica e Balneário de Pedras no rio das Contas, Jequié-BA.

A UH do Funil foi construída em Ubatã pela antiga Centrais Elétricas do Rio das Contas (CERC), sendo atualmente operada pela CHESF. Teve seu período de construção compreendido entre os anos de 1954 e 1962 e sua capacidade de armazenamento é da ordem de 53 milhões de m3, gerando uma capacidade de 30 quilowatts de potência (Figura 20). No trecho em que cruza o bioma Caatinga, o rio das Contas já se encontra bastante poluído. Observa-se uma série de impactos na qualidade da sua água, resultantes do processo de assoreamento do leito, lançamento de rejeitos sólidos oriundos de desmatamento, do lançamento de substâncias tóxicas provenientes da mineração e uso de agroquímicos nas lavouras, além da presença eminente de esgotos domésticos não tratados, principalmente na cidade de Jequié e a sua jusante (Figura 21).

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Fonte: : http://images.google.com.br. Acesso em: maio 2007.

Figura 20 - Usina Hidrelétrica do Funil no rio das Contas, Ubatã-BA.

Rio das Contas: imenso depósito de lixo

Jequié - O rio das Contas, famoso pela sua potencialidade, encontra-se num processo de degradação intenso e permanente, podendo, no futuro próximo, colocar em risco o abastecimento de água de todas as sete cidades ribeirinhas a partir de Jequié, sendo que até a Barragem de Pedras, localizada neste município, passa por processo de assoreamento. A ausência de um plano de gerenciamento do reservatório, que é utilizado em projetos de piscicultura, irrigação e abastecimento de água das cidades de Jequié e , somada à ineficácia da fiscalização para coibir a retirada desordenada de areia, a transformação das margens do rio em depósito de entulhos e recebimento de esgotos não-tratados, estão reduzindo a capacidade de sobrevivência do rio. O processo de degradação acelerou-se a partir do final da década de 80 com o crescimento desordenado das cidades ribeirinhas. Inúmeras casas foram construídas na beira do rio, o volume de retirada de areia aumentou, consideravelmente, assim como a administração pública perdeu o controle dos esgotos lançados diretamente no leito. O rio das Contas é tratado como se fosse um imenso depósito de lixo, onde são despejados esgotos domésticos e industriais, entulhos e animais mortos. A falta de uma ação mais efetiva dos órgãos fiscalizadores já foi denunciada à Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente da Comarca de Jequié, informou o presidente do Grupo Ecológico Rio das Contas – GERC, Domingos Ailton. “Cobramos a imediata suspensão da retirada de areia ao longo do perímetro urbano, a proibição de novas construções nas margens do rio e cobramos um plano de gerenciamento para a barragem, caso contrário, a sobrevivência do rio estará comprometida daqui a uns 30 anos”, completou. A recomposição das matas ciliares de todos os rios, riachos e córregos, aliado a um projeto de educação ambiental voltado para a população, poderia, pelo menos, diminuir o impacto contra a natureza. Proposta nesse sentido foi apresentada a técnicos, numa exposição do Projeto Caatinga, a ser desenvolvido pela CHESF, com o objetivo de aproveitar melhor o potencial do lago. “A iniciativa, contudo, não saiu do papel”, denunciou o presidente do GERC.

Fonte: Jornal “A Tarde” (2006).

Figura 21 - Reportagem sobre a poluição do rio das Contas em Jequié-BA, 2006.

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Entretanto, o mais grave é o despejo, diretamente no rio, de resíduos dos curtumes localizados próximos a Jequié. Soma-se a isto, a interferência nos processos hidrológicos do rio, resultante do desmatamento das margens e do barramento do seu leito fluvial, que promovem um incremento das cheias, das secas e da salinização. Estudos realizados pela SRH/BA em 2004, visando à caracterização da qualidade da água do rio das Contas, através de pontos amostrais, revelaram que a sua água já se encontrava, neste ano, bastante comprometida em alguns trechos próximos à cidade de Jequié, principalmente dentro da sua área urbana. Isto ocorre pelas elevadas cargas orgânicas de origem doméstica e industrial e, ainda, pelos efeitos negativos da mineração de areia. Em pontos de amostragem mais distantes da cidade de Jequié, tanto a montante quanto a jusante, foi constatado que a principal fonte poluidora do rio das Contas é a atividade agropecuária, praticada ao longo da sua margem. Com exceção dos pontos amostrados em Jequié, que apresentaram um índice de qualidade das águas considerado ruim, em conseqüência das concentrações elevadas de coliformes fecais, Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO5), nitrogênio total, sólidos totais e fosfato total, o SHR/BA considerou que a qualidade da água do rio das Contas em toda sua extensão oscilou entre boa e ótima, devido à sua autodepuração e menor aporte de cargas poluidoras. Por outro lado, mesmo estando poluído, o rio das Contas ainda vive em Jequié e nele vivem peixes, fato comprovado pelos moradores locais que pescam no rio e, muitas vezes, perdem suas vidas na força de suas águas em períodos de enchentes, como já citado anteriormente. Dentro do bioma Mata Atlântica, o rio das Contas tem o maior número de cidades localizadas em suas margens, mesmo assim a poluição não é considerada ainda um problema alarmante pelo SRH/BA. As cidades são: Jitaúna, Ipiaú, Barra do Rocha, Ubatã, Ubaitaba e Aurelino Leal (estas duas últimas são divididas pelo rio) e Itacaré (foz). Os demais municípios deste trecho são banhados pelo rio das Contas somente na sua área rural: Itagi, , Itagibá, Gongogi, e Maraú. A população dos municípios que têm suas cidades localizadas nas margens do rio das Contas no bioma Mata Atlântica é de aproximadamente 155.000 habitantes (IBGE, 2006), que somada à população de Jequié, resultam em mais de 300.000 habitantes. Esse não é considerado um número tão expressivo de pessoas morando ao longo do rio. O problema é que estas cidades não têm um sistema de tratamento dos efluentes líquidos provenientes das residências e das indústrias, o que pode vir a comprometer a qualidade das águas do rio das

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Contas num período bem próximo. Mas, é preciso registrar que a questão da poluição das águas do rio das Contas ainda carece de maior debate e comprovação, pois existem controvérsias quanto ao seu comprometimento pelo assoreamento do seu leito, pelo lançamento de substâncias tóxicas provenientes da mineração e, ainda pelo uso de agroquímicos na lavoura cacaueira. Itacaré é a cidade que mais se destaca no percurso do rio das Contas dentro do bioma Mata Atlântica, principalmente, por estar situada no litoral mas, também, pela privilegiada paisagem que oferece. Existem várias versões para o significado do seu nome em tupi-guarani: pedra redonda, pedra bonita, pedra arcada, pedra torta, pedra que canta, pedra da ponta curvada e, mais recentemente, rio de ruído diferente, pois “itaca” é igual a rio ruidoso e “ré” significa diferente. O local onde hoje é a cidade foi inicialmente habitado pelos índios tupiniquins que viviam da caça e da pesca. Em meados de 1530, os portugueses chegaram na região, fizeram a demarcação do território e iniciaram o cultivo da cana-de-açúcar. Com a construção da Igreja São Miguel, fundada em 1718, o povoado passou a ser chamado de São Miguel da Barra do Rio de Contas, tornando-se município em 1732, inicialmente, com o nome de Itapira e posteriormente Itacaré. Itacaré foi um importante porto durante a época em que o transporte marítimo predominava e, também, um porto clandestino na época do reinado. Viajantes e garimpeiros, ao chegarem à cidade de Rio de Contas na Chapada Diamantina, preferiam seguir pela estrada beirando o rio das Contas, pois encontravam melhores condições para viajar e também pela facilidade de acesso até o Porto de Itacaré, criando assim, na época, um gigantesco contrabando de pedras preciosas. E, devido a este constante tráfego de mercadorias, despertou-se o interesse de piratas que ficavam escondidos nos arredores do rio das Contas para roubar os diamantes e as mercadorias dos viajantes. Contam-se muitas histórias ligadas ao rio das Contas em Itacaré. Uma delas é a do famoso navio alemão Humaitá, que servia junto à esquadra brasileira para levar soldados para a Guerra do Paraguai e, em certa ocasião, passava em frente à barra (foz), quando o comandante, que estava bêbado, entrou rio adentro, encalhando o navio nos bancos de areia existentes. Os seus restos encontram-se no local até hoje. Segundo Rocha (2008, p. 109), a partir da década de 1890, “o cacau torna-se definitivamente um produto vital para a economia baiana [...], tanto no que se refere à produção quanto à sua participação na balança do comércio externo, predominando até os anos 1980”. Mas, foi no período de 1930-1970, que ocorreu um grande desenvolvimento econômico da região,

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conhecido como a “época do ouro”. Itacaré, por sua vez, era um importante porto de escoamento da produção cacaueira, através das águas do rio das Contas. Durante décadas, a economia do sul da Bahia esteve baseada na cultura do cacau. Tanto que, para Rocha (2008, p. 125), o cacau foi (e ainda é) um símbolo impresso na alma sul-baiana, “na mente, no suor dos que com ele lidam ou dele usufruem suas benesses. [...] O cacau tornou-se um signo regional de expressão, devido à sua presença marcante em todos os momentos de desenvolvimento, das crises e da reestruturação da região sul da Bahia”. O sistema de cultivo do cacaueiro à sombra das árvores nativas da Mata Atlântica, conhecido como cabruca e, amplamente, usado pelos fazendeiros locais, fez com que parte da floresta se mantivesse conservada. No entanto, no final dos anos 1980, o cultivo do cacau entrou em crise e muitos fazendeiros optaram por atividades como a pecuária (substituindo os cacaueiros por pastagens) e a extração de madeira da Mata Atlântica, derrubando um número significativo das árvores de grande porte, que sombreavam os pés de cacau. Além da derrubada de árvores, houve aumento do desemprego urbano, pois muitos trabalhadores das roças de cacau ficaram desempregados e tiveram que migrar para as periferias das cidades da região, como , Ilhéus e Itacaré, por exemplo. Mas, felizmente as “novas” atividades econômicas não diminuíram a beleza cênica da região. Com a queda dos preços da amêndoa do cacau, a região viveu um período de falência econômica até meados de 1990, quando o turismo começou a descobrir os encantos naturais da região. Desde então e, principalmente, na última década, o município de Itacaré vem despontando no cenário turístico nacional pela beleza de suas paisagens de mata e mar, mas também pela presença do rio das Contas, que parece ter sido desenhado/colocado cuidadosamente sobre uma montanha rochosa. Mas, antes do rio das Contas se tornar oceano, ele passa pelo seu último refúgio, no qual muitas pessoas vivem dele, poetas o cantam e todos podem contemplar suas belas paisagens. Neste trecho do rio, a atividade turística também “tomou conta” de suas águas, para proporcionar alegria àqueles que têm coragem de se lançar sobre seu leito revolto, ao passar pelo distrito de Taboquinhas ou, mesmo, sobre a tranqüilidade da fluidez de suas águas, até o encontro com o oceano. No trecho em que o rio margeia o distrito de Taboquinhas, suas águas, há milhares de anos, passando sobre a rocha, terminaram por escavar uma fresta com cerca de 1,5 km de extensão e um estreito com 4 m de largura (cânion), além de corredeiras, que com suas águas turbulentas transformaram o rio em raias para a prática de esportes de aventura, como o rafting (Figura 22), paisagens muito procuradas pelos amantes de esportes praticados na água.

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A paisagem neste lugar é muito parecida com a Chapada Diamantina, até o tipo de rocha é igual! O que a diferencia é a presença de floresta conservada nas margens do rio, a presença de flores nativas do bioma Mata Atlântica, e o próprio rio das Contas, que antes de cair em forma de cachoeira (a do Fumo), de passar pelo cânion (Figura 23) e pela última queda d’água (Cachoeira Pé da Pancada), forma praias de areia muito clara, onde a população local e os turistas deliciam- se.

Fonte: PEREIRA, M. F. V., dezembro de 2007.

Figura 22 - Rafting nas corredeiras do rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA.

Fonte: MALTA, S., setembro de 2007.

Figura 23 – Cânion do rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA.

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Então... vamos continuar desvendando esse rio, esse espaço-lugar com suas paisagens marcadas pela história do lugar. Os lugares interpelam os homens de diferentes pontos de vista: estético, histórico, afetivo, emocional, etc. São como criadores de sentidos e de sensações, são onde as pessoas começam a elaborar suas interpretações do mundo, suas visões de mundo, carregadas de significados, que representam as suas realidades. Já as paisagens são “repouso para os sentidos [...] e obras da mente. Compõem-se tanto de camadas de lembranças quanto de estratos de rochas [...]” (SCHAMA, 1996, p. 16). Depois destas belas paisagens, finalmente, o rio das Contas torna-se navegável por cerca de 25 km (Figura 24) até o encontro com o mar, deixando para trás um rio de histórias... Ao olhar esta paisagem, o coração se acalma e ressurge a certeza de que não é preciso apressar o rio... ele corre sozinho... cumprindo as leis da natureza...

Fonte: : http://images.google.com.br. Acesso em: maio 2007.

Figura 24 - Trecho navegável do rio das Contas, município de Itacaré-BA.

A poesia Rio e Oceano demonstra o sentimento de um rio ao desaguar no oceano... ao tornar-se oceano.... O autor-poeta usa a imagem do percurso de um rio, ou a vida de um rio, para refletir (talvez) sobre a sua vida ou, melhor, sobre sua morte ou, ainda, seu medo de morrer. Mas... a morte significa desaparecimento ou renascimento? Como um rio, entrar no oceano significa virar oceano, não há outra maneira de voltar, senão pelas águas do oceano! Então, é preciso morrer para nascer novamente... ou renascer...

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Rio e Oceano (Autor: Osho)

Diz-se que, mesmo antes de um rio cair no oceano, ele treme de medo. Olha para trás, para toda a jornada: os cumes, as montanhas, o longo caminho sinuoso através das florestas, através dos povoados, e vê a sua frente um oceano tão vasto que entrar nele nada mais é do que desaparecer para sempre. Mas não há outra maneira. O rio não pode voltar. Ninguém pode voltar. Voltar é impossível na existência. Você pode apenas ir em frente. O rio precisa se arriscar e entrar no oceano. E somente quando ele entra no oceano é que o medo desaparece, porque apenas então o rio saberá que não se trata de desaparecer no oceano, mas tornar-se oceano. Por um lado, é desaparecimento e por outro lado é renascimento.

Fonte: OSHO (2006).

Com a intenção de ilustrar todo o percurso e as principais formas de ocupação das margens do rio das Contas, na Bahia, fizemos uma representação pictográfica, a qual exprime idéias por meio de cenas figuradas ou simbólicas, ou seja, o desenho figurativo e estilizado (uma figura para cada objeto) funciona como um signo (símbolo) da escrita... é como se estivéssemos fazendo um texto sobre o rio. Assim, as imagens ou desenhos ao longo das margens do rio das Contas (da nascente à foz) representam a sua história ou, como os homens estão ocupando o espaço do rio em seus três biomas, produzindo diferentes paisagens sobrepostas ao longo do tempo, carregadas de símbolos, significados, marcas visíveis e ocultas. O espaço-rio das Contas é uma construção física e cultural, como está representado na Figura 25.

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Org: CHIAPETTI, R. J. N. Elab: CECCATO, B. H. Atlântico. Rio Contas:Chapada 25 - DiamantinaOceano Figura das da ao

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Rio das Contas em Jequié-BA.

Capítulo 2 PERCEBENDO... O RIO DAS CONTAS

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Capítulo 2 PERCEBENDO... O RIO DAS CONTAS

Quando residimos por muito tempo em determinado lugar, podemos conhecê-lo intimamente, porém a sua imagem pode não ser nítida, a menos que possamos também vê-lo de fora e pensemos em nossa experiência (TUAN, 1983, p. 20-21).

O rio das Contas é o espaço geográfico de nosso estudo, pois através dele, de suas águas, de suas histórias, poderemos conhecer a relação e os sentimentos das pessoas que vivem próximas a ele, ou seja, o seu lugar; o significado e o simbolismo do rio para os que “vivem dele”; o rio como espaço-vivido dessas pessoas e ainda as paisagens do rio. O espaço geográfico é, portanto, “um espaço da vida, um espaço pelo qual a vida se expressa” [...] (BESSE, 2006, p. 89) [...] qualificado numa situação concreta que afeta o homem” (p. 90, citando Dardel). Rio... água... água enquanto rio, rio na perspectiva de lugar, de espaço, de paisagem... Rio como lugar da existência humana, matéria e espírito, vida e sonho, encontros de vidas, visões de mundo, crenças, medos, emoções, representações, símbolos, valores e significados. Para Bachelard (2002) o elemento água provoca reflexões que não são meramente geográficas mas, sim, carregadas de afetos, emoções, imagens e lembranças da vida cotidiana, que na prática do dia-a-dia promovem a construção da identidade e sua ligação com o lugar. Um rio é um rio porque tem água. Segundo Bachelard (2002), a água aparece como um ser total, tem um corpo e voz. Para ele a linguagem das águas é uma realidade poética

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direta. Os regatos e os rios sonorizam com estranha fidelidade as paisagens mudas, as águas ruidosas ensinam os pássaros e os homens a cantar, a falar, a repetir... e, que há, em suma, uma continuidade entre a palavra da água e a palavra humana. Ele fala da água com muita proximidade, dando-lhe cheiro, sabor, vozes, significados... que são refletidos, através de suas imagens poéticas. O rio das Contas não é somente um dado da natureza mas, um resultado da história e da cultura humana. Os homens não foram os únicos a adaptarem-se ao Contas: o próprio rio não pode ser pensado sem que levemos em conta as intervenções humanas, acumuladas há séculos. “É, portanto, inútil imaginar um estado original dos lugares [...]. Para cada período, e para cada sociedade, é necessário fornecer novas análises do papel do rio” (FEBVRE, 2000, p.37). Mais que um rio, o Contas sempre foi um espaço vivido dos habitantes do município de Itacaré, no sul da Bahia. Mas, um espaço transforma-se em lugar, na medida em que o ser humano necessita atribuir-lhe significado. Assim, o rio das Contas se transforma em lugar, ao mesmo tempo, em que está sendo, continuamente, construído pelas pessoas que o vivenciam, que se envolvem com ele, têm identidade através dele e, ainda, que significa algo para elas. O Contas é concebido, não apenas como um local ocupado pelo rio mas, também, como uma convergência de muitos encontros, entre o humano e o não-humano, o passado e o presente, em termos de criar identidades do rio, ou seja, transformar-se em lugar. O rio das Contas possui uma espacialidade que pode alcançar a sua mais plena riqueza simbólica e uma multiplicidade de lugares. Assim, tomado por recorte, o rio das Contas é nosso cenário, permitindo-nos olhar os seus muitos e diversos lugares, onde os afetos e desafetos constroem complexas representatividades humanas, quer seja nos seus cenários reais, quer seja nas lembranças e no imaginário de uma moradora de Itacaré, em seu narrativo rememorar afetivo.

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Um rio chamado Contas: um lugar chamado rio das Contas

Os exemplos de imagens de lugar aqui representados são evocados pela imaginação de escritores sensíveis. Graças à sua arte tivemos o privilégio de saborear experiências, que de outro modo teriam se apagado pelo esquecimento (TUAN, 1983, p. 164).

O rio das Contas, um caminho de vida em Itacaré, no sul do estado da Bahia, com a chegada dos primeiros invasores tornou-se um caminho para a morte, pois a maioria da população indígena que vivia em suas margens, próxima à sua foz, foi expulsa ou morta. Esta é a história da primeira invasão do vale do rio das Contas, que está registrada no livro Itacaré: cancioneiro histórico-geográfico de sua gente, de autoria de Otília Maria Nogueira, moradora do lugar, agricultora e líder na comunidade à qual pertence, chamada carinhosamente por todos de Dona Otília (Figura 26).

Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 26 - Otília Maria Nogueira.

Depois que a autora gentilmente permitiu que víssemos o livro (porque em 2007, ainda não havia sido publicado), ficamos encantadas com o estilo em que foi escrito, ou seja, em forma de estrofes constituídos de sextilhas em estilo aberto, compostas por seis versos ou seis linhas cada uma.

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Segundo Humberto Rodrigues Neto (Set. 2007):

Os versos são soltos, sem metrificação e nem sempre rimados (não segue qualquer regra de formato de poema, pois não rima sempre os mesmos versos), deixando antever tratar-se de uma pessoa diletante na arte, que não faz da escrita sua profissão. Louvável, todavia, seu esforço em registrar as histórias da região de Itacaré e as características do meio ambiente em que vive, sempre expressando sentimentos ou emoções (Informação verbal).

O livro trata-se, portanto, de uma literatura de cordel ou popular, como também é conhecida. Neste tipo de literatura, a sextilha é uma modalidade indicada para os longos poemas romanceados, com os versos pares rimando entre si, deixando órfãos o primeiro, o terceiro e o quinto verso, pois esse é um costume na literatura de cordel. Não existe o cuidado de se procurar rimas ricas, nem a obrigação de apresentar rima em todos os versos. Antigamente, o cordel era uma modalidade valiosa e também obrigatória no início de qualquer combate poético, tanto em longas narrativas, como em folhetos. Dona Otília é uma pensadora e sonhadora que mantém viva uma determinada maneira de refletir sobre a vida e sobre o viver no rio das Contas. Podemos utilizar as palavras de Unger (2001, p. 66) para escrever sobre ela:

[...] diz respeito a uma atitude do pensar. A sensibilidade poética, o sentimento do sagrado, a capacidade de colocar-se à escuta da natureza, correspondem às dimensões do ser humano que não dependem do saber acadêmico e não se expressam de um modo único, podendo eclodir tanto na palavra erudita quanto na linguagem do povo simples.

Lemos, relemos, várias veze,s este tesouro literário, perspicaz e singelo, procurando mergulhar nas águas do rio das Contas, para perceber que Dona Otília escreve sobre o conhecimento do mundo, da própria natureza humana, através das histórias das pessoas de Itacaré. Lançamos mão do capítulo 06 dessa obra inédita, capítulo em que o rio das Contas é o principal ator ou a cena principal, tendo papel de destaque na vivência das pessoas que moram em Itacaré, sendo o lugar destas pessoas! O rio das Contas é um rio-símbolo da história de Itacaré, tanto que, Dona Otília escreve um capítulo inteiro sobre ele, desvendando-o fisicamente desde a nascente até a foz; mostrando a ocupação de suas margens com a urbanização; e o mais importante, consegue expressar todos os sentimentos do rio e dos ribeirinhos. “Isto revela que a evocação de um sentimento pelos lugares e pelo passado, amiúde, é de propósito e conscientemente. É o querer lembrar ou relembrar” (OLIVEIRA, 2002, p. 238)!

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Para Dona Otília, o rio das Contas é como o rio Reno é para Febvre (2000, p. 56): “o único que pode circular livremente em todo o vale, levado dos Alpes ao mar nas asas do vento, criador de união e de culturas”. O rio das Contas é como uma pessoa para a autora, tal qual escreve Febvre (2000, p. 72): “Não hesitamos em identificá-lo como tal, da nascente à foz, assim como não hesitamos em reconhecer, ao vê-lo diante de nós, um velho amigo”. As expressões poéticas e os laços topofílicos de Dona Otília com o rio das Contas contam estórias, mostram sentimentos, emoções, lembranças mas, principalmente, evocam o espírito do lugar. A autora tem uma relação muito íntima com o lugar-rio das Contas. Nessa perspectiva, Dubos (1981, p. 96) ressalta que evocar o espírito de um lugar é quando se quer “experimentar as satisfações sensoriais, emocionais e espirituais, que somente podem ser conseguidas mediante uma interação íntima, ou melhor, uma real identificação com os lugares onde vivemos”. Yázigi (2001) concorda com Dubos quando escreve sobre a alma do lugar. “Alma seria o que fica de melhor de um lugar e que por isso transcende o tempo” (p. 24) e, ao mesmo tempo, existe uma interação das pessoas que nutrem um sentimento pelo seu lugar de vivência, manifestando que “há alma quando há paixão das gentes pelo lugar” (p. 24). “Alma é o que um lugar qualquer tem de melhor” (p. 25). Então, Dona Otília evoca o espírito e a alma do lugar e transcende o tempo, para escrever sobre as estórias e as histórias do rio das Contas, em forma de um poema em seu livro: Itacaré - cancioneiro histórico-geográfico de sua gente.

O rio das Contas “na escrita” de uma moradora de Itacaré

Dona Otília, por diversas vezes, situa o rio das Contas no poema que escreve sobre o rio (capítulo 06 do seu livro). Na estrofe XII, ela registra a origem do rio, desde a nascente no Cerrado, passando pela Caatinga e Mata Atlântica, até desaguar no mar, cruzando os três principais biomas do estado da Bahia, por isso o considera uma “dádiva divina”.

XII A origem do rio de Contas É na Chapada Diamantina Bem ali, na Serra do Tromba Que vem suas águas puras e cristalinas Que vem desaguando no seco sertão E deslizando esta dádiva divina

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De um tímido fio d’água que, aos poucos, vai se tornando revolto e ficando com pressa na Chapada Diamantina, o persistente rio das Contas transforma-se em um rio caudal, atravessa o sertão semi-árido baiano - lugar em que tem importância sem igual - para depois suas águas tranqüilas penetrarem na Mata Atlântica, agitarem-se nas rochas resistentes do seu leito e, depois, preguiçosamente, irem em sereno declive à procura do oceano. A autora descreve também o percurso do rio das Contas na estrofe II, referindo-se ao seu trecho de vale estreito e profundo (cânion), em meio ao relevo muito acidentado no degrau do seu penúltimo lance de vida hidrográfica. Suas águas cascateantes, dentro da Mata Atlântica, correm como se o rio estivesse se divertindo. Dona Otília chama essa mata de “florestas, campos e selvas”, pela sua grandeza e beleza, mas não deixa de mencionar que o rio atravessa um “deserto”, antes de chegar na mata, ou seja, a região da caatinga baiana, na qual o rio é um símbolo da vida.

II Ele vem serpenteando pelos vales Em gargantas estreitas se envereda Descendo morro formando cachoeiras e cascatas Banhando florestas, campos e selvas Cortando o deserto e florindo a vida E também as cidades junto dele se agregam

Dona Otília volta a localizar o lugar onde o rio das Contas nasce. Mas, dessa vez é mais exata, pois cita o nome do município. Aliás, na estrofe XIII, ela dá especial atenção a esta característica do rio das Contas, escrevendo que as suas águas cortam muitos municípios e cidades até chegar ao oceano. Parece que o rio atravessa os planaltos baianos como uma linha do tempo! O rio leva suas águas por muitos municípios e algumas cidades que se formaram em suas margens, a exemplo de Jussiape (no cerrado), Jequié (na caatinga) e muitas outras, além de Itacaré (na mata). Em alguns destes municípios, foram construídos diversos represamentos da água do rio para consumo humano e animal e barragens para produção de energia elétrica, a exemplo das UH de Pedras em Jequié e Funil em Ubatã.

XIII Sua nascente em Piatã Na região central da Chapada E rasga rumo ao mar Cortando vários municípios e cidades Onde muitos utilizam as suas águas Para a formação de diversas barragens

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Depois de navegar por muitos municípios, a partir da divisa com Ubaitaba o rio das Contas cruza Itacaré (último município) no sentido oeste-leste, até chegar ao seu perímetro urbano, local em que suas águas formam a praia da Concha antes de se encontrarem com o mar (XXIV). A autora, mais uma vez, situa o espaço geográfico do rio em seu poema, neste caso, o lugar onde ele encontra-se com o Oceano Atlântico.

XXIV Depois de cortar várias léguas Em Itacaré vem parar Corta o município de leste a oeste Com uma beleza sem igual Na cidade faz a sua foz Onde suas águas se encontram com o mar

A estrofe XI revela a alegria do estado da Bahia em ter um rio como esse, que é inteiramente baiano e de uma importância sem igual para a região que atravessa, tanto que era comparado ao Nilo do Egito pelos moradores mais antigos de Itacaré. Também, nessa estrofe, a autora refere-se à grandeza do maior rio inteiramente baiano.

XI Mesmo assim foi o rio de Contas Que nos ofereceu essa alegria É o maior que nasce e deságua No estado da Bahia É o Nilo de Itacaré Como os antigos diziam

O rio das Contas é um amigo. Dona Otília assim o chama (estrofe I), mostrando a sua importância, desde a presença dos indígenas em suas margens, habitantes de origem do lugar. Os versos da estrofe I dão a idéia do tempo que foi passando... mas, o rio sempre foi “um amigo inseparável” daqueles que moravam às suas margens, como se fosse um lar para todos que acolhia, mesmo que tivessem que enfrentar os desafios que suas águas lhes impunham. Nesta estrofe, ela dá idéia do rio como lugar. Holzer (2000, p. 13), ao retomar as idéias do geógrafo Yi-fu Tuan, explica que um lugar pode ser:

definido como um conjunto complexo, enraizado no passado e incrementando-se com a passagem do tempo, com o acúmulo de experiências e de sentimentos. Seria a experiência primitiva do espaço experimentada a partir do corpo. Tempo e espaço relacionam-se com a

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distância: são estruturados e orientados pela intencionalidade humana. O tempo, inseparável da atividade locomotora, está implícito nos lugares, a partir das idéias de movimento, esforço, liberdade, objetivo e acessibilidade.

I Desde o homem primitivo Que enfrentou o desafio Deste amigo inseparável Que igual nunca se viu Ele é quase tudo em nossas vidas Este amigo é o rio

Na estrofe III, Dona Otília continua contando a história de vida dos ribeirinhos e do rio das Contas, sempre o exaltando, pois mesmo antes da agricultura os homens já tinham escolhido suas margens para ser seu lugar. Foram os índios que perceberam que o rio lhes daria água para o uso doméstico, peixes para comer e, ainda, seria um caminho seguro para penetrar na região, ou seja, o rio das Contas lhes daria proteção. Eles levavam suas canoas pelo rio, pois já sabiam há séculos que, entre o Oceano Atlântico e as montanhas da região central da Bahia, o grande rio, era, por excelência, o indicador fiel da boa estrada-caminho- líquido para se chegar em um lugar que acreditavam ser mais seguro aos ataques dos estrangeiros. Assim era o modo de vida dos povos indígenas, o rio dava-lhes tudo que precisavam para viver! Eles habitavam as margens do rio das Contas, no sentido de viver, de se sentirem seguros e protegidos, tendo uma sensação de lar (TUAN, 1980; BUTTIMER, 1982; MELLO, J. 1990; BACHELARD, 2005). O rio das Contas era seu lugar! Então, o espaço geográfico do rio das Contas tornou-se um lugar povoado, no momento em que os índios começaram a morar, experenciar, estabelecer valores, ou seja, aquele lugar passou a ter significado, passou a ser parte integrante da vida cotidiana deles. Assim, o Contas transformou-se num rio-lugar, pois segundo Tuan (1983), o lugar é visto como um produto da experiência humana e das aspirações pessoais e é uma realidade que deve ser compreendida na perspectiva dos que lhe dão significado, mobilizando seu intelecto e suas emoções. Relph (1979) ensina que um lugar não pode ser descrito em termos de localização geográfica ou aparência, por não se referir a objetos e atributos das localizações mas, a tipos de experiência e envolvimento com o mundo, a necessidade de raízes e segurança.

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III Foi aí que o homem percebeu que o rio Era de grande utilidade Mesmo antes da agricultura Se estabeleceu em suas margens É fácil se entender as razões E também as grandes vantagens

Os versos da estrofe X mostram a relação de dependência que as pessoas tinham com o rio das Contas, explicado pelo feitiço que encantava os homens, e até hoje encanta... O rio acolheu pessoas às quais proporcionava segurança e proteção, o que lhes deu uma sensação de satisfação, alegria, contentamento... É importante observar o imaginário da autora quando escreveu que: “O feitiço do rio fascinou o homem”. Com relação a isso, Tocantins (1973, p. 280) escreve: “O rio, sempre o rio, unido ao homem em associação quase mística [...] onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio e a água, uma espécie de fiador dos destinos humanos”. Para Carvalho Filho (2005, p. 45), “Há como que uma irmandade e um sentimento de igualdade entre os rios e os homens”. Esse fenômeno é histórico, por isso a afirmação do referido autor.

X Que seria do homem sem o rio De que ele ia viver O feitiço do rio fascinou o homem Lhe dando segurança e prazer O rio lhe ofereceu seus encantos Nas suas águas veio lhe acolher

Os presentes que um rio pode oferecer estão citados na estrofe IV, todos tão importantes para os seres humanos... mas, vamos nos ater ao rio como “via natural de penetração”, pois como estrada o rio das Contas teve uma significativa importância ao fazer a ligação do litoral com o interior, na época em que o Brasil era colônia de Portugal. Embora o rio das Contas não seja navegável em todo seu percurso, é um caudal de penetração que sempre acolheu aqueles que procuravam suas margens para viver. Isso aconteceu em todas as fases históricas da Bahia, tanto quanto aconteceu em outros países ou estados brasileiros que têm seus grandes rios, a exemplo do Nilo no Egito, e do Tietê em São Paulo. O rio das Contas pode ser considerado uma testemunha viva da história da região da Mata Atlântica do sul da Bahia, pois presenciou a chegada dos estrangeiros, sendo um

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caminho, que possibilitou a rápida penetração desses conquistadores para o sertão, interior da nova colônia portuguesa, em busca de riquezas consumidas na metrópole. Antigamente, o tráfico da riqueza garimpada (diamante) era feito através das águas do rio das Contas, desde o interior do continente na Chapada Diamantina, até sua foz no Oceano Atlântico. O diamante era transportado em lombos de burros nos trechos em que o rio não era navegável e, em jangadas quando o rio permitia, até ultrapassar as cachoeiras e os corredores estreitos de seu leito dentro da floresta, para depois ser, novamente, transportado em veleiros até a foz, de onde era, então, traficado para Europa. O significado do rio, neste período, passou a ser principalmente comercial. O rio das Contas, portanto, carrega uma carga da história baiana ligada ao transporte de diamante, ou seja, “uma história humana fundamentalmente espacializada [no rio das Contas]” (BESSE, 2006, p. 93). Assim, o rio que servia de estrada era também um obstáculo que dificultava o movimento da mercadoria garimpada e impedia que fosse transportada até o mar, sendo necessário transpô-lo em alguns trechos, fazendo o caminho por terra até que se tornasse navegável novamente. Da mesma forma, esse mesmo rio, também, serviu como caminho de infiltração para os traficantes-piratas irem em busca de esconderijos, nas matas de suas margens, para roubar as pedras preciosas garimpadas, que estavam sendo transportadas através de suas águas. Para tanto, estes traficantes exterminaram, escorraçaram ou escravizaram os índios Pataxós que viviam próximos à foz do rio, deixando o caminho livre para o comércio do tesouro roubado. O Contas desempenha o papel de um rio que, naturalmente, divide porque é largo, profundo, rápido e tem obstáculos mas, que, ao mesmo tempo, agrega porque seu leito serve de estrada, ou seja, o mesmo rio que une, também divide o seu percurso. Contudo, um rio não divide, necessariamente, pois os homens são livres para passar de uma margem à outra e da nascente à foz, existindo toda uma gama de possibilidades oferecida às sociedades humanas que dele se apropriam, cabe às pessoas buscá-las.

IV Água para beber, não lhe faltaria A pesca sempre com fartura O banho a tempo e a hora A alimentação sadia e pura Via natural de penetração Maneira de viajar segura

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As estrofes V e VI mostram que o rio das Contas foi um meio para as pessoas melhorarem de vida, um aprendendo com o outro, ajudando o outro, como o processo de secar peixe, construir seus utensílios para navegar e pescar. Enfim, as pessoas foram mudando de vida e o rio foi de grande importância neste processo de evolução. Dona Otília, agora, dá idéia de tempo e valor, que são duas características, segundo Tuan (1983), que compõem o lugar. A passagem do tempo é a responsável pelo acúmulo das experiências vividas e pelos sentimentos orientados pela intencionalidade humana ou o valor atribuído ao lugar. O tempo passava, as pessoas evoluíam, as idéias avançavam e o rio das Contas, o lugar destas pessoas, contribuía através de suas águas, fortalecendo o relacionamento humano. A autora “desenvolve em si mesmo a noção de tempo vivido, chega a imaginar seu espaço habitável” (PANKOW, 1988, p. 72), o seu lugar! Para Carvalho Filho (2005, p. 44), os rios também são grandes doadores de vidas: “Há um aspecto que deve ser assinalado, desde logo, que é a contribuição que os rios prestam ao progresso dos povos. Examine-se que onde há um grande rio há um grande povo, sob todos os aspectos, notadamente de ordem cultural”.

