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edição 142

desde abril de 2000 O jornal de literatura do Brasil

Curitiba, fevereiro de 2012 | próxima edição 2 de março | esta edição não segue o novo acordo ortográfico

arte: ricardo humberto

Não trato a literatura com romantismo, nem como se fosse algo fácil. Escolho a história, tento contá-la sem medo, todavia sempre desconfiando da qualidade daquilo que produzi.” Paulo Scott • 4/6

Homem do mundo Crônicas e cartas apresentam um Otto Lara Resende interessado em tudo o que acontecia no chamado espetáculo da vida • 12/14

A busca da leveza Em Italo Calvino, o ensaísta e o ficcionista andam de mãos dadas, jamais ensimesmados em mirabolantes e herméticos arroubos filosóficos • 20/22 fevereiro de 2012 2

: : eu recomendo : : Christian Schwartz Cartas : : [email protected] : : Liberdade

No Facebook liberdade

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS Liberdade, de Jonathan Franzen, o ro- Jonathan Franzen O Rascunho é um excelente mance estrangeiro mais falado (só espere- Companhia das EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIASjornalOTRO de OJO (e sobre) literatura mos que também lido...) no Brasil ultima- Letras feita nesta terra brasilina. mente, levou muitos a se perguntarem se a 334 págs. Es c o b a r Fr a n e l a s • Via Fa c e b o o k literatura de ficção não estaria retomando a posição de influência que algum dia já teve. Lá fora, Franzen chacoalhou o esta- Muito bom o jornal Rascunho! blishment político e a grande mídia com Jornalismo literário e cultural do essas 600 páginas que formam um vasto melhor nível. Parabéns pela coluna, painel da América atual, pós-11 de Setem- Affonso Romano! bro, traçado a partir da trajetória dos qua- Jó i s Al b e r t o • Via Fa c e b o o k tro membros da família Berglund. E mais: seu livro anterior, As correções — outras Rascunho, jornalismo literário 600 páginas no mesmo estilo mural de necessário em tempos sombrios uma época, aqui os anos 80 e 90 —, já ar- de ignorância e vale-tudo na rebatara por igual críticos e leitores. Quan- indústria cultural. to a Liberdade, acusaram-no por aqui de Ri c a r d o Le ã o • Via Fa c e b o o k conservadorismo na forma — “um roman- ção do século 19” que, além disso, traria Jornal porreta! Li umas coisas a marca (o pecado?) original do romance como gênero: o realismo. Não faria senti- Christian sobre ficção e realidade que me Schwartz deixaram cruzando o abismo sobre do emular, hoje, Guerra e paz, disseram. o fio da navalha. Gosto de gente Ok, ok. Mas lá vai: li essas irresistíveis É professor universitário, que pensa; me vi aí. Oxalá, vida 1.200 páginas de uma vez e com voracida- jornalista e tradutor. de — e, por isso, eu recomendo. Vive em Curitiba (PR). longa! Sou um seguidor. Cl á u d i o Le a l • Via Fa c e b o o k

Interessantíssima a entrevista com a escritora Adriana Lunardi. : : translato : : eduardo ferreira Ya r a So u z a • Via Fa c e b o o k

Continuidade Quero parabenizar toda equipe As superstições que do Rascunho pela continuidade. Fico feliz em poder fazer parte da história de vocês. assombram a tradução Ma r c o Va s q u e s • Florianópolis – SC

Pa i o l Literário Leio sempre e guardo as superstição assombra o mundo inundar por enxurradas de interpretações A suposta estabilidade do original lhe de formas variadas. Soprada diferentes e, às vezes, conflitantes. dá aura de texto sagrado e intocável. A tradu- reportagens do Paiol Literário. pela irracionalidade, acende a O original se apresenta como alvo mó- ção é fator de desestabilização que vem pro- Procuro nelas material para minhas esperança e atiça o medo. Atua vel, que não se deixa capturar, em sua intei- fanar essa impassível permanência. Não só a palestras, para fechar com as A com força também no campo literário, reza, com facilidade — às vezes nem mesmo tradução, claro. Interpretações heterodoxas minhas opiniões, para discordar especialmente na tradução da literatura. com muita dificuldade. Móvel em muitos podem funcionar igualmente como fator de das mesmas. Enfim, para aprender. A crença na superioridade do texto origi- sentidos, estrutura de inúmeras e comple- desestabilização — e serão duramente criti- Acabo de ler as entrevistas do nal, em relação a sua tradução, é supers- xas articulações, trajeto de muitas veredas e cadas, como as traduções por vezes o são. Nuno Ramos e Ronaldo Correia tição forte e difícil de debelar. A razão pa- rio de muitos meandros. Como dar conta de O texto somente não faz o original. de Brito. Esta última, achei-a rece ser outra crença, ainda mais forte, tanta possibilidade? O tradutor se esmera Há que haver uma interpretação colada a belíssima. O texto, as opiniões, na existência de textos estáveis, perma- no deixar o máximo de pontas soltas, como ele, que lhe dê sentido — a interpretação, a sensibilidade, o discurso, o nentes ou definitivos. no original. Outras soltas ficam — estas digamos, ortodoxa, que funcione como humanismo. Parabéns, mais uma O original ostenta, em geral, a cla- não intencionais, criaturas das novas arti- sua versão autorizada. A tradução poderá vez, por este projeto cultural. ra imagem de texto consolidado. Mas culações do novo texto. As ligaduras — se ou não decalcar a versão autorizada. Caso Se r g i o Na p p • Po r t o Al e g r e – RS não é. Não são poucos os autores que, na necessárias ou possíveis — serão feitas pelo dela se descole, não apenas representará o releitura, desejam modificá-lo. Alguns o leitor. A sombra de uma ou outra incom- natural processo de desorganização-reor-

Re s i s t ê n c i a fazem, em edições posteriores. Mesmo preensão sempre permanecerá pairando. ganização do texto em outra língua, mas Estou tomando conhecimento quando o texto não se modifica, altera-se Experiência normal de todo leitor. poderá significar verdadeiro desvio rumo sua interpretação — do próprio autor ou Essas imagens contrastam com a ilu- a tecido textual distinto. do jornal Rascunho, onde de outrem. Sua estabilidade é posta em são da estabilidade que nos é tão cara — e da Em qualquer dos casos — ortodoxia felizmente a literatura encontra xeque. Pouco resta de permanência. qual, de certa forma, precisamos para con- ou heterodoxia — permanece a superstição espaço. Para minha alegria o A tradução é mais um degrau na ceituar o original. É essa solidez que lhe con- da inferioridade das traduções — apontada mundo das letras ainda resiste a escada descendente que leva do Olimpo fere valor e beleza — qualidades essenciais, por Borges, entre outros. Superstição que tanta burrice, alienação globalizada. à planície costeira. Escada cheia de bi- aliás, para transformá-lo em produto. não poupa ninguém, bem incutida que está Poderemos ter esperança de furcações, comparável ao rio que se abre O mesmo princípio vale para o texto no DNA da espécie. Traduziu, transigiu — um Brasil menos inculto? em delta antes de desaguar no oceano. traduzido, que precisa se escorar na fir- necessariamente. E as concessões não serão Espero que sim. Por isso, Nada nesse processo aponta para a per- meza e na invariabilidade do original para sempre unanimemente aceitas: o que nos desejo vida longa ao jornal. manência. Tudo parece indicar turva in- afirmar-se, por sua vez, como novo origi- separa da controvérsia pode ser uma ques- El s o n Al e g r e t t i Ro d r i g u e s definição, terreno de aluvião que se deixa nal do mesmo texto em outra língua. tão de vírgulas. Versões homéricas. • Os a s c o – SP

Envie carta ou e-mail para esta seção : : : : com nome completo, endereço e telefone. rodapé Rinaldo de Fernandes Sem alterar o conteúdo, o Rascunho se reserva o direito de adaptar os textos. As correspondências devem ser enviadas para: Al. Carlos de Carvalho, 655 • conj. 1205 • CEP: 80430-180 • Curitiba - PR. O namoro das páginas: Os e-mails para: [email protected]. literatura e história (4)

ejamos como o debate acerca da de algum modo, inventado pelo historiador. se baseia na hipótese de que o discurso relação entre literatura e história Hayden White, neste ponto, põe a questão histórico se funda num duplo movimento: se situa em autores mais recentes de que todo relato histórico está a serviço do 1) a fidelidade ao passado (a partir dos do- V(alguns deles em diálogo, aberto fato examinado. Haveria uma correspon- cumentos de que o historiador dispõe); 2) ou tácito, com Aristóteles). Hayden White dência forte entre a construção narrativa e a utilização de uma forma para dizer esse (Meta-história: a imaginação histó- o acontecimento de que o historiador tra- passado (ou a armação de uma intriga apro- rica do século XIX. Trad. José Laurênio ta. Isto é que garantiria a verossimilhança priada a esse passado). Isto significa dizer de Melo. 2a ed. São Paulo: EDUSP, 1995) do relato, o seu poder de persuasão — e o que o historiador, antes de fazer a sua nar- entende que a história é uma narrativa en- faz passar por verdadeiro. É o mesmo que rativa/interpretação de um fato, seleciona e tre outras. O historiador tem como tarefa ocorre com uma narrativa literária. White, agrupa os documentos disponíveis de uma mais importante produzir uma versão plau- com isso, tenta combater uma concepção de certa maneira. Ou seja, configura os acon- sível do passado. De algum modo, ele cria história — em especial, a história positivista tecimentos de antemão, desenha itinerá- um passado. Daí a idéia de White de que a do século 19 — que apostaria em critérios rios. Essa armação de um enredo seria uma obra histórica é um artefato verbal — como científicos fechados, tomando como mode- operação poética. Entrariam nela, de algum o é a obra literária. A narrativa historiográfi- lo os métodos das ciências naturais. Nesse modo, componentes imaginários — ou, pelo ca, para ele, é artefato verbal na medida em sentido, história é, para ele, mais literatura menos, arbitrários. Se a obra histórica é que tenta ser um modelo de compreensão do que ciência. A preocupação de Hayden uma representação do passado, a armação de acontecimentos passados. As formas da White em ver a obra histórica como estru- da intriga, repita-se, é uma representação narrativa historiográfica têm mais a ver com tura narrativa que se quer um modelo do de antemão desse passado. a literatura do que com a ciência. E o conte- passado faz o ensaísta propor uma teoria údo da história pode ser encontrado como, dos tropos. A tropologia de White, assim, CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO. fevereiro de 2012 : : quase-diário : : affonso romano de sant’anna 3

o jornal de Literatura e televisão (na França) literatura do brasil fundado em 8 de abril de 2000

Rascunho é uma publicação mensal da Editora Letras & Livros Ltda. 18.01.2012 Também no programa, depoi- exercício ficcional. O ensaísta neste que vai receber a Légion d’honneur, Rua Filastro Nunes Pires, 175 • casa 2 os dois anos em que dei mento de Olivier Todd — Un fils sentido é semelhante ao romancista: leva consigo o garoto e o escândalo CEP: 82010-300 • Curitiba - PR aulas em Aix-en-Proven- rebelle. Ele diz algumas coisas sobre criar metáforas que dêem conta da aparece. Passado o terremoto, daí a (41) 3527.2011 [email protected] www.rascunho.com.br ce, via semanalmente o Sartre, coisas que eu e Marina já haví- interpretativa do real. poucos anos ela morre. O rapaz, de tiragem: 13 mil exemplares Nnotável programa Apos- amos conversado quando publicamos nome Raul, casa-se, constitui família. trophe; Bernard Pivot entrevistava no JB uma longa entrevista de Simone 02.05.1982 E nunca contou à sua própria família escritores. O programa tinha uma e Sartre comentada por nós dois. Acabo de ouvir no Apostro- essa história vivida. Ele tem um filho ROGÉRIO PEREIRA audiência imensa. As livrarias da Percebe-se que Simone era phe uma das mais incríveis histó- a quem conta a história de ter sido editor França expunham nas vitrinas e me- mais séria, ele às vezes opinava sobre rias jamais imaginadas. Mas real. aprisionado pela mulher, que assim sas os livros citados no programa. livros que não lera. De minha parte, Vou comprar o livro Elissa Rhais, se vingava dos homens. Mais: pres- Pivot, durante 30 anos, foi um in- lendo a trajetória dele, resumida no de Paul Tabet. Ela foi uma escritora sente que se ele deixar o pai sozinho, CRISTIANE GUANCINO vejável fenômeno de comunicação. Nouvel Obs, vi certa ligeireza nas famosa entre 1918 e 1939. Um rico o pai se matará. Resultado: cansado diretora executiva Leio agora no Le Nouvel Observa- suas tomadas de posição. comerciante no Marrocos vende sua de uma vigília, o rapaz deixa o pai a teur que três programas dedicados a filha de origem judia para um harém sós. Daí a duas horas o pai se mata. livros na televisão francesa deixarão 30.04.1982 onde as mulheres não têm nada a fa- Passam-se 15 anos e o rapaz, enfim, de existir. Permanecerá apenas La Acabo de ver outro Apostro- zer senão engordar. Seu nome: Lei- escreve esse livro. Grande Librairie, de François Bus- phe: René Girard (Le bouc émis- la Bou Mendil. Quando ela chega à No programa também Roger COLUNISTAS nel. A reportagem se refere a Pivot saire), Evtushenko (Les baies adolescência, seu senhor resolve que Vadim (L’ange affamé), Vittorio Affonso Romano de Sant’Anna como uma lenda. Abro algumas ano- sauvages de Sibérie), e um cha- ela vai ter que se apaixonar por ele. Gassman (Un grand avenir der- Carola Saavedra tações feitas há 30 anos. to inglês David Lockie (L’amour Durante meses tenta tudo. A jovem rière moi) e Roger Gouse, cunhado d’une reine). Pivot fez perguntas se deixa possuir, mas não demonstra de Mitterand, amigo de Bernanos, Eduardo Ferreira 03.03.1981 duras a Evtushenko: sobre a Sibé- o menor sentimento. O senhor então com quem conviveu no Brasil du- Fernando Monteiro Na TV-2, programa Apostro- ria, por exemplo. E ele contra-ata- ordena que ela fique enclausurada rante a Segunda Guerra Mundial José Castello phe de Bernard Pivot. Entrevista cou dizendo que não era inspetor para sempre. Um dia, o senhor mor- (Le mirroir portable). Luiz Bras uma jovem autora que escreveu Paul de prisões para responder. Sobre re. E ela, liberta, recebe uma herança Incrível o programa. O sarcas- Raimundo Carrero Nizan, communiste impossible. Stálin: disse ser anti-stalinista, mas de família. A situação se inverte: ela mo e a ironia de Gassman dizendo Rinaldo de Fernandes Vem à tona o problema da relação não aceitou compará-lo a Hitler. agora conhece um garoto de uns 15 que virou ator no enterro do pai, anos a quem toma como amante e quando sentiu a situação do ator que Rogério Pereira intelectual dentro do “partido”. Con- Atacou também a malícia de Pivot, firma-se tudo o que eu pressentia na que se saiu bem, dizendo que tal a quem decide contar algumas es- se observa; que não chorou, e que adolescência e não ouvia ninguém malícia era francesa. tórias do harém. O garoto resolve após o enterro fechou-se no quarto dizer: o “partido” é uma “igreja”. Evtushenko dá uma impressão escrever a história. Ela conta outra. e quebrantou-se em lágrimas. De- Nizan largou o “partido” de- sólida. Tem lá conflitos com seu país, Ele a escreve. Ela, que era analfabe- bochado, diz que ama mulheres, di- ILUSTRAÇÃO siludido com a Rússia, que fez um mas saiu-se bem. Fez sobretudo uma ta, faz chegar os originais a um edi- nheiro e representar inclusive filmes Carolina Vigna-Marú acordo com os nazistas (década de fala antinuclear. tor, mas com o seu nome. E assim, ruins tanto quanto os sublimes. Felipe Rodrigues 30). Os comunas, então, passaram René Girard é interessante, durante dezenas de anos ela man- Vadim fazendo um discurso so- a execrar Paul Nizan, a chamá-lo mas esse cristianismo dele é de ma- tém o rapaz anônimo e freqüenta a bre a necessidade de manter a curio- Marco Jacobsen de tudo. Só muito recentemente se tar. Sua teoria sempre voltando à mi- vida social-literária de Paris, onde é sidade fora da profissão, manter a ju- Osvalter Urbinati pôde ver isto claramente. tologia e à Bíblia me parece um belo requisitadíssima. Porém, no dia em ventude mais que a carreira. Rafa Camargo Rafael Cerveglieri Ramon Muniz Rettamozo Ricardo Humberto : : : : Robson Vilalba vidraça Tereza Yamashita Theo Szczepanski Villas-Boas Bartolomeu & Moss

FOTOGRAFIA Após 17 anos como diretora O escritor mineiro Bartolomeu Campos de editorial do grupo Record, Matheus Dias Queirós faleceu na madrugada do dia 16 de Luciana Villas-Boas deixa o janeiro, aos 67 anos de idade. Autor de cerca de cargo para abrir a Villas-Boas 40 livros, recebeu os mais importantes prêmios & Moss Consultoria e Agência SITE/MÍDIAS SOCIAIS nacionais e internacionais por sua obra infanto- Literária. Com escritórios no Yasmin Taketani juvenil, à qual se juntou, em 2011, Vermelho , Nova York e amargo, seu primeiro romance. Queirós Atlanta, a agência de Villas- participou do ProLer e foi um dos idealizadores Boas será aberta ao lado do do Movimento por um Brasil Literário, projetos advogado norte-americano PROJETO GRÁFICO de incentivo à leitura que refletem sua crença Raymond Moss e pretende Rogério Pereira / Alexandre De Mari de que a literatura “pode fazer uma sociedade representar autores brasileiros mais cheia de compaixão, de respeito mútuo”, no exterior, assim como afirmou em sua participação no Paiol como buscar novidades nos Literário, em junho do ano passado. O escritor “A literatura pode ser um espaço bonito do catálogos internacionais para PROGRAMAÇÃO VISUAL mineiro deixou um manuscrito inédito que será reencontro, da conversa, do deslanchar para outras o mercado brasileiro. publicado pela Cosac Naify. coisas, para outras confidências.” Versão Design Portugueses ASSINATURAS Dicta&Contradicta Prêmio no Brasil Cristiane Guancino Pereira Depois da Leya, é a vez de outra A oitava edição da revistaa semestral de ensaios e debates traz Brasília de editora portuguesa aportar no textos sobre as diferentes faces do ateísmo em Dostoievski, a Literatura Brasil: a Tinta-da-China lança obra póstuma do escritor norte-americano David Foster Wallace no Brasil seu primeiro livro, e as peças teatrais de Tom Stoppard. A publicação do Instituto Escritores têm até o dia 15 deste uma seleção de crônicas do colaboradores desta edição de Formação e Educação em parceria com a editora Civilização mês para se inscrever no Prêmio humorista português Ricardo Adriano Koehler Brasileira oferece ainda análises sobre cinema, música, teologia, Brasília de Literatura 2012. Araújo Pereira, em março. Além história e um ensaio que apresenta a dependência química como Promovido pela 1ª Bienal Brasil de autores portugueses que já Almir Castro Barros um problema moral. do Livro e da Leitura, o prêmio constam de seu catálogo, como contempla as categorias Biografia, Dulce Maria Cardoso, a Tinta- Christian Schwartz Contos e Crônicas, Literatura da-China também pretende Eltânia André No estrangeiro Infantil e Juvenil, Poesia, Romance editar brasileiros e iniciar uma e Reportagem. O valor do prêmio é coleção infantil, cujo primeiro Fabio Silvestre Cardoso Outros nove títulos somam-se aos 28 previamente selecionados pelo de R$ 30 mil para o primeiro lugar e livro será da brasileira Fausto Amadigi Programa de Apoio à Tradução e Publicação de Autores Brasileiros no R$ 10 mil para o segundo colocado. Tatiana Salem Levy. Exterior. Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, e Método Podem concorrer apenas obras Gilberto Araújo prático de guerrilha, de Marcelo Ferroni, serão publicados na editadas e publicadas em território Alemanha, enquanto As cinco estações do amor, de João Almino, brasileiro no período de 1º de Henrique Marques-Samyn Coelho será traduzido para o italiano. Cristovão Tezza, João Paulo Cuenca, janeiro de 2010 a 31 de dezembro de Luiz Guilherme Barbosa , Luis Fernando Verissimo, Graça Aranha e Cláudio 2011. Mais informações, inscrições contra de Araújo Lima também entram na lista do programa da Fundação e o edital completo através do site Sopa Luiz Horácio Biblioteca Nacional. www.bienalbrasilidolivro.com.br. Luiz Paulo Faccioli atacou o projeto antipirataria Sopa em seu blog. Marcos Pasche Amado Arte & Letra O Segundo o escritor, a pirataria serve como divulgação e Maria Célia Martirani Uma série de homenagens a Jorge Amado está prevista para este ano Nova edição da revista de literatura introdução ao trabalho do Maurício Melo Júnior em comemoração ao centenário de nascimento do escritor baiano, em Arte & Letra inclui contos de artista e, no caso de um livro, 10 de agosto. O Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, abre em Joseph Conrad, Robert Luis se o leitor gostar do começo, Paula Cajaty março a exposição interativa Jorge, Amado e Universal, que reunirá Stevenson, Luiz Felipe Leprevost irá comprá-lo em seguida, fotos, objetos e manuscritos do autor de Gabriela, cravo e canela, e dos colunistas do Rascunho pois “não existe nada mais Reginaldo Pujol FIlho cuja obra vem sendo reeditada pela Companhia das Letras. A mesma Carola Saavedra e Luiz Bras, entre cansativo do que ler longos Vilma Costa editora ainda prepara um volume de correspondências do escritor e uma outros autores. As ilustrações trechos de texto na tela do edição comemorativa de Os velhos marinheiros. Para completar, ficam por conta do curitibano computador”. Coelho Amado será tema da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, no Rio André Ducci. A publicação pode ainda clama: “Piratas do de Janeiro. A programação completa do centenário pode ser conferida ser encontrada no site da editora: mundo, uni-vos e pirateai em centenariojorgeamado.com.br. www.arteeletra.com.br. tudo que já escrevi!”. fevereiro de 2012 4 Sobre irrealidades, vinhos e águas

