O IMAGINÁRIO DAS VIAGENS Literatura, Cinema, Banda Desenhada
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COLEÇÃO HESPÉRIDES LITERATURA O IMAGINÁRIO DAS 32 VIAGENS Literatura, Cinema, Banda Desenhada Maria Cristina Daniel Álvares Ana Lúcia Amaral Curado Sérgio Paulo Guimarães de Sousa ORGANIZAÇÃO O IMAGINÁRIO DAS VIAGENS Literatura, Cinema, Banda Desenhada O imaginario das viagens.indb 1 01-12-2013 20:47:48 O imaginario das viagens.indb 2 01-12-2013 20:47:49 O IMAGINÁRIO DAS VIAGENS Literatura, Cinema, Banda Desenhada ORGANIZAÇÃO Maria Cristina Daniel Álvares Ana Lúcia Amaral Curado Sérgio Paulo Guimarães de Sousa O imaginario das viagens.indb 3 01-12-2013 20:47:49 O IMAGINÁRIO DAS VIAGENS Literatura, Cinema, Banda Desenhada Organização: Maria Cristina Daniel Álvares Ana Lúcia Amaral Curado Sérgio Paulo Guimarães de Sousa Direção gráfi ca: António Pedro Edição do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho © EDIÇÕES HÚMUS, 2013 End. Postal: Apartado 7081 – 4764-908 Ribeirão – V. N. Famalicão Tel. 926 375 305 E-mail: [email protected] Impressão: Papelmunde, SMG, Lda. – V. N. Famalicão 1.ª edição: Dezembro de 2013 Depósito legal: 365811/13 ISBN 978-989-755-018-8 O imaginario das viagens.indb 4 01-12-2013 20:47:49 AO SABOR DO AMOR: A VIAGEM EM MY BLUEBERRY NIGHTS DE WONG KAR-WAI José Duarte [email protected] UNIVERSIDADE DE LISBOA Em 2007, Wong Kar-wai fi lma a sua primeira obra em solo americano e em língua inglesa. O fi lme intitulado My Blueberry Nights não foi bem recebido por grande parte dos críticos. Nele, o realizador serve-se de um género tipicamente americano, o road movie, para contar a história da viagem de Elizabeth, uma mulher que parte em autodescoberta após uma crise amorosa e espiritual. O resultado é um fi lme cuidadoso que refl ete sobre a importância da viagem e da paisagem na cultura americana, onde a câmara procura fi lmar a importância do tempo e da memória, do passado e do presente. Desta forma, o presente estudo procura efetuar uma leitura do fi lme enquanto road movie e uma análise da relevância 333 da viagem e regresso da protagonista como exemplo da transitoriedade da vida e da importância que o realizador coloca na ideia de destino(s) e nos encontros fortuitos que irão transformar a protagonista. AO SABOR DO AMOR: A VIAGEM EM MY BLUEBERRY NIGHTS DE WONG KAR-WAI I’ll follow the long thin line of my shadow until I find somewhere to get to. José Duarte (David Harsent) Introdução: a estrada, a viagem DE ACORDO COM RON EYERMAN E ORVAR LÖFGREN NO ARTIGO “ROMANCING THE ROAD: ROAD MOVIES AND IMAGES OF MOBILITY” (1995), o sonho de fazer-se à estrada, e a vida de liberdade que esta permite, tem uma longa histó- ria cultural que se serve de uma América em constante movimento e mudança. A viagem é um tema caro à nação americana, uma vez que o mito da estrada tem origem nos valores da fronteira e da mobili- dade – uma imagem persistente na cultura americana. Neste sentido a estrada permite o movimento físico, mas também social, impregnando a viagem de possibilidade e esperança, como afirma David Laderman em Driving Visions: Exploring the Road Movie: O imaginario das viagens.indb 333 01-12-2013 20:48:08 [...] let us consider the road: an essential element of American society and history, but also a universal symbol of the course of life, the movement of desire, and the lure of both freedom and destiny. Like the wheel, the road expresses our distinction as humans, embodying the essential stuff that makes human civilization possible. Conjuring an array of utopian con- notations (most generally, “possibility” itself), the road secures us with direction and purpose. (2002: 2) O sentido de possibilidade e de mudança é um dos temas que o presente artigo procura explorar. Ao embarcar numa viagem de autodescoberta Elizabeth (Norah Jones), a protagonista do filme de Kar-wai, observa outras vidas em diferentes lugares e, ao ponderar sobre elas, enfrenta os seus próprios receios. Da mesma forma, Kar- wai utiliza o road movie [1] para refletir sobre a importância da viagem e sobre a transitoriedade da vida. Para isso o realizador serve-se de vários cenários tipicamente americanos (o café, o bar, o casino) explorando-os 334 enquanto metáforas para as personagens que habitam esses espaços. Assim, este ensaio tem um duplo propósito: a análise de My Blueberry O IMAGINÁRIO DAS VIAGENS Nights enquanto road movie essencialmente de demanda e, ao mesmo Literatura, Cinema, tempo, a decomposição e estudo das cenas de maior importância – Banda Desenhada desde a partida até ao regresso da protagonista – de forma a entender qual intento da viagem neste filme. Como refere David Laderman (Idem, 3), é o fascínio dos americanos com a estrada e a dinâmica existente entre