UNIVERSIDADE FEDERAL DE ESCOLA DE MÚSICA

HELEN ISOLANI MARQUES

O CANTO CROSSOVER: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E ESTUDOS DE RELAÇÕES POSSÍVEIS NA PERFORMANCE DA MÚSICA VOCAL BRASILEIRA

BELO HORIZONTE 2019 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE MÚSICA

HELEN ISOLANI MARQUES

O CANTO CROSSOVER: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E ESTUDOS DE RELAÇÕES POSSÍVEIS NA PERFORMANCE DA MÚSICA VOCAL BRASILEIRA

Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial à obtenção do título de mestre em música. Orientação: Profa. Dra. Luciana Monteiro de Castro Silva Dutra. Linha de pesquisa: performance musical

Belo Horizonte 2019

M357c Marques, Helen Isolani.

O canto crossover [manuscrito]: uma revisão bibliográfica e estudos de relações possíveis na performance da música vocal brasileira / Helen Isolani Marques - 2019. 122 f., enc.: il. + 1 DVD

Orientadora: Luciana Monteiro de Castro Silva Dutra.

Linha de pesquisa: Performance musical.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Música.

Inclui bibliografia.

1. Música - Teses. 2. Canto - Interpretação (Fraseado, dinâmica, etc.). 3. Performance musical. 4. Música popular - Brasil. I. Dutra, Luciana Monteiro de Castro Silva. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Música. III. Título.

CDD: 784

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Dedicatória: À Neyde Ziviani, Robério Molinari, Néstor Gurry, João Di Souza, Ernani Maletta, Neide Thomas (in Memorian), Stephen Bronk, Elizete Xavier, Marcelo Coutinho, Lorena Espina e Luciana Monteiro de Castro.

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Agradecimentos

Aos meus amados pais, Eliana e Osmar, pela condução de amor, compreensão e respeito pela minha vida e minhas escolhas; aos meus irmãos Heloísa Isolani e Handel Isolani por todo amor dedicado a mim;

à Alda Stela, João Batista e tio Reinaldo que sempre me trazem alento; ao meu amado avô Reinaldo Isolani por sempre me incentivar no caminho das artes; ao meu companheiro e pianista Robério Molinari, por sua constante compreensão e disposição;

à minha amada Neyde Ziviani por me ensinar a acreditar e a reconhecer o meu canto;

à professora Lorena Espina, pelos preciosos ensinamentos e auxílios técnicos e musicais;

à minha querida orientadora, professora Dr. Luciana Monteiro de Castro (UFMG) pela acolhida, pela paciência, pela audição, dedicação e condução; aos meus companheiros de trabalho Néstor Gurry e João Di Souza por estarem sempre presentes me auxiliando em todo o crescimento musical;

à minha querida amiga e parceira musical Carolina Valverde, por toda esta estrada trilhada, por todo o incentivo e pela inspiração que me trouxe para que eu pudesse desenvolver esta dissertação; ao amigo e professor Marcelo Pereira pela disponibilidade, pela revisão, pelos ensinamentos e pela crítica; ao meu querido amigo, pianista Sérgio Aversa por estar sempre presente me auxiliando e compartilhando comigo as alegrias e dificuldades nas jornadas musicais;

à CAPES pelo apoio financeiro para o desenvolvimento desta pesquisa;

à Deus, por todos eles e por todas as bênçãos recebidas.

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Resumo

O objetivo principal deste trabalho é apontar referências bibliográficas que auxiliem na compreensão dos significados do termo crossover em música para que assim se estabeleçam relações entre este estilo e a sua manifestação na música vocal brasileira. O trabalho considera que tal compreensão pode conduzir ao êxito na performance e à valorização do performer brasileiro na música crossover como um artista plural, tanto por sua compreensão das diferentes linguagens musicais quanto pelo resultado de seu trabalho artístico multidisciplinar. Para alcançar este objetivo, foram realizados estudos acerca do termo crossover segundo as perspectivas históricas, interpretativas e mercadológicas. Para o auxílio e desenvolvimento de uma compreensão mais abrangente do termo também foram empregados o conceito de hipertexto e o reconhecimento de suas propriedades, em analogia à prática artística do crossover. Segundo a perspectiva hipertextual, um espetáculo crossover, por exemplo, pode configurar-se em como uma rede de múltiplas conexões, conectando obras artísticas, populares e eruditas, performers com habilidades várias, tecnologias antigas e atuais e, sobretudo, públicos diversos, interrelacionando ainda conceitos como hibridismo, multiestilismo e globalização. Palavras chave: crossover, performance, multiestilismo, estudo das mídias.

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Abstract

The main objective of this work is to point out bibliographic references that help in understanding the meanings of the term crossover in music so that relationships can be established between this style and its manifestation in Brazilian vocal music. The work considers that such understanding can lead to the success in performance and valorization of the Brazilian performer against crossover music as a plural artist, both for his understanding of different musical languages and for the result of his multidisciplinary artistic work. To achieve this goal, studies were conducted on the term crossover, according to historical, interpretative and market perspectives. To aid and develop a broader understanding of the term, the concept of hypertext and the recognition of its properties were also used, analogous to the artistic practice of crossover. From a hypertext perspective, a crossover show, for example, can be configured as a network of multiple connections, connecting popular and erudite works of art, performers with various skills, current and ancient technologies and, above all, diverse audiences. Concepts such as hybridity, multistylism and globalization. Key words: Crossover, performance, multistylism, media study.

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Lista de Figuras e Tabelas

Figura 1 - Conceitos que atribuem significados a palavra crossover. 30 Figura 2 - Os campos de abordagem que permeiam o crossover. 58 Figura 3 - Rede de conexões possíveis do crossover. 84 Figura 4 - Possíveis esferas das mídias. 89 Figura 5 - Analogias das esferas do hipertexto com a música crossover. 90 Figura 6 - Possibilidades de mídias que auxiliam na difusão da música atualmente. 91 Figura 7 - As mídias e a popularização da música crossover. 92 Figura 8 - Algumas conexões hipertextuais na canção brasileira. 94 Figura 9 - Apresentação do tema original em Lá Menor, com o acompanhamento ao piano de acordo com a composição sinfônica. 102 Figura 10 - Melodia sentimental de H. Villa-Lobos. Arranjo para performance classical crossover com a tonalidade de Fá Menor. 104 Figura 11 - Trecho da Melodia Sentimental no tom de Lá menor. 104 Figura 12 - Trecho - Melodia Sentimental no tom de Fá menor no arranjo crossover. 104 Figura 13 - Melodia Sentimental, partitura em Lá menor - Início da finalização da canção. 106 Figura 14 - Finalização da canção em sustento da nota Lá4, c.37. 106 Figura 15 - Partitura para performance classical crossover - Trecho inicial da finalização da canção c.47. 107

Tabela 1 - Transformações da palavra cross. 19 Tabela 2 - Definições do termo crossover utilizados em música por dicionários escolhidos. 21 Tabela 3 - Tabela cronológica, do ano de 1942 a 2006, de artistas classical crossover. 36 Tabela 4 - Esquema de possibilidades de execução da música crossover segundo JARVIS. 42 Tabela 5 - Possibilidades de crossover segundo Garvin. 46 Tabela 6 - Algumas diferenças relacionadas ao canto, ao artista da ópera e a do musical segundo Willis-Lynam. 53 Tabela 7 - Cinco cantores de ópera que transitam entre o canto lírico e o teatro musical. 55 Tabela 8 - Comparações de conceitos atuais do crossover em relação ao desenvolvimento histórico e musical mencionados. 66 Tabela 9 - Características do hipertexto segundo Deleuze e Guattari em analogia a exemplos de música ou características do crossover. 87 Tabela 10 - Onze Gravações de Melodia Sentimental. 99

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO 1 - Crossover: sobre o termo, suas origens e significados na contemporaneidade

1.1 - Crossover: origens do termo 18 1.2 - Aplicações do termo crossover no meio musical 21 1.3 - O classical crossover 31 1.4 - O classical crossover e a música vocal 47 1.4.1 O crossover e a voz: desafios técnico-interpretativos do cantor 50 1.5 Conclusões parciais 57

CAPÍTULO 2 - Crossover: um panorama das práticas musicais ao longo da história

2.1 - Aproximações históricas 60 2.2 - Música brasileira e sua formação híbrida: uma breve reflexão 67 2.3 - O moderno conceito de crossover e a relevância das mídias 75

CAPÍTULO 3 - Compositores, obras e intérpretes: a performance crossover no Brasil

3.1 - Hipertexto: uma teoria com base metafórica para pensar o crossover no Brasil 83 3.2 - Relações entre mídias, hipertexto e a música crossover 89 3.3 - Música crossover X performance da música brasileira 93 3.4 - A canção Melodia sentimental de Villa-Lobos: um canto crossover na música de câmara brasileira 96

CONCLUSÃO 107 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 112 APÊNDICES Apêndice A: Melodia Sentimental para canto crossover 118

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“Longa é a arte Breve é a vida.” Tom Jobim

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INTRODUÇÃO

“É por isso que se pode perceber música não apenas naquilo que o hábito convencionou chamar de música, mas – e, sobretudo – onde existe a mão do ser humano, a invenção. Invenção de linguagens: forma de ver, representar, transfigurar e de transformar o mundo.” (MORAES, 1983, p.8).

A motivação de um estudo, em especial de uma pesquisa em Artes desenvolvida em um curso Mestrado apresenta, geralmente, justificativas e inserções contextuais de caráter pessoal. Nesse sentido, apresento um pouco de minha trajetória. Eu sempre estudei música. Desde criança. Comecei com estudos de piano, apoiada pela minha família em minhas práticas musicais. Em casa, era habitual ter um instrumento musical à mão e nas festas familiares eram comuns as rodas de violões, as serestas. Minha avó era atriz, minha mãe estudou piano. Na família, há profissionais e amadores ligados à música e às artes plásticas. Na adolescência acompanhei ao piano alguns coros, grupos de cantores, participei de banda pop, estudei harmonia, acompanhei instrumentistas solistas e toquei em bares. Acreditava que seria pianista profissional. Minhas escutas e preferências eram o pop, o jazz, o gospel e a música instrumental brasileira. Nunca imaginei que algum dia poderia cantar. Não conhecia nada de ópera. Em 2004, em Belo Horizonte, conheci a professora e preparadora vocal Neyde Ziviani que dava aulas de canto lírico. Na época eu pretendia estudar violino, meu mais novo interesse, e para isso dirigi-me ao Palácio das Artes, grande espaço da arte em Belo Horizonte. Mas Neyde convidou-me para participar do coral “Sem fronteiras” e ali cantei obras de Bach, Victoria, Vivaldi, Händel, Gabriel Fauré e outros compositores importantes. Acabei por envolver-me com a chamada “música erudita” e decidi mudar o enfoque em meu curso no Palácio das Artes. Passei a estudar canto. Desde então, cantar passou a ser a minha principal atividade musical. E o meu maior desafio. Cantando nas mais diversas ocasiões, firmei-me na vida profissional de músico, tendo concluído o curso de canto lírico na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) sob a orientação da professora Elizete Xavier. Continuei, 11 entretanto, vivenciando no meu dia a dia profissional a prática da “música popular”. Cantei no coral “Voz&Cia”, sob a direção musical de Ernani Maletta, onde praticávamos uma rica mistura de música e teatro. No repertório, marcou-me a Ópera do Malandro do compositor e o delicado musical O Grande Circo Místico, também de Chico Buarque em parceria com Edu Lobo. Passei a viver, porém, uma espécie de dicotomia. Não deveria haver abismos entre estilos, mas na prática estes frequentemente se revelavam. Conhecimentos acerca de uma técnica vocal deveriam ser suficientes para a atividade do cantor em exercício, contudo isso não me parecia suficiente. Compreendi que era necessário tornar-me “vers|til”. Entre outras questões, além de estudar a técnica do canto lírico e um repertório erudito, que incluía árias de óperas, operetas, lieder, mélodies e a canção de câmara brasileira, todas exigidas nas atividades acadêmicas, precisava atender a outras demandas do mercado de trabalho em que atuava. Tal versatilidade deveria estender-se para além do repertório lírico, ou ainda, para além de uma técnica específica. A versatilidade demandaria ainda conhecimentos técnicos diferentes que permitissem maior domínio da voz na interpretação de diferentes estilos e repertórios musicais e um entendimento da literatura do canto em outras de muitas possibilidades estilísticas, estéticas e contextuais, incluindo a música popular, esta múltipla e vasta no Brasil e em outros países. A partir de 2012 tive a oportunidade de criar, juntamente com o pianista, arranjador e maestro Robério Molinari e os tenores Néstor Gurry e João di Souza, o grupo crossover i Molinari Camerata Musici1, dedicado a uma música variada. Neste grupo, pude realizar, com o acompanhamento de uma orquestra, o meu primeiro trabalho na música crossover que era até então pouco conhecida no Brasil. Em um só concerto, pude interpretar árias de óperas, canções italianas populares, trilhas sonoras de filmes e canções diversas de diferentes países, caracterizadas como pop music. Com i Molinari Camerata Musici tive também a oportunidade de experimentar o classical crossover, que exige do artista aprimoramento técnico para a música de concerto associado à música pop. Como estreamos no Brasil, construímos nossa própria mescla de música de câmara brasileira e MPB.

1 Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2019. 12

Tive, assim, como soprano do i Molinari desde a sua criação, a oportunidade de exercer o que sempre acreditei ser possível: controlar a voz por meio do conhecimento e de adaptações da técnica belcantista, para criação de uma nova performance, com outras sonoridades, texturas e estilos. O grupo i Molinari Camerata Musici lançou o projeto Alchimia e atualmente tem se especializado em práticas e repertórios do classical crossover. No chamado “segmento crossover” também tive a oportunidade de trabalhar com a Celtic music. Esse trabalho foi desenvolvido em parceria com a harpista e musicoterapeuta Cláudia Miranda durante o ano de 2006. Estreamos o concerto “Canções Celtas para Harpa e Voz”, que levava ao palco canções tradicionais irlandesas, escocesas, inglesas e galesas. Naquela época, quando não tínhamos ainda acesso às partituras, hoje disponíveis pela internet, Cláudia trouxe da Irlanda obras inéditas lançadas e editadas em um congresso de harpa naquele país, no qual o instrumento é muito popular. Estávamos conscientes de que seríamos pioneiras da Celtic music e World music no Brasil. No ano de 2011, eu lancei a banda “The Celtic Songs” juntamente com a harpista Cecília Pacheco, em parceria com o pianista Robério Molinari, o violonista Mauro Dell’Isola, o percussionista André Jaued, a Bodhráni2 Carolina Valverde e o saxofonista e flautista Marcelo Pereira. O grupo interpretava o crossover nesta formação musical e instrumental variada com o repertório abrangente de música celta. Ainda no segmento crossover da Celtic music e Word music, no ano de 2014, em parceria com a Bodhráni e saxofonista Carolina Valverde, tive a oportunidade de atuar como cantora, arranjadora e diretora musical do Awen Duo3. O Awen lançou o E.P.4 The Journey com interpretações de canções tradicionais de países de origem celta, podendo, assim, por meio de releituras e interpretações, explorar conceitos musicais de uma cultura pouco conhecida. Desde então venho experimentando repertórios diversificados e me sentindo cada vez mais estimulada a buscar novos conhecimentos acerca do canto, especialmente o canto crossover e seu repertório na atualidade.

2 Bodhráni é a palavra usada para quem toca o instrumento de percussão chamado Bodhrán. 3 Awen é uma palavra galesa que significa “inspiraç~o”. Disponível em: Acesso em: 07 fev. 2019 4 Extended play (EP) é uma gravação em disco de vinil, formato digital ou CD que é longa demais para ser considerada um single e muito curta para ser classificada como um álbum musical. 13

Apesar de minhas vivências musicais diversificadas, o canto que atravessa e dilui as fronteiras entre o erudito e popular ainda se mostra para mim uma questão desafiadora e sinto necessidade de levantar discussões mais aprofundadas no ambiente acadêmico acerca deste tema, não só pelo interesse técnico, pedagógico e musicológico, mas por razões práticas relativas à formação profissional no contexto artístico atual, abordando o emprego e readequação de aspectos técnicos específicos, a escolha de novos repertórios, as adequações vocais e cênicas, o emprego de recursos tecnológicos etc. Considero que minha formação artística tenha ocorrido formalmente no ambiente acadêmico do canto lírico, mas minha prática profissional foi com certeza marcada pela escuta e pela interpretação basicamente intuitiva das canções brasileiras da MPB, da música pop internacional, da Celtic music e World music. É certo que não sou uma exceção nesse processo de mesclagem. De uma observação mercadológica na cidade de Belo Horizonte, percebi que o crossover está presente no trabalho artístico de muitos colegas de profissão. Cito, nas linhas abaixo, para conhecimento, alguns artistas individuais e grupos que realizam uma prática de música crossover na cidade, nas mais diversas vertentes. O crossover é realizado tanto na música quanto na formação destes grupos por meio de mesclagens estilísticas e artísticas, porém tais grupos não se intitulam crossovers oficialmente. Na linha do “rock progressivo”, um estilo considerado crossover por mesclar o rock com as influências da “música cl|ssica”, citamos a lendária banda Sagrado Coração da Terra5 e também a Banda Cartoon6, autora do CD Bigorna (2002) - primeira ópera rock lançada pela banda - e do CD Unbeatable (2017) - música folk que é interpretada por um quarteto de cordas7. Ainda ao estilo crossover, que faz a junção do pop + rock + música sinfônica, há o grupo Rockin’ Strings8, que apresenta peças de rock de diversos períodos, executadas com instrumentos de orquestra. Outras formações orquestrais crossovers que mesclam a música sinfônica e o rock,

5 Disponível em:< https://www.sagradocoracaodaterra.com.br/discografia.htm> Acesso em: 20 jul. 2019. 6 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cartoon_(banda)> Acesso em: 20 jul. 2019. 7 Disponível em: http://rockmaster.com.br/2017/09/25/cartoon-lanca-seu-5o-album-totalmente-gravado- no-estudio-da-banda/>Acesso em: 20 jul. 19. 8 Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2019. 14 atuantes na cidade de Belo Horizonte, são Fractal Orchestra e a Orquestra Mineira de Rock. A cantora lírica Rita Medeiros está à frente da banda Lyrical Jazz 9 que mescla canções e standards do jazz com o canto lírico. Também o Trio Amadeus10 traz mescladas as sonoridades da harpa, do violão, do violino, do canto popular e canto lírico na interpretação do World Music. Na música coral, o Coro Madrigale11, de vozes mistas, com muitos cantores de formação no canto erudito, apresenta em parceria com o pianista e arranjador Hely Drumond um concerto que pode ser considerado crossover quando interpreta a música brasileira12 de Tom Jobim, Chico Buarque, Lô Borges e em arranjos corais polifônicos de música popular. O coro também executa canções de Negro Spirituals, estilo crossover por origem. Algumas propostas do crossover têm estado presentes também na música sinfônica em Belo Horizonte. A Série Sinfônica Pop é uma iniciativa da Fundação Clóvis Salgado em que artistas da MPB são convidados para se apresentarem juntamente com a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais. Grandes nomes da música brasileira já atuaram no projeto, como Wagner Tiso, Nana Caymmi, Zizi Possi, João Bosco, , Rosa Passos, Milton Nascimento, Ivan Lins, Mônica Salmaso, Filipe Catto, Luiz Melodia, Elba Ramalho, Zé Miguel Wisnick, Lenine, Chico César, Grupo Cobra Coral, Leila Pinheiro, dentre outros. Estes artistas não são classificados como “artistas crossovers”, no entanto a prática que deixa evidente a mescla da música sinfônica com artistas da música popular brasileira também busca desmistificar a seriedade ou inflexibilidade atribuídas ao repertório e ambiente sinfônico13. De grande êxito foram também os diferenciados arranjos elaborados com o intuito de aproximar o público do universo erudito. Outra orquestra, ainda em Belo Horizonte, que executa o crossover sinfônico com artistas da MPB é a Orquestra Opus, fundada em 2006, regida pelo maestro Léo Cunha com quem já se apresentaram artistas como Maria Gadu, Flávio Venturini, dentre outros.

9 Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2019. 10 Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2019. 11 Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2019. 12 Disponível em: Acesso em 20 jul. 2019. 13 Disponível em: aAcesso em: 20 jul. 2019. 15

Completando a lista, cito ainda o crossover feito pela banda Black Machine14 com uma mescla de música brasileira e soul music e o coral Black to Black que executa o estilo da Black Music com intercessões Gospel Music. Frente ao exposto, mostrando um pouco das minhas experiências como musicista e em constante observação da atividade musical na cidade de Belo Horizonte, com este trabalho evidencio a minha busca contínua por uma ampliação de conhecimentos nesta área efervescente, mas relativamente nova no Brasil. Como objetivos principais deste trabalho, proponho realizar um levantamento bibliográfico sobre o tema crossover, em sua inserção no contexto internacional e sobretudo no meu próprio contexto, descrito anteriormente. Esta dissertação realiza, portanto, um estudo de possibilidades estilísticas musicais do canto crossover que visa auxiliar na compreensão deste conceito hoje no Brasil e no mundo. Busco ainda contribuir para a ampliação do conhecimento deste tema na área acadêmica musical e para sua aplicabilidade na performance da música brasileira. Objetivo, sobretudo, buscar subsídios teóricos para uma prática performática da música crossover em meu próprio ambiente profissional. Metodologicamente, abordo questões por vezes distantes dos enfoques teóricos das práticas acadêmicas e com frequência excluídas da pedagogia do canto, sobretudo quando se trata de questionamentos a padrões tradicionais de técnica, tratamento de repertórios e à própria performance do canto lírico em outros repertórios. Após identificar alguns conceitos na revisão da bibliografia e reconhecer origens, etapas de desenvolvimento e caracterização das práticas crossovers em música, aponto para os contextos de realização em diferentes ambientes e formas e, finalmente, avalio algumas possibilidades de realização deste canto em associação a um repertório de música brasileira. Esta dissertação tem ainda o objetivo de embasar conceitos da música crossover para uma melhor performance de um artista multiestilístico, o que possibilitará o seu êxito artístico, estético e comunicativo; visa promover uma ponte entre os conceitos estudados do canto crossover com a prática em performance da música brasileira. As relações que se manifestam, de origem

14 Disponível em: https://www.vagalume.com.br/banda-black-machine/biografia/> Acesso em: 20 jul. 2019.

16 histórica, tecnológica e sociocultural e dão origem às mais variadas possibilidades de mesclas e hibridismo na música e no espetáculo performático do crossover, são fundamentados teoricamente em teorias de rede, em especial das teorias do hipertexto. Seguem abaixo descrições sintéticas dos conteúdos dos capítulos que compõem este trabalho. No primeiro capítulo, abordo o crossover a partir da evolução do termo, suas especificidades e aplicabilidade em variados contextos. São discutidos sua origem, história, a diversidade semântica do termo e seu uso nos diferentes contextos, tanto musicológicos quanto na performance, apontando para novos gêneros, subgêneros e estilos musicais caracterizados pela mescla de diferentes ritmos, advindos tanto da música tradicional, folclórica e popular, assim como do segmento da música erudita. Vários dicionários são consultados, da mesma forma que fontes específicas, como jornais e sites que falam do crossover em suas diferentes abordagens. Ainda no primeiro capítulo deste trabalho é apresentada uma revisão bibliográfica voltada para estudos das características do canto crossover, na investigação de suas possibilidades de execução, evidenciando características do repertório e possibilidades do performer. Dentre os autores consultados estão, por exemplo, David Brackett (1994), Roy Shuker (2005 e 2008), Reebee Garafalo (2002), Nicola Jarvis (2011), Martin Stokes (2014). Investigo, no segundo capítulo, a evolução das mídias e sua contribuição para uma variação na escuta musical, buscando também compreender como os meios de comunicação têm afetado o perfil do consumidor da música e as formas de difusão das performances musicais. Busco também avaliar os principais acontecimentos históricos musicais da cultura nos Estados Unidos que contribuíram para a formação do conceito hoje compreendido como canto crossover, contrapondo-o às bases evolutivas da cultura musical no Brasil. Verifico as possibilidades de um diálogo entre culturas frente às observações históricas do processo de formação da música no Brasil. Ainda no segundo capítulo, investigo o crossover em sua comunicabilidade segundo os fundamentos teóricos do hipertexto, cujas propriedades auxiliam na compreensão do canto crossover, pensado como uma rede de conexões, em que se interconectam elementos de ordens variadas, como obras musicais, tecnologias de sonorização, intérpretes, cenários, públicos e contextos diversos. 17

No terceiro e último capítulo, são discutidas algumas possibilidades de performance crossover para minha própria experimentação, juntamente com grupos em que atuo, com base nos estudos desenvolvidos nos capítulos 1 e 2, em práticas já estabelecidas no ambiente profissional brasileiro descritas no terceiro capítulo e em novas propostas, a exemplo do arranjo e performance para a canção Melodia sentimental de Villa-Lobos que apresento. Por fim, concluo esta introdução sintetizando aquilo que me motivou em minha pesquisa. Fui movida não apenas por minha formação musical, ligada a uma prática profissional de música eclética, mas pela possibilidade de realizar uma pesquisa acadêmica que buscasse reconhecer e descrever de forma sistemática a prática crossover, frequentemente percebida com reservas e desconhecimento. A meu ver, essa sistematização pode promover o crossover no ambiente acadêmico, antes mesmo do ambiente profissional, auxiliando no seu reconhecimento como uma prática de performance extremamente rica, bem estabelecida e justificada histórica e socialmente.

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CAPÍTULO 1

Crossover: sobre o termo, suas origens e significados na contemporaneidade.

1.1 – Crossover: origens do termo

Inicio este capítulo com uma breve discussão acerca das origens e significados do termo que configura parte importante do tema desta dissertação. O termo inglês crossover poderá corresponder a um verbo, a um substantivo ou a um adjetivo, segundo informam edições modernas de dicionários da língua inglesa15. Tal termo será abordado também segundo perspectivas etimológicas que desde os primórdios apontam para uma dinâmica e uma multiplicidade semântica relacionadas às práticas que hoje o podem designar. De acordo com a etimologia, o termo cross, proveniente do inglês antigo, deriva16 do termo latino crux, em designação do objeto que se obtém pela sobreposição perpendicular ou em X de duas estacas de madeira, tradicionalmente vinculado ao simbolismo cristão, a cruz. A palavra, hoje corrente no idioma como substantivo e verbo cross/to cross (cruz/cruzar), é também uma simplificação do advérbio across, que pode significar “através de”, “de modo transversal”, “transversalmente”, “obliquamente”, “de um lado a outro”. Numa aproximação semântica, cross, como cruz ou como cruzamento, designaria a passagem sobre ou através de, a interseção, a junção, a mescla. A tabela 1 abaixo apresenta o termo cross em suas origens e diferentes idiomas que refletem suas transformações gráficas. Esta tabela resume os termos estudados nos dicionários: Macmillan British Dictionary (2001), Cambridge Dictionary (2002), Britannica Encyclopedia (2010), Oxford Dictionary (2012), Britannica Encyclopedia (2010), Oxford Dictionary of English Etymology (1996), Concise Oxford Dictionary of English Etymology (1997) e Cognate Linguistics (2011).

