ISSN: 2359-0289

LETRAMENTO MUSICAL E SUAS REPERCUSSÕES NOS PROCESSOS DE ALFABETIZAÇÃO INFANTIL ESCOLAR

BORGES, Douglas Guimarães. Letramento musical e suas repercussões nos processos de alfabetização infantil escolar. Mestrado em Educação – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2014. e-mail: [email protected]

Orientadora: Profª. Drª. Maria do Perpétuo Socorro Cardoso e Silva

Resumo: A presente proposta de pesquisa, com abordagem de cunho qualitativo, tem como foco de estudo a relação dialética entre diferentes áreas do conhecimento inseridas na educação infantil. O objetivo geral é investigar a interferência do Letramento Musical sobre a qualidade da alfabetização, para tanto, alguns objetivos específicos servirão como pilares epistemológicos, como identificar duas escolas regulares da rede pública de Belém – PA com realidades distintas: uma contando com o Ensino da Música estruturado e outra sem tal recurso; analisar a aplicação do Letramento Musical na instituição que dele dispõe (recursos materiais, professores e processos de avaliação); aplicar questionário de cunho qualitativo aos professores responsáveis pela alfabetização nas duas instituições; avaliar a produção e a interpretação textual de cinco alunos de cada instituição. As questões norteadoras que guiarão nossas ações investigativas são: Quais as principais diferenças estruturais entre uma instituição de ensino regular que dispõe do Letramento Musical inserido em sua grade curricular e outra que não conta com tal implementação? Como se dá a aplicação da Educação Musical em uma instituição de ensino regular de Belém – PA? Qual a avaliação, por parte dos professores responsáveis pela alfabetização, sobre a qualidade de interpretação textual de seus alunos? Quais as diferenças entre o nível de compreensão textual entre alunos que possuem Letramento Musical e aqueles que não contam com tal aprendizado? A partir do método de procedimento comparativo, pretendemos diagnosticar se (e de que maneira) o Letramento Musical pode influenciar a qualidade do Letramento Alfabético infantil.

PALAVRAS-CHAVE: Letramento musical. Interpretação textual. Educação cooperativa. Significação textual.

Abstract:

KEYWORDS: Musical Literacy. Textual interpretation. Cooperative education. Textual meaning.

Introdução

Entendemos o processo de alfabetização como a decodificação da linguagem escrita, a significação para o ordenamento lógico dos sinais gráficos de um determinado idioma. Já o termo letramento refere-se a algo mais abrangente e complexo, como um conjunto de diversas habilidades psíquicas, intelectuais, cognitivas, sociais e culturais, as quais permitem ao indivíduo uma compreensão apurada diante do conhecimento apresentado ou simplesmente do “objeto” de observação de acordo com o contexto, instrumentalizando-o para possíveis tomadas de decisão. Em outras palavras, o indivíduo meramente alfabetizado apenas organiza um escrito, sem maiores investigações de seu real sentido. Por outro lado, qualquer observador que se utilize de determinado tipo de letramento é capaz de interpretar uma determinada realidade, (co) relacionando-a, inclusive, a outros elementos que não se façam tão explícitos. O Ensino da Música, por conter uma série de elementos tanto sensoriais quanto técnico/científicos, está inserido em uma dimensão de combinação entre diferentes saberes. O raciocínio lógico para a compreensão de divisões rítmicas, a sensibilidade estética para a concatenação harmônica e a coordenação motora fina para o domínio de determinado instrumento, são apenas alguns exemplos de áreas cognitivas desenvolvidas por meio da arte dos sons. Portanto, enquanto uma combinação de conhecimentos objetivos, intuitivos, dialéticos e cooperativos, podemos reconhecer a aprendizagem desta nuance artística como Letramento Musical. Em uma análise diagnóstica e buscando o entendimento de como o Ensino da Música pode influenciar os resultados do processo de alfabetização infantil escolar, o intuito do trabalho em questão é investigar de que forma (e em que nível) o Letramento Musical pode apresentar uma relação direta com o Letramento Alfabético, ou seja, a capacidade de interpretação textual provida de autonomia, de real apropriação das palavras e seus significados.

Área de Interesse Educação Infantil.

Temática Letramento musical

Formulação do Problema

A partir da observação de que os programas direcionados às séries iniciais devem primar pela qualidade da alfabetização brasileira, quais as possíveis implicações dialéticas do Letramento Musical sobre estratégias didáticas que primem pela alfabetização global, dotada de instrumentos de compreensão textual e que desenvolva a cognição além do mero ordenamento de códigos letrários?

Contextualização do Objeto de Estudo

A motivação para a presente proposta de pesquisa surgiu a partir da análise de diversos tipos de combinação entre letramentos, os quais são fundamentais para atender às demandas de novos fenômenos sociais e, consequentemente, educacionais. De acordo com Botelho e Leite (2011):

[...] entende-se que os letramentos múltiplos não só devem ser levados em conta, mas também necessitam ser trabalhados na escola, tanto os valorizados como também os não valorizados, assim como os locais e os globais. (BOTELHO; LEITE, 2011, p. 11).

Neste aspecto, o trabalho em questão pretende analisar a possibilidade de interferência existente entre os letramentos musical e alfabético, no sentido da diagnose resultante de sua (co) relação para o aprendizado da linguagem escrita por parte de crianças em fase de alfabetização. A combinação entre música e alfabetização apresenta-se como um caminho viável de pesquisa, uma vez que congrega a apropriação de diferentes códigos (verbais e não verbais) com a mesma finalidade: a comunicação. Portanto, destacamos como Objeto de Estudo da presente proposta de pesquisa a Análise Qualitativa da Alfabetização Desenvolvida em Combinação com o Letramento Musical na Educação Regular de Belém-PA.

Justificativa

As investigações científicas acerca de processos educacionais não podem desconsiderar a conexão necessária entre diferentes áreas do conhecimento para o desenvolvimento humano. Barton (1998, p. 9) é enfático ao defender a existência paralela de vários tipos de letramentos. Ao discutir as concepções desse autor, Xavier (2007) esclarece ainda que:

O autor lembra que os tipos de letramentos mudam porque são situados na história e acompanham a mudança de cada contexto tecnológico, social, político, econômico ou cultural em uma dada sociedade. Além disso, os letramentos são modificados também pelas instituições sociais, cujas regras e valores estabelecem uma relação de luta pelo poder que, por sua vez, persuade sutilmente ou “convence” pela força uma comunidade inteira a aprender o tipo de letramento que lhe é apresentado como oficial, logo, que deve ser obrigatoriamente assimilado. (XAVIER, 2007, p.4).

Portanto, partindo dessa concepção de “Letramentos Múltiplos” (Botelho e Leite, 2011), podemos confirmar a existência (ou pelo menos a tentativa de inserção) do Letramento Musical nas instituições de ensino brasileiras. Entretanto, como a implementação da Lei 11.769/2008 ainda é recente (desde 2012), fatalmente algumas lacunas ainda são constatadas no Ensino da Música praticado na escolarização regular, das quais destacamos três: a) A legislação não prevê a música como disciplina independente, mas como conteúdo da disciplina “Artes”. Isso implica na oscilação de sua carga horária; b) Não há a exigência da especialidade do professor. Ou seja, sem o embasamento adequado por parte do educador, os conteúdos podem ser transmitidos de maneira superficial, equivocada ou incompleta; c) A maioria das instituições (principalmente públicas) não possuem os recursos necessários como instrumentos, equipamentos de áudio ou salas especiais. Tais lacunas indicam que o Ensino da Música, apesar de determinação legal, ainda não é uma realidade que atenda com plenitude a todo o sistema educacional. Neste sentido, a relevância da presente proposta de pesquisa está na necessidade de comparação, do ponto de vista qualitativo, entre os alfabetizandos que tiveram (ou têm) acesso ao Letramento Musical e aqueles excluídos ou inseridos de maneira superficial nesse processo.

Pretendemos esclarecer “se”, “como” e até “em que nível” o Ensino da Música interfere no Letramento Alfabético, uma vez que, de acordo com Lemos (2010, p. 117), as virtudes da música no “desenvolvimento integral da sensibilidade e da criatividade do indivíduo, na canalização de sua afetividade, no favorecimento de sua autoestima e na integração do grupo já não são mais a comprovar”.

Fundamentação Teórica

Nossas bases argumentativas partem do pressuposto de que o processo de alfabetização, isolado, não prepara o individuo para usufruir dos benefícios plenos que a linguagem escrita pode proporcionar para o convívio em sociedade, como afirma Xavier (2007): Em outras palavras, o sujeito alfabetizado ainda não experimentou os totais benefícios que as práticas socioculturais lhe podem trazer, tais como: a) entender textos mais sofisticados, que exigem uma compreensão mais profunda cujos enunciados contam com informações implícitas, pressupostas ou subentendidas; b) elaborar com frequência relatórios detalhados de trabalho; c) escrever textos argumentativos que defendam seu ponto de vista de modo claro e persuasivo; d) descrever com precisão e sutileza pessoas e ambientes vistos ou imaginados por ele, entre outros usos mais complexos que podem ser feitos com a escrita. (XAVIER, 2007, p. 2).