V Logo o homem criou suas embarcações Na superfície das águas Foi amadurecendo as idéias Que com o decorrer do tempo, avançava Uns aprendendo com os outros De pouco a pouco, edificava

VI O processo de secar o peixe De objetos construir De fabricar seus utensílios De pesquisar e descobrir De criar e melhorar seus projetos De crescer e evoluir

Na estrofe VIII Dona Otília refere-se à ocupação das margens do rio das Contas, de uma forma carinhosa: “os povoados adornando o leito dos rios”, que foram aos poucos, com presteza, transformando-se em verdadeiras cidades. Estes povoados que enfeitavam a margem do rio fazem referência ao início da vila de Itacaré e de outro povoado (hoje o distrito de Taboquinhas), ainda quando vivíamos o período colonial.

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A história conta que os índios que resistiram ao massacre e à escravidão dos europeus viveram escondidos nas matas da região do rio das Contas, estabelecendo-se num espaço não povoado nas vizinhanças do rio, o qual foi sua fonte de riqueza e de livre atividade. Aos poucos, eles foram construindo suas casas, colocando budeguinhas (espécie de bar-armazém que vendia todo tipo de produtos), chegando o momento em que foi necessário dar um nome a este povoado na margem direita do rio, o qual, então, foi batizado de São Miguel da Barra do Rio de Contas (hoje Itacaré). Foi assim que teve início essa pequena vila, tendo os índios como primeiros moradores do povoado que então começava a se formar. Quanto ao surgimento de Taboquinhas, ele foi protagonizado pelos migrantes e, também, pelos índios que moravam às margens do rio das Contas, no já então povoado de São Miguel da Barra do Rio de Contas. Da mesma maneira que ocorreu no povoado, os índios e os migrantes foram, aos poucos, construindo suas casas, plantando suas rocinhas de cana-de- açúcar, até que um determinado espaço se transformou em um lugar: a pequena vila, que ganhou o nome de Taboquinhas. Nesse sentido, Taboquinhas também passou a ser um lugar na margem direita do rio das Contas, onde as pessoas construíram suas vidas através do trabalho com a agricultura e com o comércio. Este lugar sempre teve aura e identidade próprias, pois seus moradores sentiam que aquele lugar era seu lar, que pertenciam àquele povoado e não à cidade de Itacaré. As cidades aos poucos foram, intimamente, ligando-se ao rio das Contas, elegendo-o como um poderoso gerador de condições sociais. Mas, todavia, o grande volume “de suas águas e o arremesso (intenso) da sua corrente [...] faz com que ele continue selvagem, primitivo, entregue aos devaneios de sua geografia e de sua caprichosa hidrografia” (TOCANTINS, 1973, p. 279). Para Febvre (2000, p. 151), as cidades são pontos de contato decisivos ao longo dos rios. É o rio “que cria entre elas a solidariedade que, se não é a mais estreita, é ao menos a mais direta e visível”. Quantas semelhanças! Todas as cidades fundadas ao longo do rio das Contas têm muitas semelhanças, como as atividades comerciais, de início. Hoje, mesmo depois de tantas transformações e crescimento, as cidades continuam ocupando as margens do mesmo rio, sentindo o seu cheiro ...

flutuando nas ruas varridas pelo ar ligeiramente molhado e mordente; um odor que, na atmosfera embaçada, ao cair da tarde, sobe do solo embebido ou desprende-se dos corredores estreitos - e faz sonhar com barcos e buscar nas janelas, instintivamente, roupas de marinheiro a secar... (p. 152).

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Estas mesmas cidades cresceram, prosperaram e também poluíram, sem “tomar consciência” de que um rio pode morrer de tanto sofrer, é o que está escrito na estrofe VIII.

VIII Os povoados adornando o leito dos rios E as cidades foram surgindo Seu povo prosperando muito E também sem sentir, foram poluindo Transformando em grandes centros E cada vez mais se evoluindo

A partir do século XIX, o rio das Contas teve, novamente, um significado comercial dentro do bioma Mata Atlântica, mas agora, através do transporte do cacau produzido nas fazendas que o margeavam. O rio, então, mais uma vez, passou a ser um lugar criado e produzido pelos seres humanos para os propósitos humanos (TUAN, 1975). Relph (1979) corrobora com Tuan, escrevendo que os lugares só adquirem identidade e significado através da intenção humana e da relação existente entre ela e as características objetivas do lugar, ou seja, as atividades ali desenvolvidas e o cenário físico. Assim, o espaço geográfico do rio das Contas passou a ser o lugar de labor dos trabalhadores do cacau. Para Tocantins (1973, p. 220), o rio sempre “foi extremamente necessário para a penetração e o transporte de gêneros, veículo da mobilidade da riqueza”. Na estrofe VII, Dona Otília parece estar ouvindo tal autor, quando registra em seus versos o papel importante que o rio das Contas teve para o comércio da região cacaueira, a partir da metade do século XIX. A atividade cacaueira teve sua pujança nesse período, com grande quantidade de trabalhadores e de barcos que transportavam o cacau, todos vivendo dessa atividade comercial. Para quem morava próximo ao rio das Contas, trabalho não faltava nesta época, pois a atividade cacaueira requeria muitos trabalhadores na sua colheita e transporte, para chegar até a barra do rio das Contas (como era popularmente chamada a sua foz na época), local em que o cacau era embarcado nos barcos a vapor, que faziam a cabotagem até os Portos de Salvador e Ilhéus. Os barcos, neste período, já eram movidos a combustível, fato que fazia a diferença quanto à rapidez do transporte do cacau, tanto que os chamavam de gasolina. É importante chamar a atenção de que Dona Otília fala do desenvolvimento da região “que cresceu em comunhão com as águas”, pois ela está falando, justamente, da atividade comercial que proporcionou este crescimento, demonstrando um sentimento de alegria por esta evolução do lugar.

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Além do transporte do cacau, o rio servia para levar os produtos vendidos pelos fazendeiros do cacau (cacauicultores) nas despensas das suas fazendas (local que se vendia todo tipo de produto aos trabalhadores do cacau) aos seus funcionários. Os fazendeiros diziam facilitar a vida dos trabalhadores, os quais eram obrigados a comprar nestas espécies de vendas, as quais, por sua vez, geravam lucro aos próprios fazendeiros. Taboquinhas já era um povoado na margem direita do rio das Contas, nesta época, por isso muitos dos seus comerciantes também usavam as águas deste rio, para o transporte dos produtos que vendiam aos moradores locais. Taboquinhas chegou a ter um comércio mais forte do que a própria cidade de Itacaré. Neste período, o rio das Contas comandava a vida no norte da Região Cacaueira da Bahia, o que comunga com as idéias de Tocantins (1973, p. 281):

[...] os rios são a fonte perene do progresso, pois sem eles o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis fabulosos tornaram possível a conquista da terra e asseguram a presença humana, embelezam a paisagem, fazem girar a civilização - comandam a vida [...].

Assim, o rio das Contas contribuiu com o progresso da região, como escreve Dona Otília na estrofe VII:

VII Na medida em que a curiosidade aumentava As novidades aumentavam e apareciam os interesses E foi se entrelaçando com a evolução Aos poucos surgindo o comércio Que cresceu em comunhão com as águas E caminhou com o rio o grande progresso

A estrofe IX demonstra a relação topofílica do rio das Contas com os seus ribeirinhos. O sentido de pertença (pertencimento) destas pessoas pelo rio é muito forte, pois foi ele quem ofereceu tudo, desde um lugar para morar até a produção de energia elétrica. O rio é o cotidiano das pessoas, é a própria vida, faz parte das suas histórias de vida. O rio das Contas é visto como a expressão dos laços topofílicos das pessoas que dependem dele e, também, como um elo de afeição que une a população ao lugar onde mora. Para Tocantins (1973, p. 280) “as ocorrências da vida de cada um estão ligadas ao rio e não à terra [...]”, como revela o primeiro verso dessa estrofe.

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IX O homem e o rio estão ligados Nada pode os separar O homem se estabeleceu ao seu lado O rio lhe ensinou a trabalhar A cultivar a terra, produzir energia Tirar o seu sustento e navegar

Quando Dona Otília começa a escrever sobre o rio das Contas, enquanto lugar de pescaria e de catação de mariscos, atividades econômicas importantíssimas que ele oferece, inicia os versos da estrofe XV, referindo-se novamente, ao seu grande espaço geográfico, sua extensão de mais de 400 km, da Chapada Diamantina ao Oceano Atlântico. A autora dedica seis estrofes do poema (XV ao XXI) somente para falar dos peixes e mariscos do rio das Contas, tamanha é a importância dessas atividades para grande parte dos moradores de Itacaré e de Taboquinhas. O rio tem peixes de muitas espécies e mariscos em abundância, por isso Dona Otília descreve cada lugar do rio em que estes peixes e mariscos têm sua morada. Assim, os pescadores e catadores retiram seus sustentos e o rio confirma sua função de doador de vida nos lugares por onde passa. O Contas sempre foi e, ainda, é um rio muito piscoso em praticamente todo seu percurso, bem como nos seus rios afluentes. Seus peixes e crustáceos sempre alimentaram a população ribeirinha e, até hoje, muitas pessoas trabalham no próprio rio, como os pescadores de Taboquinhas. Nesse contexto, é singular a forma com que esses pescadores se relacionam com o ambiente e, especialmente, com a dinâmica das águas do rio, criando estratégias e saberes, que os auxiliam no cotidiano do dia-a-dia, face ao ambiente com o qual interagem. A espacialidade do rio das Contas mostra aspectos interessantes: cada pescador tem um trajeto específico com seus gererés ou munzuás (armadilhas para pegar peixes), identificados através de bóias improvisadas com garrafas de plástico. Mesmo existindo dezenas de pescadores com seus munzuás, todos são respeitados e, apesar de não existirem cercas, os pescadores sabem os limites de cada um. Estes espaços no rio, ou melhor, o lugar de cada pescador tem um nome, por exemplo: num trecho do rio, entre o povoado de Taboquinhas e a Comunidade Quilombola Rural Acaris, numa distância de no máximo 3 km verificamos os seguintes nomes: Volta do Saco, Pé da Pancada, Prainha, Lagoa de Suama, Dezena 15, Buraco do Inferno, Adrenalina, Canal do Fumo, Paredão, Ponta do Lago, Canal de Vidão, Borrocão, Poço de Mugulu, Rego de Oli e Gameleira. Assim, podemos observar que todos os nomes registrados nos versos de Dona Otília, possivelmente, estão relacionados com alguma história ou pessoa, a exemplo do Canal do

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Fumo, o qual, como contam, tem este nome porque um senhor que tinha uma roça naquele local fumava um cachimbo, cuja fumaça tinha a forma de uma cachoeira, além da presença, na beira do rio, de um tronco de madeira queimado e bem preto, parecido com fumo de rolo. Vale destacar, que existem lugares com mais de um nome, porque com o passar do tempo, outros apelidos foram sendo agregados aos mesmos lugares.

XV Muito mais de 400 Km Da Chapada Diamantina até aqui O rio de Contas é um grande reduto De peixe, camarão, pitu e acarí Concentra os apreciados crustáceos Igual a ele nunca vi

XIV Ele vem recebendo outros rios Igarapés e ribeirões Alimentando com seu pescado A humilde população Que vive nas suas margens E dali tiram a sua alimentação

XX A pesca no rio de Contas nunca pára É igualmente em Itacaré e Taboquinhas Eles gostam de pescar com o anzol cursiando Para pegar Robalo, Carapeba e Tainha Do Pé da Pancada até a Volta do Saco Às vezes, até a Pedra da

XVIII No sequeiro do Rasga Camisa Dos acaris era morada O saboroso peixe Cascudo Que o nosso povo pescava Ele vivia nas locas de pedras E de limo se sustentava

XIX Outros pescavam a Curuca Que existia de montão Juntavam várias famílias Pescavam de mutirão Mergulhados com sacos nos dentes Para pegar Cascudo e o Camarão

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XXI E também pescam o Caçari Que dá de tempo em tempo, mas com fartura É um saboroso peixinho Um Bagre em miniatura Porém, depois da moqueca pronta Deslumbra qualquer criatura

Ainda, com relação à pesca, Dona Otília registrou a história do velho Biduca, um pescador de características peculiares, respeitado por todos, tanto que duas estrofes (XVI e XVII) são dedicadas a ele no poema. Seu Biduca era um ótimo pescador que, com dedicação, sustentava sua grande família com os peixes do rio das Contas. Era um homem de muita fé em Deus, por isso acreditava que curava as pessoas doentes através de sua oração (rezava as pessoas, como se diz em Itacaré), além do remédio que oferecia. Seu Biduca tinha uma relação intensa com o rio: pescava, mergulhava, tirava o sustento da família numerosa, vivia cotidianamente o espaço-rio das Contas, o qual era o seu lugar.

XVI Temos de exemplo o velho Biduca Que nunca veio do rio de mão pura Maior pegador de pitu Tinha munzuar com fartura Espalhava pelo sequeiro Biduquinha era uma figura

XVII Tinha o porte de um pigmeu As correntezas do fundo enfrentava Patriarca de uma grande prole Que com muita dedicação sustentava Rezava de toda doença Fazia remédio e curava

As estrofes XXII e XXIII referem-se às lavadeiras de roupas e, mais uma vez, o rio se oferece como uma dádiva da natureza, da qual estas mulheres tiram o sustento de suas famílias. Os versos mostram, inclusive, os lugares que as lavadeiras usavam para trabalhar, como o caso da Pedra da Emília Doce, que teve este nome em homenagem a uma senhora que lavou a roupa de um conhecido coronel do cacau durante muitos anos, sempre no mesmo lugar, sempre com a mesma alegria, sempre com os mesmos cânticos.

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XXII Suas pedras bordadas pelas lavadeiras Que ganham o pão de cada dia No Porto da Balsa, Volta do Saco Para lá elas carregam suas bacias Vão também para a Pedra de Emília Doce Pedra do Sabe Tudo e cia

XXIII Emília Doce era uma senhora Que era descendente de africano Que lavava a roupa de Landulfo Entrava ano e saia ano Naquelas pedras do rio Alegre e cantarolando

E, finalmente, o poema sobre o rio das Contas se encerra com as estrofes XXV e XXVI, que dizem que ele é uma dádiva, um presente de Deus, mostrando a religiosidade da autora e, por conseguinte, desse povo simples. Para eles, o rio é uma bênção dada àqueles que estão em consonância com o sagrado, receptivos aos sinais da natureza; o rio é quase tudo em suas vidas (como a autora já escreveu na estrofe I), pois precisam dele para trabalhar, para se alimentar, enfim, para sobreviver... O rio é um amigo que possibilita a vida das pessoas, das plantas e dos animais, preservá-lo é muito importante para a sobrevivência daqueles que precisam dele para viver. O primado social do rio das Contas traz uma marca que se revela nos múltiplos aspectos da vida das pessoas, as quais se tornam rendidas “fatalmente ao rio, poderoso gerador de fenômenos sociais” (TOCANTINS, 1973, p. 278). Um dos aspectos que merece destaque na escrita de Dona Otília diz respeito ao “reconhecimento do rio como espaço do sagrado, capaz de despertar determinados vínculos que se manifestam na relação diária das pessoas com a natureza”, com o rio (UNGER, 2001, p. 106). Baseado em Tuan (1983), podemos afirmar que os diversos meios, pelos quais Dona Otília conhece e constrói a realidade do rio das Contas são apreendidos pela sua experiência vivida no próprio rio. Ela confunde o perceber e o pensar numa ligação íntima e com as suas emoções e sua experiência humana atinge o pensamento e a razão. “Voltar atrás! Reencontrar lugares que foram deixados!” (PANKOW, 1988, p. 85). Para Dona Otília “o espaço reencontrado é também a história reencontrada. [...]. Assim, o espaço proporciona segurança e ‘envolve’ a história vivida” (p. 85), tanto pela autora, como pelos moradores contados e cantados nos versos escritos.

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XXV Este rio é uma dádiva Que o nosso Deus nos presenteou Portanto agradecemos de coração Pelo santo ato de amor Que nessas águas lindas e barrentas Muita riqueza gerou

XXVI Encerro este capítulo Com o mesmo desafio Pedindo a vocês que preservem As margens de todos os rios Que a água é uma relíquia divina Melhor do que ela nunca se viu.

A possibilidade de analisar o lugar-rio das Contas através de uma obra literária tão maravilhosa como esta, proporcionou-nos escrever sobre a união da Geografia com a Literatura, de maneira que esta possibilitou uma nova leitura daquela, na perspectiva de interpretações reais, procurando enxergar o que lhe é de interesse na obra, isto é, analisando o lugar-rio, o cenário, os diferentes lugares do rio... revelando uma nova relação do homem com o lugar-rio, na medida em que, ambos constituem-se, constroem-se e identificam-se. Podemos utilizar as mesmas palavras usadas pelo jornalista e escritor José Nêumanne, quando analisa o livro de Bráulio Tavares “ABC de Ariano Suassuna”: Dona Otília milita “pela conservação das formas da cultura popular, de origem marcadamente ibérica, mas misturada com tradições indígenas e africanas. [...] Seu estilo sedutor introduz o leitor num universo ancestral, que se torna novo a seus olhos ávidos de informação” (NÊUMANNE, 13/01/2008, s.p.).

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Rio das Contas: um olhar afetivo e imaginativo

O espaço geográfico afetivo não é apenas superfície, território; implica qualidades de profundidade, solidez, plasticidade que não são percebidas e conhecidas de início, mas sim, são respostas reais, intuitivas, simbólicas, telúricas. É o sentimento que envolve [...] de mistério, de silêncio de seus medos e pavores [...] (OLIVEIRA, 2002, p. 240).

Para a Geografia Humanista a afetividade é produtora de espaços e de lugares. Expressa pelos sentimentos... pelas emoções... ela transparece nas relações das pessoas e delas com seu ambiente. Pelas manifestações dos sentimentos, podemos analisar a mudança de atitude do ser humano frente às circunstâncias mutáveis ou estáticas de sua vida, em determinados contextos de tempo e espaço. “Atitude é primeiramente uma postura cultural, uma posição que se toma frente ao mundo”. [...] e “a visão do mundo é a experiência conceitualizada” (TUAN, 1980, p. 4). A afetividade está organicamente vinculada ao processo de conhecimento, orientação e atuação do ser humano, no complexo meio social que o rodeia. A conexão entre os sentimentos e o processo cognitivo propicia à pessoa uma vida de grande sensibilidade, que pode ser cada vez mais apreciada, na medida em que cada um desenvolve a sua capacidade afetiva e suas potencialidades diferenciais. Proveniente do latim affectus, a afetividade é um termo genérico que “dá qualidade ao que é afetivo, que dá significado ao conjunto de afetos que sentimos em relação a nós mesmos e aos demais, à vida, à natureza, etc.” (ARAÚJO, 2003, p. 156). A afetividade permeia todo o processo de compreensão do pensamento humano na sua dimensão consciente e, inclusive, na sua dimensão inconsciente. A afetividade é sentimento e, portanto, realidade psíquica e inerente a todo ser humano. Dessa forma, todos somos afetivos, mesmo porque como humanos todos nascemos prontos para sentir amor, raiva, ciúme, alegria e uma série infindável de outros sentimentos. A afetividade encontra-se escrita na história genética do ser humano e deve-se à evolução biológica da espécie. Segundo Bock e colaboradores (1999), o importante é compreender que a vida afetiva (emoções e sentimentos) compõe o homem e torna-se um aspecto de fundamental importância na vida psíquica. As emoções e os sentimentos são como alimentos do psiquismo humano e

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estão presentes em todas as manifestações da vida. Eles são necessários porque dão cor e sabor à vida, orientando e ajudando nas decisões dos indivíduos. O espaço vivido é afetivo. Para Holzer (1992, p. 440), “o espaço vivido é uma experiência contínua, egocêntrica e social, um espaço de movimento e um espaço-tempo vivido [...], refere-se ao afetivo, ao mágico, ao imaginário”. O espaço vivido é também um lugar de representações simbólicas, aspirações, crenças e cultura das sociedades que ali vivem. As pessoas vivem e agem numa realidade circundante, o seu meio social, o seu ambiente e, nele conhecem o mundo que as rodeia (em especial as outras pessoas), estabelecendo suas relações sociais. No processo de sua atividade e relação com os demais, desenvolvem e experienciam sua afetividade. Em outras palavras, agem com os sentimentos e com suas cognições. Os laços de afetividade que ligam as pessoas, abstrata ou concretamente, ao seu lugar/espaço vivido despertam sentimentos e provocam relatos e referências verbais e/ou escritas de poetas, intelectuais e mesmo cidadãos comuns, os quais buscam evocar a “alma” dos lugares, captam e descrevem o desempenho dos seres humanos, o amor pelos lugares, a fixação aos lugares, o cotidiano, o transcendental, a nostalgia, enfim, uma gama ampla de motivos e emoções (assim como Dona Otília). Por isso, a afetividade é uma das temáticas mais cantadas por poetas, desde o momento em que o ser humano começou a transpor para o papel, seus mais íntimos e subjetivos pensamentos. A poesia de Ely Fonseca (filho de Ipiaú e Engenheiro Agrônomo da CEPLAC), Nas águas do rio de Contas, “fala” sobre a afetividade, o sentimento, as funções e a identidade do lugar-espaço-vivido-rio das Contas, reavivando a sua memória afetiva. Nesta poesia, o autor revela a relação que algumas pessoas têm com o seu rio das Contas, uma relação de afetividade que os unem ao lugar, com os aspectos mais banais do dia-a-dia e, por ser uma referência de valores e sentimentos, o rio-lugar lembra as experiências e aspirações destas pessoas, sendo, assim, fundamental para a sua identidade. Podemos perceber que o rio é o espaço vivido para muitos moradores de Ipiaú e, provavelmente, para o autor, pois sente saudade dos velhos tempos no rio e, com isso, quer eternamente sonhar.

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Nas águas do rio de Contas (Autor: Ely Fonseca)

Nas águas do rio de Contas Nos "Dez-quartos", Quantas contas pra se contar Que já não tem nenhum quarto Nas águas do rio de Contas Aonde a rapaziada ia, sorrateiramente, Ah! Se o tempo pudesse voltar "Na vida", se iniciar Nas águas do rio de Contas Lá, onde, o poeta e boêmio "Veras", As cheias que mais pareciam mar Deveras, foi "desaguar" Viam-se árvores, animais e gente Nas águas do rio de Contas Suas águas arrastar Quantos cantos lindos de amor pra se cantar E o moleque, menino afoito, às braçadas, Das lavadeiras, roupas batendo nas pedras Suas margens traspassar E suas cantigas de lamento e de ninar Os jogos de bola, as brigas Pessoas anônimas, Maria, Arruaças e "pega-pra-capar" Joana, Madalena ou Iaiá Peripécias de um tal Bilene, René, Juba, Dos pescadores a tarrafa, as mentiras, Pé-de-Ouro e Nane-Guará Os anzóis e peixes haviam por lá Nas águas do rio de Contas Debaixo de frio e chuva, O rabo-de-arraia, o rabo-de-saia Pela sobrevivência, a pescar O corpo de areia da praia sujar Pois é, tanta gente pra se alimentar! Suas vitórias, minhas glórias Doces mistérios deste rio que virava mar A vontade de amar Nas águas do rio de Contas O meretrício, a prostituição, Eu quero, eternamente, sonhar. O acréscimo de sífilis, o bar

Fonte: FONSECA (2007).

Da mesma forma, para os pescadores de Itacaré, o rio das Contas também é o seu espaço vivido, o seu lugar, pois através do trabalho eles desenvolvem uma ligação afetiva com o rio, o que gera uma intimidade entre eles. Prova disso é o nome dado à Comunidade Quilombola Rural Acaris (nome de um peixe do rio das Contas), localizada na margem direita do rio, próxima ao distrito de Taboquinhas, no município de Itacaré. Eles pescam acaris, pitu, tilápia, camarão e curuca, os quais são os pescados mais tradicionais desse rio, apesar da quantidade de peixes ter diminuído nos últimos anos. A pesca é feita, predominantemente, com gereré e munzuá; poucos são os pescadores que usam anzol (Figuras 27 e 28).

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Fonte: MALTA, S., setembro de 2007.

Figura 27 - Pescador de acaris no rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA.

Fonte: MALTA, S., setembro de 2007.

Figura 28 - Pescador com munzuá no rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA.

Os pescadores sentem-se íntimos do rio, tendo-o como seu espaço vivido, expressando seus medos através do imaginário de monstros e o fantástico, que permeiam as suas mentes. Para alguns pescadores, o espaço submerso do rio das Contas é povoado por casas, pessoas, onde vivem as visagens do rio. Um exemplo é o olhar imaginativo do Seu Vitor, um ex- pescador do rio das Contas, morador na Comunidade Quilombola Rural Acaris, que deu um depoimento à Sayonara Malta1:

1 Historiadora da ONG Instituto Floresta Viva (IFV), que gentilmente nos cedeu depoimentos escritos realizados com alguns ex- pescadores de Comunidades Quilombolas Rurais de Itacaré, em 2007, para desenvolver um trabalho acadêmico 96

“Nesse rio aí tem um peixe muito grande que já virou a canoa com meu pai e com o pai de seu Oswaldo. Já botou Agostinho para correr. Só ver ele encostar debaixo da canoa e virar”.

Para este homem simples, os seres do rio das Contas não são, por si só, apenas assombrações que vivem nas suas águas... mas, são os habitantes do rio, possuidores de vida e de moradia, assim como ele próprio. Para o Seu Vítor, alguns destes seres são protetores do rio ou dos peixes, outros são brincalhões e só querem assustar e afastar as pessoas. É assim que ele pensa, é assim que ele sente! Mas, muitas vezes, o imaginário pode provocar sentimentos como o medo (topofobia), como também afirmou Seu Vitor:

“Visagem é de ir e meter medo na pessoa. A visagem eu já vi porque eu já corri do rio, nós tava no rio eu e um rapaz lá, daqui a pouco eu vi umas espumas, vinha aquela espumona assim, daqui a pouco vai aquela espuma crescendo, crescendo, daqui a pouco virou, parecendo um arco-íris, que quando veio assim pro lado da gente, assim nós desbandeirou, desgramemos e ficou aquele arco- íris assim a procura da gente. De visagem eu só vi isso, outra coisa eu nunca vi, também porque eu não pesco de noite, só nesse dia que eu inventei de pescar de noite...”.

“Tem umas tochas de fogo no rio, é o ouro mudando de lugar. As tochas vão sempre na direção do canal de Esmera, onde tem os bambus. Às vezes, as tochas vêm na direção da pessoa, mas aí a pessoa fica com medo e sai correndo, sem saber que é o ouro...”.

Este tipo de relato é comum em comunidades de pescadores, quando descrevem seres aquáticos imaginários que aparecem nas águas de um rio, em situações maléficas ou benéficas e, por conseqüência, causam medo ou alegria. É possível perceber, com muita clareza, que o Seu Vitor, que pescava também à noite e viu alguma visagem, começou a pescar apenas durante o dia. Para ele, o rio passou a significar um lugar perigoso, que poderia lhe fazer algum mal, ou seja, ele passou a ter uma relação topofóbica com o rio das Contas à noite. Neste caso, parece que o sentimento com relação ao rio se alterna, dependendo do fato de ser dia ou noite; é como se à noite ele fosse mais poderoso! Estas visagens, talvez, possam ser interpretadas olhando-se para o passado, porque o rio das Contas foi um espaço do desconhecido, com o qual os primeiros pescadores- quilombolas tiveram de lidar. Eles contavam estórias a seus filhos e netos, os quais foram passando-as de geração a geração, estórias estas sobre o rio como via de transporte de ouro e

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diamante da Chapada Diamantina, para serem enviados a Portugal. Deste fato, infere-se que era por ele também que os piratas entravam para roubar os barcos carregados do tesouro, motivo pelo qual as estórias acerca do sobrenatural e do impossível permeiam o imaginário sobre o rio, atormentando os pescadores até hoje, ou seja, o rio transforma-se num lugar do sinistro, do lendário, do fantástico, do imaginário... Isso também pode ser interpretado pela forma como estas pessoas vivem o cotidiano, experienciam o lugar, com sentimento, afetividade, expondo suas aspirações e suas crenças culturais, mostrando os aspectos da sua vivência e da sua maneira de pensar. Para os pescadores, o “seu” rio é, ao mesmo tempo, fonte de vida e lugar de morte. A relação cotidiana vivenciada, experienciada, que têm com o rio, faz com que tenham medo do que possa lhes acontecer... faz com que tenham as visagens... fruto da sua imaginação... O rio das Contas é o caminho principal neste movimento... Segundo Tuan (1980, p. 129), existe uma relação entre os sentidos e o meio ambiente, sendo que “o meio ambiente pode não ser a causa direta da topofilia (afetividade entre uma pessoa e um lugar ou ambiente físico) [ou da topofobia (contrário de topofilia)], mas fornece o estímulo sensorial que, ao agir como imagem percebida, dá forma às nossas alegrias e ideais”, às nossas tristezas e medos, etc. Um objeto ou lugar atinge a realidade concreta quando a nossa experiência com ele é total, através de todos os sentidos, com a mente ativa e reflexiva. Seu Antonio Ribeiro, outro antigo pescador da Comunidade Quilombola Rural Acaris, também deu seu depoimento à Sayonara Malta, tomado pelo seu imaginário, referindo-se às visões do rio das Contas, em Itacaré:

“A Biatatá é uma luz forte que atrapalha a pessoa, parece que quer pegar ela, se a pessoa acender uma luz atrapalha. Tem que deixar a luz apagada pra ela passar”.

“A Mãe d’Água se forma uma sereia, tem no mar e também tem no rio. Ela é assim do tipo de um peixe, aquele peixe que tem cabelo bom, tem braço assim pra nadar, mas o corpo dela é de peixe. É bonita como uma moça. No rio ela vive de proteger os peixes. Não sei se ela tem nome... O mundo é composto de tudo que é coisa”.

Segundo Câmara Cascudo (1954, p. 161), “Biatatá é uma superstição da Bahia, forma confusa em que o nome denuncia deturpação do mboitatá, a cobra-de-fogo, um dos mais

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antigos mitos do Brasil [...]”. É chamada também de Boitatá, Batatal, Bitatá, Baitatá, Batatá e Batatão no sul, sudeste e centro-oeste do Brasil. Edelweiss (2001, p. 66) escreve em seu livro sobre folclore, que o Boitatá aparece de diferentes formas no Brasil, a exemplo do estado de Santa Catarina, local em que tem “um olho no meio da testa, lançando chispas de fogo e ameaçando com os seus chifres”. No Rio Grande do Sul, “a cobra-de-fogo mata os animais, come-lhes os olhos e de tanto comer pupilas tornou-se luminosa”. Em outros lugares, as pessoas acreditam que os fogos fátuos são almas penadas dos meninos que morreram sem batismo. Tanto a Biatatá, quanto a Mãe d’Água, são mitos de origem indígena, mas têm influências européias. Os mistérios do rio das Contas ocupam um lugar expressivo na visão de mundo dos pescadores de Itacaré. A Biatatá e a Mãe d’água “expressam uma força de equilíbrio da natureza, na medida em que são entidades que protegem e zelam por ela. São também forças que dão ao ser humano um senso de sua medida [...]” (UNGER, 2001, p. 97). Fraxe (2000, p. 43), corrobora com Unger quando escreve: “tais concepções sobrenaturais são transposições, em termos culturais, dos controles e equilíbrios que existem em um nível biológico para que se mantenha o equilíbrio de um ecossistema”. Qualquer que seja, porém, a forma assumida por estas divindades fluviais é a figura da mãe criadora que está presente, aumentando o imaginário dos pescadores e das crenças populares. O desenlace dessas lendas não pode ser condicionado apenas ou, principalmente, às condições subjetivas dos pescadores. São devidas, mais, à própria situação do meio e à experiência dos primeiros navegadores ou dos usuários desses caminhos hidrográficos. Isso está presente na cultura dos pescadores que, de geração em geração, vai sendo preservado. As memórias dos pescadores-quilombolas revelam que as experiências com o sobrenatural, que se manifestam no rio, modelam comportamentos, assim como a percepção do mundo, como Seu Antonio Ribeiro ainda diz à Sayonara Malta, referindo-se às suas visões no rio das Contas:

“A senhora pode acreditar que o mundo é todo cheio de novidade”!

Esta visão do mundo “cheio de novidade”, o pescador de Taboquinhas tem através do rio das Contas, pois a sua relação com ele é tão intensa... o rio sempre lhe deu tudo... Fica evidente o seu olhar no mundo, através das suas águas passadas e, principalmente, as presentes. “A visão do mundo é a experiência conceitualizada. Ela é parcialmente pessoal, em grande parte social. Ela é uma atitude ou sistema de crenças” [...] (TUAN, 1980, p. 4-5).

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O pescador Antonio Ribeiro, um homem simples, descendente de quilombola, que sempre ganhou a vida com seu trabalho, tem medo do que vê no rio, pois tudo está mudando... o rio era outro... só se navegava e pescava nele. Mas, hoje, as pessoas não respeitam mais o rio, por isso aparecem essas visagens, para mostrar que o rio não está gostando do que estão fazendo com ele! Assim como estes dois pescadores, o rio das Contas, certamente, guarda muitas histórias que estão escritas nas suas paisagens e vivenciadas por moradores locais, através do seu espaço vivido. Nesta perspectiva, a seguir, buscaremos construir uma geografia do rio das Contas, no sentido do contemplar da sua paisagem...

Rio das Contas: um contemplar da paisagem

Que descobrimos finalmente na contemplação da paisagem? Primeiro descobrimos que não há Terra sem homens que a habitem e contribuam para lhe dar seu sentido de Terra para a existência humana. [...] A Terra do geógrafo não é um planeta, mas, [como cita Dardel] a base da existência humana (BESSE, 2006, p. 92).

Sonha-se antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. Só olhamos com uma paixão estética as paisagens que vimos antes em um sonho (BACHELARD, 2002, p. 5).

A abordagem humanista na Geografia permite-nos analisar as ações, as percepções e decodificar as simbologias que transformam os espaços em lugares. As experiências, as vivências e a afetividade pelo lugar desempenham um papel fundamental na construção e na identidade da paisagem, como no caso do nosso lugar de estudo, o rio das Contas. Pois, como afirma Relph (1979, p. 16), “Não há limites precisos entre espaço, paisagem e lugar como fenômenos experienciados. Nem a relação entre eles é constante - lugares têm paisagens, e paisagens e espaços têm lugares”. Paisagem é o espaço que podemos observar num lance de vista. Ela pode ser contemplada no lugar, ao vivo, na televisão, ou representada por meio de fotografia, pintura,

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maquete ou mapa. Para Bachelard (2002, p. 31-32), “O mundo quer se ver. [Temos] olhos para contemplar, para se apascentar na beleza. [...] Contemplar não é opor-se à vontade, é seguir um outro ramo da vontade, é participar da vontade do belo, que é um elemento da vontade geral”. Contemplar é olhar com encantamento, imaginar, refletir, analisar... Podemos observar uma paisagem sob diferentes perspectivas; o olhar atento pode revelar, além dos aspectos presentes, marcas das sociedades que a construíram. As diferentes paisagens são construídas conforme aspectos técnicos, econômicos, sociais, culturais e ideológicos dos grupos humanos em diferentes épocas. Portanto, a leitura da paisagem geográfica considera os elementos naturais e sociais presentes no espaço, e sua inter-relação de forma dinâmica (ARCHELA; BARROS; GOMES, 2003). De acordo com Machado (1986), a paisagem é considerada como um recurso que tem valor cultural, estético, histórico, econômico, recreativo e ecológico. Por isso, na década de 1980, pesquisadores de alguns países já mostravam preocupação em relação aos seus estudos. Considerando a ciência geográfica, Machado (1988b) dá uma importante contribuição aos estudos de paisagem, dentro de uma abordagem perceptiva. Ela afirma que existe uma interação entre as pessoas e as paisagens, que ocorre de acordo com o humor e circunstâncias daqueles que as estão percebendo, com a iluminação e hora do dia, se a paisagem é vista a pé ou com algum tipo de condução, e ainda se a percepção da paisagem é feita com algum objetivo ou, simplesmente, acidental. A preferência por um lugar ou paisagem depende dos propósitos de quem os percebe. Uma paisagem é sempre percebida, pois segundo Penna (1982, p. 11):

Perceber é conhecer através dos sentidos, objetos e situações. O ato implica, como condição necessária, a proximidade do objeto no espaço e no tempo, bem como a possibilidade de se lhe ter acesso direto ou imediato. Objetos distantes no tempo não podem ser percebidos. Podem ser evocados ou imaginados. Podem ser ainda, pensados. [...] Também não podem ser percebidos objetos distantes no espaço quando ultrapassados os limites operacionais dos órgãos receptores ou quando obstruídos por barreiras. A distância no espaço, tanto quanto a inacessibilidade direta ou indireta, exclui o ato perceptual.