Entre erros e acertos, Habitante irreal, de Paulo Scott, é um romance original e bem estruturado

Renato parada/ divulgação O AUTOR :: Luiz Paulo Faccioli grande impacto, mas ele não pára. Paulo Scott porto Alegre – RS Roda mais alguns quilômetros antes Nasceu em Porto Alegre, em de se decidir a dar meia-volta e ofe- 1966, e mora atualmente á uma idéia, defendida recer carona à menina. no Rio de Janeiro. Dentre por gente que enten- Esse encontro é o ponto de outras obras, é autor do de muito do assunto, partida do livro e, num certo senti- romance Voláteis, do livro de que um livro só vai do, também o de chegada. Depois de poemas A timidez do H revelar sua real importância para a dele, os caminhos se bifurcam e ou- monstro e dos contos de literatura passados cinqüenta anos tras histórias se imbricam para criar Ainda orangotangos, que de sua publicação. Seria esse o tem- aquela trama multifacetada carac- foi adaptado para o cinema por Gustavo Spolidoro no po mínimo exigido a uma espécie de terística do romance. Paulo vai se longa-metragem vencedor maturação, da qual ele vai sair como envolver com Maína, a indiazinha, e do 13º Festival de Cinema um vinho soberbo a mostrar todas ter um filho com ela. Vai abandonar de Milão. Habitante as qualidades acentuadas pelo enve- os estudos, o estágio e a militância irreal teve o patrocínio do lhecimento ou, no sentido contrário, política e se transferir para Londres, Programa Petrobras Cultural como um vinagre que não presta onde protagonizará cenas dignas de de Criação Literária. mais ao paladar. Diferentemente do um thriller ao se meter na ilicitude que acontece com os vinhos, pode de invadir imóveis desabitados para ainda se transformar em água e sair em seguida vender sua posse a tercei- do processo ostentando as três notó- ros. Mas a vida continuará no Brasil, rias características: inodora, insípida com desmembramentos que Paulo e incolor (é esse infelizmente o des- não tem como conhecer, dentre eles tino de grande parte da produção li- o nascimento de Donato, seu filho terária). É claro que sempre se pode índio. E mais não será possível aqui especular e prever aqui e agora a im- adiantar sob pena de se trair o leitor. portância que determinada obra terá O livro se divide em quatro par- no futuro. Mas a confirmação, só o tes: do que acontece sobre sempre tempo trará. algo para ocorrer de novo, ninguém Na vida sucede o mesmo. Existe lê direito o súbito, a primavera do uma hora em que certos fatos por nós habitante irreal e ninguém sabe ao vividos ou testemunhados deixam de certo o que se faz com o comum. ser mera lembrança ao ganharem O primeiro capítulo, intitulado mil uma dimensão histórica. Para isso, novecentos e oitenta e nove, é todo via de regra também é necessário al- ele uma longuíssima nota de rodapé gum tempo. Mas a História é um pou- para explicar justamente esse título. co mais célere que a literatura, talvez A inusitada solução vai reaparecer porque sua relevância seja outra. Em em outros momentos. Trata-se de novembro de 1989, enquanto assistí- um detalhe gracioso com uma certa amos boquiabertos pela tevê a uma funcionalidade, e nada além disso. multidão avançando sobre o Muro de Berlim para forçar sua derruba- Vários méritos da, já sabíamos que a História estava Habitante irreal tem vários naquele momento sendo dividida em méritos. Um deles é a reconstituição antes e depois daquele episódio. fiel de um cenário, a Porto Alegre do Habitante irreal O Brasil de 1989 andava às vol- final dos anos 1980 e início dos 90, Paulo Scott tas com as primeira eleições diretas não só pela ambientação detalhada Alfaguara após vinte e dois anos da ditadura — que este resenhista pode atestar 264 págs. militar e de outros quatro governa- por ter vivido in loco aqueles anos —, dos pelo primeiro e último civil esco- mas também pela recriação de uma Paulo a deflora. As diferenças cul- de sua enormidade. lhido por uma excrescência chamada lógica e de uma ética muito peculia- turais, sutilmente retratadas no ro- “colégio eleitoral” — como se sabe, res da época. O Brasil costurava sua mance, respondem pela façanha. A inadequação do tempo ver- o vice José Sarney tomou posse no redemocratização sob o fogo cerrado Também é digna de nota a bal em algumas passagens é outro lugar do eleito Tancredo Neves e lá da hiperinflação, o que desestabi- ousadia de Scott em criar um entre- problema. A mescla de presente ficou. A inflação galopava e os salá- lizava qualquer projeto político ou cho que desafia a todo momento a histórico, passado perfeito, passado rios só não viravam pó por causa de econômico duradouro. Vivia-se ape- verossimilhança, tão mirabolantes mais-que-perfeito e futuro confunde um dispositivo chamado “gatilho”, nas o presente, pois não havia como são as viradas na história e as situ- o leitor. Observe-se o trecho: que fazia a correção monetária auto- prever um futuro. O dinheiro se mul- ações vividas pelos personagens. mática cada vez que a alta nos preços tiplicava em contas remuneradas A ficção não deve mesmo ter qual- Colocará Maína pra dormir atingia um patamar pré-definido. A que mascaravam uma deterioração quer compromisso com a realidade, no seu quarto, mostra como trancar toda hora, a moeda perdia zeros e constante. Noutras palavras, vivia- mas a tendência atual da literatura a porta por dentro (enquanto expli- mudava de nome. No segundo tur- se uma irrealidade que logo adiante brasileira é buscar a estranheza no ca sente-se meio idiota, a menina no das eleições, sobravam Fernando cobraria sua fatura, e Porto Alegre comezinho e não na fantasia. Nesse confiou nele até agora, não haveria Collor, pelo minguado PRN, e Lula, apenas refletia o desconcerto geral aspecto, Habitante irreal é uma de ter outro tipo de receio, ainda as- na primeira vez em que o Partido dos do país. Para quem viveu essa época, fonte de surpresas que a mão firme sim lhe pareceu apropriado). Trabalhadores chegava à disputa pela será uma delícia reconhecer endere- do autor consegue harmonizar. TRECHO Habitante irreal presidência do país. Nas ruas, a frota ços, trajetos, ruas, bares, carros e ou- A frase começa no futuro, che- de automóveis — ou de “carroças”, tros tantos detalhes que, perdidos no Alguns defeitos ga ao presente e termina no passado, assim qualificados por Collor meses tempo, aguardavam a hora de serem Há, contudo, alguns aspectos e sem nenhuma justificativa para tal depois — era constituída de modelos resgatados pela literatura. que podem ser aperfeiçoados em indecisão. Tudo leva a crer que a re- novos como Uno, Monza e Santana, Outro acerto foi trazer para a edições futuras. Scott tem uma prosa visão tenha falhado, mas quem assi- Preço. Donato gosta dos veteranos Chevette e Opala, além trama personagens índios e abordar que segue o ideário contemporâneo na o livro é o autor e é dele que se vai dessa palavra curta, dos indefectíveis Fuscas. sua relação com o universo urbano e que busca aproximar o discurso cobrar qualquer deslize. contemporâneo. O índio sempre literário do coloquial. É certo que Também chama a atenção uma direta e confiável, porque Grande impacto teve um lugar de destaque na lite- não há mais lugar na literatura para ocorrência bastante comum: a con- ela é prática e integra Paulo, personagem do roman- ratura sul-rio-grandense, desde os um texto empolado ou, com raríssi- taminação do narrador pela voz do “seu vocabulário desde ce Habitante irreal do homônimo causos de J. Simões Lopes Neto, mas exceções, demasiado erudito. personagem em que ele está focado. Paulo Scott, tem vinte e um anos em passando pelo monumental O tem- Mas o exercício da simplicidade é Scott optou por um narrador neutro sempre, ele entende o 1989, e talvez não seja uma coinci- po e o vento de Erico Verissimo algo que demanda grande esforço, em terceira pessoa cujo foco se alter- que ela representa, seja dência o fato de ele ser cria daquele e chegando aos contos de caráter pois o registro literário é — e sempre na de um personagem a outro. Como no supermercado, na ruidoso 1968 que conseguiu pôr o pampiano de Sergio Faraco. Nessas será — mais sofisticado que o colo- se sabe, a neutralidade de quem mundo de cabeça para baixo. Estuda obras todas, porém, ele é persona- quial. Noutras palavras, é necessário narra é um dos fatores que ajudam papelaria, no lanche no direito, estagia numa banca de advo- gem da campanha, quase sempre a requinte estilístico para que o texto a apagar as pegadas do autor e, por- parque, no campo de gados em Porto Alegre, é filiado ao serviço dos mesmos brancos que lhe soe simples, fácil e fluído. O uso in- tanto, algo valioso. Mas quando, por futebol, na roupa, nas PT. Como grande parte dos jovens tomaram a terra ou de jesuítas que discriminado de formas como as já exemplo, o discurso descamba de da sua idade naquela época, Paulo queriam convertê-lo e domesticá-lo consagradas “pra”, “pro”, “dum” e súbito para um léxico francamente viagens que faz com está desiludido com o estudo, com o como se fosse um animal selvagem. “duma” ou as novíssimas (e horren- chulo, o efeito é dissonante: o leitor Henrique pelo Brasil, trabalho e, principalmente, com os A família de Maína vive acampada às das) “pruma”, “prum”, “praquela” e vai perceber que a voz do persona- nos carros que tanto novos rumos pelos quais enveredou margens da BR 116 a alguns poucos “praquele” cria situações em que elas gem está se impondo à do narrador, o fascinavam e agora seu partido. Volta de uma viagem quilômetros de Porto Alegre, para soam falsas, como no exemplo: quebrando assim sua neutralidade. a Rio Grande na direção de seu fla- onde Paulo a leva depois de conven- A despeito dessas pequenas não fascinam mais, nas mante Fusca sob uma forte chuva, cê-la a sair da chuva e aceitar sua aju- Donato permanece estarre- imperfeições, todas facilmente sa- compras que faz com quando avista na beira da estrada um da. O envolvimento sexual dos dois é cido ante a vastidão do horizonte náveis, Habitante irreal é um Luísa; há semanas em vulto agachado. Apesar do temporal, tratado com tal naturalidade que faz turquesa prevalecendo sobre qual- romance bem estruturado e original consegue distinguir uma indiazinha com que o leitor releve o fato escan- quer outra imagem ou objeto que que prende o leitor do início ao fim. que a única coisa que agarrada a um maço de jornais e daloso de Maína, aos quatorze anos, se anteponha, subtraindo a ima- Pode-se antever que seu destino não Luísa faz é comprar. revistas. A cena causa em Paulo um ainda ser quase uma criança quando gem ou a figura que for pra dentro será virar água. fevereiro de 2012 5

: : entrevista : : PAULO SCOTT Menos iludido

:: Yasmin Taketani que podem levar o autor a pensar já ocorre há dois anos, mas não sei Com a poesia é diferente, escrevo Curitiba – PR por dias e a rever o caminho que se vou mesmo conseguir me man- todos os dias, a qualquer hora, de escolheu. De outro lado, há críticas ter assim por muito tempo, viver enxurrada; claro, nem todo experi- ançado no final do ano passado, Habitante irreal contrárias que confirmam o cami- no Rio de Janeiro é muito caro. O mento poético merecerá acabamen- ganhou destaque na mídia, coleciona elogios da críti- nho escolhido; na maioria das ve- que mudou no meu processo de es- to. Não sou eu quem está habilitado ca e logo entrou em inúmeras listas de livros do ano. zes, pela incapacidade daquele que crita? Posso trabalhar a qualquer a avaliar minha produção, também critica em avaliar com sobriedade hora e pelo tempo que desejar (e não sei dizer se o Habitante irre- Apesar de toda a repercussão alcançada pelo roman- o significado de um trabalho mais conseguir). De resto, o processo al é meu trabalho mais maduro — ce,L o gaúcho Paulo Scott dispensa a comoção exacerbada, complexo, por estar esse trabalho de criação literária tende a mudar estou mais velho e menos iludido, fora da sua rotina de preferências. conforme passam os anos, o autor mas isso não significa muita coisa. bem como grupinhos e zonas de conforto, preferindo investir Nessas situações, a irresignação re- muda, e suas ações e procedimen- no desapego e na compreensão de suas falhas. Sem preocu- vela o estado inaugural em que se tos também mudam; não tenho • Qual sua maior preocupação pações com assumir riscos ou provocar, Scott, aos 45 anos, encontra o auto-intitulado julgador como avaliar isso com exatidão, ao escrever? e não há muito que fazer: sua viru- não agora. As condições de traba- Não repetir o que já li e me im- busca escrever sem medo e dar o seu melhor. Na entrevista lência acaba sendo mais consagra- lho são melhores, tenho momentos pressionou e, num grau menor, concedida por e-mail, o autor de três livros de poesia, um de dora (e causando mais publicidade) de ócio que antes não havia — a não me repetir. do que alguns elogios apressados ou diferença tem a ver com o tempo. contos e dois romances fala sobre fracasso, crítica literária, puramente afetivos. Tenho consci- Conseguir o tempo de que precisa- • Eventos literários — de pales- seus hábitos como leitor, atividades paralelas à escrita, sua ência de, em algum momento pre- va não foi pouco, o tempo é aliado tras a sessões de autógrafos —, produção e o caos a ser superado a cada dia. térito, já ter sido apressado e levia- do escritor, difícil é estabelecer entrevistas aos mais diversos no em meus vereditos com relação uma disciplina e, em decorrência veículos e publicações que pe- a determinadas obras — obras que dela, uma regularidade que impeça dem colaborações somam-se depois, na releitura, confirmaram a descontinuidade. ao trabalho essencial do escri- • Habitante irreal apresenta meu equívoco, minha precariedade, tor. Em certos casos, o traba- uma série de temas atuais: a minha pouca bagagem de leitor. Há • Em entrevistas, você diz se lho como tradutor ou revisor, perda de interesse pela polí- sempre o momento da exposição (a considerar “fundamentalmen- escrever orelhas de livros, dar tica, desilusão com ideais, a publicação submete o autor a uma te um poeta”. O que há na sua oficinas de criação literária, imposição da cultura urbana Aprimorar riscos, espécie de desnudamento, a uma relação com a poesia que dife- entre várias outras tarefas pos- à indígena, a vida como imi- exposição tremenda, que poderá se re daquela com a prosa? síveis, também entram na roti- grante ilegal, entre outros. falhas, verticalizá-los, desdobrar de muitas maneiras, in- Os tempos da prosa e da poesia são na do escritor. Essas tarefas Foi sua intenção, logo no iní- é uma forma de tentar clusive na direção do completo ig- diferentes. complementares garantem a cio, tratar dessas questões? É “ norar do seu trabalho pela crítica, sobrevivência do autor ou são obrigação do artista tratar dos a tão proclamada voz pela imprensa, pelos leitores). Te- • Há cerca de quatro anos, um empecilho a seu trabalho? problemas do seu tempo? nho três leitoras, pessoas que lêem você declarou, a respeito do São atividades que garantem minha Não me sinto obrigado a enfrentar do escritor; desses os primeiros tratamentos, pessoas mercado de ficção brasileiro, sobrevivência, não as vejo como nenhum tema específico, muito amigas e sempre muito sinceras e que “há boa ficção sim, mas empecilho; gosto das viagens mo- menos os de repercussão social. riscos e falhas poderá cruéis, isso me ajuda muito. Ver- que não provoca”. Arriscar-se tivadas por compromisso literário. Há, contudo, uma carga de infor- balizar — não defendendo o que na literatura — seja no tema Consigo trabalhar bem em quarto mações, de cenários, que a partir surgir algo de novo, foi escrito, isso nem seria razoável, ou na forma — é uma preocu- de hotel. Aceitar um trabalho para- da escolha da história a ser conta- algo que valha a mas tentando entender o ponto de pação sua? Como busca pro- lelo cuja execução envolve um nú- da ganharam pertinência e por isso vista do outro — sempre me faz vocar em sua literatura? mero baixo de dias me tira da rotina mereceram destaque. pena ler e tentar avançar. As presenças de uma edi- Eu disse ao Miguel do Rosário e isso é bom, porque às vezes me ob- tora como Isa Pessoa e de um edi- do Arte & Política que há boa fic- ceco, já fiquei três dias sem sair de • Aliás, qual foi o ponto de par- compreender. tor como Marcelo Ferroni também ção sendo feita no Brasil, mas que casa, apenas escrevendo e revisan- tida para o romance? me fizeram avançar muito, mesmo não provoca a devida atenção dos do o que escrevi — isso de começar Dois personagens: Donato, num quando avançar significa manter a consumidores-leitores. Estamos e não parar, esquecer todo o resto, primeiro momento, e, em seguida, estranheza e os pequenos herme- todos tateando no escuro. Não há funciona em determinados momen- Maína. Elegi as que poderiam ser tismos do que foi feito. fórmula para conseguir essa aten- tos, com uma ou outra encomenda, as suas idiossincrasias, as menos atenciosa dos editores ajuda bas- ção. As editoras selecionam o que não funciona sempre, não funciona eventuais e alegóricas, e segui em tante. No meu caso, há uma críti- • Seu livro de estréia, Histó- há de melhor, segundo seus crité- com as narrativas longas. frente da maneira que me pareceu ca permanente (talvez seja apenas rias curtas para domesticar rios, fazem suas apostas, gastam mais acertada. insegurança) que me leva cometer as paixões dos anjos e atenu- dinheiro em edições bem cuidadas, • Habitante irreal teve uma mudanças significativas a cada revi- ar o sofrimento dos monstros, eventualmente os livros ganham boa recepção, tendo sido apon- • O livro foi chamado de ro- são — cheguei ao ponto de abando- lançado em 2001, veio quando prêmios, repercutem bem na crí- tado por muitos críticos e es- mance político. Enxerga-o nar o livro completo que tinha nas você já tinha uma carreira na tica, ganham espaço na imprensa, critores como o livro do ano desta maneira? mãos e recomeçar de novo. Entre- área do Direito. O que o levou em feiras e festas literárias impor- de 2011. No que essa resposta é Não sei se é o rótulo adequado; en- tanto, é bom esclarecer: jamais en- a escrever ficção? tantes, e ainda assim não vendem importante para você? A partir tretanto, compreendo o ponto de tregaria um livro que me parecesse Sou de uma família de classe média além dos tradicionais três a cinco de que momento os elogios po- vista de quem tenha feito tal leitu- inacabado. O livro teve quatro ver- baixa que nunca deu muita aten- mil exemplares. Prefiro pensar que dem se tornar prejudiciais? ra. A política, as éticas políticas e o sões; da terceira para a quarta não ção ao universo literário, mas que isso está mudando, mas sei que a Tenho consciência das minhas li- engajamento político condicionam apliquei o corte brusco cometido da sempre teve ótimos contadores de quantidade de autores brasileiros mitações, tenho ainda presente o a compreensão de um dos perso- primeira para a segunda, nem o da história. Meu pai (o primeiro e úni- produzindo ótima literatura e ten- esforço que tive de realizar para nagens principais, sustentando as segunda para a terceira, mas houve co de oito irmãos a entrar e se for- do bom desempenho no mercado é chegar à última versão do romance. premissas que o ajudam a realizar a supressão de um capítulo inteiro. mar numa faculdade) é um ótimo muito baixa. Quanto às perguntas: Escrever não é fácil, persistir não é suas escolhas — as escolhas de al- Conseguir o desapego necessário contador de história, meu avô por não sei se arriscar é o termo correto, fácil, minhas pretensões (imagino guém disposto a melhorar parcela para esse tipo de solução é o que eu parte de mãe, meus tios e primos não tomo o “assumir riscos” como que seja assim para todo escritor) do mundo que o cerca. A localização imagino (ou fantasio) que me dá es- também. Na minha cabeça, há uma algo digno de elogio, de aplauso. são sempre maiores do que viabili- histórica do primeiro capítulo e de perança de ser um escritor melhor. tradição lúdica a ser mantida e por Provocar? Escrevo da maneira que dade da criação e do resultado, há parte significativa do segundo vin- Aprimorar riscos, falhas, verticali- isso, mesmo que não intencione e me parece mais interessante e viá- muita angústia, frustração, ansie- cula um momento único na história zá-los, é uma forma de tentar a tão persiga conscientemente, incor- vel; há muito que dar com os burros dade — ainda assim é o que escolhi do Brasil: a confirmação do proces- proclamada voz do escritor; desses poro uma dicção e um entusiasmo n’água nesse processo. Não trato a fazer. Acompanho a produção lite- so de abertura política com ênfase riscos e falhas (quando entendidos que são o resultado evidente das literatura com romantismo, nem rária contemporânea com atenção, na entrada em vigor da constituição e assumidos) poderá surgir algo de muitas horas que passei perto de- como se fosse algo fácil. Escolho a sei a quantidade de livros bons e óti- federal de 1988, a mais democrática novo, algo que valha a pena ler e les, nas festas de aniversário, na história, tento contá-la sem medo, mos, nacionais e estrangeiros, que que pudemos produzir, e na eleição tentar compreender. praia, nos churrascos de domingo, todavia sempre desconfiando da são despejados mensalmente nas direta para presidente da Repúbli- escutando, admirando. qualidade daquilo que produzi. prateleiras das livrarias, sei a quan- ca, combinados com as transforma- • Nesse longo processo, quão Assisto com prudência à fala dos tidade de autores estreantes com ções tecnológicas relacionadas ao importante foi ter outros lei- • Passaram-se ainda alguns artistas e escritores cheios de con- livros bons que sequer conseguem acesso à informação, o impacto das tores para o livro em constru- anos até você decidir abando- vicções e pré-conceitos — exageros fazer suas obras chegarem a uma mudanças sócio-políticas deflagra- ção e a presença de um editor? nar o Direito para se dedicar dessa ordem me sugerem afoiteza, livraria, seus originais chegarem à das no cenário internacional, como De que maneira eles contri- ao ofício de escritor. Conci- uma que não me cabe mais repli- peneira final das editoras e se torna- a queda do muro de Berlim, alguns buíram (ou atrapalharam) a liar as duas tarefas se tornou car. As escolhas que fiz, ser escritor rem aposta. Receber a aprovação e movimentos e rupturas culturais construção do romance? impossível? O que mudou na e viver da literatura, já me parecem o entusiasmo de quem você respeita de repercussão inédita. Foi quan- Não tenho problema em ouvir críti- sua produção e no seu proces- aventura e ousadia suficientes. e admira — mesmo não trabalhan- do se buscou a materialização da cas. Sei aonde quero ir, sei descon- so de escrita a partir do mo- do em função disso — traz alívio e dignidade da pessoa humana e da fiar de mim mesmo. Gosto dos diá- mento em que decidiu viver • Você publicou três livros de alegria, não há como negar, mas é liberdade de expressão como nunca logos acirrados, desde que honestos da literatura? poesia, um de contos, dois ro- preciso lembrar a todo minuto de ocorrera antes. Havia muito sonho, (quando a vaidade está em jogo não Havia essa noção (não apenas sen- mances e há pelo menos um que você chegou até a data da entre- muita ambição, tudo isso por conta é fácil ser honesto), quanto mais sação) de tempo passando, havia outro a caminho, pela série ga da quarta prova, onde estavam de um estado de amadurecimento dura a posição do interlocutor, me- muitos projetos e romances rascu- Amores expressos. Como ava- suas alterações e acréscimos finais, posto (e não apenas pressuposto) lhor. Quem te confronta pode estar nhados. Lá pelas tantas — mesmo lia sua produção? Conside- sem a menor certeza de que suas es- ainda não experimentado. de fato abrindo novas possibilida- achando que seria possível conci- ra Habitante irreal seu traba- colhas seriam compreendidas pelos des, apontando inconsistências. liar as duas atividades — me veio a lho mais maduro? leitores. Você faz o que tem de fa- • Habitante irreal levou seis Gosto, e preciso, da sensação de certeza de que a única coisa a fazer Às vezes me dou conta de que estou zer, pega o caminho que lhe parece anos para ser escrito e teve estar fora da zona de conforto; nin- era largar o Direito e me dedicar fazendo o caminho inverso, tenho o caminho certo; se o livro que você várias versões antes de che- guém progride apenas com elogios, à vida de escritor. Por enquanto cada vez menos preocupação em escreveu for ignorado por todos, gar à final. Quando soube que cercado por turminhas, clubinhos, estou conseguindo me sustentar impressionar quem quer que seja; nisto se confirmará a maturidade, tinha alcançado o livro que afilhados. Há pareceres, resenhas, apenas com o dinheiro que recebo um texto que eventualmente re- sua escolha já foi tomada, não pode ambicionava? opiniões bastante elogiosas e favo- da ficção que escrevi e tenho de es- sulte mais elaborado é decorrência sofrer abalo, você é escritor, precisa O que posso dizer? Nunca se al- ráveis que, em seu aval inequívoco, crever à conta de adiantamentos e da minha dificuldade crescente em produzir, precisa continuar. cança o livro ambicionado. Essa é a descaminham observações rígidas encomendas, das oficinas, dos ro- colocar fim às revisões. Sei é que es- verdade. Nesse sentido, a cobrança nada condescendentes, retornos teiros e textos de dramaturgia; isso tou mais lento para escrever prosa. CONTINUA NA PÁGINA 6.