15 Macmillan British Dictionary (2001), Cambridge Dictionary (2002), Britannica Encyclopedia (2010), Oxford Dictionary (2012), Britannica Encyclopedia (2010). 16 Oxford Dictionary of English Etymology (1996), Concise Oxford Dictionary of English Etymology (1997), Cognate Linguistics (2011).

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Tabela 1 – Transformações da palavra cross em 7 idiomas. Fonte: tabela elaborada pela autora.

Em derivação do substantivo, o verbo to cross, passando por várias transformações, fixou sua morfologia primeiramente no norte da Inglaterra17. Mantida a forma to cross no inglês moderno, o termo firmou-se com o significado de cruzar, atravessar. Como verbo seguido da partícula preposicional over, a forma to cross over significa igualmente cruzar e atravessar, enquanto em phrasal verbs, como to cross out ou to cross off, os significados são respectivamente riscar e descartar. Segundo Barnhart (1998), Buck (1998) e de Vaan (2008), a palavra crossover é proveniente da junção cross+over, e tem sido gradativamente incluída no léxico da língua inglesa em consequência da presença crescente de práticas e tecnologias definidas pelo termo nas sociedades anglofônicas. Hoje, independentemente da fixação lexical, o termo crossover apresenta larga aplicabilidade e é facilmente encontrado por meio de buscas em sites, em hipertextos como o Google, conduzindo a uma grande variedade de temas ou links. O significado, o emprego e a adaptabilidade do termo variam de acordo com a área do conhecimento em que se inserem, guardando, contudo, a ideia fundamental da mescla, da junção, da interseção, do cruzamento de elementos distintos. No campo da escrita literária (crossover literature18), o crossover é reconhecido como uma técnica de escrita de textos que mesclam dois ou mais personagens de diferentes histórias preexistentes em uma nova narrativa, na qual interagem. Neste sentido, o termo crossover pode também ser empregado na

17 Dicionário de etimologias. Disponível em:Acesso em: 20 mar. 2019. 18 Oxford research encyclopedias. Disponível em: Acesso em: 20 mar. 2019. 20 caracterização de filmes de ficção (crossover ficcional19/fiction), em geral com o objetivo mercadológico de unir públicos diferentes. Um exemplo é o filme Avangers – Os vingadores, em que se reúnem na mesma película heróis protagonistas de filmes anteriores e de grande sucesso comercial. Segundo Peters,

Duas coisas sobre a descoberta de livros são indiscutíveis: os leitores estão sempre atentos a boas histórias e os escritores estão cada vez mais desesperados para encontrar seu público. (PETERS, 2016, p. 10)

Este tipo de crossover, além de ser usado na literatura, sobretudo romances (ou novels20) e no cinema, é também frequente em histórias em quadrinhos, desenhos animados e jogos eletrônicos. Segundo Brackett (1994), o crossover em música é um termo muitíssimo empregado. Este uso possui relações estreitas com a difusão da música popular, sobretudo nos Estados Unidos da América, Canadá, Inglaterra21 e outros países da Europa, como Alemanha, Portugal, Espanha, França e Itália22, objetivando sempre a crescente busca por novos mercados musicais, como veremos a seguir.

1.2 – Aplicações do termo Crossover em música

Referências gerais à música crossover (crossover music) apontam para a ocorrência de cruzamentos ou fusões de estilos musicais com finalidade de tornar uma determinada obra musical mais difundida ou popularizada, levando tais processos ao surgimento de novos ritmos e estilos. Apresentamos a seguir a tabela 2, de caráter comparativo, na qual relacionamos alguns significados tanto da música quanto do artista crossover. Foram consultados os seguintes dicionários: Merriam-webster, Cambridge

19 Crossover “fanfiction”. Disponível em: Acesso em: 20 mar. 2019. 20 The grand tradition of crossover novels. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2019. 21 Cantores classical crossover no Reino Unido. Disponível em: Acesso em: 20 mar. 2019. 22 Os melhores artistas - cantores e instrumentistas crossovers. Disponível em: Acesso em: 20 mar. 2019.

21 dictionary, Collins, English Oxford Dictionary, Macmillan Dictionary, Urban Dictionary.

Dicionário Definições de crossover Tradução Merriam- 1 - A broadening of the popular appeal of an 1 – Uma divulgação de um artista ou músico artist (such as a musician) that is often the result com forte apelo popular que é Webster of a change of the artist's medium or style. frequentemente o resultado de uma Also: an artist or artistic work that has achieved a mudança de mídia ou estilo do artista. crossover. Também: um artista ou trabalho artístico https://www.merri que alcançou um cruzamento. (Tradução da am- autora) webster.com/dictio nary/crossover 2 - To reach a broader audience by a change of 2 - Alcançar um público mais amplo por

medium or style. meio de uma mudança de mídia ou estilo. Ex.: A country singer crossing over to the pop Ex: Um cantor country atravessando as charts. paradas de sucesso do pop. (Tradução da autora)

A rock musician's crossovers into jazz and soul Um músico de rock que transita entre jazz e music. soul music. (Tradução da autora) Cambridge A change from one form to another, or Uma mudança de uma forma para outra ou a mixture of different types: uma mistura de tipos diferentes: Dictionary His crossover music blends Western sua música crossover mistura estilos and ethnic styles. ocidentais e étnicos. (Tradução da autora) https://dictionary.c ambridge.org/us/di ctionary/english/cr ossover Collins 1 - A crossover of one style and another, 1 - Um cruzamento de um estilo e outro, especially in music or fashion, is a especialmente em música ou moda, é uma combination of the two different styles. combinação dos dois estilos diferentes. https://www.collin ...the contemporary crossover of pop, jazz and ... o cruzamento contemporâneo de pop, jazz sdictionary.com/di funk. e funk. (Tradução da autora) ctionary/english/cr ossover 2 - In music or fashion, if someone makes 2 - Na música ou na moda, se alguém faz um a crossover from one style to another, they cruzamento de um estilo para outro, ele se become successful outside the style they torna bem sucedido fora do estilo pelo qual were originally known for. era originalmente conhecido. I told her the crossover from acting to singing is Eu disse a ela que a passagem de atuar para easier than singing to acting cantar é mais fácil do que cantar para atuar. (Tradução da autora)

3 – A recording, book, or other product that 3 - Uma gravação, livro ou outro produto becomes popular in a genre other than its own. que se torne popular em um gênero diferente do seu. (Tradução da autora)

22

4 - (of music, fashion, art, etc) combining 4 - (de música, moda, arte, etc) combinando two distinct styles. dois estilos distintos. (Tradução da autora)

5 - (of a performer, writer, recording, book, etc) 5 - (de um artista, escritor, gravação, livro, having become popular in more than one genre. etc) tendo se tornado popular em mais de um gênero. (Tradução da autora) English 1 - The process of achieving success in a different 1 - O processo de alcançar o sucesso em um field or style, especially in popular music. campo ou estilo diferente, especialmente na Oxford EX: A jazz–classical crossover album. música popular. Dictionary EX. A jazz–classical crossover album. (Tradução da autora) https://en.oxforddi The musical culture of is a spectacularly A cultura musical do Brasil é ctionaries.com/defi intricate one, rife with crossovers, subsections and espetacularmente complexa, repleta de nition/crossover variations. crossovers, subseções e variações. (Tradução da autora)

Phil's achievements in the field of instrumental As conquistas de Phil no campo do and classical crossover has brought him a legion instrumental e no clássico crossover of fans and sustained critical acclaim. trouxeram-lhe uma legião de fãs e foram aclamados pela crítica. (Tradução da autora)

Macmillan A change from one situation or style to another. Uma mudança de uma situação ou estilo para outro. (Tradução da autora) Dictionary https://www.macm illandictionary.com /us/dictionary/am erican/crossover Urban A crossover is that type of person who once Um crossover é aquele tipo de pessoa que belonged to a distinct subculture who then pertenceu a uma subcultura distinta que, de Dictionary suddenly changes their style and behaviour to repente, muda seu estilo e comportamento another subculture, usually coming from a para outra subcultura, geralmente change in fashion trends. proveniente de uma mudança nas https://www.urban tendências da moda. (Tradução da autora) dictionary.com/defi ne.php?term=Cross over

Tabela 2 – Definições do termo crossover utilizados em música por dicionários escolhidos. Fonte: tabela elaborada e traduzida pela autora.

Qual a importância de traduzir, estudar e avaliar os verbetes descritos nos dicionários selecionados? Creio que com estas indicações de dicionários podemos compreender não só o significado de uma palavra, mas sua utilização e dessa forma estabelecer semelhanças e comparar os significados dos termos. De acordo com a tabela 2 acima, um aspecto importante a ser destacado é que em 3 destes 23 dicionários (Merriam-Webster, Collins e English Oxford Dictionary) o sucesso com o alcance de público e fãs é um importante ingrediente para a definição do crossover em música. Em todos os 6 dicionários estudados, a afirmação de que o crossover, seja na música ou o artista estabelece um cruzamento de diferentes estilos, mídias e repertórios. Através desta observação podemos entender que a palavra crossover em música tem representatividade também para o artista quando mescla estilos, agregando públicos diferentes. Os autores que se seguem corroboram e esclarecem a importante característica do crossover. Para melhor compreensão de tais definições, por vezes assumidas como conceitos em contextos específicos, valemo-nos neste capítulo das proposições de autores que refletiram sobre o termo crossover e sobre o seu uso. O primeiro conceito abordado neste capítulo está no livro Popular Music Culture - The Key Concepts, de Roy Shuker. Segundo o autor,

Crossover ou crossing over, de origem inglesa, é um termo abrangente usado em diversas áreas para designar cruzamento, junções ou misturas entre dois ou mais gêneros e/ou estilos, cuja utilização na música, oficialmente remete a meados do século XX. (SHUKER, 2005, p.62)

Para Shuker (2005), o termo crossover consolida-se como conceito a partir da década de 1930 nos Estados Unidos da América. Esta década foi fortemente marcada pelo ritmo musical Swing substituindo gradualmente o Jazz que tinha sido popular durante a década anterior. O mundo entrou na Era do Swing23. As canções das Big Bands tornaram-se o tipo de música mais popular dos Estados Unidos então. No entanto, a música era também dividida pelas etnias, negros e brancos, em públicos diferentes. E exatamente nesta década, o clarinetista estadunidense Benjamin "Benny" David Goodman, um dos grandes nomes do jazz, considerado "O Rei do Swing", deu início a uma das primeiras iniciativas considerada crossover da época. Goodman foi o primeiro músico norte-americano a criar uma banda com negros e brancos e a apresentar uma audição de jazz no Carnegie Hall. Para Shuker (2005), porém, o termo crossover ainda estaria ali intimamente associado à música

23 De 1935 a 1946, período durante o qual as canções das Big Bands eram o tipo de música mais popular nos Estados Unidos, embora esse tipo de música fosse tocada desde o final da década de 1920 por bandas como as de Duke Ellington, Louis Armstrong e Fletcher Henderson. 24 negra, conhecida como Black Music, principalmente para que este alcançasse maior abrangência. Segundo o autor:

o crossover baseia-se na existência de limites discretos e em uma hierarquia de gêneros e públicos-alvo racialmente distintos. Às vezes, assenta torpemente com a composição birracial daqueles que trabalham em gêneros particulares como, por exemplo, o Rock'n'roll dos anos 50. Brackett24 fornece um estudo de caso interessante de cinco canções de R & B que alcançaram diferentes graus de sucesso em crossover em 1965. (SHUKER, 2005, p.63)

Outro pesquisador que descreveu a construção de um crossover em relação à música negra, que se popularizou chegando ao público branco tendo o rádio como meio de transmissão, foi Reebee Garofalo. Segundo Garofalo (2002), em seu livro Crossing Over: From Black Rhythm & Blues to White Rock 'n' Roll, a criação de uma audiência nacional para a música regional que era executada por negros deu- se significativamente pelas migrações populacionais associadas à Segunda Guerra Mundial. Os soldados do leste e centro-oeste que estavam em bases militares do sul dos Estados Unidos da América foram expostos a estilos musicais que ainda não haviam se tornado populares no norte. Ao mesmo tempo, grande número de afro- americanos do sul deslocou-se para o norte e oeste para encontrar trabalho em fábricas e trouxe com eles suas músicas. Nos anos 40 do século XX, mais de um milhão de negros deixaram o sul, contingente três vezes maior do que na década anterior, espalhando-se pela nação norte-americana. Esses afro-americanos obtiveram dinheiro suficiente em razão de certa prosperidade adquirida no pós- guerra e se estabelecerem como um grupo de consumidores identificável. Em áreas que recebiam alta concentração de imigrantes negros, era do interesse das emissoras de rádio introduzir algumas programações que atendessem a esse novo público. Gradualmente, alguns “programas negros” de música que eram apresentados tarde da noite nas rádios começaram a aparecer em algumas estações. Era como se fosse um tipo de programação "especial" que começaria a derrubar os muros do mercado fonográfico no final da década.

24 Estudos de casos registrados no livro de David Brackett The Politics and Practice of “Crossover” in American Popular Music, 1963 to 1965, The Musical Quarterly, Volume 78, Issue 4, Winter 1994, Pages 774– 797, Disponível em: Acesso em: 22 jul. 2019. 25

O período do final da Segunda Guerra Mundial foi a era de grandes bandas, dos salões de baile e, o mais importante para os músicos, da música ao vivo nas rádios. A rádio era, em essência, seu salão de baile eletrônico; forneceu ao músico um trabalho mais estável. De modo geral, a música ao vivo no rádio significava música ao vivo executada por músicos brancos. Via de regra, os músicos negros eram barrados nas performances de rádio. Segundo Garofalo (2002), os músicos negros apresentavam-se excepcionalmente com o compositor Duke Ellington (1899 – 1974), cujo talento e empreendedorismo possibilitaram a formação de bandas e levaram o crossover da música negra ao público branco.

Transmissões ao vivo de Duke Ellington no Cotton Club e Chick Webb no Savoy, no Harlem, Earl Hines, do Grand Terrace de Chicago, ou talvez uma apresentação tardia de uma banda californiana do West Coast Cotton Club. Significativamente, estas transmissões não foram destinadas a negros. Emissoras e anunciantes estavam simplesmente atendendo à demanda dos EUA por música de big band. Essas bandas acabaram sendo de músicos negros e se popularizaram. (GAROFALO, 2002, p. 115)

Para Garofalo (2002), o ritmo Swing, a Black Music, o surgimento das Big Bands principalmente compostas de músicos negros e a difusão das rádios com “público branco” consumindo Black Music contribuíram para uma ascensão do mercado fonográfico. Este mercado cresceu consideravelmente a partir da década de 1930 sobretudo em razão dos novos ritmos e formações musicais que tinham também a função de estimular a população, que estivera esmagada pela recessão desde a queda da bolsa de valores em 1929, a consumir e se divertir. Outro período de crescimento foi após a Segunda Guerra Mundial, como dissemos anteriormente, com o crossover entre a música negra e a apreciação pelo público branco, cruzamento promovido pelo crescimento das rádios. O autor Paul Fryer (2014), em seu livro Opera in the Media Age: Essays on Art, Technology and Popular Culture, afirma que, além de descrever uma música de um gênero distinto que se tornaria amplamente popular, o termo crossover tem sido usado para descrever músicas que deliberadamente misturam gêneros, caracterizando-se como gênero “híbrido”, fenômeno resultante da fusão de um estilo ou gênero musical com outro diverso. Ainda segundo Fryer (2014), exemplos desse hibridismo são as fusões entre gêneros do jazz (Jazz Fusion), música céltica 26

(Celtic Fusion), worldbeat, dentre outras. Há ritmos e estilos musicais considerados “híbridos” que nasceram de cruzamentos musicais e de interesses mercadológicos, chegando a originar movimentos artísticos de alcance mundial, como World music, New age, Celtic Music, Northern Soul, R&B25 e, sobretudo, gêneros provenientes da fusão de diferentes estilos de músicas norte-americanas, com e sem raízes africanas. Alguns exemplos destas fusões seriam: Pop + Gospel, R&B + Hip Hop, Hip Hop + Soul Music, Negro Spirituals (Folk Spirituals), Country + Pop, Blues + Rock, Pop + Jazz. O êxito do crossover como cruzamento de estilos e gêneros ampliou-se ao longo das últimas sete décadas, o que tem sido comprovado pelo sucesso da indústria cultural, balizada pela aprovação de um público amplo no competitivo mercado da indústria fonográfica norte-americana e internacional, com influências em diversos países. Segundo Covach (2007)26 em seu artigo Jazz-Rock? Rock-Jazz? Stylistic crossover in late-1970s American Progressive Rock27

O termo "crossover" surge frequentemente em textos sobre a música popular pós-Segunda Guerra Mundial; talvez seja mais familiar em discussões sobre os primeiros anos do Rock and Roll, em que o crossover é um fenômeno importante capaz de explicar a ascensão do Rock and Roll na década de 1950 a partir de uma combinação de Rhythm and Blues, Country e Western e mainstream28 e de elementos do pop. Comumente, o crossover refere-se ao marketing de gravações, conforme refletido por gráficos publicados em revistas da indústria musical e, especialmente, na Billboard29 (COVACH, 2007, p.113).

Ainda em relação à música crossover, Covach (2007) aponta para a questão do estilo, que será neste trabalho de grande relevância:

25 R&B abreviaç~o de “ritmo e blues”. É também um tipo de música pop de origem afro-americana sendo que R&B é um termo comercial introduzido nos Estados Unidos no final da década de 1940 pela revista Billboard. 26 “The term ‘crossover’ arises frequently in writing about post-World-War-II popular music; it is perhaps most familiar from discussions of the early years of Rock and Roll, in which crossover is an important phenomenon that helps account for the rise Rock and Roll in the 1950s out of a combination of Rhythm and Blues, Country and Western, and mainstream Pop elements. In this common usage, crossover refers to the marketing of recordings as reflected by charts published in music-industry magazines, and especially Billboard”. 27 Artigo publicado em Expressions in Pop-Rock Music, Ed. Walter Everett (Nova York: Garland, 2000), 113-34. 28 Mainstream é um conceito que expressa uma tendência ou moda principal e dominante. A tradução literal de mainstream é "corrente principal" ou "fluxo principal". 29 Billboard, revista semanal norte-americana da Prometheus Global Media, fundada em 1894, é especializada em informações sobre a indústria musical. Com foco inicial no mercado publicitário, passou a tratar apenas de música a partir da década de 1950. Mantém vários rankings reconhecidos internacionalmente que classificam canções e álbuns populares em várias categorias e estilos. Seu ranking mais conhecido, o Hot 100, mostra os 100 singles mais vendidos e tocados nas rádios e é frequentemente usado nos Estados Unidos como a principal forma de medir a popularidade dos artistas, bem como a de uma canção. 27

Assim, faz sentido distinguir entre crossover no domínio do marketing (crossover chart) e crossover no domínio do estilo musical (crossover style). (COVACH, 2007, p.115)

Os gráficos apresentados na Billboard classificam os registros fonográficos de sucesso (Top 40 da Billboard, por exemplo) e são originalmente projetados para auxiliar empresários de gravadoras, estações de rádio, lojas de discos e centros de distribuição na avaliação das tendências atuais, com vistas a antecipar futuras oportunidades e demandas mercadológicas. Os gráficos (Charts – em inglês) buscam, portanto, representar quais músicas são populares e, ao mesmo tempo, fornecem uma ideia aproximada do tipo de ouvinte de determinado registro. Para este segundo propósito, os ouvintes foram - e em certa medida continuam a ser - divididos em linhas econômicas, geográficas e raciais. Os Pop charts rastreavam recordes direcionados a um público branco de classe média, enquanto os charts Rhythm and Blues (R&B charts) seguiam recordes destinados ao público negro e urbano. Os gráficos da country music seguiam os feitos para ouvintes brancos rurais. Sempre que um registro aparece em mais de um desses gráficos - nos gráficos Pop e R & B, por exemplo - é classificado como crossover, ou seja, ele "cruza" ou faz uma mescla de públicos, atraindo duas grandes audiências de gêneros musicais diferentes. Os gráficos são estritamente destinados a medir o consumo da música. Segundo Jarvis (2011),

A música classificada como ‘R & B’ não foi promovida tão fortemente como ‘pop’, nem as gravações de ‘R & B’ têm acesso à extensa rede de distribuição de discos pop, embora Gordy na Motown30 na década de 60 tenha perseguido com sucesso uma política de tornar a música negra atraente para um público branco (por exemplo, The Supremes, The Four Tops). Na década de 1980, com o sucesso de artistas como Michael Jackson e Prince, a Billboard inaugurou um gr|fico ‘Hot Crossover 30 chart’ (1987-), codificando a natureza rítmica da música negra. (JARVIS, 2011, p.45)31

30Berry Gordy Jr. é produtor musical. É mais conhecido como o fundador da gravadora Motown e suas subsidiárias, que foi a maior ganhadora em negócios afro-americanos por décadas. Encyclopedia of American Bussiness, V.1. Smith, Jessie Carney, 2006. 31 “Music classified as R&B was neither promoted as heavily as ‘pop’ nor did R&B recordings have access to the extensive distribution network of pop records, though Gordy at Motown in the 1960s successfully pursued a policy of making black music attractive to a white audience (e.g. the Supremes, the Four Tops). In the 1980s, with the success of performers such as Michael Jackson and Prince, Billboard inaugurated a Hot Crossover 30 chart (1987), codifying the pacesetting nature of black music.” 28

Pode-se assim compreender que o rompimento de fronteiras na veiculação da música foi e ainda é de grande importância para a existência e o desenvolvimento da música crossover. Um dos objetivos de se fazer música crossover seria, portanto, a integração gradativa de estilos e gêneros, e consequentemente de públicos, o que gera uma rede em constante expansão, ainda que haja exclusão de alguns indivíduos fiéis de cada público dos gêneros “originais”. É a ação entre tornar conhecidos e/ou popularizados gêneros e estilos musicais que cria mercados, unindo públicos diversificados. Segundo Shuker (2005)

Em relação à música popular, a globalização tem uma dimensão cultural e econômica, com ambas estreitamente ligadas. A predominância do mercado da indústria da música popular regido pelos seus majoritários e a internacionalização de estilos musicais podem ser vistas como exemplos de globalização. (SHUKER, 2005, p. 126).32

Para o autor Stokes (2014), muito se fala em uma padronização cultural a partir da difusão da música crossover. O que seria, no entanto, essa padronização cultural? Seria, talvez, uma tentativa de mesclar as culturas para que se encaixassem em um padrão, certa igualdade cultuada por diversas comunidades e assim pessoas realizariam uma atividade de maneira padronizada e previamente estabelecida. Pode-se dizer que o que ocorre é uma hegemonização cultural em que os costumes dominantes impõem-se sobre os demais. No entanto, acreditamos que os regionalismos também se ampliam, promovendo o aumento da heterogeneidade cultural. Segundo Stokes (2014) em seu texto “Creativity, globalization and music”33

(...) essas pessoas têm reconhecido duas coisas. Em primeiro lugar, que longe de ‘envelhecer’, ou permanecer preso em tradição, o mundo pós-colonial tem sido um cenário de criatividade musical vibrante. Em segundo lugar, que os produtores de discos independentes no ocidente já estavam desempenhando um papel ativo na sua difusão e transformação. Seguindo a explosão do punk rock na década de 1970, os independentes se tornaram altamente responsivos a novas confluências da juventude, negros e imigrantes nas cidades

32 “In relation to popular music, globalization has an economic and a cultural dimension, with the two closely linked. The dominance of the popular music industry and market by the majors, and the internationalization of music styles, can be viewed as examples of globalization.” 33 Stokes, Martin. Creativity, Globalization and Music, Disponível em: Acesso em: 23/07/2019. 29

europeias e americanas. Estilos de Word Music e a música norte- africana dos imigrantes foram moldados e nutridos por gravadoras independentes, com o selo francês Barclay. (STOKES, 2014, pág. 10)34

Apresentamos na figura 1 uma elaboração da disposição esquemática de conceitos que até o momento foram abordados neste trabalho em associação à palavra crossover, em sua relação com o campo da música, sendo que alguns destes conceitos interconectam-se. Podemos verificar primeiramente a relação inter- músicas quando se cruzam estilos musicais e gêneros, fazendo do crossover um gênero híbrido, contendo características de ambos. Dentre estes conceitos abrangentes que o termo crossover abarca está também, consequentemente, o conceito do músico crossover que transita em dois ou mais estilos e a indústria cultural que faz parte da ação em integrar os mercados com a finalidade de um alcance maior de público.

Figura 1 – Esquema elaborado pela autora exclusivamente para elucidar conceitos que atribuem significados a palavra crossover, na área musical onde estão interligados.

34 “These people had recognized two things. Firstly, that far from “greying out”, or remaining trapped in tradition, the post-colonial world had, all along, been the scene of vibrant musical creativity. Secondly, that independent record producers in the West were already playing an active role in its diffusion and transformation. Following the punk rock explosion in the 1970s, the independents had become highly responsive to new confluences of youth, Black and migrant culture in European and American cities. World music styles such as rai, a North African migrant music, were shaped and nurtured by independent recording companies, like the French label, Barclay.” 30

1.3 - O classical crossover

Para além das interseções entre os diferentes gêneros musicais populares norte-americanos, músicos e públicos envolvidos, um estilo híbrido inserido na música crossover firmou-se com a designação classical crossover, principalmente relacionado a denominações propostas para o mercado fonográfico e de espetáculos, proveniente da mescla de gêneros abrangentes como Pop + Barroco, Pop + Ópera e Rock + Ópera. Alpár (2016), em sua tese de doutorado para a University of Music and Performing Arts, Vienna, intitulada CROSSING OVER Musicological and sociopsychological aspects of blending classical and popular music, aponta para a abrangência do uso termo, o que levou à sua aplicação em tão diferentes esferas da produção musical:

É difícil encontrar uma categoria musical ou termo que descrevesse trabalhos de mistura de estilos em geral. A palavra crossover é usada em muitos significados diferentes na literatura musical contemporânea e, nesse amplo campo, podemos encontrar composições surpreendentemente diferentes, todas rotuladas como crossover.35 (ALPAR, 2016, p.4)

Como a ideia básica do termo classical crossover é, de modo geral, apresentar uma combinação entre a música dita clássica com formas de música dita popular, ou mesmo mesclando diferentes estilos dentre essas formas tão amplas de classificação, buscamos em primeiro lugar elucidar o que consideramos como clássico ou popular. Tais observações não configuram aqui tentativas de fornecer explicações abrangentes sobre definições tão insistentemente e, por vezes, empregadas de forma preconceituosa. Neste trabalho, o termo “música cl|ssica” faz referência à música artística ocidental associada às tradições europeias da música notada, criada desde a idade média e desenvolvida como música de concerto até o presente, tendo como suas subcategorias a Música Antiga, Medieval, Renascentista, Barroca, Clássica

35 Em um dos maiores bancos de dados de música na Internet, AllMusic.com, os seguintes artistas estão listados na categoria de crossover clássico: André Rieu, , Yo-Yo Ma, John Williams, Nigel Kennedy, André Previn. Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2019. 31

Vienense, Romântica, Moderna e Contemporânea etc.; refere-se ainda ao trabalho de composição e práticas de performances apresentadas em locais de concertos formais (que criam condições ideais para a escuta concentrada de eventos puramente musicais), ao amplo uso de instrumentos orquestrais acústicos e à ênfase na interpretação a partir da leitura de partituras escritas. Para uma observação mais precisa das características do estilo amplamente difundidas em um período histórico específico, diferenciaremos aspectos, como as formas tradicionais de recepção (sala de concertos, salão de dança...) ou funcionalidade definida da música (música sacra, música cerimonial, ópera e outras formas de música de palco e música aplicada). Buscamos ainda classificar e diferenciar, para melhor entendimento dos termos “popular” e “erudito”, obras musicais ao longo de eixos contextuais diferentes, mesmo se elas foram escritas no mesmo período histórico. Podemos encontrar muitas diferenças estruturais e estilísticas entre as composições, mesmo na obra de um único compositor, de acordo com a audiência pretendida das peças, ou seja, um compositor pode escrever peças de estilos diferentes, pode usar linguagens diferentes. Em outras palavras, as estratégias de comunicação dos compositores correspondem à funcionalidade proposta de uma composição que modifica os parâmetros musicais, isto é, um mesmo compositor pode escrever peças que consideramos populares e outras que podem ser utilizadas pela música erudita. Entendendo o fato de que muitas obras atualmente rotuladas como “música clássica” foram, em sua época de criação, literalmente uma música popular, o significado do termo “Música popular” é historicamente dinâmico. Nos aproximamos das abordagens de Shuker (2005) ao utilizarmos o termo “Música Popular” vinculando-o sobretudo à popularidade e à escala da atividade em termos de consumo.