Por outro lado, o letramento, como um conjunto de processos que promovem a autonomia e a otimização do convívio social vai além da capacidade de ler e escrever. Segundo Barton (1998 apud Xavier, 2007):

Antes de constituir um conjunto de habilidades intelectuais, o letramento é uma prática cultural, sócio e historicamente estabelecida, que permite ao indivíduo apoderar-se das suas vantagens e assim participar efetivamente e decidir, como cidadão do seu tempo, os destinos da comunidade à qual pertence e as tradições, hábitos e costumes com os quais se identifica. A capacidade de enxergar além dos limites do código, fazer relações com informações fora do texto falado ou escrito e vinculá-las à sua realidade histórica, social e política são características de um indivíduo plenamente letrado. (BARTON, 1998, apud XAVIER, 2007, p. 2).

As abordagens dos dois autores supracitados ratificam o fato de que o Letramento engloba a Alfabetização em um contexto mais amplo. Portanto, podemos afirmar que, enquanto uma combinação de conhecimentos agregados às práticas de leitura, há diversos tipos de letramentos, como sugerem Botelho e Leite (2011):

As práticas sociais de leitura e de escrita estão presentes na vida cotidiana de praticamente toda a sociedade. Ler um livro para a escola; pegar o ônibus correto para casa ou para ir a um determinado lugar; orientar-se pelas placas quando está dirigindo; ler a bula de um remédio; fazer de conta que lê uma história, mesmo que ainda não seja alfabetizado; compor uma música com os amigos; ler o resumo das novelas na revista; fazer uma lista de compras etc. Todas essas atividades constituem formas de utilização social da leitura e da escrita, sendo assim práticas de letramento. (BOTELHO; LEITE, 2011, p. 2).

A partir dessa concepção de “Letramentos Múltiplos”, de acordo com Botelho e Leite (2011), propomos a investigação do Letramento Musical em combinação com o Letramento Alfabético, abordando seus principais aspectos de contribuição para o desenvolvimento cognitivo. A educação através das artes era defendida por Platão (428 – 347 A.C.) como uma das bases de formação do homem. O indivíduo possui naturalmente uma necessidade artística dentro de si, pois é através dela que expressa suas emoções, interage com a sociedade na qual está inserido e deixa, para as futuras gerações, um registro dos ideais e das realidades de seu tempo. Portanto, é impossível imaginarmos um processo educacional totalmente desprovido de preceitos artísticos. A música é um excelente canal de interação para a educação. Segundo Suzigan (1986, p. 42) “o pensamento pedagógico e todas as preocupações do educador devem levar em conta que a Educação Musical é um elemento fundamental na construção do conhecimento humano”. Ou seja, a música deve fazer parte do cotidiano do homem desde as bases de sua formação, porém, não apenas com a finalidade de proporcionar habilidades em um instrumento específico, mas, principalmente, como elemento catalisador do desenvolvimento global. Swanwick (1988, p. 89) ratifica tal análise afirmando que “a música pode ser usada para propostas não musicais”. Além disso, é importante salientarmos que a música já está naturalmente inserida nos conteúdos curriculares da educação brasileira. O ano de 2008 pode ser considerado um marco na história da Educação Musical do Brasil. Mais especificamente o dia 18 de agosto, quando o então presidente Luis Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 11.769/2008, a qual determina o ensino da música como conteúdo obrigatório na Educação Básica. Com relação ao prazo limite para a efetiva implementação da referida legislação, Costa (2011) afirma que:

O ano de 2012 é data limite para que todas as escolas públicas e privadas do Brasil incluam o ensino de música em suas grades curriculares. A exigência surgiu com a lei nº 11.769, sancionada em 18 de agosto de 2008, que determina que a música deva ser conteúdo obrigatório em toda a Educação Básica. "O objetivo não é formar músicos, mas desenvolver a criatividade, a sensibilidade e a integração dos alunos" [...]. (COSTA, 2011, p.1).

Consideramos que a importância do Letramento Musical, apontado por Suzigan (1986) como fator preponderante para a formação global do indivíduo, bem como sua fundamentação legal, como ressalta Costa (2011), corroboram para uma investigação sobre suas interferências nos processos de alfabetização infantil escolar. Especificidades do Letramento Musical Infantil

A Educação Musical infantil é um processo pelo qual a criança desenvolve uma série de aspectos cognitivos. Porém, é necessário compreendermos que educar através de uma expressão artística é mais do que simplesmente transmitir conhecimentos, é contribuir com a formação sócio/cultural do indivíduo. O desenvolvimento da percepção rítmica deve fazer parte das primeiras atividades de Educação Musical infantil. A duração dos sons e silêncios é facilmente perceptível às crianças. Contudo, conceitos teóricos são dispensáveis nesta primeira fase, ou seja, o educador não diz o nome da “semibreve”, mas sim pronuncia um som longo (grande) e, em seguida, pede que a criança o reproduza. As pausas podem ser representadas com um simples movimento do dedo indicador perto da boca (indicando silêncio). Observemos a ratificação dessa ideia, segundo Moura & Boscardin:

Não se inicia o trabalho rítmico a partir da apresentação de conceitos teóricos, o que impossibilita a verdadeira compreensão do assunto. Ao contrário, é importante sentir o ritmo musical, de modo que a passagem do nível intuitivo ao nível consciente desse aprendizado se faça de maneira natural e consistente. (MOURA; BOSCARDIN, 1989, p. 31).

Outra questão importante a ser apontada é a necessidade de observação do contexto cultural no qual a criança está inserida. A música não pode ser um elemento de imposição de uma determinada cultura, em outras palavras, o educador musical deve investigar o universo cultural de uma ou um grupo de crianças e, dessa forma, escolher a abordagem mais adequada. Swanwick, a esse respeito, nos traz o seguinte posicionamento:

É óbvio que toda música nasce em um contexto social e que ela acontece ao longo e intercalando-se com outras atividades culturais, talvez com um grupo de pais atuando como agentes, ou talvez assegurando-nos da continuidade e do valor de nossa herança cultural – qualquer que seja -, ou ainda proporcionando um pouco de ânimo num jogo de bola. Quero argumentar que, embora escolhamos usar a música em ocasiões diferentes, para as pessoas envolvidas com educação a música tem de ser vista como uma forma de discurso com vários níveis metafóricos. (SWANWICK, 2003, p. 38).

A escolha do repertório deve, de preferência, ter relação com o universo da criança. Cantigas de roda ou músicas folclóricas produzem bons resultados nos processos de musicalização infantil. Além disso, canções populares ou até mesmo aquelas usadas em jogos e brincadeiras também podem ser utilizadas, pois são mais próximas das vivências musicais das crianças e certamente tornarão as atividades mais dinâmicas e atrativas. Os seres humanos já nascem com algum tipo de consciência musical. Howard (1984, p. 56) ressalta que “é comum encontrar crianças que cantam afinado e têm um senso exato de ritmo”. Porém, ao começarem a estudar um instrumento, normalmente as noções de afinação e ritmo se desajustam. Isso não ocorre por conta de incapacidades da criança, mas por uma razão muito simples: ela está iniciando um contato com algo novo e externo ao seu corpo. Ensinar uma criança a tocar um instrumento musical requer, além de um bom domínio técnico por parte do professor, a consciência de que um elemento novo estar-se-á sendo inserido àquele universo, portanto, é absolutamente normal o surgimento de algumas dificuldades. Com relação às possíveis dificuldades apresentadas pelas crianças ao iniciarem o aprendizado musical, observemos a análise de Howard:

É inacreditável até que ponto, diante desses fenômenos, a maior parte dos educadores tendem a esquecer por completo que a criança que lhes foi confiada

cantava, no entanto, afinado e no tempo; logo falam dela como carente de dons musicais. No entanto, a pretensa “falta de dons”, tanto nas crianças como nos adultos, é simplesmente a dificuldade de se familiarizarem com as condições do jogo instrumental, as atitudes, os gestos, os movimentos de que eles necessitam. É essa dificuldade, a obsessão que ela suscita, os esforços que provoca, que obscurecem os dons para a música. (HOWARD, 1984, p. 56).

