Universidade Metodista de São Paulo

Diretor Superintendente do Cogeime Diretor Geral das IMEs Robson Ramos de Aguiar

CONSAD – Conselho Superior de Administração Titulares: Valdecir Barreros (Presidente); Aires Ademir Leal Clavel (Vice-Presidente); Esther Lopes (Secretária); Marcos Gomes Torres; José Erasmo Alves de Melo; Renato Wanderley de Souza Lima; Jorge Pereira da Silva; Andrea Rodrigues da Motta Sampaio; Cassiano Kuchenbecker Rosing; Luciana Campos de Oliveira Dias; Bispa Marisa de Freitas Ferreira Membros Suplentes: Eva Regina Pereira Ramão; Josué Gonzaga de Menezes

Reitor Paulo Borges Campos Junior Diretor de Graduação Sérgio Marcus Nogueira Tavares Diretor de Educação a Distância Marcio Araújo Oliverio Diretora de Pós-Graduação e Pesquisa Adriana Barroso de Azevedo Diretora de Extensão e Ações Comunitárias Alessandra Maria Sabatine Zambone Diretor da Faculdade de Teologia Paulo Roberto Garcia Diretor do Campus Rudge Ramos Carlos Eduardo Santi Diretor do Campus Planalto Nilton Abreu Zanco Diretor do Campus Vergueiro Alessandra Maria Sabatine Zambone

Conselho de Política Editorial Paulo Borges Campos Junior (Presidente); Alessandra Maria Sabatine Zambone; Cristiane Lopes (Presidente da Comisão de Livros); Isaltino Marcelo Conceição; João Batista Ribeiro Santos; Lauri Emilio Wirth; Marcelo Furlin; Mário Francisco Guerra Boaratti; Noeme Timbó (Biblioteca)

Comissão de Livros Adriana Barroso de Azevedo; Almir Martins Vieira; André Luiz Perin; Antonio Roberto Chiachiri; Cristiane Lopes (Presidente)

Editor Executivo Sergio Marcus Nogueira Tavares Dimas A. Künsch Mateus Yuri Passos Carolina Moura Klautau Patricia S. Machado Paulo Emilio Fernandes Tayane Abib Organizadores

PENSAR COM O SIGNO DA COMPREENSÃO

UMESP 2019 UMESP 2019 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca Central FICHA da UniversidadeCATALOGRÁFICA Metodista de São Paulo)

P387 Pensar com o signo da compreensão / Organizadores Dimas A. Künsch... [et al.]. São Bernardo do Campo : Universidade Metodista de São Paulo, 2019. 251 p. : il.

Bibliografia ISBN 978-85-7814-404-3

1. Compreensão (Teoria do conhecimento) 2. Comunicação 3. Conhecimento 4. Comunicação - Filosofia I. Künsch, Dimas A.

CDD 121

AFILIADA À

Editora Metodista Rua do Sacramento, 230, Rudge Ramos 09640-000, São Bernardo do Campo, SP • Tel: (11) 4366-5537 E-mail: [email protected] • www.metodista.br/editora

Capa: Cristiano Freitas Editoração eletrônica: Maria Zélia Firmino de Sá Sumário

Apresentação De novo a ideia do poeta de que o caminho se faz andando...... 9 Dimas A. Künsch | Mateus Yuri Passos | Carolina Moura Klautau | Patricia S. Machado | Paulo Emilio Fernandes | Tayane Abib prefácio...... 19 Prefácio Da explicação pronta à compreensão incerta...... 19 Cremilda Medina PENSAR COM O SIGNO DA...... 35 Versar con el otro/diferente: tejer conocimiento desde la conversación como método de comprensión...... 35 Alba Shirley Tamayo Arango

Rousseau 2.0: ou da compreensão pelo sujeito virtual...... 45 André de Paiva Bonillo Fernandes

Entre saberes: o abraço compreensivo da ciência e do mito...... 61 Carolina Chamizo Henrique Babo

Comunicação, mito e sincronicidade: um olhar sobre a obra de Mircea Eliade...... 77 Carolina Moura Klautau

Poder, política e diálogo em Hannah Arendt: compreensão e dialética...... 99 Cláudio Novaes Pinto Coelho

Música de câmara, cultura do ouvir e compreensão: contribuições de Otto Maria Carpeaux e Vilém Flusser...... 115 José Eugenio de Oliveira Menezes Mauro de Souza Ventura O eu da compreensão e o ato presencial: comunicação e relação face-a-face...... 131 Maria Angélica Aleixo Beck Lourenço

Epistemologia da compreensão em viés nietzschiano...... 147 Mauro Araujo de Sousa

Ecofeminismo espiritualista e ecosofia: sobre o pensamento compreensivo e o reencantamento do conhecimento...... 163 Patricia S. Machado

Alteridade e sensibilidade na perspectiva da compreensão como método...... 181 Paulo Emílio de Paiva Bonillo Fernandes

El interpretar en el camino de la comprensión: hacia una semiohermenéutica desde Peirce y Gadamer...... 205 Pedro Agudelo Rendón

Identidade de gênero, mito e conhecimento: o romance A mão esquerda da escuridão, de Ursula Le Guin...... 219 Roberto Fideli

Laço, ritual, máscara e mimese: um olhar para o brincar sob a ótica da compreensão...... 235 Tadeu Rodrigues Iuama

Organizadores deste volume...... 249 Apresentação

DE NOVO A IDEIA DO POETA DE QUE O CAMINHO SE FAZ ANDANDO

Dimas A. Künsch Mateus Yuri Passos Carolina Moura Klautau Patricia S. Machado Paulo Emilio Fernandes Tayane Abib

Como o Jano bifronte da Roma Antiga, a proposta da com- preensão tem duas faces – embora não seja duas-caras. Por um lado trabalhamos seus aspectos intersubjetivos, de percepção do Outro, de valores e culturas essencialmente distintos dos nossos; por ou- tro, temos a dimensão epistemológica compreensiva, aquela que busca promover o diálogo entre aqueles teóricos que não se bicam, aquelas abordagens que alguns julgam incompatíveis, entre cam- pos e áreas que atravessam a rua quando se deparam na mesma calçada – e, num nível mais fundamental, promover o diálogo entre formas de saber que muitas vezes fingem não se ver, como paren- tes brigados há tanto tempo que nem recordam mais os motivos. Saber e conhecimento, como dizemos sempre, numa perspectiva mais ampla, que abarca para além das ciências as artes, os mitos, as religiões e outras formas tradicionais de olhar para o mundo e ten- tar lhe atribuir significado. Inter, multi, trans e indisciplinar. 10

Este Pensar com o signo da compreensão é o quinto livro de uma série integralmente dedicada a desvendar a compreensão como método a partir das mais diversas perspectivas, reunindo treze capítulos cujos autores se propõem a discutir, mais especi- ficamente, como pensar de forma compreensiva – como, efeti- vamente, construir um olhar epistemológico que abrace os mais diversos saberes, em vez de separá-los, compartimentá-los, fatiá- -los. Aqui simultaneamente encerramos uma fase dos projetos relacionados à compreensão e damos início a uma nova, agora junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo, e sempre com a parceria do Departamento de Comunicaciones da Universidad de Antioquia. Quem nos lê talvez pense: “Ah, que beleza, este livro vai me dizer tudo o que preciso saber sobre compreensão!” Se for o caso, temos uma ótima notícia para você: não dirá; e não pretendemos nunca escrever um que diga. Um de nossos preceitos fundamentais é, justamente, que a ideia de algo definitivo, estabelecido, imutá- vel, certo, é uma falácia. Chegarmos um dia a delimitar claramente “compreensão é ______” implica imediatamente pôr fim, des- truir o projeto de investigação compreensiva. A resposta, já devería- mos saber, é a morte da pergunta – e a pesquisa em compreensão requer, antes de qualquer outra coisa, um espírito curioso que não se cansa de perguntar e não tem pressa em responder. Por isso preferimos trabalhar com noções em lugar de con- ceitos – aquilo que já está estabelecido, pronto para ser apenas aplicado e reproduzido já está morto. Criar dogmas, angariar se- guidores, criar uma lista de instruções e procedimentos a serem burocraticamente seguidos não nos interessa. Que propósito há, afinal, em se trilhar um caminho quando já se conhece todo o per- curso, quando este não trará nada de novo? O caminho, sabemos, se faz ao caminhar, e cada pesquisador compreensivo cria o seu próprio – não isoladamente, claro, mas em diálogo com os demais, com aqueles que caminham junto, cada um em seu próprio ritmo, em sua própria trilha, todos instigados pela chama do compreen- der, sem destino certo, sem data para terminar. 11