O termo "música popular" desafia uma definição precisa e direta. Culturalmente, toda música popular consiste em um híbrido de tradições musicais, estilos e influências. Ao mesmo tempo, é um produto econômico investido com significado ideológico por muitos de seus consumidores. (...) Obviamente, os critérios para o que conta como popular e sua aplicação a estilos e gêneros musicais específicos, são abertos a um debate considerável. Vendas recordes, participação em concertos, número de artistas, rádio e televisão, são quantificáveis indicadores de popularidade, mas a música clássica claramente tem que ser considerado 32

popular, enquanto, inversamente, algumas formas de música popular é bastante exclusiva. Muitas formas musicais cruzam agora no mercado (...) Por exemplo, considerar o marketing altamente comercial dos Três Tenores, cujos a música clássica liderou as paradas de pop nos anos 90.” (SHUKER, 2005, p. 13)36

A distribuição em massa das gravações e partituras e a profusão de performances ao vivo são aspectos-chave frequentemente considerados pelos artistas na criação de música popular. Além disso, o termo é utilizado neste trabalho para indicar uma ampla variedade de gêneros que resultam de técnicas colaborativas de composição e principalmente práticas de performances com improvisação e liberdade de alteração de aspectos originalmente propostos na música (transformações rítmicas, harmônicas, melódicas, textuais, tímbricas etc.), além da ênfase na interação dos artistas com o público. Para Shuker (2005),

Parece que uma definição satisfatória de música popular deve abranger características musicais e socioeconômicas. Essencialmente, toda música popular consiste em um híbrido de tradições musicais, estilos, influências e também é um produto econômico que é investido em significado ideológico de muitos de seus consumidores. No coração da maioria das várias formas de música popular é uma tensão fundamental entre a criatividade essencial do ato de "fazer música" e a natureza comercial da maior parte de sua produção e disseminação.” (SHUKER, 2005, p.205)37

Frente às características que apontam para a música clássica e para música popular, a subcategoria da música crossover - classical crossover ou crossover clássico - abrange amplamente a música clássica, a música de concerto que se populariza por meio de uma variedade de gêneros apresentados à “maneira clássica” como, por exemplo, uma música tradicional ou folclórica interpretada por uma orquestra, uma canção popular com impostação operística, uma sucessão de

36 “The term ‘popular music’ defies precise, straight forward definition. Culturally, all popular music consists of a hybrid of musical traditions, styles, and influences. At the same time, it is an economic product invested with ideological significance by many of its consumers (...) Obviously the criteria for what counts as popular, and their application to specific musical styles and genres, are open to considerable debate. Record sales, concert attendance, numbers of performers, radio and television air play, are all quantifiable indicators of popularity, but classical music clearly has sufficient following to be considered popular, while, conversely, some forms of popular music are quite exclusive Many musical forms now cross over in the marketplace, with distinctions between ‘high’ and ‘low’ or popular culture increasingly blurred. For example, consider the highly commercial marketing of the Three Tenors, whose classical music topped the ‘pop’ charts in the 1990s.” 37 “It seems that a satisfactory definition of popular music must encompass both musical and socio-economic characteristics. Essentially, all popular music consists of a hybrid of musical traditions, styles, and influences, and is also an economic product which is invested with ideological significance by many of its consumers. At the heart of the majority of various forms of popular music is a fundamental tension between the essential creativity of the act of ‘making music’ and the commercial nature of the bulk of its production and dissemination.” 33 canções que se conectam por uma história (características da ópera) ou por “artistas clássicos”, ou seja, aqueles artistas que obtiveram em sua carreira o treinamento acadêmico em música erudita, mas que executam a música popular. Neste trabalho, no entendo, os termos “música clássica”, “música erudita” ou “música de concerto” são utilizados como sinônimos. Segundo o dicionário Oxford

(2007), apesar de gerar controvérsias, tais termos são todos utilizados para se referirem à música ocidental, gerada e desenvolvida na Europa há alguns séculos. “Música cl|ssica” é um termo utilizado internacionalmente. Em inglês, por exemplo, usa-se o termo “classical music” abrangendo a música n~o só do período clássico, mas também aquelas executadas em salas de concerto. A “música erudita” está associada ainda à música acadêmica, compreendida e lida em uma partitura musical. A erudição, na música, geralmente corresponde ao aprendizado da linguagem musical. O termo “música de concerto”, por sua vez, é geralmente utilizado para diversos gêneros que abrangem e caracterizam músicas como sinfonias, oratórios, óperas, música de câmara etc. O novo estilo da música crossover, o classical crossover, que se caracterizou por meio de uma fusão de gêneros, também pode referir-se a colaborações entre artistas que executam a música cl|ssica e artistas “n~o cl|ssicos”, bem como a músicas que mesclam elementos da música clássica (ópera e música sinfônica, por exemplo) com a música popular (pop, rock, folk e a música latino-americana, entre outros gêneros). Cantores e instrumentistas da música pop, cantores de ópera, instrumentistas clássicos e, ocasionalmente, grupos de rock realizam a performance do classical crossover. Embora o fenômeno tenha sido comum no mundo da música, o termo classical crossover, cunhado por gravadoras nos anos 1980, ganhou popularidade a partir dos anos 1990 e adquiriu sua própria tabela Billboard. Sobre o gênero classical crossover, Stilwell (2001) afirma que o termo refere-se à música e/ou aos artistas que incorporam elementos “clássicos” em sua arte. Segundo Wolfe (2011)

Crossover clássico é um gênero que paira entre música clássica e música popular, e é geralmente direcionado a fãs de ambos os tipos de música. Assim, como é usualmente tratado na música crossover, os performers que são classicamente treinados (na 34

maioria das vezes superestrelas de ópera) cantam músicas populares, músicas folclóricas, músicas de shows ou músicas tradicionais. Podendo se referir também a pops stars da música popular cantando repertório clássico. O crossover também pode ser aplicado ao trabalho de artistas, vocais ou instrumentais, que tentam criar uma síntese entre um estilo clássico e um estilo popular.” (WOLFE, 2011, p. 362)38

A subcategoria de música crossover – classical crossover ou crossover clássico – não é de fato uma prática recente. Se o termo classical crossover foi estabelecido nos anos 80, músicos clássicos vêm adentrando o mundo pop e músicos pop o mundo clássico desde o início do século XX, como registram as muitas gravações fonográficas disponíveis. Mediante uma pesquisa com diferentes e representativos performers, da década de 40 até o ano 2000, elaboramos a tabela 3, cronológica (1942 – 2006), listando como exemplo artistas e gravações que marcaram a história da música e da indústria fonográfica e promoveram uma mescla de estilos, revelando aproximações e influências intercambiadas entre a música clássica de concerto, a sinfônica e o jazz, o pop e o rock. A tabela descreve de modo sintético o panorama histórico do fenômeno de crossover clássico.

REFERÊNCIAS ANO ARTISTA HISTÓRIA FONOGRÁFICAS 1942 John O tenor irlandês-americano https://www.youtube.com/watch?v= John McCormack torna-se tYiRrD2zXMU McCormack39 talvez o primeiro artista crossover mais vendido. Green Isle of Erin Como artista do Metropolitan Opera e do Covent Garden de Londres, ele também vendeu milhões de gravações de baladas populares e canções folclóricas. 1940 Mario define a prática https://www.youtube.com/watch?v= mercadológica do tenor cWXNSlZU0Us

38 “Classical crossover is a genre that hovers between classical and popular music and is usually targeted at fans of both types of music. In the most common type of crossover, classically trained performers (most often operatic superstars) sing popular songs, folk music, show tunes, or holiday songs. Crossover may refer to pop stars singing classical repertoire. Crossover can also be applied to the work of artists, vocal or instrumental, who attempt to create a synthesis between a classical and a popular style.” 39 Disponível em: Acesso em: 25 jul. 2019. 35

Lanza40 popular moderno, assinando um contrato com Granada a MGM Studios e aparecendo em filmes de Hollywood como "The Midnight Kiss" e "The Great Caruso". Ele também é protagonista de sua própria série de rádio da CBS e tem vários sucessos no topo das paradas. 1950 Liberace41 Liberace, um pianista https://www.youtube.com/watch?v= clássico de Milwaukee, rH7zxxAWg5Q torna-se uma grande Liberace and the London Philharmonic Orchestra personalidade da televisão,

trazendo o estilo “showman” para a música clássica. 1952 Yehudi O violinista Yehudi Menuhin https://www.youtube.com/watch?v= viaja para a Índia, estuda IZRqu3vJMA0 Menuhin42 ioga e se torna um colega de sitarista Ravi Shankar. Ele Tradicional: Prabhati (basedo em grava um álbum com Raga Gunkali). Shankar em 1966. Mais tarde, ele colabora com o violinista de jazz Stéphane Grappelli. 1969 Deep Hard-rockers Deep Purple https://www.youtube.com/watch?v= colabora com a Royal Ufm4NHTXVSg Purple43 Philharmonic Orchestra no Concerto completo realizado no ano "Concerto para Banda e de 1969 com Deep Purple e Royal Orquestra", um início de Philharmonic Orchestra. fusão de guitarra de heavy- metal com cordas mais refinadas das orquestras. 1972 Emerson, O grupo inglês Emerson, https://www.youtube.com/watch?v= Lake e Palmer alcançou 4igIQ2TOASg Lake, and sucesso comercial com sua 44 Palmer participação no rock Concerto completo de “Quadros de

40 Disponível em: Acesso em: 25 jul. 2019. 41 Disponível em: Acesso em: 25 jul. 2019. 42 Disponível em: Acesso em: 25 jul. 2019. 43 Disponível em: Acesso em: 28 jul. 2019. 44 Disponível em: Acesso em: 28 jul. 2019. 36

progressivo de "Quadros de uma exposição” executado por uma Exposição", de Emerson, Lake e Palmer. Mussorgsky. 1975 James James Galway é um flautista https://www.youtube.com/watch?v= irlandês que desiste de seu xv1rI1kFvwA Galway45 trabalho como principal flautista na Filarmônica de Danny Boy (tradicional Irlandês) Berlim e inicia sua carreira solo com a canção “Annie's Song”, canção de um álbum de arranjos de músicas folclóricas, clássicos favoritos e transcrições, incluindo a música-título de John Denver. 1980 Jessye Na década de 80 os https://www.youtube.com/watch?v= Norman & sopranos Jessy Norman e rOHcglhWYHg Kathleen Kathleen Battle cantam o Battle concerto de “Nigro concerto completo “Spirituals in Concert”, regência de James Levine. Spirituals”. O concerto de música tradicional, além dos 2 sopranos, continha também um coro e uma orquestra. 1988 Freddie Lançamento do álbum https://www.youtube.com/watch?v= Mercury e Barcelona com o cantor de -4FDrtsDdEI Montserrat Rock Freddie Mercury e a Barcelona - Ao Vivo, 1988. 46 Caballé soprano Montserrat Caballé demonstrando a possibilidade um dueto entre vozes que cantam em gêneros musicais diferentes. 1990 Os Três Os três tenores - Luciano https://www.youtube.com/watch?v= Pavarotti, Plácido Domingo ERD4CbBDNI0 Tenores e José Carreras – cantam juntos na véspera da final O Sole Mio, 1994. do Mundial de 1990, na Itália, nas Termas de Caracala. Seu sucesso leva a várias imitações, incluindo

45 Disponível em: Acesso em: 28 jul. 2019 46 Disponível em: l Acesso em: 29 jul. 2019. 37

os Tenores Irlandeses, os Três Tenores Canadenses, os Três Tenores Chineses, entre outros. 1996 Andrea O tenor italiano Andrea https://www.youtube.com/watch?v= Bocelli começa sua g3ENX3aHlqU Bocelli popularidade nas paradas Con Te Partiró, 1997. europeias com o lançamento de "Time to Say Goodbye", um dueto com . 1996 Bobby The Mozart Sessions – https://www.youtube.com/watch?v= O falsete - assinatura de 13EYG1XfJjI McFerrin e Bobby McFerrin envolve Chick Corea / Bobby McFerrin - Mozart Prelude and Concerto For Piano And Chick uma melodia pungente e Orchestra No.20, K.466 Corea sem palavras, embelezada por floreios de piano que incomodamente rebocam a linha entre o decoro clássico e o estilo de jazz modal e arejado de Chick Corea. 1998 Charlote Charlotte Church, uma https://www.youtube.com/watch?v= garota de 12 anos do País de CYOoelm1Lwg Church Gales, explode na “cena cl|ssica” com "Voice of an Voice of an Angel, 1999. Angel", um álbum lançado nos EUA.

2000 Bond Criação de Bond, um https://www.youtube.com/watch?v= quarteto de cordas PfEWKwsagkI australiano/inglês, composto por jovens BOND - live from the mulheres, com formação em música clássica. Considerada a resposta da música clássica às Spice Girls. O álbum ficou no topo das paradas nos EUA e no Reino Unido. 2001 Billy Joel Billy Joel (Compositor e https://www.youtube.com/watch?v= pianista norte-americano) katta60BizQ termina um hiato de quase uma década sem escrever Richard Joo Plays Billy Joel's Fantasies and Delusions músicas com um álbum de

38

peças de piano clássicas. Gravado pelo pianista britânico-coreano Richard Joo, o álbum intitulado Fantasies & Delusions alcança 18 semanas no topo das paradas. 2002 Bobby Uma mistura de jazz, https://www.youtube.com/watch?v= McFerrin & improviso com influências jMZv5K9Jo70 Chick Corea da música clássica. New Trio North Sea Jazz Festival, 2002 2003 Christopher Christopher O'Riley é um https://www.youtube.com/watch?v= pianista clássico americano V_XWr_OAnj0 O'Riley e apresentador de rádio que lança True Love Waits, com True Love Waits arranjos para piano solo de músicas da banda de rock Radioheads . 2006 Il Divo, quarteto vocal pop https://www.youtube.com/watch?v= operístico criado por Simon 9ikNsp39oV0 Cowell, lança "Ancora", que entra na parada de álbuns Il Divo, ao vivo em Barcelona, 2009. da Billboard na primeira posição, vendendo mais de 150.000 cópias durante sua primeira semana de vendas. O grupo se apresenta na Copa do Mundo de 2006.

Tabela 3 – Tabela cronológica, do ano de 1942 a 2006, de artistas classical crossover. Fonte: Elaborado pela autora.

Jarvis (2011) aponta ainda para o que chama de “características do gênero”. Observa que tais características, para além da própria música, são também características do intérprete, tanto daqueles de música instrumental quanto vocal. Seguem algumas convenções do classical crossover e referências, conforme enumeradas em seu livro. A primeira convenção é a de que o classical crossover tem a característica de converter peças clássicas em músicas pop. Como exemplo, Jarvis (2011) cita Winter (Inverno) de Antonio Vivaldi, de Four Seasons (As quatro estações), que foi adaptado na peça River of Dreams, do álbum Pure, da cantora neozelandesa . Outro exemplo de peça do repertório clássico transformada em uma 39 música pop foi a peça Adagio de Albinoni, do compositor barroco italiano Tomaso Albinoni, originalmente para cordas e cravo, transformada na canção pop Anytime, Anywhere, interpretada pela soprano Sarah Brightman, assim como o tema do segundo movimento da sétima sinfonia de Beethoven, também transformado na canção pop Figlio Perduto, interpretada pela referida cantora em seu álbum Classics, lançado em 2001. Ainda de acordo com Jarvis (2011), uma segunda característica de obra no estilo classical crossover é estabelecida quando se torna possível executar ou interpretar uma música “pop” acrescentando-se em seu arranjo características do estilo clássico; isso frequentemente acontece quando o cantor emprega elementos da técnica vocal própria do canto erudito na interpretação da música popular. Assim, o intérprete pode transformar, por meio de sua voz ou simplesmente mudando o idioma original das letras (lyrics), do inglês para o italiano (idioma tradicionalmente ligado à opera, por sua própria origem e desenvolvimento no país), em traduções ou versões, melodias tradicionalmente pops em chamados “vocais operísticos”. Um exemplo deste tipo de cruzamento seria a interpretação da canção do musical Sunset Boulevard - With one look - transformada em uma canção italiana Guardami, interpretada pela cantora Sarah Brightman. Outra forma de realizar esse cruzamento seria por meio de um arranjo de uma canção pop na qual são incluídas características de instrumentação e harmonização usuais na música clássica, como ocorre em Il Mio Cuore Va, interpretada por , originalmente My Heart Will Go On, de Celine Dion. Uma terceira característica apontada pelo mesmo autor é a de que o crossover pode ocorrer entre performers clássicos quando estes inserem em seus arranjos o “drum machines”, instrumento musical eletrônico concebido para imitar os sons de uma bateria ou percussão, característico de música eletrônica. Este cruzamento é típico entre instrumentistas específicos. Exemplos de instrumentistas que inserem “drum machines” em suas performances são a violinista de origem chinesa Vanessa-Mae, o quarteto de cordas “Bond”, a pianista britânica Myleene Klass e o violinista alemão David Garret. Para Jarvis (2011), tornou-se comum que cantores do classical crossover tenham adquirido a técnica de canto lírico e que interpretem hoje em seu repertório não só as mais populares árias de óperas, de acordo com a voz de cada 40 um, mas também peças “cl|ssicas” muito conhecidas pela audiência em geral, como as versões da música Ave Maria, de Bach/Gounod, Schubert ou Caccini; ou Panis Angelicus, de César Franck. É também frequente que dominem repertórios como canções famosas do teatro musical, como as de O fantasma da Ópera, My Fair Lady e que transitem ainda no repertório de músicas tradicionais ou folclóricas, como Danny Boy ou Scarborough Fair, de músicas pop “padrões” como, por exemplo, Bridge over troubled water, assim como de temas musicais de filmes, trilhas sonoras como as canções Now we are free, Nella Fantasia, Over the rainbow. Segundo a revista americana Classical Music in the 21th Century, que visa a pesquisa atual da música clássica, o crossover clássico desenvolveu seu próprio repertório padrão, ou seja, é um repertório que foi eleito pelos charts da Billdoard. Os exemplos mais executados no mundo são as canções Time to say goodbye, , The prayer, dentre outras. Apresentamos abaixo a tabela 4, elaborada com base no texto citado anteriormente, em que Jarvis (2011) reflete sobre as características da música crossover e suas possibilidades de execução. Na tabela também são apresentadas as referências fonográficas de artistas que popularizaram este estilo por meio de arranjos e/ou versões deste repertório segundo a característica apontada.

Características da Artistas - Intérpretes / Exemplos musicais música crossover Referências Fonográficas 1 – “Inverno” - Concerto No. 4 da obra 1 – River of Dreams - Hayley Westenra / “As Quatro Estações”em Fá menor, op. Album: Pure. lançado em 2003 na Nova 8, RV 297 de Antônio Vivaldi, Zelândia e Austrália e em 2004 nos EUA. originalmente escrito para solo de Referência Fonográfica da canção: violino acompanhado de orquestra. O https://www.youtube.com/watch?v=lM segundo movimento “Largo” (em mi C30NE3tbo bemol menor) foi adaptado para a canção – River Of Dreams.

2 – Adágio - Adágio em sol menor 2 – Adágio - / Album: Lara 1 – Conversão de para violino, cordas e órgão, T. Mi 26. Fabian. Lançado em 1999 na França e em Tema do movimento “Adagio”, sonata 2000 nos EUA. peças clássicas em da chiesa composta por Tomaso Referencia fonográfica: músicas pop Albinoni, adaptações de Remo https://www.youtube.com/watch?v=jKt Giazotto. Obra adaptada para a NuLG5jAo canç~o “Ad|gio” e “Anytime, Anytime Anywhere – Sarah Brightman / Anywhere”. Album: Eden. Lançado em 1998 na Europa e nos EUA. Referência fonográfica: https://www.youtube.com/watch?v=Un N9nkh9hvo

3 – Tema II Movimento (Allegretto) da 3 – Figlio Perduto - Sarah Brightman / Sétima sinfonia em Lá Maior, opus 92, Album: La Luna lançado em 2000. 41

de Beethoven. Adaptada para a Referência fonográfica: canção Figlio Perduto. https://www.youtube.com/watch?v=k5Z 6DBqVmTQ

1 – With One Look (Sunset Boulevard) 1 – Guardami – Sarah Brightman / Andrew Lloyd Weber adaptada para Album: Surrender – Unexpected Songs 2 – Realização ou a canção – Guardami. lançado em 1995. interpretação de Referencia fonográfica: uma música “pop” https://www.youtube.com/watch?v=FO acrescentando em Q4H6kjL0Q seu arranjo musical e ou vocal 2 – My Heart Will Go On composição 2 – Il Mio Cuore Vá – Il Divo/Album: The característica do de James Horner / Will Jennings Greatest Hits, lançado em 2012. estilo clássico adaptada para a canção - Il Mio Cuore Referência fonográfica: Vá. https://www.youtube.com/watch?v=ELr RbtSeSxc 1 – 3° movimento - Presto (em sol 1 – Storm – Vanessa Mae / Álbum: Storm menor) - do concerto “Verão” da obra lançado em 1997. “As quatro Estações” de Antonio Referência Fonográfica: 3 - Inserções de Vivaldi. https://www.youtube.com/watch?v=Tg “Drum Machines” b0jK143MI advindo da música 2 – Toccata and Fugue in D 2 – Toccata and Fugue in D minor – David eletrônica em minor/Bach Garret /Álbum: Rock Symphonies lançado performances de em 2011. música clássica Referência fonográfica: https://www.youtube.com/watch?v=- 3lFBGQQERI

1 – Ave Maria, de F. Schubert. 1 – Ave Maria - Sissel Kyrkjebø/Álbum: Sacred Songs lançado em 2002 Referência fonográfica: https://www.youtube.com/watch?v=4 DfHCa4O_4E 4 - Realização de versões de “peças 2 – Panis Angelicus, de César Franck. 2 – Panis Angelicus - Mirusia Louwerse clássicas” ou árias Álbum: Always and Forever, lançado em 2010. Referência Fonográfica: de óperas https://www.youtube.com/watch?v=4 conhecidas e tIsTmUOODo reconhecidas pelo público em geral 3 – Nessum Dorma - Katherine 3 – Nessum Dorma, de G. Puccini Jenkins/Álbum: Living a Dream lançado em 2005. Referência fonográfica: https://www.youtube.com/watch?v=_ SzaGWtglg4

1 – Oh, Danny Boy - Tradicional 1 – Oh, Danny Boy - Celtic Woman - / Irlandês. Álbum: Celtic Woman 2005. Referência fonográfica: https://www.youtube.com/watch?v=D 5 - Realização de quA6KyHTos versões musicais de músicas 2 – Scarbourogh Fair - Tradicional 2 – Scarbourogh Fair – Sarah tradicionais e ou Inglês. Brightman/Album La Luna, lançado em folclóricas 2000. Referência Fonográfica: https://www.youtube.com/watch?v=UM Zd2KGrbBI

1 – The Music Of The Night (the 1 – The Music Of The Night - Katherine 6 - Realização de phantom of the opera) Jenkins / Álbum: Andrew Lloyd- versões famosas do Webber: Classical Gala, lançado em repertório do teatro 2005. Referência fonográfica: musical https://www.youtube.com/watch?v=5 AaA2QR8tD8 42

2 - I could have danced all night 2 - I could have danced all night – ( My Fair Lady) Kristin Chenoweth / Album: Coming Home lançado em 2014. Referência Fonográfica: https://www.youtube.com/watch?v=Z xypLV-QUY0

3 – Memory (Cats) 3 – Memory – Simone Simons / Álbum: We Will Take You with Us lançado em 2004. Referencia Fonográfica: https://www.youtube.com/watch?v=E uOqYqxqEOU

1 – Nella Fantasia – Originalmente 1 – Nella Fantasia - Sarah Brightman conhecida como Gabriel’s Oboé do /Album: Eden lançado em 1998. compositor Ennio morricone trilha Referência fonográfica: sonora do filme The Mission, 1986. https://www.youtube.com/watch?v=3 DCEZumENeI

2 – Now We are Free dos 2 – Now we are Free - Lisa Gerrard, 7 – Realização de compositores Lisa Germaine Gerrard single parte da trilha sonora do filme / Hans Florian Zimmer / Klaus Badelt The Gladiator, 2000. versões musicais de trilha sonora do filme The Gladiator, Referência fonográfica: trilhas sonoras 2000. https://www.youtube.com/watch?v=D dVLi235gZQ

3 – Over The Rainbow composta por 3 – Over The Rainbow – Harold Arlen e Edgar Yipsel Harburg Referência fonográfica: trilha Sonora do filme O Mágico de https://www.youtube.com/watch?v=z Oz, 1939. MwOO8d7tkw

1 – Amigos para Siempre 1 – Sarah Brightman e Jose Carreras / Single lançado em 1992. Referência fonográfica: https://www.youtube.com/watch?v=Lj 4NUOcf6iU 8 - Realização do “repertório padrão” 2 – How Can I Go On 2 – Freddie Mercury e Montserrat eleito pela Billboard Caballé / Album: Bracelona lançado em do classical 1987. Referências fonográficas: crossover incluindo https://www.youtube.com/watch?v=H duetos - contendo wjpLEJK894 um cantor lírico e um cantor pop. 3 – Vivo Per Lei 3 – Andrea Bocelli e Giorgia Todrani / Album: Romanza, lançado em 1995. Referencia fonográfica: https://www.youtube.com/watch?v=U tDB6a3quLE

Tabela 4 - Esquema de possibilidades de realização da música crossover segundo Jarvis (2011) – Fonte: Elaborada e traduzida pela autora.