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS

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• Para o crítico Adriano Sch­­ criado por um casal de pes- wartz, Habitante irreal é o tipo quisadores de classe-média e de livro que, ao término da lei- que teve uma infância padrão, tura, produz a sensação quase Nunca se mas então decide reencontrar de “luto inevitável”, o que ou- suas origens, foi um desafio tros talvez chamariam de “eco” alcança o livro maior do que o trabalho com na mente do leitor. Quais as ca- personagens mais próximos racterísticas necessárias a um ambicionado. de sua realidade? livro para produzir esse efeito? “ Donato não chega a uma decisão Com que livros você guarda Essa é a verdade. clara, ele se precipita conduzido esse tipo de relação? pelo infortúnio (que inicialmente O livro precisa ter pegada, como deveria ser fortuna), é uma peça costumam dizer os editores. Não dentro da tragédia de Maína — mes- existe uma receita para que isso mo sendo em tese o protagonista da aconteça; caso houvesse um roteiro, segunda parte da história, o oriente todo aluno habilidoso e empenhado do palíndromo. Procurei não falar que saísse de uma oficina de criação do que não conheço. Contar a histó- literária bem estruturada seria um ria de uma índia desgraçada (inclu- autor de repercussão. Não é assim. sive pela sua ambição em ser feliz) Penso que a escolha dos persona- não é tarefa simples — se o romance gens e a linguagem têm algum peso consegue a cumplicidade do leitor nessa conseqüência. Sendo o tipo é porque as bases da narrativa são de leitor compulsivo que se apega, verossímeis e, mesmo no estressar guardo esse luto com relação a uma excêntrico das personagens, ade- boa quantidade de romances, é a quadas ao reflexo do aniquilamento tal estratégia furada de diminuir o das soluções urbanas. ritmo para a história durar mais. A existência por si Em alguns casos, reinicio a leitu- • Além da identidade dos po- ra para reintegrar (e completar) o só é absurda, seus vos indígenas, o “sistema” e a panorama oculto nas entrelinhas, o fenômenos e seu sociedade não estariam aca- que tomou nova importância com o “ bando também com a identi- final, para adensar o que se confir- corriqueiro são dade pessoal e individual de mou para além da mera passagem, cada um de nós? Como lutar para reprisar o que gerou alguma absurdos, nisso está pela identidade própria? desorientação sem precedente, o A procura pela identidade é uma tácito, alguma imagem maravilho- a graça de contar ou, constante (deveria ser uma cons- sa ou o puro assombro. tante); não há mapa turístico para como me parece mais como chegar lá. Não sei se consigo • Assim como o personagem adequado dizer, a dizer algo além do que já disse. Paulo, você foi militante políti- co. A política foi uma desilusão graça de recontar. • Você já foi identificado como para você também? Qual sua integrante de uma “nova safra relação com ela atualmente? de autores” e de uma geração As relações políticas, sua notícia e (ou mais). Em algum momen- suas dissimulações, afetam a todos, to se sentiu de fato membro mas não revelam a seus destinatá- de uma safra ou geração? Há rios o peso do poder. Nem todos suas origens. O que nos leva a razoável ficar culpando os outros ce não ser apenas com relação algum valor literário nessas têm aptidão para exercer o poder seguir tais caminhos? (coisa triste precisar atacar outros à política. Ele também parece caracterizações? político (que não é maior do que o A história dita seus meandros, as para manter os próprios êxitos, parar de acreditar no nosso Quando se analisa um objeto, um poder econômico e, eventualmente, personagens precisam de singula- para se promover, para se curar). modo de vida, nos valores da acontecimento ou o que for, é pre- nem maior do que o poder hegemô- ridade e também de coesão. O bom As inconveniências (a parede de sociedade e até mesmo no ser ciso sistematizar, buscar enqua- nico das religiões, mas ainda assim do texto literário, sobretudo quan- concreto armado fictícia que elas humano. Esse “mal do século” dramentos, categorias, agrupar, é poder relevante) e para disputá-lo. do se trata de narrativa longa, é que produzem) e o espectro de soluções te atinge também? Como anda distinguir. Os interlocutores podem No jogo das prevalências, de modo o autor pode fundar sua própria sob nossa ingerência pessoal (sem sua fé na humanidade? não concordar. É difícil não redu- geral, as condutas pragmáticas têm coerência. Essa autopoiese é prer- perder de vista os próprios erros) Aceito a humanidade, tento cola- zir a riqueza do que se estuda; só pertinência maior do que os ideais rogativa da arquitetura literária. conflitam, e desse conflito, quase borar, tento não atrapalhá-la de- a filosofia sustenta o olhar absolu- — em vários momentos da história Uma decisão, mesmo que decorra permanente, sai a consciência que masiadamente. to — e por isso sua argumentação ocidental, o idealismo foi privilégio de um mero impulso, pode alterar permite distinguir o verdadeiro é sem moldes, interminável e capaz dos tolos, mas sobre essa pecha é os rumos de uma vida para sempre, querer, a partir do qual é necessá- • Você já declarou que o tema de atacar tudo e jurar a solidez dos preciso que se descubra esperan- somos títeres, titereiros. Não há or- rio compreender a própria identi- de seus livros é o amor, en- próprios termos. Os que estudam a ça, diálogo, empenho por melhora, dem, há caos, um caos que precisa dade, do mero desejo, que se alinha quanto o que normalmente é literatura contemporânea e se arris- daí a dúvida presente quando se ser superado a cada dia — não há à negação da real identidade. Penso ressaltado de sua prosa são cam apresentando suas conclusões, contempla, com seriedade ou de- dúvida de que ignorar isso torna a que nós, brasileiros, temos grande personagens em situações- principalmente no contexto acadê- sespero, as complexidades contem- vida mais confortável, suportável. dificuldade em assumir a própria limite que envolvem drogas, mico, têm méritos, há mérito em porâneas. Sob a perspectiva do per- O excepcional faz parte do ordi- identidade, tento romper esse en- álcool, paixões violentas, rou- qualquer análise séria. As análises e sonagem Paulo, o cotidiano político nário, o ordinário não se compõe cadeamento dentro da minha cabe- bos. Sobre que tipo de amor diagnósticos deveriam ser em maior é o lar da desilusão — alguns não de coisas idênticas (não quando o ça — decepções funcionam dentro você quer falar? número. Isso sim. Não me alinho admitem isso e, paradoxalmente, olhar se aproxima, assume as me- de um curso de bagagens que se O amor é um ideal, talvez o maior com quem apenas reclama da leitu- também não se alienam (ou pelo ticulosidades); o excepcional difere acumulam em nosso juízo forman- ideal produzido pela raça humana. ra que se fez do seu trabalho. menos acham que não se alienam), do impossível e difere também do do critérios; na medida em que E a conjugação entre amor e contra- tentam a invenção de alternativas. abstrato absoluto. Gosto dessa in- percebemos o lado fortuito da vida, partidas me interessa; várias das mi- • Não há forma ideal de leitu- Paulo advém desse contexto, des- clinação e desse tangenciar, gosto tentamos amadurecer. Não sei se, nhas personagens são pessoas que ra, um livro pode ser lido de se quadro que foi ainda mais pito- de estressar, em suspensão e ten- neste espaço curto de entrevista, eu dispensaram (ou perderam) as con- várias maneiras. Mas como resco nos anos de lenta superação são, a mecânica da narrativa até poderia dizer muito mais sem pa- trapartidas, o anseio pela correspon- gostaria que as pessoas les- do regime militar inaugurado em a fronteira do absurdo, exigir das recer descaradamente um farsante, dência, não enxergam mais a corres- sem sua literatura? 1964. Desilusão não é desculpa. Fui personagens o seu limite. A exis- um charlatão. Ficarei por aqui. pondência, mas seguem em frente às Tento não pensar nisso, porque ler militante, depois acadêmico, hoje tência por si só é absurda, seus fe- cotoveladas. Não há como ignorar os sempre será “refazer” (reinaugu- minhas ações se resumem ao uni- nômenos e seu corriqueiro são ab- • Em Voláteis e em certos con- dilemas pessoais, a busca por algu- rar) a obra lida. verso literário. De todas as influ- surdos, nisso está a graça de contar tos de Ainda orangotangos, ma razão, alguma justificativa; tudo ências que apercebi, sem qualquer ou, como me parece mais adequa- conquistas materiais e o con- se resume aos próprios conflitos e o • Um tema marcante em Habi- artifício retórico da minha parte, o do dizer, a graça de recontar (o re- seqüente status que elas tra- inimigo não são os outros. tante irreal é o fracasso de uma que chegou por meio da leitura de fazer que será sempre imperfeição, zem são o objetivo de inúmeros geração cheia de ideais que am- obra de ficção ou poesia foi o que falha, aversão, parcialidade). personagens. Já em Habitante • As situações extremas que bicionava mudar e melhorar de fato permaneceu; a arte tem esse irreal, Paulo e Donato abando- você narra devem boa parte a situação política e social do poder. Como diz o poeta português • À página 157 de Habitante nam o que poderíamos chamar de sua força aos personagens. país, mas que acabou justamen- Ernesto Manuel de Melo e Castro, irreal, lê-se: “Decepção é uma de um futuro promissor para Cometendo erros, crimes, se te por se acomodar, perdendo ele próprio parafraseando outros, palavra que Donato não gosta, buscar algo mais, e as conquis- autodestruindo ou destruin- suas inquietações e valores. O bastam trezentos exemplares de mas que apesar disso o ajuda tas (cargos importantes, status) do os que amam, seus perso- que as próximas gerações po- um bom livro de poesia para mu- a compreender o mundo, mais das pessoas ao seu redor são vis- nagens parecem exemplificar dem fazer para não fracassar? dar o mundo. As elites sabem dis- até do que outras palavras tas com ironia. Para você, qual bem o aspecto “humano” do Fracassar não é o problema, o que so, os que educam seus filhos para boas de dizer”. Essa é uma pa- a maior conquista possível? E ser humano. Mas em alguns considero e faço questão de regis- “mandar no mundo” sabem disso, lavra que também lhe ajuda a como escritor, o que deseja al- momentos eles mostram um trar é que a minha geração garan- as nações que laureiam sua dúzia compreender o mundo? cançar com sua literatura? outro lado, que parece então tiu que não fracassaria; isso foi de de poetas mais importantes, sob A temática do livro gira em torno Não tenho certeza se no juízo des- justificar determinada cren- uma arrogância absurda. argumento de que é muito difícil da noção de identidade, do contro- sas personagens prevalece o senti- ça na humanidade. Como é a preservar sua identidade, sua civili- le dessa identidade. Diferentemen- mento de ironia (mesmo que a nar- construção deles? • Quando envelhecemos, perde- zação, sem uma grande voz, sabem te do arrependimento, cuja ocor- rativa induza a essa versão), penso Como todo escritor, observo. Gosto mos uma parcela da nossa re- disso — há engrenagens do cérebro rência tem ligação com a decisão que, sobreposto à ironia está, na das ruas. Gosto de observar. Certa- beldia. Ficamos mais “calmos”, que só entram em funcionamento e daquele que se arrepende, com sua verdade, o desencanto e sua ambi- mente a leitura que faço das situ- e isso parece natural. Mas que progridem por meio da arte literária inércia, a decepção, ao se vincular valência. Como escritor (e fazendo ações não é a correta, nem precisa característica você gostaria de —, mesmo os que contam apenas a ações externas e que não podem um esforço grande para não fugir ser, mas é suficiente para emendá- evitar perder para o tempo? com seu carisma e sua inteligência ser controladas pelo que se decep- correndo da pergunta)? Coerência. las e reinventá-las de um modo que Embora reconheça que depois da excepcionais sabem disso. ciona, gera, agrava, catalisa para me pareça interessante, que possa rede mundial de computadores a criança, sobretudo, a percep- • Seus personagens parecem instigar e eventualmente entreter. escritor algum tenha desculpas • Um aspecto que chama aten- ção do sentimento de impotência. ser assolados pelo fracasso, Não posso me esquecer de anotar para ser ingênuo, eu responderia: ção no livro são as escolhas Donato foi jogado num enredo de sem que haja alternativa a ele. que o personagem Donato veio de a ingenuidade. feitas pelos personagens. Dar expectativas, numa circularidade O que é fracasso para você? um pesadelo: um sujeito usando carona a uma índia no meio de cobranças (não é à toa que ele Meus personagens lutam para não uma máscara de madeira repulsiva, • A certa altura de Habitante da estrada, “se deixar” apaixo- gagueja) que o tornou beligerante, fracassar. O fracasso é um estigma medonha, e sussurrando para mim irreal, lê-se: “Jamais poderei nar por essa garota de apenas mas não contra o mundo, contra si recoberto pela variação de quem coisas inteligíveis e me causando, salvar o país ou o mundo, Lui- 14 anos, incesto, viver como mesmo. Da minha parte, e sem cair olha: de onde olha e como olha. naquele mau sonho, tristeza. sa, as dramaturgias não têm imigrante ilegal em Londres, em eventual arremedo de sessão de Pode ser que nem exista. esse poder”. Passando essa colocar de lado toda uma edu- análise, posso dizer que a vida não • Construir uma personagem questão à literatura, ela tem o cação formal e um futuro tal- segue a estética do samba, do blues; • A desilusão de Paulo, persona- como Maína, uma índia de poder de salvar algo? vez brilhante para encontrar não deveria, pelo menos. Não é gem de Habitante irreal, pare- 14 anos, e seu filho, Donato, Prefiro imaginar que sim. fevereiro de 2012 : : a literatura na poltrona : : josé castello 7 Canetti e as três realidades