Saber bom é saber vivo, perenemente mutável, aquele que escapa às definições simplistas, às receitas, às fôrmas. Nesse sen- tido, pensamos a investigação “A compreensão como método” – e o grupo de pesquisa que agora leva o mesmo nome – não como a execução, por dezenas de pessoas, de um projeto estabelecido verticalmente, mas pela construção coletiva de um projeto cuja fisionomia se altera conforme juntam-se a ele mais participan- tes, ou conforme se transformam os interesses e preocupações epistemológicas de seus participantes mais antigos. Um projeto em que autonomia e diálogo são componentes fundamentais e andam de mãos dadas. Vamos dar um olhada em quem encon- traremos pelo caminho:

Versar con el otro/diferente: tejer conocimiento desde la conversación como método de comprensión Alba Shirley Tamayo Arango Neste primeiro capítulo, a autora aborda a experiência de encontros entre mulheres vítimas do conflito armado colombiano e de homens que foram agressores, de modo a inquirir sobre a construção de subjetividades, as transformações dos sujeitos e a incidência individual e coletiva propiciada pelas conversas e atividades realizadas no presídio de segurança máxima de Itagüi-Antioquia. Para registrar o acontecimento e compreender sua per- cepção em sujeitos diversos, Alba Shirley Tamayo Arango toma a conversa e o diálogo como caminho que permite elaborar tecidos de razões e emoções e gerar compreensão, com o propósito de evidenciar processos em que as pessoas, em suas palavras, se entre-vistam como seres sentipensantes.

Rousseau 2.0: ou da compreensão pelo sujeito virtual André de Paiva Bonillo Fernandes Neste capítulo, André de Paiva Bonillo Fernandes busca conciliar a catego- ria rousseauniana de alienação ao campo compreensivo. Em um mundo dominado pelos ambientes virtuais, o método da compreensão pressupõe o problema epistemológico de investigar quem é o sujeito da compreen- são. Num contexto em que o desenvolvimento das faculdades virtuais le- vou o homem a alienar-se voluntariamente de si mesmo e, no desejo de ser visto, constituir-se a partir do olhar do outro, crianças e adolescentes ele- geram a fama como o valor mais importante da atualidade. Se a sociedade 12 atual é a sociedade do desempenho e da atividade, o sujeito atual só pode se constituir fragmentado nos, e pelos, mil-espelhos virtuais.

Entre saberes: o abraço compreensivo da ciência e do mito Carolina Chamizo Henrique Babo O texto apresenta uma reflexão que nos situa no ambiente das possibilida- des compreensivas de diálogo entre saberes, especialmente entre os tão aparentemente distantes ciência e mito. Começando no período paleolíti- co, passando por diversas mitologias, pela ascensão da ciência e chegando aos dias atuais, Carolina Chamizo pensa o ser humano como um “animal compreensivo” que, desde os primórdios da sua história, “abraçou” essas formas de conhecimento. Para tal tarefa, utiliza-se das teorias de Joseph Campbell, Karen Armstrong e Carl Gustav Jung na abordagem dos mitos e dos estudos de Dimas Kunsch, Eugênio Menezes e Mateus Passos na pro- posta da compreensão como método.

Comunicação, mito e sincronicidade: um olhar sobre a obra de Mircea Eliade Carolina Moura Klautau Esta capítulo lança um olhar compreensivo sobre as obras O mito do eterno retorno e O sagrado e o profano, do mitólogo Mircea Eliade, avaliando que as narrativas míticas de diferentes culturas se relacionam mais por significa- dos do que por causa e efeito. Assim, Carolina Moura Klautau entende mito e comunicação como duas formas de orientação no mundo, introduzindo em seguida a noção de sincronicidade (de Carl Gustav Jung e Wolfgang Pauli) como possível chave de ligação entre os mitos. No “tecer junto” da compreen- são como método, a autora dialoga com diferentes saberes em seu percurso – mito, comunicação, psiquiatria e física moderna –, promovendo o movi- mento de integração e diálogo defendido por essa proposta epistemológica.

Poder, política e diálogo em Hannah Arendt: compreensão e dialética Cláudio Novaes Pinto Coelho Este capítulo desenvolve uma reflexão sobre a dimensão política da epis- temologia da compreensão a partir de uma tentativa de entendimento de como Hannah Arendt pensa os temas do poder, da política e do diálogo. Aqui, Cláudio Novaes Pinto Coelho realiza uma análise comparativa do pen- samento da autora e também do pensamento de autores vinculados ao método dialético, como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Guy Debord. 13

No caso de Adorno e Horkheimer, o ponto principal da comparação é o conceito de sociedade administrada e, no que diz respeito a Debord, o con- ceito de poder espetacular.

Música de câmara, cultura do ouvir e compreensão: contribuições de Otto Maria Carpeaux e Vilém Flusser José Eugenio de Oliveira Menezes Mauro de Souza Ventura O texto resgata os trabalhos do austríaco-brasileiro Otto Maria Carpeaux (1900-1978) e do tcheco-brasileiro Vilém Flusser (1920-1991), autores que, por terem vivido parte de suas vidas em Viena e em Praga, respecti- vamente, cidades consideradas como ambientes para a cultura do ouvir, contribuem para os estudos da compreensão como método. Aqui, José Eugenio de Oliveira Menezes e Mauro de Souza Ventura destacam que a ruptura promovida pelo compositor vienense Arnold Schoenberg com a ordem tonal hierárquica está em consonância com o método compreen- sivo, mostrando que a concepção de música de câmara, na qual diversos músicos atuam de maneira criativa e dialógica, estudada por Flusser, tam- bém é um modelo da comunicação compreensiva.

O eu da compreensão e o ato presencial: comunicação e relação face- -a-face Maria Angélica Aleixo Beck Lourenço A autora lança em seu texto um olhar de afeto na direção do pesquisador que elege a compreensão como método, aqui denominado “eu da compreensão”. Maria Angélica trabalha com aquilo que Cremilda Medina chama de “ato pre- sencial” e se pergunta de que maneira o “eu da compreensão” exerce a sua função de articulador de sentidos e de chaves epistemológicas e metodoló- gicas no universo dos processos comunicativos. Ela pensa a subjetividade uti- lizando-se de elementos da novela Noites brancas, de Dostoiévski. A ideia de acolhimento se revela pertinente para atender à tensão entre o observador e o sujeito da observação, um embate face-a-face entre alteridades, como a luta da embarcação que rasga as vagas até que ambas descansem em praias de hospitaleira compreensão.

Epistemologia da compreensão em viés nietzschiano Mauro Araujo de Sousa Neste capítulo, Mauro Araujo de Sousa apresenta uma epistemologia da 14 compreensão em viés nietzschiano, especialmente apontando de que modo o perspectivismo permite à compreensão realizar interfaces en- tre várias áreas do conhecimento. Para o autor, como método e numa abordagem perspectivista, uma epistemologia da compreensão amplia- rá e conquistará a “objetividade” de que trata o filósofo alemão Friedrich Nietzsche na obra A genealogia da moral. Assim, uma teoria do conheci- mento da compreensão visa compreender, enquanto método e também enquanto conhecimento, a maneira pela qual conseguirá realizar uma abordagem múltipla, multiangular e multiperspectivista de um assunto.