No que se refere às legislações do ensino infantil, o Brasil conta com os Parâmetros Curriculares Nacionais de 1ª a 4ª Série (P.C.N.). Neste documento, encontram-se diretrizes educacionais de diversas áreas do conhecimento, inclusive direcionadas à Educação Musical. As orientações acerca do ensino da música presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais de 1ª a 4ª Série envolvem: - Comunicação e Expressão em Música: interpretação, improvisação e composição. - Apreciação Significativa em Música: escuta, envolvimento e compreensão da linguagem musical. - A Música como Produto Cultural e Histórico: música e sons do mundo.

Para que a aprendizagem da música possa ser fundamental na formação de cidadãos é necessário que todos tenham a oportunidade de participar ativamente como ouvintes, intérpretes, compositores e improvisadores, dentro e fora da sala de aula. (P.C.N. – Arte 1ª a 4ª série, 1997, p.53).

A improvisação deve ser um elemento constante na Educação Musical infantil. Ela estimula a criatividade e a espontaneidade do aluno, os “pequenos músicos” devem ser incentivados a produzir mais do que reproduzir. Segundo Howard (1984, p. 59), “o ensino puramente mecânico da música tem sido frequentemente condenado”. Ou seja, as atividades musicais apresentam melhores resultados quando são flexíveis, envolventes e inovadoras, principalmente entre as crianças. Com relação à estrutura dos instrumentos musicais, o educador pode utilizar algumas estratégias de adaptação, um exemplo disso pode ser observado na metodologia de Orff 1. Nela, os instrumentos devem ser adaptados às crianças e não o contrário, como no ato de retirar algumas placas do xilofone para que apenas as notas interessadas permaneçam.

1 Carl Orff (1895 – 1982). Compositor alemão de grandes contribuições para a educação musical.

Na segunda metade da década de 1930, um método chamado Iniciação Musical foi criado pelo musicólogo e educador brasileiro Sá Pereira2. O método baseia-se na iniciação sensorial com ênfase na experiência musical extensiva antes do ensino de conceitos teóricos. Influenciado pelos conceitos musicais de Dalcroze e pelas concepções pedagógicas de Piaget, Sá Pereira propunha uma Educação Musical servida de atividades espontâneas, envolvendo tarefas em grupo, dança e conjunto de percussão, a fim de propiciar amplas oportunidades para vivência e experiência do fenômeno musical e das relações entre sons e sonoridades. Em 1948, Liddy Mignone3 fundou um curso no Conservatório Brasileiro de Música e, em 1952, um Centro de Pesquisa para Estudos Musicais. O método apresentado por Mignone (1961) baseia-se no conceito de educação musical percebido pela criança como recreação e não como imposição. Também pregava que a iniciação musical começasse cedo em criança e que o contexto musical fosse apresentado através de estórias infantis, jogos, brincadeiras e dramatizações. Apesar de o método ser direcionado a Educação Musical geral, alguns procedimentos foram estendidos para adaptação e uso na educação especial, envolvendo estudantes com algum grau de deficiência como cegueira, surdez e autismo. Em meados do século XX, a principal contribuição de Sá Pereira e Liddy Mignone para o ensino da música foi a criação, com inspiração em Dalcroze, de Cursos de Iniciação Musical, na Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil (hoje, Escola de Música da UFRJ) e no Conservatório Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro. Nesses cursos, buscava- se musicalizar a criança, introduzindo-a à percepção de alturas e ritmos de maneira empírica, abandonando-se o enfoque de introduzi-la à música através de conceitos teóricos. Sobre o papel dessas diretrizes educacionais, Sá Pereira ressalta que:

Já pois que a natureza da criança não lhe permite interessar-se senão por atividades com fim próximo, e que estas quando não são impostas (disciplina, estudo forçado) se manifestam espontaneamente sob forma de jogo, de brinquedo, nada mais racional do que tentar-se aproveitar essa tendência para brincar como iniciação ao trabalho sério, substituindo-se a “disciplina” da escola antiga pela espontaneidade da atividade lúdica. (PEREIRA, 1937, p. 70).

2 Antônio Leal de Sá Pereira (1888-1966). 3 Elisa Hedwig Carolina Mankel Chiaffarelli Mignone (1891-1962).

A escolha adequada da estratégia pedagógica é determinante para a qualidade da Educação Musical infantil. O professor deve estar atento às metodologias disponíveis e em constante processo de pesquisa, a fim de maximizar os resultados de sua atuação. O contexto escolar também deve fazer parte do planejamento didático. Cada instituição exige um direcionamento próprio, ou seja, a Educação Musical possui diferentes objetivos e técnicas pedagógicas, se considerarmos a atuação do professor em um conservatório e em uma escola regular, por exemplo.

Objetivo Geral

- Investigar a interferência do Letramento Musical sobre a qualidade da alfabetização.

Objetivos Específicos

- Identificar duas escolas regulares da rede pública de Belém – PA com realidades distintas: uma contando com o Ensino da Música estruturado e outra sem tal recurso; - Analisar a aplicação do Letramento Musical na instituição que dele dispõe (recursos materiais, professores e processos de avaliação); - Aplicar questionário de cunho qualitativo aos professores responsáveis pela alfabetização nas duas instituições; - Avaliar a produção e a interpretação textual de cinco alunos de cada instituição.

Metodologia

A pesquisa terá caráter qualitativo, do ponto de vista da análise da qualidade da alfabetização entre indivíduos que dispõem de Letramento Musical e aqueles desprovidos deste. O método de procedimento será o comparativo, uma vez que haverá um confronto diagnóstico entre a interpretação textual de indivíduos com e sem o Ensino da Música efetivamente inserido em sua rotina de estudos. Com relação ao método de abordagem, este terá caráter dedutivo, pois pretendemos extrair nossas conclusões a partir do confronto entre os dados coletados, formulando nossas conclusões particulares. Já os procedimentos para o alcance dos objetivos específicos seguirão a seguinte estrutura: a) As duas escolas selecionadas deverão, necessariamente, estar enquadradas na rede pública de ensino da cidade de Belém (estadual ou municipal). Uma delas deve contar com uma estrutura mínima para a realização do Letramento Musical (instrumentos musicais, professores com especialidade em música, carga horária constante e avaliações definidas). Já a outra instituição, para os efeitos dessa pesquisa, não deverá contar com tal estruturação. b) A instituição que contar com a estrutura de Letramento Musical será analisada a partir da observação da qualidade das aulas de música (recursos materiais, capacitação dos professores e aproveitamento dos alunos). c) A um professor de alfabetização de cada instituição, será aplicado um questionário fechado. O intuito dessa ferramenta será avaliar, a partir do ponto de vista do educador, o nível de aproveitamento dos alfabetizandos, mais especificamente relacionado à capacidade de interpretação textual. d) Com uma população estatística de dez alunos (cinco de cada instituição), será realizada uma avaliação básica sobre produção e compreensão da linguagem escrita, verificando o nível de autonomia de apropriação e utilização do texto observado (Letramento Alfabético). Após coletados, os dados serão compilados e confrontados na perspectiva diagnóstica da influência do Letramento Musical sobre tais processos de alfabetização. A obtenção das informações terá caráter tanto bibliográfico quanto de campo, uma vez que a realidade das instituições será constatada in loco. Por fim, nossas conclusões e consideração serão baseadas em tabelas e/ou gráficos construídos a partir da combinação entre a bibliografia pesquisada e as informações coletadas dos alunos e professores envolvidos no processo de alfabetização infantil, com ênfase na interferência do Letramento Musical sobre a qualidade desse processo.

Resultados Pretendidos

A partir de uma análise sistematizada acerca do Letramento Musical praticado em instituições regulares de ensino da cidade de Belém – PA, pretendemos identificar suas possíveis repercussões sobre a qualidade da alfabetização. Serão investigados processos didáticos, materiais disponíveis, estrutura física, capacitação do corpo docente, sistema de avaliação entre outros. Constatadas as condições de implementação do Ensino da Música, faremos uma (co) relação entre tais aspectos e o nível de aprendizagem da linguagem escrita por parte dos alunos. Em outros termos, buscaremos esclarecer a seguinte questão: os alunos que possuem o Letramento Musical em seu currículo escolar leem melhor do que aqueles que dele não dispõem? Caso os resultados sejam positivos com relação ao questionamento supracitado, disponibilizaremos nossos estudos para que sejam elaboradas propostas efetivas de combinação entre os letramentos Musical e Alfabético ou, até mesmo, a dialética entre a música e outras disciplinas, aproveitando seu potencial de desenvolvimento cognitivo global.

Referências

BARTON, D & HAMILTON, M. Local Literacies: reading and writing in one community. London, Routledge,1998.

BOTELHO, Laura Silveira; LEITE, Josieli Almeida de Oliveirta. Letramentos múltiplos: uma nova perspectiva sobre as práticas sociais de leitura e escrita. Juiz de Fora (MG): Granbery, 2011.