O realismo na ficção está cada vez mais distante de dar conta do mundo em que vivemos

paixonados pelo cinema, Tereza Yamashita pela TV e pela internet, Desde o século 19, o grande parte dos jovens Aescritores se dedica, hoje, realismo quer “tudo a construir uma espécie de “novo realismo”. Imitam, assim, os gran- mostrar”. Hoje, se des autores realistas do século 19, uma época em que este já era um temos nossas vidas projeto impossível. Pois hoje ele é devassadas pela web, mais impossível ainda. Hoje? Já em 1965, o escritor Elias Canetti, esse desejo parece não em um delicado ensaio de meia- dúzia de páginas, apontava o fra- só mais avassalador, casso da opção realista. Lá se vai quase meio século! como também mais E, no entanto, sufocados pela hi- per-realidade virtual, hipnotizados perigoso. por uma realidade que se parece com uma prisão, os jovens escri- tores insistem em buscar o impos- sível. Já em 1965, dizia Canetti — leio seu ensaio em A consciência das palavras, em edição da Com- panhia das Letras —, era preciso considerar que existem pelo menos três, e não apenas uma, realidades. Fala Canetti da “realida- de crescente”, da “realidade mais exata” e da “realidade do devir”. Sim, a realidade é uma constru- ção (uma ficção) e suas possibili- dades são infindáveis. Vivemos, na verdade, no interior dessas três realidades por ele propostas. Realidade crescente: existem hoje (e ele vivia nos anos 1960!) mui- to mais pessoas, e também in- finitamente mais coisas, do que nos tempos estáveis e fixos de Gustave Flaubert e de sua Bova- ry. Diz Canetti a respeito: “A am- pliação de nossa realidade, sua te e belo reler os realistas do século realidade crescente, a uma acelera- 19, mas suas narrativas, nos dias de ção para a qual não se pode antever hoje, se assemelham aos contos de meta alguma, é também a causa de fadas. Continuamos a amá-los, eles sua confusão”. Isso, eu insisto, há continuam a ser apaixonantes — cinqüenta anos. E hoje?! mas já não nos servem como espe- Realidade mais exata: vive- lhos, já não dão conta do mundo em mos hoje em uma realidade mui- parece grudado a nossos pés. Nós cai e se imobiliza. “Cada pessoa vê, mais avançados equipamentos digi- que somos obrigados a viver. Pode- to mais controlada pela ciência do tropeçamos no futuro, já não o mi- ao mesmo tempo, o claro e o escu- tais não podem dar conta do mundo mos pensar, no máximo, em uma que imaginaram autores “da ob- ramos mais. Diz Canetti a esse res- ro aproximando-se numa veloci- em que estamos metidos. grande malha de realidades (fic- jetividade” como Balzac ou Zola. peito: “O devir apresenta-se aqui dade angustiante. Pode-se afastar O fracasso do realismo proce- ções), que lutam por novas posições, Para este, por exemplo, o roman- de forma diferente da do passa- de um deles para observar o outro, de de um impasse: nenhuma ima- que se combatem, que se misturam, ce experimental devia se apoiar do: ele se aproxima mais depressa mas ambos estão sempre aí, cons- gem fixa corresponde mais à reali- e nessa grande (mas rica) confusão em modelos fisiológicos! “A exati- e é produzido de modo conscien- tantemente presentes.” dade em que vivemos. Para dela se levam nosso século a andar. dão se reflete também na propen- te”. Comenta, ainda, que a realida- A ficção de nossos dias, por- aproximar, somos obrigados a ma- são à completude”, diz Canetti. de do devir foi cindida: de um lado tanto, se deseja ainda ser “realista”, nipular destroços, fragmentos, pre- Outra vez: na obsessão pelo Todo, a aniquilação, de outro o bem-es- não pode se limitar aos grandes pai- cárias simulações. A realidade não NOTA obsessão guardada na raiz de toda tar. Esse duplo devir é uma espé- néis do contemporâneo, ou aos en- cabe mais dentro de nossa idéia de O texto Canetti e as três realidades estética realista. Desde o século 19, cie de destino fatal a nos oprimir. redos de ação e objetividade. Preci- realidade. Em conseqüência, é bem foi publicado originalmente no blog o realismo quer “tudo mostrar”. “Não há ninguém que possa igno- sa meter as mãos nesse grande fosso mais prudente esquecer a idéia de A literatura na poltrona, mantido Hoje, se temos nossas vidas devas- rá-lo”, Canetti escreve. Cada vez escuro, e em grande parte inviolá- realidade e pensar em outra coisa. por José Castello, colunista do sadas pela web, esse desejo pare- que avançamos para o progresso, vel, no qual a realidade se triparte. Pessoalmente, acho mais útil pen- caderno Prosa & Verso, no site do ce não só mais avassalador, como avançamos também para a des- Ou mais ainda: em que ela, hoje, sar na idéia de ficção. Ou dizendo jornal O Globo: www.oglobo.com.br/ também mais perigoso. truição. São as duas pernas de um cinqüenta anos depois do ensaio ainda melhor: de ficções. blogs/literatura. A republicação no Realidade do devir: o mun- mesmo monstro que, para se mo- de Canneti, se fragmenta. A época O século 21 exige, portanto, ou- Rascunho faz parte de um acordo do está tão acelerado que o futuro ver e andar, precisa de ambas, ou dos retratistas terminou. Mesmo os tra idéia de literatura. É reconfortan- entre os dois veículos.

: : breve resenha : :

O livro da metaficção Gustavo Bernardo Aula inesquecível Tinta Negra 280 págs.

:: Luiz Horácio gritte pinta a si mesmo, as mãos nição representada por um escudo (...) como pode ser realista, fessor “diferente”. Bernardo faz a porto Alegre – RS que se desenham de M. C. Escher, e que traz em seu centro a reprodu- isto é, preso à realidade cotidia- literatura, artes plásticas e o cine- vários outros exemplos que servem ção de sua miniatura. Vale ressal- na, um romance intitulado “me- ma refletirem acerca de si mesmos. ntendia que Lúcia e Lúcia para introduzir o tema do livro. tar que não estamos diante de ne- mórias póstumas”? Desde quan- O capítulo onde esmiúça o docu- eram uma só, desenhos Tema? Sim, o tema a que me nhuma novidade, Gide já anunciara do pode ser “expressão fiel da mentário de Jogo de cena, de Edu- sobrepostos na folha de refiro é amise en abîme, a duplica- sua utilização por Shakespeare, em realidade” a narrativa das me- ardo Coutinho, faz uma análise bri- Epapel fino. Uma mulher ção, a história dentro da história. Hamlet, e Edgar Allan Poe, em A mórias de um defunto autor es- lhante, realmente acrescenta a tudo para amar e outra para abando- O termo mise en abîme foi utiliza- queda da casa de Usher. critas pelo próprio depois, e não que já se falou sobre esse realiza- nar, mas as duas iguais, idênticas! do pela primeira vez pelo escritor Mas se não apresentava no- antes, da sua morte? dor. No entanto, ao abordar Janela Uma menina para salvar e outra francês André Gide, em 1893. Ao vidade com Gide, o que dizer ago- Aqui o leitor percebe, de ma- indiscreta, Bernardo não atua com para machucar, mas as duas iguais. falar da produção de sua obra La ra, você, apressado leitor, na cer- neira acintosa, que o autor não o mesmo fôlego e seu ensaio se tor- Idênticas. Um bichinho para cui- tentative amoureuse, discor- ta acaba de fazer a pergunta. Não pretende chover no molhado. Ve- na uma colcha de retalhos, de Tru- dar e outro para caçar, uma histó- reu sobre esse processo em Jour- apresentava novidade no que se re- mos um professor provocador, o ffaut a Camile Paglia, passando por ria para contar e outra para viver, nal 1: “Gosto bastante que numa fere à utilização, mas o estudo da pesquisador, o estopim da curio- José Avellar, Ismail Xavier e ainda mas, tudo tão igual — tão absurdo. obra de arte, encontre-se assim mise en abîme ainda é precário de sidade, você, vestibulando leitor, sobra tinta para citar Cortázar. O trecho acima traduz O li- transposto, na escala dos perso- parte dos acadêmicos brasileiros. sabe muito bem do que estou fa- Gustavo Bernardo é um gran- vro da metaficção, o que Ber- nagens, o tema mesmo da obra. O livro da metaficção co- lando, pois está cansado de tanto de romancista, está sempre sob o nardo disse no romance Lúcia, ele Nada esclarece melhor e estabe- meça a preencher uma lacuna ver professores repetindo o óbvio fio da navalha, preço que pagam apresenta agora numa linguagem lece com mais segurança todas as imensa em nossos estudos sobre e exigindo de seus alunos o mes- os que se atrevem a inovar. O li- técnica, exemplifica com as bone- proporções do todo”. metaficção, mise en abîme, sobre- mo óbvio piorado, visto que de- vro da metaficção, perdoe a ob- cas russas, as babushkas, com a Em outras palavras, e de uma tudo acerca do sentido de “realis- corado. Pelo menos em literatura. viedade, refinado leitor, é uma aula foto de Chema Madoz, a escada en- forma bastante rasa, colocar uma mo” e realidade em arte. Mas vá questionar os sábios elabo- inesquecível. O fato de o professor costada no espelho e refletida par- obra dentro da obra, encaixar uma Vale o livro o capítulo Ma- radores das provas, vá. demonstrar certo cansaço ao final cialmente, com o quadro onde Ma- na outra. Bastante utilizada a defi- chado de La Mancha. Voltando ao livro deste pro- não configura nenhum pecado. fevereiro de 2012 8 : : prateleira : : nacional

21 contos e crônicas do Tenho um cavalo O melhor de Stanislaw Arkáditch Contos de mentira romantismo brasileiro alfaraz Ponte Preta W. J. Solha Luisa Geisler Org. Ricardo Lísias Ivone C. Benedetti Org. Valdemar Cavalcanti Ideia Record Tordesilhas • 256 págs. WMF Martins Fontes • 120 págs. José Olympio • 367 págs. 224 págs. 128 págs.

Contos de , Em oito contos, apresentados em O Rio de Janeiro e as Nas vinte e quatro horas em Nos 17 contos da autora Álvares de Azevedo e Bernardo forma de contagem regressiva, transformações pelas quais que o romance acontece, o gaúcha, as personagens estão Guimarães juntam-se às a escritora e tradutora narra a cidade e seus habitantes pano de fundo para a trama são em trânsito, entre ações e crônicas de Joaquim Manuel histórias pessoais que se passavam não escaparam ao os protestos em João Pessoa esperas nas quais não é possível de Macedo, Manuel Antônio de misturam à História e dramas olhar de Stanislaw Ponte Preta, para o impeachment de Collor. identificar o ponto de partida de Almeida e José de Alencar para individuais que se apresentam pseudônimo de Sérgio Porto A história gira em torno do suas histórias. A partir da idéia de compor o volume. A seleção é também como coletivos. Tentando (1923 – 1968). Nas crônicas aqui roteirista Zé Medeiros e sua que uma das grandes mentiras do ensaísta e ficcionistaR icardo — com ou sem sucesso — o reunidas estão personagens como família, que nesse único dia lida que contamos é “está tudo Lísias, que propõe os textos regresso, os personagens buscam a sábia Tia Zulmira e o malandro com assassinatos, seqüestros, bem, não tem nada de errado como material ilustrativo tanto o que não foi, mas o que deveria de bom coração Altamirando, fracassos e a aparição de Stiepán comigo”, a escritora explora o para o movimento romântico ter sido, um ponto de partida que que representavam com humor e Arkáditch, jovem que busca comportamento humano neste quanto para a obra dos autores. às vezes já não existe mais. irreverência os tipos cariocas. vingar a morte de seu pai. que é seu livro de estréia.

O afinador de Novelos nada O trapicheiro Os doze nomes e Algarobas urbanas passarinhos exemplares outros contos Reynaldo Bessa Gil Perini Susan Blum José Olympio Marcelo Cid Patuá • 124 págs. Ateliê • 192 págs. Amplexo • 128 págs. 512 págs. 7Letras • 120 págs.

Publicadas no jornal O popular Com um título que faz referência Primeira parte da trilogia O Em seu segundo livro, Marcelo São viagens de kombi, cenas ao longo de quatro anos, as à obra de Dalton Trevisan, o livro espelho partido, o romance Cid troca o gênero romanesco de horror em hospitais, crônicas aqui reunidas compõem de contos não busca apresentar autobiográfico, escrito por contos que se desdobram em decadência física e outras um painel da vida a partir dos o mundo como belo, mas originalmente em 1959, fornece, finais com várias interpretações situações inusitadas que vivem as hábitos e comportamentos dos justamente como ele é, cheio a partir de pequenas cenas possíveis, compostos por personagens de Bessa, sempre habitantes de Goiânia, onde de efeitos e dado ao absurdo. independentes, um panorama da elementos inusitados e narradores melancólicas e nostálgicas. vive o autor. A partir de fatos Enquanto a morte é narrada com vida carioca na década de 1930, que se confundem com o próprio De tais características surge cotidianos, por vezes invisíveis, humor, temas simples ganham em especial a de seu subúrbio. autor. Unidos pela voz narrativa, a memória como elemento o escritor e cardiologista expõe novo peso no livro. A partir da Nascido no Rio de Janeiro, pelo tema ou ainda pelo estilo, que amarra os contos do livro, suas reflexões sobre temas metalinguagem e do ilógico, Marques Rebelo fez da cidade os contos se encontram muitas acompanhados por sugestões do como traição, política e até nascem frases e personagens em que passou boa parte de sua vezes na fronteira com outros autor de trilha sonora que vão de mesmo gastronomia. fora de qualquer padrão. vida uma marca em sua obra. gêneros literários. Radiohead a Serge Gainsbourg.

O encanto da tragédia

:: Maurício Melo Júnior e das injustiças sociais. Basta dizer lhes amenizaria o sofrimento com de coreanos e bolivianos presos em brasília – DF que escrever O um tiro de misericórdia, Donato galpões fétidos de São Paulo onde quinze, em 1930, sem ter qualquer escreveu um romance de cores vi- labutam horas a fio e sobrevivem. ra um rebanho, uma mana- notícia de A bagaceira. vas, fortes, maculadas. O escritor, Tudo isso, infelizmente, confere da de búfalos descendo do Apesar de todos estes pesares, enfim, conseguiu detalhar as dores atualidade a Selva trágica. Nordeste para tomar de as- a literatura daí nascida, uma litera- de seus personagens e levar o leitor Como filho dileto dos roman- Esalto toda a forma literária tura, repita-se, que une linguagem à indignação e à revolta. cistas de 30, Hernâni Donato tam- do país. Assim o poeta e romancista local com crítica social, sobrevive até Como pano de fundo da tragé- bém busca na linguagem local as Oswald de Andrade via os romancis- hoje e influenciou diretamente todos dia, o romance trabalha com uma his- nuances necessárias à confecção O AUTOR tas que, a partir do romance A baga- os movimentos literários que vieram tória de amor. Em meio ao ambiente do realismo de seu trabalho. As Hernâni Donato ceira, de José Américo de Almeida, em sua esteira, até mesmo, pasmem, brutalizado e desumano, Pablito vive expressões vindas do guarani tão Nasceu em Botucatu, publicado em 1928, domaram a cena o inconsistente Movimento Concre- de amores por Flora. Isaque, um dos corrente naquela área de fronteira interior de São Paulo, artística nacional. Eles traziam, além tista. Naturalmente que alguns fi- prepostos da Companhia, interes- ganham notas de rodapé para se em 1922. É membro da de uma forte carga de cunho social lhos se deixaram envolver com mais sado na mulher, manda o trabalha- tornarem mais claras. Mas o que Academia Paulista de Letras para as letras, com retirantes fugin- intensidade pelos pais. É o caso de dor buscar novos pontos de corte fica mesmo da leitura é uma reali- e tem mais setenta livros do das injustiças dos campos para Hernâni Donato, cujo romance Sel- do mate floresta adentro, um ofício dade descarnada e dolorida, atual publicados. Seus romances cair na miséria das favelas urbanas, va trágica acaba de ser relançado. de muitos dias e sacrifícios. Flora se e universal, e sobretudo modulada mais conhecidos são Chão uma linguagem recolhida no âmago Publicado inicialmente em protege no rancho de Pytã, irmão de com um sentido artístico que revol- bruto, Rio do tempo, O daquela gente oprimida. 1960, Selva trágica conta a vida Pablito. Tudo em vão. Isaque conse- ta e, ainda assim, encanta. caçador de esmeraldas, Há dois exageros na visão miserável dos trabalhadores dos er- gue estuprá-la. Na volta, a formação Filhos do destino e Selva trágica que, em 1963, oswaldiana. Primeiro, nem todos vi- vais do Mato Grosso no período, iní- moral daquela cultura não permite foi filmado porR eginaldo nham do Nordeste. O ideário do cha- cio do século 20, em que a produção uma conciliação entre os amantes. E TRECHO Farias. O filme ganhou o mado Romance de 30 espalhou-se era monopólio de uma companhia a tragédia segue seu curso. Selva trágica Prêmio Saci, promovido pelo por todo o país e logo em 1931 Mar- estrangeira que no romance aparece A relação entre Pablito e Flora jornal O Estado de S. Paulo, ques Rebelo publica Oscarina, um como um ser quase mitológico. A ex- é somente um arcabouço aos limites e representou o Brasil no romance de crítica social ambien- ploração é intensa. Homens e mulhe- da desumanidade daquela gente. Festival de Veneza. tado no Rio de Janeiro e com sota- res são envolvidos por determinações Ninguém ali pode ter posse ou direi- que carioca. Em 1934, é o mineiro dos prepostos da empresa que os fa- tos, pois tudo, até as vidas e as mor- A noite do sábado foi Lúcio Cardoso, com Maleita, quem zem viver como escravos, sempre sob tes, está reservado aos interesses da de bulhas e andanças. mostra a sólida degradação humana o guante de dívidas impagáveis. Companhia, um ser distante, inal- Dedilhados de guitarras e dos sertões do rio São Francisco. E Ao contrário da maioria de cançável. A impessoalidade dos tra- harpas preludiando folganças. no ano seguinte, 1935, Erico Veris- seus influenciadores, Hernâni não tamentos e das relações animaliza simo, com Caminhos cruzados, viveu nem assistiu à tragédia que a todos. E aí caímos no advento de “As mulheres foram banhar- expõe o olhar gaúcho sobre a ver- descreve. O monopólio da Compa- uma ambição levada aos extremos. se no remanso, sob a lua, tente amarga da expansão urbana nhia Mate Laranjeira, argentina, du- A descrição crua da ambição dá esfregando-se com sabão naquela hora ainda incipiente. rou até 1938. Só no final da década universalidade ao romance. As injus- Também não havia um sen- de 1950 foi que o paulista Hermâni tiças espalham-se por todos os cantos de aromas, penteando-se timento de coesão assim tão forte, Donato foi para a região pesquisar do mundo. E o que acontece no Mato umas às outras entre gritos uma ligação de manada entre eles. a vida dos antigos trabalhadores Grosso visitado por Hermâni não de bons augúrios. A disciplina Os laços que os prendiam eram fei- dos ervais. E encontrou uma situa- chega a ser novidade e, o pior, ainda tos do ideário social e da intenção de ção bem análoga à anterior, mesmo se repete. Insistir na denúncia é um já afrouxada. O armazém, escrever com uma “língua nacional”, depois do fim do controle argentino mérito do escritor. E denunciar com de portas abertas deixando expressão cunhada por José Améri- sobre as plantações. precisão e rigor, com cores indigna- levar o quanto os mineiros ca já no preâmbulo de A bagacei- Por poder assistir a uma reali- das somente fortalece tal mérito. Selva trágica quisessem aumentar sua Hernâni Donato ra. No entanto, este movimento se dade tão similar, com homens ten- A exploração irracional de tra- LetraSelvagem deu de forma quase espontânea, do que carregar nas costas fardos de balhadores permanece como uma dívida. Podiam tirar o que 288 págs. ou melhor, nasceu como fruto da cento e cinqüenta ou até duzentos das mais cruéis marcas de nosso beber, comer, vestir. No cair inquietação política natural do pe- quilos, onde uma queda lhes parti- tempo. Freqüentemente os jornais ríodo, onde se debatia com intensi- riam a espinha e os companheiros estampam imagens de campesinos do escuro não havia mais dade as vertentes do nacionalismo tinham de decidir nas cartas quem presos em fazendas distantes, ou nada para entregar.

fevereiro de 2012 10 : : fora de seqüência : : fernando monteiro As asas da noite que surgem (1)