Ecofeminismo espiritualista e ecosofia: sobre o pensamento com- preensivo e o reencantamento do conhecimento Patricia S. Machado A supremacia do paradigma moderno – baseado no patriarcalismo, na ló- gica da dominação e no racionalismo – vem de forma progressiva sendo desafiada por uma perspectiva holística, complexa e integrativa do ato de pensar cientificamente. Trata-se de um modo de pensar em que estão in- cluídos os saberes da natureza e a capacidade imaginativa/mítica do ser humano, mas que não exclui a racionalidade. Unir, agregar e comunicar são algumas características relacionadas à compreensão e também ao pensa- mento compreensivo como método. A proposta deste ensaio de Patrícia S. Machado é compartilhar as ideias do Ecofeminismo espiritualista (de Vandana Shiva) e da Ecosofia (de Michel Maffesoli) oferecem possibilidades teóricas para um reencantamento do conhecimento e a compreensão dos fenômenos socioculturais e comunicativos na contemporaneidade.

Alteridade e sensibilidade na perspectiva da compreensão como método Paulo Emílio de Paiva Bonillo Fernandes Construir uma teoria compreensiva da comunicação exige estudar tam- bém a incomunicação. Como se haveria de fazer fenecer tal fenômeno frente a uma comunicação dialógica e compreensiva? Neste capítulo, Paulo Emílio de Paiva Bonillo Fernandes toma como hipótese a necessi- dade do cultivo da sensibilidade e trabalha com a noção de incomunica- ção, observando algumas de suas manifestações concretas, para depois investigar relações entre comunicação e experiência estética a partir dos estudos de Susanne Langer sobre a arte. Ao final, o autor considera a ne- cessidade de construir uma pedagogia do ver (Byung-Chul Han) como resposta ao fenômeno da incomunicação. 15

El interpretar en el camino de la comprensión: hacia una semioherme- néutica desde Peirce y Gadamer Pedro Agudelo Rendón Um dos aspectos fundamentais quando se aborda a compreensão como método é a questão da interpretação – o que é e o que significa, algo defini- do pelo que se coloca em jogo na compreensão. Neste capítulo, Pedro Agu- delo Rendón segue dois caminhos – um semiótico, norteado por Peirce, e outro hermenêutico, por Gadamer, em busca de entender a interpretação e mostrar sua vital importância para o método compreensivo – considerando a noção de signo, o interpretar em si, como seu aspecto mais valoroso. Em busca desse objetivo, o autor adota uma metodologia descritiva e contras- tativa que delineia a concepção do ato interpretativo em ambos os filósofos e mostra seus pontos de convergência.

Identidade de gênero, mito e conhecimento: o romance A mão esquer- da da escuridão, de Ursula Le Guin Roberto Fideli Identidade de gênero, mito e produção de conhecimento são estudados pelo autor no romance de ficção científica A mão esquerda da escuridão, de Ursula Le Guin. O método compreensivo destaca em em primeiro lugar a contribuição das mulheres para o campo da produção de ficção cientí- fica. E chama mais uma vez a atenção, como se tem feito na área de estu- dos de compreensão por meio especialmente da contribuição de Fideli, para o lugar de honra e respeito que se deve reservar às artes, à literatura, às narrativas simbólicas, aos mitos e, no caso específico aqui estudado, à ficção científica no concerto das múltiplas narrativas humanas e da pro- dução de conhecimento. O poder de imaginação, que a ficção científica põe em funcionamento e evoca, é capaz de provocar rupturas nas sólidas paredes de um pensamento fundado na ideia da distinção de gêneros.

Laço, ritual, máscara e mimese: um olhar para o brincar sob a ótica da compreensão Tadeu Rodrigues Iuama Este capítulo passeia pelo campo das relações entre brincar e comuni- car. Para tanto, a partir da etimologia do verbo brincar, o autor identifica a aderência entre essa ação e a Comunicação, tal como esta vem sendo entendida no âmbito do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (Cisc), grupo de pesquisa integrado ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade 16

Católica de São Paulo (PUC-SP). Relaciona-se comunicação e religião em Miklos, religião e ritual em Eliade e ritual e jogo em Huizinga. A partir daí, Tadeu Rodrigues Iuama amplia o escopo do estudo dessa temática em Caillois, chamando-se ao mesmo tempo a atenção para o conceito de mi- mese em Gebauer e Wulf. Sua ideia central é que a ação de brincar pode ser circundada de uma maneira compreensiva, ao se utilizarem olhares teóricos distintos, de áreas do saber diversas, procurando assim abraçar novos horizontes para a compreensão como método.

Estamos todos, assim, cada um a seu modo, buscando pistas e construindo caminhos para compreender a compreensão, para pensar com seus signos, ressignificá-los. Como percebemos, au- tores acadêmicos consagrados – da filosofia, da crítica literária, da ciência política, da psicologia – caminham lado a lado com autores nem tão consagrados assim, com jovens pensadores, com escrito- res de ficção, com os próprios autores dos capítulos. Compreensi- vamente, a relação com o substrato teórico se estabelece de forma mais saudável quando este deixa de ser a referência autoritária, o guia inquestionável, e se converte em um coletivo de dialogantes, em constante e animada conversa entre si, com quem tecemos um diálogo efetivo e fértil – e ao fim dar início a novas caminhadas, e talvez inspirar mais pessoas a vir caminhar conosco. Um olhar para as produções sobre compreensão de dez anos atrás permitiria ver o quanto nossas configurações episte- mológicas mudaram – alguns autores cresceram em importância como dialogantes, outros estão mais silenciosos e aguardam ser chamados para a conversa novamente, outros tantos surgiram e entraram no diálogo com energia. O que mais nos anima ao ver esse cenário não é uma celebração de uma consolidação do pen- samento compreensivo, mas justamente sua diversificação, sua mutação, suas novas faces. Ficamos imaginando, ansiosos, o quão diverso, múltiplo e sofisticado estará o mundo da compreensão daqui a outros dez anos, quantos novos dialogantes e perspecti- vas os participantes do projeto trarão para a roda. Boa leitura! prefácio

DA EXPLICAÇÃO PRONTA À COMPREENSÃO INCERTA*

Cremilda Medina**

Cena 1, Moscou, julho-agosto de 1983 No Festival Internacional de Cinema, o filme de Francis Co- ppola é um dos mais esperados. Na frente do cinema, dia 11 de julho de 1983, o público se acotovela para assistir Outsiders, uma versão pirotécnica de Juventude Transviada de Nicholas Ray (1955). Do outro lado da Cortina de Ferro, os moscovitas mostram com- portamento semelhante aos espectadores do mundo ocidental:

* Texto publicado originalmente na revista colombiana Folios, da Faculdade de Comu- nicações da Universidade de Antioquia, n. 39, p. 77-87, jan.-jun. 2018. Disponível em: . Acesso em: 20 de maio de 2019. ** doutora em Ciências da Comunicação, jornalista, pesquisadora e professora titular sê- nior da Universidade de São Paulo (USP), é autora de 18 livros e organizou 52 coletâneas inter e transdisciplinares. Na docência e pesquisa, atuou na graduação de Jornalismo e na disciplina “Narrativas da Contemporaneidade”, aberta a várias áreas de conhecimen- to e ao Programa da Terceira Idade da USP. Com trânsito em seminários internacionais e oficinas em universidades brasileiras e em Portugal, orientou 29 mestres, 31 doutores e dois pós-doutorados. 20 são fãs ardorosos do cinema norte-americano. E para meu espan- to, os lugares para convidados e os vendidos com dois meses de antecedência não estão garantidos. Um verdadeiro tumulto na entrada, porque cambistas negociam em rublos ou dólares um as- sento previamente ocupado. Dentro da sala, até cineasta estran- geiro credenciado sai arrancado por seguranças para dar lugar a um moscovita com ingresso de cambista na mão.