COSTA, Cynthia (Org.). Ensino da música na educação básica. Disponível em: http://educarparacrescer.abril.com.br/politica-publica/musica-escolas-432857.shtml Acesso em 03 Out. 2014.

FARES, Josebel Akel; RODRIGUES, Venize Nazaré Ramos. (Orgs.). Sentidos da Cultura. Belém: Eduepa, 2013. Cap. 4 - Saberes Culturais, Interculturais e Intertextuais (p. 209-279).

HOWARD, Walter. A música e a criança. São Paulo (SP): Summus, 1984.

LEMOS, Maya Suemi. Música nas escolas: ações da Funarte em prol da implementação da Lei 11.769. Revista da Abem, Porto Alegre, v. 24, 117 – 120, set. 2010.

MARTINIC, Sérgio. Saber popular e identidade. In: Educação popular: utopia latino- americana. São Paulo: Cortez; EDUSP, 1994.

MOURA, Ieda Camargo de; BOSCARDIN, Maria Tereza Trevisan; ZAGONEL, Bernadete. Musicalizando crianças: teoria e prática da educação musical. São Paulo (SP): Ática, 1989.

PEREIRA, Antônio Leal de Sá. Psicotécnica do ensino elementar da música. Rio de Janeiro (RJ): José Olympio, 1937.

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SUZIGAN, Geraldo de Oliveira; SUZIGAN, Maria Lúcia Cruz. Educação musical: um fator preponderante na construção do ser. São Paulo (SP): Balieiro, 1986.

SWANWICK, Keith. Música, mente e educação. Londres: Routledge, 1988.

XAVIER, Antonio C. dos Santos. Letramento Digital e Ensino. Disponível em: http://www.ufpe.br/nehte/artigos/Letramento%20digital%20e%20ensino.pdf Acesso em 01 Out. 2014.

SOB AS VESTES DA GUITARRADA: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE IDENTIDADE E MUDANÇA NA LAMBADA EM BELÉM DO PARÁ

Paulo Murilo Guerreiro do Amaral (GUERREIRO DO AMARAL, Paulo Murilo) [email protected] Universidade do Estado do Pará

Francinaldo Gomes Paz Júnior (PAZ JÚNIOR, Francinaldo Gomes) [email protected] Universidade do Estado do Pará

Resumo Este trabalho etnomusicológico discute contextos históricos, socioculturais, estéticos e musicais relacionados à formação de identidades no Estado do Pará a partir da lambada – música urbana eletrificada surgida na cidade de Belém (norte do Brasil, Amazônia oriental) durante a década de 1970 e resultante provável de mesclas entre gêneros musicais da região setentrional do país, do Caribe e de outros sítios da América Latina. A pesquisa que orientou o texto consiste em parte de uma investigação mais ampla, iniciada em 2012 no âmbito do Grupo de Estudos Musicais da Amazônia (GEMAM) da Universidade do Estado do Pará (UEPA), que tem por objetivo construir uma espécie de cartografia regional da “guitarrada”. Palavras-chave: guitarrada. Lambada. música (e identidade) no Pará (paraense; na/da Amazônia).

Abstract From inside the field of Ethnomusicology, this paper discusses historical, socio-cultural, aesthetic and musical contexts related to the formation of lambada’s identities in the State of Pará. Lambada means an electrified urban music that emerged in the city of Belém (Northern , Eastern Amazon) during the 1970s and presumable results of mixing of musical genres from the Northern region of the country, the and elsewhere in . The research that oriented this text consists in part of a broader investigation, which began in 2012 within the Group of Musical Studies of the Amazon (GEMAM) at the University of Pará State (UEPA), which aims to build a kind of regional mapping the "guitarrada".

Key-words: guitarrada. Lambada. music (and identity). Amazon music.

1. Apresentação

Em termos gerais, as “guitarradas” consistem em práticas e fazeres musicais que incorporam a guitarra elétrica ou sonoridades/modos de tocar alusivos a este instrumento. Dentre essas práticas e fazeres encontra-se a lambada, música e dança que se popularizou midiaticamente na região do Estado do Pará durante a década de 1980 e constitui o enfoque deste estudo. Enquanto gênero musical, a guitarrada pode ser compreendida como:

(...) composições instrumentais caracterizadas pela fusão de três ritmos principais, a cúmbia, o merengue e o carimbó, com notas de choro, maxixe e influência da Jovem Guarda. A guitarra tem, nas composições, uma função solística imperativa. Do [sic.] gêneros latinos, as guitarradas paraenses captam, centralmente a dinâmica dos harpejos. Na música latina, sobretudo caribenha, essa dinâmica é demarcada pelos instrumentos de sopro, com fraseados musicais sincopados. Sua transposição para o gênero paraense se dá por meio da substituição dos sopros metálicos pelas cordas elétricas, preservando a estrutura melódica desses ritmos, um desenho sempre sincopado (CASTRO, 2012, p. 5).

Em consonância com Castro, Lamen (2011a, p. 4) afirma que: “(...) a lambada é caracterizada por uma estética musical híbrida do Caribe, Amazônia e Nordeste brasileiro, bem como pelo uso proeminente de solo da guitarra elétrica [tradução nossa]”. 1 Por sua vez, a lambada define-se como: (...) uma música de pulso rápido, sincopado e caracterizado pela onipresença de riffs (de guitarra ou saxofone), característicos da maioria das músicas afro-urbanas, das Antilhas (por exemplo, zouk), e pan-africanas (por exemplo, rumba zairense). Por outro lado, a lambada é uma dança de par que se caracteriza por uma coreografia particularmente sensual, onde o contato estreito e permanente entre os corpos levemente vestidos dos dançarinos se cadencia através de movimentos de quadril sugestivos. Desta maneira, é o aspecto da dança que dá à lambada uma conotação particularmente erótica e que excede em muito a de outras “danças latinas” globalizadas (cúmbia, salsa, merengue) (MCGOWAN e PESSANHA apud GARCÍA, 2006, p.3 [tradução nossa]). 2

Compreender a lambada como tipo de música vinculada à guitarrada foi fundamental para este estudo, levando-se em conta que, se, por um lado, a guitarrada corresponde à presença da guitarra em expressões musicais regionais e/ou também a sonoridades e/ou modos de tocar determinados instrumentos, por outro consiste em gênero musical predominantemente tocado (não admitindo voz, a princípio) que recebeu o nome de “lambada instrumental”. Daí não se poder falar sobre lambada sem que se referencie também guitarrada. Existem, porém, situações de temporalidade e de mudanças culturais, musicais e estéticas que circunscrevem a lambada instrumental e a guitarrada como expressões de certo modo distintas e não significando a mesma coisa.

1 No original: “(…) the lambada is characterized by a hybrid Caribbean, Amazonian, and Northeastern Brazilian musical aesthetic, as well as by the prominent use of solo electric guitar”. 2 No original: “(...) una música de pulso rápido, sincopado y caracterizado por la omnipresencia de riffs (de guitarra o saxofón), característicos de la mayoría de las músicas afro-urbanas, antillanas (ej. zouk), y pan- africanas (ej. rumbacongolesa). Por otro lado, la lambada es una danza de pareja que se caracteriza por una coreografia particularmente sensual, en donde el contacto corporal estrecho y permanente entre los bailarines ligeramente vestidos se cadencia a través de sugestivos movimientos de cadera. De esta manera, es el aspecto de la danza que otorga a la lambada una connotación particularmente erótica y que sobrepasa con creces aquella de otras "danzas latinas" globalizadas (cumbia, salsa, merengue)”.