A percepção é, por conseguinte, responsável pela forma como vemos o mundo. Há tantos mundos quantas forem as percepções, pois cada um vê o seu entorno e o mais além, a partir de referenciais, de informações, de conhecimentos adquiridos ao longo da vida. É a percepção que vai determinar a forma do indivíduo ver, interpretar e interferir em seu

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meio.“A percepção não se dá em abstrato, mas como processo que, efetivamente, é vivido por um perceptor” (PENNA, 1982, p. 35). “Perceber, de fato, é conhecer para, com base nos dados recolhidos, promover-se a coordenação da conduta” (p.18). Sendo que “a conduta é, essencialmente um processo de readaptação. Visa recompor um equilíbrio que se destruiu, diante das alterações que continuamente se produzem, tanto no meio externo quanto no indivíduo” (p. 18). Assim, é através dos processos perceptuais que obtemos informações corretas sobre o meio em que vivemos, para que possamos ter sempre uma conduta eficaz, efetiva. Desse modo, podemos dizer que a percepção é a forma como, através dos sentidos, as coisas chegam à nossa mente. É a forma como as pessoas relacionam-se com as coisas, de um modo geral. “A percepção é uma fase da ação e seu papel biológico é o de despertar e dirigir as reações do homem, [...] não se limita a lhes fornecer matéria para contemplação, mas os convida à ação e permite-lhes o ajustamento ao mundo no qual vivem” (p. 18). De acordo com Tuan (1980, p. 4):

Percepção é tanto a resposta de estímulos externos, como a atividade proposital, na qual certos fenômenos são claramente registrados enquanto outros retrocedem para a sombra ou são bloqueados. Muito do que percebemos tem valor para nós, para a sobrevivência biológica e para propiciar algumas satisfações que estão enraizadas na cultura.

Para Oliveira e Machado (2004, p. 130), foi através da psicologia que a percepção passou a ser um campo de investigação. Mas, sempre ligado aos “sentimentos, emoções, vivências, enfim, às mentes dos homens”.

As bases da percepção são fisiológicas e anatômicas e ocorrem mediante os órgãos sensoriais. No que tange à percepção ambiental é mais usual lançar mão da percepção visual. É através da visão que os homens se expressam e se comunicam mais freqüentemente. O mundo moderno é visual, é feito de cores e formas, principalmente. [... Mas], percebem-se não as formas, mas os objetos que têm significado [...] para nós, para atender as nossas necessidades e interesses (p. 130-131).

Segundo as mesmas autoras, na teoria de Piaget, a “percepção é encarada como parte integrante da vida cognitiva do sujeito, sendo uma atividade, um processo. Por conseguinte, a percepção é o conhecimento que adquirimos através do contato atual, direto e imediato com os objetos e com seus movimentos, dentro do campo sensorial” (p. 131). Elas explicam, também, que a teoria de Piaget “interpõe entre a percepção e a inteligência, uma atividade

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perceptiva, que mantém um continuum processo entre elas” (p. 131, grifo das autoras). Importante, então, o papel da cognição para a percepção. Ainda sobre o processo conectivo entre a cognição e a percepção, Oliveira (2002, p. 237) escreve: Concordamos com Tuan (1983, p. 9-11) que a nossa experiência compreende diversos meios pelos quais conhecemos e construímos a realidade. Mais ainda, que as emoções que sentimos tingem de cores variadas a experiência humana, abrangendo os níveis mais altos, incluindo o pensamento e a razão. Perceber e pensar se confundem muitas vezes. Comumente, negligenciamos o valor desses sentidos. Os órgãos dos sentidos nos permitem discriminar nuances do sabor, do odor, do ver, do sentir, podendo atingir refinamentos extraordinários. Há uma íntima conexão entre o perceptivo e o cognitivo.

Uma paisagem, então, é o resultado de uma percepção dinâmica, construída a partir do olhar de um observador a um lugar qualquer do espaço em um determinado momento. Contudo, é um olhar com subjetividade, com história, com valores culturais, com seus modos de vida e com seu ponto de vista, sobre aquilo que é observado. “A paisagem não se separa da experiência humana. É o homem quem vivencia as paisagens, atribuindo a elas significados e valores” (MACHADO, 1988a, p. 42). Para Oliveira (2000, p. 21), “experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele”, ou ainda, a experiência implica na capacidade de aprender a partir da própria vivência. Nesta perspectiva, o espaço geográfico do rio das Contas, é a fonte principal dos diversos lugares vivenciados e das paisagens percebidas pelas pessoas que o experienciam. Então, segundo Machado (1988b, p. 37), “se a percepção é um fator sempre presente em toda a atividade do homem, isto significa dizer que ela tem um efeito marcante no seu envolvimento com paisagens e na conduta dessas paisagens”. Além da forma, as paisagens têm volumes, cores, movimentos, odores, sons, etc. Na verdade, a imagem e a imaginação podem ser propagadas ao tato, à audição, ao olfato e até ao paladar. Contudo, uma paisagem pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca. Vemos a paisagem com os nossos olhos, como algo aparentemente fora de nós, mas esta deve ser uma visão feita através da nossa história e da nossa subjetividade que, por sua vez, estão inseridas no mundo das histórias e das subjetividades coletivas. Rio e homem se misturam, se confundem e se transformam num só, traduzidos na forma poética de ver a natureza... o rio é a natureza...

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As qualidades visuais e as propriedades das paisagens exercem forte atração sobre as pessoas, a exemplo do pôr-do-sol (Figura 29), de uma cachoeira, de um rio, de uma praça, de um parque, etc. Quando nos defrontamos com qualquer paisagem, nossos sentidos são tocados pelo que vimos, ouvimos, tateamos e cheiramos; e os sentimentos como a alegria, a tristeza, a saudade, a nostalgia, a solidão, o medo, o contentamento, a paixão e tantos outros... são influenciados pelos aspectos cognitivos e pela nossa cultura.

Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 29 - Paisagem do entardecer no rio das Contas, Itacaré-BA.

“Na verdade, a admiração das paisagens depende muito mais de nossas interações físicas com elas do que o consumo estético possa explicar. [...] porque estas ligações têm também outras raízes, que precisam ser identificadas e analisadas” (LOWENTHAL, 1968, citado por MACHADO, 1986, p. 145). Para Collot (1990, p. 21), a paisagem também se define “como um espaço percebido: constitui os aspectos visíveis, perceptíveis do espaço”, em que o sujeito não se limita a receber passivamente os dados sensoriais mas, organiza-os para lhes dar um sentido, de forma que, a paisagem percebida é também construída e simbolizada. Mais ainda, a noção de escala é inseparável da noção de paisagem, existindo um limiar mínimo e um máximo na percepção da paisagem. Isto depende da distância do sujeito em relação a ela, o que não quer dizer que o sujeito se situe fora da paisagem percebida, pois sujeito e objeto são inseparáveis, ou melhor, o sujeito está envolvido pela paisagem, está dentro da paisagem. A paisagem é a representação daquilo que vemos. Entretanto, a visão é apenas a sensação de que percebemos, “[...] uma evidência do invisível” (PEIXOTO, 1994, p. 381). Na tentativa de apresentar aquilo que está ausente, a paisagem convoca o símbolo a exercer-se na

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sua plenitude. Essencialmente simbólica, a paisagem é, então, a expressão dos múltiplos sentidos que um indivíduo ou um grupo social confere ao seu meio (Figura 30). Em outras palavras, podemos dizer que “o espaço geográfico é percebido de diferentes formas, de acordo com os interesses dos grupos sociais que o habitam” (ROCHA, 2008, p. 149).

Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 30 - Barcos no anoitecer do rio das Contas, Itacaré-BA.

Mas, mesmo que possamos ver somente uma parte da paisagem, determinada pela nossa posição (extensão do nosso campo visual), as outras partes não vistas são completadas pela nossa cognição, que ultrapassa o simples dado sensorial, ou seja, a paisagem é vista, vivida e desejada. No aspecto da paisagem vivida, podemos citar a história sobre Manoel Palada no rio das Contas (Figura 31), escrita por Roberto Setúbal (ex-prefeito de Itacaré), cujo protagonista fazia parte da paisagem do rio... ele era a própria paisagem... tornando-se, na época, um símbolo do rio e, hoje, fazendo parte da sua memória.

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O rei do rio (Autor: Roberto Setúbal) “A canoa é meu ganha pão” (MANOEL PALADA).

Durante muito tempo, a navegação através do rio de Contas foi o caminho mais utilizado na ligação entre a cidade de Itacaré e o Distrito de Taboquinhas. Esse trajeto, por via fluvial, de cerca de 25 km de extensão, era coberto pelo percurso das lanchas movidas à gasolina e em canoas. As canoas são equipamentos históricos que fazem parte da cultura do rio e têm sua secular origem na ancestral civilização indígena - os nossos primeiros habitantes e verdadeiros donos das terras de "Santa Cruz". Essas pequenas embarcações sempre foram usadas no rio de Contas como meio de transporte, na condução de mercadorias e no escoamento da produção ribeirinha. Sofreram a concorrência das lanchas e tiveram os seus espaços reduzidos, mas nunca perderam a sua utilidade. Um grande exemplo dessa integração – canoa x canoeiro x rio, era o "Caboclo" Manoel Palada.Figura tradicional na tarefa de subir e descer o rio de Contas, remando na rota Taboquinhas/Itacaré - pelo menos uma ou até duas vezes - diariamente nos cinco dias úteis da semana, com folga, apenas, para a feira do sábado, já que os domingos, na sua maioria, eram reservados para condução de um usuário preferencial: o Dr. José Ferreira da Cruz (consagrado Doutor Juca), médico, dentista e político militante, residente no distrito de Taboquinhas, que desempenhava os seus múltiplos serviços profissionais, também, na cidade de Itacaré e retornava no final de semana, sempre na inseparável companhia de Palada, que fazia a entrega a domicílio da bagagem do único representante da ciência médica da “Vila”, onde tomava o seu cafezinho e ainda rolava “uns dois dedos de prosa”, sobre questões do cotidiano municipal. Palada, de físico avantajado e roliço, com sua pele parda tostada pelo sol e pelo sereno, possuía um perfil parecido com um índio Pataxó. Tinha um estilo próprio de remar e com suas mãos calejadas e firmes no comando da embarcação, imprimia fortes braçadas com o remo de maneira intensa e cadenciada, proporcionando um deslocamento uniforme do seu instrumento de trabalho: a canoa. O seu desempenho equiparava-se a um atleta olímpico da canoagem e desfrutava de um vigor, que lhe valeu o apelido de "motor-de-popa". No período compreendido entre as décadas de 1930 a 1950, os "Coronéis do Cacau" exerciam grande influência no processo socioeconômico de Itacaré, inclusive com interferência nas áreas estratégicas do município - caso dos transportes através do rio de Contas. Palada teve a coragem de enfrentar o monopólio das lanchas e transformou a sua canoa num tipo de transporte alternativo para viagens entre a cidade de Itacaré e o distrito de Taboquinhas. Além das vantagens comparativas no programa do "caboclo-canoeiro", a sua canoa era silenciosa e não provocava o barulho inconveniente dos motores; era um transporte limpo, sem produzir o odor e a fumaça poluente da queima de combustível; ao contrário, proporcionava o agradável cheiro do mato e o suave aroma das flores silvestres que proliferavam com fartura nas margens do Contas; bem como não empregava velocidade arriscada, navegando calmamente, com parcimônia, permitindo aos passageiros apreciarem o belo cenário do rio de Contas ao longo da sua calha pontilhada de fazendas, a exemplo da Fazenda Santa Luzia (de Lourenço Gringo) com seus mangueiros cheios de vacas e suas crias pastejando descansadas no meio do bengo viçoso ou da Fazenda Maravilha do "Seu" Zenandro, na época da safra, com os seus cacaueiros apinhados de frutos de cacau "Parazinho" que desciam em cachos amarelos e verdes (dos galhos ao tronco), só parando no nível do chão. Palada ganhava a vida no rio de Contas e ali predominou dos anos 1940 até o início da década de 1960. Para ele, o rio era o leito da sua estrada natural, plana, deslizante e atraente, caminho único com início e fim. A sua freguesia (para pequenas encomendas e principalmente passageiros) era muito fiel e especial, com destaque para o Padre Edgar que viajava sentado no fundo da canoa sustentando o seu inseparável "guarda-chuva" ou "guarda-sol" (dependia da ocasião e do clima). Palada conhecia cada palmo de água, todas as pedras, bocas de riachos e bancos de areia, sobre os quais conduzia com maestria a canoa, sua dileta companheira, mas a sua grande característica era a capacidade de conversar. Falava o tempo todo na viagem. Tagarelava sem parar com energia, como se fosse uma rádio FM ou um radialista de jogo de futebol e abordava os mais

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variados assuntos, demonstrando autoridade e saber enciclopédico de um veterano nos atalhos e becos deste caprichoso universo do rio de Contas. Gostava de política, sendo um fervoroso defensor do governador baiano Lomanto Júnior. Inclusive, esteve presente na visita que o grande baiano fez a Itacaré no início dos anos 1960. Por isso, repetia com freqüência no seu inconfundível vocabulário: "Lamanta teve em Itacaré", “Lamanta abraçou o povo e entrou na Igreja de São Miguel”. Contudo, era no rio de Contas, manobrando a sua canoa, que Palada realizava-se. No rio, Palada era o "Rei" e mandava até no Padre! Nos dias atuais, Palada seria exaltado como um benfeitor do meio ambiente, uma espécie de "guardião do rio" e receberia, incontestavelmente, o "Prêmio Ecológico" pela defesa e preservação do rio de Contas.

Fonte: SETUBAL (2001).

Figura 31 - Paisagem vivida por Manoel Palada no rio das Contas em Itacaré, BA.

De acordo com esta história, o rio das Contas significava para Palada a sua própria vida, pois via, vivia, sentia, ouvia e cheirava o rio, conhecia o movimento e a alma do rio e, por isso tudo, respeitava-o. Palada teve um papel fundamental para os moradores de Taboquinhas, numa época em que o rio era a única estrada de ligação deste distrito com o mundo. Em sua canoa carregava alimento, saúde, fé, alegria, paz, segurança e confiança ao transportar os moradores de Taboquinhas de lá para cá, no mesmo movimento do rio... O rio das Contas era a paisagem vivida e, também, o espaço-lugar-vivido de Palada. Por isso, concordamos com a afirmação de Yázigi (2001, p. 35): “o homem [...], quer se queira ou não, fica sendo o grande marco da paisagem”. Outro geógrafo que deu uma importante contribuição ao entendimento da simbologia da paisagem foi o geógrafo francês Augustin Berque, o qual partiu do pressuposto de que a análise da paisagem não deve se pautar apenas pelo aspecto visível, ou seja, pelo seu caráter morfológico, assim como não deve se reduzir aos estudos psicológicos. Apesar da paisagem ter sua especificidade na forma de ser observada, através da sua subjetividade, ela é mais do que um ponto de vista ótico e um “espelho da alma”. Ela também se refere aos objetos concretos, tendo um suporte objetivo, ou seja, a paisagem é dada pela integração do sujeito com o objeto. Na concepção de Berque (2004), ainda, uma paisagem é a manifestação concreta da relação da sociedade com o espaço e a natureza. A paisagem é marca e, ao mesmo tempo, matriz. Ela é objetiva, pois se refere a um contexto concreto e, ao mesmo tempo, ela é subjetiva, porque evoca o imaginário. A existência da paisagem é real (vivida), principalmente porque a sociedade, enquanto “sujeito coletivo”, tem relação com ela. É a sociedade quem produz, reproduz e transforma a

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paisagem em função de uma lógica, cujo resultado é, segundo Berque (2004, p. 84-85), uma marca e uma matriz.

A paisagem é uma marca, pois ela expressa uma civilização, mas é também uma matriz porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de ação - ou seja, da cultura - que canalizam, em um certo sentido, a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza e, portanto, a paisagem do seu ecúmeno (Grifos do autor).

Seja como marca, seja como matriz, a paisagem é uma expressão física da ação do homem sobre a natureza e, por extensão, um receptáculo de memória. Para Holzer (2000) tanto os lugares como as paisagens são receptáculos de memória. No entanto, a paisagem retrata apenas um instante. Ela expressa o que foi impresso através do tempo e, neste sentido, o que passou se torna menos legível. Então, a matriz, muitas vezes, não é mais reconhecível; as marcas se misturam e as mais recentes predominam. A paisagem é descontínua, marcada pelas lacunas da memória, pois o esquecimento é um componente fundamental da memória. Por sua vez, Dona Otília tem muito marcado na sua memória as paisagens antigas do rio das Contas quando escreve seu livro sobre as histórias de Itacaré, do qual utilizamos o capítulo sobre o rio das Contas. Para ela, o rio é um lugar de paisagens construídas e marcadas pelo tempo. Utilizando as palavras de Unger (2001), podemos dizer que é também pela contemplação e pelo reconhecimento da sacralidade da natureza que Dona Otília percebe o rio, portanto conhece sua história... suas paisagens... seus mistérios... Sua relação com o lugar- rio das Contas se efetua a partir de uma sensibilidade que compreende as suas paisagens, sem dissociar as dimensões geográficas, míticas e poéticas. Quando se manifesta mesclada com lembranças e incidentes humanos, a contemplação da paisagem é mais pessoal e duradoura, perdurando além do efêmero, surgindo como um envolvimento suave, inconsciente com o mundo físico. Tais relações sociais engendram afeição ou desprezo, uma vez que os sentimentos pelos lugares são uma extensão da personalidade e caracterizam a identidade de uma pessoa, a exemplo dos pescadores de Taboquinhas (aqueles que deram os depoimentos à Sayonara Malta): devido ao seu imaginário, muitas veze, têm uma relação de topofobia com o rio das Contas e, por isso, constroem nas suas memórias fragmentos irreais da sua paisagem. Estes pescadores vivenciam o seu lugar, o seu rio, transitando através de diferentes níveis de realidade, nas dimensões do real mas, também, do estranho, do mistério, do fantástico, do imaginário... que permeiam pela paisagem do rio... ou seja, as visagens do rio das Contas. 108

Quais seriam, então, as marcas da paisagem do rio das Contas em Itacaré? E, como matriz, quais paisagens a sociedade itacareense construiu no rio das Contas?

O rio das Contas “na construção” da paisagem itacareense

As paisagens do rio das Contas revelam a relação cultural estabelecida entre os moradores de Itacaré e este elemento hídrico e podem ser entendidas através da interpretação das camadas de significados que as envolvem. Estas paisagens, portanto, têm significados, mas depende das maneiras de ver dos grupos culturais ou das pessoas e, depende também, de como eles se apropriam dos lugares e os vivenciam, para perceberem suas paisagens, com seus significados, crenças, valores, visões de mundo e interesses distintos. Os lugares são feitos de paisagens e, estas ao longo do tempo, pela própria dinâmica histórico-espacial, vão mudando, transformando-se, adaptando-se... Várias paisagens já marcaram o rio das Contas em Itacaré, desde a população indígena que se abrigou em suas margens; passando pelo transporte do ouro e do diamante explorados na Chapada Diamantina; pela presença dos piratas-ladrões destas riquezas; pelas fazendas (Figura 32) e plantações de cacau (Figura 33), o que até hoje faz com que grande parte das matas ciliares esteja conservada; pelo transporte do cacau, primeiro em canoas e depois em lanchas movidas à gasolina; pela urbanização em suas margens (Itacaré e Taboquinhas, por exemplo); e por último, pela presença da atividade turística. Esta é a matriz da paisagem do rio, ou seja, a sociedade construindo/organizando o seu espaço, muitas vezes, através de caminhos nada fáceis, mas que, de certa forma, foram sendo registrados na memória dos moradores do município de Itacaré (e do rio).

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Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 32 - Sede de uma fazenda de cacau, nas margens do rio das Contas, Itacaré-BA. 109

Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 33 - Roça de cacau nas margens do rio das Contas, Itacaré-BA.

Dentro do município de Itacaré, o rio corre sobre relevo de planalto, com rochas granulíticas de idade arqueana, cuja presença resultou em sistemas de falhamentos que acabaram por formar corredeiras, estreitos e quedas d’água no rio. São estes elementos entre outros que contribuem na formação das lindas paisagens itacareenses. Neste contexto, Amorim Filho (1996) explica que os elementos geográficos, assim como suas paisagens, têm papel importante na atração exercida pelos lugares turísticos. Assim, como marca ou como matriz, hoje, as paisagens do rio das Contas em Itacaré são marcadas, principalmente, pelo turismo de aventura que usufrui a sua água no meio da mata, transformando-se num turbilhão de paisagens, com a presença do cânion (Figura 34) e das cachoeiras do Fumo (Figura 35) e Pé da Pancada (Figura 36). Para Yázigi (2001, p. 35), “a paisagem tem atributos expressivamente simbólicos”, o que nos leva a considerar que, os elementos geográficos ou as belezas cênicas naturais do rio das Contas são alguns dos seus símbolos e, por conseqüência, do turismo em Itacaré, pois a maioria dos moradores e dos turistas refere-se a estes atributos quando fala do rio, principalmente, aqueles turistas praticantes de esportes de aventura. Propícia, então, a frase de Tocantins (1973, p. 110): “A natureza prepara a paisagem e os homens tiram proveito dela”. Nesta perspectiva, a atividade turística é hoje um meio de sobrevivência para grande parte da população de Itacaré, sendo proporcionada pela presença do rio das Contas, pelo relevo de montanha, pela Mata Atlântica (ainda bem conservada) e pelas características do mar no local, transformando-se em recursos atrativos para o turismo regional, nacional e internacional.

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Fonte: PEREIRA, M. F. V., dezembro de 2007.

Figura 34 - Cânion do rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA.

Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figuras 35 e 36 - Cachoeira do Fumo e Pé da Pancada, no rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA.

Mesmo que o mar seja de grande importância para a atividade turística de Itacaré, por si só, não é o principal responsável pela atração turística do município mas, sim, a presença do rio das Contas e da Mata Atlântica. Para aqueles turistas que gostam de esportes radicais, existe a possibilidade de fazerem rafting no rio das Contas. Este é um tipo de esporte praticado em corredeiras e pequenas cachoeiras de rios, com a utilização de botes infláveis e remos, em que os praticantes devem usar capacetes e coletes salva-vidas. As corredeiras servem como raias para prática de tal atividade, pois são trechos acidentados de rios, em que as águas têm maior velocidade.

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No rio das Contas, em Taboquinhas, as corredeiras são sempre lembradas como o espaço para o rafting, o que, por sua vez, acaba transformando-se, também, em uma paisagem, uma imagem, um símbolo turístico do município de Itacaré (Figura 37). A admiração que o praticante do rafting tem em olhar a paisagem do rio, ao final da aventura, suscita-lhe sentimentos de poder sobre todas as coisas. A sua sensação é de gigantismo ao sentir-se o meio, entre a água e a terra e, o praticante, na maioria das vezes, só pensa em retornar e vivenciar aquela paisagem novamente. A emoção e a imaginação estão sempre presentes neste tipo de experiência, pois as pessoas acreditam estar enfrentando o desconhecido ao praticar o turismo de aventura. Este tipo de turismo considera mais as sensações emocionais do que a capacidade física das pessoas praticantes, ávidas pelo desafio (Figura 38).

Fonte: PEREIRA, M. F. V., dezembro de 2007.

Figuras 37 e 38 - Corredeira e rafting no rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA.

As prainhas (Figura 39) que se formam nas margens do rio das Contas depois do cânion em Taboquinhas, o passeio suave dos turistas nas águas do rio (Figura 40) e os restaurantes nas suas margens, à espera de turistas (Figura 41), também são paisagens repousantes, vivenciadas pelos turistas em Itacaré.

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Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 39 - Prainha do rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA.

Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 40 - Paisagem do passeio de turistas pelas águas do rio das Contas em Itacaré, BA.

Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 41 - Restaurante na beira do rio das Contas em Itacaré, BA.

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Com relação às lavadeiras de roupas nas águas do rio das Contas, sua presença sempre foi uma marca da paisagem de Taboquinhas, pois algumas mulheres freqüentam diariamente o rio para o cumprimento desta atividade doméstica. Enquanto trabalham, muitas vezes, levam seus filhos para brincar no local (Figura 42).

Fonte: MALTA, S., setembro de 2007.

Figura 42 - Lavadeiras no rio das Contas em Taboquinhas, Itacaré-BA.

Para os pescadores de Taboquinhas e de Itacaré, o rio é um ganha pão, por isso sua presença diária, também, simboliza o rio das Contas. Este envolvimento que essas pessoas têm com o rio ocorre devido a uma forte ligação entre eles, que podemos chamar de ligação afetiva: homem-água-terra. O relacionamento das mulheres-lavadeiras e dos homens- pescadores, com o rio das Contas, é marcado pelos valores e significados que o rio tem para eles, expressos nas paisagens vividas no próprio rio, sem falar da beleza da imagem das paisagens dos pescadores no rio (Figuras 43 e 44).

Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figuras 43 e 44 - Pescadores no rio das Contas, Itacaré-BA.

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O rio das Contas também é palco ou escola de canoagem, proporcionando à cidade de Itacaré uma belíssima paisagem vivida por aqueles que praticam este esporte (Figuras 44 e 45). A Associação de Canoagem de Itacaré é um projeto social, criado em 1999, por uma moradora local, que tem como objetivo ensinar a canoagem esportiva, de um ou dois lugares, à crianças e adolescentes carentes. Para participar do projeto eles devem estar estudando e, por isso, têm aulas de reforço de Português, além de aulas de francês (um professor francês, que participa do Projeto, dispôs-se a ensinar esta língua). Também aprendem a cuidar do rio para poder usá-lo sempre, pois é muito apropriado para este tipo de esporte. Inclusive, um atleta local já ganhou medalhas em competições nacionais (informações provenientes de uma entrevista feita com o presidente da Associação).

Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figuras 44 e 45 - Canoagem no rio das Contas, Itacaré-BA.

Referimo-nos a Bachelard (2002), o qual escreve que a tendência de toda água clara é tornar-se escura, para interpretarmos as águas escuras do rio das Contas no período em que chove muito na região ou, mesmo, em regiões a montante. “A cor pouco importa: ela dá apenas um adjetivo; não designa mais que uma variedade” (p. 121). Com chuva intensa por muitos dias, o volume de água do rio aumenta consideravelmente, carregando muitos sedimentos (Figura 46) e, junto com eles, as baronesas (um dos nomes populares que se dá à aguapé, uma espécie de planta aquática), que se acumulam na superfície da água (Figura 47), indo parar nas margens do rio e nas praias da cidade de Itacaré, próximas a sua foz (Figura 48). Estas águas escuras podem, então, ser a transformação de um rio em outro rio... da paisagem do rio das Contas na enchente, que também é marca da sua imagem, pois todos os anos, no mesmo período, ele fica assim...

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Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 46 - Água escura do rio das Contas, Itacaré-BA.

Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figuras 46 e 47 - Baronesas na superfície da água do rio das Contas e acumuladas nas margens do mesmo rio, em uma praia do centro da cidade de Itacaré-BA.

A paisagem do rio das Contas ainda é marcada pela presença do mangue (Figura 48) e pelo movimento calmo e suave das suas águas, formando as coroas, as quais são depósitos de areia em forma de cordões. Estas areias trazidas pelas águas do rio estão causando o assoreamento do seu leito, desde Taboquinhas até a sua foz (Figura 49).

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Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 48 - Mangue na margem do rio das Contas, Itacaré-BA.

Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 49 - Coroa no estuário do rio das Contas, Itacaré-BA.

Depois de passar pelo distrito de Taboquinhas (Figura 50), a chegada do rio das Contas a Itacaré (Figura 51) marca o fim de um percurso de 500 km, aproximadamente, quando conclui a sua viagem. O rio, então, torna-se parte da cidade, trazendo em suas águas muitas histórias... experiências de vida... tristezas daqueles que perderam entes queridos nas suas águas... mas, principalmente, muitas alegrias, pois um rio sempre tem mais alegria do que tristeza. É possível ouvirmos muitas histórias e estórias do rio. Para tanto, devemos percorrer todo o seu caminho... percebendo as suas paisagens...

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Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figuras 50 e 51 - Visão de parte do distrito de Taboquinhas e da cidade de Itacaré, BA.

É importante registrar a presença da balsa no rio das Contas na cidade de Itacaré, a qual leva o nome de “Rio de Contas II” (Figura 52). Ela representa um rio que aproxima, que une, atravessando as pessoas de uma margem a outra, levando-as a conhecer as belezas do “lado de lá”, em direção à Baía de , ao norte de Itacaré. Mas, na cidade de Itacaré o rio das Contas “chora” de tristeza, devido ao esgoto doméstico que alcança suas águas (Figura 53). O volume dos resíduos despejados, tanto em Itacaré, como em todo o seu percurso, ainda não é grande. Mas, se medidas não forem tomadas para que estes resíduos tenham outro destino, certamente, o rio irá, aos poucos, morrer. A imagem dos canos despejando esgoto diretamente no rio é uma contradição da beleza oferecida gratuitamente à contemplação da paisagem aos moradores locais e aos turistas. É uma paisagem triste... melancólica... aos olhos daqueles que desejam um rio vivo... alegre... Rio e homem se aproximam, numa situação em que o rio se torna frágil e não pode “falar” de sua dor ao sentir-se poluído!

Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 52 - Balsa Rio de Contas II, Itacaré-BA.

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Fonte: CHIAPETTI, R. J. N., dezembro de 2007.

Figura 53 - Despejo de esgoto no rio das Contas, centro de Itacaré-BA.

O poema Nosso rio mostra, com uma linguagem própria e, de forma muito simples, o que vem acontecendo com a maioria dos rios brasileiros e, neste contexto, com o rio das Contas.

Nosso rio (Autor: Emídio Neto)

Rií deu Rií dêu Água de bêbê Dêu e dará Pêxe pra cumê Maiz o homi do pôvo Aligria de vivê Num mandô maiz ríi alimpá

Água pra lavá E jogaro lichu no ríi E tirá do corpu Qui água limpa Sujêra má... Num póde maiz dá

Rií deu Intão ríi vai morrenu Area pra levantá Suminu divagarinho Casa de homi ricu Purquê o homi do pôvo Dono do capitã.... Num manda cuidiá Du nosso riozinho...

Fonte: NETO (2005).

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A bela e difícil realidade que se move e se abriga nas margens do rio das Contas apresenta-se, não só meramente como uma paisagem de um cartão postal mas, como parte inseparável do todo, que constitui a essência da sua bacia hidrográfica e, que, traduz a sensibilidade humana... os mistérios da vida... enfim, a essência do homem que habita este rio-lugar-espaço-paisagem-cultural. Enfim, a expressão visual de vários elementos naturais e humanos num determinado momento constitui uma paisagem, que pode ser vista por cada observador, segundo a sua percepção e os seus interesses específicos. Mas, não é apenas o perceber e o pensar geográfico sobre o rio, por exemplo, que representa o próprio espaço-lugar-rio das Contas, com suas diversas paisagens. Para conhecermos este lugar, também é necessário compreendermos o que é o rio para as pessoas que o vivenciam diariamente, face às diversas condições em que se encontram. Com base no conhecimento das experiências, dos sentimentos e das representações imaginárias destas pessoas é que podemos obter o sentido, que tem para eles, o sobreviver, o habitar, o trabalhar, o divertir-se, etc. no espaço-lugar rio das Contas. De acordo com Besse (2006, p. 92):

[...] a paisagem é a expressão, e, mais precisamente, expressão da existência. Ela é portadora de um sentido, porque ela é a marca espacial do encontro entre a Terra e o projeto humano. A paisagem é essencialmente mais mundo do que natureza, ela é o mundo humano, a cultura como encontro da liberdade humana com o lugar do seu desenvolvimento: a Terra (Grifos do autor).

Portanto, vamos conhecer pessoas que vivenciam, cotidianamente, as paisagens do rio das Contas... pessoas estas que existem nas paisagens deste rio na cidade de Itacaré, no distrito de Taboquinhas e ao longo de suas margens... descobrindo o que o rio é para elas... o seu significado, expresso na sua relação com o rio... no seu cotidiano... no seu imaginário.... Este é o assunto do próximo capítulo.

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Rio das Contas em Itacaré, BA.

Capítulo 3 VIVENCIANDO... O RIO DAS CONTAS

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Capítulo 3 VIVENCIANDO... O RIO DAS CONTAS

Como nossas vivências são únicas, o objetivo da nossa vida seria, portanto, termos o máximo de vivências possível [...] (JACKS MILES citado por SWAAIJ; KLARE, 2004, p. 89).

Segundo o Houaiss (2009) “vivenciando é o ato ou efeito de vivenciar”. “Vivenciar significa viver (uma dada situação) deixando-se afetar profundamente por ela; é o mesmo que vivência”. “Vivência é o processo de viver; é coisa que se experimentou vivendo, vivenciando; é o conhecimento adquirido no processo de viver ou vivenciar uma situação ou de realizar alguma coisa; é experiência, prática; é aquilo que se viveu”. Vivenciar, então, é mais do que viver... é viver com sentimento, ter relação com... envolver-se, adquirir experiência, experienciar... Foi com esse desejo que fizemos nossa pesquisa de campo no espaço geográfico do rio das Contas em Itacaré, pois esse caminho fluvial não é somente um mero acidente geográfico, que podemos representar no mapa, ou estudar a geomorfologia fluvial ou, ainda, que temos a possibilidade de explorar como um recurso econômico. Envolvemo-nos com o rio das Contas, porque ele é muito mais do que isso... pois, em todo o seu percurso carrega, simbolicamente, a existência humana com a sua infinidade de desejos, sentimentos, intenções, ações... Podemos dizer que há uma “géographicité” (DARDEL, 1990, p. 2), ou seja, uma cumplicidade entre a Terra e as pessoas (ou entre o rio e as pessoas), que se realiza na existência humana. Essa geograficidade é a relação intensa que temos com o mundo, através dos espaços, das paisagens e dos lugares... “geograficidade humana” (HOLZER, 2006, p. 111). 122

Tuan (1983, p. 6) escreve que “o que começa como espaço indiferenciado transforma- se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor”. É assim que o espaço geográfico do rio das Contas se converte em lugar, ou seja, à medida que atribuímos significado e importância a ele, sentimo-nos inseridos nele. Compreender o lugar permite-nos identificar os significados e as relações estabelecidas entre as pessoas e o seu espaço-lugar. A partir da influência humanista, geograficamente, colocamos questões em torno de um lugar percebido, vivenciado, experienciado... E o nosso pensar geográfico sobre este lugar passa, então, a considerar os aspectos da percepção de quem o habita e, isto faz com que possamos conhecer a relação que essas pessoas estabelecem com o seu lugar. O lugar, mais que o espaço, relaciona-se à existência real e à experiência vivida e, por ser repleto de significados, é visto como algo que transcende sua materialidade. Assim sendo, é único, concreto e revela uma paisagem. As paisagens são as ações, as experiências e as relações construídas pelas pessoas no seu cotidiano, permeadas pela cognição, percepção, sentimento, valor, crença e visão de mundo, que fazem os processos interativos da vivência social, comandam a vida social. Para Holzer (2006, p. 113-114), a paisagem “é eminentemente um produto de significados coletivos que geram a geograficidade [...] e que, portanto, permitem uma comunicação entre muitos destes indivíduos que estão estabelecidos sobre este espaço a partir de um vocabulário compartilhado”. Este é o propósito deste capítulo, ou seja, pesquisar diretamente o rio das Contas enquanto um lugar da paisagem itacareense que é percebido e sentido pelas pessoas, através de uma relação vivenciada... experienciada... procurando, com isto, desenvolvermos realmente uma Geografia Humanista. Para tanto, vamos fazer uma viagem pelo rio das Contas, assim como fez Gratão (2006, p. 173) pelo rio Araguaia: “Uma viagem... pelo universo d’‘O Rio’ com a entrada no mundo ‘interior’ imaginário das pessoas do lugar. Uma viagem... pelo universo feminino d’‘O Rio’. Uma viagem... em anima!” (Grifos da autora). Assim, este capítulo está totalmente voltado para a pesquisa de campo, contendo: a escolha do tema e do lugar; a justificativa destas escolhas; a oralidade como trajetória da pesquisa e os procedimentos metodológicos, explicando sobre os sujeitos participantes e como foram feitas as entrevistas com os mesmos. E, por último e, mais importante, a percepção destas pessoas que vivenciam diariamente o espaço-lugar-rio das Contas em Itacaré.