Cena 2, no trânsito da capital da União Soviética No trabalho de reportagem, meus deslocamentos em Mos- cou, de julho a agosto de 1983, dependem em grande parte do eficiente metrô. O problema é que não há mapas nem letreiros nos vagões, apenas se anunciam as estações em russo. Como não con- sigo entender nada, dependo de meu intérprete para anotar, em um papelucho, quantas estações devo contar para chegar ao des- tino programado. Cansada de assistir a tantos filmes no festival, às vezes durmo e perco a conta. Saio do metrô completamente deso- rientada e tento pegar um táxi. Passam vários e não param, estão livres e nada, ensaio todas gesticulações possíveis em vão. Chove e corro o risco de ficar ensopada, quando finalmente encontro um jovem que fala francês: volto ao metrô com nova contagem de es- tações e saio na estação justa onde fica a agência de notícias para enviar a São Paulo a reportagem do dia. À noite, após a exibição do festival, o grupo brasileiro vai jantar. Na porta do hotel, pega- mos um táxi imediatamente. Quê? Pois é: meu intérprete decifra o mistério – de dia, os taxistas são funcionários públicos, à noite, trabalham por conta própria.

Cena 3, Leningrado (São Petersburgo) Todas as delegações que representam as cinematografias in- ternacionais embarcam de trem na noite de sábado para conhece- ram a velha capital imperial – uma verdadeira excursão mundial. O domingo em Leningrado é programado oficialmente tal qual uma roleta turística. Vários ônibus com intérpretes em cinco línguas, 21 precedidos por carros oficiais e sirenes estridentes, conduzem os turistas pela bela cidade de canais e arquitetura mais atraente que a de Moscou. Não faltam a visita ao imponente cemitério dos mortos da Segunda Guerra Mundial e a meteórica passagem pelo Museu Hermitage, em que para conhecer o acervo secular são ne- cessários anos (2.300 salas em cinco palácios). À tarde, passeio de barco e visita ao palácio de verão de Pedro, o Grande, com seus jar- dins, fontes douradas e o rendilhado das águas à Versailles. Após o jantar, o programa culminante para mostrar ao mundo o diferen- cial das artes cênicas da União Soviética – um show de variedades num teatro popular repleto de público local. Muito semelhante (ou inspirado) nos espetáculos da Broadway em Nova York, a que assistira três anos antes.

Poderia escolher outras cenas do “Diário de Moscou” que publiquei no jornal O Estado de S. Paulo, em 1983, e republiquei no livro Atravessagem: reflexos e reflexões na memória de repórter (2014). Mas essas três cenas do cotidiano, entre outras, puseram à prova a visão enquadrada em teorias, doutrinas ou ideologias. Na primeira cena, cambista na frente de teatros como em São Pau- lo em grandes espetáculos, me surpreendeu na União Soviética; na segunda cena, a exploração da iniciativa privada, no caso dos taxistas, é coisa do capitalismo liberal; na terceira cena, turismo e artes cênicas “massificadas” são “manipulações” da indústria cul- tural. Ora bem, as circunstâncias que observei na viagem à União Soviética antes da queda do muro de Berlim despertaram, além do ingênuo espanto, a inquietude da compreensão. A observa- ção-experiência desconstrói as explicações apriorísticas e provoca a desconfortável descoberta das contradições, do imprevisível ou do indeterminado. O mundo das ideias se curva então perante as interrogantes do mundo real. 22

Há um longo percurso para uma consciência assim perturba- da que transite para a compreensão aberta às incertezas, às inde- terminações e à complexidade: abalam-se as explicações prontas de uma racionalidade reducionista ou de uma irracionalidade sem argumentos. Diria que esse processo epistemológico, em parte proveniente das circunstâncias de história de vida e em parte pro- veniente de grupos de pesquisa que tive o privilégio de coorde- nar, germinou mutações de visão de mundo, comportamento e criação de autorias no signo de relação social. Posso contar dé- cadas de estudos e experiências. Hoje, o Grupo da Compreensão que Dimas A. Künsch lidera muito bem representa uma coletivi- dade agregada, numa primeira etapa, na pós-graduação em Ciên- cias da Comunicação da Universidade de São Paulo e no núcleo de epistemologia que implantei na Escola de Comunicações e Artes nos idos de 1980. Antes, porém, a memória registra os questionamentos pe- rante as gramáticas ortodoxas do funcionalismo norte-america- no e da escola crítica europeia que doutrinavam o jornalismo e a comunicação social. Essas correntes, contrapostas às vivências de repórter, me levaram a interrogar a visão corrente da indústria cultural, regida pela determinante econômica, e a estratificação das fórmulas técnicas. Acompanhada pelos alunos de gradua- ção nos anos 1960-70, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul à Universidade de São Paulo, partilhei noções abertas da reportagem jornalística como a arte de tecer o presente, a notícia como um produto simbólico, rico em contradições, a entrevista como diálogo possível. Estava então aberta a estra- da, na década de 1980, para outras compreensões do processo de comunicação social e para a mediação autoral do jornalis- ta. Os alunos dessa década, na graduação, iniciaram uma série de livros-reportagem que se estenderia até o presente século. Quem lê textos da coleção “São Paulo de Perfil” (26 publicados e um inédito) aí encontrará a prática dos postulados de pesquisa que os sustenta. 23

Foi, porém, nos grupos de pós-graduação (final dos anos 1980), nas oficinas de especialização, nos seminários nacionais e internacionais que teoria e prática se casaram com laços indisso- lúveis. A sensibilidade solidária da dialogia social, as técnicas em busca da racionalidade complexa e as estéticas transformadoras – estas, que em muito ganham com a inspiração dos gestos da arte – passaram a constituir o guia aberto das metodologias da com- preensão. Os pesquisadores da área, em mestrados e doutorados, deram ao grupo de pesquisa inicial inúmeras contribuições, hoje fixadas em publicações, em docências em universidades brasilei- ras ou internacionais. Um bom exemplo vem do pesquisador Raul Osório Vargas que exerce um destacado papel na Universidade de Antioquia, em Medellín, Colômbia. Não poderia deixar ao largo a decisiva contribuição dos de- mais saberes acadêmicos que, reunidos numa proposta inter e transdisciplinar que denominei no primeiro seminário, 1990, na USP, de “Novo Pacto da Ciência”, deram origem a outra série (sob o mesmo nome) de debates e ensaios que abalam explicações prontas, originárias das ciências da natureza, da biologia, da mate- mática ou das ciências humanas. O projeto de pesquisa integrado que aí nasceu, com o título “O discurso fragmentalista da ciência e a crise de paradigmas”, hoje reunindo onze livros, documenta uma trajetória acadêmica que foi acoplando ao conhecimento científico o conhecimento cotidiano dos saberes locais (populares, tradicionais, comuns ou ancestrais, conforme se queira nomear), as sabedorias transcendentais e a expressão mítica da arte. Nesse intercâmbio dos disciplinados e dos indisciplinados descobrem- -se abordagens da pluralidade dialógica que perturbam a razão reducionista, a sensibilidade embotada e o relato burocratizado em manuais. Da química às neurociências, da paramatemática à educação, da física à sociologia ou da química à história, a quebra de paradigmas registrada nos anais do “Novo Pacto da Ciência” (ECA/USP, 1991) oferece sólidos e transdisciplinares alicerces para a comunicação social. 24