G. VIAJA para Berlim e garante que escreverá para dar notícias

francisco brennand/ reprodução a noite longa e já animada desde o Quando a vi partir (e era verdade que fim do expediente nos dias do ve- ela estava indo embora), compreendi que rão levando a tarde até o limite do estava sozinho de um modo novo — diante Dar noturno: um frisson na sombra, da onipresença, quase, de uma ruína que já um acender de luzes nas latadas, sob letreiros havia desaparecido de si mesma. Isso parece (alguns) ainda escritos à mão, longe do estar- idiota, mas é como G. havia anotado no meu dalhaço padronizado dos McDonalds freqüen- caderno cheio de desenhos amadorísticos, tados pelos jovens — estranhos como marcia- alguns jeitosos (o da mão), outros simples- nos, na verdade. mente canhestros (o das falsas fachadas): “a Pelo menos para mim, que caminhava Acrópole é uma miragem que não merecemos por ruas onde havia o Lumidis, o café dos li- e que deixamos de compreender”. teratos; o Zakaratu, vizinho do Parlamento; o Depois, eu iria encontrar a frase, subli- Hellenizon dos gerânios dos tempos de Kazant- nhada, no livro do professor grego, que ela zákis; o Kolonaki das trepadeiras enrolando-se não “tivera tempo de devolver” — e eu, por nas colunas fingindo de “cretenses” de um jeito meu lado, não quisera remeter para o seu menos desajeitado do que aquelas de Evans, no endereço de Berlim, pelo correio, assim me palácio de Knossos restaurado com o mau gos- separando daquela letra gordinha que assi- to fin-de-siècle de um diletante endinheirado. nalara partes do texto bilíngüe e desenhara E não, eu não ouvia a vulgaridade cine- até mesmo um engraçado chinês zarolho na matográfica do sirtaki de Zorba como uma última página de guarda. decalcomania grosseira colada nos meus ou- Por que estou condenado a seguir lem- vidos, mas a soprano Bidu Sayão cantando a brando essas coisas, com uma atenção tão “Melodia sentimental” — tão pungente — com concentrada? Há uma doença qualquer nis- uma tristeza lacustre de fim de tarde brasi- so, um dente cariado que se acarinha com leira que casava com o meu desespero. Com- a língua voluptuosa, um modo de misturar, preendam: eu não estava na mata amazônica, perversamente, a realidade presente e a rea- mas na Atenas moderna, esperando pelos si- lidade lembrada: duas cargas diferentes, dois nais fechados na praça Sintagma iluminada pesos demasiados. E Bidú Sayão soprando para o caminho da praça até o fervilhar de na minha mente os versos de Dora Vascon- turismo nos becos de Plaka (mais do que no celos que — ninguém se lembra — escreveu velho Pireu quase deixado em paz, agora, pe- o libreto para Villa-Lobos: “Acorda, vem los idiotas “sentindo-se na Grécia” dos pratos ver a lua/ que dorme na noite escura,/ que quebrados para eles, os turistas), de maneira fulge tão bela e branca/ derramando do- que aquilo — ouvir imaginariamente a lon- çura./Clara chama silente/ ardendo o meu gínqua Bidu, os versos sobre “a noite escura”, sonhar./As asas da noite que surgem/ e “a lua que fulge tão bela e branca” — era mais correm no espaço profundo./ Ó doce ama- do que absurdo e nada tinha a ver com... da, desperta!/ Vem dar teu calor ao luar”... Bem, voltemos ao quarto, quando a G. foi embora. Está um vazio na Atenas in- porta se fechou e G. foi delicada, não bateu, teira, na Patagônia e na minha mão: lembro teve o cuidado de não ser brusca, a lingüeta se dos seus dedos entrelaçados nos meus, por encaixando na ranhura à medida que o trin- estas mesmas ruas. Lembro dos seus lenços, co era solto (o que evita o som martelado de dos seus tênis debaixo da cama, virados. “Dá uma porta “que bate”) — e eu já sabia que não azar” (qualquer sapato virado), e eu desvira- iria receber carta nenhuma. Era só uma me- va — resignado com a superstição que lhe ar- táfora para adeus, um selo de despedida: “Eu çada — após o tempo de descer quatro lances Levantava-se a vista, e as altas colinas eco- rancava apenas um sorriso. lhe escrevo de Berlim”. Ah, sim. de escada (o elevador não estava funcionan- avam os nomes longínquos, decorados para as Não quero falar sobre isso, realmente. do, mais uma vez). provas dos liceus romanos (Sandro é da Emília Recordo outros detalhes: um pijama Quero caminhar em desacordo com o cená- Eu via a sua cabeça, os óculos sobre a dos castelli de além Appia), com os bustos de que ela usou, infantil como as roupas com- rio em ainda maior desacordo com a canção testa, o elástico que amarrava o cabelo num atenienses antigos, os olhos vazados nos corre- pradas na Disney, e que poderia me irritar se “sentimental” que soa em minha cabeça, agô- rabo de cavalo juvenil, embora ela não fos- dores que as férias lustravam de quietude. não lhe houvesse dado o ar folgazão de uma nica quando quer ser feliz sob uma lua latina se tão jovem. O penteado combinava com as I resti del’antica Grecia avrebbero adolescente que fazia a sua primeira viagem do tamanho da máscara de ouro “talvez” de sardas delicadamente pintalgadas (um pouco avuto quello stupendo risalto se tutt’attorno ao exterior, na companhia de colegas rindo Agamenon. na face e nos ombros), sendo que sabia tor- ci fosse stata una citta con le massicce, pre- no quarto de hotéis suspeitos onde há sempre nar engraçada aquela história de que estava tenziose architetture europee dell’Ottocento vagas, mesmo no pico da temporada. O modo Jornalistas, escritores e artistas também sempre se quebrando — desde muito nova e primo Novecento? como as adolescentes riem (e nunca mais ri- freqüentavam a Lycovrisi — a “Colombo” de — numa perna, num braço, no pulso fino, na E o Partenon — prodígio que sucumbe rão). Seus pés rosados, que o mar lavou (o Atenas —, não a maior nem a melhor paste- mão desenhada por mim (somente a mão) — invadia o quarto dos hotéis mais altos, pela mar piedosamente interessado?)... laria da cidade de paladar tão aguçado para pousada sobre o púbis sem sombra de pêlo, janela aberta para a noite pressagiada pelo E por que dói a recordação? Todas as doces e discussões amenas, mas o lugar es- conforme se revelara no hotel da Jordânia. cinza do crepúsculo espetacular entre as co- pequenas recordações sem lugar na futura colhido para argumentos elegantes, lançados Jordânia? Você não estava na Grécia? lunas, onde ainda podia acontecer de se estar conversação (sendo, então, obrigatório silen- como as coberturas daquelas coisas maravi- Estava. Estou. Estive, quando era Ate- sozinho, na parte mais vazia do templo, antes ciar sobre esses nadas, essas sobras boiando lhosas que se chamavam Nikké, talvez por- nas, ainda, a cidade de “ar balcânico” que do turismo de massa. Quem sabe, um milagre sobre a água do banho que foi para alguma que lembrassem alguma alva fatia de perna Sandro Kostas recordava. E que via perdi- talvez pudesse se dar (como só se dão os mi- dobra úmida da minúscula eternidade de luz de moça lavada pela luz da lua sobre os már- da: “Atenas deu adeus à sua face levantina”. lagres com os quais já não se conta), nos jar- esgazeada — porque você olha bem de frente mores soterrados aos pés de um espelho (o (Como discordar dele?) dins de acesso ao velho emblema corrompido para o sol entre as colunas). Egeu de certas praias onde moças antigas se A cidade de hoje tem o rosto desgastado da cidade, onde fizesse se ouvir algum pássa- Atenas, a graça de Atenas, não estava li, banhavam como brancas aparições arcaicas). de uma cidade qualquer do seu lado da Europa ro mitológico entre as flores extenuadas? mas no conserto da sua sandália — se é que Agora, não havia mais a lua de reflexos, consumista, cheia de coisas novas e sem per- “Desde a colina ao pé do templo até o me entendem. Uma pessoa pode enlouquecer nem existia mais essa Grécia dos banhos no- sonalidade, no lugar das “velhas coisas gentis” jarro de alabastro que jaz agora neste quarto, porque os outros não compreendem o quanto turnos, não havia mais G., nem mais nada que se acabaram. Faz diferença só a Acrópo- testemunha dos verões gregos e das pérolas ela concentra, numa miniatura lateral, o todo para mim — só a voz de Bidu cantando na mi- le, iluminada à noite, empoeirada como uma na fronte pura, porejada de nervosismo, da da graça imortal de um monumento arruina- nha mente tentando urgentemente se ocupar gaiola de colunas que cedem um tantinho ninfa no seu encontro primeiro”... do. A moça se debruça sobre uma torneira do de outros assuntos... mais, a cada ano. O monumento toma injeções Ninfa? Há aqui algum engano — ou antigo hipódromo (onde agora Santa Sophia “São de se recordar também aqueles de concreto nas veias de pedra, todos os dias, qualquer tom elegíaco que soa desmesurado se ergue, entre jardins mal cuidados), e isto pequenos cafés da Omonia, igualmente de- como um doente terminal da arquitetura. Um para o vulgar amor num quarto de hotel bara- é Istambul num frasco de água-mineral de saparecidos.” E os outros — meio ouzeries, dia, talvez vá desaparecer como os modos de to, a moto que alugamos lá embaixo, estacio- novo cheio, até a borda, de água das fontes de meio cantinas — onde se podia beber tanto alguns garçons dos cafés perdidos que Kostas nada, e a “ninfa” se examinando ao espelho ablução ou das cisternas afundadas, de ma- a bebida como café ao gosto turco, ouvindo ainda gosta de rememorar (alguns sumiam colocado como penteador acima da mesa com neira que a mão, a sua branca mão — branca a confusa história sobre a herança de algum da vista dos clientes pobres, para evitar inti- o vaso de alabastro da cor do corpo desnudo, como a lua — colhe a água potável enquan- comerciante que havia morrido e deixado vi- midá-los com as toalhas usadas para limpar o depilado e mal protegido pela gaze da cortina to eu também fazia o mesmo, pela primeira úva ainda jovem. nada daquelas mesas que ainda não houves- leve de luzes da rua apagada da memória. vez, e pensava nas mulheres bizantinas que Você ouviu alguma dessas histórias? O sem feito nenhuma despesa). Que nome tinha o hotel onde a irmã de haviam morrido, “aquelas damas romanas mais curioso é que as viúvas de fato arranja- Alguns letreiros e marquises impediam Byron, diziam, havia se hospedado nos “seus com seus espelhos de cobre e ungüentos de vam, mais tarde, um marido ou um amante que eu visse a evolução completa do seu ca- dias de glória”? (Aquele nosso hotel nunca os beleza, à luz vacilante da barbárie” — literatu- que arruinavam o seu patrimônio — como no minhar (que eu quase perdera, e no momento tivera, certamente.) ra! —, quando tudo que havia realmente para caso, dos mais notórios, de um importador gracioso de pôr os óculos escuros) sob o sol “Ela via o Partenon...” — canta Elytis, ver era a revoada dos pombos, no ar resfriado de bebidas que tinha vindo de Thera, ainda tão minucioso, sendo que o passo do seu tênis num poema inédito, e que deslizou para de- pelo Bósforo descoberto de nuvens, tudo cor- menino, sem um dracma no bolso. Era, pelo não era rápido nem preguiçoso, na claridade baixo da cama da literatura (G. sabia dessas tado à faca, e mais: facilitando o recorte dos menos, o que se dizia sobre ele: que havia tra- que retalhava as silhuetas nas pedras, no as- coisas da maneira mais misteriosa, não per- palácios gradeados do cais de gaivotas sus- balhado, anos e anos, para um turco de Chi- falto quase branco — que agora lembrava o guntem como nem por quê; o importante é pensas enquanto os bares se acendiam como pre, dia e noite, sem descanso, até tornar-se maiô de cal sobre a carne pálida. Ela havia ex- que fixem a janela que dá para a Acrópole, o pirilampos, na margem asiática, e havia ainda sócio do sujeito no negócio onde tomara para plicado: “Estou gorda demais para o biquíni monumento como sempre suspenso, “maciço a promessa de quietude final no apartamento si a tarefa de vender o vinho espesso da sua na bolsa” (o que não era verdade). Lembrei e etéreo”, por sobre a ruína da realidade.) do hotel da ruazinha de jasmins agora dolo- ilha sempre objeto de disputas. O que o leva- disso, e não me lembrei de ter dito que não Na falta de outro assunto, o poema trata rosos, perto da velha Gálata... ra a conseguir exclusividade no comércio do era verdade, não é engraçado? do casal mais tarde separado, ela diante da Gálata? Meu deus, a Turquia no lugar da “tinto” um pouco áspero (embora o cipriota E então a desejei com um desespero tão mesma visão — “o grande templo quase ao Grécia, depois das primeiras brigas por qual- não apreciasse vinhos de Santorini ou de ou- fundo que doeu no corpo debruçado sobre nível dos olhos” —, em face daquelas jane- quer coisa. As imagens, por um momento, se tra origem grega qualquer, porém soubesse uma janela aberta de Atenas, “o melhor lugar las que dão para a “eternidade do peristilo” trocando como quando alguém chega e se deita, vendê-los como ninguém). para despedidas” (não é mais!) dizia a canção (todos os guias de turismo são enfáticos, em exausto, na cama arrumada pela camareira que São águas passadas. Os poetas estão não traduzida para os turistas (os gregos os Atenas como em Botucatu). O sol o queimou nunca é vista. Ficamos na cidade poucos dias mortos. Os cafés foram substituídos por dru- desprezam e os bajulam, em igual medida)... o dia inteiro, tornando clara a ligeira inclina- — mas agora eu parto no encalço delas, como gstores, e eu não sou guia turístico de um Em sua tristeza, para Sandro é impor- ção progressiva cujo cálculo é a suprema suti- quem refaz um retrato embaciado pela fuligem mundo tão recentemente enterrado. Falo de tante que quem o escute possa entender isso: leza do monumento levantado quando, já no da memória. As recordações são confusas. um passado tão novo que... um dia, houve uma Atenas realmente branca, século V, se retardava o declínio da “sagrada de casario baixo “a um passo do mar aonde colina à beira do abismo”: Levantei-me para vê-la chegando à cal- todos iam se banhar”... La grazia di Atene… CONCLUI NA PRÓXIMA EDIÇÃO FEVEREIRO de 2012 11 De excesso e de falta Conjunto de contos de Glauco Mattoso se enfraquece devido à repetição e à previsibilidade

reprodução O AUTOR Glauco Mattoso :: Marcos Pasche de um soneto (tal situação é por rio de Janeiro – RJ ele vivida ou ouvida); o ato sexual (Pseudônimo de Pedro a ocorrer é precedido por um ato José Ferreira da Silva) lauco Mattoso é desses de podolatria; o centro do enredo nasceu em junho de 1951, raros poetas que, ao é a cena em que um homem, por em São Paulo. Como escreverem, imprimem fantasia libido-moral, rebaixa-se poeta, despontou no em seus poemas incon- ou rebaixa outro homem à felação; cenário brasileiro ligado G à poesia marginal, sendo fundível assinatura. Mesmo para o o ápice da narrativa consuma-se considerado seu mais leitor não especializado, não seria quando quem assume postura pas- importante representante. difícil, após mínimo contato com siva ingere a ejaculação do triun- É também tradutor, sua obra, reconhecer em Glauco a fante: “Depois que sujou bastante ensaísta e ficcionista. poesia tão técnica quanto desbo- a língua na poeira do pé da turma, cada, na qual ele se escancara sem teve que levar rola na boca. Glauco, clamar por piedade nem conferir acho que em todas as missas o Beto superestima a si próprio, a pro- não comungou tanto quanto a por- vocar no receptor indecisão en- ra que engoliu naquela tarde!”. tre o riso e o pavor, e com a qual Além da repetição de taras, demonstra ser possível alcançar o situações e simbologias, as narrati- alto patamar da arte mergulhando vas de Glauco Mattoso soam artifi- no mais baixo calão dos homens. ciais na medida em que seus per- Falo, obviamente, do Glauco sonagens caminham certeiros para Mattoso fascinado pela sujeira fisio- as ações e conseqüências já previa- lógica e moral, verdadeira máquina mente programadas. Em nenhum de escrever sonetos isentos de su- conto há uma inversão inesperada blimação, nos quais a tematização do destino de algum personagem: do sexo em estado bruto é gosto quem gosta de abocanhar aboca- pessoal e também é amostragem nhará; quem não gosta, também. da vocação humana à barbaridade. Nisso, não há sequer uma passa- Mas ele não é poeta de uma nota gem de introspecção, não aparece só, e em seu universo poético habi- um personagem arrependido por tam, sempre com igual densidade, expor sua vítima à vexação, tam- o cronista do movimento urbano pouco há, por parte de qualquer de São Paulo (sua cidade natal), o tipo “machão”, um só vacilo diante crítico do grande teatro político in- da hipótese de se envolver numa, ternacional e o leitor arguto do cur- ainda que fugaz, cena homoeróti- so histórico da literatura brasileira. ca. A esse respeito, os textos Tripé Destaque-se ainda sua polivalência do tripúdio e O zelador felador são ao estruturar o discurso poético, exemplos cabais: no primeiro, um pois o autor (cuja erudição revelou típico sambista, negro, forte e na- em Tratado de versificação) morado de uma mulata, dirige-se Tripé do tripúdio não é apenas sonetista, como sua a Glauco desconfiado de que este Glauco Mattoso hiperbólica produção pode fazer esta —“Não me adaptei, mas hoje tivado como gesto de humilhação. flertava com sua companheira. O Tordesilhas supor (pois ele detém a marca de convivo com a cegueira mais pa- A abordagem dos temas é inega- interpelado desfaz a desconfiança 213 págs. maior autor de sonetos da história cificamente que nos anos 90” —, velmente importante: primeiro por confessando, de forma direta, ser da literatura mundial). plenamente identificáveis na bio- enrijecer a dicção do autor; segun- homossexual, atraindo logo em A variação de Glauco faz-se grafia do autor, aparecem outras, do, por externar a denúncia de al- seguida o sambista — tudo isso também perceptível por sua pro- algo metadiscursivas, a afastar das guns modos de opressão e o silên- em menos de dez falas. Resultado: dução em prosa, seja ensaística ou narrativas a hipótese de registro cio que se faz em torno deles. tudo acabou no samba de Glauco: ficcional. Especialmente em rela- de fatos verídicos: “Digamos que a língua no pé, língua no pau, esper- ção a esta última, o autor mostrou- história pudesse ser desfiada numa Excesso e falta ma na língua. se, a um só tempo, versátil e unís- única ligação e façamos de conta Mas a recorrência temática Em O zelador felador muda- sono. Tanto os romances Manual que o papo tenha rolado assim”. não é alicerçada sobre uma forma se a ambientação, mas não o ime- do podólatra amador (1986) Embora apresente esses itens literária bem elaborada. Em todos diatismo das propensões homos- e A planta da donzela (2005) de importância teórica, a repetição os textos, Glauco — autor, narrador sexuais dos personagens. Odorico, quanto o volume de narrativas cur- do assunto e o encaminhamento e personagem — ouve ou vivencia um zelador de prédio pobre (o ad- tas Contos hediondos (2009) da narrativa para o mesmo desen- situações em que algum homem jetivo serve para ambos), presta- revelam uma escrita à vontade ao volvimento e final de quase sem- foi conduzido, voluntariamente ou se a todo tipo de “serviço” para se transitar entre gêneros e umbilical- pre — a prática da felação como não, a efetivar sexo oral com outro manter no cargo. O síndico Osval- mente ligada ao projeto desenvol- somatório de prazer e subjugação homem (somente em dois contos, do, ao abandonar seu posto, passa vido há tempo considerável, pois — torna o livro muito repetitivo, e História oral e Jugo conjugal, a a Jurandir, seu substituto, todas as estas obras estampam o fetiche, a suas histórias, pouco verossímeis felação é realizada de modo hete- informações acerca do zelador. No TRECHO opressão moral e sexual e o teor para o campo do real e insuficien- rossexual, e em outro, Dinheiro su- momento em que Jurandir e Odo- Tripé do tripúdio autobiográfico tão firmemente pre- tes para o campo do imaginário. ado, Glauco relata apenas ter lam- rico se apresentam, após escasso sentes nos textos em verso do autor A esse respeito, surpreende certa bido os pés de um participante de diálogo, dá-se o seguinte: “E fiz um de Maus modos do verbo. espécie de auto-análise literária um concurso de chulé do qual foi gesto de quem vai desapertar o cin- num dos contos, intitulado Papel jurado). Todos os personagens que to depois do almoço. A senha fun- Engrenagem constante anti-higiênico: desempenham as ações principais cionou como um botão de controle — Me fala do tênis! Quero Tripé do tripúdio e ou- (entenda-se os “feladores”) são remoto. Odorico se abaixou como mais detalhe, Nelo! tros contos hediondos, que ora Um soneto como aquele “Hi- submetidos a algum tipo de rebai- se fosse amarrar o sapato e olhou — Ah, não era novo nem se publica, não destoa da engrena- giênico” (143) me veio na mesma xamento moral, e não raro figuram direto na direção do meu pau”. A gem mattosiana. Mas há neste livro noite em que, conversando com como protagonistas de uma inver- cada dia veiculam-se notícias que, velho (...). por dentro é um considerável porém: enquanto Carlos Carneiro Lobo, a monoto- são dos papéis sociais que simbo- de tão bárbaras, espantam pelo “que o bicho pegava: a consolida o temário, ele sinaliza nia dos contos eróticos foi a pauta lizam a superioridade e subordi- ineditismo. Da mesma maneira, palmilha tinha virado uma enfraquecimento do literário. A central. Comentávamos que, no nação: é o padrasto fissurado pela todos passam por alguns aconteci- razão da baixa seja talvez percebi- caso da literatura gay, sempre urina do enteado; é o condômino mentos que se dão como por pas- poça de suor acumulado, da após a leitura de apenas poucos houve pouca vanguarda e muita posto a amansar a raiva do porteiro se de mágica. Mas nos contos de estava marrom de sujeira. dos vinte e cinco contos arrolados retaguarda, e o magistral ficcio- do condomínio; é o professor escra- Glauco tudo soa automático e re- Depois que cansei de no volume: no conjunto, a estrutu- nista de Histórias naturais e de vizado pelos alunos; é o intelectual tilíneo, pois não acontecem entra- ra dos textos é repetitiva, ao passo Geografais humanas, que costu- branco posto de joelhos e ao dis- ves ou reviravoltas. Neste universo lamber ficou cor de café em que os enredos narrados, a des- meiramente me visitava, expu- por do negro de universo popular. ficcional, as personagens figuram com leite... peito do impacto que possam cau- nha então sua própria teoria a Mas também se contemplam casos como máquinas postas a efetivar — E o gosto? sar num ou noutro momento, são respeito: a arquetípica estrutura mais estigmatizados: “A molecada as obsessões sexuais do autor. A absolutamente previsíveis. narrativa na base do começo- pegou o negrinho pra Cristo não só linguagem narrativa também se — De toucinho, que nem o Todos os textos de Tripé do meio-e-fim, contestável ou não, por causa da cor (mais comum nos apresenta de forma objetiva, o que cheiro. Divino, Glauco! tripúdio são iniciados pelo relato fica reduzida, no homoerotismo, filhos de faxineiras que de inquili- faz, em alguns lances, a literatura — É, Nelo, estou vendo de circunstâncias propiciadoras de à mera sequência ereção-penetra- nas), mas principalmente por ser reduzir-se a mera conversinha de algum poema por parte do autor de ção-ejaculação, que, já pouco cria- forasteiro e órfão de pai”, afirma “colegas” (veja-se o diálogo, citado que, cada vez que bate- As mil e uma línguas: “O soneto tiva por si mesma, resulta ainda Dominação no condomínio. após esta resenha, entre os confi- mos papo, aumentam 653 me veio quando, através dum mais burocrática por estar presa Além dos pênis, as bocas dos dentes Glauco e Nelo a respeito de meus motivos pra invejar amigo americano, fui apresentado a falsos clichês como o mito do pau dominados são sempre dirigidas um porteiro chamado Odair). você... a outro usuário de computador fa- grande e o vício do coito anal. aos pés e, em menor proporção, O fetiche em excesso termi- lante que, como eu, está totalmente aos ânus, não apenas para tocá- nou por deixar Tripé do tripúdio — Então se prepare pra cego e se sente abusado pelos caras A passagem é perfeita para los com carícias labiais, e sim para e outros contos hediondos falto ter um motivo a mais: eu que enxergam”, diz em O aprendi- ler o próprio Tripé do tripúdio deles remover as mais orgânicas e da envergadura literária que torna- não degustei só o tênis zado. As referências objetivas da e outros contos hediondos. humanas sujeiras. Em decorrência ria suas histórias mais verossímeis personalidade do próprio Glauco Todos os textos que o compõem disso, os contos de Tripé do tri- e contundentes. Isso aproximaria do Odair... Mattoso dão ao texto um misto de são pautados pelas questões mais púdio, com raríssimas exceções os contos do propósito do autor de ficção e confissão, inserindo oli- obsessivamente presentes no ima- (estas, quando ocorrem, ligam-se desnudar tabus e bizarrices, apon- vro num polo muito prezado pela ginário de Glauco Mattoso: a ho- a pequenos detalhes), baseiam-se tando-as como normais entre pes- literatura contemporânea — o da mossexualidade, a paixão por pés no seguinte esquema de constru- soas de contextos diferentes. Sem tensão entre acontecido e inven- descuidados, a prática de sexo oral ção: o narrador inicia reportando a invenção literária, o real perde tado. Ao lado de declarações como e de escatofilia e o ato sexual efe- a situação que lhe gerou a escrita muito de sua possível realidade. fevereiro de 2012 12 Otto, cronista e missivista