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“Um olhar” sobre a pesquisa

Olhemos para “o olhar” que a pesquisa de campo lançou em Itacaré, pois olhar, segundo Bosi (2006, p. 66), é “o movimento interno do ser que se coloca em busca de informações e de significações”. “O ato de olhar significa um dirigir a mente para um ‘ato de in-tencionalidade’, um ato de significação que, para Husserl, define a essência dos atos humanos” (p. 65). Bosi escreve ainda, que “o olhar está enraizado na corporeidade humana, enquanto sensibilidade e enquanto motricidade” (p. 66) mas, não está isolado, porque as pessoas dispõem de outros sentidos além da visão, como a audição, o tato, o olfato e o paladar. Todos estes sentidos são importantes para olhar e conhecer ou, ainda, para perceber. Este é um olhar fenomenológico, um olhar de dentro, já que o sujeito da percepção faz parte do fenômeno. Foi este tipo de olhar que lançamos sobre nossa pesquisa, ou seja, um olhar com o intuito de conhecer e compreender as percepções dos sujeitos da pesquisa com relação ao rio das Contas, em Itacaré. A opção pelo tema, percepção geográfica do rio das Contas, ocorreu porque desde que fomos morar em Ilhéus, cidade próxima a Itacaré, ficamos encantadas com este rio, com sua história, com sua gente, enfim, com este presente da natureza! Além do que, o rio das Contas tem uma presença marcante na história do estado da Bahia e na existência da vida humana, em toda a área da sua bacia hidrográfica. Todavia, é importante conhecermos a percepção das pessoas que vivenciam o rio das Contas, porque isto vai mostrar-nos a forma destas pessoas verem, interpretarem e interferirem no meio em que vivem. Para Severino (2002, p. 145), “a temática deve ser realmente uma problemática vivenciada pelo pesquisador, em vista de sua relação com o universo que o envolve. A escolha de um tema de pesquisa, bem como a sua realização, necessariamente é um ato político”. Ao mesmo tempo em que escolhemos o tema, decidimos pelo espaço geográfico do rio das Contas como lugar de estudo, devido às características peculiares do seu percurso: um rio que nasce “doce” no alto das montanhas, num oásis dentro do sertão semi-árido baiano (a Chapada Diamantina) e, depois de serpentear, perenemente, por muitos quilômetros dentro da caatinga, penetra na mata, vai contornando as rochas e os obstáculos e fica muito estreito ao cruzar um cânion. Após isto, suas águas fluem calmamente, até chegar “salgado” ao oceano. Mas, ainda existem motivos pessoais, também importantes, quanto à escolha de estudá-lo, como o desejo de aprendermos sobre um espaço ainda não vivido (por nós), compreendermos 124

o rio que muito contribui com a atividade turística no sul da Bahia e, também, experimentarmos (no sentido de cognição própria) a beleza das suas paisagens ao longo do seu (per)curso, principalmente, dentro do município de Itacaré. Por isso, para fazer a pesquisa de campo, decidimos pelo espaço geográfico das margens do rio das Contas, somente no município de Itacaré, porque ficaria de difícil acesso aplicar as técnicas de pesquisa na área total da bacia hidrográfica ou, mesmo, ao longo de todo o rio, devido a sua extensão e, também, ao tempo e custo necessários, ficando restrita a trabalhos desenvolvidos por agências federais e estaduais. A nossa área da pesquisa de campo está inserida na APA Itacaré-Serra Grande, criada pelo Governo do estado da Bahia, através do Decreto n°. 2.186, de 07/06/93, inicialmente com 15.000 ha e, em 2003, ampliada para, aproximadamente, 60.000 ha. A APA é uma categoria de Unidade de Conservação (UC) do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que tem como principal objetivo preservar o meio ambiente, pois uma APA segue normas quanto ao manejo adequado do seu território (SEIA, 2009). A justificativa para o desenvolvimento desta pesquisa é que na ciência geográfica não existe, até o momento, nenhum trabalho de caráter científico sobre a BH do rio das Contas ou seu rio principal, pois agências federais como o IBGE e, estaduais como a SRH/BA, por exemplo, geralmente disponibilizam somente dados (quantitativos) de caráter informativo, como: qualidade da água do rio, municípios pertencentes à BH, informações sobre as usinas hidrelétricas e o número de barramentos construídos no leito do rio, dados referentes aos aspectos socioeconômicos da BH, etc. Sabemos que um grupo de professores/pesquisadores da UESC, em Ilhéus, está fazendo pesquisas abrangendo toda a área da BH do rio das Contas, com o objetivo de conhecê-la melhor, ter dados para disponibilizar e publicar artigos científicos. Entretanto, estes professores não investigam o espaço geográfico do rio das Contas mediante uma dimensão perceptiva, nem têm uma visão humanista. Portanto, esta pesquisa que considera a afetividade e os sentimentos humanos pode contribuir para ampliar os conhecimentos sobre a relação que as pessoas desenvolvem com o seu lugar, com a paisagem do seu lugar, valorizando o rio das Contas enquanto um elemento humanizado importante para a região sul da Bahia, bem como poderá contribuir, também, para subsidiar ações de Agências Governamentais e ONGs, com relação a este elemento hídrico, à cidade de Itacaré e às comunidades rurais existentes ao longo de suas margens. Fizemos uso das palavras de Machado (1996, p. 99) para justificar, ainda mais, a importância de estudarmos a percepção daqueles que vivenciam diariamente o rio das Contas em Itacaré:

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Só quem a experiencia [a paisagem] por meio de um contato direto e contínuo pode alcançar melhor compreensão dela. Pode-se considerar a percepção dos moradores como uma informação de grande importância no estudo da interação entre homem e paisagem, pois é inegável que há uma profunda diferença entre um cenário descrito e estudado, e um cenário experienciado e vivido. É a familiaridade em relação a tudo o que existe na paisagem que lhe confere um significado especial; onde os habitantes vivem, se movimentam e se relacionam entre si e com a paisagem.

Para tanto, optamos pela oralidade como principal estratégia em campo, o que nos permitiu alcançar os propósitos da pesquisa. Isto é o que discutiremos a seguir.

A oralidade como trajetória da coleta de dados

Esta pesquisa tem uma abordagem qualitativa, visto que queremos saber o que é o rio das Contas para os sujeitos da investigação. Uma pesquisa qualitativa, ao valorizar os aspectos descritivos e as percepções pessoais, procura compreender os sujeitos envolvidos e, por seu intermédio, avaliar também o contexto em que vivem (BOGDAN; BIKLEN, 1994), através de valores, crenças, atitudes, representações, significados, opiniões e visões de mundo expressos na linguagem comum e na vida cotidiana dessas pessoas. Uma pesquisa qualitativa “trabalha” com informações subjetivas de locais e de fatos, fornecidas pelos sujeitos envolvidos. Como as pessoas vivem, também, em função de suas percepções, crenças, sentimentos e valores, as suas visões de mundo têm sempre um sentido, um significado, que não são revelados de imediato mas, precisam ser desvelados. Para Alves-Mazotti (2001), esta é a principal característica da pesquisa qualitativa, a qual ele adota como um termo para distinguir pesquisas, cuja ênfase recai sobre a compreensão das intenções e do significado dos atos humanos. Minayo (1994, p. 21-22) concorda com Alves-Mazotti ao escrever que:

A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa [...] com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. 126

De acordo com Laville e Dionne (1999, p. 43), as pesquisas qualitativas são mais apropriadas para investigar os fenômenos humanos, pois “tentemos conhecer as motivações, as representações, consideremos os valores, [...], deixemos falar o real a seu modo e o escutemos”. Para Teixeira (2006, p. 137):

Na pesquisa qualitativa o pesquisador procura reduzir a distância entre a teoria e os dados, entre o contexto e a ação, usando a lógica da análise fenomenológica, isto é, da compreensão dos fenômenos pela sua descrição e interpretação. As experiências pessoais do pesquisador são elementos importantes na análise e compreensão dos fenômenos estudados.

Segundo García Ballesteros (1998, p. 24), “Empleamos una metodologia cualitativa cuando queremos responder a la pregunta de por qué nuestra relación en y con el espacio es de una determinada manera y por qué no es de outra” [...]? Uma característica importante das pesquisas qualitativas é que são exploratórias, ou seja, incentivam os sujeitos a pensarem livremente sobre algum tema, objeto ou conceito. Elas fazem emergir aspectos subjetivos dos sujeitos e atingem motivações não explícitas ou, mesmo, conscientes, de maneira espontânea. Devem ser usadas quando buscamos percepção e entendimento sobre a natureza geral de uma questão, abrindo espaço para a interpretação. Por isso, a coleta das informações, nesse tipo de pesquisa, deve ser feita diretamente pelo pesquisador no local de origem, para que ele tenha maior compreensão dos fenômenos que quer estudar, ou seja, é o próprio pesquisador que deve fazer a pesquisa de campo. Pesquisar é buscar e, portanto, pesquisar em campo é buscar respostas (em algum local) para responder às questões da pesquisa. Duarte (2002) escreve que uma pesquisa de campo é uma busca feita por um pesquisador, cujo olhar dirige-se para locais já conhecidos por muitos mas, sempre, com uma maneira diferente de olhar e de pensar determinada realidade a partir da experiência e da apropriação do conhecimento, que são muito pessoais. De acordo com Minayo (1994, p. 53), a pesquisa de campo é “o recorte que o pesquisador faz em termos de espaço, representando uma realidade empírica a ser estudada a partir das concepções teóricas que fundamentam o objeto da investigação”. Isto é o mesmo que dizer: é a escolha de uma área para aplicar a teoria da pesquisa. Segundo Ruiz (1976, p. 50), “a pesquisa de campo consiste na observação dos fatos tal como ocorrem espontaneamete, na coleta de dados e no registro de variáveis presumivelmente

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relevantes para ulteriores análises”. Em campo, podemos estabelecer relações constantes entre determinadas condições e determinados eventos observados. Para Suertegaray (2002), o trabalho de campo é um instrumento de análise geográfica que permite o reconhecimento do objeto e, que, fazendo parte de um método de investigação, permite a inserção do pesquisador no movimento da sociedade como um todo. São muitas as estratégias de coleta de dados na pesquisa de campo em uma abordagem qualitativa, dentre elas, a história oral ocupa lugar de destaque. A importância da história oral está na subjetividade do sujeito, que fornece às fontes orais elementos que nenhuma outra fonte seria capaz de dar, pode revelar sentimentos, significados, simbolismos e, até, a imaginação das pessoas. A riqueza de uma pesquisa com esta metodologia está na ênfase e importância atribuídas aos sujeitos da pesquisa, construtores de seu destino, entre possibilidades e limites. A história oral, como estratégia metodológica de pesquisa de campo, é muito usada nas ciências humanas por se colocar, justamente, no ponto em que se cruzam a vida individual dos sujeitos e o seu contexto social. Ou seja, através desta estratégia podemos fazer um mergulho no mundo criado e dinamizado pelas pessoas no seu dia-a-dia, no seu ambiente. Conhecemos e tomamos consciência de nossa relação com o meio em que vivemos porque temos uma maneira diferenciada, comparada aos outros animais, de pertencer a ele. Criamos nossas relações entre nós mesmos (sociais) e com as demais espécies (ambientais), todos vivendo no mesmo meio ou no mesmo planeta. Por isso, podemos dizer que estabelecemos relações socioambientais e nelas vivemos imersos, pois somos também um elemento do meio ambiente. Desse modo, pensar a história oral como possibilidade de entender o vivido de cada sujeito faz dela uma estratégia muito usada em pesquisas de percepção do meio ambiente. O importante é que seja enfocado diretamente o tema de interesse do pesquisador. Como nossa pesquisa está voltada para a interpretação da percepção das pessoas que moram próximas ao rio das Contas, portanto, percepção do meio ambiente, adotamos a história oral como principal estratégia em campo. Para tanto, buscamos embasamento metodológico em Whyte (1977), a qual escreve que os estudos de percepção ambiental devem se basear em três estratégias na pesquisa de campo, quais sejam: ouvindo, perguntando e observando. Entretanto, a autora complementa que a melhor estratégia a ser adotada depende do objetivo, da situação de campo e das condições do pesquisador. Apoiadas nesta autora, optamos, então, por “ouvir” as pessoas, adotando a história oral como principal estratégia metodológica.

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Vale ressaltar que, para Whyte (1977, p. 71), “Oral history is a method whereby oral evidence is taken from people who have usually directly experienced the events they talk about or who are relating accounts that have been personally handed down to them”. A evidência oral, nesta perspectiva, é muito importante para as pesquisas de percepção ambiental porque revela, não somente os fatos da experiência e conduta ambiental mas, também, os sentimentos e os significados para as pessoas que estão associadas a eles. Os relatos dos sujeitos sobre os eventos, acontecimentos, pessoas e lugares revelam suas percepções, sentimentos, atitudes, valores e visões de mundo, bem como, expressam o espírito e o sentimento de realmente terem estado presentes. A história oral passou a ser mais valorizada como método de pesquisa de campo, na medida em que pesquisadores constataram que percepções, sentimentos, emoções, valores e visões de mundo não “apareciam” nos dados estatísticos. Assim, muitos pesquisadores começaram a adotar a história oral como uma estratégia válida para buscar informações orais em campo, cada um valorizando um aspecto dela. Para García Ballesteros (1992, p. 15):

La reformulación de ciertos conceptos, el recurso a técnicas de trabajo que suponen un mayor contacto com los lugares y la vida cotidiana, son aportaciones de la Geografía Humanística que contribuyen a enriquecer el campo de la Geografía contemporánea e incluso a conectarla con el complejo mundo de la posmodernidad y su exaltación de la individualización del tiempo, del espacio y de la propia historia.

Thompson (1992, p. 137) escreve que “a evidência oral, transformando os ‘objetos’ de pesquisa em ‘sujeitos’, contribui para uma informação que não só é mais rica, mais viva e mais comovente, como também mais verdadeira” (Grifos do autor), pois são os sujeitos que dão forma e conteúdo às narrativas, à medida que interpretam suas próprias experiências e o mundo no qual elas são vividas. Meihy (2000, p. 29) define a história oral como:

um conjunto de procedimentos que se inicia com a elaboração de um projeto e que continua com a definição de um grupo de pessoas (ou colônia) a serem entrevistadas, com o planejamento da condução das gravações, com a transcrição para o uso, arquivamento e, sempre que possível, com a publicação dos resultados que devem, em primeiro lugar, voltar ao grupo que gerou as entrevistas.

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Já, Alberti (2004) aponta a história oral como um método de investigação científica, como uma fonte de pesquisa de campo ou, ainda, como uma técnica de produção e tratamento de entrevistas ou depoimentos gravados. Para ele, as falas tomadas no âmbito da história oral permitem ao pesquisador(a) o acesso à informações/pistas sobre aspectos de difícil apreensão por outros caminhos investigativos e, ainda, fornece ao pesquisador(a) experiência e características particulares sobre aquilo que está investigando. Assim, a história oral ganhou importância como método válido para a obtenção de informações em campo, na medida em que, os conteúdos das falas obtidas dos sujeitos da pesquisa extrapolaram os sentidos e os significados que pretendiam expressar conscientemente. Por sua vez, é importante registrar que o pesquisador, com discernimento, deve extrair do material empírico tudo que foi falado pelos sujeitos e, ainda, deve analisar suas respostas, de maneira que não distorça o que disseram ou queriam dizer. Como método ou estratégia de pesquisa de campo a história oral tem um quadro amplo de técnicas aplicáveis à coleta de informações, tais como: entrevistas, depoimentos, relatos, biografias, autobiografias, histórias de vida, etc. Para Dencker (2000), uma característica importante das pesquisas qualitativas é a utilização de diferentes técnicas de coleta de dados em campo, sendo que as mais utilizadas são a entrevista aberta e a observação. Nesta perspectiva, optamos pela entrevista aberta como principal instrumento de coleta de informações em campo, com o objetivo de saber o que é o rio das Contas para as pessoas que o vivenciam diariamente, o que o rio significa para elas, se se identificam com ele, se têm afetividade por ele, etc. Além do mais, a entrevista aberta, segundo Lüdke e André (1986), permite uma maior interatividade com os sujeitos da pesquisa, pois consiste num diálogo entre o pesquisador e o sujeito participante. Uma recomendação importante é que uma entrevista, geralmente, tem maior êxito quando planejada a priori. Por esse motivo, elaboramos um roteiro para nossa entrevista antes de irmos a campo. Ainda com relação às técnicas de coleta de dados em campo, fizemos uso também da observação e do registro das paisagens através de fotografias. A observação obriga o pesquisador a ter um contato mais direto com a realidade social e, também, ajuda-o a identificar os sujeitos da sua pesquisa. Por meio da observação, podemos, segundo Ludke e André (1986, p. 26):

chegar mais perto da “perspectiva dos sujeitos”. Na medida em que o observador acompanha in loco a vivência, as experiências diárias dos sujeitos, pode tentar apreender a sua visão de mundo, isto é, o significado que eles atribuem à realidade que os cerca e às suas próprias ações.

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Também, como escreve Bachelard (2005, p. 12), é “observando que as coisas nos ‘falam’ e que por isso temos, se dermos pleno valor a essa linguagem, um contato com as coisas [...]”. A técnica da observação assistemática ou não estruturada é aquela em que o pesquisador procura recolher e registrar os fatos da realidade sem a utilização de meios técnicos especiais, ou seja, sem planejamento ou controle. Geralmente, este tipo de observação é empregado em pesquisas exploratórias de cunho qualitativo, as quais procuram “captar” informações subjetivas. Corroborando com essa afirmação, Dencker (2000, p. 103) escreve que “pesquisar é observar a realidade [...] para obter informações sobre o mundo” [...]. Por isso, a técnica da observação não estruturada é valorizada principalmente pelas pesquisas qualitativas, pois procura “registrar os fenômenos como e na medida em que ocorrem e o pesquisador assume um papel importante” (p. 103). Laville e Dionne (1999) explicam que a observação como técnica de pesquisa de campo não é a contemplação passiva e um simples olhar atento a que ou a quem queremos observar, mas “um olhar ativo” sustentado pelo problema e objetivo da pesquisa. “A preocupação de pesquisa guiará o olho e o ouvido do pesquisador e o levará a ater-se a tal [...] aspecto ou elemento” (p. 176). Considerando essas características, a observação nos foi útil enquanto possibilitadora de um contato direto com os sujeitos, com os fatos e com os locais da pesquisa, além de contribuir na escolha das paisagens, as quais foram registradas através de fotografias.

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“Navegando”... no lugar-rio das Contas em Itacaré

Navegar é preciso; viver não é preciso. Quero para mim o espírito d’esta frase, [...] Viver não é necessário; o que é necessário é criar. (FERNANDO PESSOA, 1969).

Navegar... viver... criar... pesquisar... Para navegar precisamos ter conhecimento de técnicas de navegação, um conhecimento calculado, preciso... Mas, para viver, basta vivermos... não há nada de preciso na vida, só é preciso ver, ouvir, pensar, falar... sonhar, devanear, imaginar... e, principalmente, sentir... mergulhar em si mesmo e sair... para olhar e ver.... para criar... pois, para vivermos temos que criar... Para pesquisar também é necessário criar... para fazermos perguntas, para acharmos respostas, para respondermos às perguntas da nossa pesquisa. Então...navegamos... no sentido de fluir... (como no movimento contínuo da corrente de um rio), de conduzir a pesquisa de campo... de pesquisar em locais situados nas margens ao longo do rio das Contas, no município de Itacaré. Importante registrar que a pesquisa de campo foi feita diretamente pela autora desta investigação, conduzida pelos propósitos da Geografia Humanista. Os locais das entrevistas, da observação e das fotografias para registro das paisagens foram: cidade de Itacaré, distrito de Taboquinhas e propriedades particulares situadas nas margens ao longo do rio das Contas (restaurante, fazendas de cacau e as Comunidades Quilombolas Rurais: Santo Amaro, João Rodrigues, Fojo e Acaris). A Figura 54 tem o objetivo de representar graficamente o espaço geográfico da nossa pesquisa de campo, registrando, pontualmente, os locais em que fizemos as entrevistas. Na cidade de Itacaré, participaram 08 sujeitos, em Taboquinhas 14 e nas margens ao longo do rio 19, totalizando 41 pessoas, que vivenciam diariamente o rio das Contas, no município de Itacaré (Tabela 1).

Tabela 1 - Número absoluto e relativo dos sujeitos que participaram da pesquisa de campo no município de Itacaré-BA, 2007 Cidade % Distrito de % Margens do % Total de % de Itacaré Taboquinhas rio das Contas sujeitos Total 08 20 14 34 19 46 41 100 Fonte: pesquisa de campo, Itacaré-BA, dez. 2007. Elaboração: CHIAPETTI, R. J. N., 2008.

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no município pesquisa campo da 2007. de Itacaré-BA, 54 – Locais de Figura

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Os três locais em que fizemos as entrevistas não foram selecionados a priori mas, no momento em que iniciamos, de fato, a pesquisa de campo na cidade de Itacaré, através de conversas com alguns moradores. Neste momento, começamos a vivenciar a relação de afeto que grande parte da população itacareense tem com o rio das Contas e, também, considerando-o como um espaço geográfico com grande potencial turístico e de lazer para a região. Assim, decidimos entrevistar pessoas que moram próximas ao rio, desde a cidade de Itacaré (inclusive) até o distrito de Taboquinhas, trecho navegável do rio com, aproximadamente, 25 km de extensão. Este espaço do rio das Contas tem paisagens belíssimas e locais próprios à realização de atividades turísticas, a exemplo das corredeiras, do cânion, das cachoeiras em seus pequenos afluentes, da mata ciliar formada pela Mata Atlântica ainda conservada, das fazendas cacaueiras e do próprio leito do rio, aconchegante para um passeio fluvial de canoa. De acordo com a visão de Minayo (1994, p. 54), para obtermos êxito na pesquisa de campo, primeiramente, “devemos buscar uma aproximação com as pessoas da área selecionada para o estudo”. Nessa perspectiva, como já conhecíamos a cidade de Itacaré e algumas pessoas, foi fácil a aproximação para fazer as entrevistas neste local. Mas, para Taboquinhas, pedimos auxílio ao Instituto Floresta Viva (IFV), ONG que atua no município de Itacaré e, por intermédio da historiadora Sayonara, fomos apresentadas ao morador Jeferson (além de conhecer muito bem Taboquinhas, mantinha sólidos laços de respeito e de afetividade pelos moradores, os quais eram recíprocos), o qual nos conduziu pelo distrito, mostrando lugares e pessoas. Sem a participação deste itacareense, teria sido quase impossível fazer as entrevistas, pois, se para conhecermos um local levamos algum tempo, para os sujeitos desse local confiarem em quem não conhecem e abrirem seus corações, levariam um tempo maior ainda. E, para fazermos as entrevistas ao longo do rio, o IFV colaborou, novamente, recomendando- nos à Dona Otília, a qual conduziu-nos pelas águas do Contas, levando-nos às fazendas, ao restaurante e às Comunidades Quilombolas Rurais. Os critérios para a seleção dos sujeitos da pesquisa foram: a casualidade, seguida da condição de que falassem o que realmente pensavam e sentiam com relação ao rio das Contas, sendo espontâneos (sem artificialismos ou elementos ensaiados ou estudados; as entrevistas deveriam ser naturais, sinceras e verdadeiras). Também foi considerado o critério do voluntarismo (alguém que faz por si mesmo, sem ser incentivado ou constrangido por outrem; pessoa de livre vontade) mas, sempre, levando em conta o critério da intencionalidade, ou

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seja, de acordo com “o interesse do estudo e das condições de acesso e permanência no campo e disponibilidade dos sujeitos” (DENCKER, 2000, p. 102). Quanto ao número de sujeitos para a entrevista, os critérios adotados foram: diversificação e saturação de pessoas, o que nos levou a alcançarmos um grau suficiente de evidência qualitativa nas respostas dadas. A diversificação ocorreu pela escolha de pessoas de sexo, idade, escolaridade e ocupações diferentes (Tabelas 02 e 03) e a saturação foi considerada quando os sujeitos começaram a “dizer as mesmas coisas”, indicando o “esgotamento” do número de pessoas entrevistadas, porque segundo Marre (1991, p. 113) “[...] a partir de um certo número de entrevistas coletadas, as posteriores não acrescentam mais nada ao que as outras expressaram”. Dencker (2000, p. 102), refere-se ao “número satisfatório [de sujeitos] quando as informações novas vão se tornando cada vez mais raras, até deixarem de ser relevantes”. Também é necessário considerar que a qualidade das informações coletadas foi muito importante para a tomada de decisão quanto ao número dos sujeitos, pois, como a maioria das entrevistas foi longa, tornou-se possível identificar categorias que, posteriormente, seriam usadas para classificar as informações relevantes, fornecidas pelos sujeitos da pesquisa.

Tabela 2 – Distribuição dos sujeitos da pesquisa por faixa etária e sexo, em Itacaré-BA, 2007

Sexo (números absolutos) Faixa etária Total/ faixa etária (anos) Masculino Feminino (números absolutos) 10 a 20 04 01 05 21 a 30 02 04 06 31 a 40 02 02 04 41 a 50 05 03 08 51 a 60 08 02 10 61 a 70 03 04 07 71 a 80 - 01 01 Total/ sexo 24 17 41 sujeitos

Fonte: pesquisa de campo, Itacaré-BA, dez. 2007. Elaboração: CHIAPETTI, R. J. N., 2008.

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De acordo com a Tabela 2 os sujeitos da pesquisa têm entre 10 e 80 anos, sendo que o maior número de entrevistados tem entre 51 e 60 anos (10 ou 24,4 %), seguido pela faixa etária de 41 a 50 anos (08 ou 19,5 %) e 61 a 70 anos (07 ou 17 %). Quanto à idade, merece ser citado, que o sujeito mais novo participante da pesquisa foi um menino de 10 anos, que brincava no rio; e a pessoa mais velha foi uma mulher de 74 anos, que passeava pela sua margem, ambos moradores do distrito de Taboquinhas. Com relação ao sexo por faixa etária, participaram da pesquisa mais homens (24 ou 58,5 %) do que mulheres (17 ou 41,5 %), sendo que a maioria deles tem entre 51 e 60 anos (8 do sexo masculino). As mulheres estão mais bem distribuídas por faixa etária, sendo igual o número de participantes nas faixas etárias de 21 a 30 anos e 61 a 70 anos (04 mulheres em ambas). Enfim, podemos constatar uma boa variação do tipo dos sujeitos envolvidos, pois estão relativamente bem distribuídos entre as faixas etárias e sexo, o que leva a uma maior representatividade de sujeitos numa pesquisa qualitativa. A Tabela 3 mostra a distribuição dos sujeitos da pesquisa, considerando as variáveis ocupação e escolaridade. O maior número de sujeitos (08 ou 19,5 %) pertence a “outras” ocupações, as quais estão agrupadas porque só existe uma pessoa em cada atividade entre os sujeitos participantes da pesquisa: lavadeira de roupa, zeladora de igreja, aposentado, balseiro, empregada doméstica, pedreiro, canoeiro e proprietário de pousada. A segunda maior ocupação está distribuída igualmente entre os pescadores e os agricultores (06 em cada uma ou 14,6 %); e as demais ocupações estão representadas com 03 ou 02 sujeitos, como no caso dos instrutores de rafting e das recepcionistas de pousadas, respectivamente. Quanto à escolaridade, a maioria (22 sujeitos ou 53,6 %) tem o ensino fundamental incompleto, seguido pelo ensino fundamental completo e pelo analfabetismo, ambos com 06 sujeitos cada (14,6 %). Somente 05 sujeitos (12 %) têm o ensino médio completo: 02 são funcionários públicos, 01 trabalha na recepção de pousada, 01 não tem ocupação porque é um jovem que terminou o ensino médio e estava esperando para fazer o vestibular e 01 é pedreiro. Quando verificamos todas as ocupações dos sujeitos da pesquisa, de maneira geral, constatamos que são pessoas de pequeno poder aquisitivo, com exceção de duas mulheres que possuem curso superior e, por isso, têm atividades mais rentáveis: proprietária de fazenda cacaueira na beira do rio das Contas e diretora do ITI.

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Tabela 3 – Distribuição dos sujeitos da pesquisa por ocupação e escolaridade, em Itacaré-BA Ocupação Número de Número de sujeitos por escolaridade sujeitos Pescador(a) 06 04 com ensino fundamental incompleto e 02 analfabetos Agricultor(a) 06 02 com ensino fundamental completo, 03 com ensino fundamental incompleto e 01 analfabeto Instrutor de rafting 03 01 com ensino fundamental completo e 02 com ensino fundamental incompleto Marisqueira 03 02 com ensino fundamental incompleto e 01 analfabeto Guia turístico 02 01 com ensino fundamental completo e 01 com ensino fundamental incompleto Proprietário(a) de restaurante 02 Ensino fundamental incompleto na beira do rio das Contas Trabalhador de fazenda 02 Ensino fundamental incompleto cacaueira Proprietária de fazenda 02 Ensino superior completo cacaueira e Diretora do ITI Recepcionista de pousada 02 01 com ensino médio completo e 01 com ensino fundamental completo Funcionário Público 02 01 com ensino médio completo e 01 com ensino fundamental completo Sem ocupação 03 01 com ensino médio completo e 02 com ensino fundamental incompleto Outras 08 02 com ensino médio completo, 01 com ensino fundamental completo, 03 com ensino fundamental incompleto e 02 analfabetos Total 41 sujeitos Fonte: pesquisa de campo, Itacaré-BA, dez. 2007. Elaboração: CHIAPETTI, R. J. N., 2008.

Ao iniciarmos as entrevistas fizemos sempre uma primeira questão, com o objetivo de colher os dados pessoais dos sujeitos da pesquisa, perguntando sobre as seguintes variáveis: sexo, idade, ocupação e escolaridade. Na continuidade, com a intenção de obtermos uma narrativa espontânea nas respostas, explicamos o objetivo da nossa pesquisa e pedimos para que falassem sobre o rio. Este processo do pensar das pessoas tornou-se um meio de explorar os significados subjetivos das suas experiências vividas no lugar e permitiu-nos considerar as razões que os levaram a pensar e sentir o rio das Contas, de determinada maneira. Quando este modo de começar a entrevista não dava certo, fazíamos uma segunda questão para que os sujeitos começassem a falar sobre sua percepção com relação ao rio: o que é o rio das Contas para você? Se ainda, nem assim eles entendiam a pergunta, 137

mudávamos a maneira de perguntar para: o que significa o rio das Contas para você? Dessa maneira, todas as entrevistas foram sendo feitas, sem problemas, a não ser por interrompimentos que aconteceram, muitas vezes, devido a questões pessoais dos entrevistados. Na condução das entrevistas lembramos de Bourdieu (1996), o qual chama a atenção para o cuidado na relação pesquisador/participante, para que evitemos e/ou fiquemos atentos para a possibilidade de uma criação artificial de sentido do relato oral. Atentas a isso, tomamos cuidado para não conduzir as entrevistas de modo que os sujeitos falassem o que queríamos ou o que precisávamos ouvir. E, assim, levando em consideração os critérios já descritos, fomos ouvindo (e gravando) os itacareenses voluntários falarem sobre o que sentem com relação ao o rio das Contas. Mas, algumas vezes, foi necessário intervirmos com mais perguntas do tipo: o que mais gosta e o que menos gosta no rio? Se fechar os olhos e pensar no rio, o que sente? Contudo, muitas vezes, as respostas dadas a estas questões acabaram sendo as únicas informações levantadas. Também, aproveitamos o momento das entrevistas para observar, olhando geograficamente a cidade de Itacaré, o distrito de Taboquinhas e as margens ao longo do rio das Contas e, ainda, para registrar, através de fotografias, as belíssimas paisagens desses locais. Importante expor que tivemos alguns cuidados necessários na aplicação das entrevistas, pois, ao abordar as pessoas para perguntar se queriam participar, sempre explicamos sobre a sua finalidade e que suas falas seriam imprescindíveis para que a pesquisa pudesse ser desenvolvida. Também, perguntamos se as entrevistas poderiam ser gravadas, apenas para que não perdêssemos nada dos seus conteúdos ou nenhum detalhe das narrativas. Ao mesmo tempo, explicamos que as entrevistas seriam transcritas da forma como foram narradas e, depois, seriam digitadas e, posteriormente, utilizadas como principal fonte de informação no desenvolvimento de uma tese de doutorado. Todas as pessoas que participaram não colocaram nenhum empecilho, ao contrário, foram muito solícitas, inclusive, até não se opondo a citar seus nomes, se assim quiséssemos. Finalmente, a nossa presença em Itacaré para fazer pessoalmente as entrevistas foi importante para a pesquisa, porque pudemos conhecer melhor o lugar-rio das Contas e captar como os sujeitos agiam no instante da entrevista, como: gestos, olhares, atitudes, aparência física, entonação da voz, etc., o que muito contribuiu para a qualidade das informações coletadas. Segundo Chizotti (1991), a imersão do pesquisador nas circunstâncias e contexto

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da pesquisa é fundamental, pois ele vivencia o momento: mergulha nos sentidos e emoções, reconhece as pessoas entrevistadas como sujeitos que produzem conhecimentos e, ainda, constata que as informações colhidas são fruto de um trabalho coletivo, resultante da dinâmica entre pesquisador e pesquisado.

Preparação do material coletado

Depois de passada a etapa de coleta das informações nos três locais da pesquisa, a transcrição das entrevistas foi a etapa mais delicada da aplicação do método da história oral, pois transcrevê-las não foi uma tarefa fácil, porque demandou de muito tempo, atenção e cuidado, para não deixar nenhum detalhe de fora. Assim, primeiro salvamos em um computador todas as entrevistas gravadas e, depois, fomos ouvindo-as e transcrevendo-as em um papel, da maneira como foram faladas. A principal preocupação, neste momento, foi somente com a transcrição das entrevistas, sem considerar pontuação ou ortografia corretas. Também, não nos preocupamos em “limpar o texto”, incluindo, assim, palavras repetidas, vícios de linguagem, entre outros aspectos. Em seguida, digitamos as entrevistas e, na etapa seguinte, fizemos a chamada “limpeza do texto”, corrigindo-os e pontuando-os para lhes dar forma adequada, sem modificar os seus conteúdos e tomando cuidado para não alterar as falas das pessoas. Quanto à observação, fizemos anotações em papel sobre as diversas situações, fatos, pessoas, gestos, cheiros, etc., logo após terminarmos de fazer as entrevistas em cada um dos três locais pesquisados. Depois, estas anotações foram digitadas e guardadas em arquivos de um computador, para serem utilizadas posteriormente. O mesmo aconteceu com as fotografias tiradas no momento das observações, as quais foram transferidas da câmara fotográfica para um computador. Desta forma, todo o material coletado na pesquisa de campo ficou pronto, para ser utilizado como resultado da pesquisa.

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O rio das Contas... das pessoas de Itacaré

O rio de Contas é um véu Que cobre toda a região As águas eram cristalinas Vindas do alto sertão Recebendo no seu leito Riachos e até ribeirão (NOGUEIRA, 2009, p. 20).

O percurso do rio das Contas transforma-o em diferentes rios, tanto na questão hidrológica (dinâmica fluvial ou trabalho de sua correnteza, por exemplo), como nas suas condições existenciais (volume de água ou o relevo que o acolhe), como também na questão dos seus diferentes usos, por muitas pessoas, em todo o seu espaço geográfico. Mas, nesta parte do trabalho nos ateremos ao significado do rio das Contas, somente para as pessoas do município de Itacaré, referindo-nos aos resultados da pesquisa de campo. Vamos interpretar o que estas pessoas sentem com relação a ele, da mesma forma que devemos “interpretar” a água de um rio nos diferentes períodos climáticos, em cada curva, em cada banco de areia, na presença da maré (se o rio desaguar no mar) etc., para conhecê-lo... ou, simplesmente, para podermos navegar por ele. Um trabalho primoroso sobre o mundo dos sentimentos humanos é o “Atlas da Experiência Humana” de Swaaij e Klare (2004, p. 10), o qual:

Apresenta diversas dimensões do ser humano, sendo que cada um dos lugares e “acidentes geográficos” recebe o nome de ações, reações, emoções, dúvidas, medos, prazeres e decisões. Este Atlas oferece, assim, novas formas simbólicas de nos descrevermos para nós mesmos, de nos situarmos na mais significativa das viagens, a viagem da experiência pelas terras imaginárias. De agora em diante, a paisagem da vivência pode deixar de ser território desconhecido.