Em Belém do Pará, a lambada emergiu sob as formas cantada e instrumental, a primeira aludindo a uma sociedade moderna e cosmopolita, e a segunda revivendo a tradição de mestres que fundiram sonoridades regionais, nacionais e latino-americanas em um gênero denominado guitarrada ou lambada instrumental. Em outra perspectiva, enquanto a primeira, em seu tempo, lançou-se fortemente na indústria discográfica, ganhou popularidade e sustentou ídolos como Beto Barbosa (GARCÍA, 2006), a segunda, também em seu tempo, insuflou um movimento de reinvenção de uma tradição (HOBSBAWN, 2002), por um lado perdida no tempo-espaço, mas, por outro, fixada como símbolo de identidade cultural regional, ou ainda, tão cosmopolita quanto a forma cantada, em virtude do som da guitarra elétrica consignado na música. A lambada também se expandiu progressivamente no interior da Amazônia e em cidades do Nordeste brasileiro como Recife, Salvador e Fortaleza. Chegou até grandes metrópoles do Centro-Sul do Brasil, como Rio de Janeiro e São Paulo, e se estabeleceu em casas de shows denominadas “lambaterias” (GARCÍA, 2006). Entre vários artistas e grupos musicais que se fizeram notar na Amazônia, no Brasil e/ou em outros países, ganhou destaque o cantor Beto Barbosa, nascido em Belém e conhecido como o “Rei da Lambada”. Apesar de ter lançado o seu primeiro LP em 1985, foi somente quatro anos depois, com o arrebatador sucesso midiático do hit intitulado “Adocica”, que a carreira do artista despontou no cenário musical nacional. Além de Beto Barbosa, cantores como Fafá de Belém e Sidney Magal também teriam incorporado a lambada em sua discografia. Internacionalmente, o caso mais emblemático é o do grupo franco-brasileiro , que fez sucesso durante as décadas de 1980 e 1990, disseminando o gênero especialmente na Europa. A popularidade meteórica de Beto Barbosa e o sucesso da lambada para além dos limites da região amazônica podem ter corroborado mudanças culturais significativas para o gênero musical no espaço de tempo entre os dias de hoje e meados dos anos 1980. Um deles teria sido o desaparecimento progressivo de uma lambada mais internacionalizada, por sua vez coincidindo com o “desaparecimento” de Beto Barbosa da cena musical de Belém do Pará e com a retomada da lambada instrumental ou guitarrada, a partir de 2003, com os “Mestres da Guitarrada”, “consubstanciado (...) sob o propósito de reformular sonoridades criadas por três músicos populares paraenses há mais de trinta anos [durante a década de 1970], Mestre Vieira, Mestre Curica e Mestre Aldo Sena (...)” (GUERREIRO DO AMARAL, 2009, p. 209). O projeto “Mestres da Guitarrada”, idealizado pelo produtor musical Pio Lobato teve como um dos principais objetivos legitimar a lambada instrumental como expressão evocativa de memória coletiva popular, por um lado incorporando na música traços de regionalidade e de tradição, mas por outro valorizando a inventividade e a atualização em seus processos criativos. Nesse momento, a lambada instrumental passou a ser denominada guitarrada. Analogamente, a guitarrada tanto consistiria em gênero musical originalmente rural/artesanal, enraizado local e historicamente, quanto teria se transformado em música cosmopolita consolidada em Belém do Pará. O projeto foi inovador quanto a experiências musicais e processos midiáticos, a exemplo de sua intenção de promover uma leitura híbrida de saberes culturais e musicais a partir da reunião, em um único produto (o CD do Projeto “Mestres da Guitarrada” intitulado “Música Magneta”), de faixas originais e remixes de DJs, músicos e produtores do Brasil inteiro. À época aproximada da criação de os “Mestres da Guitarrada”, outros grupos musicais de lambada instrumental começaram a surgir na cena musical de Belém, a exemplo do La Pupuña, formado em 2004 por alunos do curso de Licenciatura Plena em Música da Universidade do Estado do Pará (Uepa). A efervescência da guitarrada no âmbito do trabalho acústico de grupos e artistas que emergiram e ainda emergem na cena musical de Belém conduziu-nos à possibilidade de compreender o papel da lambada na formação identitária da Amazônia tomando como base as suas práticas culturais expressivas.

2. Justificativa O advento e a popularização da lambada no Pará, na região Norte do Brasil de um modo geral, ou mesmo posteriormente em localidades como a Bahia (no Nordeste do país), coaduna-se a um processo histórico de “formação cultural” (TURINO, 2008) transnacional e extraterritorial – envolvendo o Caribe e outras regiões da América Latina – vivenciado em cidades como Manaus, Porto Velho, Macapá, Belém, e provavelmente em diversas zonas de fronteira no país setentrional. No caso de Belém, vale observar três situações, respectivamente observadas por Salles (1989; 1990), Souza (1997) e Guerreiro do Amaral (2009).

Em duas cartas endereçadas ao historiador José Ramos Tinhorão, o pesquisador paraense Vicente Salles comenta sobre o mercado de carne das Guianas suprido pela Ilha do Marajó (no norte do Pará), assim como a respeito do trânsito de embarcações e pescadores (amapaenses, guianenses e caribenhos) no litoral do Pará e da presença de mão de obra barbadiana na formação de nichos culturais em diferentes cidades do Norte brasileiro. Segundo o autor, gêneros como a cúmbia, o merengue, o mambo e a comanchera teriam aportado no Pará, a partir do início do século XIX, em decorrência desses intercâmbios. Admite ainda que estes tipos musicais foram primeiramente aproveitados em obras de compositores urbanos [registradas em partituras] (SALLES, 1989) e, mais tarde, já por volta da metade do século seguinte, adentraram o universo da cultura de massa através de gravações comerciais e transmissões radiofônicas. 3 Conforme Lamen (2011b, p. 149), “a Amazônia que a guitarrada nos permite ouvir é caracterizada não por isolamento, mas por proximidade aos países vizinhos do Caribe, não por um vazio, mas por um transbordo de cultura cosmopolita”. Considera ainda que, (...) [a guitarrada] em si resiste ao reducionismo regional, tanto na sua orientação estética cosmopolita, como nas suas origens no contrabando de discos estrangeiros (Farias 2009) e na escuta de transmissões radiofônicas estrangeiras (Lobato 2001), sem falar das suas andanças pelo Nordeste durante os anos 1980, onde serviu de inspiração para um fenômeno de ‘world music’ que deu volta ao mundo (LAMEN, 2011b, p. 149).

Na pesquisa intitulada “Tribos Urbanas” em Belém: Drag Queens – rainhas ou dragões? Souza (1997) comenta sobre as conexões caribenhas e latino-americanas por outra via, a do isolamento comercial, social e cultural do Pará em relação ao restante do Brasil. Segundo a autora, (...) era muito comum nesse momento [de 1920 a 1950], se ouvir contar que até mesmo as rádios de maior audiência eram de fora do país, o que gerava aqui, um desenvolvimento de padrões sociais e culturais bem próximos a de outras regiões da América Latina e do Caribe (SOUZA, 1997, p. 28).

Segue Farias (2008) destacando que: (...) a presença das rádios em Belém e no interior do estado foi decisiva para a mudança do gosto musical da população, trazendo inclusive a música caribenha a região. Por causa da posição geográfica distante, o Pará, no início das primeiras transmissões, permaneceu alheio as radio difusoras nacionais, situadas sobretudo em São Paulo e Rio de Janeiro. Durante muitos anos as emissões vindas de outros países, cujos sinais de frequência eram mais fortes que os nacionais, influenciavam

3 (Idem, 1990).

bastante a população. Transmissões das Antilhas, Guianas, Caribe chegavam com mais clareza aos aparelhos receptores espalhados pelo interior do estado (FARIAS, 2008, p. 68).

Vale ainda ressaltar que, “durante os anos 1970 e 1980, vários músicos da Amazônia desenvolveram um jeito de tocar a guitarra elétrica inspirado nas músicas caribenhas que tocavam direto nas aparelhagens [4] e rádios AM de Belém durante a madrugada.” (LAMEN, 2011b, p. 154).

Segundo Lamen, 5 no que diz respeito às culturas e suas práticas associadas à história e à constituição e evolução das expressões musicais regionais no Pará, reverbera em Belém um consenso, partilhado pela Academia, segundo o qual as tradições caribenhas e latino- americanas figuram de modo determinante. Por outro lado, afirma que muito pouco se conhece a respeito de como, para que e por que teriam ocorrido, bem como é importante desvelar processos de mudança cultural [musical] 6 e reinvenção dessas mesmas tradições. A formação cultural-musical da Amazônia, especialmente no Estado do Pará, intersecta, no campo da música popular, uma rede de conexões abrangendo estéticas, sonoridades, opiniões, agenciamentos, tempos e lugares. De um lado, e a partir do que se imagina a respeito de tais conexões, elaboram-se e legitimam-se discursos sobre identidades culturais regionais, incluindo as musicais. De outro, sobre as mesmas pouco ou quase nada foi investigado de maneira sistemática, o que pressupõe a necessidade de avanços no conhecimento a respeito de diferentes sonoridades, particularmente as caribenhas, relacionadas à formação cultural da região Amazônica e especificamente do Pará.

