Cemitério Perdido Dos Filmes B , Uma Obra Que Se Dispôs a Analisar O Universo Da Face Obscura De Hollywood E Do Cinema Europeu
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Eu vejo o cinema como um negócio e tenho pena de quem o considera como uma forma de arte e gasta dinheiro baseado nessa filosofia imatura. Herschell Gordon Lewis1 Não sou um falso intelectual como tantos outros nesse negócio. Mas eu acho que o cinema é uma forma de arte em si mesmo. É uma expressão artística que, digamos, faz o público feliz. Jesús Franco2 Arte ou simples comércio? Desde os princípios do Cinema, essa dúvida ressoa nas mentes de pesquisadores, proissionais e cinéilos. A verdade é que nesse mais de um século de história cinematográica, diretores, produtores e críticos encararam o ato de se fazer Cinema de formas diferentes. Do cineasta interessado apenas em criar uma obra artística relevante ao produtor que desejava somente um lucro rápido e fácil, todos tiveram um papel importante no desenvolvimento dessa história. No início, o Cinema tinha um caráter documental, limitando-se a retratar atividades do cotidiano, e a simples exibição dessas imagens em uma tela já era o suiciente para espantar os espectadores de então. Contudo, a novidade das imagens em movimento passou, e essa nova tecnologia começou a contar histórias para continuar atraindo o público. Surgia assim o Cinema como é conhecido hoje. Não demorou para que produtores e diretores percebessem as perspectivas comerciais positivas de se explorar temas controversos como o sexo e a violência, repetindo assim uma tendência das mídias impressas do im do século XIX e início do século XX. Nesse período de entretenimento em papel, antes do rádio, do cinema e da TV, publicações chamadas de dime novels (nos Estados Unidos), ou penny dreadfuls (na Inglaterra), ofereciam emoções fortes, com muito sensacionalismo, por um baixo custo. Mais tarde batizada de pulp (devido à utilização do papel feito com a polpa da madeira nas edições), esse tipo de literatura fomentou o crescimento da cultura pop moderna, e, é claro, também inluenciou o Cinema. Do encontro entre a necessidade de atrair mais público e a avidez desse mesmo público por temáticas fortes, como os pulps comprovaram, surgiu o tipo de Cinema que veio a ser chamado de exploitation, devido ao seu caráter apelativo. É claro que, desde a primeira década de imagens gravadas, obras eróticas e pornográicas já podiam ser vistas em exibições itinerantes e salas obscuras. Isso não tardou a mudar. O ano de 1916 foi marcado por aquela que é considerada a primeira cena de nudez no cenário mainstream americano, protagonizada pela atriz Annette Kellerman no filme A Daughter of the Gods, hoje considerado perdido. Produzido pela Fox Film, A Daughter of the Gods causou muita polêmica, além de ter sido o primeiro filme a custar um milhão de dólares. Nos anos seguintes, escândalos envolvendo astros cinematográicos e produções cada vez mais ousadas levaram à criação, em 1930, do Motion Picture Production Code, o famigerado Código Hays, que passou a censurar o mercado com regras rígidas. Para piorar a situação, em 1934 foi instaurada a obrigatoriedade de se obter um certiicado de aprovação do órgão censor para que uma produção fosse lançada. Essa rigidez, autoimposta pela indústria do Cinema com o intuito de evitar a censura governamental, não barrou o avanço do exploitation, que encontrou seus meios de continuar, embora distante dos grandes estúdios. Filmes dessa época abordavam o universo do nudismo (This nude world, 1933), a prostituição (Slaves in bondage, 1937), o uso de drogas (Marihuana, 1936, e Reefer madness, 1938), além de pseudodocumentários retratando a “vida selvagem” (Wild women of Borneo, 1931, Angkor, 1935) e os perigos do sexo (Sex madness, 1938), sempre vendidos como obras educativas ou moralizadoras para burlar as regras. Aninhado no âmago do Cinema B, o exploitation não tardaria a lorescer. O im dos anos 1950 assistiu a um esmorecimento do Código Hays, e a distribuição de ilmes europeus (estes bem mais liberais) nos Estados Unidos começou a mostrar novos caminhos para a indústria. O livro que você, leitor, tem em mãos, dá continuidade ao trabalho iniciado em 2010 com a publicação de Cemitério perdido dos Filmes B , uma obra que se dispôs a analisar o universo da face obscura de Hollywood e do Cinema europeu. Porém, ao contrário daquela publicação de um único autor, este segundo volume tem sua autoria compartilhada por um grupo heterogêneo, formado por professores, cineastas, jornalistas, blogueiros e cinéilos, todos unidos pelo amor ao cinema B. São eles: Carlos Thomaz Albornoz, Laura Loguercio Cánepa, Leandro Cesar Caraça, Marco A. S. Freitas, Ana Júlia Galvan, Osvaldo Neto, Otávio Pereira, Ronald Perrone, Ismael A. Schonhorst, Leopoldo Tauffenbach e Cristian Verardi. Dividido em nove capítulos, Cemitério perdido dos Filmes B: Exploitation vai ainda mais a fundo nos recantos sombrios da Sétima Arte. Esses autores aceitaram o desafio e mergulharam de cabeça. O capítulo Canibais, assassinos seriais e outras atrocidades abre o livro com voracidade. Nele, os autores discorrem sobre algumas das obras mais extremas do