Não é, pois, sem raízes na pesquisa epistemológica que che- gamos à presente antologia de ensaios – Pensar com o signo da compreensão. Já na apresentação deste volume, os autores pro- põem: Estamos todos, assim, cada um a seu modo, buscando pistas e construindo caminhos para compreender a compreensão, para pensar com seus signos, ressignificá-los. O conjunto ensaístico aqui reunido envolve uma dialogia acadêmica rica – filosofia, crítica li- terária, ciência política, psicologia – em que as ciências da comuni- cação exercem uma mediação autoral. Dizem ainda os autores do texto de abertura: Compreensivamente, a relação com o substrato teórico se estabelece de forma mais saudável quando este deixa de ser a referência autoritária, o guia inquestionável, e se converte em um coletivo de dialogantes, em constante e animada conversa entre si, com quem tecemos um diálogo efetivo e fértil (meu destaque) – e ao fim dar início a novas caminhadas, e talvez inspirar mais pes- soas a vir caminhar conosco. Sim, em muitos grupos de pesquisadores venho acompa- nhando angústias e entusiasmos quando se enfrentam a crise de paradigmas, a visão de mundo e os comportamentos na constru- ção de um conhecimento sempre incerto, aberto e incompleto. O Grupo da Dialogia Social, hoje mais estruturado e com inúmeras publicações que atestam o esforço epistemológico, vem de déca- das e se projeta num horizonte não delimitado. Percorrendo os ca- pítulos deste livro, busca-se firmar os alicerces da metodologia da compreensão não apenas no domínio conceitual, abstrato, mas no ato presencial, vocação inaugural da reportagem jornalística ou da abordagem empírica na pesquisa acadêmica. Aí se experi- menta a observação com os cinco sentidos perante os fatos explí- citos, os implícitos ou os misteriosos das circunstâncias humanas. O ato compreensivo desmonta a explicação já antecipadamente 25 formatada e a aplicação da consequente metodologia doutrinária. Abre-se a perspectiva de uma leitura do real desarmada em que a observação-experiência e o diálogo possível acionam a racio- nalidade complexa, a intuição criativa e a estética transformadora da escrita da ciência, como na arte ou na oratura. A interação social criadora nos encontros/desencontros dos sujeitos pesquisados-pesquisador, pesquisador-pesquisados faz parte do itinerário da inquietude compreensiva tanto no cotidia- no quanto no domínio dos saberes científicos. Há muito aprende- mos no convívio com a nova física das primeiras décadas do século passado que, na prática, acontece uma interrelação sujeito-sujei- to e não sujeito-objeto. Essa quebra de paradigma criou ruídos na velha epistemologia do objetivismo. E experimentar essa inte- ratividade, quase sempre conflitiva, não se esgota na euforia da era digital e a democratização de acesso dialógico. Mistério para a compreensão permanece a experiência dos corpos humanos quando se encontram e desencontram. Poder, política e diálogo ensaiam dar conta dos parâmetros que regem o viver em socie- dade, mas a pluralidade de egos, grupos, comunidades, nações e universalidades sem fronteira desafiam um pensar com o signo da compreensão, a cada momento pavimentado por saber local, saberes acadêmicos, vocalizações artísticas ou linguagem mítica. Não foi em vão que empenhei uma década, a de 1980, em busca da compreensão possível da linguagem mítica no univer- so das literaturas portuguesa, africana e brasileira (na ordem das viagens). O que encontrei com apoio na escrita poética, nos de- poimentos de 150 escritores – alguns já morreram – e no contato direto com as sociedades, foi a força que o mitólogo Mircea Elia- de compreende nessas narrativas que transcendem a realidade factual ou apreendida em esquemas conceituais. E o historiador brasileiro Nicolau Sevcenko da Universidade de São Paulo (1952- 2014) nos dizia que o mito é a narrativa do desejo de outra Histó- ria. Por isso mesmo, ao tentar ler mitos fundantes, por exemplo, no romance de língua portuguesa, esbocei uma leitura cultural 26 dos desejos coletivos de outra História. Não me prendo à crítica estética em si, porque o signo acontece e o artista capta como nin- guém essa dinâmica acontecência nas sociedades e nas culturas. Enquanto o signo acontece na leitura cultural da obra de arte, no exame fragmentário do discurso, ocorre a necrópsia sígnica. Essa, a proposta que, depois de publicar em três livros essa longa via- gem, defendi, em 1989, na livre-docência na USP. O quarto livro, originário da investida em mito e sociedade, ensaia sintetizar o laço profundo da literatura: Povo e personagem (1996). Desde então a oficina coletiva de pesquisa introduz na cena epistemológica os traços da mítica universal, atualizados em todos os tempos históricos. Como defendi, trata-se de uma abordagem cultural que exige outra compreensão, para além da metodologia estruturalista ou da análise de discurso. Sem a cara – ou carranca – da racionalidade arrogante, aceita-se no exercício compreensi- vo ora desejado não só a transcendência da linguagem mítica no domínio não disciplinado da arte, mas também impulsos outros, não conscientes, que regem o signo da relação, o signo que acontece. Quando se pauta pesquisa regida a priori por conceitos disciplinados na bibliografia, quando se programa a aplicação de questionários para extrair resultados no trabalho de campo, não se ousam a sensibilidade intuitiva e a eventual descoberta de ou- tros significados que, em geral, contrariam o ponto de partida das hipóteses e das categorias estabelecidas. Perde-se nesse pretenso rigor de pesquisa, segundo paradigmas e técnicas apriorísticas, a oportunidade de compreender, na situação viva, a explosão im- previsível da descoberta. Perde-se também, sob a máscara da se- riedade, que o ato compreensivo é uma experiência libertária, até mesmo lúdica. 27

Como comecei, fecho com uma quarta cena, se me permite esse abuso o respeitável leitor.

Quarta e última cena: Farra, alforria Os alunos de Jornalismo da USP, nos primeiros anos da dé- cada de 1990, escolhem o tema da série livro-reportagem “São Paulo de Perfil”. Querem abordar no décimo primeiro volume o lazer na cidade. Após a escolha do tema, levamos mais ou menos um mês para desconstruir-construir a pauta de reportagens e co- laborações ensaísticas. Mas desta vez está complicado: já se vão três encontros de três horas semanais e não sai das mentalidades dos jovens comunicadores a sociologia pronta do shopping cen- ter como o foco do consumo capitalista. Ao que tudo indica seria um samba de uma nota só. Traziam das disciplinas teóricas não só os clichês da indústria cultural e a manipulação das consciên- cias como os clichês da sociologia crítica. Tudo no shopping center seria lazer programado pelo mercado, inimigo das crianças e dos jovens. A cidade de São Paulo não ofereceria qualquer outra forma de divertimento, e os “autores de cabeça feita” iriam percorrer os shoppings para “provar” essa tese. (Pode-se imaginar meu deses- pero na coordenação do laboratório pedagógico de narrativas da contemporaneidade. Que fazer?) Aí veio a intuição: chamo dois psicólogos para fazer uma in- tervenção na turma. Por que não dizer, uma terapia de grupo. E não é que deu certo? Ao término de três horas de muita discussão e cautelosa interferência dos profissionais convidados, todos che- gam ao ponto culminante: o lúdico é a possibilidade de emancipa- ção, o ato libertário perante as mazelas da vida. Farra, alforria, o achado metafórico que seria o título de um conjunto de narrativas muito além da ideia fixa no shopping center. O riso no asfalto, na avenida Paulista ou nos recreios, divertidas aventuras no cortiço, encenação de alegria de artistas nos semáforos, a moça da noite que entrega rosas às namoradas e os namorados pagam disfarça- damente as flores, shows e encantamentos em botecos, futebol 28 e hiperespaços, cotidianos tão cotidianos como a conversa duma criança com as letrinhas da sopa. ETC. E não dá para esquecer os autores da última reportagem no 11º São Paulo de Perfil: chegam com o maior texto, completamente fora da bitola. “Inconsciência à parte, arte” narra o ato emancipatório no hospício. Pacientes psi- quiátricos encontram – salve a transcendência lúdica! – na arte do inconsciente sua razão lúdica de humano ser. De passagem, me vem a lembrança de Nise da Silveira (1905-999), pioneira na com- preensão e grandeza dessa arte. Quanto ao lazer em São Paulo, apreendi nas reportagens muitas dimensões simbólicas que explodiram a pauta óbvia. Tento expressar uma das compreensões possíveis ao apresentar o livro de 1992: Na aventura humana do cotidiano, cada pequena ou gran- de farra assina uma carta de alforria.

Na presente coletânea, ampliam-se os horizontes reflexivos e as experiências empíricas dos ensaístas que rompem com expli- cações prontas e se lançam a compreensões abertas. Eis um itine- rário marcado pela ousadia. E pelos riscos a serem assumidos.