3. Referencial teórico O plano teórico da pesquisa foi construído em três eixos: um de caráter histórico versando sobre a lambada e a formação cultural regional; um segundo abrangendo problemas

4 As “festas de aparelhagem” constituem eventos festivos populares típicos das periferias de Belém do Pará e de localidades no interior do Estado. Vincula-se fortemente à cena local da música brega. “(...) Nas ‘festas de aparelhagem’ o palco é ocupado apenas por DJs, personagens estes que controlam enormes estruturas metálicas conhecidas localmente pelo nome de ‘aparelhagens’. Dentro destas estruturas se encontram computadores e uma variedade de equipamentos eletrônicos através dos quais os DJs tocam música e põem em ação efeitos visuais de naturezas diversas, tais como fumaça artificial, iluminação, ou mesmo, em alguns casos, movimentos hidráulicos que fazem as ‘aparelhagens’ se mover” (GUERREIRO DO AMARAL, 2009, p. 30). 5 Ibidem. 6 Comentaremos sobre mudança cultural e musical no item sobre o Referencial Teórico. da Etnomusicologia tais como o das “mudanças culturais”; e, por fim, referências no campo dos Estudos Culturais discutindo sobre construção de “identidades”, invenção de tradições, políticas públicas, patrimônio e sustentabilidade. No que concerne ao primeiro eixo, Lamen (2011a) observa relações entre a música regional e os referenciais caribenhos presentes na guitarrada, de forma mais geral, e na lambada, de forma mais estrita. Sua pesquisa demonstra ainda como a música da lambada traz à tona uma história de conexões móveis e cosmopolitas que extrapolam as fronteiras da Amazônia Legal. Outras contribuições se encontram em García (2007) e Castro (2012), que compreendem, respectivamente, a lambada inserida no contexto da globalização, e a guitarrada enquanto experiência sociocultural, em cujas cenas musicais evidenciam-se relações de sociabilidade e experiências intersubjetivas. O segundo eixo refere-se ao tema da mudança cultural e traz contribuições do etnomusicólogo Bruno Nettl (2005; 2006). Segundo o autor, mudança cultural implica em: (...) Mudanças e continuidades de estilo, repertório, tecnologia e aspectos dos componentes sociais da música [que] são manipuladas por uma sociedade, a fim de acomodar as necessidades tanto de mudança quanto de continuidade (NETTL, 2006, p. 16).

Outro aspecto referente à “mudança cultural” diz respeito aos padrões musicais que “(...) constituem indícios importantes dos rumos da mudança de uma sociedade e as alterações nos repertórios e na escuta [que] são igualmente reveladores das formas de construção da identidade” (NETTL, 2006 apud FERNANDES et al., 2008, p. 157). No que se refere à lambada, originalmente gravada de modo rudimentar em dois ou quatro canais e com som comprimido, o gênero era geralmente associado à marginalidade e à música de gafieira em áreas portuárias e ribeirinhas (ver LAMEN, 2011a). Atualmente, este gênero tem passado por um processo de mudança cultural, abandonando espaços de shows/festas populares e adentrado, com outro formato e aura (de guitarrada), um segmento do universo da música regional onde se encontram: músicos profissionais, inclusive com formação erudita; os mestres, que detêm o conhecimento tradicional acumulado por meio de gerações; posicionamentos do poder público em termos da valorização das culturas expressivas tradicionais da região; e, finalmente, o discurso ufanista que circunscreve a guitarrada (e não a lambada) como expressão típica daquele lugar e daquele povo. Neste sentido, a guitarrada compreende um movimento da lambada em direção “retrocedente” à tradição e contrária aos seus demarcadores identitários de contemporaneidade, cosmopolitismo, midiatização e ineditismo.

No que concerne ao terceiro eixo, partimos do pressuposto de que as tradições se modificam no tempo-espaço, ou mesmo que incorporam ressignificações em seus específicos contextos culturais. Neste sentido, a pesquisa se apropriou da noção de “invenção da tradição”, definida pelo historiador Eric Hobsbawn como “um conjunto de práticas (...) de natureza ritual ou simbólica, [que] visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado” (HOBSBAWN, 2002, p.8). A invenção de tradição ocorre ainda: [...] quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os padrões sociais para os quais as ‘velhas’ tradições foram feitas, produzindo novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis; quando as velhas tradições, juntamente com seus promotores e divulgadores institucionais, dão mostras de haver perdido grande parte da capacidade de adaptação e da flexibilidade; ou quando são eliminadas de outras formas. Em suma, inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta. 7

No contexto da invenção das tradições, a história da lambada/guitarrada se estabelece dentro de uma rede de conexões musicais com tradições e modernidades que se deslocam no tempo, se desterritorializam, tornam-se híbridas, midiatizam-se de um jeito ou de outro, transformam-se ou se mantêm. Enquanto a guitarrada retomou, a princípio, uma tradição musical antepassada, a lambada teria emergido nos fins da década de 1980 como música contemporânea, cosmopolita, midiática e pretensamente inédita. Por outro lado, a guitarrada também se lança em um desafio atual, do presente. Pretende revisitar o passado, mas de modo diferente, reinventando a tradição. Daí a perspectiva de uma leitura híbrida, conforme mencionado anteriormente. Daí o porquê de não ser chamada de lambada instrumental (referindo à tradição antepassada) e sim de guitarrada (referindo à contemporaneidade). Outra questão abordada na pesquisa considerou processos de mudança cultural vinculados à construção musical regional identitária por meio da lambada. Segundo Hall

7 (Idem, Ibidem, p. 12-13 [grifo nosso]).

(2006), a formação de identidades pode ser compreendida como um processo consciente, socialmente interativo e historicamente construído. Destaca ainda que, O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. [...] À medida em que [sic.] os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2006, p. 13).

Na esteira do que considera Hall acerca do câmbio de identidades, consideramos que a guitarrada e lambada produzem-se culturalmente de maneira aparentemente antagônica. Enquanto a primeira abala “os quadros de referência” cultural (HALL, 2006, p. 7) e vai ao encontro de novas identidades e do indivíduo moderno, fragmentado e portador de múltiplos referenciais (apesar de incorporar o discurso da tradição), a segunda parece vivenciar o movimento oposto, voltando-se em direção a matrizes ditas tradicionais (no formato de guitarrada ou lambada Instrumental), mesmo tendo sido concebida sob os auspícios de melodias cantadas, da dança sensual e ao som cosmopolita da guitarra. No âmbito desta pesquisa, a formação de identidades envolve ainda duas questões que, a nosso ver e de um modo geral, parecem permear a trajetória das expressões musicais regionais do Pará relacionadas à tradição das “guitarradas”: uma delas diz respeito à criação, disseminação e consumo de músicas consideradas tradicionais ou modernas, a exemplo do carimbó e da lambada cantada, respectivamente; a outra, por sua vez, encampa discussões e juízos de valor sobre gosto musical, ou seja, as músicas podem ser consideradas “boas” ou “ruins”, dependendo dos hábitos e modos ou estilos de vida implicados, no sentido referido por Bourdieu (1994). Para este sociólogo, o estilo de vida corresponde a “um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos, mobília, vestimentas, linguagem ou héxis corporal, a mesma intenção expressiva” (BOURDIEU, 1994, p. 83).

No que diz respeito à sustentabilidade e à patrimonialização imaterial de saberes e práticas musicais expressivas, 8 agentes culturais lançam mão de políticas endógenas e

8 “Entende-se como ‘patrimônio cultural imaterial’ as práticas, representações, expressões, conhecimentos e saber-fazeres – assim como os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, quando for o caso, os indivíduos reconhecem como fazendo parte de seu patrimônio cultural. Esse patrimônio cultural imaterial, transmitido de geração a geração, é permanentemente exógenas valorativas de identidades (re) construídas e de preservação de tradições. As políticas endógenas se referem àquelas emergidas da “voz nativa” e no tempo-espaço dos contextos implicados, a exemplo do desejo de “reanimar” expressões que estejam ameaçadas de “desaparecimento” e/ou fragilizadas na memória popular. Já as exógenas, pretensamente hegemônicas e de certo modo imaginadas como antagônicas às endógenas (estas relacionadas às culturas pretensamente subalternas), encampam perspectivas do poder público e/ou corporativo, a exemplo da criação de demandas para o turismo e outros setores institucionalizados da economia criativa (ver GUERREIRO DO AMARAL & PAZ JÚNIOR, 2013). Por um lado o poder público promove turismo cultural, assim como organizações sem fins lucrativos começam a atuar empresarialmente buscando prosperidade no mundo dos negócios, em concordância com este mesmo poder público, ou não. Por outro há descontentes com os modelos de negócios que agenciam o aparecimento de culturas populares em festivais ou com o fato de ter-se tornado o turista um mero consumidor de música, de dança, de cerâmica, seja lá o que for.