Acompanhados por mapas de um mundo imaginário, os textos desta obra são sobre o sentido da existência humana, expressando as relações que temos com o nosso espaço geográfico. Os mapas representam a cartografia do nosso mundo interior ou, como escreve Oliveira (2006, p. 37), “a representação cognitiva do nosso mundo interior” e, porque não, a Geografia dos nossos lugares ou, ainda, “a Geografia Sentimental de nossas emoções”. Citando, ainda, Oliveira (2006, p. 47), “esperamos que cada um [dos sujeitos da nossa pesquisa] trace seus mapas interiores, procurando suas emoções, seus sentimentos e suas razões, ligando pontos [ao rio das Contas] e construindo pontes [entre eles e o rio], revelando a cartografia do seu mundo interior [com relação ao rio]”. 140

O rio das Contas, como qualquer outro rio, pode ter diferentes significados ou ser usado de diferentes maneiras pelas pessoas. Os autores Barbosa, Paula e Monte-Mór (1997, p. 262) consideram que “tomar o rio como testemunho, como síntese, é abrir-se para a multiplicidade dos seus papéis e registros. São vários os rios, como são várias as formas de sua apropriação simbólica e material”. Estes autores relacionam os seguintes rios:

“a . O rio dos viajantes - a visão do estrangeiro; dos viajantes que o percorrem no século XIX” (p. 262).

Na exploração do interior do Brasil, os rios foram os caminhos preferidos pelos portugueses. Desde os tempos da divisão do território em capitanias hereditárias, eles já tinham interesse em adentrar para o interior do continente, onde o terreno era indeterminado e podiam ampliar seus domínios. Para tanto, essas vias aquáticas asseguravam as necessidades mais básicas à sua sobrevivência: a água e o alimento. Podiam, ainda, ajudar na proteção contra os inimigos, bem como eram veículos seguros de penetração para dominação do território, pois margeando um rio não há meio de uma pessoa se perder. Para Leonardi (1999, p. 15) “isso é particularmente válido para o período colonial e para o século XIX, quando nenhuma grande estrada havia sido construída ainda [...] nessa região”. “Espaço e tempo estão indissoluvelmente ligados” (HOLZER, 2000, p. 121) e, nesse caso, a memória sobre as toponímias do espaço geográfico, em qualquer tempo, “podem nos fornecer informações preciosas sobre as intenções e ações do homem sobre o ambiente. [...] As toponímias são a memória do que foi esquecido, e podem ser decodificadas”. Nesse sentido, o rio das Contas carrega em sua memória as marcas que os portugueses imprimiram na sua paisagem, transformando-o em uma via aquática para a colonização, para o transporte do ouro vindo do interior do continente e enviado à metrópole e, conseqüentemente, para o roubo deste ouro por piratas europeus, além de servir ao transporte dos escravos trazidos do continente africano para trabalhar na exploração deste minério. Com o passar do tempo, o modo de vida das populações indígena e negra, usadas nas lavouras da cana-de-açúcar e, depois, nas plantações do cacau, também deixou marcas no espaço geográfico do rio das Contas, a exemplo das Comunidades Remanescentes de Quilombos das suas margens. E, assim, sucessivamente, pois o rio traz na sua memória o que pode ser esquecido pelos homens mas, que está marcado na sua paisagem e, por isso, pode ser visto por viajantes, por estrangeiros, etc.

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“b . O rio do antropólogo - a visão e o imaginário das populações ribeirinhas sobre o rio” (p. 262).

Os rios são ambientes de encantamentos, lendas, mitos e imaginários culturais e simbólicos para as populações ribeirinhas. Segundo Fraxe (2004, p. 345), “o mundo das águas adquire um sentido e se humaniza como vetor da relação entre o homem e o mundo. O homem passa a ver o não visto. O invisível é o visível”. Assim o é para os pescadores, homens ribeirinhos do rio das Contas, pois vêem o invisível que brota das águas. Num instante devaneante são fascinados por um brilho que lhes ofusca e ao mesmo tempo lhes atrai o olhar, é a Biatatá ou uma luz forte ou, ainda, uma tocha de fogo que aparece para esses pescadores, sempre com muita claridade! Para a mesma autora, a luz é um componente essencial das lendas nos rios, “símbolo ou metáfora, sempre brilha em todas as culturas como transcendência, reflexo da divindade, sinal do saber, manifestação da beleza” (p. 345). A luz, no escuro dos rios e da floresta, pode ser uma demonstração do poder do imaginário, querendo transformar-se no real, pois a luz dá forma aos seres, produzindo fascínio, encantamento, contemplação... capaz de atrair as pessoas que a olham e até levá-las à morte. As visagens são as imagens concretas do devaneio deslizando sobre o rio... outra realidade!

“c . O rio da literatura - o rio apropriado pela ficção e pela poesia” (p. 262).

O Soneto do amor como um rio, escrito por Vinícius de Moraes (em Montevidéu, 1959), é um exemplo perfeito do rio apropriado pela poesia.

Soneto do amor como um rio (Autor: Vinícius de Moraes)

Este infinito amor de um ano faz Que é maior do que o tempo e do que tudo Este amor meu é como um rio; um rio Este amor que é real, e que, contudo Noturno, interminável e tardio Eu já não cria que existisse mais. A deslizar macio pelo ermo...

Este amor que surgiu inesperado E que em seu curso sideral me leva E que dentro do drama fez-se em paz Iluminado de paixão na treva Este amor que é o túmulo onde jaz Para o espaço sem fim de um mar sem termo... Meu corpo para sempre sepultado.

Fonte: MORAES, V. (1967, p. 25).

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O poeta constrói o curso do rio do amor, tendo o rio como principal metáfora, pois um amor inesperado é como o surgimento de algo inesperado na curva de um rio ou, mesmo, a própria curva do rio. Quando o verdadeiro amor começa, continua sempre fluindo... como um rio, mas um rio sombrio... noturno... que dá medo, assim como o amor que prende (como um túmulo prende um corpo). Um rio corre sempre para algum lugar: para outro rio, para um lago ou para o mar, o qual com suas águas violentas o domina, assim como o amor de uma mulher pode dominar o homem (usando a metáfora da mulher amada). Vinícius de Moraes continua fazendo a relação do rio com o processo de amar. Um amor imenso, carnal, conduzido suavemente pelas águas de um grande rio, deslizando macio a perder de vista, como um grande rio escuro, interminável mas, experiente em seu curso, pois sabe que vai se entregar a um espaço sem fim (mar), assim como um amor que não se acaba jamais... Quanto ao rio das Contas, apropriado pela poesia, queremos registrar a poesia de Pedro Novaes: História do rio de Contas de Lino Goiano que, entre outras coisas, possui um tom memorialístico e nostálgico, na medida em que procura reconstituir, através da linguagem poética, os tempos idos e vividos no rio das Contas, em Jequié. Esta poesia segue uma estrutura muito próxima a das epopéias: trata-se de uma narrativa em verso, que canta os feitos gloriosos, heróicos, de um povo. Ela começa com a Proposição, apresentando o assunto: rio das Contas querido. O poeta não faz o que, classicamente, é chamado de Invocação (em que o autor pode solicitar aos seus deuses que o auxiliem na tarefa que tem a realizar, que é escrever o poema), pois vai direto à Dedicatória ou Oferecimento. Depois de várias estrofes tratando disto, segue com a Narração, a história, propriamente dita, a qual fala da dispersão dos “heróis” que, por causa da barragem, tiveram que ir pra cidade. Registra grandes feitos de homens simples, bravos, fortes, sobrevivendo num espaço em que tudo está ao olhar de todos, que se conhecem, que compartilham dos mesmos desejos e anseios. Em seguida, no que poderia ser considerado o Epílogo, ele segue se despedindo das pessoas, com a mesma saudade com que começou a narrativa, no mesmo tom nostálgico e melancólico.

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História do rio de Contas de Lino Goiano (Autor: Pedro Novaes)

Meu rio de Contas querido, A barragem destruiu todas Quando eu falo do rio de eu dedico esta mensagem, as propriedades da beira do rio Contas, recordo as velhas para todos os meus amigos, de Contas, deixando grande moradoras, quantas casas tão aos Costas, Limas e Moreiras, saudade, para aqueles poucos bonitas, que foram Ribeiros Pires e Novaes, ei amigos, que foram embora para desmoronadas, e acabou os a cidade, ei Juazeiros, e os umbus doces da E também para Zé Borges, baixada, ei Joaquim Zeca e Adão, De Brumado a Jequié, Freris e Franças em Santa Rita, não se vê mais um Tropero, Na margem do rio de Contas, Sena de Melo no Fondão, ninguém mais anda a pé, eu nasci e fui criado, Toda família Pereira, tocando um burro cargueiro, o leito daquele rio, da Barra do Corderão, ei acabou toda o pedestre, foi o meu berço adorado, e as pousadas dos romeiros, ei hoje eu sinto saudade, Os Aleixos em Santa Clara, e lembranças do passado, ei Tenente Dermiro no viado, Quando passo na Empueira, que foi homem de dinheiro, me aperta o coração, Conhecido em toda região, e criador de muito gado, olhando vejo as pedreiras, O meu pai foi Zé e de Né, morreu mas deixou seu nome, me lembrei de Damião, Eu falo com dedicação, nestes meus versos rimados, ei quantas onças verdadeiras, Baiano de Jequié morreram em suas mãos, ei e eu sou o Lino Goiano, Os filhos do seu Dermiro, o poeta do Sertão, ei na terra foi ouro em pó, A represa foi muito boa, Luminato e Minelgido, para o povo do sertão, Para fazer moda caipira, João Ribeiro e seu Majó, no lugar que faltava chuva, Deus me deu este destino, todos foram fazendeiros, se faz grande plantação, já fiz moda de viola, lá na mata do cipó, ei de melancia e tomate, Pra Menades e Ugulino, quiabo e pimentão, ei Estes versos eu fiz agora, A grande família Aguiar, Pra Velgila e Urandino, ei Cândidos Lagos e Bonfim, Eu conheci as grandes enchentes, os Barbos em Monte Branco, Do rio de Contas afamado, Eu vou mandar um forte Olavo Dacio e Lipinho, quando Enedino e Antonhão, abraço, para o povo de Porta o nosso saudoso Rozalve, nadavam de lado a lado, Alegre, seu Olicio e Dermirinho, ei porém nas secas do rio de Contas, Deste velho trovador, já foi maiador de gado, ei que foi vereador de Jesus, Lá na lagoa do Pedro, hoje os versos que eu faço, ainda mora Sinhozinho, Lá na pedra de São José, só repentista consegue, ei irmão de Lidio e Lindolfo, eu fico horas observando, do lindo e também do Tim, as águas do rio de Contas, A história do rio de Contas, todos sendo meus amigos, e os botes navegando, veja só como eu termino, e filho do seu Tadim, ei a maré batendo forte falei do rio do cangaço, que parece o Oceano, ei me lembrei de Enedino, Eu tenho tudo decorado, e o homem peito de aço, Pra falar de Antonio Silvino, que foi o Capitão Silvino. Oraço d’Duca Medrado Macionilo e Trangulino, Cauaçu e Zezinho dos laços, e o famoso Vergulino, ei

(Sem fonte).

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Outro exemplo de um rio apropriado pela literatura é o poema Rio de Contas, escrito por Otília Maria Nogueira, no seu livro: Itacaré - cancioneiro histórico-geográfico de sua gente (ver capítulo 2 deste trabalho). A autora faz uma viagem fluvial sobre o dorso macio e ondulante do Contas, reavivando sua memória e contando sua história (a do rio) e a história das pessoas do rio, em forma de literatura de cordel. Ela escreveu o poema como uma forma de demonstrar seu profundo afeto pelo rio que vivencia e experiencia cotidianamente, o seu rio-lugar!

“d . O rio do geógrafo - o rio e sua região; o rio e sua bacia de drenagem” (p. 262).

A nascente de um rio pode ser num vertedouro ou num lago, mas um rio termina sempre numa foz, fazendo confluência com outro rio, ou desaguando num lago ou no mar. Os rios que correm para um rio maior são seus afluentes e fazem parte da sua rede hidrográfica, formando a sua bacia de drenagem. Uma bacia de drenagem ou bacia hidrográfica é uma região dividida por morros (divisores d’água), cuja área é drenada por córregos, riachos e rios. O conceito de bacia hidrográfica em sua acepção geográfica é: sistema terrestre e aquático, geograficamente definido, composto pelos sistemas físico, econômico e social. Desde o final da década de 1960, a bacia hidrográfica já era reconhecida como uma unidade espacial de análise na Geografia Física, mas somente nos anos 1990 é que foi incorporada pelos profissionais das chamadas ciências ambientais. Segundo Botelho e Silva (2004), como uma unidade ou célula básica de análise ambiental, uma bacia hidrográfica pode proporcionar o conhecimento, a avaliação, os processos e as interações dos seus diversos elementos. Uma bacia hidrográfica de um rio tem considerável mérito enquanto unidade de análise geográfica, dada a interação entre a rede de drenagem, a geologia, a geomorfologia, o solo, o clima, a vegetação e o uso da terra pelo homem, pois a maioria dos efeitos físicos de relevância e das interações de ecossistemas está presente dentro deste sistema definido por um “divisor de águas”. Assim, ações que visam à conservação, estudo, planejamento, ocupação pelo homem, etc, devem considerar o conjunto das atividades em toda a área da bacia de drenagem e não apenas àquelas restritas aos corpos d’água, ou seja, aos rios. A bacia hidrográfica torna-se, portanto, uma unidade espacial-territorial facilitadora de ações, no sentido de recuperar os ecossistemas e controlar os efeitos dos usos inadequados pelos seres humanos.

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Num estudo voltado para a Geografia Humana, o espaço geográfico de uma bacia hidrográfica pode ser uma área delimitada para investigarmos sobre as atividades humanas e suas correlações com o meio, uma vez que ela integra os processos naturais, sociais, culturais, econômicos e políticos. Com relação, especificamente, ao rio das Contas e sua bacia hidrográfica, lembramos que o primeiro capítulo deste trabalho está totalmente voltado para este assunto.

“e . O rio do historiador - o rio e as transformações de seus usos e perspectivas ao longo do tempo” (p. 262).

Para um historiador que estuda uma região banhada por um rio, em certo sentido, é difícil não incorporar à noção de tempo (da história), “uma dimensão muito mais ampla que tem a ver com o tempo geológico, no qual transcorreu a história do processo de formação do vale desse rio, bem como da flora e fauna correspondentes” (LEONARDI, 1999, p. 15). Mas, em estudos como este, os historiadores são comumente criticados quanto à noção de movimento (continuidade/descontinuidade) ao longo da história, principalmente em regiões de populações extintas, como no caso dos indígenas. Leonardi (1999) diz ainda que é possível envolver variáveis ambientais ao estudo das sociedades humanas que habitaram o vale de um rio, aproximando, assim, a história ambiental da história social, pois na realidade a sociedade nunca esteve separada da natureza. Exemplos desses estudos podem ser as Comunidades Quilombolas Rurais que se localizam nas margens direita e esquerda do rio das Contas no município de Itacaré, provenientes da miscigenação e da descendência de negros fugitivos e/ou ex-escravos e de indígenas que viviam na região em tempos passados. Segundo a Fundação Cultural Palmares (FCP, 2009), Comunidades Remanescentes Quilombolas Rurais são todas comunidades negras rurais, nas quais as pessoas descendem de escravos e, cuja produção é utilizada para a subsistência das famílias. Vivem em espaços constituídos como área de resistência, em que as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado. Estas comunidades são caracterizadas como minorias sociais, ou seja, grupos marginalizados pela sua representatividade numérica, acessibilidade aos mecanismos de poder e diversidade étnica. Historicamente, muitos negros que fugiam do trabalho escravo ou já eram alforriados, aprendiam com os indígenas a sobreviver nas matas e nas águas dos rios. Através da troca cultural e da observação do habitat indígena, a população negra tinha um modo de vida de

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acordo com os recursos naturais disponíveis localmente, vivendo da caça, da pesca e das roças de subsistência. Hoje, os quilombolas do rio das Contas preservam esse mesmo modo de vida fundamentado nas atividades cotidianas praticadas coletivamente por seus antepassados, produzindo baixo impacto ambiental. Vivem da pequena produção cacaueira ou “roça de cacau” e da pesca. Alguns quilombolas têm empregos (com baixos salários) na cidade de Itacaré, mas o fazem apenas para sobreviver. Estas comunidades negras vêm lutando, há algum tempo, para obter seus direitos quanto à demarcação dos seus territórios em terras que eram de seus antepassados, nas margens desse grande rio.

“f . O rio do economista - o papel econômico do rio; seus potenciais como meio de transporte (inclusive de dejetos), fonte de energia, fonte de alimentos, supridor de água” (p. 262).

Um rio tem muitos usos como um recurso econômico, pois oferece água (a ser tratada) para o abastecimento humano nas cidades; água para os agricultores matarem a sede dos seus rebanhos e para irrigarem suas plantações; a força das águas de um rio pode ser usada para a produção de energia (desde a roda d’água até turbinas elétricas), para transportar pessoas, alimentos, mercadorias e até dejetos e, ainda, um grande rio pode abrigar portos fluviais. Como recurso econômico, um rio pode servir, também, às atividades pesqueira e turística. Quanto ao rio das Contas, especificamente, voltemo-nos à atividade turística, referindo-nos aos pequenos barcos de passeio ou canoas, que deslizam sobre seu leito, em Itacaré, levando pessoas para apreciar suas margens conservadas pela lavoura cacaueira, plantada sob a Mata Atlântica, ou para conhecer uma fazenda de cacau ou, somente, para contemplar as belas paisagens ao longo do seu percurso ou, ainda, simplesmente, para curtir o rio. Também, as empresas de turismo de Itacaré vendem passeios pelo rio das Contas (turismo de aventura) com o objetivo de oferecer, às pessoas que os compram, banhos e rapel em cachoeiras de seus pequenos afluentes; tirolesa ou vôo sobre suas águas calmas e azuis; e ainda rafting em suas corredeiras, próximas ao distrito de Taboquinhas.

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“g . O rio do hidrólogo e do biólogo - as características físico-químicas e a realidade biótica do rio” (p. 262).

Segundo Barbosa, Paula e Monte-Mór (1997, p. 263), a análise físico-química da água de um rio nos “fornece uma visão estática, um retrato momentâneo da drenagem da sua bacia, expressa em índices e medidas de elementos físico-químicos” [...], enquanto que a análise da biodiversidade encontrada na água dos rios nos “permite identificar processos mais permanentes, na medida em que a sobrevivência e/ou o desenvolvimento de certos organismos vivos refletem as condições ambientais presentes no seu leito em períodos mais dilatados”. O estudo realizado por Maia et al. (2007) em julho de 2006, no estuário do rio das Contas em Itacaré, visando analisar a sua dinâmica hidrológica, constatou que as velocidades de corrente apresentam dominância do fluxo de vazante em relação à maré de enchente. As velocidades mais intensas ocorrem nas proximidades da região da barra do estuário do rio, chegando a 0,81 m/s, ou seja, o estuário inferior apresentou as maiores velocidades de fluxo e as maiores vazões, mostrando um forte domínio fluvial na região estudada. Os autores concluíram que as velocidades médias de corrente no estuário inferior do rio das Contas são superiores às observadas no estuário médio e superior e, que, os fluxos de vazante são superiores aos fluxos de enchente, nos três locais do estuário. A variação das vazões no estuário do rio foi de 12,9 a 607,8 m3/s, apresentando valores médios de 259,8 m3/s. Quanto à realidade biótica do rio das Contas, como exemplo, consultamos um estudo feito pelo CRA/BA em 2001, o qual constatou que a concentração de fosfato na sua água (em pontos amostrais ao longo do leito do rio) era bem maior do que a permitida pela Resolução nº 20/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e, que, a maior concentração encontrava-se próxima à zona urbana de Jequié. “Este resultado indica contribuição de carga orgânica nos trechos avaliados, associados ao despejo de esgotos, tendo em vista a utilização deste corpo hídrico para este fim” (CRA/BA, 2001, p. 314). Considerando todo o percurso do rio das Contas (neste mesmo estudo), somente nas proximidades da cidade de Jequié o índice de oxigênio na água foi menor do que o recomendado (provavelmente pelo mesmo motivo, ou seja, despejo de esgoto) e, assim, aconteceu com todos os índices medidos para avaliar a qualidade da água do rio. Importante registrar que nos demais pontos amostrais do rio das Contas, sua água apresentou boa qualidade.

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“h . O rio legal - legislação, políticas e fiscalização de seus usos” (p. 262).

A Resolução do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CONERH) nº 13, de 03 de julho de 2006 aprovou a proposta de instituição do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio de Contas (CBHRC). O CONERH é a instância colegiada de caráter deliberativo e de representação, no âmbito estadual da Política Estadual de Recursos Hídricos, pertencente à Secretaria do Meio Ambiente da Bahia (SEMA/BA, 2009). O CONERH, no uso das competências que lhe foram conferidas pelas Leis nº 8.194, de 21 de janeiro de 2002 e nº 9.843, de 27 de dezembro de 2005 - considerando que a BH do Rio das Contas é a maior bacia totalmente inserida no estado da Bahia, equivalente a 10,2 % do território baiano, considerando o resultado da análise pela Câmara Técnica de Assuntos Institucionais e Legais (CTIL), deste Conselho e, ainda, considerando que a proposta de instituição do CBHRC será submetida à avaliação e aprovação do Plenário do CONERH em reunião própria - resolveu: Art. 1º - Aprovar ad referendum a proposta de instituição do CBHRC, conforme disposto no processo nº 1420060022251/06. Contudo, foi somente com a Resolução nº 20, de 23 de agosto de 2007, que foi aprovada a regularização do processo de instituição do CBHRC pelo CONERH (no uso das suas competências que lhe foram conferidas pela Lei nº 10.432, de 20 de dezembro de 2006). O CONERH assim resolveu: Art. 1º - Instituir o prazo para a formação do CBHRC por oito meses, solicitado em pedido constante do processo nº 1006060032469/06. No entanto, o CBHRC foi realmente criado sob o Decreto nº 11.245, de 17 de outubro de 2008, ficando vinculado ao CONERH. Assim, o CBHRC integra 86 municípios baianos e mais de 1,2 milhão de pessoas, atuando como parceiro do Estado na gestão das águas da Bahia e está situado na Região de Planejamento e Gestão das Águas II (RPGA). A competência do CBHRC é de elaborar, aprovar e implementar o Plano Diretor da Bacia, deliberar sobre as outorgas de uso das águas, arbitrar (em primeira instância) os conflitos entre os usuários, definir sobre as prioridades de aplicação de recursos para a revitalização da bacia e promover e apoiar iniciativas em educação ambiental. Em sua composição estão representantes do poder público, de povos indígenas, da sociedade civil (ONGs e comunidades) e dos usuários da água, seja para abastecimento humano, irrigação, energia elétrica, navegação, lazer, turismo ou pesca.

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“i . O rio da população - espaço de lazer, trabalho, fonte de alimento, meio de transporte” (p. 262).

Para muitas populações ribeirinhas o rio é a rua, a estrada, o meio de transporte, a fonte de alimentação, o local de trabalho e o espaço de lazer, a exemplo das Comunidades Quilombolas Rurais de Itacaré, localizadas ao longo das margens do rio das Contas. Como espaço de lazer em Itacaré, o rio das Contas é usado pelos moradores e pelos turistas em passeios de canoas ou barcos, é usado também como um espaço para as crianças brincarem ou jogarem bola na areia das suas margens, etc. Este mesmo rio da população itacareense torna-se o espaço do trabalho para os condutores de canoas e de barcos, para os trabalhadores da Balsa Rio de Contas II, como também, para aqueles que vivem da atividade pesqueira. O rio das Contas ainda serve de raia para a prática de esportes, como a canoagem e a natação.

“j . O rio do arqueólogo - as escavações dos depósitos produzidos pelas ações do rio, datações e inventário de utensílios e modos de trabalho e vida do passado” (p. 263).

Segundo Paula (2009), é muito comum serem encontrados sítios arqueológicos em escavações feitas próximas a rios, geralmente, em terraços fluviais que eram utilizados, de forma temporária ou fixa, por grupos de caçadores/coletores e de agricultores/ceramistas, os quais necessitavam de água e de alimento para sobreviver. Nesses sítios arqueológicos podem ser encontrados materiais utilizados por antigas populações que viviam no local, como peças de ossos faunísticos, esqueletos, ossos humanos, dentes, cerâmicas, material lítico, blocos de fogueiras, etc. Segundo o arqueólogo Carlos Costa (2007), do Museu de Arqueologia da Universidade Federal da Bahia, foram encontrados sítios arqueológicos nas duas margens do rio das Contas, próximo ao local da construção da ponte da rodovia BA 001, ligando Itacaré a Maraú. Para os arqueólogos responsáveis por estes sítios, os materiais encontrados datam de um período entre os séculos XVII e XX, sendo que estão em poder do referido Museu para análise. A comunidade de Itacaré reivindicou os materiais arqueológicos encontrados nas margens do rio das Contas, já que são provenientes de sítios arqueológicos, localizados dentro do território municipal. Segundo o Museu, todo este material poderá ser enviado para Itacaré, desde que haja uma instituição preparada para prover a guarda, manutenção e dar destino

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social a ele, pois precisa ser catalogado, necessita de cuidados especializados para acomodação e deve estar disponível à visitação da população.

“k . O rio possível - políticas e medidas capazes de melhorar a qualidade do rio e a qualidade de vida” (p. 263).

A possibilidade de existirem rios com água de qualidade e, conseqüentemente, qualidade de vida para quem a usa, depende do cumprimento de políticas públicas eficazes com relação aos recursos hídricos, a exemplo da criação de uma Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE) na região da nascente do rio das Contas. A ARIE é uma área, em geral, de pequena extensão, com pouca ou nenhuma ocupação humana, com características naturais extraordinárias ou que abriga exemplares raros da biota regional, e tem como objetivos manter os ecossistemas naturais de importância regional ou local e regular o uso admissível dessas áreas, de modo a compatibilizá-las com os objetivos de conservação da natureza (SEMA/BA, 2009). A ARIE da Nascente do Rio de Contas foi criada pelo Decreto Estadual nº 7.968, de 05 de junho de 2001. Abrange 4.771 ha dos municípios de Abaíra e Piatã, nas áreas de altitudes mais elevadas (acima de 1.600 m). Sua criação foi vinculada à necessidade de: 1) estabelecimento das áreas protegidas, com vistas a compatibilizar a conservação da natureza com o uso de parcela dos seus recursos naturais; 2) contribuir para a preservação e a restauração da diversidade de ecossistemas naturais; e 3) proteção de paisagens naturais pouco alteradas e de notável beleza cênica, como é o caso da área da nascente do rio das Contas, elemento hídrico considerado de excepcional valor ambiental para o Estado. Outro exemplo que diz respeito ao “rio possível” é a iniciativa do Grupo Ecológico Humanista PAPAMEL (www.papamel.org.br, 2009). Uma entidade civil, sem fins lucrativos, aberta a todas as pessoas de qualquer idade, raça, sexo, religião, partidos políticos, etc., que comunguem de ideais ambientalistas e humanitários e de seus objetivos estatutários. O PAPAMEL atua em várias áreas ambientais, mas concentra sua ação na área da BH do rio das Contas, com projetos voltados à recuperação do meio ambiente degradado dentro da bacia. Mais especificamente com relação aos rios, o PAPAMEL tem um programa chamado “Adote um rio” lançado em 1996, que tem como objetivo, a recuperação e a preservação do rio das Contas e seus afluentes, através de ações práticas e teóricas, dentro dos princípios da educação ambiental, tais como: 1) plantios de mata ciliar; 2) mutirões de limpeza dos rios; 3) ministrar cursos e oficinas; 4) organização de seminários, de gincanas, de festivais de teatro,

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de música e de poesias; 5) publicações de livros e CDs; 6) incentivar e organizar atividades esportivas diretamente ligadas aos rios, tais como: torneios de futebol de areia, frescobol, vôlei de areia, canoagem, corrida de canoas e bóias, maratona rústica, dentre outras; e, 7) promoção de ações de sensibilização das autoridades e das empresas, para a implantação de sistemas de esgotamento sanitário e de tratamento de efluentes nas cidades. Como principais resultados, o programa “Adote um rio” visa obter: 1) a recuperação de uma extensão de 30 mil km de matas ciliares na BH do rio das Contas; 2) o retorno de práticas culturais e esportivas por crianças e jovens nas areias das margens dos rios, além da prática de esportes fluviais; 3) o resgate de uma relação saudável entre comunidades ribeirinhas e seus rios; 4) a melhoria da qualidade e da oferta de água na BH do rio das Contas; 5) a diminuição do assoreamento do leito do rio das Contas e de seus afluentes; etc.

“l . O rio-síntese - o rio como registro do passado e do presente e como indicador da qualidade de vida e da biodiversidade” (p. 263).

As margens de um rio podem registrar sua vida passada e a vida das populações que habitaram a região em outras épocas. Através da investigação arqueológica é possível detectar a existência de populações pré-históricas e/ou antigas e analisar de que forma utilizavam o rio, de que viviam, enfim, seu modo de vida, etc. O registro da fauna de peixes, realizado por pesquisadores no passado, também é uma forma de avaliação das mudanças ocorridas num rio, pois espécies registradas antigamente e não capturadas no presente (usando o mesmo método de amostragem) podem indicar processos de degradação ambiental na sua bacia de drenagem. Em geral, uma água rica em vida aquática é uma água saudável. Para Branco (s.d., p. 103-104), “a presença de peixes, de algas, de larvas de libélulas, de crustáceos e de conchas constitui sempre o sinal mais positivo de que o rio se apresenta em ótimas condições ecológicas [...]”. Para avaliar estas condições, é importante conhecermos a concentração de clorofila no rio, pois ela indica a concentração de algas e o grau de eutrofização existentes em sua água. Este mesmo autor define a clorofila como: “uma substância verde que existe em todos os vegetais que fazem fotossíntese, inclusive nas algas microscópicas que habitam os rios” (p. 104). As algas, através da fotossíntese, produzem oxigênio e alimento orgânico, que são essenciais para a existência de outros seres vivos na água dos rios. Quanto ao rio das Contas, de acordo com a SEMA/BA (2009), pela qualidade de suas águas o rio pertence à classe 2 (CONAMA, Resolução nº 357, de 17 de março de 2005).

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Branco (s.d., p. 105) explica que rios da classe 2 são aqueles cujas águas podem ser usadas como bebida, porém, para isso devem ser tratadas por processos químicos ou, simples filtração e desinfecção. Servem também à proteção da vida aquática, à natação, à irrigação de verduras e frutas e à criação de peixes e outros seres aquáticos comestíveis. Uma ressalva é que o enquadramento dos corpos d’água feito pelo CONAMA foi baseado, não necessariamente no seu estado atual, mas nos níveis de qualidade que deveriam possuir para atender às necessidades da população humana. Enfim, para Barbosa, Paula e Monte-Mór (1997) a análise das águas de um rio e seus afluentes, permite-nos desconstruir e reconstituir as relações entre as atividades antrópicas e o meio ambiente físico.

Após nos referirmos às variedades de funções, de registros e de formas de apropriação simbólica e material atribuídas a estes rios possíveis, relacionados no trabalho dos referidos autores, questionamos: o rio das Contas pode ser todos estes rios? O rio das Contas tem os mesmos significados de todos estes rios para os itacareenses? Ele é percebido pelos habitantes de Itacaré como os rios citados pelos referidos autores? De que maneira o rio das Contas se faz sentir na vida destes itacareenses? Que sentimentos se manifestam nos “lugares imaginários ou mundo interior” dos habitantes do espaço geográfico deste rio em Itacaré? Existe uma geograficidade entre estes habitantes e o rio das Contas? Aceitamos que o rio das Contas seja cada um destes rios ou que tenha significado de cada um dos rios considerados por estes autores, como já escrevemos ao longo do trabalho. Contudo, ao mesmo tempo em que não é diferente de outros rios, o Contas é um rio único pois, com características iguais as dele (desde a Chapada Diamantina até o Oceano Atlântico), não existe nenhum outro. Mas, o que o faz, realmente, único é a relação singular que mantém com cada pessoa que habita seu espaço geográfico, considerando que habitar é mais que morar... é cuidar... é viver... é se (en)volver... Cada habitante atribui um sentido a essa relação experienciada cotidianamente, ao mesmo tempo em que, todos dão um sentido coletivo, vivendo socialmente o/no/do rio. Como todo rio, o Contas tem significados peculiares, particulares para as pessoas de Itacaré, principalmente, para aquelas que têm uma intensa relação topofílica com ele, tanto que o consideram como sendo o seu rio-lugar, um lugar no sentido de ser “un importante componente de nuestra identidad como sujeitos” (GARCÍA BALLESTEROS, 1992, p. 10). Para explorar este mundo vivido dos sujeitos da pesquisa aplicamos e, depois, interpretamos as suas entrevistas. Para tanto, como exemplo dos diferentes significados ou

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formas de apropriação que um rio pode ter, lançamos mão do trabalho de Barbosa, Paula e Monte-Mòr (1997), para elaborar 04 categorias: trabalho, subsistência, pertença e alegria. Segundo o Houaiss (2009), categoria “é cada um dos conceitos genéricos, abstratos, fundamentais, de que se pode servir a mente para elaborar e expressar pensamentos, juízos, julgamentos, etc.; qualidade”. Consideramos que uma categorização consiste em agrupar dados ou informações de acordo com a similitude que apresentam, extraindo seus aspectos mais importantes. Entretanto, a categorização deve fundamentar-se em apenas um critério de semelhança que seja condizente com o objetivo que queremos alcançar. Categorizar é, portanto, resultado de um esforço de síntese, em que as categorias podem ser definidas a priori, ou surgir a partir das informações. Importante ressaltar que elaboramos um número pequeno de categorias e, ao mesmo tempo, não deixamos de abranger os temas necessários à interpretação das entrevistas. Então, agrupar as entrevistas em categorias teve o propósito de reunir os significados semelhantes que os sujeitos da pesquisa deram ao rio das Contas, uma vez que usamos o termo categoria no sentido de qualidade. E, qualidade, segundo o Houaiss (2009), tem a noção de: “propriedade que determina a essência ou a natureza de um ser ou coisa; característica comum que serve para agrupar seres, coisas ou objetos; categoria fundamental do pensamento que determina as propriedades ou características de alguma realidade”. Para Ferreira (1993, p. 541), a “qualidade é uma das classes fundamentais do pensamento filosófico, que significa maneira de ser que se afirma ou se nega de uma coisa; aspecto sensível das coisas, e que não pode ser medido”. De certa forma, agrupamos em 04 categorias as 41 entrevistas da nossa pesquisa de campo, levando em conta os mesmos fatores que Nogué i Font (1992) considerou na sua pesquisa sobre paisagem existencial de grupos de experiência ambiental da Garrotxa (uma Comarca da Espanha). Ele escreveu um ensaio metodológico sobre essa pesquisa, no qual afirmou que “[...] todo individuo se relaciona con el paisage de una forma particular” (p. 90) e, que, mesmo sendo únicas, estas experiências ambientais podem ser agrupadas. O pesquisador espanhol reuniu os sujeitos em cinco conjuntos, os quais chamou de “grupos de experiência ambiental”, justificando-os como: “grupos de indivíduos que, por los motivos que sean, ven, viven, sienten el paisage y se relacionan con él de una forma parecida. [...] todos ellos disfrutan de una peculiar forma de relacionarse con el paisage” (p. 90). Ou seja, mesmo que tenhamos cada um a nossa forma única, peculiar, particular de nos relacionarmos com alguma coisa ou com alguém, sempre pensamos de maneira parecida,

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porque “una gran parte de nuestra experiencia del mundo es experiencia social” (GARCÍA BALLESTEROS, 1992, p. 13). Assim, as categorias que estabelecemos contêm os laços de afetividade sentidos na relação dos sujeitos que vivenciam o rio das Contas, ou seja, o que este rio representa para eles, que sentimentos nutrem por este elemento hídrico e como o rio manifesta-se para eles, reconhecendo-o como um espaço aquático muito importante para as suas vidas. Mas, afetivamente, para as pessoas de Itacaré, o lugar-rio das Contas tem o sentido do habitar... pois é percebido, vivenciado e cotidianamente experienciado através do movimento e da exuberância de suas águas, do alimento que fornece e de suas margens verdes, protegidas pela atividade cacaueira. Os significados conferidos ao rio por estes itacareenses são sentimentos que demonstram a satisfação psicológica com o ambiente em que vivem, ou seja, com o lugar-rio. Isto é o mesmo que dizer que, de acordo com os seus interesses e necessidades, eles vivem as suas realidades ou seu mundo vivido, selecionando suas percepções, acumulando-as e dando- lhes significado, ou seja, as pessoas têm a sua cognição ambiental. Estes significados devem ser considerados para compreendermos as relações entre as pessoas e o seu meio, suas expectativas, julgamentos e condutas e, ainda, para sustentar o rio como um atrativo turístico. Estes significados dados ao rio são, portanto, inseparáveis da emoção... da experiência... dos sujeitos que o vivenciam com afeto em Itacaré e, por isso, expõem amor, apego, amizade, ternura, intimidade... sentimentos considerados fundamentais para a abordagem humanista desta pesquisa. Então, “pensemos os sujeitos das pesquisas não mais como meros informantes dos dados necessários para a pesquisa, mas que sejam também reconhecidos como autores, pois a experiência vivida por eles será a principal fonte de interpretação de nossas reflexões” (NOGUEIRA, 2004, p. 210). Antes de iniciarmos a interpretação das entrevistas, é necessário esclarecer que alguns participantes da pesquisa percebem, sentem o rio das Contas de diferentes maneiras... sendo para alguns, fonte de trabalho e também pertença; para outros, lugar de trabalho e de alegria, o que explica a diferença entre a quantidade de respostas e o número de sujeitos. Também, estamos estudando o rio das Contas de Itacaré, como um lugar que é percebido e experienciado por pessoas que o vivenciam cotidianamente. Por isso, consideramos todas as respostas dadas sobre o rio, como um conhecimento concreto dos sujeitos da pesquisa sobre o seu lugar, reconhecendo isso como suas visões de mundo.