Referências

1. Livros autorais

MEDINA, Cremilda e LEANDRO, Paulo Roberto. A arte de tecer o presente. São Paulo: Media, 1973.

MEDINA, Cremilda. Notícia, um produto à venda: jornalismo na sociedade urbana e industrial. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1975. [Na década de 1980, o livro passou a ser publicado pela Summus Editorial]. El rol del periodista. Quito, Equador: Ciespal, 1980. 29

[Em 1989, esta edição em espanhol foi lançada em Havana, Cuba, pelo Editorial Pablo de la Torriente.]

Profissão jornalista: responsabilidade social. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

Viagem à literatura portuguesa contemporânea. Rio de Janeiro: Nórdica, 1983.

A posse da terra: escritor brasileiro hoje. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moe- da; São Paulo: Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, 1985.

Entrevista, o diálogo possível. São Paulo: Editora Ática, 1986.

Sonha Mamana África. São Paulo: Edições Epopéia, 1987.

Povo e personagem. Canoas, RS: Editora da Ulbra, 1996.

Símbolos e narrativas: rodízio 97 na cobertura jornalística. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo / Secretaria do Meio Ambiente, 1998.

A arte de tecer o presente: narrativa e cotidiano. São Paulo: Summus Editorial, 2003.

O signo da relação: comunicação e pedagogia dos afetos. São Paulo: Paulus, 2006.

Ciência e Jornalismo: da herança positivista ao diálogo dos afetos. São Paulo: Summus Editorial, 2008.

Força perene de Oswaldo Guaysamín: a magia do reencontro. São Paulo: Coleção Marta Traba da Fundação Memorial da América Latina, 2008.

Casas da viagem: de bem com a vida ou afetos do mundo. São Paulo, Edição de autor, 2012.

Atravessagem: reflexos e reflexões na memória de repórter. São Paulo: Summus Editorial, 2014.

Ato presencial: mistério e transformação. São Paulo: Edições Casa da Serra, 2016.

A arte de tecer afetos: signo da relação 2 – Cotidianos. São Paulo: Edições Casa da Serra, 2018.

2. Principais coletâneas criadas e organizadas pela autora 30

2.1 Série “São Paulo de Perfil” Os 26 volumes aparecem na ordem em que foram produzidos. Entre parênteses encon- tra-se o ano da publicação de cada um.

MEDINA, Cremilda (Org.). São Paulo: ECA/USP. Virado à paulista (1988) Vozes da crise (1988) Nos passos da rebeldia (1989) Forró na garoa (1989) Hermanos aqui (1990) A casa imaginária (1990) Pauliceia prometida (1990) À margem do Ipiranga (1991) A escola no outono (1991) O primeiro habitante (1992) Farra, alforria (1992) Tchau Itália, ciao, Brasil (1993) Guia das almas (1993) Nau dos desejos (1994) Vamos ao centro? (1994) Axé (1996) Tietê, mãe das águas (1995) Viagem ao sol poente (2001) Bem viver, mal viver (1996) Mundão véio sem porteira (1997) Chá de bambu (1998) Cotidianos do metrô (1999) Ó Freguesia, quantas histórias (2000) Sagas do espigão (2002) Caminho do café: Paranapiacaba, museu esquecido (2003) USP Leste e seus vizinhos (2004)

2.2 Volumes inspirados na Série “São Paulo de Perfil”

MEDINA, Cremilda (Org.). Narrativas a céu aberto: modos de ver e viver Brasília. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998.

Bahia de perfil: narrativas de todos os santos. Salvador: Faculdades Jorge Amado, 2007. Mococa: doces histórias. Mococa: Estação USP/CCS/USP, 2007. 31

2.3 Série “Novo Pacto da Ciência”

MEDINA, Cremilda (Org.). Novo pacto da ciência: a crise de paradigmas, 1º Semi- nário Transdisciplinar – Anais. São Paulo: ECA/USP, 1991.

MEDINA, Cremilda; GRECO, Milton (Orgs.). São Paulo, ECA/USP. Do Hemisfério Sol: o discurso fragmentalista da ciência (1993). Saber plural (1994). Sobre vivências: no mundo do trabalho (1995). Agonia do Leviatã: a crise do Estado Moderno (1996). Planeta inquieto: direito ao século XX (1998). Caminhos do saber plural: dez anos de trajetória (1999).

MEDINA, Cremilda (Org.). Ciência e sociedade: mediações jornalísticas. São Pau- lo: Coordenadoria de Comunicação Social/Estação Ciência da Universidade de São Paulo, 2005.

MEDINA, Cremilda; MEDINA, Sinval (Orgs.). Diálogo Portugal-Brasil, século XXI: novas realidades, novos paradigmas. Porto, Portugal: Edições Universidade Fernan- do Pessoa, 2008.

MEDINA, Cremilda; MEDINA, Sinval (Orgs.). Energia, meio ambiente e comuni- cação social. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero; Porto, Portugal: Universidade Fernando Pessoa, 2009.

MEDINA, Cremilda (Org.). Liberdade de expressão: direito à informação nas so- ciedades latino-americanas. São Paulo: Edições da Fundação Memorial da América Latina, 2010.

2.4 Série “Foro Permanente de Reflexão sobre a América Latina”

Todos estes exemplares resultaram de seminários motivados por teses de pesquisa- dores locais. O Foro Permanente de Reflexão sobre a América Latina foi criado pelo pesquisador, ex-reitor da Universidade de São Paulo Adolpho José Melfi, nessa épo- ca diretor do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina, e que me convidou para coordenar os seminários e organizar os livros publicados pela Fundação Memorial da América Latina. Os volumes aparecem na ordem em que foram produzidos. Entre parênteses encontra- -se o ano da publicação da cada um. 32

MEDINA, Cremilda (Org.). São Paulo: Fundação Memorial da América Latina. Povo e personagem: sociedade, cultura e mito no romance latino-americano (2008). Viagem à América Indígena: do Eldorado à cidade contemporânea (2011). Fronteiras latino-americanas: geopolítica do século XXI (2012). O impacto do microcrédito para a mulher latino-americana (2011). Poética dos saberes: complexidade, compreensão e cultura (2012). Símbolos itinerantes, estampas mestiças: o caminho da chita da Índia para a América (2012). Aids: na rota da esperança (2011). PENSAR COM O SIGNO DA COMPREENSÃO

ersar con el otro/diferente: tejer conocimiento desde la V conversación como método de comprensión*

Alba Shirley Tamayo Arango**

Neste primeiro capítulo, a autora aborda a experiência de encontros en- tre mulheres vítimas do conflito armado colombiano e de homens que foram agressores, de modo a inquirir sobre a construção de subjetivi- dades, as transformações dos sujeitos e a incidência individual e cole- tiva propiciada pelas conversas e atividades realizadas no presídio de segurança máxima de Itagüi-Antioquia. Para registrar o acontecimento e compreender sua percepção em sujeitos diversos, Alba Shirley Tamayo Arango toma a conversa e o diálogo como caminho que permite elabo- rar tecidos de razões e emoções e gerar compreensão, com o propósito de evidenciar processos em que as pessoas, em suas palavras, se entre- -vistam como seres sentipensantes.