:: Fabio Silvestre Cardoso otto lara resende por ramon muniz Nas crônicas e cartas, Otto são Paulo – SP Lara Resende se mostra o início da década de um arguto observador dos 1990, o Brasil era um detalhes do mundo país um tanto diferen- Nte do qual conhecemos hoje em dia. Esqueça o discurso triunfalista de uma das principais economias do mundo; de ilha de es- tabilidade enquanto as nações ou- trora mais ricas sofrem com crises políticas e de liderança, sem gran- des expectativas de melhora. Por outro lado, o Brasil dos primeiros anos da década de 1990, que aca- bara de empossar Fernando Collor de Mello, nunca deixava de surpre- ender pelo inusitado, tendo como ponto de vista uma janela no Rio de Janeiro; do mesmo modo que a História recente desse País, bem como seus personagens, ainda se destacava no plano das memórias. Esse diagnóstico não está elabora- do em nenhum manual didático, desses que são distribuídos pelo governo. Em verdade, essa per- cepção do Brasil do início dos anos 1990 tem a ver com as impressões de um observador privilegiado do cotidiano da vida política no Brasil. Otto Lara Resende assinou, duran- te alguns meses, uma das colunas mais visitadas da imprensa bra- sileira. Coincidentemente, isso se deu na última fase de sua vida — e, portanto, infelizmente, ele não foi capaz de ver outras reviravoltas que estariam por acontecer por aqui. De todo modo, a seleta de crônicas Bom dia para nascer, com sele- ção e posfácio de Humberto Wer- neck, é uma bela forma de aproxi- mação desse país do qual já nem lembramos mais e, tão importante quanto, de um dos textos mais bem elaborados da crônica brasileira. De fato, temos no Brasil esse gênero sui generis que é a crônica. Talvez pela leveza de sua aborda- gem, existe uma espécie de con- senso em torno da crítica especiali- zada de que se trata de um gênero não somente menor, mas de pouca elaboração estilística. E é verdade que alguns casos podem comprovar esse cenário pouco sofisticado para as letras nacionais. No entanto, em Otto Lara Resende, temos a crôni- ca no seu formato mais preciso, de um texto capaz de seduzir o leitor pela aparente frivolidade, mas que, olhando de perto, está mais relacio- nado a um tipo de conversa que não se tem mais. Mesmo agora, com o fenômeno das mídias sociais, existe a sensação de que se vive uma nova era da conversação. No entanto, esse falatório de maneira alguma atinge o nível de diálogo e de troca de experiências que uma crônica apresenta. É nesse ponto que os tex- tos de Otto Lara Resende atingem um patamar acima da média do que se publica no gênero, ainda nos nos- sos dias. E é dessa forma que o leitor observa a maneira como o autor de- senvolve os temas em suas colunas, articulando elementos fundamen- tais como correção textual, estilo e o comentário de um cardápio variado, ora com a agenda do noticiário, ora com os assuntos decorrentes da per- cepção do cronista, sem mencionar as recordações e as lembranças de Otto Lara Resende como protago- nista ou coadjuvante.

Vínculo natural Assim, Bom dia para nas- cer abre com a crônica que dá nome o livro. E o autor dá o seu cartão de visitas: no seu primeiro dia como colunista da Folha de S. Paulo, Otto Lara Resende escreve sobre os eventos relacionados à data de sua estréia, o primeiro de maio de 1991. Em algumas linhas — pois uma crônica, para o bem e para o mal, jamais será um ensaio longo —, ele consegue articular acontecimentos históricos tão distantes entre si, fevereiro de 2012 13 Otto, cronista e missivista

mas que, a partir do olhar do cro- O AUTOR nista, passam a ter um vínculo na- Otto Lara Resende : : entrevista : : Humberto Werneck tural. Já no texto Cota zero, talvez Nascido em São João Del para contradizer o argumento de Rei, em 1922, Otto Lara quem afirma que os cronistas não Resende foi um dos principais jornalistas e escritores de O conversador tratam de temas sérios, o autor co- meça com o tema quente, a saber: sua geração, que reunia, a manifestação de neonazistas em entre outros, nomes São Paulo. Aqui, vale a pena uma como Fernando Sabino, :: Fabio Silvestre Cardoso Nelson Rodrigues, Murilo breve digressão. Como bem sabe o são Paulo – SP Rubião e Helio Pellegrino. O Rio é tão longe leitor acostumado a receber textos Como jornalista, atuou em Otto Lara Resende rganizador dos recém-lançados O Rio é tão longe, em “correntes” de e-mail, existe um importantes veículos da Companhia das Letras tom de indignação mais ou menos imprensa brasileira, como 424 págs. volume que reúne a correspondência de Otto Lara pronto quando se trata de assuntos os jornais O Globo e a Folha a Fernando Sabino, e Bom dia para nascer, compi- polêmicos. E é exatamente por esse de S. Paulo, de onde foram TRECHO O Rio é tão longe motivo que boa parte desses textos extraídas as crônicas de Bom lação de crônicas do escritor mineiro publicadas no é atribuída a personalidades da mí- dia para nascer, lançado jornalO Folha de S. Paulo em 1991 e 1992, Humberto Werneck dia — a propósito, um famoso cro- originalmente na década de 1990 pela Companhia das nista contemporâneo já escreveu a fala nesta entrevista sobre a vasta obra e o interesse de OLR Letras e agora relançado respeito dos textos que assina sem pela mesma editora. Como Fernando, por causa do pelo “espetáculo da vida”, sobre a crônica sem data de valida- saber. De volta a Otto Lara Resen- escritor, sua obra é, entre domingo, só hoje recebi de e a qualidade literária do ficcionista, articulista, “correspon- de, ele não viveu essa era da indig- outros, composta pelos nação coletiva que mobilizava mili- livros O braço direito e da sua carta de 8. Estou dente aplicado” e “cronista iluminado” que foi Otto Lara. tantes virtuais. De todo modo, e à coletânea de contos lhe mandando as duas sua maneira, o cronista observou O lado humano. “cartas que aqui chegaram que não é necessário ter grandes idéias para repudiar algo tão nefas- para vocês. Espero que • Quanto à seleta O Rio é tão lon- alfinetadas quase sempre bem apli- to como o nazismo. Nas palavras aí estejam antes de sua ge, é uma surpresa para muitos cadas... Ele desanca, por exemplo, de Otto Lara Resende: leitores o fato de que Otto Lara o crítico Wilson Martins, que em partida, que vai ser mais sobre os temas do cotidiano, em O Resende escrevesse cartas com 1957 recebeu muito mal os sete Perguntar se você é a favor Rio é tão longe, o que se nota é cedo que eu esperava. tamanha profusão. Como orga- contos de Boca do inferno. Esse do neonazismo é assim como inda- a conversa íntima de Otto Lara Re- Sua carta me divertiu a nizador, o senhor percebe uma livro, aliás, reunião de sete contos gar se vê com simpatia o câncer de sende com um dos seus principais valer, eta cartinha gostosa! espécie de continuidade entre protagonizados por crianças nada uma pessoa amada. Tipo da con- interlocutores e, por acaso, com as cartas e as crônicas, como angelicais, custou caríssimo a Otto versa que fica abaixo da cota zero. um dos escritores mais importan- Você é o meu autor se estas fossem conversas em Lara Resende. Wilson Martins não Está no rol do que não precisa ser tes de sua geração — autor, entre preferido... O casal Lara aberto daquelas? chegou a fazê-lo em sentido literal, dito. O açúcar é doce. A água é um outros, de O encontro marcado. está agora muito unido. A palavra talvez não seja continui- mas houve quem borrocasse com precioso líquido. “Ça va sans dire”, Nessa conversa particular, nota-se dade — embora certas crônicas de cocô a fachada da casa de Otto. O diz o Conselheiro Acácio. as inquietações que motivavam a Temos conversado muito Otto, por seu tom de bate-papo, próprio pai do escritor, católico imaginação de Otto Lara Resende, e longamente, nos serões arte em que ele era inexcedível, nos à antiga, teria puxado as orelhas Outra veia bastante explorada que, em boa parte de sua vida, par- noturnos e solitários, dêem a impressão de serem cartas, do filho por ter exposto também o é a do memorialista. E aqui é pos- ticipou do grande monde político e cartas que tivessem sido escritas lado menos amorável da criança e sobre a vida em geral e o sível ver em ação o cronista atento cultural do Brasil, atuando fora do para cada um dos leitores. De ma- do adolescente. Quem volta hoje a com a importância dos aconteci- país como adido cultural, professor amor inclusive, sobretudo neira um tanto esquemática, vejo esse esplêndido livro fica sem sa- mentos políticos do seu tempo. Al- e jornalista. Como se lê, o autor tem sobre a volta ao Brasil quatro escribas OLR. Um deles é ber por que ele provocou reações guém pode dizer que é um jeito fácil um cuidado especial com essa cor- o ficcionista, que quase sempre tão primárias. Quanto à trajetó- — tema permanente de preencher uma coluna, uma vez respondência. E isso fica evidente escreve sobre um universo escuro, ria intelectual, as cartas de Otto a que basta o autor resgatar eventos não somente pela maneira cuida- de Helena. Estou meio abafado, não raro tenebroso, em- Fernando Sabino, em O Rio é tão conforme a sua data de aniversá- dosa como ele se reporta a Fernan- convencido e, de repente, papado de culpa católica, universo longe, deixam transparecer a rela- rio. A princípio, é exatamente isso do Sabino, mas, essencialmente, que reverbera as Minas Gerais inte- ção atormentada que ele tinha com com sua partida, achei que faz Otto Lara Resende quan- pelo estilo adotado pelo autor. Eis rioranas em que Otto foi criado, nas a sua literatura. Já maduro, defi- do escreve sobre o Ato Institucio- o dado chave: as cartas de O Rio Bruxelas ainda mais chata décadas de 20 e 30. Desse porão — niu-se um dia como um “escritor nal nº 5, quando houve o “golpe é tão longe são importantes não do que me parecia! Estou ele próprio usou a palavra — nas- que foge de sua convocação”. Dono dentro do golpe”, conforme avalia porque revelam um escritor preo- ceram, por exemplo, o romance O de muitos talentos, e solicitado o ocioso como um sapo. Elio Gaspari no livro A ditadura cupado com a literatura brasileira braço direito, os contos de Boca tempo todo por tantos deles, ele se escancarada. Otto Lara Resende (como quando diz que vai reler a Que vergonha! do inferno e as duas novelas de dispersou. Nelson Rodrigues dizia tampouco viveu o bastante para ver obra do Guimarães Rosa ou sobre a A testemunha silenciosa. Vejo que Otto era “um cano furado”, a os livros de Gaspari editados, mas entrevista concedida por Nabokov também o Otto articulista — e aqui esbanjar na conversa, no bate-papo, sabia da importância desse aconte- para a revista Time) ou com os ru- estou pensando na magnífica cole- um talento verbal que poderia ser cimento para a vida brasileira. Daí mos políticos do Brasil (ao comen- tânea póstuma de perfis jornalísti- canalizado para a criação literária. o título da sua crônica: Convém não tar sobre o enfarte sofrido por João cos O príncipe e o sabiá —, que Nelson chegou a sugerir, de brin- esquecer. O que mais chama a aten- Goulart em 1964). O que as cartas é bem mais solar do que o ficcionis- cadeira, claro, que se pusesse um ção nesse texto é a maneira escolhi- mais revelam, obedecendo aqui e ta. Ainda mais iluminado e solto é taquígrafo nos calcanhares de Otto, da pelo autor para abordar o tema. ali as idiossincrasias da mudança o cronista Otto Lara Resende, esse para recolher suas pérolas verbais Em vez de recorrer às declarações e de humor de seu autor, é um missi- de Bom dia para nascer, seleta e depois vendê-las numa “Loja de às cenas mais escolhidas, Otto Lara vista que escreve suas cartas como, das 508 pequenas (trinta linhas, no Frases”. Outro amigo, o colunis- Resende oferece uma visão dos muitos anos depois, escreveria máximo) crônicas que ele escreveu ta político Carlos Castello Branco, bastidores sobre o que aconteceu, suas crônicas, com estilo e capa- na página 2 da Folha de S. Paulo em afirmou que nenhum conversador investindo no impacto de uma ima- cidade de flanar pelos temas com Bom dia para nascer 1991 e 1992, os anos finais de sua de seu tempo esteve à altura do bri- Otto Lara Resende gem: a figura de um Carlos Lacerda, naturalidade de um especialista e a vida. E há por fim, soltíssimo, não lho de Otto. Não há dúvida de que o Companhia das Letras outrora o demolidor de presidentes, leveza de um amigo íntimo. Assim, raro endiabrado, o Otto das cartas, escritor mineiro foi mesmo um per- 440 págs. na véspera do AI 5, taciturno e cons- o leitor que esperar uma grande que há quem considere o melhor dulário do espírito. E na consciência ciente da derrota e temeroso por ser revelação talvez possa ficar frustra- dos Ottos. A ver. Dalton Trevisan, disso pode estar a explicação para a TRECHO preso. Não por acaso, esse é um dos do: a grande mensagem do livro é a Bom dia para nascer com quem se correspondeu du- determinação quase neurótica com textos que Humberto Werneck sa- de que a correspondência de Otto rante décadas, talvez pudesse nos que ele, nos anos finais de sua vida, lienta no seu posfácio. Lara Resende estava no mesmo dizer. O carteador Otto está muito trabalhou na revisão de seu único O posfácio é importante por- nível de seus escritos para jornal próximo do Otto artista do bate-pa- romance, O braço direito, pu- que, a essa altura, é natural consi- de muitos anos depois. Em tempo: po. A primeira amostra de sua cor- blicado em 1963. Era como se esti- derar que essa capacidade de trocar não são textos iguais, mas que se Se é questão de orgulho, respondência, O Rio é tão longe vesse tentando recuperar o tempo de assunto com tamanha facilidade assemelham e se aproximam pelo devíamos ter feito para a — Cartas a Fernando Sabino, esfarinhado em outras atividades, se dava tanto pela experiência de estilo de conversa informal. é fascinante. E vem muito mais por resgatando o sonho literário da sua ECO-92 uma bonita edição Otto Lara Resende quanto pelo Num momento em que a aí, pois entre os escritores brasilei- juventude. Essa tarefa, como se fato de que o autor contar com um idéia de conversa está sendo revi- da carta de Pero Vaz de ros talvez só Mário de Andrade foi sabe, o ocupou obsessivamente até suporte por parte do jornal, com sitada pelos agentes evangelistas “Caminha. Certidão de idade um correspondente tão aplicado. a morte. Era um perfeccionista, e só seus copidesques e redatores. No das mídias sociais, os livros Otto muito raramente aceitou republicar de uma pátria nascida tocante a esse último argumento, Lara Resende, longe de debater • Na sua avaliação, por meio seus contos e novelas, assim mesmo Humberto Werneck informa que, assuntos dessa natureza, talvez sir- em 1500, ela é também o das cartas, é possível estabe- retrabalhados à exaustão. Otto que- como poucos de seus contemporâ- vam como exemplos de que é pos- primeiro texto da nossa lecer uma trilha da trajetória ria “despiorar” — era o verbo que neos, o cronista dominava a língua sível manter uma conversa, a um literatura. A exuberância da intelectual de Otto Lara, haja usava — o seu romance, e tantas fez portuguesa. Para além do posfácio, só tempo, agradável e civilizada. vista as referências e as notas que dele acabaram resultando dois existe a comprovação dessa quali- Indiretamente, o cronista ensina terra, associada ao desejo explicativas no rodapé? Num romances. Aliás, cotejar as duas ver- dade do texto de Otto Lara Resen- que não é preciso ser vulgar para se cortesão de agradar ao rei, sentido mais amplo, o senhor sões de O braço direito é trabalho de na coletânea de cartas O Rio é fazer compreensível, muito menos levou o escrivão a inaugurar acredita que o leitor consegue que renderia um estudo interessan- tão longe, também editado pela soar diletante para que seus tex- compor um painel da vida li- tíssimo. Ler um e outro é receber nesta latitude o gênero Companhia das Letras, com intro- tos permaneçam. Para a imprensa terária daquele tempo? uma aula de bem escrever, na medi- dução e notas de Werneck. brasileira, é um alerta de que não ecológico. Sua carta é de fato Sem dúvida se pode compor um da em que observa o rigor com que é preciso ser polêmico ou sisudo um hino de amor à natureza. painel da vida literária a partir ele foi afinando o foco da expressão. Conversa íntima para ser respeitado. Afinal, mes- das cartas de Otto Lara Resende. Otto “traiu” o quanto pôde o seu ta- Nem os índios escapam de Com efeito, o leitor tem a mo sem essa pretensão, os livros Ele se interessava por tudo, e sua lento literário, mas viveu o tempo oportunidade de acompanhar o de Otto Lara Resende, lidos hoje, seu encantamento virgiliano. correspondência dá notícia tam- todo atormentado com isso. cronista em formação. Mais do que apresentam um painel original de (da crônica Perigo bém do que se passava na cena isso: se a crônica, como gênero, é alguns momentos interessantes da literária brasileira de seu tempo. do símbolo) uma espécie de conversa franca história do Brasil no século 20. Não faltam comentários ácidos e CONTINUA NA PÁGINA 14.