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Nesta perspectiva, concordamos com Nogueira (2004) quando escreve que, para compreendermos um lugar nas dimensões subjetivas devemos considerar as pessoas que aí vivem além da estatística, valorizando suas experiências vividas... suas descrições sobre o lugar... como compreensão da sua realidade. O lugar, para estas pessoas, pode significar, ao mesmo tempo, lugar de vida, de trabalho, de moradia, de amizade, de lazer, de alegria, de mistérios, de significados míticos, religiosos, etc., pois esta é a sua experiência vivenciada no lugar. A seguir, as entrevistas feitas nos três locais de pesquisa no município de Itacaré foram distribuídas entre as quatro categorias elaboradas para esta finalidade.

O rio como fonte de trabalho

O rio das Contas significa trabalho para 20 sujeitos, dentre os 41 entrevistados. No Houaiss (2009) trabalho “é atividade profissional regular, remunerada ou assalariada; conjunto de atividades produtivas ou criativas, que o homem exerce para atingir determinado fim [...]”. Como podemos ver nestas definições, o trabalho é uma atividade remunerada e, mesmo, que seja voltada para a sobrevivência, sua principal característica é o recebimento de pagamento. Isso quer dizer que, trabalhar num rio significa trabalho remunerado ou sustento da família com o que se ganha neste trabalho, como a atividade da pesca, por exemplo. Nascer e/ou viver na margem de um rio pode influir na vida de uma pessoa, pois seu espaço geográfico se torna um espaço hídrico/aquático, ou seja, a água acaba fazendo parte da sua vida, participando da sua história de vida. O rio, então, torna-se o seu lugar, o qual mais que o espaço, relaciona-se à experiência vivida. Para Gratão (2007, p. 100), há um encontro entre pessoas e rio, uma “geograficidade hídrica que nasce do profundo vínculo afetivo com ele - topofilia hídrica - Hidrofilia! [...] revelam os seus sentimentos hídricos/fluviais, os seus vínculos hidrotopofílicos”. Citando Weil (2001), podemos associar esse vínculo com um enraizamento ao lugar, pois sem raízes, sem um vínculo vivo com o ambiente, com a profissão, o ser humano esvazia-se de sentido e não convive harmoniosamente com as pessoas do lugar. Para a autora, “o enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. [...] Um ser humano tem raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos de futuro” (p. 43). Por outro lado, o desenraizamento é a interrupção da experiência, é a 156

expropriação do ser humano enquanto um ser histórico “é, de longe, a doença mais perigosa das sociedades humanas, pois se multiplica a si mesma” (p. 46). A cidade de Itacaré foi o primeiro local em que fizemos as entrevistas. Neste espaço geográfico, o rio das Contas é percebido como um lugar de trabalho para todos os sujeitos. A ligação afetuosa ao rio é grande, porque as pessoas ganham a vida com ele.

• Cidade de Itacaré: 08 participantes dizem que o rio é trabalho. Este significado dado ao rio das Contas é a expressão da relação entre os habitantes da “cidade turística de Itacaré” e o seu rio.

A atividade turística começou a crescer, em Itacaré, no final da década de 1990, principalmente, com a pavimentação do trecho da rodovia estadual BA 001 (Rodovia Gabriela), que margeia o litoral, ligando Ilhéus a Itacaré no sul da Bahia. Outro motivo que contribuiu para o aumento da procura do município, como destino turístico, foi a grande divulgação, na mídia impressa e falada, de paisagens maravilhosas, associadas ao fácil acesso, através do aeroporto de Ilhéus e da BA 001. Estes cenários são compostos por: floresta conservada (Mata Atlântica, quase inexistente no Brasil), manguezais, rios límpidos e propícios a esportes radicais (o rio das Contas geralmente é divulgado com imagens belíssimas); cachoeiras; praias desertas com águas limpas indicadas, principalmente, à prática do surf; fazendas cacaueiras; etc. Com isso, a procura de Itacaré por turistas aumentou consideravelmente e a atividade turística passou a integrar, cada vez mais, a socioeconomia citadina, desencadeando transformações em todo o espaço geográfico do município e, conseqüentemente, no rio das Contas e, também, na forma de como Itacaré e seus habitantes relacionam-se com este caudal, que emoldura a cidade. Com relação ao rio das Contas como um atrativo turístico, os anúncios on line quase sempre são acompanhados por imagens de pessoas fazendo passeios de canoas pelas suas águas, fazendo rafting ou, ainda, mostram a Mata Atlântica conservada nas margens do rio, etc. (Figura 55).

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O rio de Contas O Rio de Contas é um capítulo à parte na vida de Itacaré. Ele nasce a 1.500 metros de altitude, na majestosa Serra da Tromba (Município de Piatã) na Chapada Diamantina, e percorre cerca de 620 quilômetros até atingir Itacaré. Sua bacia hidrográfica ocupa uma área de 53.334 km², o que corresponde a 10,2 % do território estadual. Como se pode imaginar, o rio foi, durante muito tempo, a principal via de interligação dos diversos povoados de Itacaré e de outros municípios. Hoje, o Rio de Contas é um atrativo turístico importantíssimo; através dele podemos, por exemplo, entrar em contato com o mangue, que segundo os estudiosos é o berço de toda a vida. Além disso, ele também é a via de acesso para vários outros atrativos - cachoeiras e rafting, por exemplo.

Fonte: Acesso em: mar. 2009. (Entrar no portal Matas e Rios e clicar no Rio de Contas).

Figura 55 - Parte de um texto de divulgação do rio das Contas, disponível em um site da Internet.

Assim, a atividade turística cresce e junto com ela pode ocorrer a degradação do meio e do bem estar da população local. Este tipo de turismo, geralmente, está condicionado à sustentabilidade dos ambientes naturais e, especialmente, depende de um ambiente socioeconômico capaz de promover a inclusão social de comunidades rurais pobres, a conservação da paisagem, dos recursos hídricos e de sua biodiversidade. Então, a degradação dos ambientes afetados pelo turismo, conseqüentemente, acabará causando problemas à própria atividade turística no município. TAT2 trabalha como recepcionista de pousada na cidade de Itacaré, provavelmente, o que a faz sentir o rio das Contas, principalmente, como fonte de trabalho:

“O rio é muito importante porque é meio de sobrevivência com o turismo. Antigamente, quando não tinha o turismo, não era muito focado, o rio era meio de sobrevivência. Até hoje muita gente vive da pesca do rio e do mar, acho que ele é importante, tem que preservar, muita gente não tem consciência, joga mesmo [lixo], não ta nem aí, não vê os prejuízos que podem dar amanhã ou depois”.

2 É o nome abreviado do sujeito da pesquisa, de acordo com os protocolos empregados pelos piagetianos. 158

“As pessoas vêm para Itacaré pela paisagem, que o lugar é muito bonito e pelas praias. No rio muita gente vai fazer rafting e sempre volta de lá com boa impressão e diz ‘nossa, o rio das Contas é muito lindo, amei fazer rafting, vou voltar’, geralmente é assim”.

Nesta resposta, mesmo que tenha usado a palavra sobrevivência, TAT quer referir-se ao rio como trabalho, pois como exerce a função de recepcionista numa pousada está diretamente envolvida com os turistas que visitam a cidade. O turismo trouxe emprego e, conseqüentemente, renda para ela e para muitos outros habitantes da cidade também. A recepcionista reforça sua opinião sobre o rio, dizendo que antes da atividade turística ele não tinha muita importância mas, depois que o rio se tornou um atrativo turístico deve ser preservado. O rafting praticado pelos turistas, sempre os impressiona e suscita-lhes a vontade de voltar, o que para TAT é motivo de orgulho. O que TAT mais gosta é da paisagem do rio: “o rio das Contas é importante para mim porque eu nasci e cresci aqui, vi muitas belezas que têm, que hoje em dia não têm mais muito como tinha antes”. O sentimento de afeto pelo rio fica visível quando fala de sua infância... do “momento de rio” que vivia quando era pequena! Ela sente o rio com alegria (deu um sorriso largo... bonito... seus olhos ficaram alegres), pois, cresceu contemplando a sua paisagem, a qual acha linda... Por isso, o rio é muito importante na sua vida! TAT diz, ainda, que o rio não é mais o mesmo... a paisagem mudou... a sua beleza diminuiu! Será que é porque TAT cresceu e, por isso, o vê de outra maneira? Ou, é por conta da atividade turística, que está se apropriando da beleza do rio? Mas, ela também se preocupa com aqueles que só sabem pescar. Na sua fala acrescenta que muitas pessoas de Itacaré exercem a profissão de pescador, trabalhando no rio das Contas:

“O rio é importante porque é um meio de sobrevivência para as pessoas que não sabem fazer outra coisa, só vivem da pesca, não têm outra profissão [...], as pessoas deveriam olhar mais, preservar mais para poder ter um rio melhor”.

Ela diz que faz sua parte com relação à conservação do rio, pois não joga lixo, ao contrário, sempre recolhe garrafas plásticas que encontra nas suas margens e fica muito preocupada com o seu futuro:

“Às vezes, quando vou no rio, não gosto de ir porque ele ta muito maltratado. O pessoal fica jogando garrafa plástica, saco e isso não é bom, leva muitos anos para se decompor. Quando eu vou fico sempre tirando”.

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TAT tem consciência de que o rio está sendo maltratado, que estão jogando todo tipo de material inorgânico nas suas águas, o que levará milhares de anos para se decompor. Mas, ao mesmo tempo em que fica triste pelo rio, que não é mais o mesmo, percebe o rio como sendo um lugar de trabalho, mesmo não trabalhando no rio. Notamos a sua preocupação com a imagem de um rio limpo, pois para que o turismo continue proporcionando renda para a população que trabalha nesta atividade, é necessário um rio preservado. JAM, Técnica em Turismo pela Escola Técnica de Uruçuca (EMARC), também é funcionária de uma pousada em Itacaré, mas nasceu em Taboquinhas, por isso está ligada afetivamente ao “rio das Contas de Taboquinhas”. O rio...

“O rio, eu olho mais pelo lado geral da população, porque lá [no distrito de Taboquinhas] não se tem uma renda muito grande. O rio é uma das fontes de trabalho do pessoal que mora na beirada e com isso o rio diminui a sua quantidade de água, diminui bastante. Vejo pelo lado da destruição, porque a areia não cimentou nada. As pessoas devem tirar, então o rio acaba perdendo a intensidade de água”.

Apesar de uma resposta desconexa, JAM procura revelar sua preocupação com o rio das Contas, através da diminuição do volume de sua água. Mas, por outro lado, justifica a extração de areia do seu leito, como uma atividade que oferece renda para muitos que vivem no distrito de Taboquinhas. Para ela, a areia não “segura” as margens do rio, por isso pode ser retirada e vendida, proporcionando o sustento de muitas famílias: “o rio das Contas é a nossa sobrevivência de lá [Taboquinhas]”. JAM pensa assim, porque mantém um forte vínculo com aquele lugar! Ela diz ainda: “passei minha infância brincando no rio, na margem de areia, rolando para cair na água”. Esta frase mostra a alegria que sente quando pensa na sua infância no rio, pois brincava na margem do rio... na água do rio.... As margens de areia, a água doce e as pedras do rio das Contas eram a diversão de JAM nas brincadeiras de criança, como se fosse seu parque de diversões! Todavia, ela conviveu com a retirada da areia. Provavelmente alguém da sua família trabalhava nesse ofício, o que marcou sua memória. JAM fala, também, que está preocupada com a falta de água potável mas, que, as pessoas não têm consciência, jogam o esgoto doméstico diretamente na água do rio das Contas:

“Acho que a preocupação de todo ser humano no Brasil hoje e no mundo é a falta de água potável e como lá [Taboquinhas] e, em qualquer outro lugar, não

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há uma consciência grande de todos, ainda são jogados esgotos na margem do rio das Contas, isso é muito preocupante”.

O rio das Contas é lembrado pelo valor da sua água, mas JAM diz que os seres humanos não têm consciência sobre isto, jogam esgoto doméstico na sua margem, mesma margem da qual retiram areia, para que não se deposite e forme as coroas, as quais fazem diminuir a quantidade de água. Foi assim que ela aprendeu. Tanto que, se fechasse os olhos e pensasse no rio, JAM diria: “socorro, eu olho mais com uma visão do futuro, então é o que ele está pedindo, se não cuidar agora”. WEL é proprietário de pousada na cidade de Itacaré desde 1980. Para ele, o rio das Contas representa trabalho, pois mantém com o rio um vínculo turístico e, por isso, mostra-se muito preocupado com a sua preservação e, conseqüentemente, com o seu “negócio”:

“Os turistas vêm para Itacaré como um todo. O rio faz parte deste todo, né. Todos praticam rafting, passeio às cachoeiras, aos restaurantes na beira do rio e a gente não pode deixar acabar isso”.

“O rio das Contas, não só para mim, mas para todas as pessoas, é um rio muito importante para os pescadores, para o pessoal do turismo que liga Taboquinhas com esporte radical. São muito importantes os manguezais. Tem que haver uma mentalidade das cidades que vêm antes de Itacaré, né, que despejam seus dejetos dentro do rio e cada dia que passa a poluição de esgoto e tudo que não tem nada a ver cai dentro dele. Que hoje a gente já ta sentindo o impacto com a morte dos peixes, afetando o crescimento dos mangues, causando a poluição, que ninguém deseja. Neste tempo que estou morando aqui, [cerca de 30 anos] ele mudou muito, antes era muito menos poluído. Hoje a gente já sente o impacto dele na própria água e, também, nos dejetos que são jogados nele, não propriamente da região de Taboquinhas e Itacaré. Quem percebe isso são os pescadores que estão todos os dias ali dentro, a gente já nota assim a diferença”.

“Então, em Itacaré deve haver uma conscientização de todos, mas, principalmente, dos órgãos públicos, isso é mal do país inteiro. A gente quer saneamento básico para Itacaré, para não jogar os dejetos no rio e no mar, que isso aí é um problema já no país todo. Penso, também, que tem que salvar esta beleza igual ao rio das Contas, como vários rios em todos lugares. A gente tem que se conscientizar e tirar os dejetos, preservar as margens, porque lhes tiram as matas”.

Nesta narrativa sobre o rio das Contas podemos constatar que o sujeito é muito envolvido na atividade turística do local, pois sua principal inquietação é com a poluição das águas do rio, que vai refletir na sua imagem. Segundo WEL são as cidades, a montante de Itacaré, que despejam esgoto nas águas do rio. Mas, ao mesmo tempo, ele diz que os órgãos

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públicos municipais (de Itacaré) não têm consciência que os moradores querem saneamento básico, para não jogarem seus dejetos domésticos diretamente no rio. Também, fala da destruição do mangue e da Mata Atlântica, que vem ocorrendo nas margens do rio, enfim, ao comprometimento da imagem do rio que vendem aos turistas. Até quando WEL mostra seu afeto pelo rio, ele tem o olhar de um turista, que usufrui a sua paisagem:

“Maravilhosos são os passeios para as cachoeiras, passar o dia todo dentro do rio das Contas, em seus afluentes, nos manguezais... Não tem nada triste para mim no rio, penso na beleza dele... não tem coisa mais linda que o rio das Contas!”

JOA mora em Itacaré há 30 anos, aproximadamente. É guia turístico e, como vive do turismo, para ele o rio também representa trabalho:

“O rio das Contas é uma área produtiva fundamental para a região inteira, né! Como o pessoal diz que nasce na Chapada Diamantina, mas estamos descobrindo que não nasce, já nasce mais por diante. Se eu falar do rio vou chorar de emoção porque eu sou apaixonado por esse rio, porque a nossa ‘sobrevivência’ depende do rio. Amo demais o rio porque nós temos as áreas de passeio, todas as áreas pertencem ao rio. Recebemos muitos ‘estrangeiros europeus’ (português, italiano e espanhol). Os turistas brasileiros são mineiros, bastante paulistas e brasilienses”.

Com relação ao rio das Contas, este guia turístico está muito preocupado com a sua preservação e, conseqüentemente, com seu trabalho, o qual depende muito da imagem local. Diz sentir muita emoção ao falar deste assunto, porque sobrevive do trabalho no rio, levando turistas para passeios aquáticos, principalmente, os estrangeiros.

“O rio mudou... naquela época não via o lixo que a gente vê hoje: plástico, pneu, roupa que enrosca no manguezal. Mudou muito, não em termos de água, que a água continua, mas em termos de preservação, acho que caiu 100 %. Esqueceram de preservar. A mata continua a mesma na margem, a área é a mesma, mais pra dentro se desmata. Muita gente esquece que o rio das Contas é fundamental para Itacaré e para a região inteira”.

Para ele, o rio mudou somente com relação à poluição das suas águas, voltando-se ao período de 30 anos em que o vivencia, diariamente. Mesmo quando JOA fala dos mariscos presentes nos manguezais das margens do rio, ele está pensando em trabalho, porque diz que também pega caranguejos, mexilhões, ostras, etc., para vender aos restaurantes, aos hotéis e às

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pousadas: “para mim é interessante aonde têm mariscos, que é a cultura de Itacaré e tem muito manguezal no rio”. JOA ficou visivelmente feliz por participar da pesquisa, mostrando-se um sujeito ávido por informação, apaixonado pela sua profissão e, também, muito inquieto. Depois que a entrevista terminou, esclarecemos-lhe que o rio das Contas nasce, sim, na Chapada Diamantina. Chegamos, até, a lhe mostrar o mapa da BH do rio das Contas, o qual não conhecia, nem mesmo, nunca tinha tido nenhum contato com qualquer outro mapa, durante sua vida. Ficou encantado com a representação do rio no papel, pedindo se podíamos “dar um curso” sobre o rio... “mostrando o rio desde o começo, porque só conheço ele aqui”. Notamos que JOA ficou muito curioso e interessado em aprender, segundo ele, para melhorar profissionalmente. O rio das Contas é fonte de trabalho para OTI, a qual mora em Itacaré há 40 anos. Na sua entrevista, ela pensa principalmente nas pessoas que vivem do turismo, pois é proprietária de uma “barraca de alimentação” na beira da rodovia BA 001, dentro do município de Itacaré, e muito envolvida nas questões políticas em defesa dos itacareenses que possuem pequenas empresas voltadas ao turismo:

“O rio das Contas aqui é pesca e turismo, tem canoagem também. Um dos turismos melhores que tem é o do rio, porque ao menos chegam no restaurante do pequeno pra almoçar, compra alguma coisa na mão do pequeno, o canoeiro não é gringo que vem de lá, é sempre um pequeno. É a única maneira de alguém ganhar um dinheirinho aí. É isso, é o turismo, é o turismo do pequeno, o guia não é rico, o canoeiro não é rico, têm aqueles restaurantes na beira do rio que também é de gente pequeno, ganham um dinheirinho, né!”

A defesa pelo envolvimento dos nativos de Itacaré, na atividade turística local, é muito clara na declaração de OTI. Ela olha o rio das Contas como uma opção para as pessoas menos favorecidas trabalharem e ganharem “um dinheirinho”, dizendo que esta é a única maneira de sobrevivência para tal população.

“Em Taboquinhas é diferente. Quando falo no rafting, já ta com grandes pessoas e não envolve os pequeno, que não têm vez. E quando vai, já vai as cartas marcada. Muitas vez, nem em Taboquinhas eles saltam, vêm diretamente pra pegá o barco e de lá descem e voltam pegá o carro de novo e descem de novo, não passa em Taboquinhas [na área urbana]. Esse não seria um bom investimento sustentável para o rio das Contas”.

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OTI foi entrevistada na cidade de Itacaré mas, mostra-se preocupada com a atividade turística em toda a área do município. Ela afirma que no distrito de Taboquinhas, o capital já se apoderou do local, ou melhor, do rio das Contas, pois as agências de turismo vendem pacotes, em que as pessoas são levadas para praticar os esportes radicais nas corredeiras e nos corredores estreitos do rio e, nem mesmo, “passam por Taboquinhas”. Quem ganha com este tipo de atividade são as empresas, cujos proprietários são de fora, não são itacareenses. Ainda com relação ao rio, manifesta-se com preocupação a respeito da poluição das suas águas e diz que o rio mudou muito:

“Não gosto da poluição. Não tem muita poluição, de qualquer maneira, tem plástico, não tem grandes poluição, mas tem esgoto, tem algumas coisa que deve ser acabada, porque nossa água é a coisa mais essencial da vida e ta ficando escassa no nosso planeta. Temos que ter muito cuidado com os nossos rios, nossos mananciais, para não ser pior mais tarde. A poluição é de Itacaré, vem de fora, de todo lugar. O pessoal ainda não tem a consciência de não jogar nada nas margem do rio e nem dentro do rio, mas joga plástico, vem de todo lugar a poluição, e esse plástico desce, muitas vez chega no mangue, chega num buraco de caranguejo, ele encosta ali e o caranguejo não sobrevive mais. Muitas vez, até um peixe que desova no mar, a fauna marinha que precisa de mangue para se reproduzir, o plástico ‘empata’ aquele meio de reprodução”.

“O rio... mudou muita coisa porque ficou mais largo e raso. Depois da rodagem o transporte via rio parou porque antigamente tudo descia o rio. Hoje em dia não, as canoa não estão mais descendo carregada de mercadoria, as lancha acabaram, mudou muita coisa. Quando cheguei aqui, na década de 50, eu peguei a fase da “gasolina” carregando cacau. Era um movimento muito grande em Itacaré, mas hoje não vem mais, até boi na canoa descia o rio para vender em Itacaré. Melhorou muito”.

Interessante seu conhecimento técnico com relação aos problemas causados pela poluição do rio. Usa termos como: sustentável, mananciais, fauna marinha, reprodução... mostrando que busca informação, conhecimento sobre as conseqüências desastrosas causadas pela poluição de um rio. Durante a entrevista de OTI notamos seu interesse e, até, sua “aflição” para falar sobre o passado do rio... como era a vida do rio... sua história... que tudo tinha mudado depois da construção da rodagem (rodovia BA 001). Ela diz que antes desta estrada, Itacaré vivia em função do rio, tudo era transportado pelas suas águas, em canoas vindas de Ubaitaba (município que faz limite oeste com Itacaré). Depois, passou para as gasolinas, as quais eram lanchas com motores movidos a combustível, que transportavam o cacau produzido na região do rio das Contas até a sua foz, para seguir até o Porto de Ilhéus.

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Mas, ela pára para pensar um pouco e, no final da entrevista fala que hoje a vida em Itacaré está melhor! “Os pequeno” têm mais oportunidade de trabalho no rio das Contas, devido ao turismo. No passado, as pessoas sofriam mais, tudo era mais difícil, o dinheiro era pouco! OTI também fala de tristeza de rio...

“De vez em quando tem morte aí no rio... a gente não fica alegre em perder um amigo ou pessoa querida da gente ou parente. Tem tido muitos fato triste no rio, como uma vez um senhor vinha subindo com uma canoa com os filho, a canoa virou, morreu 3 criança de vez, ele tava embriagado”.

As pessoas, geralmente, morrem nas águas de um rio, por negligência ou por abuso. Acidentes acontecem independentes da alma dos rios, os quais têm uma participação passiva nestes casos, pois não matam propriamente as pessoas, são elas que se acidentam por desconhecerem os seus perigos, principalmente, em períodos de enchentes. Os rios não são criminosos, não sendo possível atribuir-lhes qualquer culpa, pois foi a natureza que traçou seus caminhos com seus leitos naturais, muitos deles, com fundos acidentados e invisíveis aos olhos humanos e, por isso, só os peixes familiarizam-se com as suas profundidades (CARVALHO FILHO, 2005). É preciso conhecer muito bem a dinâmica de um rio e respeitá- lo! O instrutor de rafting JEF é nativo de Taboquinhas, mas mora na cidade de Itacaré, local em que possui uma empresa que presta serviços para turistas. Obviamente que, para ele, o rio é, principalmente, fonte de trabalho. JEF fala sobre o rio das Contas... o respeito e o amor que sente por ele...

“O rio é um pai, é a minha mãe porque eu nasci e me criei dentro do rio. Todas minhas profissões... já fui balseiro pra prefeitura, hoje em dia voltei ao rafting, sempre ali, sobrevivendo do rio, fui mergulhador, mergulhei muito tempo no rio das Contas, já vi muitas coisas boas, já ganhei muitos presentes também, já achei perfumes, materiais de metal, tudo encontrei nesse rio. Então, a minha vida inteira sobrevivendo dali”.

Temos a nítida impressão que JEF considera o trabalho no rio, como além de uma ação técnica, sendo uma atividade natural e lúdica, assim como brincar ou tomar banho no rio. Para ele, o rio das Contas representa o papel dos pais, os quais criam seus filhos com amor, querendo disponibilizar tudo que têm, para que eles tenham uma vida bem feliz.

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“A gente tem uma cultura lá em Taboquinhas que chama ‘pescar a curuca’. Então, a gente sempre pescou muito a curuca para fazer o filé. É um meio de vida, acho que muitas pessoas têm. Eu consegui me livrar mais cedo porque eu tive outros conhecimentos. Passei a gostar mais de outras coisas e buscar outros desenvolvimentos pra mim e pro meu município e hoje em dia acho que se esse rio se acabar é a mesma coisa que estar morrendo junto com ele”.

“Pescar a curuca é bom porque é um meio de vida, mas a gente passa por muitas coisas: passa a hora de se alimentar, você fica um pouco machucado porque, às vezes, as pedras rolam, batem nos pés, é difícil, você corta a mão toda porque ela tem um certo tipo de unha que vai cortando quando você pega ela, é até pelo meio de sobrevivência dela, a única defesa que ela tem. Você pesca durante três dias e passa cinco dias parado, só descansando o corpo”.

Sobre a pesca nas águas do rio das Contas, JEF lembra da fase em que viveu da pesca da curuca, atividade da qual se livrou cedo, pois diz que é muito difícil, cansativa e dolorosa. Mesmo sendo entrevistado na cidade de Itacaré, ele faz questão de falar dos tempos em que vivia em Taboquinhas... da “cultura da curuca”, a qual é muito marcante na vida local, pois muitos pescam este marisco (é assim que se referem a tal atividade) e, todos os restaurantes servem o filé de curuca como um prato típico do lugar, porque a curuca só existe nesta parte do rio das Contas, ou seja, no trecho forrado por pedras, próximo ao distrito. Podemos interpretar a pesca da curuca, como um modo de vida local, uma manifestação cultural do lugar, pois muitas pessoas exercem tal atividade, cotidianamente. REU é condutor de barco, guia turístico e pescador. Por isso, transparece-lhe o orgulho e a satisfação em trabalhar nas águas do rio das Contas e ser um grande conhecedor do rio:

“Eu trabalho diversificado, o que precisar no rio eu faço com a lanchinha. Faço pescaria, que é a minha área, eu levo para cachoeira, faço o trabalho de guia, acompanho, explico, dou informações, posso trazer só para o restaurante, eu levo para o rafting, eu faço qualquer coisa, o que depender da lanchinha no rio eu faço, além de pescar lá fora no mar, a gente faz um apanhado geral com todos. Então, acaba tendo um bom retorno”.

“A gente não usa ele para beber água, mas existem cidades pra cima que usam exclusivamente esta água. Ainda não é um rio poluído. O diferencial dele é que não passa dentro de grandes cidades, são cidades todas de pequeno porte, até 30 mil habitantes, mais ou menos como Itacaré, Ubaitaba e Aurelino Leal. Não têm grandes indústrias, então acaba não poluindo tanto. O diferencial dele, também, é que de Ubaitaba até aqui (Itacaré) aumenta 100 % dos afluentes, melhora consideravelmente o volume de água limpa, além do mar sempre estar entrando, têm muitos afluentes que entram nele”.

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Este homem simples ganha a vida, no mesmo movimento das águas do rio, levando e trazendo turistas. Para ele, depois do início do turismo, a vida em Itacaré melhorou muito, é mais movimentada, ganha-se mais dinheiro e não falta trabalho no rio! REU defende a idéia de que o rio das Contas ainda não é poluído: a montante, não se localizam grandes cidades, nem indústrias poluidoras e, ainda, o rio das Contas recebe as águas de muitos afluentes no trecho em que flui dentro da Mata Atlântica, o que aumenta a sua vazão e melhora, consideravelmente, a qualidade das suas águas. Ainda, lembra do mar que, na maré alta, invade o estuário do rio e, na maré vazante, o rio carrega toda a sujeira da sua água, fazendo uma limpeza fluvial. Este trabalhador do rio foi quem conduziu-nos pelas águas do rio das Contas, para fazermos as entrevistas nas suas margens. Tivemos a oportunidade de vivenciar a experiência de um pescador, condutor de barco e guia turístico, que é apaixonado pelo seu trabalho e pelo rio, pois as suas condições de vida melhoraram muito, com o crescimento do turismo no município. CLA também considera o rio das Contas como lugar de trabalho, pois como Diretora do ITI tem a função de planejar ações, fiscalizar, preparar pessoas para trabalhar na atividade turística em Itacaré, etc.

“Hoje a gente já depara com uma realidade, pode ser que a gente seja um pouco bairrista nestas coisas, que é a questão da atividade do rafting (o rio das Contas tem a 2ª melhor corredeira do país para o rafting), que é uma atividade que tem tudo a ver com o perfil do destino turístico que a gente quer para Itacaré, que é o ecoturismo e o turismo de aventura. As pessoas que são praticantes dessa atividade, geralmente têm respeito pela natureza, têm bastante cuidado, têm o senso de preservação”.

De acordo com a função que exerce, CLA é uma defensora do turismo para a prática de esportes radicais ou de aventura nas águas do rio das Contas e, afirma que, os turistas que praticam este tipo de esporte têm muito respeito pela natureza, ou seja, não destroem... não poluem... Segundo CLA, o turismo é a principal atividade econômica que se quer para Itacaré, pois contribui com a melhora de vida da população e, ainda, tem o sentido da preservação.

“Hoje a gente já identificou (faço parte do grupo de acompanhamento da construção da estrada BA 001), a gente já percebeu que o momento em que a estrada pára no rio das Contas para pegar o outro trecho, Itacaré-Camamu, vai ser um atrativo turístico maravilhoso, porque a vista que se tem do trecho aonde vai colocar a ponte é indescritível”.

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“Quando a gente enxerga a natureza com outros olhos, a gente percebe que, preservando, quantas alternativas econômicas viáveis ela oferece. O princípio histórico, valor, respeito com o rio das Contas vêm muito da comunidade local, das pessoas que vivem do turismo, por isso o rio é fundamental. Praias se têm inúmeras e lindas no mundo inteiro, todos dizem, mas o turismo rural e o ecoturismo migrarem para as comunidades rurais, respeitando seus hábitos, sem perder a identidade, vai ter alternativa fantástica de turismo sustentável e a gente percebe em Itacaré e em Taboquinhas esse respeito pelo rio das Contas”.

Será que esse mesmo turismo, que representa ganho de dinheiro para os 08 sujeitos entrevistados no local, não está se apropriando do rio das Contas das pessoas de Itacaré? Apesar destes sujeitos perceberem o rio, principalmente, como um lugar possível para obtenção de renda, reparamos que a sua poluição não passa despercebida por eles (com exceção de CLA). Isto quer dizer que não vêem o rio, apenas como uma referência espacial, um negócio numa cidade turística mas, sim, como parte integrante de uma relação afetiva, ligada ao seu trabalho e vivenciada cotidianamente. Já para a maioria dos turistas, a percepção dos locais visitados, geralmente, é superficial, de pouco valor, o que se justifica pela falta de vínculos que tem com eles, apreciando-os de passagem, porque segundo Tuan (1980, p. 74), “a avaliação do meio ambiente pelo visitante é essencialmente estética”. Isto quer dizer que os turistas necessitam de um esforço especial para provocar um sentimento afetivo em relação aos habitantes e aos locais que somente visitam, pois não se sentem fazendo parte deles, não pertencem a eles.

• Distrito de Taboquinhas: o rio das Contas também significa trabalho para 08 sujeitos, ou mais da metade daqueles que participaram da pesquisa neste local.

A maioria dos entrevistados em Taboquinhas é pescador ou lavadeira de roupa, motivo pelo qual a principal relação com o rio é trabalho. Mesmo, que neste trecho do rio das Contas concentrem-se belezas naturais, consideradas muito atrativas à atividade turística, somente um sujeito referiu-se ao rio, no sentido de atração turística. CLO é estudante de cursinho pré-vestibular. Nasceu e sempre morou em Taboquinhas, “vivendo no rio”! No momento da entrevista estava lavando seu carro e, mesmo assim, foi muito receptivo e simpático, mostrando-se interessado na nossa pesquisa, inclusive pedindo para que, depois de terminada, apresentemos seus resultados em Taboquinhas. Sobre o rio foi logo falando:

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“O rio das Contas para mim é tudo. No momento que eu mais precisei, que era ter dinheiro na minha juventude para curtir, me divertir, o rio me deu dinheiro no rafting, como instrutor. Foi a fase da minha vida que eu mais gostei, foi nessa época que o rio deu tudo para nós”.

Este taboquinhense usa a palavra tudo, para se referir ao rio, no sentido de ganhar dinheiro com o trabalho de instrutor de rafting, para curtir a vida na adolescência, viver a boa fase da vida! CLO sorria largamente no momento da entrevista, deixando transparecer muita alegria ao olhar para o rio, que passava calmamente lá embaixo: “o prazer de eu estar até hoje aqui é o rio, todo dia que posso vou lá. Agora o que eu mais gosto é pescar nele”. CLO ainda fez questão de contar que o rio não é poluído, pois “fizeram uma pesquisa, coletaram amostra desse trecho e constataram 90 % de pureza da água. Traz esgoto de Ubaitaba, cidades vizinhas, mas chega aqui mais limpo”. MAR é pescador nascido em Taboquinhas e, por isso, muito natural que o rio das Contas signifique trabalho para ele, pois exerce sua profissão nas suas águas: “Gosto muito do rio das Contas. O rio é bom porque dá todo tipo de peixe: carapeba, bicudo, pitu, robalo, acari... O mais vendável é o robalo. O pitu e a curuca, que faz o filé, são marisco, vendo aqui”. Com este pescador, que é filho de pescador, aconteceu um fato pitoresco, pois no início da entrevista MAR quis expressar a importância do rio das Contas na sua vida, falando somente de pescaria, a qual lhe proporciona renda. Mas, quando terminou de falar dos peixes perguntou: “ta bom assim, já ajudei a senhora? Prontamente, respondemos que sim e agradecemos a sua participação, mas explicamos novamente sobre nossa pesquisa e continuamos a conversar com ele sobre o rio, que passava bem pertinho... nós dois olhando para a água do rio... para a paisagem do rio... Neste momento, MAR disse: “Fui criado junto dele [do rio], nasci dentro dele, junto dele eu sô. Saí pra fora não dá jeito, todo dia eu pesco”. Desta vez, constatamos na sua fala... nos seus gestos... a emoção que sente ao falar sobre o rio... ao estar perto dele... como se ele fosse o próprio rio, ou seja, como se ele e o rio fossem uma só pessoa... “junto dele eu sô”! Para MAR, o rio das Contas é o seu lugar, estabelecendo uma relação íntima com ele, sentindo-se inserido nele, homem e rio juntos... sentimento hidrotopofílico! Para ROS, uma lavadeira que criou duas filhas “lavando roupa de ganho”, o rio naturalmente é trabalho: “eu gosto porque sempre labutei com ele, sempre vou no rio, quando tem roupa vou no rio”.