* Texto publicado originalmente na revista colombiana Folios, da Faculdade de Comu- nicações da Universidade de Antioquia, n. 39, p. 25-33, jan.-jun. 2018. Disponível em: . Acesso em: 20 de maio de 2019. Este trabajo ha sido desarrollado en el ám- bito del proyecto “De la comprensión como método” del Grupo Comunicación, Perio- dismo y Sociedad – CPS de la UdeA. ** Doutora em Psicologia Social pela Universidade Autônoma de Barcelona. Historiadora e comunicadora social-jornalista. Docente-pesquisadora da Faculdade de Comunicações da Universidade de Antioquia. Membro do grupo de pesquisa “Comunicación, Periodis- mo y Sociedad - CPS”. Email: [email protected]. 36 Alba Shirley Tamayo Arango

En el año 2007, un grupo de mujeres, integrantes del mo- vimiento social Asociación Caminos de Esperanza Madres de la Candelaria, más conocido en la ciudad de Medellín-Colombia sim- plemente como Madres de la Candelaria, solicitó entrar a la cárcel de máxima seguridad de Itagüí, para buscar allí la posibilidad de hablar con quienes habían sido integrantes de grupos armados: paramilitares y guerrilleros, con el fin de hallar la verdad sobre lo ocurrido con sus seres queridos desaparecidos. Estos encuentros se prolongaron en el tiempo, y años des- pués dieron como resultado la realización de actividades diversas, entre la que se destaca la construcción del árbol de la vida. Las transformaciones generadas por la confluencia continua de estos hombres y mujeres eran evidenciadas por Teresita Gaviria Urrego, líder del movimiento de Madres, quien hablaba de sanación, per- dón y reconciliación. La pregunta por los procesos de comunicación (Martín Barbe- ro, 2012) que habían posibilitado la generación de afectos y afec- taciones entre sujetos ubicados en el espacio social en polos con- trapuestos: víctimas (mujeres) / victimarios (hombres), nos llevó a plantear una investigación que abordara la complejidad de las co- municaciones entre ambos actores, partiendo de la comunicación como constitutiva de nuestro ser cotidiano en el mundo, de nuestro ser seres humanos que emerge de la inter-acción, esto es, la con- fluencia de sujetos activos en la conversación, que permite enten- dernos de manera racional desde la emoción (Maturana, 1988). Abordamos las experiencias individuales de los sujetos des- de la memoria de lo ocurrido en la cárcel y después de ella, me- diante el relato de sus trayectorias vitales en relación con estos encuentros. La entrevista, orientada hacia la comprensión de los procesos de comunicación entre las partes (Bourdieu, 2010), fue pensada como fuente de conocimiento e información, pero tam- bién como pretexto para introducir la conversación que amplia- ba los horizontes sobre lo sentido y los sentidos que cada sujeto construye, desde lo individual y desde lo colectivo. Versar con el otro/diferente 37

La reflexividad en el proceso de investigación nos ha condu- cido a evaluar lo que podemos comprender en calidad de suje- tos exteriores a la experiencia de los encuentros y también lo que comprendemos como interactuantes en la conversación, en tanto sujetos situados en un contexto académico y universitario.

Mujeres víctimas: conversar para comprender El movimiento social Madres de la Candelaria está integra- do por mujeres víctimas del conflicto armado colombiano, en su mayoría campesinas, sin escolaridad total o con ella incompleta, que han sido desterradas, despojadas y desplazadas del campo a la ciudad a causa de múltiples violencias, entre las que se cuentan asesinatos selectivos, tortura, secuestro y desaparición forzada de sus seres queridos no combatientes a manos de distintos ejércitos. Si bien la violencia sistemática tiene entre sus propósitos despojar de la propia voz a las víctimas, sumirlas en el miedo y aislarlas. Ha sido la voz insistente y persistente de estas mujeres, la que con su presencia cada viernes en el atrio de la emblemática iglesia de Nuestra Señora de Candelaria de la ciudad de Medellín, ha logrado hacer de la vulnerabilidad resistencia (Butler, 2014) rei- vindicación de verdad, justicia y reparación. La acción colectiva continua ha generado una comunicación permanente con la ciudad, posibilitado el reconocimiento social de sus denuncias y sus demandas, al ser publicadas por medios masivos y medios alternativos. La legitimidad de su accionar po- lítico ha sido el producto de una lucha por abrir la posibilidad de ser escuchadas por la institucionalidad. El largo camino recorrido en entidades gubernamentales como las Personerías y la Fiscalía, entre otras, facilitó el ingreso a la cárcel de máxima seguridad. Fortalecidas desde adentro del movimiento por las transfor- maciones vitales que ellas mismas propician, las mujeres dejaron de ser víctimas dolientes para convertirse en víctimas agentes, su- jetos de derechos, activas en el plano de lo político y lo público. La resignificación del estatuto de víctima se ha construido al interior 38 Alba Shirley Tamayo Arango del movimiento desde la práctica, mediante el uso de la conversa- ción como método. Las mujeres llegan a las Madres de la Candelaria después de un largo trasegar. De las violencias vividas en las zonas rurales llegan a la ciudad, que es para ellas un territorio hostil donde se habita la marginalidad como nuevo modo de vida. Los trau- mas experimentados no son fáciles de elaborar en situaciones de completa adversidad material y social, pues la inserción en la ciudad implica habitar una casa mal acondicionada, en una zona periférica, sin acceso a servicios públicos, sin la atención del Estado pero con la presencia, vigilancia y presión de actores armados que regulan la vida de las mujeres y ordenan la vida de los hombres. En estas condiciones, el dolor intenso, y muchas veces ine- narrable, causado por la desaparición de los familiares, se convier- te en una carga ardua que encuentra de manera recurrente la in- comprensión, la indolencia y el señalamiento, lo cual redunda en sentimientos de soledad que a veces conducen al abismo oscuro de la pérdida del deseo de vivir. Devolver luz a una vida destro- zada no es tarea fácil. Sin embargo, la llegada al Movimiento es ya signo de búsqueda de escucha y comprensión. La narración de los hechos atroces impulsa la construcción de significados nuevos sobre quien narra y sobre los acontecimientos, puesto que

La persona, entendida como personaje de relato, no es una identidad distinta de sus experiencias. Muy al contrario: comparte el régimen de la identidad diná- mica propia de la historia narrada. El relato construye la identidad del personaje, que podemos llamar su identidad narrativa, al construir la de la historia narrada. Es la identidad de la historia la que hace la identidad del personaje (Ricoeur, 1996, p. 147).

Las mujeres, al narrar las experiencias que quebraron sus trayectorias de vida, se construyen de nuevo frente a las otras que Versar con el otro/diferente 39 han vivido situaciones similares pero distintas. Las narraciones se entrecruzan, porque de alguna manera lo que una dice se refle- ja en las otras, se enriquecen las percepciones, se transforman las maneras de verse como víctima y de asumirse como tal, se genera “una identidad desde la alteridad, en la alteridad y para la alteridad. Una identidad que entiende que la diferencia con el otro es defe- rencia” (Mèlich, 2013, p. 137). La identidad de víctima solitaria se transforma a lo largo de las narraciones expresadas y escuchadas. La pregunta por la otra, por su situación, por su sentir, es lo que hace que el espacio de las Madres de la Candelaria sea un espacio donde las mujeres víctimas se sien- tan “como en familia”, como afirma Dolores: “Yo vengo porque esta es mi otra familia, yo no puedo dejar de venir” (CM, 2017). El dolor compartido se convierte en un dolor distinto, pues deja de ser el do- lor asfixiante que recae sobre la vida en solitario, guardando silencio porque nadie parece comprender la historia ni el sentimiento, para empezar a generar una visión y una identidad colectiva del dolor. Narrar(se) es fundamental para las Madres porque el pasado es la fuerza. La memoria de lo que sobrevive como ausencia en la vida de las mujeres potencia el cambio. El encuentro con otras mu- jeres que han sufrido las devastaciones de la guerra genera condi- ciones de confianza para la conversación. La narración se da y se recibe en medio de las fracturas emocionales que imponen silen- cios profundos para dar lugar al llanto. La escucha es activa, en el silencio de quien espera que la narradora se tranquilice, prestando atención a la necesidad imperiosa de llorar para sacar el dolor. La comprensión de los tiempos y las trayectorias de cada una va configurando un lugar para la reflexión donde los duelos, las rabias y la impotencia van transformándose. Sobreponerse, cami- nar juntas es lo más importante. Porque sí mismo es también otro (Ricoeur, 1996). Pues las experiencias ya no son las propias, las ex- periencias propias son también las de las demás, y todas forman la experiencia extrema de las víctimas reclamando la destrucción de la indolencia social y la construcción de paz. 40 Alba Shirley Tamayo Arango