esta, o carro e o cinema que origina o género cinematográfico conhecido como road movie e, embora a relação entre estes três elementos não seja recente, ela torna-se mais explícita neste género, onde o movimento, velocidade e mobilidade são privilegiados, dado a influência do carro como “a grande promessa do eu numa cultura de reprodução mecânica” (Corrigan, 1994: 146). [2] O viajante do road movie parte à procura de algo e a estrada torna-se no 1 O road movie é um género particularmente difícil de definir. Contudo, como afirma Jaime Correa (2006: 272) o género apresenta uma série de motivos recorrentes que con- tribuem para a sua definição. De acordo com o mesmo autor (Idem, 273) o eixo principal de um road movie geralmente envolve um relato de demanda que é também uma história passada na estrada. 2 Por um lado a ligação entre cinema e estrada parece estar presente ao longo da história do cinema da sétima arte (cf. Cohan & Hark, 1995: 1/2) e, por outro, porque tanto o carro O imaginario das viagens.indb 334 01-12-2013 20:48:08 espaço alternativo para as várias experiências transformadoras que contribuem para a sua mudança. Tal como Michel Onfray (2009: 16) explica no seu livro Teoria da Viagem: Uma Poética da Geografia, o viajante recusa um tempo coletivo que sente enquanto limitador e prefere um tempo singular, feito de instantes e, quando se faz à estrada, vive dos seus impulsos e de um mundo que se lhe abre como se fosse algo completamente novo no qual sente a necessidade de redescoberta. A viagem na estrada tem uma dimensão escapista, mas também reveladora. O road movie torna-se no espaço de exploração das tensões e crises do momento histórico em que é produzido (Cohan & Hark, 1995: 2), o que faz com que a viagem pela estrada ao longo do tempo tenha sofrido transformações a nível do seu significado. Em Easy Rider (1969) de Dennis Hopper, filme que codifica grande parte das características do género, a viagem de Wyatt e Billy não só tem um propósito de demanda (a redescoberta de uma América que parece já não existir), mas também de rebeldia visto as personagens principais estarem à margem da cultura dominante. [3] 335 Nas décadas seguintes do séc. XX, o road movie viria a servir pro- pósitos diferentes. Nos anos 70 a viagem era psicologicamente ener- AO SABOR DO AMOR: A VIAGEM EM vante, perigosa e vazia. Filmes como Two-lane Blacktop (1971, Monte MY BLUEBERRY NIGHTS DE WONG KAR-WAI Hellman) ou Vanishing Point (Richard C. Sarafian) são exemplos de como a jornada na estrada coloca os protagonistas à deriva, insistindo José Duarte no seu falhanço e solidão. Já nos anos 80, o road movie coloca a tónica no regresso à família. Como nota Katie Mills (2006: 160), o tema da inquietação psicológica e da viagem no vazio já não assume o papel principal na viagem do herói, nem tanto o sentido de rebeldia que vimos em Easy Rider. Os protagonistas procuram aquilo que é familiar, no sentido em que há uma nostalgia pelo passado e, mais do que viajarem pelo espaço geográfico, atravessam o tempo, como em Back to the Future como o cinema, enquanto objetos de consumo, fornecem mobilidade (Laderman, 2002: 3) seja na forma literal ou na forma “escapista” através da narrativa visual. 3 Bonnie & Clyde (1967) de Arthur Penn também é considerado um dos filmes que maior influência teve no surgimento do género e é responsável por um dos dois pretextos nar- rativos do road movie, aquele que glorifica a fuga (Laderman, 2002: 20). Por seu lado, Easy Rider concentra-se mais na ideia de demanda, embora, na maior parte das vezes, estes dois pretextos acabem por aparecer juntos em grande parte dos filmes que trabalham o tema da viagem na estrada. O imaginario das viagens.indb 335 01-12-2013 20:48:08 (Robert Zemeckis, 1985). Em grande parte destes filmes a viagem física corresponde a uma viagem espiritual que transforma o herói. Contudo, desde o início do género que o condutor do veículo con- tinuava a ser masculino e, apesar de marginal, pertencia à cultura dominante representada pelo homem branco, uma vez que, até então, o género não incluía outros marginais e, a acontecer, eram represen- tados de forma negativa. [4] Foi preciso chegar aos anos 90 do séc. XX para que a viagem colocasse como protagonistas figuras que, até então, tinham sido marginalizadas: mulheres, gays, nativo-americanos, afro- -americanos ou idosos viajam agora à sua maneira e no seu próprio ritmo, sublinhando a importância das questões culturais e políticas da época, como comenta Mills (2006: 188): The road remains a space of metamorphosis, as it has been throughout the postwar decades, but in the nineties this evolution extended beyond those who travel on the road to those communities touched by the protagonist 336 who travels.