4. Métodos/técnicas de pesquisa No campo da etnomusicologia, pesquisadores têm optado pela elaboração de designs metodológicos específicos para cada investigação, considerando a abordagem pretendida e as idiossincrasias de seu objeto de estudo. Nesse sentido, têm-se buscado estruturar e conduzir a pesquisa tendo consciência dos métodos e técnicas que possibilitem uma investigação condizente não apenas com a natureza do objeto, mas também com a maneira como é construído, como afirma Queiroz (2006, p. 87): Na estruturação e condução do seu trabalho, o etnomusicólogo precisa ter consciência das ferramentas necessárias para alcançar os objetivos propostos, definido, assim, a base metodológica que alicerçará a pesquisa, com todos os seus meandros e particularidades. Nesse sentido, a opção e a definição de uma metodologia de pesquisa que possibilite a investigação sistemática, coerente e comprometida com a realidade musical estudada, é um dos primeiros problemas que se coloca face a face com o pesquisador. Para lidar como [sic.] essa questão é necessário um conhecimento abrangente das possibilidades e das perspectivas da área, bem como da ciência em geral, tendo em vista que, dessa maneira, o estudioso poderá conduzir a pesquisa por caminhos sólidos que garantam, com o máximo de

recriado pelas comunidades e grupos em função de seu meio, de sua interação com a natureza, e de sua história, e lhes proporciona um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo assim para promover o respeito pela diversidade cultural e a criatividade humana” (UNESCO, 2003, p. 4).

precisão possível, a adequação entre o planejamento do trabalho e a realidade do fenômeno estudado.

Em termos metodológicos esta pesquisa apresentou uma abordagem qualitativa, que consiste em uma investigação de caráter analítico, com enfoque indutivo que busca o significado que as pessoas dão às coisas, levando em consideração que a interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados são os focos principais dessa abordagem (ver MORESI, 2003). A pesquisa qualitativa também “considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em números.” 9 A investigação estruturou-se em duas etapas: uma de levantamento bibliográfico e pesquisa documental, e outra de pesquisa de campo por meio de abordagem etnográfica (em andamento) e observação-participativa de performances musicais. Por etnografia entende-se: (...) a escrita sobre as maneiras que as pessoas fazem música. Ela deve estar ligada à transcrição analítica dos eventos, mais do que simplesmente À transcrição dos sons. Geralmente inclui tanto descrições detalhadas quanto declarações gerais sobre a música, baseada em uma experiência pessoal ou em um trabalho de campo. As etnografias são, às vezes, somente descritivas e não interpretam nem comparam, porém nem todas são assim (SEEGER, 2008, p. 239).

Na abordagem etnográfica, (...) tanto o ouvir como o olhar não podem ser tomados como faculdades totalmente independentes no exercício da investigação. (...) É nesse ímpeto de conhecer que o ouvir, complementando o olhar, participa das mesmas condições desse último, na medida em que está preparado para eliminar todos os ruídos que lhe pareçam insignificantes, isto é, que não façam nenhum sentido no corpus teórico de sua disciplina ou para o paradigma no interior do qual o pesquisador foi treinado” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 21-22, grifo do autor).

Para Cambria (2004, p. 5), a base do trabalho etnográfico é a chamada “observação participante”. Neste tipo de abordagem o pesquisador participa das atividades do grupo pesquisado e, a partir de sua inserção em campo, incorpora saberes relacionados à cultura expressiva que está investigando. O levantamento bibliográfico encampou referências específicas de estudos sobre os gêneros musicais lambada/guitarrada e afins, bibliografia etnomusicológica voltada a temas

9 (Idem, ibidem, p. 8-9). como “mudança cultural/musical”, além de trabalhos abrangendo a formação de identidades no campo dos Estudos Culturais, com vistas ao embasamento e definição do marco teórico. A pesquisa documental foi realizada no Museu da Universidade Federal do Pará (Acervo Vicente Salles), na hemeroteca 10 da Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves (Centur) e na Hemeroteca Digital Brasileira. O intento foi buscar informações sobre a lambada e a guitarrada nos últimos 50 anos, aproximadamente (a partir de 1970), bem como, considerando esse mesmo lapso de tempo, sobre contextos musicais relacionados à formação cultural regional/local. Para a segunda etapa da pesquisa (trabalho de campo), em andamento, lançamos mão de um ensaio etnográfico com observação-participação em performances musicais. A participação em performances musicais está ocorrendo paralelamente à escuta musical de gravações de lambada e guitarrada, uma vez que pretendemos estabelecer parâmetros que possibilitem evidenciar as possíveis mudanças sofridas pelo gênero no plano estritamente sonoro. A abordagem etnográfica apresenta-se como importante ferramenta para esse estudo, uma vez que contribui para o entendimento de questões envolvendo mudança musical, processos sociais/musicais da lambada/guitarrada e contextos contemporâneos relacionados à cena musical popular da guitarrada. A observação-participante em eventos de performance tem sido substancial à compreensão da lambada sob os planos sonoro e de contextos de consumo musical, levando-se em conta, em ambos os casos, situações de mudança cultural. A observação participante compreende o registro de campo por meio de diários. Os chamados “diários de campo”, (...) contextualizam elementos que vão, posteriormente, alavancar a memória do pesquisador, situar história e geograficamente o contexto da coleta dos dados registrados e orientar desdobramentos analíticos para uma etnologia, e podem ‘facilitar a vida’ de outros e novos pesquisadores naquele campo (MELLO, 2011, p.23).

Como instrumento privilegiado de coleta de dados nós utilizamos entrevistas semiestruturadas gravadas em áudio e transcritas na íntegra, seguindo normas comentadas por Manzini (s.d., p. 7):

10 Por hemeroteca, entende-se: (...) a seção da biblioteca composta de recortes de matérias publicadas e jornais, ordenados por assunto. (...) [O] objetivo principal é proporcionar ao leitor fontes atualizadas de pesquisa (FUNDAÇÃO CULTURAL DO PARÁ TANCREDO NEVES, 2014).

(...) 1) evitar as maiúsculas em início de turno; 2) utilizar uma sequenciação com linhas não muito longas para melhorar a visualização do conjunto; 3) indicar os falantes com siglas ou letras do nome ou alfabeto; 4) não cortar palavras na passagem de uma linha para outra (...) dentre outras.

Em relação às entrevistas, estamos coletando narrativas de colaboradores envolvidos direta e/ou indiretamente com a cena musical da lambada/guitarrada, com vistas à compreensão dos contextos socioculturais, estéticos e sonoros do fazer musical envolvendo estes gêneros. Três entrevistas já foram realizadas, a primeira com o jornalista paraense Vladimir Cunha, ocasião em que conversamos sobre a cena musical da cidade de Belém (Capital do Estado do Pará) ao longo das décadas de 70 e 80 e a respeito de mudanças no gosto estético- musical da música popular regional. A segunda resultou do encontro com o guitarrista e produtor musical Pio Lobato, importante protagonista cultural ligado à divulgação do gênero musical denominado guitarrada através do projeto “Mestres da Guitarrada”. Já a terceira deu- se com os músicos Manoel Cordeiro e Felipe Cordeiro, ocasião em que conversamos sobre a cena atual da música popular em Belém do Pará e sobre a relação Caribe-Pará na formação cultural regional/local. Nossa participação em performances musicais, por seu turno, vem se dando no evento cultural “Quintarrada”, que vem sendo realizado semanalmente na cidade de Belém, sob a coordenação do guitarrista Félix Robatto. O repertório inclui guitarrada, lambada, cúmbia, merengue e carimbó. Os registros de áudio e imagem (filmagem e fotografia) estão sendo realizados com câmera digital e gravador portátil. Utilizamos a técnica de diário de campo para os registros das impressões e constatações no campo de observação, possibilitando sim futuras análises. A observação participante de performances está ocorrendo paralelamente às escutas musicais. Assim, no plano de investigação sonora da pesquisa, estão sendo efetuadas escutas musicais de composições de Beto Barbosa (o “rei da lambada”), dos “Mestres da Guitarrada”, do grupo musical franco-brasileiro Kaoma e obras individuais dos mestres Vieira, Aldo Sena e Curica, com o objetivo de perceber no plano sonoro as possíveis mudanças ocorridas no gênero musical.