No debate sobre o papel da música classical crossover na cultura moderna, alguns estudiosos acadêmicos tendem a compartilhar a opinião de puristas da música clássica que acreditam que os artistas crossovers contribuem para a morte da música de concerto ao apresentar versões “simplificadas” de obras complexas. 43

Para Millington (2007), o grande sucesso de alguns artistas de crossover clássico perturba, compreensivelmente, músicos clássicos altamente talentosos, ainda menos bem-sucedidos, com décadas de treinamento por trás deles. Rejeitar todo o problema ao invés de tentar compreendê-lo em sua complexidade seria uma atitude mais frequente e devido às conotações pejorativas associadas ao termo crossover na academia e fora dela poucos estudiosos da música atrevem-se a abordar o assunto47. Para Jarvis (2011), não apenas intérpretes, mas muitos dos fãs de música clássica desmerecem a música crossover. Segundo o autor, “os artistas de crossover são atacados por simplesmente existirem. Onde o público em geral admira esses artistas, músicos profissionais os desprezam”. Mas por que haveria tantas críticas em relação a um cantor/instrumentista multiestilístico? Para Jarvis (2011), uma possível explicação estaria no modo como os artistas de crossovers são “comercializados”. As gravações de cantores de crossovers são difundidas e negociadas de tal maneira que o público em geral é levado a crer que não há diferença entre eles e os cantores de ópera “puros”. Ainda segundo Jarvis (2011) este seria o argumento que levaria músicos treinados para a música de concerto a se sentirem preteridos ou desvalorizados. Os artistas treinados classicamente buscam reconhecimento por suas habilidades técnicas, considerando-se o tempo e o esforço que dispenderam em sua preparação. O autor afirma que os artistas clássicos de crossover não dependem necessária ou exclusivamente de suas habilidades, talentos e estudos para alcançarem o sucesso, mas também da forma como são “comercializados” para o público em geral. No entanto, há muito pouca literatura científica sobre o assunto e os escritos que existem sobre o crossover emergem principalmente de campos não musicais, de estudos culturais e se concentram predominantemente em aspectos extramusicais, como as estratégias de marketing com foco em necessidades mercadológicas, evolução das mídias e outros conceitos relacionados à musicologia. Estes conceitos que abordam o crossover dificilmente observam a música em si.

47Millington, Aliese.Disponível em: Acesso em: 27 jul. 2019. 44

Millington (2007), em sua tese enfocando as práticas de marketing do crossover, intitulada Subject to change: Nine Constructions of The Crossover Between Western Art and Popular Music, também pede uma análise musicológica detalhada das características musicais comuns dos crossovers. Millington (2007) enfatiza a interdisciplinaridade que o crossover abarca, mas também a importância de se estudar a fundo os gêneros musicais advindos de tais cruzamentos, a verdadeira compreensão dos princípios estéticos essenciais da música e dos estilos populares. Garvin (2012) afirma em sua tese The Crossover Conflict: Creating a Framework for Combining Classical and Popular Music in the 21st Century que ainda não há uma taxonomia acadêmica abrangente, nenhuma classificação sistemática de diferentes tipos e subcategorias de música crossover. Uma razão para isso pode ser o dilema da definição do termo abrangendo interdisciplinaridades e a falta de métodos adequados. Alguns destes problemas relevantes apontados por GARVIN (2012) relacionados aos métodos de classificação serão apresentados na tabela 5 descrita abaixo, na qual Garvin (2012) tenta classificar subcategorias da seguinte maneira: nomeando alguns tipos de crossover - alguns criados por ela e outros tendo como base o artista. Com exemplos, a autora define as categorias segundo diferentes perspectivas.

Nome da categoria Descrição Artista

Crossover fácil de ouvir -Artistas que são considerados Sarah Brightman personalidades não ameaçadoras, estão Andrea Bocelli seguros mediante as pessoas com gostos Josh Groban conservadores. - Público-alvo principal: classe média, mulheres de meia-idade. - Artistas que colaboram frequentemente uns com os outros. Popera - Novas interpretações de árias Il Divo populares de Puccini, Bizet. Three Tenors - árias cantadas por músicos pop. - árias tornadas populares por eventos altamente divulgados. Crossover de -não-profissionais que cantam árias em Paul Potts concursos de talentos televisivos Susan Doyle concorrentes Classical crossover - DJs, produtores de hip-hop e remix de Mostarda Pimp (remix de música eletrônica. Rossini) remix -Obras clássicas - principalmente para a Ludacris (remix de Mozart) pista de dança. Hayley Westenra - Destinado a públicos mais jovens. Classical crossover - Artistas solo executam remakes 2Cellos clássicos de canções pop Eastman School cover Bassoon Quartet 45

Crossover colaborativo - Turnês de orquestras sinfônicas com Metallica e San Francisco programas "pops", colaborando com Symphony bandas pop / rock Incorporação do - Artistas de música popular que usam Beatles: "Yesterday" (quarteto de instrumentos clássicos em fases cordas), estilo classico desenvolvidas de suas carreiras Guns'n'Roses: “November Rain” (Orquestra Completa), Lady Gaga e Beyonce: “Telefone” (harpa) Rock Progressivo - Bandas de rock que usam instrumentos Jethro Tull, clássicos desde cedo em suas carreiras Moody Blues, (normalmente grandes sons orquestrais) King Crimson Rock progressivo: - Bandas de rock indie que usam Arcade Fire, instrumentos clássicos desde cedo em Eels, “a próxima onda” suas carreiras (geralmente pequenos Ra Ra Riot, conjuntos de câmara) Sufjan Stevens

Tabela 5 – Possibilidades de crossover segundo GARVIN (2012), tradução livre da autora.

1.4 – O classical crossover e a música vocal

Um dos subgêneros do classical crossover mais difundidos no mercado fonográfico, impulsionado pela popularidade de grandes concertos e sobretudo dos intérpretes envolvidos, é o ou Popera, uma fusão da ópera com a música pop (folk, jazz, rock e músicas tradicionais regionais). Esta fusão ocorre de modo variado, pela aproximação de cantores líricos do repertório pop, pela aproximação do cantor pop do repertório operístico, pela atmosfera dos concertos onde se fundem orquestra e bandas pop e por outras relações indiretas entre a ópera e o pop. O chamado operatic singing, no contexto crossover, é o cantor que atua trazendo para sua voz a técnica vocal considerada “lírica”, adequada tradicionalmente à interpretação da ópera, mas que a adequa de certa forma à interpretação de música popular. O operatic singer tem cativado o público que aprecia o gênero pop music em mescla com o gênero operístico. Os grupos de músicos que interpretam este estilo são chamados de opera band, um nome crossover em sua própria configuração: enquanto a ópera é caracterizada pelo canto lírico, pelo drama, pelo acompanhamento orquestral, à banda é atribuída uma característica popular quando músicos cantores e instrumentistas reúnem- se para a interpretação de música popular, não sinfônica. Geralmente o cantor de uma banda faz uso do microfone e não canta acompanhado por uma orquestra. Assim, no conceito de opera band ocorre o cruzamento das duas linguagens e opera bands tornam-se 46 notórias por seu estilo e versatilidade no palco. O subgênero operatic pop foi influenciado pelas comédias American Vaudeville e pelo Jazz, difundidos durante o período musical dos anos de 1920. O operatic pop presta uma homenagem ao estilo e tradição que ajudou a moldar o gênero. Houve fatos que marcaram a história do classical crossover antes deste se tornar um gênero mercadologicamente conhecido. O primeiro fato foi o lançamento da “ópera Rock” pela banda brit}nica Queen, com a performance da , em 1975. A banda era bem diversificada graças às influências musicais do cantor Freddie Mercury. Para Jones (2013) “O estilo ópera-rock do Queen era, na verdade, uma continuação da personalidade de Freddie.” Esta canção, particularmente, não possui refrão e consiste em três partes principais: um segmento de balada que acaba com um solo de guitarra, uma passagem operística e uma seção de hard rock. Esta canção, conhecida como ópera-rock porque, além de conter três estilos musicais (balada, ópera e hard rock), é uma história narrada por meio de estilos contrastantes que representam momentos dessa história.

Em 1975, o Queen lançou o disco A Night at the Opera, também conhecido entre os fãs como o White Album da banda, numa alusão ao disco de mesma altura dos Beatles. (...) Esta Opera Rock, quando lançada em 1975, recebeu críticas por não ter apelo comercial e ser muito longa. No entanto, a gravadora bancou a aposta, e o resultado foi estrondoso: primeiro lugar das paradas durante nove semanas consecutivas, os quatro álbuns do Queen entre os vinte mais vendidos, um videoclipe que ficou conhecido mundialmente pela sua produção e a sua qualidade, iniciando a era do videoclipe e é considerada por muitos o maior clássico da história do Rock n’ Roll (MOTA, 2011, p.3).

No ano de 1987, Freddie Mercury lançou o |lbum “Barcelona” como seu último trabalho, em dueto com a soprano catalã Montserrat Caballe, transitando entre a ópera e o pop. Trabalharam por dois anos consecutivos tendo também sido muito divulgada a canç~o “How Can I Go On” do mesmo álbum. O cantor veio a falecer em 24 de novembro de 1991.

Em maio de 1983, em Londres, Freddie, que era apaixonado por ópera, foi à Opera House de Covent Garden assistir à produção de Un Ballo in Maschera (Um baile de máscaras). ... Após o espetáculo, o astro não parou de se desmanchar em elogios ao “tom límpido”, { “versatilidade vocal” e { “técnica impec|vel” 47

da soprano. “Essa, sim, é uma cantora de verdade”, repetiu diversas vezes. Naquela noite, Freddie não sabia que, em breve, ele e Montserrat se apresentariam e gravariam juntos, formando um dos duetos mais inusitados do mundo da música. (JONES 2013, p. 336 - 337).

O gênero classical crossover seria, contudo, instituído definitivamente no mercado com o concerto na Itália dos três tenores , Plácido Domingo e José Carreras, sob a batuta de Zubin Metha, durante o encerramento da copa do mundo de futebol em 7 de julho de 1990.

Na véspera da final da Copa do mundo de 1990 na Itália se concretizava o mais bem-sucedido projeto de música clássica de toda a história. Na noite de 7 julho daquele ano, nas Termas de Caracala, em Roma, os tenores Plácido Domingo, Luciano Pavarotti e José Carreras, em conjunto com as orquestras do Maggio Musicale Fiorentino e da Ópera de Roma, regidas por Zubin Mehta, realizavam um ambicioso projeto que associava exemplarmente uma notável estrutura de marketing com uma inatacável qualidade artística (COLARUSO, 2015, p.1).

Neste concerto, estes tenores cantaram músicas eruditas e populares, canções tradicionais italianas, árias de óperas, dentre outras canções conhecidas mundialmente. A partir deste evento significativo no canto e na mídia, os intérpretes passaram a vivenciar uma contraposição de linguagem entre o erudito e o popular ou entre a música operística e o “n~o cl|ssico”. O estilo classical crossover firmou-se desde então e foi popularizado mercadologicamente, consagrando artistas executantes da “música cl|ssica” e também do pop, cantores como Josh Groban, Sarah Brightman, Katherine Jekins, Andrea Bocelli, Mário Lanza, Sissel Kyrkjebø, , Emma Shapplin, Alessandro Safina, Giorgia Fumanti. Foram consagrados também grupos classical crossovers, seguindo a cadência mercadológica dos três tenores: Il Divo, The Canadian Tenors, The Tenors, Il Vuolo, , The Irish Tenors, The Celtic Tenors, The Two Tenors Duetto, entre outros.48 Na música instrumental, por meio da fusão de elementos do pop, rock e inéditos, como canções africanas, músicas folclóricas de diversos países e também transitando entre uma ou mais

48 Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2019. 48 linguagens musicais, seguem artistas como Yo-Yo Ma, ,Lucia Micarelli, David Garret, entre outros. Outro fato marcante na história do classical crossover foi o lançamento da música Amigos Para Siempre (Friends for Life) ou Amics per sempre, um single interpretado por Sarah Brightman e José Carreras. Esta canção, escrita para os Jogos Olímpicos de Verão de 1992 em Barcelona, foi composta por e a letra de Don Black está em inglês, com exceção da frase do título que é repetida em inglês, espanhol e catalão. No mesmo ano, em 1992, foi lançado em Modena, na Itália, o primeiro concerto Pavarotti & Friends em que o tenor italiano cantava com convidados da música pop. A motivação destes concertos eram causas humanitárias e beneficentes. Esta série de concertos encerrou-se em 2003.

O melhor artista crossover, Pavarotti, tem ganhado mais audiência do que ele poderia imaginar.49 (, 2001).

1.4.1 - O crossover e a voz: desafios técnico-interpretativos do cantor

Na música vocal, o termo crossover pode assumir a função de adjetivo tanto na qualificação da música - crossover music – ao designar obras que apresentam junções de dois ou mais gêneros musicais, quanto na adjetivação do intérprete – crossover singer – cantor que transita entre gêneros. Segundo Stilwell (2001)50, o cantor crossover está sempre em busca da grande audiência e transita de um estilo ao outro, buscando alcançar as “paradas pop”. Para Shueker (2005)51, o público é determinante na transição de estilos do performer. A professora e cantora italiana Gattuso (2006) em seu livro Metodo di canto crossover embasa o canto crossover na técnica lírica belcantista, apontando para aspectos e terminologias tradicionais como a respiração costal-diafragmática, a ressonância de máscara, a elevação do palato mole, abaixamento da língua etc., contendo em seu método exercícios básicos de coloratura e de incentivando à

49 “The ultimate crossover artist, Pavarotti has travelled further into the mainstream than even he could imagine…”. Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2019. 50 “To reach a broader audience by a change of medium or style a country singer crossing over to the pop charts”. 51 “The move of a record/performer from success in one genre/chart area to another, usually with a more mainstream audience”. 49 agilidade vocal. Para Gattuso (2006), a base lírica traz resistência e suporte para uma melhor performance. Sacramento (2009), em sua tese de doutorado Técnica de canto lírico e de teatro musical – práticas de crossover elaborada sobre a orientação do Prof. Dr. António Gabriel Castro Correia Salgado da Universidade de Aveiro, Portugal, descreve uma prática que considera corriqueira entre os cantores(as) do gênero: o crossover técnico-vocal. Segundo a autora, para a execução das obras os(as) cantores(as) acabam utilizando-se, algumas vezes e de modo intuitivo, tanto de técnicas vocais específicas do canto erudito (técnica belcantista, por exemplo), quanto daquelas desenvolvidas mais especificamente no e para o teatro musical, como as técnicas do belting e suas variações, cuja sonoridade é mais aproximada de uma estética do canto popular. Em contraposição à dicotomia entre o canto erudito e o popular vivida academicamente pelos cantores, Keyona Willis-Lynam (2015), em sua tese de doutorado desenvolvida na Universidade de Ohio, cujo título é The Crossover Opera Singer: Bridging the Gap Between Opera and Musical Theatre, defende que a ópera sempre andou de mãos dadas com o teatro musical. Sobre esta “parceria”, Willis- Lynam (2015) ressalta:

Muitos dos trabalhos encenados em óperas são frequentemente considerados híbridos de óperas e musicais, em parte por causa de suas demandas vocais, mas também porque foram escritos por compositores que foram imensamente influenciados pelo musical americano. (WILLIS-LYNAM, 2015, p.30)52

A Broadway é a maior referência de teatro musical profissional no mundo, sendo considerada, segundo a revista americana Billboard, a forma de dramaturgia mais lucrativa com os seus 40 teatros localizados no Theatre District, na ilha de Manhattan. A região começou a abrigar os primeiros grandes teatros, redutos de concertos de música gospel e blues que davam vida aos subúrbios. Não demorou para a área tornar- se o centro das atenções criativas e intelectuais, com a criação da Times Square e a chegada do metrô de Nova York no início dos anos 1900. A

52 "Many of the works being staged at opera houses are often considered hybrids of operas and musicals, in part because of their vocal demands, but also because they were written by composers who were hugely influenced by the American musical."

50 explosão do comércio foi o que mais impulsionou o movimento em seus entornos. A primeira peça teatral musical foi The black crook, apresentada pela primeira vez em 12 de setembro de 1866 em Niblo’s Garden, um antigo teatro da Broadway com 3200 lugares. Apesar das cinco horas e meia de duração, a montagem cativou o público em impressionantes 474 performances. O estilo contava com influências da ‘Operetta’, vinda da Alemanha, França, Veneza e das comédias inglesas. Na época, as peças ainda tinham pouco planejamento e davam mais destaque aos atores do que ao desenrolar da história. Os shows foram evoluindo e a primeira produção que mais se aproximou do nosso conceito de musical hoje – com total sintonia entre enredo e partitura – foi Show Boat, cuja estreia foi em 27 de dezembro de 1927 no Ziegfeld Theatre, tendo sido apresentada 572 vezes. Considera-se que a Era Dourada (The Golden Age) dos musicais começou com Oklahoma em 1943 e se estendeu até Hair em 1968. O público da época passou a contar com mais de duas mil apresentações, com números cada vez mais grandiosos e ousados que traziam crescente notoriedade para a explosão musical que acontecia em Nova York. As produções que datam dessas décadas renderam duradouros clássicos e montagens até hoje revividas na Broadway, como Carousel (1945), My Fair Lady (1956), (1957), The Sound of Music (1959) e Hello, Dolly! (1964). A ópera Porgy and Bess do compositor G. Gershwin estreou na Broadway em 1926, assim como outras obras de compositores como Leonard Bernstein (1918-1990), Douglas Moore (1893- 1969), Philip Glass (1937), Scott Joplin (1867-1968), entre outros. Na indústria fonográfica clássica, o termo crossover é particularmente relacionado a gravações de repertório popular de artistas clássicos, como melodias de espetáculos da Broadway. Para uma técnica vocal que proporcione flexibilidade de repertório ao cantor, Willis-Lynam (2015) ressalta em sua tese a importância de se consolidar a técnica lírica, mas se permitir adaptar as condições reais de trabalho atual:

Os cantores precisam ter certeza da técnica vocal clássica, mas também da capacidade de estender essa técnica para lidar com as demandas de hoje. E principalmente, que este novo cantor do teatro musical deve compreender que não se trata somente da versatilidade em geral, mas também versatilidade no som real que a voz faz - no estilo de cantar com o qual ele 51

deve lidar. Os membros da audiência, ao verem uma performance conectada, não estão pensando sobre o estilo. Eles estão pensando em o fato de que eles se conectam com o artista expressando seus sentimentos através da música.53 (WILLIS-LYNAM, 2015, p.80).

Para que possa ser bem compreendido quando realiza um crossover vocal, ou seja, para que o intérprete que executa um repertório que tem comunicabilidade tanto com a ópera quanto com o teatro musical, Willis- Lynam aponta para algumas das principais diferenças entre o gênero operístico e o teatro musical, como mostra a tabela 6, a seguir:

Teatro Musical Ópera Uso de Microfone Em princípio, não se usa microfone. Tipo de elenco: geralmente são atores, sem Tipo de elenco: são cantores que conhecem a aparente necessidade de uma formação o canto lírico, mas atualmente estão musical no canto lírico. começando a seguir tendências de se profissionalizarem também na dança e nas artes cênicas. Há necessidade de se aprender músicas É o padrão de aprender todo o papel com para audições, mas não necessariamente a característica específica de cada voz para se música define as funções do trabalho encaixar no trabalho artístico. artístico. Não há um tipo de voz definido, ou seja, O registro vocal é determinante para o uma classificação vocal que determina o personagem. papel. Os cantores devem cantar nas extremidades de seus registros vocais. Isso se aplica a homens e mulheres. Habilidades de dança são necessárias. Não são necessárias habilidades de dança, mas é aconselhável adquirir tal habilidade. Não é necessário ler música. É necessário ler música. As canções podem ser transpostas. As canções não são transpostas. Vigor para cantar oito shows por semana. Vigor para cantar até três récitas na semana. Timbre é sempre brilhante. Ênfase no “chiaroscuro” (timbre claro e escuro). Ênfase no texto. Ênfase na música. A tessitura é definida um pouco abaixo para A tessitura não é influenciada pelo texto, acomodar uma qualidade de fala. mas pelo tipo de voz. O registro de peito é estendido além de E4, O registro de peito para tipicamente em na voz feminina. torno de C4 ou E4, na voz feminina. Vibrato não é geralmente muito usado. O vibrato é usado a menos que especificado

53 “Singers need a sure grasp of classical vocal technique, but also for the ability to extend that technique to cope with today’s demands. And central to the demands that the new singing theatre must make on its singer-actors is not merely general versatility, but also versatility in the actual sound that the voice makes – in the style of singing that it can cope with. Audience members, seeing a connected performance, are not thinking about style. They are thinking of the fact that they connect with the artist expressing their feelings through music”. 52

em estilo, por exemplo, a ópera barroca. As vogais são articuladas mais para frente As vogais são mais arredondadas e a pela colocação da língua e a forma da boca é estrutura faríngea é mais vertical. mais horizontal. Dependendo do período de trabalho, a A laringe é tipicamente colocada em uma laringe está em uma posição mais alta. posição mais baixa. Tabela 6 – Algumas diferenças relacionadas ao canto e ao artista da ópera e do musical segundo Willis-Lynam. Tradução livre da autora.

Willis-Lynam (2015) enfatiza a importância de que o cantor crossover de ópera e teatro musical conheça bem os estilos e suas diferenças a fim de que transponha as barreiras não só técnicas, mas de sua comercialização. A ópera e o teatro musical estão em constantes ajustes e modificações. Há nestes estilos um legado técnico construído ao longo da história, mas atualmente a indústria que comercializa cantores e instrumentistas também interfere na forma do fazer musical. Segundo Willis-Lynam (2015), fazer o crossover requer aprofundamento no estudo técnico e musical, adaptabilidade a ambas as técnicas e atender ao perfil contemporâneo para a comercialização do produto musical. Para Willis-Lynam (2015), a técnica belcantista ou o estudo do canto lírico (classical training) proporciona ao cantor uma prática eficiente e saudável, no entanto o potencial artístico que o teatro musical desenvolve traz equilíbrio à prática do crossover, ampliando as possibilidades do performer. Ainda segundo Willis-Lynam (2015):

É vital para o cantor de ópera saber como criar um som de teatro musical de forma saudável, em vez de produzir um som afetado e imitado que causará tensão e desconforto. Já vivemos em uma época em que os cantores ouvem gravações aprimoradas digitalmente e tentam recriar um som impossível de produzir com base nos ajustes feitos no estúdio. Não ter uma escuta guiada para estabelecer uma base sólida de treinamento é um prejuízo para o cantor de crossover. Dedicar um tempo para entender as diferenças estilísticas necessárias para o teatro musical irá equipar melhor o cantor para ser mais comercializável e, mais importante, ajudar o cantor a equilibrar os dois estilos de maneira saudável para cantar nos próximos anos. Em um clima artístico que está constantemente modificando as fronteiras do que faz a ópera ou o que faz teatro musical, é necessário estar ciente desses ajustes para se manter atualizado sobre as tendências. Manter estilos de canto mais antigos em um meio diferente é como colocar um ovo em um buraco circular; você pode fazer parte 53

dela para se encaixar, mas nunca será o certo. (WILLIS- LYNAM, 2015, p.66)

Há uma evidente preocupação de Willis-Lynam com o aspecto comercial da atividade, entretanto tal preocupação não estimula qualquer descuido com os aspectos artísticos; ao contrário, aponta para exigências cada vez maiores, sem abandono de aspectos da tradição na fundamentação técnica e interpretativa. Para que haja uma exemplificação de empregos, na tabela 7 seguem nomes de cantores líricos relacionados a gravações que executam o repertório crossover, ou ainda, em que mesclam os dois gêneros na voz, promovendo uma transição na técnica vocal. Geralmente, os cantores citados possuem formação e carreira no canto lírico, mas gravaram canções executadas no teatro musical. Buscamos exemplificar com a elaboração desta tabela 7 este crossover entre a ópera e o teatro musical.

CANTOR MÚSICA REFERÊNCIA FONOGRÁFICA Eileen Farrell 1 - Fly me to the moon (1961) https://www.youtube.com/watch?v=- byePFpqHPQ

2 - Come Rain, or Come Shine! (Com https://www.youtube.com/watch?v=y2O Leonard Bernstein - 1987) nCuItUXU

Lesley Garrett I Dreamed A Dream (Os Miseráveis) https://www.youtube.com/watch?v=sPe

Y5uizDC4 José Carreras e Tonight (West Side Story, 1984 ) https://www.youtube.com/watch?v=74U

Kiri Te kanawa mUhAsMgM Teresa Stratas Showboat (1988) https://www.youtube.com/watch?v=JKd ZjP60XRg Sumi Jo e All I Ask of You (O fantasma da ópera, https://www.youtube.com/watch?v=gR Fernando Safina 2003) NFRxvQ-BY Tabela 7 – Cinco cantores de ópera que transitam entre o canto lírico e o teatro musical. Fonte: Elaborado pela autora.

Modificar o som ou fazer ajustes em um estilo em virtude de um melhor rendimento da performer não significa a destruição de um estilo. Trata-se, em nossa opinião, de uma adaptabilidade, de uma compreensão das origens da música, de onde ela veio e para onde ela está se dirigindo. O desenvolvimento técnico da voz no musical norte-americano foi um ponto crucial na história e, 54 sem dúvida, enriqueceu o leque de cores e de intenções a dar vida a uma história contada na ópera. E a recíproca é verdadeira.

Os musicais de hoje estão produzindo sons mais contemporâneos com os quais essa geração pode se identificar. A música clássica é um ótimo estilo e som, mas se você olhar para trás, na época em que foi criada, também foi a música popular de sua época. Esses artistas não estavam revivendo a música de centenas de anos atrás. Os artistas de hoje estão lidando com uma variedade de cores e sons - mesmo na ópera - que têm influências de jazz e influências pop. Parece que não valorizamos esses estilos contemporâneos da maneira como faziam Mozart ou Puccini. Temos a obrigação de continuar o fluxo de evolução do drama musical. (WILLIS-LYNAM, 2015, p.80)

Segundo Kellow (2015) em seu livro Opera America, sendo diretor de uma revista americana com o mesmo nome, no artigo Opera’s Broadway Overtures, o crossover expressa a identidade e a sinceridade do performer como artista.

Os musicais clássicos americanos estão agora incorporados no repertório de companhias de ópera de todos os tamanhos. Estamos numa encruzilhada onde podemos reconhecer a integração do teatro musical e nos adaptar, ou podemos liderar a mudança para garantir que estamos expandindo a forma de arte com honestidade emocional e expressão artística sincera.54 (KELLOW, 2015, p.03)

Willis-Lynam (2015) e Kellow (2015), que integram o canto crossover e sua performance a uma prática de canto contemporânea e universal, afirmam também que cantar apenas na ópera ou no teatro musical não é suficiente. O cantor, antes de tudo, é um contador de histórias e por isso consideram ser de extrema importância que o performer compreenda a intenção do compositor e como, com suas vozes, pode dar vida à história. A versatilidade seria, na realidade, um pré-requisito para aqueles que querem dar vida a seus personagens.