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EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO fevereirode 2012 14

Lilo Clareto/ divulgação

Num diagnóstico preciso, o poeta e te nítido do clima de apreensão e mesmo, pois Otto, como disse Hélio não apenas como documento histó- psicanalista Hélio Pellegrino, amigo medo que esse recrudescimento da Pellegrino, sofria de “bibliofobia” rico. Seguem valendo também pela de vida inteira, dizia que Otto sofria violência política desencadeou en- — tinha horror de se ver publicado “pegada” do cronista e por sua qua- de um “complexo de Jonas”: vivia tre intelectuais e artistas. Basta ver em livro. Administrou mal a sua lidade literária. O Otto que trata de saltando da barca e tentando nadar a maneira elíptica e tortuosa com Otto era conhecido, obra. E, como escreveu muito, dei- política não é tão diferente assim do para longe dela, mas invariavelmen- que ele fala de Vinicius de Moraes e xou muita coisa por organizar para Machado de Assis que evoca o Velho te acabava engolido pela baleia da de Hélio Pellegrino, duas vítimas da entre outros talentos, livro. Esse é um esforço que a Com- Senado ou registra o sobe e desce literatura. A leitura de suas cartas ditadura militar naquele momento. panhia das Letras topou encarar. O dos gabinetes do Segundo Império. — a Fernando Sabino, para começar pelo fulgor e rapidez Otto ficcionista, por exemplo, está — deixa bem claro esse processo em • Uma sentença bastante re- “ por ser consolidado. Será preciso • Na sua avaliação, é possível que ele se debatia. Também no final produzida no meio literário de sua inteligência, estabelecer o texto de seus contos e perceber nas crônicas de Otto da vida, Otto trabalhou em surdina (e mesmo fora dele) assina- novelas, e catar nos arquivos o que Lara Resende eco de seus num romance urbano cujo persona- la que “o estilo é o homem”. pelo brilho de suas possa entrar em livro. Como disse, contemporâneos escritores, gem talvez fosse o ex-patrão Roberto Quais características da per- sínteses verbais e ele era um reescrevedor obsessivo. como ou Fer- Marinho. Sua mulher, Helena, conta sonalidade de Otto Lara Re- Uma historinha, para que se tenha nando Sabino? que chegou a ler uns nacos desse tex- sende estão presentes nas pela graça com que uma idéia. Seu último livro publi- Se há influência de outros escri- to já extenso. Os originais, porém, cartas e nas crônicas? cado em vida foi O elo partido, tores nas crônicas do Otto, eu não não foram encontrados depois da Otto era conhecido, entre outros ta- contava histórias. coletânea de contos, nenhum deles percebo. O que ele faz é bem dife- morte do escritor, em dezembro de lentos, pelo fulgor e rapidez de sua inéditos, arrancada do autor de- rente do que fizeram os dois cita- 1992. É possível que ele mesmo te- inteligência, pelo brilho de suas sín- São qualidades que pois de muita insistência e graças, dos — Braga e Sabino. nha destruído o romance. Nunca se teses verbais e pela graça com que em grande parte, ao empenho de saberá. O que se sabe é que Otto, nos contava histórias. São qualidades transparecem tanto Dalton Trevisan. Conta o editor • Qual é a importância dos tex- anos 80, foi traumaticamente demi- que transparecem tanto nas crôni- nas crônicas como Fernando Paixão que Otto só acei- tos de Otto Lara Resende na tido do cargo que ocupava na direção cas como na correspondência. tou republicar aqueles contos de- sua formação como cronista? da TV Globo. Consta que a iniciativa na correspondência. pois de retrabalhá-los. Pois bem, Como surgiu o interesse? partiu de Roberto Irineu Marinho, • No texto que acompanha o li- quando recebi, em maio de 1992, Otto foi um cronista tardio, e quan- filho do dono, e que um dos motivos vro Bom dia para nascer, exis- o exemplar que ele me mandou, do estreou no gênero, no começo seriam as hilariantes imitações que te a menção à análise de Anto- notei que havia emendas à mão no dos anos 90, eu já havia, bem ou Otto fazia de . nio Candido Conversa ao rés conto “Mater dolorosa”. Ou seja, o mal, formado o meu estilo. O Otto do chão. O senhor acredita que livro mal tinha saído da oficina e o cuja influência reconheço, e a quem • Em algumas cartas, nota-se a um cronista como Otto Lara Re- Otto já estava reescrevendo. Tenho muito devo, foi sobretudo o ficcio- preocupação de Otto Lara em sende seria levado mais a sério o maior respeito por esse tipo de ar- nista de Boca do inferno, e de O dar conta dos acontecimentos (digo, no sentido da reputação tista. Há quem diga que o ficcionista retrato na gaveta, lidos e relidos à sua volta para posicionar o dele como autor) pela acade- deixou obra pequena. Mas que im- a partir dos meus 18 anos. Mas é amigo e interlocutor, Fernan- mia se houvesse mais análises porta? Até que me provem o contrá- claro que sou devedor, também, do do Sabino. De que maneira, se desse tipo? Mais: exatamente rio, o que conta é a qualidade. Raul cronista da Folha de S. Paulo, mes- é que isso é possível, o leitor por ser essa conversa brejeira, Pompeia deixou pouco mais que a tre em dizer e sugerir muito num pode ter acesso ao “sentimen- não há uma contradição com obra-primíssima O ateneu. Murilo espaço mínimo. Quem está se ini- to do mundo” daquele período essa alta expectativa em rela- Para além da Rubião, apenas 33 contos. Raduan ciando hoje na literatura, e não me com a leitura dessas cartas? ção à “mensagem” da crônica? circunstância, Nassar, o romance Lavoura ar- refiro apenas à crônica, tem muito Não podemos esquecer que Otto A crônica, como lembrou Antonio caica, a novela Um copo de cóle- a aprender também com a maestria nunca foi um intelectual de gabi- Candido, certamente não é um gê- já ultrapassada, ra e os poucos contos de Menina a do cronista Otto Lara Resende. nete. Foi um homem do mundo, nero “maior”. Essa constatação, caminho. Ninguém precisa escre- interessado até o fim em tudo o que porém, não deveria autorizar o muitos de seus ver pelos cotovelos, não é? Se cada • Quais características são mar- acontecia em torno, no chamado desprezo com que muitos intelec- escritor brasileiro fizesse um livro cantes na crônica atual? Há di- espetáculo da vida. Nem precisaria tuais, e não só acadêmicos, tratam textos continuam de contos da estatura do Boca do ferenças entre a crônica de hoje ter sido jornalista para ter se meti- o gênero. Para dizer como o sam- inferno do Otto, ou simplesmente e a praticada por Otto, Sabino, do em cada canto e se relacionado bista: pra que tanta panca, doutor? cintilando, e não um conto como Gato gato gato, de Braga e Mendes Campos? com tanta e variada gente. Foi um Seria ótimo se em vez disso eles O retrato na gaveta, teríamos a O melhor da crônica genuína de grande leitor — dizia, com graça, nos dessem, em que gênero fosse, apenas como melhor literatura do mundo... hoje — estou falando de Luis Fer- que só não era inteiramente igno- alguma coisa bela e perene como, documento histórico. nando Verissimo, de Ivan Angelo, rante porque sofria de insônia... por exemplo, tantas crônicas de • É inegável que, como cronis- de Joaquim Ferreira dos Santos, —, mas tinha também, plenamente Rubem Braga, um grande escritor Seguem valendo ta, Otto Lara Resende escreveu de Antonio Prata, de Luís Henrique vivido, um lado mundano, digamos que, se não me engano, atraves- sobre personagens e persona- Pellanda e de Ruy Castro, por exem- assim. E suas cartas, obviamen- sou toda uma vida sem receber um também pela lidades políticas e culturais de plo — tem muito dos quatro mestres te, dão notícia de seus múltiplos grande prêmio literário. seu tempo. Diante disso, além citados. O lirismo, o humor, a leve- interesses e curiosidades. Portan- “pegada” do do talento do texto, o que per- za, a reflexão em que a substância to vão se decepcionar os que, por • Embora tenha sido importante manece nas crônicas? Em ou- não abre mão da leveza. Usei o adje- desconhecimento das várias faces interlocutor de grandes nomes cronista e por sua tras palavras, o que Otto Lara tivo “genuína” porque muito do que de Otto, esperarem dele cartas de da literatura e da vida pública qualidade literária. Resende tem a dizer hoje? hoje se publica como sendo crônica escritor apenas. Trata-se de uma fi- no Brasil, é exagero estipular Cronista diário, Otto escrevia para me parece ser coisa bem diversa — gura muito mais complexa, e muito a importância de Otto Lara Re- o dia seguinte, e sobre fatos e per- artigo, ensaio, editorial. Nada con- rica. Ele era um observador atento sende para a literatura brasilei- sonagens da hora, e é natural que tra esses escritos e esses gêneros, e dá notícia de tudo, e não apenas ra no século 20. Nesse sentido, uma parte daquelas crônicas tenha claro. Freqüentemente se trata de do mundo literário. Sua correspon- as crônicas seriam o seu melhor perdido a validade para o leitor de textos oportunos e bem escritos — dência para Sabino em 1964, por testamento literário? hoje. Outra parte, porém, sobrevi- mas crônica, não são. Porque vão no exemplo, permite recompor o clima Falei dos quatro Ottos, e acho difícil ve, ainda quando trate de figuras já trilho da objetividade, entretanto a do Brasil pós-golpe de 64. E quem dizer qual deles deixou legado mais esquecidas, como o ex-ministro An- boa crônica, a meu ver, ainda que lê as cartas que escreveu de Lisboa, precioso. A verdade é que nenhum tonio Magri. Para além da circuns- trate de coisas, acontecimentos e onde vivia, em seguida à decretação deles, até o momento, foi devida- tância, já ultrapassada, muitos de pessoas da atualidade, vai no senti- do AI-5, tem um quadro bastan- mente avaliado. Até por culpa dele seus textos continuam cintilando, e do oposto, o da subjetividade. fevereiro de 2012 : : palavra por palavra : : Raimundo Carrero 15 Após Flaubert, o narrador não foi mais aquele

A educação sentimental traz uma variedade de vozes narrativas, sem que nenhuma delas tenha autonomia

uando se fala em Flau- se no silvo do vapor das máquinas Ao tirar a autonomia Ou seja, um romance sem conteú- O pequeno não cedia, apesar das bert, é certo que Mada- que, escapando por entre as cha- do, apenas com os elementos inter- surras. A mãe, quando tentava de me Bovary será o livro pas de zinco, envolvia a cena numa do narrador nos da narrativa. Nada significava, permeio, apanhava também. Final- Qimediatamente citado. nuvem esbranquiçada, enquanto a nada que fosse estranho à narrati- mente, o pai o pôs no seu cartório Quase nunca a referên- sineta, à proa, tocava sem parar. onisciente, Flaubert va. Nem filosofia, nem sociologia, e mantinha-o o dia inteiro sobre a cia é A educação sentimental, nem história, embora fosse tão escrivaninha, copiando processos, um romance extremamente bem Então, o texto começa com reforçou o poder rigoroso que a história nos seus o que lhe deixou um ombro visivel- escrito, com duas redações distin- duas vozes, porque a impressão ini- romances vinha com informações mente mais forte do que o outro. tas, e que conta a história de dois cial é a de que o narrador onisciente do personagem, seguras e científicas, sendo A edu- amigos, tendo por fundo os episó- está revelando o cenário duplamen- cação sentimental um deles. Quando se analisa a narrativa dios da vida artístico-cultural da te humano e natural. O primeiro, concedendo-lhe voz Ao tirar a autonomia do nar- de Deslauriers comparando com a França, com destaque para os fatos com a participação de muita gente, e olhar narrativos. rador onisciente, Flaubert reforçou de Frédéric diante de outros perso- revolucionários de 1848, em Paris. marinheiros e tripulantes, mas sem o poder do personagem, conceden- nagens, compreende-se a mudança Ao lermos esse clássico do os personagens centrais; o cenário do-lhe voz e olhar narrativos. Ou de caracteres, o que, naturalmente, mestre francês, a primeira impres- natural, constituído por barricas, seja, o texto chega ao leitor através enriquece a narrativa, sobretudo são é de que a história completa cordas, cestos de roupa, chapas de do que o personagem vê e como vê, para quem acredita que lê um nar- pertence, sem dúvida, ao narrador zinco, o próprio navio, mas sabe-se define o caráter e o comportamen- rador onisciente: onisciente. Mas não é bem assim. depois que é um cenário revelado trabalhar livremente, durante três to, o que, evidentemente, enriquece Ledo engano. Os narradores de A a Deslauriers. Portanto, é uma pri- anos, enquanto não obtivesse uma a narração. O narrador tradicional (...) viu um senhor que diri- educação sentimental — não há meira pessoa. Mas como está escri- posição. Tinham assim que por de se ausenta e deixa que os persona- gia galanteios a uma camponesa, um só narrador, como era e é cos- to na terceira, é a falsa terceira; que parte o velho projeto de viverem gens narrem. O narrador tradicio- brincando com a cruz de ouro que tume na prosa de ficção — são os se constitui numa primeira pessoa juntos na capital, pelo menos nos nal onisciente tem, então, uma nova ela trazia ao peito. Era um sujei- seus dois personagens principais. com técnica de terceira. tempos mais próximos. tarefa: a de harmonizar e organizar to forte, de uns quarenta anos, O que só é percebido pelo leitor já Percebam que o narrador fala Frédéric baixou a cabeça. o texto, o que os cineastas chamam cabelos crespos. O tronco robusto no final da primeira parte do ro- sempre à distância, mas, na verdade, Era o primeiro dos seus sonhos de montagem. É nesse sentido, por enchia o jaquetão de veludo preto, mance. Uma habilidosa estratégia ele está ali e por isso mesmo conta. que caía por terra. exemplo, que a montagem se apre- na camisa de cambraia brilhavam literária de Flaubert. — Consola-te — disse o filho senta superior à direção. duas esmeraldas, e as calças lar- Quando o romance começa, ... do capitão —, a vida é longa e nós É assim que o segundo capí- gas caíam sobre estranhas botas num misto de cenário humano e somos jovens. Hei de ter contigo! tulo de A educação sentimen- vermelhas, em couro da Rússia, e cenário natural, o narrador onis- Durante a história, o narra- Não penses mais nisso! tal tem o comando de Deslauriers, alçadas por desenhos azuis. ciente parece oferecer uma visão dor onisciente vai se descolando da cujo olhar chega ao leitor dentro tradicional da história, conduzida, falsa primeira pessoa de Frédéric 1) O narrador onisciente, nesse daquele conceito dos múltiplos Esses dois perfis físico-psi- porém, pela falsa terceira pessoa e ocupando a falsa primeira pes- caso, não é tão onisciente assim: ele narradores: Deslauriers, narrador cológicos determinam o caráter de de Frédéric e não de um narrador soa com Charles Deslauriers, como segue o ponto de vista da personagem onisciente e falsa terceira pessoa. Frédéric e de Charles sob a organi- onisciente. Basta verificar, mais acontece, por exemplo, no parágra- e harmoniza o texto. Vejam bem, har- Veremos, neste sentido, como é zação ou harmonização do narra- tarde, que a voz é dele nessa lon- fo seguinte: moniza o texto segundo a persona- montado o princípio do segundo dor onisciente. No primeiro caso, ga conversa, diálogo com o amigo gem; e não conduz o texto sozinho. capítulo da primeira parte de A Charles vê o pai com um ranço de Charles Deslauriers. Uma rápida O Capitão, que explorava 2) Aqui as três vozes se unem educação sentimental: raiva e vingança; Frédéric, ao con- leitura do primeiro parágrafo mos- agora um bilhar em Villenauxe, através da terceira pessoa. Aquele trário, mostra uma visão meio que tra a riqueza das vozes: deitara fogo pelos olhos quando — Flaubert — que criou o discurso O pai de Charles Deslauriers, romântica do folgazão Sr. Arnoux. o filho lhe exigira a prestação de indireto livre, agora apresenta as antigo capitão do exército, que pe- De forma que aí já é possível defi- No dia 15 de setembro de contas da tutela, e cortara-lhe até muitas vozes narrativas superpos- dira demissão em 1818, voltara a nir o caráter romântico de um e o 1840, o Ville-de-Montereau, pron- os subsídios. Mas, como preten- tas, sem que nenhuma delas tenha Nogent para se casar, e comprara, caráter pragmático do outro. to a largar, soltava os seus grossos dia concorrer mais tarde a uma autonomia. O que lembra o “nós” com o dote, um cartório de mei- rolos de fumo junto do cais Saint- cadeira de professor na Escola, e na abertura de Madame Bovary, rinho, que mal dava para viver. Bernard. Gente chegava esbafo- não tinha dinheiro, Deslauriers tão discutido pelos teóricos. Amargurado com antigas injus- NOTA rida; barricas, cordas, cestos de aceitara, em Troyes, um lugar de O que importa, sobretudo, tiças, sofrendo ainda os efeitos de O texto Após Flaubert, o narrador roupa dificultavam a circulação; escrevente de um procurador. À é discutir o nível de criação em velhos ferimentos e sempre saudo- não foi mais aquele foi publicado os marujos não respondiam a nin- força de privações, economizaria Flaubert, que deu início a toda a so do Imperador, vingava-se nos originalmente no jornal Pernambuco, guém; as pessoas atropelavam-se; quatro mil francos; e, mesmo que revolução da prosa de ficção já em seus próximos da cólera que o cor- de Recife (PE). A republicação entre dois cilindros eram içadas não viesse a receber a herança 1850. Por isso declarou que queria roia. Poucas crianças tinham sido no Rascunho faz parte de um encomendas, e a vozeria perdia- materna, sempre teria meios para escrever um romance sobre nada. mais espancadas do que seu filho. acordo entre os dois veículos. Driblando a morte