6. Andamento da pesquisa e considerações

Ao iniciarmos nossa reflexão sobre contextos socioculturais, estéticos e propriamente musicais vinculados às identidades da lambada, apontamos que, apesar de traços que distinguem a lambada da guitarrada (já comentados), vale sugerir algumas aproximações entre estes gêneros musicais. Afinal de contas, e por um lado, mesmo sendo marcadamente (mas não exclusivamente) instrumental e não vocal, a guitarrada incorpora elementos da lambada, a começar pela própria noção de lambada instrumental. Por outro lado, a lambada dos anos 1980 também incorpora elementos da guitarrada, ainda que esta última tenha ressurgido, enquanto gênero musical, quase vinte anos mais tarde. A utilização da guitarra elétrica e as conexões com sonoridades caribenhas e latino-americanas revelam em ambas uma feição comum presente em variadas expressões musicais que emolduram a formação cultural regional. Outra aproximação dá-se a partir da própria definição de lambada, que se caracteriza pela presença de síncopas, riffs de guitarra ou saxofone (GARCÍA, 2006), e também pela combinação de gêneros nacionais e “de fora”, a exemplo de gêneros latino-americanos. De todo modo, o mais comum é percebermos referências à guitarrada e à lambada como expressões diferenciadas, tanto em termos estritamente sonoros quanto em relação aos demarcadores identitários produzidos sobre estas músicas, apesar das suas aproximações. No que concerne ao auge da lambada, as experiências internacionais de Beto Barbosa encamparam contratos para lançamentos de discos no exterior e turnês nos Estados Unidos e em países europeus tais como Portugal, Alemanha, Inglaterra, França, Itália e Bulgária. Estas atividades teriam se concentrado na virada da década de 1980 para a seguinte. 11 No Brasil, o primeiro contexto de visibilidade para Beto Barbosa talvez tenha sido criado treze anos antes, em 1976, quando do lançamento da canção de rock intitulada “A Volta do Rock”. Três anos mais tarde, a música se tornou faixa de um disco produzido pelo cantor, em parceria com outro músico. O artista teria ainda lançado outro disco, de nome “Rock das Cocotinhas”, 12 antes de adentrar o universo da lambada. Ao impacto de “Adocica” sucederam a participação de Beto Barbosa em programas televisivos brasileiros de grande penetração sociocultural, 13 premiações ao cantor de Discos

11 A província do Pará (1998). 12 O Estado do Pará (1988), 13 A província do Pará (1989). de Ouro e Platina, 14 além de gravações de discos, divulgação de músicas em telenovelas 15 e turnês realizadas em território nacional. Já no que diz respeito ao seu declínio, estabelecem-se como importantes desdobramentos desta pesquisa o mencionado desaparecimento progressivo de Beto Barbosa da cena musical da lambada em Belém do Pará, bem como o da própria lambada, que ao longo das décadas de 1980 e 1990 experimentou contundente visibilidade regional, nacional e internacional. A partir de contatos que temos estabelecido com artistas atuantes de guitarrada, nos tem sido possível considerar que a lambada, assim como a guitarrada, tem hoje vivenciado experiências de reinvenção de tradição. A lambada não teria simplesmente desaparecido, acompanhando o provável e gradativo declínio de popularidade do arauto Beto Barbosa da cena musical e artística popular local. A guitarrada, por seu turno, não teria sido revisitada por protagonistas desta cultura expressiva se estes, no tempo-espaço de suas trajetórias individuais, não tivessem incorporado aos seus respectivos saberes e fazeres (incluindo a criação musical) referenciais de urbanidade, hibridismo e cosmopolitismo caracterizadores da lambada. Exímio guitarrista e parceiro de seu filho Felipe Cordeiro, Manoel Fernandes Cordeiro, que hoje se destaca na cena da guitarrada em Belém do Pará, foi fundador da extinta Banda Warilou, das mais célebres durante a fase áurea da lambada nesta localidade. Contradizendo um provável preceito segundo o qual toda tradição reinventada não deveria ser mais tradicional que a sua tradição predecessora, a guitarrada de hoje, desde o advento do “Mestres da Guitarrada”, vem buscando retomar e fortalecer a velha tradição dos mestres da cultura popular, ainda que alinhada a uma proposta estética de mudança cultural e musical voltada a uma leitura contemporânea de uma prática cultural antepassada, rural e tradicional. E foi a partir daquele momento que, sob as vestes de guitarrada, a lambada teria regressado à cena musical local de modo mais vigoroso. No tocante ao tema da identidade e aos desdobramentos futuros da pesquisa com as “guitarradas”, apontamos a necessidade de avanços a respeito do conhecimento sobre músicas envolvidas na formação cultural regional paraense e amazônica de modo geral, em especial as latino-americanas e caribenhas. Isto tendo em vista se poder discutir com mais propriedade sobre mudanças culturais e construção de identidades.

14 A Província do Pará (1989). 15 A Província do Pará (1994).

Referências Bibliográficas

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UM CANTO DE LUZ: UMA ANÁLISE ETNOMUSICOLÓGICA DAS MÚSICAS DE CLARA NUNES

GUEDES, Samuel Felipe Da1 [email protected] REIS, Arlisson Rocha dos2 [email protected] POTIGUAR JUNIOR, Petrônio Lauro Teixeira3 [email protected]

A produção ora apresentada é parte integrante de um projeto de pesquisa denominado “Um ser de Luz: uma análise etnomusicológica das músicas de Clara Nunes” do programa institucional de bolsas de iniciação cientifica da UEPA/CNPq, que tem como objetivo analisar, sob a ótica da etnomusicologia, as letras das músicas de Clara Nunes no tempo e no espaço em que elas foram compostas, lançando um olhar para fatores marcantes inseridas nelas, a exemplo do sincretismo religioso, características fundamentais nas produções musicais de clara Nunes. A metodologia utilizada foi, inicialmente, pesquisas bibliográficas relativo à vida da cantora, somadas a ferramentas da internet, que nos possibilitaram ter acesso a todos os álbuns e letras de músicas da referida cantora. Como resultado parcial, detectamos que as letras das músicas de Clara Nunes, tem um forte apelo religioso em especial voltado à umbanda, bem como, uma imprescindível demonstração da construção histórica da cultura afro-brasileira, reforçando nossas hipóteses iniciais sobre a relação imprescindível entre música e cultura existente nas músicas interpretadas pela cantora em tela.

Palavras Chave: Música. Etnomusicologia. Sincretismo religioso.

INTRODUÇÃO A produção ora apresentada é parte integrante de um projeto de pesquisa denominado “Um ser de Luz: uma análise etnomusicológica das músicas de Clara Nunes” do programa institucional de bolsas de iniciação cientifica da UEPA/CNPq que se debruçou na interpretação etnomusicológica. A análise e interpretação de músicas tem se tornado, no campo acadêmico, um instrumento que revela as várias faces de uma música ou músicas e, fundamentalmente, as características políticas e culturais de alguns cantores-compositores. O viés aqui dado é claramente antropológico, especificamente, da etnomusicologia, que analisa

1 Graduando do Curso de Licenciatura em Música da Universidade do Estado do Pará 2 Graduando do Curso de Licenciatura em Música da Universidade do Estado do Pará 3 Antropólogo e Mestre pela UFPA, professor pesquisador da UEPA Santarém a musica contextualizadamente na busca de entender sua forma e construção, tendo como foco principal a produção música da cantora Clara Nunes.

OBJETIVO

Analisar, sob a ótica da etnomusicologia, as letras das musicas de Clara Nunes no tempo e no espaço em que elas foram compostas, lançando um olhar para fatores marcantes inseridas nelas, a exemplo do sincretismo religioso, características fundamentais nas produções musicais de Clara Nunes.

METODOLOGIA

A abordagem utilizada foi antropológica de cunho etnomusicológico, sem direcionar a atenção para a musicologia, que é estritamente um tipo de estudo dos musicólogos. Nessa perspectiva a música produzida no tempo e no espaço, segundo a etnomusicologia, reflete características de uma determinada cultura (PINTO: 2008).

A pesquisa, via internet, de documentários, depoimentos de artistas e site que tratam especificamente do perfil da cantora, foram basilares para as análises aqui realizadas. Contribuíram para tais reflexões ouvir as músicas da cantora em série de CDs lançada pela empresas fonográficas no Brasil, cujas coletâneas de Clara Nunes estão presentes.

REFERENCIAL TEÓRICO

A etnomusicologia tem se tornado, no campo acadêmico, uma ferramenta que elucida várias faces de música dentro de um contexto mais amplo (MUKUNA: 2008), não se limitando a estudar “o som pelo som”. Merriam (1964), em seu livro The Anthropology of Music, aponta para uma “antropologia do som”, vertente apontada também por grandes etnomusicólogos contemporâneos como Nettl e Sandroni. As discussões que permeiam no meio acadêmico, em especial a Associação brasileira de Etnomusicologia (ABET) apontam para um estudo pautado na interdisciplinaridade. Lopes, dentre outros autores, apresenta uma perspectiva de “metodologias conexas” da etnomusicologia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como resultado parcial, detectamos que as letras das músicas de Clara Nunes, tem um forte apelo religioso em especial voltado à umbanda, bem como, uma imprescindível demonstração da construção histórica da cultura afro-brasileira, reforçando nossas hipóteses iniciais sobre a relação imprescindível entre música e cultura existente nas músicas interpretadas pela cantora em tela, conforme descrito abaixo:

A DEUSA DOS ORIXAS

Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar Mas Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar (3X)

Yansã penteia os seus cabelos macios Quando a luz da lua cheia clareia as águas do rio Ogum sonhava com a filha de Nanã E pensava que as estrelas eram os olhos de Yansã

Mas Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar Mas Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar

Na terra dos orixás, o amor se dividia Entre um deus que era de paz E outro deus que combatia Como a luta só termina quando existe um vencedor Yansã virou rainha da coroa de Xangô

Mas Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar mas Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar

Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar mas Yansã, cadê Ogum? Foi pro mar

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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