Os artistas devem com a sua arte entender a intenção das obras que estão sendo executadas no palco para dar vida à história. O cantor não pode mais conhecer apenas um gênero

54 “Classic American musicals are now embedded in the repertoire of opera companies of all size We are at a crossroads where one can acknowledge the integration of musical theatre and adapt, or one can spearhead the change to ensure we are expanding the art form with emotional honesty and sincere artistic expression.” 55

de música. Eles devem saber mais de um. Os artistas precisam ser bem versados em estilos de ópera e teatro musical para serem artistas que trabalham no mercado atual e exigem muito mais do cantor. O cantor de ópera crossover não é um conceito aguado. É uma realidade que precisa ser discutida porque, se a pessoa perceber hoje ou daqui a alguns anos, a arte de cantar como a conhecemos continuará a evoluir. É necessário que os cantores de ópera estejam envolvidos nesse processo evolutivo. Caso contrário, haverá mais casos em que artistas musicais de teatro são contratados para cantar os papéis musicais que estão sendo executados nas casas de ópera. Nós não somos apenas cantores ou atores de canto. Nós somos contadores de histórias. Há uma infinidade de histórias esperando para ser contada. Alguns podem ser musicais e alguns podem ser óperas. Em qualquer caso, se tivermos a capacidade de cantá-los, a integridade para honrar o estilo e a paixão para dar vida ao personagem, então nosso propósito como cantores de crossover está pronto para ser realizado.55 (WILLIS-LYNAM, 2015, p.83)

1.5 – Conclusões parciais

Elaboramos para o fechamento deste primeiro capítulo a figura 2 que busca sintetizar os tópicos abordados anteriormente. Vislumbramos a evolução da palavra crossover e, em certa medida, compreendemos a abrangência de sua abordagem semântica. Identificamos também em que momento da história o termo passou a ser reconhecido tal como o é atualmente, evidenciando uma nova tendência de mercado e indicando novas práticas de aprendizado musical e novos repertórios. Neste contexto, investigamos o aparecimento de novos estilos híbridos, resultado do cruzamento das linguagens e técnicas musicais. Discutimos também um pouco da realidade do performer crossover com base técnica do canto lírico fazendo um cruzamento com a música pop e com o teatro musical.

55 “Performers owe it to their craft to understand the intent of the works being performed on the stage to bring the story to life. No longer can a singer know only one genre of music. They must know more than one. Performers need to be well versed in opera and musical theatre styles to be an artist that works in today’s market that demands so much more of the singer. The crossover opera singer is not a watered down concept. It is a reality that needs to be discussed because whether one realizes it today or years from now, the art of singing as we know it will continue to evolve. It is necessary for opera singers to be involved in this evolutionary process. Otherwise, there will be more instances where musical theatre performers are hired to sing the musical roles being performed in the opera houses. We are not just singers or singing-actors. We are storytellers. There are a plethora of stories waiting to be told. Some may be musicals and some may be operas. In any case, if we have the capacity to sing them, the integrity to honor the style, and the passion to bring the character to life, then our purpose as crossover singers is ready to be realized.” 56

Figura 2 – Os campos de abordagem que permeiam o crossover. Fonte: Elaborado pela autora.

Embora o termo crossover não seja tão usado no Brasil, concebemos seu uso principalmente nos Estados Unidos como sendo o crossover singing uma expressão de ampla significação em pesquisas relacionadas à voz. Na música crossover foram também investigados seus subgêneros enfatizando o classical crossover, que contém um repertório específico no qual há possibilidades de fazer um cruzamento tanto no gênero popular como no erudito. Pelos novos ritmos híbridos, gêneros e subgêneros, advindos dos cruzamentos musicais, temos então uma nova realidade tanto musical quanto mercadológica, com adaptações tanto da técnica em relação à música quanto das possibilidades de trabalho que esta prática proporciona. No segundo capítulo desta dissertação aproximaremos este conceito dos estudos da música vocal brasileira. Como poderia ser realizado um crossover na música brasileira? O termo também poderia ser aplicado na realidade do Brasil? Por meio de quais recursos poderia estabelecer- se um diálogo entre a música e as tecnologias diversas, incluindo intérprete, performance e o público em vários contextos? Onde podemos identificar aspectos textuais, musicais e musicológicos que nos permitem fazer um cruzamento de estilos? De que forma um cantor poderia transitar entre gêneros musicais? Quais aspectos técnicos vocais poderiam ser abordados a fim de permitir ao cantor uma boa execução do crossover? A 57 seguir, passamos a investigar a possibilidade de aproximações entre o crossover e a criação e interpretação musical no Brasil. Poderíamos dizer, em síntese, que compreendemos até o momento, mediante este levantamento bibliográfico, que o estudo do crossover pode abranger diferentes dimensões do conhecimento e que os estudos de sua prática podem estar conectados a várias áreas da pesquisa em música, ligadas à sociologia, a estudos culturais, à semiologia, à linguística ou outras vertentes do conhecimento que antepõem o homem e a arte.

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CAPÍTULO 2

Crossover: um panorama das práticas musicais ao longo da história

Cada vez mais pessoas podem ter uma experiência pessoal de criar coisas novas usando o antigo. E com a remixagem tornando- se uma arte popular, um número crescente de pessoas reconhece que o processo básico de criação é o mesmo que costumava ser centenas de anos atrás. Muitos pesquisadores chamam nossa atenção para a natureza remixada de toda a cultura humana56 (ALPAR, 2010, p.04)

2.1 – Aproximações históricas

Antes de darmos maior enfoque às manifestações musicais na música brasileira, faremos um breve mergulho histórico nas transformações musicais ocidentais mais remotas, a fim de buscar suas aproximações com o atual conceito de música crossover. Como vimos anteriormente, o crossover é considerado um conceito moderno, sobretudo do ponto de vista mercadológico e acadêmico. Sua compreensão para a música instrumental e para as técnicas de canto tem sido abertamente assumida, em especial face às práticas explícitas de cruzamento do repertório operístico com o repertório executado no teatro musical e o pop americano.

Existe um gênero musical moderno chamado crossover clássico que é um híbrido de música clássica e popular. O crossover clássico pode ser definido de várias maneiras quando um músico clássico decide explorar algo que músicos mais populares decidem levar a sério e colaborar com elementos clássicos. O crossover clássico é definido como um termo usado para descrever artistas que adotam fortes influências clássicas em suas músicas, mas, em última análise, eles têm um som acessível e popular ou uma imagem comercializável para alcançar um público mais amplo.”57 (TUTTLE, 2014, p.04)

56 “Ever more people can have a personal experience of creating new things using old. And with remixing becoming a folk-art an increasing number of people recognize that the basic process of creation is the same that it used to be hundreds of years ago. Many researchers call our attention to the remix-like nature of the whole of human culture”. 57 “There is a modern music genre called classical crossover which is a hybrid of both classical and popular music. Classical crossover can be defined in many ways when a classical musician decides to explore on something more popular or popular musicians decide to get serious and collaborate with classical elements. Classical crossover is defined as a term used to describe artists that adopt strong classical influences in their music but ultimately they have an accessible and popular sound or a marketable image to reach out to a wider audience.” 59

O crossover também abarca cruzamentos de estilos característicos da música popular, como R&B, Jazz fusion, Rock and Soul, entre muitos outros contribuindo para novos movimentos na música como a Celtic Music, World Music, New Age, dentre outros, como já citado anteriormente no Capítulo 1. Entretanto, as práticas musicais de cruzamento de linguagens, associações musicais e inserções de estilos que definem o conceito de crossover, nesta dissertação, evidenciam que tais práticas são muito antigas na história da música ocidental, pelo menos no que concerne às informações obtidas em um estudo histórico-musicológico a partir de uma revisão bibliográfica. Mesmo em referência a nomes hoje considerados sagrados no âmbito da música erudita, poderíamos avaliar o caráter abrangente e conectivo de sua atuação criativa.

Beethoven provavelmente era mais conhecido como improvisador até as pessoas começarem a lhe dar atenção por suas sinfonias. Liszt emprestou canções folclóricas húngaras para sua música e Bartok usou a música popular em suas composições. Assim, o termo "cruzamento" não se aplica necessariamente apenas aos gêneros clássicos de cruzamento de hoje, pois ele também pode ser rastreado através da história. Mudanças na cultura e na sociedade, bem como a combinação de dois ou mais diferentes gêneros musicais existentes características da música crossover clássica. (TUTTLE, 2014, p.05).

Identificar influências ou origens de práticas musicais de compositores que são referências na música e que por vezes determinam e caracterizam tanto o gênero popular quanto o erudito é um contraponto essencial para compreendermos suas trajetórias criativas. Compreendendo-se as raízes dos compositores, suas leituras, contextos e processos de criação, pode-se desmistificar um pouco o que de fato representa a música de concerto e entender que a prática de cruzamentos de linguagens consistiu em um processo muito antigo de construção e difusão musical. Ainda que correndo o risco de uma simplificação histórica, muitas vezes perigosa em um trabalho acadêmico desta natureza, buscamos localizar e apontar alguns fatos históricos que nos chamaram a atenção pelo diálogo que representam entre o que chamaríamos “popular” e “erudito” já compreendidos no Capítulo 1, 60 interseções entre passado e presente, lugares e culturas distantes, que conduziram à configuração de gêneros musicais diversos, hoje interpretados com o aval da academia e, particularmente, ao longo de minha carreira profissional, que é considerada por muitos como uma carreira na música “popular”. Para introduzir os apontamentos básicos e significativos na história da música ocidental, iniciaremos este tópico com aquela que foi considerada a primeira ópera - a composição Dafne58 - de Jacopo Peri (1561-1633)59, cuja estreia foi no carnaval, em Florença, Itália, no ano de 1598, no Palazzo Corsi, empregando na orquestração instrumentos musicais tidos como populares à época: um cravo, um alaúde, uma viola da gamba, um arquilaúde (tiorba) e uma flauta doce medieval. A ideia partiu de um grupo de artistas que desejava, durante a manifestação popular do carnaval, representar dramas de origem grega por meio da música. A inédita combinação de linguagens artísticas impressionou aristocratas e intelectuais da época. Aos poucos, passou a ser influenciada pelo interesse do grande público e ganhou dimensões bem mais amplas. Segundo a Encyclopedia Britannica, sob o patrocínio inicial do florentino Cristofano Malvezzi, Peri publicou em 1583 uma obra instrumental e um madrigal. Após os primeiros cargos de organista e cantor, ele foi contratado em 1588 pelo tribunal de Médici e após 1600 também foi associado à corte de Mântua. De acordo com a biografia atual, o compositor Jacopo Peri é mencionado não só como compositor, mas também por sua habilidade como cantor e tiorbista. Temos aqui, identificado neste primeiro exemplo, a popularidade da ópera Dafne não somente pela composição, que teve aceitação pelo público, mas também pelas estratégias do compositor, que tinha um patrocinador e era também cantor e instrumentista. Estes fatores são princípios que marcam o conceito de crossover atualmente como citado anteriormente no Capítulo 1: popularidade, mesclas de linguagens musicais e virtuosismo técnico. Como segundo exemplo na história da música ocidental, na qual podemos evidenciar fusões, mesclas e popularidades, citamos alguns pontos relevantes na era barroca, entre 1600-1750 aproximadamente, quando podemos compreender que a música vocal teve uma grande expansão em igual notoriedade à música

58 Parker, Roger. Carolyn abbate – Uma História da opera. Disponível em: Acesso em: 20 abr. 2019. 59 Biografia disponível em: Acesso em: 20 abr. 2019. 61 instrumental. Nesse período na história da música surgiu o conceito de concerto e nele os virtuosis instrumentistas e cantores ganharam tanto no movimento da música sacra como no âmbito da música secular. A popularidade da figura do performer é bem exemplificada pela figura do lendário cantor castrato Farinelli (1705-1782) e pelo virtuosismo violinístico instituído oficialmente por Pietro Antonio Locatelli (1695-1764), testemunhado em seu livro L’Arte Del Violino. Por tanta popularidade e virtuosismo, os compositores podiam escrever (músicas, cadências) diretamente para um determinado intérprete. Assim, ressaltava a habilidade pessoal de cada um no canto ou no instrumento, o que ampliava a popularidade da obra. No período barroco também ressaltamos o desenvolvimento de uma ornamentação musical bem elaborada e virtuosística, seja no âmbito da música vocal ou na música instrumental, assim como a definição da música tonal evidenciando a revolução estilística e rápida evolução de técnicas. Podemos citar, a princípio, dois estilos musicais distintos que foram então reconhecidos. Um deles, la prima prattica ou estilo antico, foi o estilo universal do século XVI, baseado na adesão aos modelos flamengos60; o outro, chamado seconda prattica, referia-se ao estilo teatral proveniente da Itália. Esses estilos, então considerados ou inseridos no gênero operístico, foram fundamentados em práticas teatrais e musicais populares à época. A organização tonal da música também evoluiu à medida que as escalas modais medievais que serviam como base para a composição musical foram gradualmente substituídas durante o século XVII pelo sistema tonal, dominante na música ocidental até fins do século XIX. A característica principal do sistema tonal era o contraste de tons ou conjuntos de notas e acordes inter-relacionados que derivam de uma escala maior ou menor e que criam a sensação de regiões sonoras com afastamento e aproximações, tensão e relaxamento. Vislumbrando o período como um todo, percebe-se uma era de contrastes vocais e instrumentais com ampla influência da música não sacra na criação musical em geral - que antes tinha no ambiente religioso seu grande espaço de criação e difusão, mas também uma inegável presença de elementos sacros na composição profana. Uma característica

60 “Modelos Flamengos”, em música refere-se à música europeia renascentista, no período que abrangeu, aproximadamente, os anos de 1400 a 1600. 62 desta troca e contraste de influências seria o concertato - combinação, alternância de vozes e instrumentos com o baixo contínuo com acompanhamento de cravo ou alaúde para maior elaboração do que configuraria, mais à frente, uma música harmônica e polifônica.61 Como terceiro exemplo na história da música ocidental, podemos identificar o uso de canções tradicionais em aberturas curtas das óperas que remetiam às fanfarras e a encenações cada vez mais diversificadas, indicando o início de uma reaproximação da música e o teatro, como na era clássica62, havendo uma gradual transição do cenário da música secular para os teatros, com forte apelo popular. Como exemplo de que aderiram a essa tendência, há vertentes como a ópera bufa63 (séc. XVIII) que era delineada por uma história cômica, assim também considerada a “comédia da música”. Neste estilo operístico os personagens eram caricatos, questionavam as adversidades e os problemas sociais; ainda se desenvolveriam obras e o canto técnico e interpretativo para o chamado bel canto, obras estas cujos acompanhamentos e harmonias serviriam às demonstrações das belas vozes evidenciando o seu virtuosismo. Como quarto e último exemplo, ressaltaremos os séculos XVIII e XIX, a construção de grandes teatros de ópera e a consagração de obras importantes nas principais línguas europeias que consolidaram a adesão maciça ao gênero operístico. Com o caminho iniciado no século XVII no movimento belcantista, ícones do gênero viriam a surgir, como, por exemplo, os compositores Gaetano Donizetti (1797-1848), Vicenzo Bellini (1801-1835) e Giacomo Rossini (1792- 1868). No entanto, Giuseppe Verdi (1813-1901) e Giacomo Puccini (1858-1924), anos depois, mantiveram e desenvolveram a ópera, desfrutando de imensa reputação internacional, assim como intérpretes que popularizaram o virtuosismo, como, por exemplo, Maria Malibran (1808-1836), Paganini (1782-1840), Pauline Viardot (1821-1910), Manuel Patricio Rodríguez García (1805-1906) e Franz Liszt (1811-1886).

61 CUSICK, Suzanne. Gênero e música barroca. Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2019. 62 O período clássico em música abarca a segunda metade do século XVIII e o início do século XIX, caracterizada pela claridade, simetria e equilíbrio. Os compositores mais conhecidos deste período são Joseph Haydn (1732-1809), Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e Ludwig van Beethoven (1770-1827). 63 RUGGERO, Vené. The Origin of Opera Buffa. The Musical Quarterly, Volume XXI, Issue 1, 1 Janeiro 1935, Pg. 33–38. Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2019. 63

N~o por acaso a primeira “estrela” operística da indústria fonográfica mundial foi um cantor lírico: o italiano Enrico Caruso (1873-1921)64. Mencionamos aqui um cantor que contribuiu com a popularização da ópera de modo extraordinário, sendo o primeiro intérprete a atrair plateias de todo o mundo. Sua interpretação de Vesti la giubba, da ópera Pagliacci do compositor italiano Ruggero Leoncavalo (1857-1919), foi a primeira gravação na história a vender um milhão de cópias. Como se percebe, o interesse profissional, o enfoque no interesse pelo espetáculo e na popularização das obras foram gradativamente sendo construídos no ambiente musical. Assim também a interseção de gêneros, estilos e outras artes, lembrando que a ópera, além da evolução da própria música, passou agregar o teatro e o balé, contribuindo significativamente para a formação de públicos diversos, das mais variadas classes sociais. Estes atributos citados acima confirmam o que foi visto amplamente no Capítulo 1 desta dissertação, pois na conceituação atual da música crossover verifica-se, como característica principal, a capacidade de abrangência de públicos ou do artista transitar entre os mais diversos públicos, o que atualmente poderíamos considerar como uma potencialidade mercadológica. Clare (1998, p.50) comenta a característica do crossover sob tal perspectiva: “crossover: uma música ou um disco destinado a um mercado que vende mais amplamente, passando para outro.”65 A adesão das grandes plateias passou a ser um divisor de águas no desenvolvimento da ópera. Ao frequentar com mais assiduidade os concertos e também a pagar por isso, o público garantiu mais dividendos e, como consequência, liberdade criativa adicional aos compositores, lucros para os produtores e status para os intérpretes. Assim, interessados em seduzir grandes públicos, por vezes desdenhando os ouvidos da nobreza, alguns compositores deixaram de lado as complexidades harmônicas e investiram em uma linguagem mais universal. Pautados no princípio do conceito da música crossover que atravessa gêneros, somaram estilos e realizaram transição de linguagens mesclando e fundindo ritmos, tendo sido acompanhados por muitos intérpretes e produtores nesses direcionamentos.

64 Biografia disponível em: Acesso em: 20 jul. 2019. 65 “CROSSOVER: A song or a record intended for one market that sells more widely, crossing over to another.” 64

Em resumo, os apontamentos históricos acontecidos na música ocidental, citados e exemplificados nos parágrafos acima, possibilitam-nos uma aproximação aos diversos conceitos de crossover desenvolvidos por Covach (2000), Garofalo (2002), Shuker (2005), Jarvis (2011), Wolf (2011), Fryer (2014) e Álpar (2016). Abaixo segue a tabela 8 delineada especificamente para comparar os conceitos atuais desses autores em relação ao desenvolvimento histórico e musical mencionados acima.

Períodos Históricos Acontecimentos Relação com o conceito de Históricos crossover 1 - Transição da Renascença Dafne – ópera de Jacopo Peri “Crossover clássico é um gênero que para o Barroco. estreando no carnaval na Itália, paira entre música clássica e Jacopo Peri – Conhecido na usando instrumentos populares música popular, e é geralmente história como inventor da ópera. para a época em face de um direcionado a fãs de ambos os tipos compositor patrocinado. de música. Assim, como é usualmente tratado na música crossover, os performers que são classicamente treinados (na maioria das vezes superestrelas de ópera) cantam músicas populares, músicas folclóricas, músicas de shows ou músicas tradicionais. Podendo se referir também a pop stars da música popular cantando repertório clássico. O crossover também pode ser aplicado ao trabalho de artistas, vocais ou instrumentais, que tentam criar uma síntese entre um estilo cl|ssico e um estilo popular.” (WOLFE, 2011, p. 362). Era Barroca (1600 – 1750) 1 – Prima Prattica/Seconda “Crossover pode ser compreendido Prattica como uma mistura de gêneros - 2 – Uso do sistema Tonal Além de descrever a música de um 3 – Início da popularização do gênero distinto que se torna virtuosismo amplamente popular, o termo 4 – Expansão da música vocal e "crossover" tem sido usado para instrumental. descrever músicas que deliberadamente misturam gêneros, seja ou não uma música popular para um público de massa. "Fusão" é um termo mais comum para esse fenômeno.” (ALPÁR, 2016, p.20)

Era do Classicismo 1 – Ópera Bufa. “Crossover ou crossing over, de 2 – Inserção de melodias origem inglesa, é um termo (Séc, XVII – XVIII) tradicionais nas óperas. abrangente usado em diversas 3 – Bel Canto. áreas para designar cruzamento, junções ou misturas entre dois ou mais gêneros e/ou estilos.” (SHUKER, 2005, p.62)

65

Era do Romantismo O performer: “Crossover é um termo aplicado a Maria Malibran (1808 – 1836), obras musicais ou artistas que (Séc, XVIII – XIX) Paganini (1782 – 1840), aparecem em dois ou mais gráficos Pauline Viardot (1821 – 1910) de audiência que acompanham Manuel Patricio Rodríguez García diferentes gostos musicais ou (1805 – 1906) gêneros.” Franz Liszt (1811 – 1886). (ALPAR, 2016, p.10)

Tabela 8 – Tabela delineada pela autora especificamente para comparar os conceitos atuais do crossover em relação ao desenvolvimento histórico e musical mencionados.

2.2 – Música brasileira e sua formação híbrida: uma breve reflexão

Pensar na possibilidade do canto crossover na música brasileira poderia, a princípio, parecer algo distante e desconexo a ponto de suscitar algumas indagações. Como seria possível importar ideias e diretrizes artísticas ou culturais embutidas no conceito do crossover, desenvolvidas nos EUA, frente a uma proposta mercadológica para um país de formação histórica e cultural musical tão diferente como o Brasil? Como um conceito contemporâneo musical seria aplicado à música brasileira e suas raízes históricas? Seria possível localizar um cruzamento de linguagens musicais no Brasil onde pudéssemos ter como resultado uma música híbrida de grande alcance mercadológico? A música crossover poderia abarcar estilos musicais brasileiros? Que qualidades técnicas e musicais um performer poderia desenvolver para a execução de uma música crossover brasileira? Como a música vocal brasileira poderia compor um espetáculo crossover? Buscando elucidar o assunto, na perspectiva de encontrar caminhos para responder tais perguntas que fundamentam as propostas de práticas de performance desta pesquisa, desenvolvemos os tópicos a seguir. Descrevemos a música desenvolvida no Brasil ao longo do tempo como uma música repleta de mesclas e fusões, expressões de um país diversificado, cuja cultura formou-se, principalmente, pela aproximação e fusão de elementos de culturas diversas, basicamente europeia, indígena e africana.

Símbolos e significados estão diretamente relacionados ao cotidiano popular e hábitos corriqueiros como comidas, valores, ditados e causos populares, remédios caseiros, crendices e às interações que os sujeitos estabelecem entre si e com as coisas, que no Brasil foram originados a partir dos diversos povos que participaram na construção do país. Assim, nossa cultura recebeu 66

influências significativas dos índios (que aqui já residiam antes da chegada dos portugueses) e negros trazidos da África para trabalharem como escravos.66 (CAMPOS, SILVA, SILVA, 2015, p.384).

Segundo o antropólogo Darcy Ribeiro (1995) em sua obra “O povo brasileiro: A formaç~o e o sentido do Brasil”:

O Brasil de hoje é um dos países mais miscigenados do mundo graças a sua formação recente e diversa, vários povos contribuíram para a formação do Brasil, a saber, os nativos (os índios), os colonizadores principais (os portugueses), os ‘demais colonizadores’ em forma de imigrantes como (franceses, Holandeses, posteriormente Italianos, Japoneses, alemães entre outros), e na história mais recente com maior intensidade temos coreanos, nigerianos, bolivianos e peruanos, além daqueles aqui não mencionados, e ainda os negros que vieram para o Brasil de forma compulsória a datar do início da colonização até final do século XIX. (RIBEIRO, 1995, p.20)

Podemos evidenciar nas bases da construção da história brasileira a fusão dos povos indígenas com o colonizador europeu já desde o início, no próprio descobrimento. Na carta histórica de Pero Vaz de Caminha é possível salientar alguns pontos deste encontro. Consta na história que na época das grandes navegações, mais precisamente nos séculos XV e XVI, entre os países que eram considerados grandes desbravadores, pois as práticas mercantis ditavam a economia da era, Portugal saía em busca de novas terras motivado pela exploração das índias e no lucro europeu. A esquadra organizada por D. Manuel, cujo líder era Pedro Alvarez Cabral, saiu de Portugal em 09 de março de 1500 e chegou ao nordeste do Brasil no dia 21 de abril do mesmo ano, no atual estado da Bahia, batizando as terras que avistaram de “Terra da Vera Cruz”. Sendo assim, Caminha escreveu ao Rei de Portugal sobre o que havia encontrado:

Senhor: Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar —

66 MATTA DA SILVA, Gilmar. Instrumentos Musicais dos Índios Aikewára. Espaço Ameríndio, , v. 9, n. 3, p. 155-189, jul./dez. 2015. 67

o saiba pior que todos fazer (...) Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram (...)A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metemo-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.67 (CAMINHA, Pero Vaz)

A compositora, pianista, professora e musicóloga brasileira Helza Camêu (1903-1995), no livro Introdução ao Estudo da Música Indígena Brasileira, de 1977, faz referências ao contato do colonizador com os índios. Desde o descobrimento, ainda que os portugueses se espantassem com a maneira como os índios viviam e se comunicavam, as consequências destes contrastes sociais eram já notadas. Diferenças refletiam na música quando os índios cantavam, dançavam e tocavam seus instrumentos.

Da Carta de Pero Vaz de Caminha, informando sobre gente do grande território que se tornaria o Brasil, ficou a certeza de que o som musical era utilizado pelo índio muito antes da descoberta do Continente americano. Logo no primeiro encontro entre a gente de Cabral e o nativo foi constatado pelo cronista que os índios ‘dançaram e bailaram, com os nossos’. (...) Na mesma ocasião notou que ‘além do rio andavam muitos deles dançando e folgando’ e ainda que ‘depois da missa quando nós sentados atendíamos à pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço’. (...) (CAMÊU, 1977, p. 20).