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MAN é outra mulher trabalhadora de Taboquinhas. Exerce a função de zeladora em uma igreja, mas já foi pescadora, marisqueira e lavadeira de roupa no rio das Contas; atividades que exerceu para poder criar seus filhos:

“No meu tempo era criar filho (19 filhos). Criei tudo aí no rio das Contas, pescando, mariscando, lavando roupa para os outros, por isso digo que ele é meu pai. O rio é tudo, sempre me ajudou. Ai meu Deus, meu rio das Contas, me dera falar do rio. Eu gosto muito desse rio, gosto de tudo do rio, pescaria, do rio quando tá vazio. Não gosto do rio cheio, mais nada. Tem um sequeiro aí para cima, indo pra Ubaitaba, têm umas pedras secas que a gente pega curuca, camarão, isso é tudo dinheiro pra gente”.

Na entrevista de MAN transparece a intensa afetividade na relação estabelecida entre ela e o rio-trabalho. O rio teve o papel de um pai que supria todas as necessidades de subsistência dos seus filhos, pois como ela mesma diz: “criei tudo aí no rio das Contas”. Provavelmente seus filhos, quando pequenos, iam junto com ela ao rio para brincar, tomar banho, etc. O rio, então, era sua casa, seu lar, era tudo, sempre ajudou essa mãe- trabalhadora, que só não gosta do rio cheio, pois “era muito perigoso trabalhar quando ele tava com água”. MAN ainda fez questão de contar que, da sua casa vê o rio das Contas: “da janela da minha casa eu vejo ele. Uma paisagem maravilhosa! Parece que foi pintada pelas mãos de Deus”! Ela ainda diz: “Tô triste porque dizem que vão fazer esta barragem aí em cima. Tomara que não aconteça isso, mas um dia a casa cai, não sei porque isso”. RAF, também morador de Taboquinhas, exerce as funções de encanador, funcionário público e pequeno agricultor, se refere ao rio assim:

“O rio é um meio de vida de todos... de vários... de muitos... é o sustento da maioria. Sem esse rio aí, infelizmente a gente não existiria. O que mais gosto é da utilidade dele. A alegria daqui é o rio. A barragem vai acabar com o pitu, com a curuca e com o rafting”.

O significado do rio das Contas para RAF está ligado à função ou à serventia de um rio, para satisfazer às necessidades humanas, tanto que pensa na população de Taboquinhas para falar do rio, pois diz que é o sustento da maioria, através do trabalho no rio. Contudo, podemos interpretar a frase “a alegria daqui é o rio”, de duas formas: alegria, no sentido de proporcionar trabalho”; e alegria, como diversão, felicidade!

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Tanto quanto MAN, RAF está preocupado com a construção de uma barragem no rio das Contas para a instalação de uma hidrelétrica, a montante do distrito de Taboquinhas. Ainda não existem informações oficiais, mas na mídia estão veiculando notícias de que a barragem poderá ser implantada no trecho das corredeiras do rio, o que ocasionará a destruição da principal fonte de renda para quem vive da pesca do robalo, do acari, do pitu e da curuca, um pescado raro que só vive nestas corredeiras. Além da pesca, o rafting, a tirolesa e o turismo rural ficarão comprometidos com a construção da tal barragem, pois como os sujeitos da pesquisa manifestaram-se, as atividades citadas são alternativas de emprego e renda para as pessoas do distrito. E o rio das Contas... o que será deste rio e das pessoas intimamente ligadas a ele? O próprio significado do rio das Contas, como um lugar de lazer e de recriação para os itacareenses... a vida do rio... a paisagem do rio: as vivências... as experiências... as relações construídas pelas pessoas no seu cotidiano... a geograficidade humana... são questões que devem ser pensadas por aqueles que querem destruir tudo isso. O pescador chamado VIT, que também nasceu em Taboquinhas, em sua entrevista declara que tira areia do rio, além de pescar:

“Mais pesco que tiro areia. Pesco robalo, carepiba, bicudo... Tiro areia pra vendê pra Prefeitura, pra qualquer pessoa. Secando isso aí, acaba com tudo. O rio é... bem, né, a gente veve dele, se fizer a represa, como vai vivê?! Ninguém faz nada, não tem como andá”!

A presença da atividade de extração de areia, nas margens do rio das Contas, por alguns taboquinhenses, é comprovada por um participante da Organização em Defesa do Rio das Contas (ODER). A ODER é uma ONG na qual participam, aproximadamente, 12 moradores de Taboquinhas, que trabalham para coibir ações contra o rio. Alguns objetivos da ONG são: 1) proteger as “coroas de areia” do rio porque, como são formadas por “areia lavada”, esta areia pode ser usada na construção civil, por isso é extraída do rio das Contas; 2) denunciar a pesca predatória no rio; e 3) preservar as margens do rio para que ele continue vivo. Mas, um grande problema é que a maior parte dos moradores de Taboquinhas não considera a ONG, porque é formada por pessoas do lugar (segundo o participante). Impressionante foi a maneira como VIT se comportou durante a entrevista, transparecendo seu jeito simples e envergonhado, por estar fazendo o que está errado! Ele sabe sobre a recomendação para não retirar areia do rio, mas diz que o faz para sobreviver.

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Contudo, VIT está preocupado, realmente, com a construção de uma hidrelétrica no rio, bem próxima do trecho de Taboquinhas, porque a pescaria e a retirada de areia podem acabar. Para JEC, uma pescadora de pouca fala, o rio é sinônimo de sustento porque sempre labutou nele: “o rio me distrai, pego meu gererê, meu coco e venho nele. Eu sustento a casa. Passo o dia no rio”. E, por fim, outro pescador taboquinhense vai diretamente ao assunto:

“O rio, para mim, é meu emprego. Já estudei em São Paulo, fui soldador elétrico. Voltei, trabalhei na roça de cacau, fiquei sem emprego e comecei a pescar, porque faltou emprego. Peguei um peixe e vendi, pesquei outro e vendi, fiz meu munzuá pescá pitu e robalo. Mergulhava para colocar os munzuá. Pesco pra vender há 25 anos, mas pago a Colônia de Pescadores de Itacaré pra pescá, são 30 pescadores. Vendo em Taboquinhas, não tenho embarcação”.

O último pescador participante da pesquisa em Taboquinhas é associado à Colônia de Pescadores de Itacaré. Na entrevista, deixa bem claro, que a relação estabelecida entre ele e o rio é através da pesca, mas exerce esta atividade porque não tem outra no local, por isso o rio é o seu emprego. Ele não deixou transparecer um grande apego pelo rio, como os demais pescadores, pois sua maior preocupação é quanto à pesca, como uma atividade regulamentada.

• Margens do rio das Contas: são 04 sujeitos da pesquisa que o consideram, principalmente, como seu local trabalho.

GLE é um jovem pertencente à Comunidade Quilombola Rural Acaris. Trabalha como guia de rafting no trecho de Taboquinhas: “o rio, em primeiro lugar, ta sendo uma fonte de renda, né, pra toda a comunidade. O que mais gosto é de me divertir no rio, pescar, tomar banho. Acho que não ficaria longe dele, vou sentir saudade do rio das Contas”. O mesmo pensa JEF, outro quilombola da mesma comunidade, guia de rafting, que também pesca para ajudar sua família:

“Gosto do rio. Pra mim o rio ta sendo tudo porque aqui não ta surgindo trabalho e aí o rio ta arranjando algum ‘trocadozinho’. Pego a curuca e faço filé, pego peixe, ajudo meu pai. Gosto de tudo do rio, não tenho medo, atravesso de canoa, também nado no rio, mas para mim ele é alimentação”.

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Estes dois jovens quilombolas, GLE e JEF, trabalham no rio pescando e sendo guias de rafting, quando têm turistas em Taboquinhas. Eles ainda são estudantes, mas trabalham para ajudar as famílias, por isso sua relação com o rio é, principalmente, de trabalho. Mas, também curtem as águas do rio, divertem-se passeando de canoa, nadando... Como são moradores de uma comunidade da margem esquerda do rio vivenciam-no diariamente, indo de “lá para cá” e de “cá para lá”, para estudar, trabalhar, divertir-se em Taboquinhas... O sentimento de apego ao rio é visível nas palavras de GLE, quando diz que não ficaria longe dele, pois sentiria muita saudade! Mesmo sendo jovem, JEF mostra sua preocupação com a notícia sobre a barragem no rio das Contas, em Taboquinhas: “Mas andam falando na barragem, já tô vendo ela amanhã ali. A galera não tá querendo essa barragem porque vai pegá um monte de gente, não tem outro lugar pra você acampá”. Um proprietário de um restaurante da beira do rio das Contas, bem próximo à cidade de Itacaré, que já foi pescador, fica muito feliz por dar sua entrevista, falando assim do rio:

“O rio é uma mãe que nós temos. Eu nunca vi uma coisa mais rica do que esse rio, porque se a senhora tem um pedaço de rede, a senhora tem comida sempre, pra família toda em casa e ainda tem pra vender. Eu prefiro mais um rio desses do que ter um salário mínimo, porque o salário não vai dá pra mim e o rio das Contas sim, como eu gosto muito de pescaria. Minha vida era pescaria, eu pesquei muito no mar. Depois, quando foi um dia, disse a mulher ‘vamo dá um passeio nesse rio das Contas aí’. Eu tinha comprado um sitiozinho lá em cima. E aí nós viemos passar um mês nesse sítio. Que mês foi esse! Tem 22 anos nessa beira de rio, não voltei mais pra Itacaré. Comecei trabalhar com turismo e gostei de conhecer as pessoas e aí não voltei mais. Minha vida ficou nisso, 22 anos vivendo na beira do rio”.

Um rio feminino, como uma mulher, uma mãe! Bachelard (2002, p. 119-120) escreve: “É o sentimento filial. Todas as formas de amor recebem um componente de amor por uma mãe. A natureza é para o homem adulto, [...] uma projeção da mãe”. Assim é o rio das Contas para este ex-pescador, uma mãe que alimenta, acolhe, cuida, que também ama seus filhos! Ele pescava no mar, mas depois que passou a habitar as margens do rio, no seu sitiozinho, trabalhando com turismo, seu sentimento pelo rio foi (des)velado e sua relação com ele passou a ser intensa, como o amor por uma mãe! Geograficidade... afetividade! Enquanto conversávamos na área externa do seu restaurante, à beira do rio, ele costurava uma rede de pesca mas, sempre, com os olhos voltados para o rio e, a todo momento, apontando naquela direção: “gosto de conviver com ele, tem hora que eu vou

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pescar sozinho, fico conversando sozinho com o rio, eu gosto, entendeu”. Ele convive e conversa com o rio, como se fosse uma pessoa, um amigo! Vivencia-o e experiencia-o cotidianamente há 22 anos, “respeitando ele, gosto de zelar dele, cuidar do rio, ele é uma mãe carinhosa”. Para ele, o rio tem o sentido de mãe... de lar... lugar de segurança, proteção, como concebe Tuan (1980; 1983). Ele perguntou se podia contar uma história que viveu enquanto pescador. Assim, com nosso consentimento começou a falar e, neste momento, parou de costurar, pois seus olhos se encheram de lágrimas:

“Não tenho medo do rio, não tem hora que saio para esse rio pra pesca sozinho, de noite e de dia. Já passei aperto nesse rio quando eu pescava de rede. Naquele tempo existia muita visage nesse rio. Tinha um rapaz que eu comecei com ele a pescar, chamava Milicênio e aí acontecia muito a gente ir pescar lá em cima de rede. Eu e ele na canoa remando e apareceu uma canoa na frente com uma pessoa só. Eu cansava de ir mais ele até a Concha (última praia do rio, no centro de Itacaré), chegava lá a canoa desaparecia, nós nunca que pegava. Nós dois no remo e ele na frente, uma pessoa só. Existia muita visage naquele tempo, hoje em dia não tem mais, existia Biatatá, aquelas faixas de fogo, isso tudo eu vi, hoje não tem mais não, acabou aquilo. Saio sozinho a qualquer hora. Eu sei nadar, sei remar, já fiz tudo na minha vida”.

Sobre o imaginário dos pescadores já escrevemos no segundo item do capítulo 2 deste trabalho. Agora queremos nos referir, somente, à fala deste ex-pescador, no sentido da sua essência. Talvez, pudéssemos considerá-lo como um homem anfíbio, citando Fraxe (2000, p. 11), pois como para esta autora, ele convive com a terra e com a água, “espaços que se misturam, criando uma linha quase imaginária entre as superfícies terrestre e aquática”. [...] “além da terra, utiliza a água como fundamental meio de produção para sua subsistência” (p. 15). Mesmo não sendo mais pescador profissional, ele ainda pesca para suprir a cozinha do seu restaurante, o qual é o seu meio de vida. Assim, continua na beira do rio, vivenciando-o intensamente, todos os dias! Sobre visagem... imaginário... medo... fascínio pelo rio, ele tem saudade do tempo em que sentia tudo isso! Como hoje não pesca mais, oficialmente, a relação sobrenatural que mantinha com o rio não existe mais, este elo desatou! A sua explicação é que tudo mudou com a poluição do rio:

“O que deixa mais triste é a sujeira, quando vejo ele sujo de plástico, jogado pela gente mesmo, vindo de cima e do mar. Agora mesmo que está descendo essa bagaceira toda aí, tem muito lixo na praia, muito saco, muita bagaceira.

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Aqui é difícil ver cobra. Bichos, têm muito pouco, com esse desmatamento eles somem. Aqui têm muitos pássaros à tarde”.

“O rio mudou muito, era muito fundo antigamente, hoje em dia está raso, cheio de coroa, antigamente entrava muito cação, hoje em dia não entra mais. Entrava muito peixe, hoje em dia ta fraco o rio. Quando o rio enche a água fica salgada, então os peixes de água doce não fica aqui nesse rio, eles sobe, vai lá para Taboquinhas, Volta do Poço, porque lá a água é doce. Os peixes de água doce morre. Agora mesmo tem essa água no rio aí, desce muito peixe de água doce, quando chega ali que encontra a água salgada ele morre, vai parar na bera da Concha (praia), acontece de morrer muitos”.

TEO é esposa deste pescador, por isso também é proprietária de restaurante da margem do rio, no qual trabalha como cozinheira. Ela fala sobre o rio, demonstrando topofobia:

“O rio é bom porque tem peixe, sirizinho, traz turistas pra gente, é importante, né. Mas não gosto de navegar por ele, mesmo que o rio mudou muito... Era mais perigoso, mais forte, mais fundo, tinha muita onda. Não queria morar aqui, estou aqui por causa dele [do marido]. Tenho medo do rio, não sei nadar, tenho medo de canoa. Gosto mais do peixe que tem no rio”.

O significado do rio para TEO é trabalho, porque os peixes que serve para os turistas no seu restaurante são provenientes do rio das Contas. Mesmo que o rio tenha mudado muito e esteja menos perigoso, segundo ela, mesmo assim, tem medo do rio, de navegar numa canoa pelas águas do rio, pois não sabe nadar. Topofobia... sentimento de medo... paisagem do medo? De acordo com Tuan (2005, p. 12), paisagens do medo “são as quase infinitas manifestações das forças do caos, naturais e humanas. [...] De certa forma, toda construção humana - mental ou material - é um componente na paisagem do medo, porque existe para controlar o caos”. Sendo assim, TEO não sente medo do rio, mas tem “medo de um colapso iminente de seu mundo e a aproximação da morte - a rendição final da integridade ao caos” (p. 14). Por tudo isso, gostaria muito de morar em outro local, mas seu marido não viveria longe dali, sem o rio das Contas, seu espaço geográfico e, sem seu barco, seu lar; respectivamente, liberdade e segurança (TUAN, 1980; 1983). Ser levada pelo rio... seria morrer, para TEO! Um conforto para ela pode estar nas palavras de Arbués (1997, p. 35): “Por acaso você não viajava como rio antes de nascer? E, com certeza, você não tem medo do tempo em que não era nascido. Não se deve temer a morte, mas, sim, temer estar morto na hora da vida”.

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O rio como subsistência

Quando interpretamos as entrevistas dos participantes da pesquisa, consideramos 10 respostas pertencentes à categoria subsistência, porque constatamos que o rio é essencial à vida, à própria sobrevivência destas pessoas que “vivem dele”, usufruindo seus benefícios, como a pescaria, a mariscagem, a paisagem, o transporte e, até mesmo, a água para lavagem de roupas. Segundo o Houaiss (2009), subsistência é o “estado ou característica do que é subsistente; estado das pessoas ou coisas que subsistem, que se mantêm; existência, permanência; conjunto das coisas essenciais à manutenção da vida; sustento”. Subsistir “é manter-se vivo, continuar a existir; conservar-se, sobreviver, perdurar; prover as próprias necessidades; manter-se, sustentar-se”. Subsistência, então, é o mesmo que sobreviver e, neste caso, sobreviver utilizando a água do rio das Contas como fonte de alimento. A busca da sobrevivência é um princípio da vida e a vida humana é o maior bem que temos, portanto, é fundamental ser preservada.

• Cidade de Itacaré: 02 sujeitos consideram que o rio significa também subsistência, mesmo que não seja para eles, mas para muitos itacareenses, ou seja, o rio é essencial porque muitas famílias “sobrevivem dele”.

REU é condutor de barco, guia turístico e pescador. Como sempre tem trabalho no rio, preocupa-se com aqueles que não têm e, que, precisam demais do rio das Contas para sobreviver. REU nasceu em Itacaré “na beira do rio”, como ele mesmo diz e, desde pequeno “vive dentro do rio”. Conhece cada família, cada curva, cada pedra do rio e pensa no “rio que dá peixe”, para a subsistência de muitos ribeirinhos: “é sobrevivência das pessoas, não só as que trabalham com turismo, mas a população ribeirinha, que depende tanto dele”. Para OTI o rio é tudo, “não vivo na beira do rio, mas todos os dias estou nele, vivo nesse rio há 40 anos”. Já morou na Comunidade Quilombola Rural João Rodrigues com o marido, que era agricultor, por isso navegou muito pelo rio. Denomina-se como uma grande conhecedora deste corpo hídrico e da fauna que vive nas margens, pois gosta muito dos pássaros aquáticos, do caranguejo, do vaza-barris, do siri, do aratu, do guaiamum... Através da sua percepção, sua vivência e sua experiência, OTI revela uma geograficidade topofílica com as águas do rio das Contas, nascida do profundo vínculo afetivo com elas... uma hidrofilia (GRATÃO, 2002). 176

“O rio é uma das melhores coisa do mundo, porque sem o rio, sem a água, a gente não vive. Porque a água é uma grande bênção pra vida da gente. O rio é tudo isso e mais alguma coisa. O rio é nossa vida, porque o que seria do homem sem o rio? É muito bom, uma maneira de transporte seguro, alimentação farta na hora que a pessoa quer, água para banho, navegar, tudo enfim. Já pesquei, mas não sou pescadora do rio, simplesmente, às vezes, vou pesca por esporte”. Mas, penso na pureza, pureza da água, pureza da vida porque a água é vida”!

OTI revela um sentimento de agradecimento, de valorização das águas do rio: “pureza da água, pureza da vida, porque a água é vida”! A água é bênção para a vida, porque sem a água os seres vivos não viveriam! Então, um rio significa vida: água, transporte seguro, alimentação farta constantemente, água para higiene pessoal e lazer. É assim que OTI sente o rio das Contas, é assim que ela o vivencia, cotidianamente, há 40 anos. Podemos, também, buscar em Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 15), as significações simbólicas da água para entender as palavras de OTI: “fonte de vida, meio para purificação e centro de regenerescência”. Como fonte de vida, a água tem o mesmo sentido de mãe: origem da vida, nascimento da vida, símbolo da fertilidade, da pureza... água feminina, água sagrada, bênção...!

• Distrito de Taboquinhas: o rio das Contas é apontado como subsistência somente para 01 mulher.

MAR define-se como pescadora e quebradeira de pedra, que só lava a roupa da família no rio: “pra mim o rio é tudo, onde arrumo o que comê, lavo a roupa de casa e fico satisfeita quando tô por dentro dele”. Esta mulher demonstra uma certa tristeza quando fala, mas não por culpa do rio mas, sim, pela sua vida difícil, marcada na sua pele muito envelhecida para sua idade e na sua humilde moradia próxima à margem direita do rio, em Taboquinhas, local onde deu a sua entrevista. MAR foi a única pessoa participante da pesquisa de campo, que falou de uma enchente no rio das Contas, pois o maior medo das pessoas de Itacaré é com relação à falta de água e ao declínio da atividade turística, devido à poluição das águas do rio ou à construção de uma barragem e, não, com relação à enchente no rio. Ela referiu-se ao medo “de ele enchê e de garranchá a gente daqui, como já fez várias veiz. A água veio até minha casa, foi muita água. Essa enchente maior ta com 27 anos”. Preocupação... medo... novamente, Paisagens do medo de Tuan (2005, p. 12), que “diz

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respeito tanto aos estados psicológicos como ao meio ambiente real”. Para MAR, uma paisagem de enchente aterrorizante, em que a chuva e o rio das Contas subiam... dia após dia, e a água ia ganhando a terra... “rio gordo, bem nutrido que acordara do letargo e agora se movimentava agitado, correndo, empurrando, submergindo, vivendo” (CORRÊA; CORRÊA, 1974, p. 141). Como as pessoas, os rios também sofrem nos períodos desses desequilíbrios climáticos, “[...] o homem padece da mesma aflição que os rios. Nele, tal qual como nos rios, há uma quebra na sua condição de vida, restando-lhe a esperança de que tudo possa florescer” (CARVALHO FILHO, 2005, p. 54). A volubilidade do rio das Contas é intimamente associada aos dramas das pessoas que habitam suas margens, refletindo-se na sua própria vida e na sobrevivência de seu pequeno mundo, ameaçado pelos alagamentos. Um rio não proporciona somente alegria àqueles que habitam suas margens, eles também têm suas “tristezas”! Sabemos que na Mata Atlântica do sul da Bahia sempre choveu e continua chovendo muito (ver Capítulo1). Por isso, o rio das Contas e seus afluentes, muitas vezes, ficam tão cheios, tão profundos, que alagam todas as áreas baixas próximas a eles, de modo que ninguém pode atravessá-los. No caso do rio das Contas, ele vem de um lugar distante, recebendo muitos afluentes, principalmente quando entra na floresta, o que lhe dá uma vazão considerável, podendo a qualquer momento aumentar rapidamente seu volume de água. Assim como escreve Tocantins (1973, p. 109), referindo-se aos rios amazônicos: “O caudal se alargava desmesuradamente, parecendo mal conter no leito o volume da massa líquida[...]”, o rio das Contas o faz e, no decurso da sua enchente, invade as matas e solapa os barrancos, suas águas em correria violenta vão lambendo a terra e carregando à tona paus, galhos, folhas secas, baronesas (tipo de vegetação aquática), animais mortos, etc., tudo em marcha acelerada para baixo... em direção ao mar... Na época em que o rio era a única “estrada” em Itacaré, as enchentes eram um problema muito maior, pois não existia outro meio de transporte a não ser o barco. Assim, os alimentos não chegavam nas fazendas na beira do rio, ou mesmo no distrito de Taboquinhas. Famílias inteiras, muitas vezes, passavam fome, pois somente algumas conseguiam obter alguma caça, mandioca ou banana verde; outras nem mesmo isto conseguiam comer. Portanto, as ocorrências da vida dessas pessoas estavam ligadas ao rio e não a terra, tamanha a dependência ao Contas.

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• Margem do rio das Contas: 07 sujeitos que vivem nas Comunidades Quilombolas Rurais em suas margens, consideram-no com um meio de subsistência, porque podem pescar em suas águas.

Nas entrevistas ouvimos falas como a de GIT, uma marisqueira da Comunidade Quilombola Rural Santo Amaro, da margem esquerda do rio das Contas, a mais próxima do centro urbano de Itacaré: “o rio é fonte de sustento”. Ou ainda, JUL, outra marisqueira da mesma comunidade: “o rio das Contas pra mim é um alimento, é o que nos alimenta”. E também para AGN, marisqueira nos fins de semana na mesma comunidade e babá na cidade de Itacaré durante a semana: “o rio é manguezal, é pesca”. Na Comunidade Quilombola Rural João Rodrigues, localizada também na margem esquerda do rio, bem próxima à ponte da rodovia BA 001, o agricultor CAS faz menção ao rio como: “a melhor coisa da vida, porque é uma fonte sustentável, todo dia a gente pesca, toma banho”. MAN, outro agricultor da mesma comunidade expõe: “o rio é 70 % sobrevivência”. E, para LAU, que vive no mesmo local e trabalha como canoeiro em Itacaré: “o rio é fonte de pesca”. Na Comunidade Quilombola Rural Fojo, localizada na margem direita do rio, próxima à Taboquinhas, a agricultora DAM alega: “o rio é importante de tudo, porque dali vem o alimento, a água e a areia”. Todas as Comunidades Quilombolas Rurais do rio das Contas são muito carentes de recursos, vivendo em condições precárias, motivo pelo qual o principal significado do rio, para as pessoas que moram nestes locais, é subsistência. Mas, o que chama nossa atenção são os sentimentos de respeito e de amor pelo rio, valorizados desde seus antepassados. Convivem em perfeita harmonia com as suas águas, com as suas matas, com os seus bichos... O movimento das águas... as paisagens do rio das Contas revelam a afetividade e marcam o espaço geográfico da identidade das comunidades remanescentes dos quilombos locais. Durante a pesquisa de campo, ao longo do rio das Contas, pudemos observar que as pessoas que habitam as suas margens integram-se com a sua dinâmica, pois a fonte de sobrevivência vem das águas, as quais os presenteiam com peixes, permitem os seus deslocamentos, de um lado para outro e, ainda, proporcionam-lhes prazer e felicidade.

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O rio como pertença

A nossa intenção é desvendar o olhar que 08 itacareenses lançam sobre o rio das Contas, sentindo-o como pertença, como um patrimônio que é deles, que faz parte da vida deles. Usamos o termo “o olhar”, considerando que “olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si” (CHAUÍ, 2006, p. 33). De acordo com o Houaiss (2009), “pertença é domínio (objeto privilegiado); domínio exclusivo sobre alguma coisa; propriedade”. Segundo Borba (2002, p. 199), “pertença é um nome feminino (abstrato de estado); pertencimento”. Então, os sujeitos da pesquisa, que assim olham o rio das Contas, têm o sentimento de que ele é exclusivo de Itacaré, ou seja, dos habitantes de lugar. Ao mesmo tempo, estes sujeitos sentem que o rio é o lugar ao qual pertencem, numa relação de estreita e intensa afetividade. Segundo Tuan (1980), quanto mais as pessoas atribuem significado e importância ao ambiente em que vivem, sentindo-se inseridas nele, mais este ambiente converte-se em lugar. São as sensações de pertencimento que possibilitam a conversão do espaço em lugar; é a manifestação do amor humano pelo lugar! Numa cidade como Itacaré, em que a atividade turística se mostra com perspectivas de crescimento, uma beleza natural como o rio das Contas, por exemplo, é uma das poucas coisas que pertence ao lugar e, que, a população local ainda pode desfrutar sem custos financeiros.

• Cidade de Itacaré: somente CLA se manifesta sobre o rio das Contas, como pertença do povo itacareense:

“Pelo menos neste trecho (Taboquinhas para cá) o rio é privilegiado, algo indescritível. Além da história da origem de Taboquinhas, têm lendas... antigamente estas comunidades começaram a se formar nas margens dos rios, exatamente por causa da pesca, das terras férteis para agricultura. Então, além da comunidade de Taboquinhas se manter através da produção do cacau, têm as histórias culturais, as manifestações culturais e as comunidades quilombolas que estão sendo identificadas na sua origem por conta do rio das Contas”.

CLA é a única habitante entrevistada da cidade que defende a idéia de que o rio pertence à população de Itacaré e o faz de uma forma muito bonita, referindo-se à paisagem, à história, às lendas, às Comunidades Quilombolas Rurais, enfim, à contribuição do rio expressa na cultura local. Fraxe (2004, p. 295), escreve que “no ambiente rural,

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especialmente ribeirinho, a cultura mantém sua expressão mais tradicional, mais ligada à conservação dos valores decorrentes de sua história”, a qual, geralmente, é transmitida oralmente e reflete a relação do homem com seu ambiente, através da sua percepção imaginária. O cotidiano destas pessoas é voltado para o rio, para a água do rio, para o espaço geográfico do rio ou espaço aquático, e sempre foi assim, desde a origem das comunidades locais. Esta pensadora de rio (CLA) traduz sua visão de mundo, tanto para a comunidade à qual pertence, como para outras comunidades que tem contato. Um exemplo é que no período em que estávamos fazendo a pesquisa de campo, CLA iria reunir-se com pessoas envolvidas pelas águas nascentes do rio das Contas (da cidade de Piatã), para pensar, discutir, refletir sobre este elo líquido, que conecta e envolve pessoas, conseqüentemente, vidas, culturas, desde a nascente até a foz. Para Unger (2001, p. 136), “Enquanto a tradição de um povo tem poetas e pensadores que possam dar testemunho do sentido profundo de suas manifestações, essa tradição está viva [...]”.

• Distrito de Taboquinhas: são 02 sujeitos que alegam: o rio é a história do lugar, pertence a Taboquinhas.

Um participante da ODER expõe seu sentimento de pertença com relação ao rio das Contas, considerando-o como parte da história do lugar:

“O rio é a história, faz parte da história do lugar. Taboquinhas surgiu através do rio das Contas, começou a se estruturar nas margens do rio, antes era a Fazenda Rezende, foi crescendo... O rio é muito importante pra gente porque, além da pesca, tem a questão da beleza natural que pode servir para o turismo, já serve com o rafting. Assim, eu me identifico com o rio das Contas porque, o fato de eu ser nativo daqui, as coisas que pertencem a este lugar me interessam, me chamam a atenção”.

“O rio é a história”, é com este sentimento que este participante começa a falar sobre o rio das Contas. Da mesma forma que CLA, para ele Taboquinhas tem uma relação intensa com o rio, uma geograficidade expressa na própria existência do lugar. A origem de Taboquinhas está ligada ao rio, “surgiu através do rio das Contas”, a partir do crescimento de uma fazenda da margem direita do rio, a qual foi crescendo, justamente, por estar localizada naquele local, onde o rio tem belezas naturais que pertencem à Taboquinhas e, conseqüentemente, marcam a sua identidade. Segundo UNGER (2001, p. 136), para as

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pessoas que vivenciam um rio cotidianamente “[...] o rio participa de tudo, desde as origens, desde sempre, refletindo e incorporando venturas e desventuras, as idas e vindas [...] entre a realidade e o imaginário [...]”. O sentido de pertença dado ao rio por este integrante da ODER está na frase “as coisas que pertencem a este lugar”. O rio das Contas é um lugar que pertence ao distrito de Taboquinhas e, lugar, para a Geografia Humanista, está ligado à afetividade, transparece sentimento de amor, de integração, de pertencimento. Assim, este homem identifica-se com o rio-lugar, porque ele pertence ao seu distrito-lugar. JEC, uma pescadora que lava a roupa doméstica na água do rio fala: “ele é minha vida, gosto muito do rio, é muito bom, é a vida de Taboquinha. Pesco a curuca, o siri e o robalo”. Sua narrativa é rápida, porque é muito tímida mas, nesta fala, demonstra todo o sentimento de afetividade que tem pelo rio, dizendo que ele é sua vida e também a vida do distrito em que mora. Conseqüentemente, o rio pertence aos dois (a JEC e a Taboquinhas), como a vida lhes pertence, pois sem ela não existiriam! Mais uma vez, o rio como lugar da existência humana. A base da existência é o lugar... segundo Dardel (1990) e, lugar é afetividade... JEC mantém um profundo vínculo afetivo com o lugar-rio das Contas... topofilia hídrica... uma hidrofilia (GRATÃO, 2007).

• Margens do rio das Contas: ele significa pertença para 05 sujeitos.

Na Comunidade Quilombola João Rodrigues, o agricultor MAN enuncia: “o rio das Contas é uma das histórias mais velhas e uma grande tradição”. GAB, outro agricultor expõe: “o rio é um valor muito grande para nós e para a população de Itacaré”. Estes quilombolas mostram que o rio das Contas para eles é um lugar com significados e valores expressos pelo sentimento de pertencimento. O rio é um lugar concreto, um espaço vivido, vivenciado pela experiência cotidiana deles e de seus antepassados, pessoas que resistiram à escravatura e foram habitar nas margens do rio, construindo uma relação singular, amorosa-afetiva, com sentido familiar, uma relação de pertencimento. O rio das Contas é “uma história velha”, faz parte da história de vida destes homens, antes mesmo de terem nascido e, também, da história das comunidades em que vivem. Por isso, tem um valor cultural muito grande para a região de Itacaré. VAL, um pedreiro que trabalha numa fazenda da margem direita do rio, também considera o rio das Contas como pertença, no sentido de que é de todos os moradores de Itacaré: 182

“O rio das Contas, não só para mim, mas para todos nós que habitamos por aqui, é muito importante porque serve para condução, pesca, muitas pessoas gostam de subir o rio para conhecer a paisagem, né. O rio tem grande importância para o ser humano”.

VAL confere ao rio das Contas um valor construído socialmente através da relação das pessoas com este caminho-hídrico, revelada numa geograficidade materializada na paisagem do rio. Resgatando Berque (2004), uma paisagem marcada por muitas histórias de invasões, roubo, morte, exploração... Mas, também, outras de muito amor pelo rio, de muito trabalho nas águas do rio, de vidas humanas ligadas ao rio. Enfim, uma paisagem que pertence aquele rio e àquelas pessoas que habitam suas margens, que têm vínculos com ele. Para TUR, um trabalhador de uma fazenda cacaueira, o rio significa benefício para as pessoas, pois pertence a Itacaré:

“Beneficia muito a gente aqui, hoje em dia não, mas há uns 30 anos atrás era meio de transporte, também o movimento todo dessa região era pelo nosso rio das Contas. Ele é nosso! Todo mundo viajava para Taboquinhas pelo rio e acima, pois até o Funil [a hidrelétrica], também era navegável”.

TUR diz que o rio das Contas é benéfico para as pessoas e, que, já foi muito mais utilizado quando toda a economia da região era transportada pelas águas do rio. Certamente, está lembrando-se do tempo em que o distrito de Taboquinhas era economicamente mais forte do que a cidade de Itacaré, antes da construção da rodovia BA 001. Ele fala: “nasci na beira do rio das Contas, mas não sei nadar. Não sou da água, tenho muito medo da água. Só gosto de apreciar ele, mas não tomo banho nele”. O sentimento que o rio desperta em TUR é o medo... medo da água... topofobia... a qual conduz à noção de Paisagens do medo (TUAN, 2005), termo que representa experiências negativas, amargas e desagradáveis com alguma coisa. Não sabemos porque TUR sente este medo mas, provavelmente, porque já teve alguma experiência desagradável nas águas deste rio, ou mesmo envolvido pelo seu imaginário, sente medo do que escuta falarem sobre o rio. Apesar de sentir medo das águas do rio das Contas, TUR faz questão de dizer que gosta muito de apreciar a sua paisagem e, que, não está gostando da degradação do rio... ele está morrendo por causa da poluição, “que cidades grandes, como Ipiaú, Ubaitaba e Jequié jogam esgoto nele. O pessoal deveria botar a mente no lugar e pensar em zelar dele para não morrer”.

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Na margem direita do rio, próximo à Volta do poço, ISA narra sobre o rio das Contas, como se ele fosse domínio de Itacaré:

“O rio das Contas é a riqueza da região, é beleza... eu acho que esta parte da região de Itacaré é a história... a importância do rio é a história desse rio”. Eu gosto do rio como um todo, o mistério que ele tem, destas histórias todas desses tesouros profundos, da história dos diamantes, não como forma de dinheiro, mas a história, a cultura, tão pouco conhecida. Ele representa a história de uma grande região da Bahia. O rio que vem da Chapada Diamantina significa diamante, riqueza, etc. Mas é riqueza no sentido da essência, porque para mim, a água é o elemento mais sutil que existe. É o elemento da vida, nosso corpo é constituído por quase 80 % de água, então eu acho que todos os povos deveriam venerar a água e esse rio que é tão importante para essa região”.

“O rio... eu vejo como se fosse um templo de energia da vida. Sai lá da montanha, da Chapada Diamantina e vem até Itacaré, é muito simbólico! O caminho dos escravos ao longo do rio, por exemplo, chega lá na Barra do Brumado tem um quilombo que foi descoberto há 60 anos. Tem um lugar chamado Mato Grosso que é de portugueses que vivem de flores. Nós já fomos até a nascente em Piatã, foi uma peregrinação de amor, paramos em muitos lugares”.