exploitation. Do splatter primordial em Banquete de sangue (Blood feast, 1963) ao auge do ciclo do canibalismo italiano com Canibal Holocausto (Cannibal holocaust, 1980), o leitor travará contato com situações chocantes, imagens repulsivas e histórias quase inacreditáveis sobre as controvérsias geradas por estes ilmes, e a audácia de seus realizadores. Samurais, monges e lutadores preenche uma lacuna do Cemitério perdido original: a falta de obras orientais. De enorme popularidade nos anos 1960 e 1970, os ilmes de Artes Marciais produziram heróis para todos os gostos, entre eles o inigualável Bruce Lee e o arquétipo do durão japonês incorporado por Sonny Chiba. O kung fu predominava nas produções de Hong Kong, enquanto samurais truculentos distribuíam golpes de espadas no gênero conhecido como chambara. Nenhum outro país da Europa foi tão prolíico na produção de obras exploitation quanto a Itália, cuja indústria inundou o mundo por mais de trinta anos. Não é à toa que um dos capítulos desse livro seja exclusivamente dedicado ao giallo, um dos mais queridos gêneros italianos. Assassinos misteriosos e mulheres fatais enfoca este que é precursor do slasher americano, além de reletir o descontentamento social e político da Itália nos anos 1970. O que pode ser mais sensacionalista do que as matérias policiais em jornais e programas de TV? Os estúdios bem cedo aprenderam a aproveitar esse potencial, tanto que um dos primeiros ilmes a chocar a opinião pública no cinema americano foi o clássico de Howard Hawks Scarface – A vergonha de uma nação (1932). Policiais implacáveis, bandidos sanguinários mostra o lado mais duro das obras policiais, com grande destaque para o poliziesco, a versão italiana dos crime thrillers. Da mesma forma que o giallo, o cinema poliziezco bebia muito na realidade italiana com seus altos índices de criminalidade e corrupção. Surgido em um período de intensos conlitos raciais, o estilo que veio a receber o nome de blaxploitation começou como um grito de revolta. Sweet Sweetback's Baadasssss Song , obra de farta crítica político-social dirigida por Melvin Van Peebles, criou as características desse gênero realizado, a princípio, por negros para as plateias negras urbanas. Logo, até mesmo grandes estúdios entraram na onda, expandindo o público para além das linhas étnicas. Polêmicas também acompanharam o blaxploitation durante sua existência. Se, para alguns, o gênero era um porta voz do empoderamento negro, para outros ele apenas fortalecia estereótipos racistas. O capítulo Cinema Baadasssss aborda as diversas facetas dos filmes afro-americanos, também chamado de Soul Cinema. Em Mulheres aprisionadas o leitor irá vivenciar os horrores vividos nos mais variados tipos de prisões femininas, expostos em obras de três gêneros com muito em comum: nazisploitation (mulheres presas em campos de concentração nazistas), Women in Prison (mulheres em presídios) e nunsploitation (mulheres atrás dos muros de conventos). Erotismo ao redor do mundo mergulha no mundo do Sexploitation, obras de forte natureza sexual. Do humor erótico de Russ Meyer aos arroubos de perversidade do italiano Joe D’Amato, esse capítulo explora a faceta mais liberal do Cinema. A América Latina também produziu sua cota de exploitations, embora pouco lembrados nos dias atuais, além de terem enfrentado muito preconceito em sua época. Teria a airmação do escritor chileno Roberto Bolaño de que o subdesenvolvimento não permite a literatura de gênero , um relexo no Cinema de gênero latino-americano? Os ilmes da notória Boca do Lixo, de São Paulo, provam o contrário. Destaques da produção de Brasil, México e Argentina podem ser conferidos em Exploitation na América Latina. Por im, o leitor verá como estereótipos culturais também podem ser explorados de maneira comercial pelo Cinema no capítulo Exploitation “regional”, que enfoca as produções desse gênero realizadas na Austrália (ozploitation) e Canadá (canuxploitation). Assim como aconteceu com muitos escritores da era pulp, hoje diversos nomes do exploitation são considerados verdadeiros gênios, autores a serem respeitados e admirados. Agora, leitor, prepare-se para conhecer esse universo lendário e fascinante, cheio de ousadia, paixão, coragem e também muita cara de pau. E, após aventurar-se por esses capítulos, responda você mesmo o questionamento inicial desse texto: Arte ou simples comércio? César Almeida Organizador 1 Entrevista para John Wisniewski, Bright Lights Film Journal, Outubro de 2001. 2 http://www.imdb.com/name/nm0001238/bio#quotes É jornalista, pesquisador e crítico de cinema. Membro fundador da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Programador da Sessão Raros desde 2001. Colaborador de revistas como Cine Monstro, Teorema e Contracampo. Coautor do livro Voivode - Estudos sobre Vampiros. Nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no ano de 1980. Ainda muito cedo, as histórias fantásticas do cinema e da literatura conquistaram sua atenção. Mais tarde, a paixão por ilmes B e livros fantásticos o levou a pesquisar e escrever. Publica artigos sobre cinema desde 2008, e em 2010 lançou Cemitério Perdido dos Filmes B, que compila 120 resenhas de sua autoria.