De acordo com Camêu (1977), a música para o índio brasileiro está majoritariamente associada ao universo mágico, ao sublime, e sempre foi utilizada em rituais religiosos. A música para os índios também representa sua ligação com os ancestrais, as práticas xamânicas, com os processos da magia e da cura. A música indígena também está presente em festas e ritos de passagem. Uma parte

67 Carta de Pero Vaz de Caminha. Disponível em: Acesso em: 07 jun. 2019. 68 essencial das práticas musicais são os instrumentos que eles mesmos (os índios) produzem, sendo que cada tribo produz seu próprio instrumento, a ser utilizado de maneira e finalidade diferentes, de acordo com a localidade. Para Camêu (1979), autora também de Instrumentos musicais dos indígenas brasileiros: catálogo da exposição:

Para o índio o instrumento tem uma origem, uma razão, uma finalidade, por isso, sonoro ou musical conta uma lenda, a sua lenda, que lhe determina um princípio, que lhe encarece a importância, dando-lhe especificação, vinculando-o a sua gente.” (CAMÊU,1979, p.09)

Ressaltamos também a importância dos primeiros professores de música no Brasil. Dentre eles podemos mencionar os padres Jesuítas68, responsáveis pela catequese dos indígenas a partir de 1549. No sul do Brasil, esses religiosos construíram as Missões, grande projeto que buscava levar aos índios a cultura branca, ensinando-os a religião católica, técnicas europeias de agricultura e, de modo notável, a música vocal e instrumental, criando, em uma década, orquestras inteiras formadas pelos indígenas e inclusive o trabalho escravo. Os portugueses trouxeram para o Brasil, na primeira metade do século XVI, os escravos de origem africana para os trabalhos na indústria canavieira no nordeste do país. Algumas das maiores contribuições da cultura musical africana para o Brasil foram a diversidade rítmica, a dinâmica das danças e a sonoridade de seus instrumentos musicais. O maracatu, o de roda, o jongo, a roda de capoeira e o lundu tiveram um papel amplo no desenvolvimento da música popular e folclórica brasileira. Se as culturas europeia e africana gradativamente encontraram-se no Brasil colonial, a partir de meados do século XVIII intensificou- se também no país um intercâmbio cultural com outras nações para além da metrópole portuguesa, ampliando a diversificação, como foi o caso da introdução da ópera italiana e francesa, das danças como a zarzuela, o bolero e a habanera de origem espanhola, as valsas e polcas germânicas, que se tornaram vastamente apreciadas. No século XVIII surgiram grandes compositores brasileiros como Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), Gabriel Fernandes da Trindade (1799-1854),

68 O ensino jesuítico no período colonial brasileiro: algumas discussões. Disponível em: Acesso em: 07 jun. 2019. 69 compositor de modinhas e condutor de uma das únicas peças de Orquestra de Câmara e João de Deus de Castro Lobo (1794-1832). No século XIX, o compositor Francisco Manuel da Silva (1795-1865), discípulo e sucessor de mestre de capela de padre José Maurício Garcia, fundou o Conservatório de Música do , sendo regente do Teatro Lírico Fluminense e da Ópera Nacional, notabilizado pela autoria do Hino Nacional Brasileiro. Sua obra refletiu a transição do gosto musical para o Romantismo, quando o interesse dos compositores nacionais se voltou para a ópera. A maior figura dessa época foi Antônio Carlos Gomes (1836-1896), que compôs óperas com temas nacionalistas, mas com uma estética europeia, tais como O Guarani e O Escravo, que conquistaram certo êxito em teatros europeus exigentes, como o La Scala em Milão. No século XX verificou-se um extraordinário crescimento nas atividades musicais no Brasil, tanto no campo erudito como no âmbito popular, impulsionado por uma rápida internacionalização da cultura e pelo desenvolvimento de um contexto interno mais rico e propício ao cultivo das artes. Foi nesse período que a música nacional passou a adquirir autonomia e identidade, voltando-se para a expressão de temáticas brasileiras e de características musicais praticadas no país nos ambientes urbano e rural. Brasílio Itiberê da Cunha (1846-1913), Luciano Gallet (1893-1931) e Alexandre Levy (1864-1892) foram precursores de uma corrente nacionalista, ainda que aos moldes europeus. Os compositores Francisco Braga (1868-1945) e Alberto Nepomuceno (1864-1920) introduziram um sabor brasileiro à música nacional, ainda que elaborada segundo uma linguagem de fundamentação maioritariamente europeia. A produção musical de Villa-Lobos (1887-1959) foi um dos primeiros grandes marcos no brasilianismo musical erudito, tornando-se uma das principais referências na música nacionalista brasileira. Em sua composição podemos identificar não somente a incorporação do folclore brasileiro, como também evidenciamos elementos da música erudita. Villa-Lobos valorizou instrumentos da cultura popular como o violão. Sua obra para violão solo é muito significativa e é um dos mais importantes marcos da história deste instrumento, devido não somente à sua produção prolífica, mas também por ter conduzido o violão a possibilidades expressivas, inexploradas e inesperadas. No entanto, Villa-Lobos também associa a sua obra a uma valorização 70 de instrumentos de orquestra sinfônica na formação interpretativa da seresta, gênero popular no qual o violão tinha destaque. Sendo assim, Villa-Lobos empregou grandes recursos orquestrais em seus poemas sinfônicos, concertos, sinfonias e óperas, criando também musicais para a Broadway, trilhas de cinema, passando também pelos gêneros da música de câmara, vocal e instrumental, mantendo uma inspiração em elementos da música popular e folclórica brasileira. A música de Villa-Lobos foi utilizada posteriormente, na década de 1960, pelo Cinema Novo, de Glauber Rocha, no filme Deus e o diabo na terra do Sol. O próprio Villa já havia composto trilhas musicais para o filme Descobrimento do Brasil, dirigido por Humberto Mauro, em 1936. Outra experiência de Villa-Lobos em trilha para cinema ocorreu no início dos anos de 1950, em Hollywood, mas sem êxito, uma vez que as partituras foram escritas à revelia das cenas filmadas. Isto resultou em não adequação da trilha às cenas e seu afastamento dos estúdios hollywoodianos. Ao final, o filme, que foi protagonizado pela atriz Audrey Hepburn, teve a trilha musical assinada pelo polonês Bronislau Kaper. A música composta por Villa-Lobos transformou-se, então, na suíte sinfônica Floresta do Amazonas. Villa-Lobos foi também expoente da educação musical no Brasil, desempenhando um papel decisivo na vida musical do país ao introduzir o ensino do canto orfeônico em escolas de nível médio naquela época69. Entre as décadas de 20 e 50 do século XX, o samba e a bossa nova conquistam notoriedade internacional e antes deste espaço mercadológico fora do Brasil, tais ritmos cativaram as elites do Rio de Janeiro ao mesmo tempo em que o rock e o jazz norte-americanos foram acolhidos no país. Obras de grande assimilação popular, de compositores de formação erudita, como Waldemar Henrique (1905-1995), Oswaldo de Souza (1904-1995)70, Joubert de Carvalho (1900-1977), Hekel Tavares (1896-1969), Marcelo Tupinambá (1889-1953), dentre outros, foram amplamente interpretadas e difundidas pelo rádio, mídia em expansão, e alcançaram grande público no país.

69 Podemos citar aqui outros compositores brasileiros importantes que transitaram entre a música erudita e a música popular brasileira, em atuação destacada no rádio, uma das mídias mais importantes da época: Radamés Gnattali, Guerra Peixe, Francisco Mignone, Claudio Santoro. 70 CASTRO, John Kennedy Pereira de - Oswaldo de Souza [manuscrito]: uma abordagem semiológico musical de suas canções à performance da canção de câmara brasileira. 2017. Disponível em: Acesso em: 20 jun. 2019. 71

Retomando o conceito moderno do gênero do crossover clássico, associado ou cruzamento da música de concerto com elementos da música pop, rock ou canções tradicionais caracterizadas no séc. XX, também já descritas no Capítulo 1, poderíamos compreender as bases da formação da música brasileira, as quais surgiram de um processo de fusão de gêneros e estilos, confluindo não apenas músicas e elementos das músicas europeia, africana e indígena, mas grupos sociais e interesses diversos, o que resultou em novos gêneros e estilos. Um dos exemplos mais marcantes de tal fusão é a modinha. Domingos Caldas Barbosa, sacerdote, poeta e músico (1739-1800) introduziu a modinha na corte portuguesa e este gênero seguiu sendo tocado tanto pela aristocracia quanto pelo povo. A “Modinha Imperial” foi possivelmente adaptada, requintando suas letras e canções, sendo assim uma ponte entre a cultura oral (popular) e escrita (erudita). A modinha, advinda de cantigas coloniais portuguesas, também teve traços da ópera italiana e até mesmo de sonatas de origem germânica, sendo um dos primeiros gêneros musicais a repercutir nacionalmente no fim do século XVIII. Ficou popular no eixo Rio-São Paulo e na Bahia. Podemos citar compositores como Cândido Inácio da Silva (1800-1838), Lino José Nunes (1789-1847) e Guilherme Pinto da Silveira Teles (1784-1848). Observando não apenas os processos composicionais, como também as práticas de performance e suas “tecnologias” de difus~o, poderíamos classificar o canto lírico como uma prática vocal baseada em métodos desenvolvidos na Europa e difundidos mundialmente, sobretudo associados à interpretação de gêneros eruditos como a ópera. Este tipo de técnica, para além de exigência na interpretação da ópera no Brasil, foi referência importante nos primórdios da chamada “Era do R|dio” brasileira. Conhecidos por seus timbres poderosos, associados a interpretações essencialmente teatrais, cantores brasileiros como Vicente Celestino (1894-1968), Ângela Maria (1929-2018), Orlando Silva (1915-1978), Dalva de Oliveira (1917- 1972), Nelson Gonçalves (1919-1998) e (1931-2016) consagraram- se no país com as interpretações de canções populares, com emprego das chamadas “vozes líricas”, sobretudo quanto aos aspectos impostaç~o vocal, uso do vibrato, controle vocal em fraseados longos e articulação bem cuidada. 72

Lembremo-nos que nos anos 30 do século XX havia necessidade técnica empreendida não apenas para o canto em teatros não amplificados e para a sobreposição de vozes à sonoridade das orquestras, era também requerida para a amplificação destinada ao processo de gravação fonográfica, em uma época em que ainda se aprimoravam os processos tecnológicos de captação e gravação da voz humana em discos, quando era exigida para, impressão do som em meio material, grande intensidade vocal. Um marco importante nos anos 40 do século XX foi o disco Native Brazilian Music, que trazia 17 versões orquestrais para canções de Pixinguinha (1911-1973), Cartola (1908-1980), Luiz Americano (1900-1960), Donga (1890-1974), entre outros. Este projeto resultou em um crossover entre o samba e a música erudita. A gravação deu-se no navio transatlântico S.S. Uruguay – então atracado no Rio de Janeiro – e contou com a participação de mais de 100 músicos da All American Youth Orchestra, sob a regência do norte-americano Leopold Stokowski. Heitor Villa-Lobos esteve presente na formulação da ideia e atuou como uma espécie de consultor, consolidando este acontecimento que, por tudo isto, tornou-se um marcante fato histórico para a música da época. Ainda em referência às mesclas e compositores que contribuíram para uma música brasileira, citamos o compositor Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. De sólida formação erudita, Tom Jobim (1927-1994) chegou a dizer em entrevistas71 que a Bossa Nova teria sido profundamente influenciada por Villa- Lobos; relata que a sua canção Chega de Saudade, em parceria com o poeta Vinícius de Moraes, possuía a sucessão de acordes “mais cl|ssica do mundo.” Elementos da música francesa comumente referida como elementos impressionistas, relacionados a compositores eruditos como Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937), eram também frequentemente citados entre as referências musicais de compositores populares como João Gilberto (1931-2019), Baden Powell (1937-2000) e (1914-2008), inclusive pela associação comum a temas que retratavam a natureza, na França tão europeia, no Brasil, tão tropicais.

71 Antônio Carlos Jobim. A última entrevista. Disponível em: Acesso em: 20 jun. 2019. 73

Os repertórios sinfônicos, originais em sua elaboração melódico-harmônica, também influenciaram artistas em Minas Gerais. O movimento Clube da Esquina72 ganhou notoriedade por utilizar recursos como melodias sofisticadas, sobreposição de camadas musicais harmônicas e uso da voz como instrumento. Assim surgiram trabalhos importantes de artistas nacionalmente e internacionalmente conhecidos como Milton Nascimento (1942), (1948), Lô Borges (1952) e (1951). A presença de elementos líricos e sinfônicos em torno da MPB ampliou-se também graças às contribuições de compositores como Radamés Gnatalli (1906- 1988), Chico Buarque (1944) e Egberto Gismonti (1947). A formação clássica de Gnattali73, considerado o principal arranjador da história da MPB e um dos principais responsáveis pela diluição das barreiras entre a música erudita e popular, exerceu influência evidente em suas mais de seis mil criações à frente da Orquestra da Rádio Nacional e para as TVs Excelsior e Globo. Chico Buarque, com sua Ópera do Malandro, inspirada na Ópera dos Mendigos, de John Gay (1685-1732), e na Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht (1898-1956) e (1900-1950), contrapôs o universo marginal do personagem título e a estética grandiosa das produções do gênero. Egberto Gismonti, por fim, levou esta fusão a outro patamar, rompendo não somente com formatos preestabelecidos de composição, mas criando seus próprios instrumentos para conseguir obter os sons que desejava. Assim também fez o grupo Uakti, de Belo Horizonte, constituído da mescla de artistas oriundos do meio musical clássico e popular.

2.3 – O moderno conceito de crossover: uma abordagem social e a relevância das mídias

Para compreender melhor o conceito moderno de crossover e assim estabelecer uma conexão com o Brasil e com possibilidades de diálogo com a música brasileira, apontamos neste tópico para o ponto histórico no qual tal

72 Nunes, Thaís dos Guimarães Alvim - A sonoridade especifica do . Disponível em: Acesso em: 27 jul. 2019. 73 Biografia disponível em: Acesso em: 27 jul. 2019. 74 conceito teve origem. Observamos que os conceitos de crossover abordados principalmente em Covach (2000), Jarvis (2011), Shuker (2005), dentre outros discutidos no Capítulo 1 deste trabalho, têm bases em fusões e mesclas principalmente abrangendo as raízes históricas da Black music e que, por meio das relações com esta música de forma social e mercadológica, permitiram o desenvolvimento de ritmos e gêneros híbridos como o negro spirituals, o gospel e, logo após, dos subgêneros Pop + Gospel, R&B + HipHop, HipHop + Soul Music, Country + Pop, Blues + Rock, Pop + Jazz.

O fenômeno do pop-crossover black music é, portanto, uma parte distinta e integrante da cena musical popular e a criação de tal música é um processo complicado. Não há, é claro, nenhuma garantia de que a música irá atravessar, mas parece que se elementos específicos forem incluídos e se for promovido de uma maneira específica, o potencial de sucesso da pop-crossover é alto. Observam-se as muitas mudanças significativas no estilo da música negra nos Estados Unidos, sugerindo que essas mudanças - estilos e ritmos hip hop, rock branco, o advento de novas tecnologias e formatos populares de rádio e vídeo - significam um maior acesso ao mainstream por artistas negros.74 (BERRY, 2015, P.33-34)

Segundo Berry (2015), em sua tese desenvolvida na Universidade de Iowa, intitulada Crossing Over Musical Perceptions Within Black Adolescent Culture, o conceito de crossover está fortemente associado a dois fatores importantes: o cruzamento entre a black music executada por artistas não negros e a expansão da indústria fonográfica que contribuiu para o nascimento de outros artistas com estilos e gêneros musicais diferentes. Para Berry (2015), as bases destes princípios estão na própria história norte-americana entre colonizadores e negros. Berry (2015) aponta que, historicamente, o estilo black music sempre foi um elemento significativo da música popular norte-americana. O entretenimento social favorito da sociedade colonial era música e dança. O valor de mercado dos escravos com talento musical aumentou porque os músicos negros geralmente ofereciam música para encontros

74 “pop-crossover black music phenomenon is, therefore, a distinct and integral part of the popular music scene and the creation of such music is a complicated process. There is, of course, no guarantee that music will cross over, but it seems that if specific elements are included and if it is promoted in a specific way the potential for pop- crossover success is high. Perry notes the many significant changes in black music style in the United States suggesting that these changes (hip hop styles and rhythms, white rock, the advent of new technology and popular radio and video formats) ultimately means greater access to the mainstream by black artists.”

75 de dança. Em ocasiões especiais, como casamentos e funerais, às vezes os escravos podiam cantar spirituals com seus mestres. Os meados do século XIX para os negros americanos foram um período importante de transição da escravidão à liberdade. Como o movimento contrário à escravidão tomou conta do país, canções antiescravistas foram cantadas por pessoas negras e brancas. Depois da Guerra Civil, a figura do verdadeiro menestrel negro evoluiu, juntando-se às trupes de homens brancos. Públicos diversificados gostavam das caricaturas negras, canções cômicas e dançarinos estilizados. Um século depois, a importância de estilos de Black music para o mainstream pop americano continuou inabalável. No período da Guerra Fria, o cool jazz tornou-se popular em seus esforços para "branquear" a música ao retirar elementos de suas raízes negras. Isso aconteceu na tentativa de tornar a música mais “legítima” e respeit|vel para o público da classe média branca. Segundo Berry (2015):

A ascensão do crossover também foi atribuída à mudança nos padrões de vida americanos após a Segunda Guerra Mundial. Como um grande número de negros rurais migrou para o Norte para encontrar trabalho, eles se desenvolveram em um mercado urbano concentrado. Gravações de rhythm & blues negras de artistas brancos como Pat Boone, Elvis Presley e The Beatles continuaram a tradição da aculturação musical nos Estados Unidos. Durante o início dos anos 50, a indústria da música começou a reconhecer a tendência de cruzamento e a explorar. Em 1955, havia mais de 400 estações de rádios em todo o país programando quantidades variáveis de música negra e a Billboard tinha acrescentado uma lista de reprodução R & B às suas tabelas de vendas.75 (BERRY, 2015, p.20)

Seria difícil encontrar uma categoria musical ou termo em português que descrevesse trabalhos de mistura de estilos em geral, mas é sabido que na música brasileira ocorreu e ainda ocorre mistura de estilos musicais, sobretudo pela diversidade cultural do país. Acreditamos também que, no Brasil, o mercado fonográfico tenha exercido função importante na formação deste conceito. No

75 “The rise in crossover listening has also been attributed to the change in American living patterns after World War II. As large numbers of rural blacks migrated North to find work, they developed into a concentrated urban market. Covers of black rhythm and blues recordings by white artists like Pat Boone, Elvis Presley, and The Beatles continued the tradition of musical acculturation in the United States. During the early 50’s, the music industry began to recognize the crossover trend and exploit it. By 1955, there were more than 400 radio stations across the country programming variable amounts of black music and Billboard had added an R & B play list to its sales and juke box charts.”

76 entanto é necessário compreender a evolução das mídias e sua contribuição para uma variação na escuta musical. O Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBa, Jeder Janotti Júnior, em seu artigo para Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – UnB – 6 a 9 de setembro de 2006, intitulado “A música popular massiva, o mainstream e o underground : trajetórias e caminhos da música na cultura midiática”, afirma que no Brasil há uma existência de uma cultura pop. O termo pop culture ou até mesmo a pop music surgiu nos Estados Unidos na década de 1950. O estilo musical é marcado pela conservaç~o da estrutura formal da música: “verso – estribilho – verso”, executada de modo sensível e melódico, normalmente assimilado por um grande público. São características dos cantores pop o hábito de fazer cenários de shows extravagantes, muita dança e inúmeros outros artifícios. A história do pop inicia-se um pouco antes, na década de 1930, quando surgiram estilos que influenciariam mais tarde o desenvolvimento do gênero, como o Blues e o Country. De fato, os cantores mais famosos da década de 1950 foram Bing Crosby, Frank Sinatra, Dean Martin e, indiretamente, Elvis Presley. Características da música pop são músicas mescladas com as características de outros gêneros musicais como o clássico, o jazz, o rock etc., o que caracteriza a música crossover. Como isso seria possível no Brasil? Janotti Junior (2006) aponta para uma resposta:

Mas vale ressaltar que a cultura pop também é relacionada, em terras brasileiras, aos fenômenos que colocam em destaque a comunicação gerada pelos conglomerados multimidiáticos no pós- guerra. Assim é possível se referir à Música Popular Brasileira como uma manifestação ligada tanto às composições urbanas que utilizam as raízes musicais brasileiras, como às manifestações musicais de feições estritamente regionais. (JUNIOR, 2006, p.2)

Para que haja uma melhor compreensão da expansão da cultura musical e dos artistas é preciso também compreender o papel dos meios de comunicação e como eles têm afetado o perfil do consumidor da música. E estes meios são responsáveis pela difusão da performance musical, como completa o autor:

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A indústria fonográfica teve grande importância para a constituição dos estilos vocais populares, incentivando alguns tipos de canto enquanto descartava outros. Dessa forma, as transformações estéticas foram estimuladas por sua adaptabilidade aos meios de gravação ou por suas possibilidades mercadológicas. Já no início do século XX, período em que surgiram as primeiras gravações fonográficas, a escolha da canção como principal representante da música comercial partiu de um detalhe técnico, uma vez que os primeiros aparelhos captavam, com certo sucesso, o canto acompanhado, bem mais do que outras formações instrumentais. As transformações nos meios de gravação e reprodução sonora possibilitaram um canto mais coloquial, e o sucesso obtido por intérpretes hábeis em sua comunicação com o público orientou o investimento da indústria em estilos personalizados de canto, tornando a canção popular brasileira o gênero dominante no país durante quase todo o século XX. (JUNIOR, 2006, p.2)

Heloísa Valente (2009), no artigo Cyrano de Bergérac nos tempos de youtube.com - Considerações sobre as linguagens da mídia na aprendizagem da performance musical, associa nuances da performance, mídias na contemporaneidade, o performer e suas relações com o público. Busca também compreender as bases do conceito de performance a partir de proposições de Paul Zumthor76 como uma ação comunicativa complexa que envolve não apenas o ato de emissão da mensagem (no caso da canção, a interpretação), mas o momento da recepção e as circunstâncias segundo as quais a mensagem é transmitida. Para a música das mídias, segundo Valente (2009), empregando o termo que muito estar| presente em seus trabalhos, na “música das mídias”, como melhor compreenderemos à frente, a performance pode desdobrar-se em camadas múltiplas: numa apresentação ao vivo existe uma comunicação mais direta entre artista e plateia que numa transmissão radiofônica ou numa gravação (disco, vídeo, DVD etc.). Como as próprias palavras sugerem, a “performance mediatizada” tecnicamente necessita de aparatos técnicos para a emissão da mensagem, ou ainda, para a emissão e recepção, simultaneamente. Exemplos são as interferências inegáveis do microfone de amplificação, a transmissão radiofônica e demais mídias sonoras, ainda que as características gerais da performance ao vivo sejam preservadas.

76 ZUMTHOR, Paul . Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec; Educ, 1997. 78

Nas performances de crossover clássico tem-se geralmente cantores líricos que fazem uso do microfone, diferentemente do concerto ou recital tradicional. No próprio conceito de classical crossover pode-se observar a importância da imagem e das mídias para a ação técnica e interpretativa do performer. Segundo o site classicalcrossover.co.uk, de divulgação dos artistas crossovers da Grã-Bretanha:

O crossover clássico é um gênero que paira entre a música clássica e a popular. Artistas com formação clássica cantam canções populares, música folclórica, músicas tradicionais. Normalmente, ao contrário de suas contrapartes clássicas, esses artistas precisam atrair um público de massa para sobreviver na indústria da música. Como é o caso de toda a música mainstream, a imagem e o marketing são muito importantes. Alguns artistas podem incluir apenas uma convenção, outros podem precisar adotar vários77.

Segundo Valente (2011), o contexto de valorização dos ideais da contracultura aliados à expansão da indústria fonográfica, que incluía “grande circulação de música estrangeira, provocou o favorecimento de uma mundialização da cultura popular”.

O contexto da valorização dos ideais da contracultura aliados à expansão da indústria fonográfica, que incluía grande circulação de música estrangeira, provocou o favorecimento de uma mundialização na cultura popular. Ao mesmo tempo em que se esvaziava o discurso nacionalista, cooptado pela ditadura, estabeleciam-se novas identidades vinculadas a segmentos da cultura internacional, como o movimento Black Power, intensificando o alcance da música pop no país. (VALENTE, 2011, p.3-4).

Ainda segundo Valente (2009), as camadas de mediatização técnica levam à perda da tatilidade, do peso, do volume, elementos que compõem a “mídia prim|ria”, como denomina o estudioso em semiótica da cultura Vicente Romano (1983, 1984). Nos dizeres de Heloisa Valente (2009), “vale elucidar melhor algumas definições do autor”:

77 “Classical crossover is a genre that hovers between classical and popular music. Classically trained performers singing popular songs, folk music, show tunes. Typically, unlike their classical counterparts, these artists must appeal to a mass audience to survive in the music industry. As is the case with all mainstream music, image and marketing are very important. Some artists may only include one convention, others may need to adopt several.”

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Mídias primárias: constituem o tipo de comunicação que se dá através do próprio corpo humano: voz, gestos (incluindo-se mímica, movimento e postura), vestimenta e adereços, maquiagem, enfim, tudo que produz a autopresença (sic) do ser humano, através de seu corpo. Mídias secundárias: são aquelas que transportam a mensagem ao receptor sem que este necessite de um aparelho para sua decodificação. Como exemplo, encontram-se os diversos signos visuais, tais como a escrita, o desenho e a pintura. Mídias terciárias: transportam os sinais mediante o uso de aparelhos tanto na emissão, quanto na recepção da mensagem. (ROMANO,1984, p. 101-102; 1993, p. 67-68)

Valente (2009) considera, em tal âmbito, que música das mídias, e especificamente a canção na mídia e sua performance, “apoiam-se na mídia primária e terciária – ficando a mídia secundária a cargo ou filiada à cultura escrita (leitura de partituras, no caso)”. Segundo a autora, esta classificação é importante para que se possa distinguir elementos que tenham como referência formas de expressão automatizada e aquelas construídas por uma cultura particular. Assim, a observação da gestualidade composta segundo códigos culturais, isto é, segundo aspectos socioculturais, incluindo aspectos mercadológicos, “é necessária para a compreensão e a (re)composição de determinados modelos de performance”. Para Valente (2011), “A canção das mídias” é um texto audiovisual – ainda que o elemento visual apareça subjacente, oculto no imaginário de cada pessoa, ou mesmo de um grupo social. Nesse ponto, todo o estudo sobre a canção das mídias deve ter a performance como elemento primordial de análise. Dito isto, algo não pode ser negado: as mídias que vêm se popularizando no terceiro milênio exercem função didática. E é aí que reside a singularidade desse meio. Ainda sobre a performance, Valente (2011) afirma:

A performance de gêneros particulares não se limita a algo que se inscreve na música, nos arranjos, nas cifras; tampouco à temática das letras, período histórico ou local de origem; é algo que envolve o “som”, as maneiras de express~o do corpo, as modalidades de enunciação vocal – apenas para citar alguns itens, nem sempre adotados pelos estudos musicológicos. (VALENTE, 2011, p.20)

Segundo tais perspectivas, e considerando tudo o que já foi dito sobre o crossover, tal estilo ou conceito poderia ser naturalmente empregado na literatura 80 e na performance musical contemporânea e, dessa forma, poderia englobar composições surpreendentemente diferentes. Sabemos também que o classical crossover pode corresponder à fusão da música clássica com formas de música popular e então podemos encontrar muitas diferenças estruturais e estilísticas entre as composições, mesmo na obra de um único compositor, de acordo com o contexto e a função pretendida para as peças. Em outras palavras, as estratégias de comunicação dos compositores podem corresponder à funcionalidade proposta de uma composição, o que pode modificar certos parâmetros musicais com base nos quais classificaríamos como música clássica, música de entretenimento ou música popular. A música crossover, e o classical crossover em especial, não seriam assim apenas uma confluência de músicas e músicos diversos, mas configurariam uma rede de elementos musicais e não musicais, de tempos e lugares diversos, textos e contextos múltiplos, pessoas e tecnologias. Para o seu estudo, portanto, acreditamos que instrumentos de acessos eficientes seriam as teorias de rede, dentre as quais apontamos para teorias hipertextuais, como descritas a seguir.