Hombres excombatientes: la conversación transformadora Aunque la Ley 975 de 2005, denominada Ley de Justicia y Paz, exigía a los excombatientes la participación en versiones li- bres, donde encaraban los hechos atroces y exponían su versión, pidiendo perdón por el daño causado, para las Madres de la Can- delaria esto no resultaba suficiente. Los datos ofrecidos eran es- cuetos, pues el sinnúmero de hechos atroces, a gente que para ellos solo tenía la identidad del enemigo, sumergía cada singulari- dad en una mezcla cargada de olvido. El perdón jurídico, realizado como una gestión más dentro del proceso, aparecía en la abigar- rada escena como algo poco creíble. El ingreso de las mujeres a la Cárcel de Máxima Seguridad de Itagüí se hizo en paralelo a la realización de versiones libres. La necesidad de hallar la verdad sobre los hechos dolosos con detalle y certeza movilizó a las Madres a hablar frente a frente con quienes habían sido los victimarios. Una mezcla de miedo, curiosidad y necesidad se fundía en los imaginarios, cargados de imágenes grotescas, que las Madres ha- bían fabricado respecto a los excombatientes. La rabia y el resenti- miento mantenidos, el dolor incesante y las conversaciones entre víctimas habían reforzado una especie de enemigo común, un otro distante, representado en una figura masculina, armada e indolente, incapaz de intercambiar palabras. “Yo me los imaginaba como unos monstruos”, afirma Consuelo (CM, 2017), pues, “¿Qué más podía ser una persona que había cometidos tantos crímenes?”, subraya ella. La conversación con algunas mujeres nos posibilita com- prender que la búsqueda personal de las Madres es más poderosa que sus propios prejuicios, sus temores y su rabia. Pero, también, que la acción colectiva de estar en la cárcel da fuerza a mujeres que en solitario no se atreverían a estar allí, que no hubieran continua- do con los encuentros después de saber que no habría ninguna verdad para ellas. La solidaridad con las demás, la motivación de la líder, Teresita Gaviria, para construir puentes entre ellas y ellos, conminó a las Madres a seguir participando. Versar con el otro/diferente 41

En la Cárcel, los primeros encuentros fueron tímidos y des- confiados. Los comandantes desmovilizados del ejército parami- litar Bloque Central Bolívar fueron quienes las recibieron. Rodrigo Pérez Álzate y Óscar Montealegre, quienes tuvieron bajo su man- do a 2.424 hombres, en los departamentos de Bolívar y Santander, fueron quienes lideraron en su momento la dejación de armas, y luego, en la cárcel, los que promovieron los encuentros con las Madres para procurar la verdad tan anhelada. Su ascendencia so- bre sujetos que estuvieron bajo su mando, procedentes de áreas rurales y con baja escolaridad en su mayoría, se mantenía. Lo cual incidió en la adherencia de un buen número de ellos al trabajo con las víctimas. Los relatos hablan de un diálogo tenso en esos primeros encuentros, donde cada uno por su lado imaginaba ser atacado por el otro. “Si ellas hubieran llevado dulces, nadie les hubiera re- cibido” (CE, 2018). Ellos también tenían temores. Enfrentarse a una víctima implica un desafío. Y muchos lo rechazan. La mirada de la víctima hace las veces de espejo de la culpa, para sí mismos impli- ca reflexiones profundas, recuerdos sobre hechos que quieren ser olvidados, y desde lo emocional reclama una gran energía. Pero, la disposición de un grupo de hombres que pertenecie- ron al Bloque Central Bolívar para proveer información sobre he- chos que transformaron la vida de mujeres, que décadas después siguen buscando a sus hijos e hijas, condujo a encuentros que se prolongaron en el tiempo y permitieron la presencialidad de ellas en algunas actividades educativas realizadas por los presos al inte- rior de la Cárcel y también su participación activa. El contacto fue abriendo espacios para la conversación, y se fue rompiendo la comunicación instrumental. ¿Quiénes eran ellos? ¿Por qué habían cogido las armas? ¿Cuál era su historia de vida? Y luego, ¿Qué experiencia de vida tenían las mujeres? ¿Cuál había sido su trasegar? Las singularidades iban emergiendo entre palabras que habían estado cesantes bajo el ruido de la guerra. Y el dolor padecido apareció entonces entre las experiencias conta- 42 Alba Shirley Tamayo Arango das, para mostrar identidades fluidas que los hacían converger en algunos momentos, y que los sacaban de las categorías cerradas y dicotómicas como las de víctima y victimario. Y los lazos de afecto fueron entrelazando las afecciones que dejaba cada encuentro, al final, esperado durante toda la sema- na. Si las conversaciones con las mujeres señalaban una estela de culpabilidad por el daño ocasionado, también construían vínculos que hacían que las extrañaran, que dedicaran su tiempo a pintar un cuadro para ellas, o elaborar una mochila de regalo. Y ellas lle- vaban presentes para celebrar cumpleaños, donaban su tiempo y sus saberes sobre el tejido y les ofrecían con ello su compañía y su compasión, a seres sufrientes como ellas.

Conocimiento sentipensante De acuerdo con la propuesta del maestro Orlando Fals Bor- da, el ser sentipensante es aquel que “combina la razón y el amor, el cuerpo y el corazón, para deshacer-se de todas las (mal)forma- ciones que descuartizan esa armonía” (Fals Borda, 2009). En la in- vestigación social esto es fundamental para lograr comprender procesos tan complejos, como los que aparecen en las narracio- nes de quienes fueron víctimas (que siguen asumiéndose como tales, en tanto mantienen su vínculo de demandas colectivas con el Estado) y quienes fueron victimarios (que ya no se asumen en esa categoría y la transforman por excombatientes, en aras de ero- sionar el estigma marcado por la guerra). Los procesos de comunicación entre sujetos atravesados por roles y estereotipos de género, que de manera práctica han sido subvertidos (ellos, en la cárcel, tejen y rompen masculinidades duras. Ellas salen a la calle y rompen el concepto de Madre para el mundo privado), evidencian deconstrucciones que se formulan en ese estar con el otro diferente, envolviéndose en palabras que desnudan los hechos y también el corazón. Ellos lloran y dicen sin tapujos lo que han hecho, porque el contacto con las Madres les ayuda a perdonarse, a comprender de algún modo por qué llega- Versar con el otro/diferente 43 ron hasta donde lo hicieron. Pero también a saber que están en un camino de transformación propia. Ellas agradecen haber hablado con personas que estuvieron armadas, que participaron de hechos dolosos, porque comprenden que son seres humanos, producto de un orden social parapetado en las inequidades y las injusticias. Sus narraciones dejan ver decisiones erradas, como puede tomar cualquier joven. Quizás como lo pudo haber hecho el hijo de algu- na de ellas. Como bien señala Humberto Maturana:

Darse cuenta que los seres humanos existimos como tales en el entrecruzamiento de muchas conversa- ciones, en muchos dominios operacionales distin- tos, que configuran muchos dominios de realidades diferentes, es particularmente significativo porque nos permite recuperar lo emocional como ámbito fundamental de nuestro ser seres humanos (Matu- rana, 1988, online).

Es así como la conversación permite a quienes investigamos comprender haciendo el ejercicio de dejar de interpretar desde nuestro lugar, dejar de juzgar, evitar el uso de categorizaciones cerradas que clausuran los modos de ser y de estar en el mundo. Verse con el otro, distinto, abre la capacidad de deconstrucción de los presupuestos racionalistas que nos llevan a esgrimir el pen- sar como forma única de conocer. Pues las entre-vistas con los ex- combatientes y con las víctimas nos exigen darnos, participar de sus emociones y de sus narraciones para comprender el lugar que ocupan en el mundo, el lugar de quienes su hablar requiere una lucha para ser escuchados. De ahí la construcción de subjetividades colectivas que evi- dencian el