ISA pensa o rio como retrato da riqueza, da história, da virtude de uma região. Tudo no rio das Contas tem um mistério como que a unir o passado e o presente... ele é raiz inseparável de toda a região. Para ela não é difícil, mesmo de olhos abertos, imaginar uma vila antiga na beira do rio... ou pessoas que estiveram no rio no passado, que “fizeram o lugar”! É como se ela visse e/ou sentisse o “odor de tudo isso” nas águas do rio. Na visão de ISA, para entendermos uma região é preciso conhecermos os rios, suas histórias, suas estórias, seus mistérios, pois tudo num rio se mistura numa vida só! Ela sente o rio das Contas como um poeta sente um rio... “as visões do rio vão além deste horizonte, pois ele, mesmo estando aqui neste momento, pode conseguir ver desde a sua pequena nascente até a grandiosidade do mar onde deságua, pois, apesar de estar aqui, também está lá, na sua natureza de rio” (ARBUÉS, 1997, p. 34). Então... ISA adentra na visão do rio e consegue ver e sentir a sua essência, que é a sua água... essencial para a vida!

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O rio como lugar de alegria

O rio das Contas é um lugar de alegria para 08 sujeitos da pesquisa, contribuindo para que tenham uma vida mais feliz. Segundo o Houaiss (2009), alegria “é o estado de viva satisfação, de vivo contentamento; regozijo, júbilo, prazer”. A alegria é uma expressão da emoção nos seres vivos, é um sentimento de ternura... devoção... felicidade... Para Darwin (2000, p. 185), a alegria “quando intensa, desencadeia inúmeros movimentos sem finalidade: dançamos, batemos palmas, pisoteamos o chão, etc. E gargalhamos. O riso parece ser primariamente a expressão da felicidade. Vemos isso claramente nas crianças quando brincam, quase sempre rindo sem parar”. Na busca pela felicidade, o verdadeiro valor do rio das Contas é a inspiração de vida para os itacareenses que o sentem como um lugar de alegria, desfrutando sua água, seus peixes e mariscos, sua paisagem, a imagem da sua beleza cênica usada para o turismo, enfim, usufruindo a multiplicidade de benefícios de um rio. O rio das Contas, metaforicamente personalizado, fica feliz por participar um pouco da alegria destas pessoas... Nesta mesma perspectiva antropomórfica, em Itacaré o rio das Contas é tão alegre que podemos compará-lo com uma criança, pois suas águas parecem que brincam, não prestando muita atenção por onde passam, seja por entre pedras, desviando daqui e dali ou, simplesmente, correndo em direção ao mar, brincando como uma criança. Quando somos crianças imaginamos os rios mais brincalhões, mais alegres, mais felizes, parecendo conosco. Arbués (1997, p. 19) escreve que, para uma criança, um rio pode ser como “um grande pneu de bicicleta amassado que, embora cheio de curvas, acabava por se fechar como uma roda. Assim, ele acabara se explicando porque nunca parava de passar tanta água!” Tantos pensamentos... tantas imaginações de criança... mas, “o rio está sempre chegando e indo embora. É mesmo um menino!” (p. 20). Por outro lado, “o rio é mais alma, espírito, energia viajante, fugidia, buscando alguma coisa sempre. [...]. No rio não se pega e não se sobe, pois ele nos recebe, nos molha e a água dele tirada acabará retornando a ele ou a outro rio, de alguma forma” (p. 20). O rio que nos recebe, que nos presenteia com suas águas, com seus peixes, com suas cores, com seus cheiros, com suas paisagens... tudo isso é o momento de rio, ou seja, é viver um momento no rio: “Existem momentos da natureza que são tão ricos que as palavras nem sempre traduzem. É preciso vivê-los, estar lá na hora e no local” (p. 32). Assim, podemos perceber novas belezas no rio, “palavras no rio”! 185

A vida humana é como um momento de rio, porque cada pessoa nasce e morre no seu tempo, assim como o tempo do rio, o qual leva o tempo das águas, que nascem e, depois de percorrer seu leito, morrem no mar... mas, ao mesmo tempo, o rio está lá e aqui (nascente e foz), com sua visão de rio!

• Cidade de Itacaré: para nenhum sujeito da pesquisa o rio das Contas significa alegria.

• Distrito de Taboquinhas: 04 pessoas ficam felizes no rio ou, sentem-se felizes, somente, por saber que o rio está ali, bem próximo.

IGO, um menino de Taboquinhas que brincava na margem do rio, fala: “tomo banho no rio todos os dias onde não tem esgoto. O rio é para tomar banho, nadar e brincar, mas também sei pescar”. Ele vivencia o rio cotidianamente, tomando banho, nadando, brincando... são acontecimentos corriqueiros que descortinam uma relação de grande significado entre eles, uma relação de apego, de amor ao rio! Se adotássemos a postura de uma criança perante o ambiente em que vivemos seríamos mais felizes! Para interpretar o sentimento de IGO com relação ao rio das Contas, podemos lançar mão da obra de Tuan (1980, p. 111), na qual está escrito sobre o divertimento infantil. Na vida de uma criança, o que importa são certos objetos e as sensações físicas.

O divertimento infantil com a natureza atribui pouca importância ao pitoresco. [...] A natureza produz sensações deleitáveis à criança, que tem mente aberta, indiferença pelas regras de beleza definidas. O adulto deve aprender a ser complacente e descuidado como uma criança, se quiser desfrutar polimorficamente da natureza.

MAN, durante a entrevista, chega a entoar um samba de roda que cantava na época em que lavava roupa de ganho no rio, tamanha sua alegria, seu prazer, sua afeição, sua emoção, sua afetividade pelo rio das Contas:

“A canoa virô, eu vô balanceá A canoa virô, eu vô balanceá você brinca na areia, você brinca na areia, segura arupemba3 sacode arupemba que eu vô penerá. que eu vô penerá”.

3 Peneira. 186

O canto da lavadeira MAN soa tão agradável ao nosso ouvido, assim como o barulho do rio das Contas, com suas águas passando por entre as pedras em sua margem, emitindo uma espécie de música harmoniosamente natural. O funcionário público MAR pensa um pouco sobre o rio e fala: “é para tomar banho e pescar e ainda fazer campeonato de caíque, igual ao que teve há muito tempo... era muito bonito, muito alegre”. Rio também é esporte, é alegria! É assim que MAR tem seu momento de rio! Ele vivenciou a beleza e a alegria de um campeonato de caíque que aconteceu no passado, quando Taboquinhas recebeu muitas pessoas, todas voltadas para as águas do rio das Contas. Na sua memória estava guardado este momento de rio: um esporte praticado nas águas do rio das Contas, que trouxe alegria para o coração dos taboquinhenses. INE, pescadora desde mocinha, filha de um pescador da antiga aldeia dos índios Tapaxós, discorre assim sobre o rio das Contas:

“O rio das Contas, a gente vai lá pega os peixinhos, traz para casa, faz comida. O sentimento é de muita alegria. Pegando os peixinhos a gente tem que ficar alegre. Quem pega, quem não pega, a gente tem que ficar alegre, né, não vai xingá, a gente não botô nenhum lá, não pode, vai atrás do pão de cada dia, não vai xingá. Vai por Deus, ‘ô Jesus me dá um peixe’! Tantas vez deixa a casa da gente, vai pro rio, chega lá, Deus bota, a gente pega, vem com o samburá cheio, que alegria, dá comida pros velhos, pras crianças, a gente tem que ir lá por Deus”.

INE deixa transparecer uma imensa alegria e afetividade ao falar do rio, pois mesmo dizendo que os peixes do rio das Contas são a sua sobrevivência, para ela o rio é mais alegria! Esta pescadora vivencia o momento de rio, como que a procurar palavras no rio, agradecendo por Deus ter colocado os peixes nas suas águas, para as pessoas pescarem e sobreviverem. Então... a água é sagrada, tem que respeitar e agradecer!

• Margem do rio: neste local, 04 sujeitos ficam felizes ao referirem-se ao rio das Contas, o qual lhes contagia com tanta alegria e felicidade.

Administrador de uma fazenda cacaueira, CAM sempre morou na beira do rio. Para ele: “O rio é ótimo, beleza pura, alegria, tudo é bom. A gente tem o peixinho, de vez em quando a gente pesca, mas só para comê. O rio é pra tomá banho. Agora a água ta amarela, não ta prestando. Sempre no final do ano amarela, depois fica

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limpinha. Eu gosto do rio todo, não me imagino morando longe, daí faz falta, sou feliz aqui. Atravesso o rio a cavalo, vou nadando e ele também, depois pego o cavalo, o bicho nasce sabendo nadar”.

Sua vivência nas águas e na beira do rio das Contas faz com que CAM crie laços afetivos com ele, sentidos na sua maneira de falar do rio: “é ótimo, beleza pura, alegria, tudo de bom!” Parece-nos que a fala de CAM revela sua relação de amizade pelo rio das Contas, expressa em atitudes de afinidade e de sintonia na pesca do peixinho, na higiene pessoal e na travessia de uma margem à outra, que faz nadando com seu cavalo. Ele não se imagina morando longe do rio... talvez pudéssemos afirmar que ele habita o rio, no sentido pleno da palavra, pois conhece a alegria do rio através da sua própria alegria de ser seu habitante... é feliz neste rio, ele é o seu lugar! Em outra fazenda na margem do rio, MAR que estava acompanhando o marido no trabalho, aponta o rio das Contas como diversão:

“O rio é muito importante, uma coisa que, sei lá, não sei o que responder... pesco nele... namoro nele... O rio das Contas significa tudo, é bom para pescar, passear, tomar banho, aqui é doce, a pescaria é ótima. Em Ubaitaba morava na beira do rio, mas era um pouco ruim por causa da sujeira. Lá tomava banho, lavava roupa, mas era muito sujo, aqui é melhor do que lá. Depois que estou aqui me diverti muito mais do que lá, pescando, namorando, tomando banho”.

MAR se mostra muito tímida, mesmo querendo participar da entrevista, tal qual o marido. A sua fala nos chama a atenção pela palavra doce: “aqui é doce”. Quando morava em Ubaitaba (cidade a montante no rio), ela não sentia o rio das Contas tão doce, como em Itacaré. Talvez, pela água poluída... ou porque agora está tomada pelo sentimento de amor por seu marido... ela não vai mais sozinha ao rio... vai pescar, tomar banho, namorar nas suas águas, e se diverte muito mais... por isso ele é doce em Itacaré! A empregada doméstica de uma fazenda cacaueira, chamada NEI, sente alegria ao falar do rio, pois seus olhos brilham... e logo começa a dizer (sem parar de trabalhar) que sempre vai até a sua margem, somente para ficar apreciando... vivenciando seu momento de rio... “O rio é maravilhoso, já pesquei de rede no rio, é muito bom. O que mais gosto é de sentar e apreciar ele na Volta do Poço, tem uma vista linda pro lado de lá... o movimento da água, o peixe pulando, eu gosto muito, é muito bonito, fico muito alegre com o rio”.

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É o movimento do rio que envolve NEI nos momentos de contemplação da paisagem da Volta do Poço, “pro lado de lá” (uma curva muito acentuada para o lado esquerdo), margem em que a qualidade e o tamanho da floresta debruçam-se sobre seu espelho d’água, em saudação amorosa. Ali o rio é diferente... a água tem longos e brilhantes reflexos da cor do céu, que contrastam com a cor da mata, a qual, ao mesmo tempo, contrasta com o brilho da água do rio movimentando-se... ficando com cores da mata, pouco a pouco, mais vivas. Esta é a paisagem que NEI vê e sente, ao contemplar o rio... “uma vista linda pro lado de lá”... muita paz e alegria no seu momento de rio! ISA expõe seu sentimento de afeto pelo rio das Contas, fica entusiasmada, fala muito sobre o rio na sua entrevista... Conta que desde pequena sempre ia para Itacaré passar férias, e que, desejava (profundamente) morar neste lugar! Quando conseguiu comprar a fazenda na beira do rio das Contas, seu coração encheu-se de alegria e de vontade de viver! Para ela, habitar a margem do rio das Contas é só felicidade... Agradece sempre por ter conseguido comprar “esta terra”... para viver seu momento de rio, através da sua paisagem. ISA disse que sente desejo de ficar olhando para o movimento da água do rio, para as suas diferentes cores nas diversas fases do ano, para a beleza da Volta do Poço, uma paisagem que acalma e a faz feliz. O vínculo hidrotopofílico de ISA pelo rio... a geographicité pelo seu lugar-rio... vem “da intimidade física, da dependência material e do fato de que a terra é um repositório de lembranças e mantém a esperança” (TUAN, 1980, p. 111). No caso da ISA, esta intimidade e dependência são pelo rio das Contas...

“Por isso, quando compramos a fazenda onde passa o rio, que a gente vê lá de cima (da estrada), pra mim, o maior presente que poderia ter nesta fazenda é este rio que vem da Chapada Diamantina. Para mim esse rio é como se fosse um diamante, no sentido da essência. Compramos a fazenda, eu tinha sonhado com esse lugar, foi um conjunto: a beleza do lugar, o verde, os animais, o céu, o rio. Quando eu via um pedacinho dele (do rio) em Taboquinhas ficava feliz. Quando entrava neste lugar meu coração ficava calmo, porque esta região é muito rica, é rica de árvore, de água, de pessoas... Tenho amor ao mato, ao rio, ao lugar”.

A visão do rio alcança os homens, pois ele é mais velho, mais sábio, assim, conquista as pessoas, as quais ele sente que o amam. É como se o rio das Contas e ISA fossem um no outro, lá e aqui... o rio sentindo-se amado por ela e, ao mesmo tempo, amando-a! Existem outros sentimentos tão envolventes em beleza e pulsação?!

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“Eu vejo o rio, porque, por exemplo, daqui uma hora a água está de uma cor, ele vai para um lado, de repente a maré enche ela vai pro outro. O rio é verde porque a água do mar vem. Então o rio é movimento, é vida. Assim, nos meus sonhos, eu gostaria que fosse mais freqüentado por pirogas, por canoas, que tivesse mais um comércio nele, para as pessoas darem mais valor, ficarem mais em contato com ele”.

“Para mim o rio representa a vida, a água doce é a vida. Eu acompanho o rio como ele é, porque quando chove ele fica desta cor assim meio barrenta, têm as “baronesas” que descem, eu acho lindo, eu sou assim meio apaixonada sabe, não vejo nada que eu não goste. Até quando o rio encheu em 1985, que tomou Taboquinhas, eu fui ver a ponte cheia, isto faz parte da natureza, não fico reclamando. Têm cobra no rio, mas digo - não matem, devolvam ela para o rio, não matem, é a vida, representa a vida. Fui chamada de mulher da cobra porque não queria que a matassem. Eu só não gosto é da poluição do rio”.

ISA tem a sensibilidade para conceber a alma do rio das Contas e entender a sua cultura, ou a cultura que carrega em suas águas! Como uma mulher culta, ela conhece a história do rio, enxerga através do tempo e consegue imaginar a água fluindo... desde a Chapada, sempre... carregando muita história, bonita ou triste, mas de muito valor cultural. Até quando o rio transborda, ISA o enxerga com olhos de quem vê arte, pois para ela as águas da enchente de 1985 foram um espetáculo à parte no rio das Contas mesmo, que, tenham chegado a assustar pelo volume, mas “isto faz parte da natureza, não fico reclamando”. De acordo com Arbués (1997, p. 59), como uma poetisa, ISA sente “uma sensação de harmonia com a própria criação, de estar viva e determinante nela. A estranha e bela sensação de poder mergulhar numa palavra de prazer e, em seu breve instante, ser capaz de colher nela todas essas sensações”, demonstradas em um poema que fez sobre a água, inspirada nas águas do rio das Contas, das pessoas de Itacaré!

Meditation sur l´eau (Autora: Isa de Rincquesen)

L'element subtil et present Je me vois plonger sans peur et sans regret dans toi, L'eau de loin immobile, et pourtant... Avec ses nuances de bleu, ses ecumes blanches et ses turbulances... Combien des turbulences nous montres tu?

Tu es la vie Tu es la mer Tu es le lac profond Tu es le ruisseau qui charpente les collines Tu es aussi la cascade que avec sa musique nous remplie le coeur

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Tu es la grande et majestuese riviére qui coupe les forêts Tu es la petite goutte de la pluie que tombe sur les champs, et tu deviens grande et forte dans les jours de tempêtes Tu es aussi la rosée du matin

Tu es intuition Tu es invitation Tu es la déesse Tu es la mére Tu es mon bien-être et calme profond Tu es la larme que coule sur mon visage Avec tes couleurs echangeantes tu donnes le decor a la vie Tu es l'element des emotions Nous naviguons en toi au long de notre vie Il faudrait mille poetes et troubadours Pour dire tout les odes que tu merites Bienheureux les peuples que te venerent Je plonge encore dans toi et je me laisse encore aller dans tes bras et mon âme se libere à nouveau.

Fonte: poesia cedida pela autora.

A escritora ISA tem uma alma profundamente aquática! Parafraseando Ramos (1999b), ela concebe sua poesia a partir da compreensão da alma íntima de seu mundo... e canta “seu” rio das Contas, exuberante de água... matéria-prima de seu devaneio... de sua imaginação...! “A matéria que nutre... que dá substância à imaginação... ao devanei... é a água e, mais exatamente, a água doce que, em sua supremacia sobre a água salgada, flui viva pra a vida” (p. 37).

O rio das Contas “fala”... “sente”... “vive”... e nós podemos ouvir a sua voz e compreender seus sentimentos, através das pessoas de Itacaré, ou melhor, através das 41 entrevistas que fizemos a pessoas ligadas a ele, no município de Itacaré. Nestas entrevistas, foram dados 46 significados ao rio, como no exemplo de ISA, a qual percebe e sente o rio das Contas como pertença do povo itacareense e, ao mesmo tempo, como um lugar de alegria! Estes significados, expressos em palavras, foram distribuídos ao longo do rio das Contas, dentro do município de Itacaré, nos três locais em que fizemos as entrevistas. A Figura 56 mostra a espacialização destes significados, representando os sentimentos das pessoas com relação ao seu rio das Contas.

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Pertença Subsistência Trabalho Trabalho

Subsistência Trabalho Trabalho

Trabalho Trabalho Trabalho Trabalho

Alegria Pertença

Alegria Trabalho

Subsistência

Subsistência Pertença

Pertença

Trabalho

Subsistência

SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS AO RIO DAS CONTAS PELOS SUJEITOS DA PESQUISA, EM ITACARÉ-BA tência

Trabalho

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Pertença

Subsistência Pertença

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Subsistência

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Alegria Trabalho Subsistência Trabalho Pertença Alegria

Trabalho Trabalho

Figura 56 - Espacialização dos significados atribuídos ao rio das Contas, pelos sujeitos da pesquisa. Itacaré-BA, 2007. Contas, Espacializaçãopelos das rio 56 - Figura Itacaré-BA, atribuídos ao dos significados sujeitospesquisa. da

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De acordo com o pensamento de Dardel (1990), o rio das Contas é a base da existência... um lugar de existência humana daqueles que o experienciam... um lugar em que sentimos uma cumplicidade entre o rio e as pessoas... “[...] une géographicité l’homme comme mode de son existence et de son destin” (p. 2). São sentimentos hídricos/fluviais, vínculos hidrotopofílicos com o rio, vivências experienciadas cotidianamente com as paisagens do lugar, numa relação original: “[...] géographicité originelle: la Terre comme lieu, base et moyen de sa réalisation” (p. 42), ou seja, o rio das Contas como um lugar, base e meio da realização das pessoas de Itacaré! Para Holzer (2006, p. 111), esta relação traduz-se numa “geograficidade humana”, que se materializa nas paisagens da Terra, sobre as quais Dardel (1990, p. 41) escreve:

Le paysage est la géographie comprise comme ce qui est autour de l'homme, comme environnement terrestre”. “[...] le paysage n’est pás, dans son essence, fait pour être regardé, mais insertion de l'homme dans le monde, lieu d'un combat pour la vie, manifestation de son être avec les autres, base de son être social” (p. 44).

Quando as pessoas habitam um determinado lugar, com vistas à sua sobrevivência, no sentido de trabalho, subsistência, lazer, etc., sentem alegria por pertencer a ele e, tornam-se responsáveis pela produção deste lugar, ou seja, uma produção social decorrente das relações entre as pessoas e destas com o ambiente em que vivem. Diante desta idéia, podemos afirmar que o rio das Contas, para os sujeitos da pesquisa, é um lugar produzido socialmente através das suas vivências e experiências cotidianas, vividas no seu espaço geográfico, visíveis nas suas paisagens e traduzidas nos significados afetivos dados ao rio. Enfim, tanto em Itacaré, como em Taboquinhas e ao longo do rio das Contas, vivenciamos paisagens vividas, tanto individualmente, quanto socialmente, narradas nas entrevistas dos habitantes do lugar, os quais trabalham nas águas do rio e sentem uma imensa alegria por habitarem as margens deste rio, que pertence a eles! Os significados do rio das Contas como trabalho, subsistência, pertença e alegria, para os sujeitos da pesquisa revelam e desvelam as relações afetivamente vivenciadas com ele. Assim, compreendemos o espaço geográfico do rio, como um espaço que toma o sentido de lugar pelos... vínculos... experiências vividas... vivências... afetos... possibilitados pela imaginação (ou mundo interior) e expressos pelos sentimentos das pessoas de Itacaré. Encerrando este texto, as palavras de Jorge (2006, p. 37-38), sobre o rio Tietê, de São Paulo, podem ser utilizadas para o rio das Contas, pois ele é um rio que flui em meio a morros e matas, conferindo ao seu espaço geográfico, na Bahia... 193

[...] um aspecto verdadeiramente encantador. Mais ainda, [um rio que] propiciou a formação de um ambiente bastante favorável ao estabelecimento de agrupamentos humanos, na medida em que o relevo, a flora, a fauna e a água em abundância ofereciam inúmeras possibilidades de subsistência [...].

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Foz do rio das Contas, Itacaré-BA.

Ao finalizar:

O RIO DAS CONTAS CHEGANDO... AO SEU DESTINO

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AO FINALIZAR: O RIO DAS CONTAS CHEGANDO... AO SEU DESTINO

A lei do rio não cessa nunca de impor-se sobre a vida dos homens. É o império da água. Água que corre no furor da correnteza, água que leva, água que lava, água que arranca, água que se oferta cantando, água que se despenca em cachoeira, água que roda no rebojo, água que vai [...] (MELLO, T., 1987, p. 22).

O destino do rio das Contas foi traçado desde que “nasceu” nas montanhas de Piatã e, formando correntes rápidas encostas abaixo, “venceu” a Chapada Diamantina, “desfilou” suas águas pela aridez do sertão baiano e “penetrou vitorioso” na floresta, superando corredeiras e cachoeiras e, então, deslizando pelo seu estuário, “descansou suas águas”, formando a tranqüila “praia da Concha”, em Itacaré, para depois ir de encontro ao mar... (Figuras 57 e 58).

Fonte: www.opentur.com.br. Acesso em: fev 2008.

Figuras 57 e 58 - Foz do rio das Contas, Praia da Concha e espigão do Farol, em Itacaré-BA.

Neste seu último segmento, o estuário, as águas salgadas do mar misturam-se às águas “doces” do rio, suas margens alargam-se, a correnteza das águas fluviais torna-se mais lenta e, as menores partículas de argila, levadas rio abaixo, ficam em suspensão, sendo vagarosamente depositadas em suas margens e em seu leito. Neste mesmo local, com montanhas de enfeite, o rio das Contas compõe uma espécie de moldura, “abraçando” Itacaré, e (con)vivendo com a

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vida urbana da população (Figura 59). A cidade de Itacaré, por sua vez, fundada em suas margens “admira”, “olha” com encanto a vida do rio e do mar (Figura 60). Somente então, cansado de serpentear e saltar em boa parte do seu percurso, o rio das Contas conduz calmamente suas “águas azuis”, acompanhando o espigão do Farol na “Ponta da Barra” (ver Figura 58). Assim... as águas do rio, já misturadas às águas do mar, invadem o Oceano Atlântico... “cumprindo” seu destino ao se encontrar “oficialmente” com o mar. Esta é a paisagem do estuário do rio das Contas em Itacaré, sul da Bahia!

Fonte: www.opentur.com.br. Acesso em: fev 2008.

Figuras 59 e 60 - O rio das Contas chegando em Itacaré... a cidade “olhando” o rio e o mar.

Porém, mesmo o rio das Contas acabando seu percurso... ele não termina... seu tempo é outro, pois novas águas continuam sempre nascendo e fluindo pelo seu leito caudaloso, carregando... no seu constante fluxo: histórias, estórias, culturas, sincretismos, paisagens, visões de rio, “momentos de rio”, lembranças, esperanças, pensamentos, medos, dores, tristezas, sonhos, devaneios, desejos, alegrias, emoções, vidas.... Da mesma forma que um rio acaba, mas não termina... nós estamos finalizando esta tese, mas não estamos esgotando o assunto, nem completando nosso conhecimento adquirido através do rio das Contas e dos sentimentos das pessoas que o vivenciam em Itacaré. Retomamos e confirmamos a nossa tese inicial, de que existe uma intensa relação afetiva entre o rio das Contas e as pessoas que habitam seu espaço geográfico-hídrico, relação esta desvelada pelos significados dados ao rio, transformando-o em um lugar de vida, de existência, de sentimentos, de experiências, de vivências... paisagens hidrotopofílicas! O rio das Contas e as pessoas de Itacaré vivem um novo momento desde 1998, com a pavimentação da rodovia BA 001, trecho Ilhéus-Itacaré, no sul da Bahia. De fato, o acesso a

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Itacaré e, conseqüentemente, ao rio, ficou mais fácil, o que proporcionou um aumento considerável do fluxo de pessoas, pela atividade turística. Além da melhoria das condições de acesso, outros fatores responsáveis por este crescimento são as qualidades visuais e as propriedades da paisagem regional, as quais exercem uma forte atração sobre as pessoas, a exemplo da Mata Atlântica conservada, das praias apropriadas para o surf e do próprio rio das Contas, com seus atrativos. Estes aspectos acabaram formando uma imagem turística, ou imagem construída do local, divulgada em folhetos de propaganda turística e por pessoas que já visitaram o lugar. Esta “imagem” fez com que aumentasse, ainda mais, a procura de Itacaré, por parte dos turistas brasileiros e, também, estrangeiros. Os fatores geográficos naturais (localização e presença de lindas paisagens, como o rio, a Mata Atlântica e as belas praias, etc.) são relevantes na tomada de decisão dos turistas, ao escolherem um local para visitar ou conhecer mas, por si só, não conduzem a atividade turística e não bastam para explicá-la. Além destes fatores, dos equipamentos instalados e da divulgação do local na mídia impressa e falada, a presença humana é a condição mais relevante para a prática do turismo. Se não há pessoas, não há turismo. Contudo, à medida que o número de turistas aumenta em relação às pessoas do lugar, crescem os impactos positivos e negativos da atividade turística sobre o ambiente físico e sobre a vida do lugar. Os fatores positivos relacionados ao turismo são: disponibilidade dos elementos naturais para a prática do turismo e das paisagens para contemplação dos turistas; benefício econômico de pessoas da comunidade local, com a oferta de novos postos de trabalho; implantação e/ou melhoria de alguns serviços públicos oferecidos aos turistas e, conseqüentemente, aos habitantes locais; troca de experiências entre pessoas de diferentes culturas; etc. Por outro lado, a atividade turística também causa impactos negativos, como a degradação ambiental (danos aos elementos naturais, incluindo as águas dos rios; poluição do ar, aumento do barulho e, também, aumento da sujeira nas ruas); os altos preços dos serviços locais oferecidos, tanto aos turistas, como aos moradores; o aumento da violência e do uso de drogas; os problemas no trânsito, em estacionamentos, em restaurantes, em comércios, etc; o aumento dos preços dos imóveis; o crescimento urbano sem planejamento, muitas vezes, resultando num processo de favelização; a descaracterização da “vida do lugar”; etc. É claro que os turistas não são diretamente responsáveis pela maioria destes impactos, pois é o poder público que deve normatizar, fiscalizar e limpar os locais turísticos, os quais são sempre beneficiados economicamente. Mitigar os impactos socioambientais da atividade

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turística deve ser essencial, uma vez que, para desenvolver o turismo se beneficia das paisagens locais e da cultura do lugar e, ainda, precisa que reinem a paz e a segurança. Quanto ao rio das Contas-turístico, ele é um atrativo de destaque no cenário do turismo do sul da Bahia. São vários os motivos da sua procura pelos turistas, como: passeios com pequenos barcos por suas águas, para apreciar as margens conservadas pela lavoura do cacau plantada sob a Mata Atlântica, ou para conhecer a sede de uma fazenda cacaueira; passeios de canoas simplesmente para curtir o rio ou, mesmo, para contemplar as belas paisagens ao longo do seu percurso; passeios que levam a cachoeiras em alguns de seus pequenos afluentes ou, ainda, para praticar turismo de aventura nestas cachoeiras e nas corredeiras do rio, próximas ao distrito de Taboquinhas. Tudo isso tem alterado a vida das pessoas do lugar e tem modificado a paisagem do rio das Contas, que os itacareenses estão acostumados a apreciar. Como constatamos na pesquisa de campo, dezesseis sujeitos estão diretamente envolvidos pelo turismo. E, em conversas descontraídas com outras pessoas do lugar, percebemos que, de uma maneira geral, os itacareenses estão contentes com o crescimento dessa atividade. Mas, ao mesmo tempo, têm uma grande preocupação com relação à qualidade da água do rio e da vida do lugar. Neste contexto, mesmo que o turismo esteja sendo um importante fator de desenvolvimento regional e local, é necessário que ocorram práticas conscientes de uso do rio das Contas pelos turistas, para que as suas paisagens não se tornem alheias ao lugar! Também é preciso, que se considerem os valores e a identidade da população e, ainda, que Itacaré e o rio (mesmo sendo um local turístico) continuem sendo das pessoas do lugar, as quais precisam continuar vivendo, cotidianamente, sem se sentirem fora do seu lugar. O turismo de Itacaré deve apoiar-se na valorização das características físicas do local (incluindo o rio das Contas) e dos sentimentos das pessoas. Mas, também, deve considerar as estórias e tradições do lugar, pois não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, ou seja, como as águas do rio estão sempre fluindo... são sempre outras, assim é o tempo... é a vida... Tudo transforma-se a cada instante, como o próprio rio, as pessoas do rio e seus saberes e sabores. A cultura do lugar não pode ficar esquecida, guardada somente na memória dos itacareenses! Ao contrário, a sua valorização pode ser um ganho para o turismo local. Assim, consideramos que a atividade turística deve estar voltada, também, para os aspectos do folclore local ou saberes populares e para a gastronomia do lugar. Os saberes populares são expressões/revelações da alma popular, através das idéias e dos sentimentos coletivos, inconscientemente, construídos e reconstruídos, através dos tempos, em um lugar e,

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preservados pela tradição oral. Portanto, as fantasias imaginárias, as crenças e os costumes vividos pelos pescadores, pelas marisqueiras, pelos canoeiros, pelas lavadeiras, pelos trabalhadores do cacau, etc. precisam ser preservados, para que não se percam os valores humanos tradicionais do povo de Itacaré e a identidade do lugar e, conseqüentemente, do próprio rio. A gastronomia local diz respeito aos sabores do lugar... aquelas comidas sempre lembradas, quando nos referimos a algum local, ou seja, as especificidades gastronômicas de Itacaré, a exemplo do filé da curuca de Taboquinhas, do filé de pitu, das deliciosas cocadas de frutas, vendidas nas praias itacareenses, etc. A troca entre culturas que a atividade turística proporciona ao lugar tem, evidentemente, um importante papel no seu desenvolvimento. Mas, os saberes populares, os sabores, as tradições... enfim, a cultura do seu povo é essencial para um futuro ambientalmente sustentável de Itacaré, pois cada lugar tem características próprias, singulares, não existindo nenhum outro com características completamente iguais. Isto é mais um motivo para a valorização dos seus saberes e sabores. O rio das Contas, um ser vivo, munido de vida animal e vegetal, de energia, de movimento, de transformações, de águas que carregam vidas, histórias de vidas, crenças, tradições, visões de mundo, devaneios, sonhos, afetividade... e, até tristezas... é uma grande revelação da vida do lugar, por isso é pertença dos itacareenses, imprimindo sua marca na paisagem hidrotopofílica do lugar. Ele não pode morrer, porque faz parte da vida do lugar, sendo uma característica marcante na paisagem itacareense e, com seus encantos, contribuindo como um forte atrativo turístico. Neste sentido, a educação ambiental poderá ser uma prática importante para as pessoas do lugar, com relação à percepção e cognição do seu meio, com conseqüência direta nas suas atitudes com relação ao rio das Contas, à cultura e ao turismo local. Pensando no futuro de Itacaré... e, não sabemos o quanto a atividade turística participará deste futuro... esperamos que a qualidade do meio tenha um papel importante na sustentabilidade ambiental do lugar (até porque se for da vontade da população local que o turismo continue crescendo, a qualidade do ambiente deve ser considerada como prioridade). Esta sustentabilidade refere-se à valorização das pessoas e da afetividade pelo seu meio, o que lhe confere o sentido do lugar, e ao respeito à cultura local, através do reconhecimento da importância dos saberes populares e da apreciação dos sabores do lugar. Com uma atividade turística apoiada em valores locais, será possível um futuro mais coerente com a sustentabilidade ambiental de Itacaré.

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Também, consideramos necessário que a percepção do meio ambiente, a exemplo dos sentimentos humanos pelo rio e, ainda, os aspectos do folclore e da gastronomia locais, sejam respeitados e valorizados nas ações de planejamento das agências municipais, estaduais e federais e nas decisões políticas de órgãos governamentais e não governamentais, para a sustentabilidade econômica e ambiental do lugar e para o futuro do próprio rio das Contas, de Itacaré, da região, do Estado e, quiçá, da Nação! Quanto ao mais notável elemento fluvial de Itacaré, foco principal da nossa pesquisa, sua presença está marcada nas paisagens e na memória de muitas pessoas do lugar, como sendo o seu rio e, até mesmo, como o rio da sua infância... assim como temos marcado na nossa memória, o rio da nossa infância!

Palavras sobre o Rio da nossa infância...

“Levando em conta” a vivência no rio das Contas, que este estudo nos proporcionou, “nos demos conta” das lembranças dos tempos em que brincávamos nas águas do principal Rio da nossa cidade. Tempos em que fazíamos piqueniques nas margens do rio Marrecas, quando suas águas eram límpidas, ainda não poluídas pela crescente urbanização de Francisco Beltrão-PR. O Rio da nossa infância... com pedras ou corredeiras (naquele tempo ainda não conhecíamos este termo), por onde tentávamos “passar ou brincar”, vencendo os desafios que ele nos oferecia. Lembranças do passado... Coisas de criança... Vínculos hidrotopofílicos... geograficidade! A água era fria e tínhamos medo da “imensidão do Rio”, visão de uma criança. Mas, ao mesmo tempo, foi um tempo maravilhoso... tempo em que vivíamos nosso “momento de rio de criança” e tínhamos nossa “visão de mundo de criança”, a qual devaneava nas margens do Rio, imaginando como aquela água toda chegava até lá... e, para onde ia... Também, sentíamos medo do Rio. Contudo, os dias em que “passávamos nele eram deliciosos”: nossa família e nossos amigos, todos juntos, vivenciando “momentos no Rio”. Momentos de alegria, de felicidade... de brincadeiras... de sabores... de descobertas... de aventuras... de medos... de carinho... de afetividade... o que, hoje, viraram lembrança... saudade... tristeza... nostalgia... O caráter evocativo das águas da nossa memória, enquanto imagem-lembrança, remete-nos à consciência de momentos felizes, singulares, irreversíveis da nossa vida... Por isto, durante o período em que desenvolvemos este trabalho de tese, voltamos para visitar o 201

nosso Rio-lugar: as águas, as pedras, as curvas, a vegetação das suas margens... ele não era mais o mesmo! Então, novamente “nos demos conta”, de que também não somos mais as mesmas! Crescemos, somos adultas, estamos maduras... e o nosso Rio, quase morto! Mas, ao mesmo tempo, sentimos uma imensa alegria quando percebemos que estudamos um rio da Bahia, para podermos resgatar emoções e reviver o nosso rio do Paraná, o “Rio do nosso tempo de criança” e, ainda, “levamos em conta”, que o rio das Contas, “afinal de contas”, pode ser o nosso “Querido Rio da Infância”!

“Do rio brota a vida... A vida do rio manifesta-se nas pessoas do rio... na minha tese e na minha vida...!”

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