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CAPÍTULO 3

Compositores, obras e intérpretes: a performance crossover no Brasil

3.1 – Hipertexto: uma teoria com base metafórica para pensar o crossover no Brasil

A operação elementar da atividade interpretativa é a associação; dar sentido a um texto é o mesmo que ligá-lo, conectá-lo a outros textos, e portanto, é o mesmo que construir um hipertexto. É sabido que pessoas diferentes irão atribuir sentidos por vezes opostos a uma mensagem idêntica. Isto porque, se por um lado o texto é o mesmo para cada um, por outro o hipertexto pode diferir completamente. O que conta é a rede de relações pela qual a mensagem será capturada, a rede semiótica que o interpretante usará para captá-la. (LÉVY, 1998, p.72)

Para que possamos avançar na compreensão da música crossover e da diversidade de conceitos que permeiam o termo, delineamos aqui a figura 3 que, por meio de um campo de amostragem, resume o que já foi descrito nos Capítulos 1 e 2. Segundo este esquema, podemos compreender que os conceitos conectam-se ao termo crossover e também dialogam entre si de forma independente. O esquema busca elucidar como é possível ter-se liberdade de escolher caminhos variados para a realização da música crossover a partir das sequências associativas possíveis entre estes blocos que se vinculam, mas sem estarem presos em um encadeamento linear, único. A este esquema também poderíamos chamar de hipertexto. Daremos, a seguir, enfoque às características do hipertexto, em analogia às possibilidades conectivas da música crossover.

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Figura 3 – Rede de conexões possíveis do crossover – Fonte: Elaboração da autora.

No prefácio do livro Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia - Vol. 1, os autores Deleuse e Guattari (1995) mostram-nos uma forma de concepção de textualidade a partir de uma analogia com o conceito de rizoma. Pelo entendimento de rizoma desenvolvem-se teorias das mais diversas áreas do saber abraçadas principalmente pela filosofia. E o rizoma, como um elemento da natureza, revela, pela analogia, as principais características de um hipertexto, as quais vamos igualmente propor analogias com a música crossover, como uma ação de performance, como um espetáculo em um contexto. Mas o que vem a ser um rizoma? O psiquiatra Gregório Baremblitt, fundador do Instituo Félix Guattari de Belo Horizonte (1997), no seu livro Introdução à Esquizoanálise (1998), afirma que:

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Rizoma é um vegetal de tipo tubérculo, que cresce subterrâneo, mas muito próximo à superfície, e que se compõe essencialmente como uma raiz horizontal. Esta raiz é estranhíssima porque, quando o exemplar alcança grandes proporções é difícil saber quais são seus limites externos; quer dizer, não há separação entre “uma planta” que constitui essa rede e outro que também a integre, um “tronco” fundador e os ramos e galhos nos quais se estendeu. Entretanto, no seu interior, o complexo, digamos radicular ou reticular, está composto por células que não têm membranas, e que só podem ser supostas como unidades porque têm núcleos ao redor dos quais se distribuem partículas de trocas metabólicas e áreas energéticas. Então, pelo menos no sentido tradicional, o rizoma não tem limites internos que o compartimentalizem. Aquilo que circula nesse interior flui em “toda e qualquer” direç~o, sem obstáculos morfologicamente materiais, nem forças que o impeçam. É difícil imaginar um melhor exemplo de multiplicidade (BAREMBLITT, p.43–44).

Os filósofos Deleuze e Guattari apresentam o conceito de rizoma relacionando-o ao problema dos livros, que perpassa três momentos: 1) o entendimento do livro como um agenciamento (associações de elementos dispersos); 2) a classificação do livro como raiz, que é também o livro-árvore; 3) e o livro rizoma, a grama, no qual a raiz abortou. Neste momento, há dois tipos de livros, o que diz o Uno e o que diz o Múltiplo, o arborescente e o rizomático. Contudo, na apresentação do rizoma para a viabilização do múltiplo, os autores fornecem mais elementos, mais características aproximativas do rizoma, e estas características apresentam-nos mais subsídios para pensar este conceito, que são características do hipertexto. São enumerados seis princípios: 1) o princípio de conexão e de heterogeneidade, 2) o princípio de multiplicidade, 3) princípio de ruptura assignificante, 4) o princípio de interconectividade, 5) o princípio de cartografia e 6) o princípio de decalcomania. Uma reflexão rizomática, com relação à linguística, parte do que é heterogêneo e para suas conexões possíveis. Para se compreender mais sobre as teorias do hipertexto, Lévy (1998)78 discute o hipertexto em suas mais diversas possibilidades, associando hipertexto eletrônico e tecnologia às áreas das ciências humanas como a linguística, a literatura, as artes, a antropologia, a sociologia e outras ciências. O autor

78 As Tecnologias da Inteligência (1998) – Pierre Lévy

84 fundamenta seus princípios conceituais nas ideias precursoras do hipertexto que o aproximam, antes de tudo, dos processos associativos da mente humana. O hipertexto atualmente é um termo utilizado para definir um processo de escrita e leitura não-linear, isto é, que possibilita o acesso ilimitado a outros textos de forma instantânea, seja na forma de blocos de textos, palavras, imagens ou sons. Tem como exemplo os textos da internet. Quando navegamos na Internet, deparamo-nos com vários hiperlinks, que são trechos de textos que ligam uma página a outra, interconectando os diversos conjuntos de informação, no entanto são independentes e dialogam entre si. O conceito de "linkar" ou de "ligar" textos foi criado por Ted Nelson nos anos 1960 e teve como influência o pensador e sociólogo francês Roland Barthes, que concebeu o conceito de "Lexia", que seria a ligação de textos com outros textos. Portanto, o termo hipertexto pode ser compreendido como uma nova concepção de textualidade, pois esta passa a funcionar por associação, o que possibilita a realização de uma trama ou rede. Seria possível aplicar, no entanto, a ideia de hipertexto, que remete ao modo de leitura na Internet, à compreensão da música crossover? Quais seriam os elementos principais nas teorias do hipertexto a dialogarem com as características da música crossover? Compreendemos que a construção do hipertexto é semelhante à função do pensamento – multilinear, de centralidade mutável, capaz de coletar e conectar elementos heterogêneos, mas de algum modo próximos. Também as obras de arte estabelecem links em diversas direções. Na música crossover, por exemplo, há conexões com as referências literárias do compositor e do próprio poeta, com detalhes da interpretação do cantor ou instrumentista multiestilístico, com as características de públicos ecléticos. Podemos ainda pensar em cada canção como uma rede de conexões na qual a música faz links com o texto, o intérprete o traduz fazendo conexões artísticas, socioculturais e mercadológicas e alcançando maior diversidade e abrangência de público. Um bom exemplo da música crossover, compreendida como um hipertexto, é a composição Gabriel’s Oboé, de Ennio Morricone, trilha sonora do filme The Mission (1986). Esta música foi gravada posteriormente pela cantora Sarah Brightman em 1998 com a letra em italiano de Chiara Ferraù intitulada Nella Fantasia79. Uma música a princípio instrumental que posteriormente foi adaptada

79 https://www.youtube.com/watch?v=8kmPHRrHHtg 85 para uma canção, interpretada por uma cantora crossover evidenciando a técnica de base lírica em um grande show sonorizado, o que imortalizou a canção. Depois desta performance, muitos cantores que executam o classical crossover vieram a gravá-la, tais como Josh Groban, Katherine Jenkins, Sissel, Il Divo, The Canadian Tenors, Celtic Woman, Andrea Bocelli, entre outros. Assim, a música de Ennio Morricone que dialoga com as trilhas de cinema, que permite que sua música adquira uma letra poética, cantada por um soprano, abrangendo públicos diferentes, fornece-nos uma visão da hipertextualidade, da rede configurada, no sentido das suas múltiplas conexões que se realizam, pela interação de elementos de naturezas diferentes, intrínsecos e extrínsecos à canção. Os caminhos nessa rede foram percorridos com precisão pelo intérprete, que teve como tarefa uma operação tradutória múltipla e heterogênea. Elaboramos a tabela 10 abaixo para apresentar as seis características do hipertexto, segundo Deleuze e Guattari (1995), elucidando uma relação analógica e metafórica com elementos da música crossover, já discutidos no Capítulo 1.

Características do hipertexto Segundo Exemplos na Música crossover Deleuze e Guattari (1995)

Conexão e heterogeneidade: Hibridismos Refere-se à diversidade de linguagens verbais e Na execução do crossover, técnicas diferentes se não-verbais, códigos linguísticos, gestuais e combinam. Na performance, o performer é icônicos diversos, chamados pelos autores de multiestilístico valendo-se de variadas nuances “cadeias semióticas”, que reenviam a leitura a técnicas. O crossover é resultado de uma mescla, sistemas externos, às artes, às ciências etc. e assim uma conexão entre músicas heterogêneas. se combinam também ao princípio de pluralidade; Espetáculo crossover Em um espetáculo crossover, elementos de natureza diversa se conectam para produzir sentido: o cantor se veste apropriadamente, usa luzes, microfone e canta uma obra lírica, por exemplo, com um arranjo pop. São conexões de ordens diversas: a voz humana, a tecnologia dos microfones, os cenários, ao figurinos, as mídias de difusão, as pessoas com interesses diversos que compõem o público. Configura-se a rede com elementos de natureza variada. (JARVIS, 2011, p.20)

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Multiplicidade: Construção e fruição de Espetáculo crossover: O todo é uma pluralidade que não se reduz à Há vários links para que se chegue a um resultado unidade, ou seja, há sempre partes que sobram em de uma performance crossover, e esta provém de relação ao todo. A multiplicidade se refere outros links anteriores e permitirá novas e também à instância coletiva de subjetividades que diversas conexões, relacionadas aos intérpretes e se instaura em um texto e extravasa o públicos, em suas subjetividades. subjetivismo do autor; (CLARE, 1988, p.50)

Ruptura Assignificante: Relação música / Intérpretes Um texto pode ser quebrado em qualquer ponto e Há, no crossover músicas instrumentais que se poderá reconstituir-se de qualquer outro ponto, tornaram canç~o. Exemplos: Grabriel’s Oboé / segundo a lógica da antilinearidade e da Nella Fantasia. No Brasil há uma versão para o autonomia das partes em relação ao todo; arisoso – Sinfonia da Cantata 156 de Bach / Céu de Santo Amaro, letra do compositor Flávio Venturini. Numa performance dessas obras, o público pode ser remetido a imagens distantes do próprio momento da performance, como para a obra de Bach, para uma novela em que a música tocou. Há, portanto, uma descentralização do pensamento, que pode conduzir a diferentes significações. Por outro lado, num espetáculo em que tais obras sejam interpretadas, as conexões podem ocorrer a qualquer tempo e a partir de elementos quaisquer, dependendo da outra ponta à qual será feita a ligação. Não importa para a rede, de maneira geral, qual será a conexão feita. Ela irá ocorrer de algum modo, entre alguns dos “nós” da rede hipertextual, configurando sentido. Em diferentes direções, semelhantes ou não, haverá conexões/criação de significado. (ALPAR, 2016, p.20)

Interconectividade: Diversidade rítmica / Ritmos híbridos; Qualquer ponto pode ser conectado a outro, de No crossover nascem novos ritmos como o forma que o sentido não seja determinado ou classical crossover, Crossover Prog, Pop opera, hierarquizado por um centro regulador; entre outros, por aproximações diversas, entre intérpretes, aptidões, gostos, necessidades. As músicas e pessoas se conectam, criam novas versões a partir de outras, tudo isso por proximidade, e a rede se expande. A proximidade é, de fato, inevitável, e deriva da contingência social, da necessidade, da afinidade, da sincronia (mesmo tempo), da relação pessoal, da contextualização. (WOLFE, 2011, p.362)

Cartografia: Partitura / Arranjos Um texto é um conjunto de linhas a ser percorrido Para o performer a partitura contém signos cujos e não um porto de ancoragem fixa. Este princípio os significados se completam no momento da inclui ainda a ideia da aparência efêmera dessas performance. Em um arranjo crossover deve-se linhas, suscetíveis a diferentes arranjos cada vez levar em consideração não só o texto, a que seus trajetos cartografados são percorridos; versatilidade do intérprete como a canção original, mas o resultado da combinação musical dos cruzamentos de linguagens. (ALPAR, 2016, p.10)

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Decalcomania: Globalização / Necessidade mercadológica A obra não é uma imagem que copia ou imita o O crossover visa uma proximidade e uma mundo, mas um mapa de linhas que remetem a abrangência de público. Não há espaço universal ele. homogêneo onde haja forças de ligação e separação. O espetáculo crossover utiliza-se da mescla das músicas tradicionais assim como de canções de concerto utilizam a ideia da universalidade. (SHUKER, 2005, p.62)

Tabela10: características do hipertexto segundo Deleuze e Guattari em analogia a exemplos de música ou características do crossover . Tabela elaborada pela autora.

3.2 – Relações entre mídias, hipertexto e a música crossover

Guiar-se por uma rede hipertextual na música crossover envolve conectar vários elementos das mais diversas ordens, incluindo os que estão relacionados à hipermídia. Para o hipertexto temos um sistema que nos permite conexões diversas, inclusive o desdobramento de seus “nós” de modo a formar uma estrutura não linear, ou rede. O hipertexto permite-nos organizar documentos em trechos e combiná-los conforme as necessidades de compreensão e organização. Na hipermídia podemos ter acesso a várias mídias em um mesmo lugar. Isto se aplica à televisão, por exemplo. Pela televis~o “inteligente” é ´possível acessar vários aplicativos com funcionalidades diferentes, como o cinema (aplicativos como Netflix), as óperas online, YouTube (plataforma de acesso e publicações em vídeos) e HDs com informações pessoais. É exemplo também de hipermídia a interatividade da TV digital, os leitores de livros eletrônicos (e-readers como o Amazon Kindle) e os tablets e smartphones. Para a multimídia interativa, temos as várias possibilidades de mídias nas quais existe uma interação e integração entre o usuário de informação com o gerador de conteúdo. Na figura 4, a seguir, são mostradas as esferas deste alcance:

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FIGURA 4: possíveis esferas das mídias, figura elaborada pela autora.

Outro exemplo seria como poderíamos delinear uma metáfora e uma analogia da música crossover em relação a esferas do hipertexto, hipermídia, multimídia interativa. Para o hipertexto e seus nós, na primeira esfera poderíamos citar alguns elementos básicos onde o performer, o cantor multiestilístico, poderia desenvolver conhecimento para a execução da performance crossover, a saber 1) estudo de técnicas vocais, 2) pesquisa de repertório, 3) a partitura musical 4) o texto e suas variações, 5) A interpretação.

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Figura 5- Analogias das esferas do hipertexto com a música crossover. Figura elaborada pela autora.

Em relação à hipermídia é que se caracteriza a influência e a abrangência da música crossover. Estas mídias são as formas de acesso que permitem com que o ouvinte conheça e se aproxime da música; também aproximam o artista do seu público consumidor. A música crossover é uma música híbrida, que transita por estilos musicais diferentes, sendo assim, o cantor crossover deve ser um artista que deve ser capaz de se comunicar com diversos públicos e transitar entre gêneros musicais diferentes. Como discutidos no Capítulo 1 desta dissertação, segundo os autores Covach (2000), Garofalo (2002), Shuker (2005), Jarvis (2011), Wolf (2011), Fryer (2014) e Alpar (2016), pode-se compreender que a música crossover tem cunho mercadológico e necessita da mídia para a venda de espetáculos e de seus artistas. Atualmente, o acesso do público à hipermídia permite com que o artista tenha a abrangência de público necessária em virtude da veiculação das músicas em múltiplas plataformas digitais. A música, o espetáculo e o artista estão cada vez mais próximos do público. No exemplo da figura de n° 6 que está representado abaixo, delineamos exemplos da hipermídia para a música crossover. 90

Figura 6- Possibilidades de mídias que auxiliam na difusão da música atualmente. Figura elaborada pela autora.

Em relação à multimídia interativa, podemos relacioná-la à conexão entre o performer e o público. Atualmente, o público necessita ter uma aproximação maior ao conteúdo que ele tem consumido. A comunicação entre o artista e seu público é quase instantânea mediante os concertos interativos, web séries, transmissão ao vivo, redes sociais. A mídia interativa também é uma forma de popularizar a música e o artista. Hoje, orquestras no mundo todo têm aderido às mídias sociais. Por meio de de sites próprios, de “Stories” em mídias sociais, cativaram o público em decorrência da maior interatividade e, por isso, têm vendido mais ingressos para os concertos. Segue abaixo a figura 7 elaborada a fim de exemplificar o alcance da mídia interativa como um dos pontos principais para a venda e a popularização do artista crossover. 91

Figura 7 – As mídias e a popularização da música crossover. Figura elaborada pela autora.

No entanto, o termo “Multimídia interativa” pode abranger ainda outros significados, como, por exemplo, junção, agrupamento de elementos das diversas mídias para a melhor interação e integração de quem consome a informação. As junções destes elementos também contribuem para uma melhor comunicabilidade de um conteúdo ou ideia. Um exemplo desta integração é quando agrupamos em um mesmo concerto musical informações como projeções, cinema, fotografias, poesias, enfim, elementos de mídias diversas que interagem no espetáculo. Para a maior desenvoltura nesta rede atribui-se ao performer a sua decodificação e desenvoltura. De acordo com Luciana Monteiro de Castro Silva Dutra (2006), em sua tese Traduções da Lírica de Manuel Bandeira na Canção de Câmara de Helza Camêu:

O performer que reconhece os meandros da rede hipertextual da obra que irá interpretar ou que ao menos saiba guiar-se através do mapa constituído, pode intervir em seu contexto imediato, viabilizando conexões entre o contexto e os elementos acessados na interpretação, criando ou modificando as conexões com o receptor. Nesses modos de intervenção estão incluídas as performances de caráter didático ou interativo, onde há uma participação ativa da audiência ou sua preparação prévia ou simultânea à performance. (DUTRA, 2009, p.26)

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O espetáculo da música crossover pode ser interativo, do ponto de vista do uso das diversas mídias, tendo também características próprias para ativar o diálogo entre o ouvinte e a música, quando o performer exerce um papel dialógico e polifônico, no sentido que apontou o filósofo e linguista russo Michael Bakhtin.

3.3 – Música crossover X performance da música brasileira

“Um elemento de renovação só obtém êxito, só renova efetivamente, se ao mesmo tempo se constitui como um elemento de preservação. A observação atenta das mais graves rupturas, em qualquer campo da atuação humana, revela que o novo só se instaura a partir de elementos já dados e que a tradição é tradição justamente porque foi se renovando e, por isso, sobreviveu às interpretações dos homens e às intempéries do passar do tempo.” (BAKHTIN, 2002, p.36)

Um dos principais intuitos deste trabalho é – além do reconhecimento das possibilidades de realização de uma música vocal sob a perspectiva crossover – avaliar um modo de realização musical que se apresenta regularmente no universo da música clássica e que embasa nosso estudo, formação acadêmica e profissional. Falemos um pouco sobre a música de câmara. O termo “Música de C}mara” tem passado por diversas transformações ao longo da história, em referência a um fazer musical do final do período medieval para o período renascentista, onde encontros musicais eram reservados. A música de câmara, em uma definição rápida e contemporânea, é uma reunião instrumental e/ou vocal de pequeno agrupamento de músicos que realiza música escrita. A palavra camara, no idioma italiano, significa “quarto”, ou seja, esta música privilegia a escuta do público possibilitando um momento de apreciação musical, um contato cada vez mais intimista com a música. Para o músico, a prática da música de câmara proporciona diversas possibilidades de formações instrumentais e vocais assim como a possibilidade do aprimoramento e o refinamento musical. No Brasil, alguns compositores dedicaram-se, como também escreveram, a esta pr|tica em conjunto. No entanto, o termo “Música de C}mara Brasileira” é muito bem instituído assim como o termo “Canç~o de C}mara Brasileira” e outros termos advindos desta prática. Mas como adequaríamos as práticas crossovers na 93 música brasileira? Como descreveríamos o termo “Música Crossover Brasileira”? Ou poderíamos pensar na música crossover somente no âmbito do espetáculo para o alcance de novos públicos ou poderíamos adequar este termo à canção, ou seja, a um ambiente camerístico? A música brasileira tem uma característica que é aplicada na definição da palavra crossover, já evidenciada no Capítulo 1, que é um cruzamento, uma “mistura”, uma mescla, uma forma “híbrida”. O significado desta palavra em música tornou-se um conceito e a partir de suas características formaram-se novos estilos e gêneros musicais no século XX. A música brasileira também pode ser considerada hipertextual sendo um resultado de conexões entre a época, a composição, o compositor, o intérprete e tantas outras mais, assim como na música crossover.

Figura 8 - Algumas conexões hipertextuais na canção brasileira. Figura elaborada pela autora.

No entanto, a transformação da canção brasileira não se deve somente ao compositor e à sua composição. A música brasileira também se transformou por meio de seus intérpretes, suas influências e a divulgação de suas músicas nas mídias. Atualmente, as mídias estão cada vez mais globalizadas (VALENTE, 2003)80,

80 VALENTE, Heloísa de Araújo Duarte – As Vozes da Canção da Mídia – 2003, Ed. Fapespe 94 sempre influenciando o alcance de públicos cada vez mais diversificados. Neste aspecto há uma relação direta no conceito da música crossover81:

“A música crossover descreve música que foi escrita para um gênero e apresentada em outro. O propósito da música crossover é atrair um público maior do que a versão original. A música crossover também remove os limites que as classificações de gêneros na música implicam em artistas.” (WHITING, 2008, p.69)

Em nossa tradição musical há funções distintas à interpretação e à composição, fazendo com que compositor e intérprete não necessariamente sejam a mesma pessoa e, assim, ocupem cada um uma parte do processo de preparação de uma obra. A relação intérprete/compositor deve ser coerente para se manter a comunicação no processo de realização da performance. A autora Catarina Leite Domenici, no artigo A Voz do Performer na Música e na pesquisa82, afirma que a prática da performance é inclusiva e integradora.

“Segundo a ética modernista da performance, o performer é um meio transparente para a voz do compositor e a voz do compositor é o texto. Contudo, considerar o texto como a voz do compositor significa retirar dessa voz o seu elemento acústico, a sua entonação e tudo o que caracteriza a voz particular de um indivíduo localizado em um ponto único da dimensão espaço-temporal; é reduzir a voz à estrutura da música. Mas se a teorização da performance desconsidera a importância do elemento acústico e expressivo, na prática é impossível desconsiderá-los.” (DOMENICI, 2012, p.169)

Quando construímos uma interpretação, não podemos desconsiderar o intérprete mediante o entendimento e percepção do texto do compositor. O intérprete traz consigo sua oralidade, aspectos extramusicais e a característica de sua voz na interpretação. No entanto, o intérprete pode transformar a obra. Sobre este aspecto, Domenici (2012) afirma:

Nesse contexto, falar sobre a voz do performer é resgatar a oralidade e o aspecto acústico da música, e ao mesmo tempo afirmar o conhecimento daquele que pesquisa a sua prática artística. O que seria da notação musical e da palavra não fosse a

81 The Characteristics Of Classical Crossover Music Media Essay. Disponível em: Acesso em: 23 jul. 2019. 82 Disponível em: Acesso em: 20 jul, 2019. 95

voz que lhes anima e confere sentido? A voz como metáfora para o ser, se ancora na integridade de um corpo carregado com sua afetividade, os sotaques por onde passou, seus juízos de valor, enfim, a sua história. A voz é a evidência de uma existência inalienável no mundo.” (DOMENICI, 2012, p.170)

3.4 - A canção Melodia sentimental de Villa-Lobos: um canto crossover na música de câmara brasileira

O nacionalismo na música, caracterizado por uma forte ênfase nos elementos nacionais inerentes à música de uma região, mostrou-se presente no Brasil no fim do século XIX e atingiu seu ápice durante o período de 1920 e 1940 quando a ditadura de Getúlio Vargas (1930-1945) encorajou e amparou manifestações artísticas de patriotismo e de apreço a uma identidade brasileira. Heitor Villa-Lobos (1887-1959), um dos mais influentes e prolíficos compositores brasileiros, com seu reconhecimento internacional já consolidado durante o regime de Vargas, tornou-se o mais vigoroso incentivador do nacionalismo musical no Brasil. Seu estilo altamente individual sintetizou diversas influências musicais brasileiras com a tradição da música erudita europeia, criando uma linguagem musical complexa e única. Compositores da música erudita responderam à dinâmica e variada cultura da música popular que varreu o Brasil no fim do século XIX, incorporando essas tendências musicais nos seus trabalhos, não somente Villa-Lobos, como também Lorenzo Fernandez. Foram influenciados por Ernesto Nazareth – considerado uma das figuras mais importantes da primeira geração de compositores nacionalistas no Brasil – que executava o maxixe, um subgênero do choro. Ernesto Nazareth teve um impacto significativo na popularização dos estilos musicais brasileiros e influenciou grandemente Villa-Lobos. Para Villa-Lobos,

Nazareth era “a verdadeira encarnaç~o da alma brasileira.”83 O Choro era um gênero de música instrumental urbano que já estava popularizado no Brasil nos idos de 1870. Nas décadas de 1920 e 1930, a popularidade do choro já havia alcançado novos patamares na improvisação virtuosística de variações e no contraponto

83 - Béhague, Gerard, Heitor Villa-Lobos: The Search for Brazil's Musical Soul, University of Texas at Austin: Institut of Latin American Studies, 1994. 96 imaginativo dos executantes. Entre 1899 e 1919, Villa-Lobos tocou em grupos de choro na vida noturna do Rio de Janeiro.84 A natureza improvisativa da invenção melódica é claramente relacionada ao choro. Villa-Lobos usou elementos do choro e da música folclórica, recombinando-os de uma maneira não tradicional, frequentemente justapondo combinações de ritmo e melodia e dispondo-as em sua obra, originando novos timbres e ritmos. As tendências melódicas das canções populares e tradicionais do começo do século XIX podem ser encontradas nas obras de muitos compositores brasileiros do século XX. Como nas demais músicas folclóricas ao redor do mundo, as canções infantis, as danças rurais e outras melodias populares são parte de uma tradição oral que perpassa a cultura. Villa-Lobos soube incorporar todas estas influências da cultura oral em sua obra, além das fortes influências da música de concerto europeia de compositores como Debussy e Stravinsky. Villa-Lobos, autodidata, ao mesmo tempo vivenciou o universo da música popular ao tocar não apenas nas rodas de choro, mas também com seresteiros. Esta mescla de influências e práticas musicais fez parte do processo de sua aprendizagem, está incorporada em seus processos de composição, o que deu origem a uma música cheia de informações e combinações. Segundo Passos (1998):

Villa-Lobos foi um compositor que também exerceu a prática da composição popular. Talvez por isso sua música pareça buscar superar uma dicotomia, criando uma oscilação entre o erudito e o popular, o que faz confundir esse limite (PASSOS, 1988, p.7).

Villa-Lobos escreveu um musical para a Broadway intitulado “Magdalena”, estreando em setembro de 1948; escreveu também música para o cinema, tendo sido um dos primeiros compositores brasileiros a compor trilhas especialmente para essa arte “industrial” do século XX. A primeira delas, direcionada ao filme O Descobrimento do Brasil (1937) de Humberto Mauro, resultou na composição de quatro suítes orquestrais, que foram gravadas pelo maestro Roberto Duarte. A segunda dessas trilhas sonoras foi feita para o filme A Flor que Não Morreu ("Green Mansions", 1959), da MGM, de Mel Ferrer, já citado anteriormente. O compositor Bronislau Kaper, que trabalhou juntamente com Villa-Lobos no

84 Tarasti, Eero. Heitor Villa-Lobos: The Life and Works, 1887-1959, Mcfarland & Company, 1995, p.38. 97 projeto, alterou significativamente a partitura, dividindo os créditos da música com o brasileiro. Descontente com o resultado musical no filme, Villa-Lobos inseriu essa canção, inicialmente parte da referida trilha, em uma suíte sinfônica, A Floresta do Amazonas, para soprano, coro masculino e orquestra, restaurando suas intenções originais. Dividida em 20 movimentos, a obra traduz em linguagem musical grandiosa, os sons da floresta brasileira. Como registros fonográficos de cantores líricos, tomamos para escuta a gravação da obra pela reconhecida soprano norte-americana Renée Fleming, sob a batuta de Alfred Heller, pela gravadora Consonance, em 1989, e a gravação histórica com a soprano brasileira Bidu Sayão, de 1959, sob a regência do próprio Villa-Lobos, pela gravadora EMI, estreada no Carneghie Hall, em Nova York, EUA. A figura seguinte mostra a estruturação da suíte Sinfônica, composta originalmente:

Suite I – Na Floresta Improviso Suite II –

• Abertura • Abertura /Tema Além da Floresta • Cair da Tarde • Improviso I • Prelúdio / Episódio da Lua • Exploração • Improviso II • Piano & Orquestra • Antecipando Jobim • Volta ao Tema • Tango • Música de Rima • Final • Adagio a La Ravel • Dança I • Intermezzo (Igarapés) • Pássaros • Cair da Tarde Tempestade • Canção de Amor • Final • Veleiros • Dança II • Melodia Sentimental Três movimentos da suíte sinfônica A Floresta do Amazonas, de Heitor Villa-Lobos, para orquestra, coro masculino e solos de soprano.

As quatro canções presentes na estrutura formal de A Floresta do Amazonas foram transcritas pelo compositor para acompanhamento pelo piano, assemelhando-se a uma redução da parte orquestral, mas com características de canção de câmara. As canções, sobre poemas de Dora Vasconcellos, são: Veleiros, Cair da tarde, Canção de amor e Melodia sentimental. Trata-se de uma partitura conhecida no ambiente erudito, acadêmico e artístico, sendo obras clássicas e muito difundidas em repertórios de cantoras eruditas brasileiras e internacionais. A canção Melodia sentimental é considerada uma obra clássica e representativa do repertório de câmara brasileira, mas foi gravada por diversos intérpretes da música popular, como, por exemplo, Maria Bethânia, Djavan, Zizi 98

Possi, Mônica Salmaso, que promoveram versões adaptadas da obra, como mostra a tabela 13 que exemplifica a movência da obra, ou seja, seu trânsito entre diferentes contextos musicais, mesmo no variado ambiente criativo da música popular brasileira. Observa-se que na interpretação da canção, de modo geral, quando se muda a colocação vocal ou impostação vocal, muda-se o caráter estilístico e expressivo. Assim, a Melodia sentimental assume a cada gravação um caráter diverso, consoante a ser cantada por um soprano como Bidu Sayão ou interpretado pelas vozes de Maria Bethânia ou Djavan. Propusemo-nos a analisar, por meio de uma escuta simples, com foco apenas em alguns parâmetros comparativos, gravações fonográficas de onze diferentes cantores intérpretes em Melodia Sentimental, vinculados à música de concerto e a diferentes nichos da música popular, a saber: Bidu Sayão, Maria Lúcia Godoy, Elizeth Cardoso, Mônica Salmaso, Zizi Possi, Olivia Byington, João Bosco, , Maria Bethânia e Djavan. Vejamos as indicações de gravações na tabela 11 abaixo:

Intér- Tonali- Nome do Ano Instrumen- Referência Fonográfica prete dade álbum gra- tação vação Bidu Lá menor A Floresta 1959 Orquestra Gravadora EMI Sayão (Tom do Sinfônica de https://www.youtube.com/watch?v original) Amazonas Nova York (Forest of Arranjo e =E9HdClmk9ow the orquestração

Amazon) original de Villa-Lobos Elizeth Lá menor 1969 Arranjos e Gravadora: Copacabana Cardoso (A cantora Regência de https://www.youtube.com/watch?v interpreta “Maestro =m-FIBRopDWo a canção A Gaya”. LP com oitava a Enluarada Participações baixo) Elizeth Especiais de Clementina de Jesus, Cartola, Pixinguinha. 1987 Canto e piano, Gravadora – Music Olivia Lá menor com Maria https://www.youtube.com/watch?v Byington Teresa Melodia Madeira. =jWuHcBVFEBI Sentimental Arranjo para piano de Villa- Lobos Maria Lá menor 1988 Orquestra Gravadora: Karmim Produções Lúcia Sinfônica do R. https://www.youtube.com/watch?v Godoy Janeiro – Floresta do Regente: =y5b5iTIrRV0&t=764s Amazonas Henrique Morelenbaum. Arranjo e orquestração 99

original de Villa-Lobos

Zizi Possi Ré menor Gravadora: Polygram Sintetizador, 1996 baixo, https://www.youtube.com/watch?v violoncello, Mais =AQhMRlVcxDw violão, piano/ Simples Arranjo de Benjamin Taubkin João Lá menor 1995 Gravadora Violão e voz – Bosco Dá Licença Arranjos de https://www.youtube.com/watch?v Meu Senhor João Bosco =SEDKUa4WSL0 Ney Lá menor 1997 Gravadora Polygram Matogros Piano e canto O Cair da https://www.youtube.com/watch?v so arranjos de Tarde Leandro Braga =LAEI3W2qKAw

Maria Mi menor 2003 Gravadora: Sony Music/ Biscoito Bethânia Violão e voz Fino Brasileirinh (Arranjador o https://www.youtube.com/watch?v não citado) =cW1rB7qW5Sk Djavan Ré menor Para Trilha 2003 Gravadora: Luanda Records sonora do https://www.youtube.com/watch?v filme “Deus Piano e Voz é =EXWsHhmtb28 (Arranjador Brasileiro”, não citado) direção de Cacá Diegues. Mônica Ré menor 2011 Piano e Gravadora Biscoito Fino Salmaso Saxofone https://www.youtube.com/watch?v Alma Lírica soprano. Brasileira Arranjo de =_gMrLEBXCnk Gilson

Peranzzetta

Orquestra-ção Renee Lá menor 2011 de Heitor Villa- Gravadora Naxos Fleming Lobos e https://www.youtube.com/watch?v The Forest regência de of the Alfred Heller - =kH-vVjUo0Mg Amazon Moscow Radio Symphony Orchestra Tabela 11 – Gravações de Melodia Sentimental. Tabela elaborada pela autora.

Uma análise comparativa foi realizada a partir da escuta de trechos, com aferição de características tímbricas decorrentes das diferentes colocações e gestos vocais dos intérpretes, de diferenças entre pronúncia e articulação do Português Brasileiro cantado, de tipos de interferências no acompanhamento e ainda do emprego de outros recursos técnicos ocasionais. Foram também observadas variações de timbre decorrentes da transposição tonal e da criação de 100 arranjos musicais, além da utilização de processos tecnológicos específicos na performance gravada. A partir da observação destas características, buscamos localizar elementos técnico-interpretativos passíveis de comporem um canto “cruzado” a serem integrados em nossa própria interpretaç~o, o que classificaríamos como um canto crossover, mantida em princípio uma interpretação fundamentada em técnicas do canto lírico, ou seja, um canto classical crossover, sobretudo no caráter da impostação vocal na interpretação da melodia, mas buscando elementos capazes de colocarem em diálogo o contexto lírico e o da música popular veiculada por mídias contemporâneas. Antes de uma avaliação da obra no contexto contemporâneo, contudo, lançamos olhares sobre a obra em sua imanência, ou seja, sobre suas características intrínsecas, relacionada ao conteúdo da partitura original para canto e piano, na qual nos baseamos em nossas leituras. Para realização de uma performance crossover com emprego do classical crossover da obra Melodia sentimental, optamos pela realização de um arranjo próprio, nele incluindo e cruzando elementos característicos musicais e técnicos observadas nas pr|ticas recorrentes apresentadas nos contextos “erudito” e “popular” observados na escuta das gravações fonogr|ficas, recursos esses aplicados à voz e ao acompanhamento instrumental. O objetivo desta performance e de empreitadas semelhantes é aproximar o intérprete de ouvintes pouco habituados à música de conceito e vice-versa, promovendo diálogos entre os elementos distintos das linguagens da música de concerto e os da música popular, ainda que ambas reflitam, cada um a seu modo, traços culturais e da tradição musical brasileira. Reitera-se aqui que nossa proposta de performance pressupõe o emprego da técnica do canto lírico, como cuidados com a impostação vocal, que pode ser controlada para mais ou para menos, propondo ainda o uso do vibrato, do legato e da extensão da voz com mesmos recursos técnico-interpretativos. Fazem-se aqui referências estéticas básicas do canto lírico tal como preconizadas e praticadas na maioria das escolas de música, segundo ensinamentos perpetrados entre os séculos XVII e XIX ainda empregados tradicionalmente na performance pelo cantor erudito nos dias atuais. Empregaremos, contudo, elementos do canto popular contemporâneo, cujos elementos estão em construção e variam consideravelmente. 101

A canção Melodia sentimental foi originalmente escrita por Villa-Lobos na tonalidade de Lá Menor, como representada na figura 9, e é destinada à execução por uma voz de soprano. Essa tonalidade permite a projeção da voz, por um cantor treinado, sem recursos do microfone. Uma das diferenças notáveis entre o canto popular e o canto lírico é a região em que a melodia é escrita. Na escrita vocal, isso se reflete na chamada tessitura da obra, sendo uma composição lírica frequentemente composta e indicada para certa extensão e tessitura específicas, relacionadas a uma classificação e subclassificação da voz (soprano, mezzo- soprano, tenor, contralto, barítono, baixo), sendo o cantor normalmente escolhido de acordo com as exigências da música ou escolhendo esse uma obra adequada à sua voz. Na música popular, por outro lado, é perfeitamente aceitável e frequente que se modifiquem elementos, como variação de tonalidade, conforme a adequação vocal do cantor.

Figura 9 - Melodia sentimental de H. Villa-Lobos. Transcrição do original orquestral para piano e canto. Tema original em Lá Menor, com o acompanhamento ao piano de acordo com a composição sinfônica.

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Considerando-se o par}metro “tonalidade” e a liberdade de sua alteraç~o na música popular, optamos pela sua realização nesta canção em classical crossover, como apresentado na figura 9, descendo uma segunda maior em relação ao tom original, ou seja, na tonalidade de Fá menor, a fim de que possamos interpretar a obra em uma tessitura mais próxima à da entonação da fala do soprano, fato usual na interpretação do canto popular, que permite ainda ou demanda o uso da sonorização, mas facilita a dicção e a compreensão do texto. Essa busca tímbrica valoriza as sonoridades vocais surgidas e objetivadas no século XX e que têm no uso do microfone um de seus elementos de sustentação. As figuras 10, 11 e 12 que se seguem mostram os contrastes musicais entre a dinâmica, a estrutura, a tonalidade, o andamento e o timbre de acompanhamento. Observando a dicção, podemos apontar outro ponto contrastante e diferencial entre os dois estilos. A articulação mostrada na figura 10, ao ser feita no canto erudito, segue regras técnicas que, por vezes, tornam incompreensível a pronúncia textual na maioria das línguas, inclusive em português. Isto se deve em parte à influência das escolas tradicionais que se inspiram na escola belcantista – que têm no idioma italiano seu modelo de sonoridade – e em parte à necessidade de aumento da intensidade e a projeção da voz, não artificialmente amplificada. Na canção, de uma forma geral, a letra é tradicionalmente o veículo primordial de expressão, sendo com frequência pelo ouvinte, pelo que se exige do intérprete clareza na dicção a fim de que se entenda sem esforço cada palavra cantada. Para este arranjo, a tonalidade de Fá menor ajuda o intérprete na dicção, na possibilidade de uma melhor emissão principalmente se, na performance desta canção, o intérprete tiver auxílio do microfone.

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Articulação Articulação do texto na oitava 3 – Tessitura grave.

Figura 10 - Melodia sentimental de H. Villa-Lobos. Arranjo para performance classical crossover com a tonalidade de Fá Menor, com diferenças no acompanhamento e o início em caráter recitativo, acompanhamento na clave de Fá.

PARTITURA ORIGINAL

Figura 11– Trecho da canção Melodia Sentimental no tom de Lá menor, originalmente escrita por Villa-Lobos

ARRANJO

Figura 12 – Trecho da canção Melodia Sentimental no tom de Fá menor no arranjo crossover

Figuras 11 e 12 – Comparação da canção Melodia sentimental em versão original de Villa-Lobos com a do arranjo crossover

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As figuras 11 e 12 mostram um mesmo trecho da canção Melodia Sentimental de H. Villa-Lobos. Na partitura original, há interpretação das notas graves impostadas e no arranjo para performance classical crossover pode-se sugerir a realização de notas graves menos impostadas, em dicção aproximada da fala. A impostação é retomada na nota Dó 4, em fermata. Alterações rítmicas (figura rítmica da sílaba “so” de sonhar) e escolhas das alturas das notas evidenciam as diferenças interpretativas. Ainda que modernamente o intérprete tenha assumido importante papel criativo e decisório na interpretação na música erudita, é usual que se procure na música de concerto valorizar a intenção original do autor com a preservação de suas indicações. O êxito interpretativo estaria, então, em realizar cada detalhe da partitura e certa reconstituição de uma sonoridade tradicional. Na interpretação da música popular, contudo, o cantor pode ter a liberdade de criar sua interpretação, mudança de tonalidade e em alguns gêneros, tal releitura pode incluir a improvisação, entendida aqui em um sentido amplo que engloba desde ligeiras variações em uma ou outra frase melódica até a invenção de uma melodia inteiramente nova apenas baseada nos acordes da canção interpretada. Acredita-se, portanto, que o cantor erudito teria no canto classical crossover maior liberdade para empregar recursos que enriqueçam sua interpretação pessoal, podendo alterar o andamento de algumas passagens de uma música para a esta atribuir uma expressividade não prevista pelo autor, criando efeitos de dinâmica que acrescentam colorido pessoal à sua interpretação, dando menos ou mais ênfase a um adorno vocal recomendado pelo autor etc. Objetivamos que essas interferências, contudo, não conduzam em nosso trabalho a modificações do desenho rítmico-melódico que levem à descaracterização.; deseja-se que a música possa ser reconhecida como ela própria, como uma variação livre ou versão facilitada. Mesmo sem atuar como um improvisador no sentido mais amplo do termo, o cantor popular frequentemente transforma, na sua interpretação, figuras rítmicas da frase e/ou a relaç~o entre elas (a “divis~o rítmica”), chegando mesmo a modificar trechos da construção melódica por meio de alterações de algumas notas. 105

Valendo-nos destas prerrogativas, nas figuras 13 e 14 são apresentadas diferentes finalizações das frases na composição original e no arranjo para o canto classical crossover. Na finalização do arranjo, procuramos manter no piano a ideia (motivo) composta por Villa-Lobos e apresentada na introdução da partitura original, com a execução desse motivo na mão esquerda ao piano em clave de Fá, e realizando uma finalização com notas agudas para voz, do Fá4 ao DÓ5, com portamento, o que evidencia o caráter virtuosístico da técnica de canto lírico. O virtuosismo de emissão de um Dó5, em contraposição a elementos de articulação popular, valoriza, pelo contraste e pela surpresa, tal escolha interpretativa, remetendo seguramente à prática e aos recursos técnicos do canto lírico. Nas figuras 13 e 14, Melodia sentimental, de H. Villa-Lobos, cópia da edição original em Lá menor. A finalização da canção no c.32-40 evidenciada principalmente na sustentação da nota Lá4 no início do c.37 enquanto o piano conclui com o motivo instrumental principal até c.40

Figura 13 – Melodia Sentimental, partitura em Lá menor - Início da finalização da canção - c.33.

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Figura 14 - Finalização da canção em sustento da nota Lá4, c.37.

Na figura 15 , Melodia sentimental , de Heitor Villa-Lobos, para performance em canto classical crossover . A finalização começa a partir do c.47. Do c.40-51 com emissão popular no registro médio/grave das notas. A partir do c.50, o piano mantém o motivo composto por Villa-Lobos com a execução deste motivo na mão esquerda ao piano em clave de Fá e uma finalização com notas agudas para voz, do Fá4 ao DÓ5, com portamento , o que evidencia o caráter virtuosístico da técnica de canto lírico.

. Figura 15 - Partitura para performance classical crossover - Tr echo inicial da finalização da canção c.47 mantendo a impostação popular nas notas grave 107

CONCLUSÃO

A partir de minha experiência profissional na performance musical em estilos diferentes, cruzando linguagens e abrangendo públicos com anseios diversos, observando também o fazer musical eclético e “polifônico” de muitos artistas da cidade de Belo Horizonte, senti a necessidade de promover algo similar a um “autorreconhecimento” por meio de um estudo mais amplo e aprofundado que me permitisse compreender e demonstrar de forma fundamentada a experiência de performance que assumi há alguns anos como cantora crossover. Busquei, na pesquisa, ir além da idealização estética de um fazer musical, e pelo estudo do crossover no cenário internacional, pela avaliação de seu desenvolvimento, possibilidades e analogias, pude perceber sua reverberação no Brasil e as possibilidades de sua difusão com obras nacionais frente à já tão mesclada e rica tradição musical brasileira. Iniciei este trabalho fazendo um levantamento bibliográfico com o objetivo de conhecer as origens do termo crossover e os enfoques dados ao tema, relacionando os conceitos e práticas estudadas à minha própria performance. No decorrer da pesquisa, verifiquei com clareza que o canto crossover está presente na vida profissional e nas práticas artísticas de muitos outros performers brasileiros, incluindo de modo significativo a cidade onde vivo, ainda que alguns de meus colegas não conheçam tal terminologia, ainda não tenham se denominado ou não se considerem como tal talvez até por terem uma visão equivocada a respeito. Apesar disso, o hibridismo, a mistura e o cruzamento estilístico estão ali claramente presentes e se revelam, como em meu próprio caso, frutos de uma formação musical eclética e multicultural, característica no país. Esta dissertação acaba por se revelar como uma busca por caminhos musicais não convencionais para este cruzamento, e é, por outro lado, uma forma de evidenciar uma prática musical já bastante antiga, há muito realizada por compositores e intérpretes, tendo sido, no entanto, conceitualmente instituída mediante a evolução das mídias e das necessidades de se alcançar novos públicos e de recriar e ou reinventar práticas da performance. Entendo que este fazer musical é bem mais complexo do que isso. 108

Neste trabalho, a música crossover foi abordada inicialmente sob o ponto de vista mercadológico, a partir de sua evolução nos Estados Unidos, mostrando-se um conceito que nasceu da expans~o da “Black Music”, nos anos 1930, frente à busca por novos públicos e novos mercados. Tal busca deu início a novos gêneros musicais e estilos. A partir de então percebe-se que fazer música crossover passou a ocorrer tanto no âmbito da música popular quanto no âmbito da música erudita. Segundo pude observar, na música popular os gêneros mais explorados no contexto crossover foram o jazz, a soul music, gospel music, Celtic music, world music, entre tantos outros gêneros crossovers e suas subcategorias híbridas. Na música erudita, o gênero crossover mais conhecido tornou-se o classical crossover, abrangendo as características de uma música de concerto e a ópera, em fusão com a música pop, tradicional de muitos países. Uma observação importante é que para o êxito de um projeto crossover, gêneros ou obras específicas inseridas em certos gêneros terão sido, em algum tempo ou lugar, obras de êxito junto ao seu público. Isto implicaria na afirmação de que nem todos os cruzamentos de obra ou gêneros poderiam adequar-se a uma escolha para uma prática crossover. A escolha de Villa-Lobos, por exemplo, possivelmente terá ocorrido em razão da notoriedade do compositor e da inserção exitosa de sua música nas mídias de seu tempo e da atualidade. Constatei que crossover é também adjetivo do artista, do músico, do performer. O cantor então poderá tornar-se músico crossover quando demonstrar flexibilidade na técnica vocal, na escolha do repertório e na sua atuação performática, integrando em um mesmo concerto peças de gêneros e estilos musicais diferentes. Além de trilhas de cinema de compositores como Ennio Morricone, Michel Legrand e outras músicas populares e tradicionais que fazem parte da minha prática profissional em performance, para a apresentação final deste trabalho estudei por dois anos peças do classicismo (Mozart e Beethoven) com base na técnica vocal clássica na qual venho me preparando, assim como peças que transitam entre a ópera e o teatro musical. Nesta dissertação, foram abordadas também as atuais práticas do teatro musical em comparação às performances da ópera, estilos diferentes, musical e vocalmente, que na atualidade estão sendo conduzidos a um forte e por vezes 109 polêmico crossing over, revelando uma prática já bem estabelecida na obra de compositores como George Gershwin e Leonard Bernstein, dentre outros. Apontei também neste trabalho cantores líricos que fazem a ponte entre o popular e o clássico, que promovem o crossover técnico vocal entre estes estilos. Para a escolha das peças que compuseram o concerto final deste trabalho, pesquisei e escolhi canções crossovers internacionais reconhecidas, inclusive pela reconhecida Billboard, citada neste trabalho. Verifiquei que o crossover clássico já se estabelece como um gênero e que tem seu próprio gráfico na já citada tabela da Billboard. Busquei então reconhecer quais características crossover estariam também presentes em peças brasileira e quais poderiam ser incluídas de modo pertinente em um espetáculo crossover. Como já afirmado várias vezes, o crossover tem fundamentações mercadológicas. Julguei necessário, neste trabalho, a realização de um estudo das mídias e de como elas têm influenciado o fazer musical e, em consequência, a formação e o comportamento profissional do músico. Verifiquei ainda que a música crossover precisa ser realizada por um artista crossover, ou seja, por um artista que transite entre gêneros musicais e que conheça e atinja públicos diferentes. Assim, o espetáculo crossover é versátil e dialógico. Pode ser realizado, muitas vezes, simplesmente com o piano e voz, mas acontece, de fato, no processo comunicativo que estabelece. Há a criação de uma nova mídia. É na versatilidade estilística, tanto da música quanto da técnica vocal, envolvendo a ideia de um espet|culo “para além das tradições”, que o performer crossover se comunica. Objetivam-se novos públicos e novos significados. Esta “polifonia” também acontece na interface do espaço cênico e musical, na cena onde há luzes, sonorização e imagens, além de sons musicais. O crossover busca integrar linguagens que a priori são distintas, mas presentes e próximas na rede hipertextual em que se estabelece. Um espetáculo hipertextual, multilinear e multifacetado integra mídias diversas, pessoas, técnicas, públicos. Na finalização desta dissertação, busquei integrar os conceitos da música crossover com as práticas de performance da música brasileira, especificamente com a canção. A música brasileira sofreu transformações e foi sendo moldada ao longo do tempo; revelando influências de músicas e linguagens de diversas 110 culturas. É também evidente que a sua própria transformação gerou algo novo e original. Conceitualmente, poderia dizer-se que um “crossover na música brasileira”, segundo os conceitos descritos neste trabalho, seria uma novidade, algo ousado. No entanto, se considerarmos as raízes deste conceito, o “cruzamento” ocorreu desde as práticas musicais mais ancestrais nestas terras, de colonizadores portugueses com a cultura indígena e posteriormente com a cultura africana dos negros escravizados. Se tal cruzamento não teve a finalidade exatamente mercadológica do crossover atual, funcionou na integraç~o de “públicos” e “artistas”. O crossover na música brasileira poderia ser estudado segundo diferentes abordagens teóricas, pela multiplicidade de elementos que seguramente poderia reunir. Para esta dissertação, contudo, buscamos a compreensão do crossover sob a perspectiva teórica do hipertexto, que permite, pelas analogias, a compreensão de como algumas de nossas obras musicais, populares ou eruditas, podem estar associadas em “redes” que conectam estilos, cantores, épocas, compositores, técnicas, públicos. Assim considerando, empreguei como exemplo uma obra representativa do cancioneiro brasileiro, a Melodia Sentimental, de Villa-Lobos, que bem exemplifica o já referido êxito em diferentes épocas e lugares, ou seja, uma obra cuja movência ou capacidade de transitar em diferentes ambientes é comprovada pelo grande número de gravações e pelas muito diversas versões que recebeu. Assim como os muitos artistas citados, também elaborei um arranjo crossover para a mencionada canção de câmara brasileira, canção esta classificada como de concerto, mas que é também canção de show de televisão, trilha de novela e de cinema no Brasil, a ser interpretada por cantores eruditos ou populares. E foi canção de espetáculo crossover em meu trabalho de defesa. Para além das questões de escolhas de repertório e de compreensão de uma obra que possa ser considerada e empregada em um espetáculo crossover, penso que no âmbito acadêmico ainda há o que se buscar e que é preciso avaliar-se a possibilidade de configuração de uma técnica vocal plural, de um mais aprofundado interesse pelas intercessões entre teatro e música e, realmente, que se busque compreender como a música supera “rótulos”. 111

Espero que este trabalho auxilie os leitores, sobretudo músicos que trabalham nesta seara, assim como me auxiliou, a perceber a música brasileira em suas possibilidades crossover, como lugar importante, rico, aberto e apto às conexões em uma rede universal configurada pela música.

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APÊNDICE:

ARRANJO DA CANÇÃO MELODIA SENTIMENTAL DE HEITOR VILLA-LOBOS PARA CANTO CROSSOVER

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