:: Vilma Costa escolha de uma forma que promete com a proximidade da morte, atra- discurso é acelerado, na voz de um rio de Janeiro – RJ acolher um conteúdo significativo vés do olhar ou da leitura de uma louco, o texto surge fragmentado e próprio? Especulação ou não, vale vidente. O personagem contextua- recheado de nonsenses. “Momen- livro de contos Quando considerar que o efeito de tal orga- liza suas transformações: tos de grande expectativa aqui no Quando fui morto fui morto em Cuba, nização é bastante expressivo. hospício de Barbacena, estimados em Cuba de Roberto Drummond, Quando fui morto em Cuba Nessa época, já como herói ouvintes: o tempo é bom para a Roberto Drummond Geração Editorial reeditado recentemen- são dois contos, o primeiro, versão unissex da abertura, fiquei famo- prática da Morte! Céu Plúmbeo em O 204 págs. te, foi publicado pela primeira vez erótica, entra em campo nos primei- so no Brasil como um show-man Barbacena, a Cidade das Rosas, cai em 1982. Traz as marcas de um ros minutos do primeiro tempo e o ou uma woman-show (...): posei uma chuva fininha,...” ou “– Alô, complexo momento histórico vivi- outro, na versão política, entra nos para anúncios de xampu, de ban- alô, Ernesto Che Guevara, estou en- do pelo povo brasileiro, rescaldos últimos minutos do segundo tem- cos, refrigerantes, cadernetas de viando, através do grande Heleno perimentalista e pós-moderno do da ditadura militar, do crescimento po, finalizando o jogo, ou melhor, poupança, automóveis e também de Freitas, um santo e miraculoso autor. Inútil, entretanto, tentar en- econômico desordenado, de revira- o livro. O narrador personagem de de brincos e de batom, porque era remédio para a sua asma, que, se- quadrar sua literatura em qualquer voltas culturais, políticas e sociais cada um deles conta os sobressaltos Marta Rocha, era Raquel Welch, gundo eu soube, anda incomodan- “ismo” absoluto ou definitivo. instaladas pelo mundo. que sofre com a ameaça permanen- era Vera Fischer... do sobremaneira o caro amigo nas As referências contextuais O autor, que se tornou conhe- te de morte em sua visita a Cuba. lutas guerrilheiras no céu”. Segun- chegam, às vezes, a sugerir textos cido mais amplamente pelo seriado Em ambos os contos, apesar da No último conto, a atmosfera do o discurso de um louco, Heleno datados e, de certa forma, anacrô- televisivo Hilda furação, tinha já perspectiva diferenciada do ponto de suspense permanece, mas o enfo- de Freitas se constitui no grande nicos, se não fora essa profusão de uma obra construída em diferen- de vista temático, a morte que ron- que político é mais direto, reporta-se herói brasileiro, que vai driblando: linguagens e recursos estéticos que tes gêneros: crônicas, contos, ro- da é mais do que a morte física e de- à ditadura militar, ao assassinato de “dribla a fome brasileira, dribla a provocam desvios e quebras de ex- mances. Daí ser bastante oportu- finitiva. É uma morte simbólica que companheiros, a uma visita a Cuba solidão..., dribla a mortalidade in- pectativas do leitor. Esses escritos na, hoje, a iniciativa de reedição. A vai tomando em vida a identidade como redenção e realização de um fantil brasileira, ... deixa o desem- são mesclados de marcas publici- distância de alguns anos pode ser do sujeito, tanto do ponto de vista desejo dos companheiros mortos. prego de quatro na grama” e, por tárias, cinematográficas, datas e lo- uma boa lente para ampliar nossa sexual e erótico quanto da perda Contudo, como na outra versão, a que não, dribla a própria morte. cais que de certa forma foram cons- leitura e nos ajudar a refletir sobre de sonhos, esperanças e perspec- morte e o assassino nada oferecem Muitos são os recursos que titutivos da linguagem coloquial a nossa história recente. Trata-se, tivas políticas. No primeiro conto, de espetacular ou glamouroso ao constroem esses contos na polis- de uma época e, muitos dos quais, entretanto, de uma obra ficcional, a diluição identitária desse sujeito nosso anti-herói. O discurso panfle- semia de vozes e no hibridismo de encontram-se hoje apagados ou a maneira como os textos se orga- subjugado aos valores já corrom- tário não tem vez. Não se morre pela gêneros e linguagens. São inúmeros desconhecidos pelos mais jovens. nizam em termos discursivos e as pido por um sistema utilitarista e causa, mata-se a identidade, mata-se os exemplos: a crônica jornalística Seus personagens entram no escolhas de linguagem não deixam cruel corrói o pouco que sobrou dos a utopia, morre-se uma morte besta, do cotidiano, o discurso radialísti- jogo como num campo de batalha, a menor dúvida. Os contos são bem esforços de uma luta individual e tão absurda quanto a realidade con- co, a linguagem cinematográfica de entre o grito e o silêncio imposto, diversos entre si, têm em comum a coletiva de sobrevivência digna, hu- creta e inverossímil que viveu o povo cortes, imagens, fragmentos e mo- entre a busca de sentidos e o absur- morte como elemento presente, ou manamente impossível, mas, ape- brasileiro naqueles anos. vimentos (Sessão das quatro e O rio do, entre a vida e a morte. Ganhar como eixo temático ou apenas como sar disso, perseguida. Elementos Últimos instantes do grande é um deus castanho), o texto dra- ou perder, pouco importa, é preciso aspecto circunstancial, dialogando fantásticos mesclam e direcionam a Heleno de Freitas no hospício de mático teatral, todo em diálogo que sobreviver, apesar da morte certa e com outros aspectos. Estruturam- consciência dessa realidade absur- Barbacena (segundo a narrativa quase prescinde de um narrador iminente, a vida pulsa na dor, na tor- se no livro como num campo de da. Enquanto fatos, observam-se as de um louco, feita no estilo de um (Pela porta verde), mudanças de tura, na resistência, dribla a morte. E futebol, durante um jogo: 17 contos metamorfoses do personagem em locutor esportivo transmitindo um foco narrativos pontuados (Por fa- mesmo vencida, sobrevive enquanto divididos em Primeiro tempo (oito), diferentes personas, independen- jogo de futebol): eis aqui o título e lar na caça às mulheres), o “grafite, fantasmas ou fragmentos de lem- Intervalo (um) e Segundo tempo temente de sua vontade, ao mesmo o subtítulo do conto que compõe spray, sangue e piche” nos muros branças que precisam de registro, de (oito). Mera referência à grande tempo que vai tomando consciên- a parte intermediária do livro, ou da cidade, etc. Isto provavelmente uma história que precisa ser contada, paixão do autor? Ou, além disso, a cia de seu passado e de seu presente seja, o Intervalo. Como a locução, o nos leve a considerar o caráter ex- que jamais pode ser esquecida. FEVEREIRO de 2012 16 : : ruído branco : : luiz bras Rumo ao mínimo (3)

A boa literatura sobre o último homem na Terra ou sobre o mundo sem ninguém é matéria-prima para muita reflexão

uas de minhas narra- Aqui, ali, acolá. Então a esperança que existem mais contos do que ro- Ray Bradbury escreveu um tituições humanas: Marx, Dewey e tivas contemporâneas renasce e o homem sai perseguindo mances sobre o último homem no breve e delicado conto sobre um Habermas, entre outros. Exemplos prediletas, sobre o úl- esse toque fantástico que insiste em planeta. Pra dizer a verdade, não co- mundo sem ninguém, intitulado de pensadores que se preocuparam Dtimo homem na Terra, escapar por entre seus dedos. nheço nenhum romance que seja fiel Chegarão chuvas suaves. Publicado com a autonomia do indivíduo, sua apresentam narradores lacônicos e Pelo seu vigor expressivo e a esse tema da primeira à derradeira originalmente em 1950, mais tarde autocriação: Kierkegaard, Nietzs- protagonistas inominados: Acenda pela forte impressão em meu ínti- linha, em que o protagonista perma- também incluído em As crônicas che e Heidegger, entre outros. uma fogueira, miniconto de Causo, mo, o incêndio de Causo, o suicídio neça realmente sozinho do começo marcianas, o conto narra os últi- Por que as duas forças são in- publicado em 1999 na coletânea A de Brites e o toque de telefone de ao fim. Talvez um romance assim já mos dias de uma casa automatizada, conciliáveis? Segundo Rorty, porque dança das sombras, e Da cida- Bradbury foram convidados a par- exista por aí, em esperanto, novial depois que seus moradores morre- “os historicistas em quem predomi- de que não conheço, 3 de Agosto de ticipar de meu romance Sozinho ou volapuque. Nunca se sabe. ram. Desta vez o único protagonis- na o desejo de uma comunidade hu- 2013, conto de Cláudio Brites, publi- no deserto extremo. Os antigos Um passo à frente, na cami- ta é a própria casa, que continua mana mais justa e mais livre tendem cado em 2010 na coletânea Cartas sabiam bem: a melhor maneira de nhada rumo à extinção humana, funcionando, fazendo mil coisas a ver o desejo de perfeição privada do fim do mundo, organizada por homenagear uma cena ou um deta- encontramos a narrativa sobre o mecânicas — servindo as refeições, como algo contaminado pelo irra- Brites e Nelson de Oliveira. Nessas lhe de rara beleza é incorporando-o. mundo sem ninguém, totalmente fazendo a faxina, projetando filmes, cionalismo e pelo esteticismo”, en- duas ficções a humanidade foi var- Oswald de Andrade diria: deglu- abandonado. Esse é exatamente o etc. —, sem saber que não há mais quanto “os historicistas em quem rida do planeta, restando apenas um tindo. Os borgs diriam: assimilan- título de um excelente documentá- ninguém por perto. Até ser inteira- predomina o desejo de autocriação, indivíduo desnorteado e desconso- do. Foi o que eu prazerosamente rio produzido pela BBC de Londres: mente consumida por um incêndio. de autonomia privada, tendem a ver lado, certo de que, igual ao leitor, fiz com essas três situações de que O mundo sem ninguém. A premissa A boa literatura sobre o último a socialização como antitética a algo jamais descobrirá o que realmente tanto gosto. Incorporei. Degluti. é muito simples: digamos que num homem na Terra ou sobre o mun- existente nas profundezas de nosso ocorreu. Após a angústia inicial co- Assimilei. Concordo que o contexto belo dia de 2010, todos os seis bi- do sem ninguém é matéria-prima ser”. Ainda segundo Rorty, também mum a todas as histórias desse ramo narrativo é outro, que as tramas são lhões de seres humanos desapare- pra muita reflexão. Até mesmo pra entre os escritores há os que escre- ­— o que está havendo? o que causou muito diferentes, mas pra bom en- ceram sem deixar vestígio. Todas as dissertações de mestrado e teses de vem sobre a justiça social (Tolstoi, isto? estarei sonhando? —, em cada tendedor — no fim só interessam os cidades estão desertas. Não há mais doutorado. O que os melhores exem- Orwell, Nabokov) e os que escrevem narrativa há um momento dramáti- bons entendedores — umas poucas homens, mulheres e crianças em plos desse ramo da ficção científica sobre a autonomia individual (Poe, co pleno de força poética: o incêndio pintas já entregam a onça. parte alguma. Apenas os animais têm a dizer a respeito do superpopu- Rimbaud, os surrealistas). Dois ti- das metrópoles, em Acenda uma fo- De todas as possibilidades não foram exterminados. Da passa- loso mundo em que vivemos? Sobre pos de escritor, usando ferramentas gueira, e o suicídio falhado, em Da criativas que a ficção pós-apocalíp- gem de nossa espécie pelo planeta o perpétuo embate do indivíduo com diferentes: “ambos têm razão, mas cidade que não conheço, 3 de Agos- tica oferece ao ficcionista, a narrati- sobraram as obras de engenharia e sua comunidade? Sobre o extermínio não há como fazer com que os dois to de 2013. A civilização sendo dizi- va sobre o último homem na Terra arquitetura, os meios de comunica- da espécie humana promovido pela falem a mesma língua”. mada pelo fogo e o suicídio baldado é, na minha opinião, a mais difícil ção e transporte, as obras de arte, sociofobia latente de certos autores? Nos contos, novelas e romances pela descoberta da imortalidade fo- de compor. Comecei a desconfiar os livros, etc. A pergunta que os É sabido que duas forças an- sobre o último homem na Terra ou o ram dois momentos literários que disso enquanto escrevia os primei- produtores e os roteiristas vão res- tagônicas e inconciliáveis tensio- mundo sem ninguém esse conflito me comoveram. ros capítulos de Sozinho no de- pondendo ao longo dos episódios nam a musculatura da consciência está sempre presente. No enredo, na Outra situação que me encan- serto extremo. Por volta da pá- é: quanto tempo tudo isso duraria humana: uma força puxa nossa configuração do narrador e dos per- tou bastante, pela surpresa e pelo gina cinqüenta, passada a surpresa sem a nossa presença? A resposta: consciência para o mundo social, sonagens, na atmosfera otimista ou suspense, pertence ao passado não inicial com o desaparecimento de não mais do que poucos milhares de público, enquanto a outra puxa pessimista da narrativa. Conectando muito distante dos protagonistas com todos, a rotina começou a rondar o anos. Logo no início, sem que haja nossa consciência para o mundo a obra e o autor: a expressão literária nome próprio e dos narradores equi- último homem, Davi, e sua jornada pessoas pra fazer a manutenção, as particular, subjetivo. Richard Ror- e a angústia pessoal de alguém que, librados e objetivos. É a cena do tele- existencial. A maior dificuldade, em bibliotecas virarão poeira, as flores- ty, em seu primoroso livro Contin- no combate efetivo à crueldade e à fone, no conto de Bradbury, As cida- narrativas assim, é impedir que o tas e os animais selvagens invadirão gência, ironia e solidariedade, exploração, assassina a civilização in- des silenciosas. O último homem em enredo afunde na monotonia. Sem as cidades, a corrosão derrubará os reflete cuidadosamente sobre a teira. Às vezes pra preservar a utopia Marte, já conformado com a situação outros personagens com quem inte- edifícios e as pontes, as refinarias de história e as conseqüências des- de um único indivíduo, agora livre inapelável, vem subindo uma rua ao ragir, o protagonista solitário deva- petróleo se transformarão em bom- sa tensão inevitável. Exemplos de pra cuidar apenas de suas necessida- entardecer. De repente, o toque de gar vai perdendo a graça. bas-relógios, submarinos nucleares pensadores que se preocuparam des profundas. Às vezes pra preser- um telefone rompe o silêncio. Onde? É certamente por esse motivo explodirão no fundo do oceano… com a origem e a estrutura das ins- var a utopia de indivíduo algum.

Viagens dentro de si

:: Adriano Koehler que o delírio, o imaginário e o onírico curtos, que o autor define como um Curitiba – PR ditam o tom da narrativa. Podemos lampejo poético, que joga alguma estar parados em um quarto de ho- luz sobre o caminho do persona- otéis à beira da tel, olhando para o horizonte, mas na gem, mas traz ainda mais neces- noite, de Per Johns, cabeça do protagonista passam rios sidade de reflexão e interpretação é um romance sobre e rios de idéias, pensamentos e refle- para o leitor. Como Johns disse Hviagens. Há viagens xões. Não à toa Johns usa uma pa- num encontro no PEN Clube do físicas, mas as mais importantes lavra criada por James Joyce, river- Brasil em maio de 2011, “essas pe- são aquelas que acontecem na ca- run, palavra que abre o enigmático e quenas prosas tenham o pequeno beça do protagonista, Coriolano inclassificável Finnegan’s Wake. ou grande inconveniente de terem O AUTOR Hotéis à beira Warming, chamado anteriormente É um desfiar sem fim de pensamen- que ser pescadas no mar revolto de Per Johns da noite de Hans Magnus. Acompanhando tos, rápidos, que não retornam, ape- uma prosa rascante”. Para que elas Per Johns o fluxo de idéias de Warming/Mag- nas seguem em frente. façam sentido ao leitor, é necessá- É ficcionista, ensaísta, Tessitura tradutor. Nasceu no Rio de nus, vamos penetrando na trama do Em outro ponto, o protagonis- rio relembrar o percurso de War- 324 págs. Janeiro, em 1933. Formou- livro para não sair mais, querendo ta declara peremptoriamente: Fui! ming/Magnus. O mistério em tor- se em Direito, mas nunca chegar logo ao fim e descobrir o que A partir da segunda parte do livro, o no do personagem continua, mas exerceu a profissão.T rabalhou exatamente aconteceu. Infelizmen- protagonista se desdobra em outros pelo menos podemos compreender em empresas industriais, te, ou de propósito, o autor não dá três personagens, seus alter egos, melhor o seu pensamento naqueles comerciais e de serviços, nenhuma resposta de mão beijada que irão lhe dando a direção a se- momentos, sem que seja necessário tendo vivido em São Paulo ao leitor. É necessário algum traba- guir. Warming/Magnus sai do Bra- voltar ao passado do protagonista. de 1962 a 1970. Foi cônsul da lho para conseguir percorrer as tra- sil em busca de um norte ao mesmo Esse é um grande mérito de Dinamarca no Rio de Janeiro vessias propostas por Johns. tempo físico e mental. É uma via- Hotéis à beira da noite, e do au- de 1978 a 1990. Reside atualmente em Teresópolis, Há dois caminhos que são se- gem de volta às raízes de si, mesmo tor. O passado do funcionário cor- onde, além de escrever, guidos simultaneamente pelo prota- que ele não saiba exatamente onde rupto não precisa ser recuperado, dedica-se à agricultura gonista e, conseqüentemente, pelo elas podem estar. Para o leitor, é ne- basta essa informação de que ele orgânica. Como crítico leitor. Um caminho é o mais simples, cessário muita atenção para não se quer se livrar dele. A busca pela per- literário colaborou, entre em que Warming/Magnus viaja de perder. Em alguns momentos con- da da identidade externa e a procura outros órgãos da imprensa, uma cidade a outra do mundo, esca- seguimos até descobrir o que fez o pela essência da própria identidade, em O Globo (regularmente pando de pessoas que possam signi- personagem abandonar tudo — ele do que de mais verdadeiro ele pos- de 1977 a 1981), Jornal do ficar para ele alguma conexão ao seu era um funcionário público cor- sui, é suficiente para se construir Brasil e O Estado de S. Paulo. passado. O objetivo do protagonista, rupto que, após juntar fortuna com um romance instigante, de difícil Estreou em livro com o romance A revolução de que viaja com duas pequenas malas, subornos, resolveu sumir no mun- classificação. Em alguns momentos Deus, em 1977. As aves muito dinheiro no bolso, um passa- do e tentar se purificar —, mas não pode haver um excesso de prosa po- de Cassandra, de 1991, foi porte falso e mais nada, é romper sabemos como ele fez isso, quando ética, em outros uma falta de mais indicado ao Prêmio Jabuti. em definitivo todas as ligações com fez, com quem, quanto. Não há da- detalhes práticos, mas não se pode Em 2006, seu livro Dioniso seu passado e, até mesmo, com seu tas na narrativa, apenas instantes e negar o magnetismo que Warming/ crucificado foi premiado presente. Ele quer se isolar do mun- memórias. Parece que há uma mu- Magnus exerce sobre o leitor. Se pela Academia Brasileira de do, ser intocável, e por isso mora de lher na vida do protagonista, mas você se deixar conquistar, vai que- Letras, na categoria Ensaio, hotel em hotel, onde o dinheiro abre não nos é dado a saber se foi sua na- rer descobrir mais sobre ele e qual Crítica e História Literária. portas e cala as perguntas. Esse ca- morada, noiva, esposa, amante ou o será o fim das viagens. Ao longo do minho está bem definido, segue-se quê, nem qual a exata importância caminho, nenhuma resposta será com facilidade ao longo do livro. dela na vida de Warming. O perso- simples. Nem mesmo os eventuais O segundo caminho é mais nagem realmente não tem âncoras usos de línguas estrangeiras em fra- complicado, pois envolve a torrente com nada, e o leitor vai junto com ses ou poesias curtas prejudicam ou de pensamentos de Warming/Mag- ele à deriva pelo mundo. Há uma chegam a ser pedantes, pois é um nus. Quando Johns fala da viagem fí- idéia de direção, de rumo, mas não conhecimento que pertence tanto sica, a linguagem é elegante, precisa, se sabe bem qual é o ponto de che- ao autor — brasileiro de pais dina- direta. Quando entramos na cabeça gada, ou se ele existe mesmo. marqueses — como ao personagem. do protagonista, temos algo mais Para complicar, a parte final A melhor dica é deixar-se levar pela parecido com uma prosa poética, em do livro traz uma série de textos torrente, e ver aonde vai dar. fevereiro de 2012 : : inquérito : : Veronica Stigger 17

divulgação “Esta é a graça da literatura: não há receitas”

1984 foi um ano marcante para Veronica Stigger: em seu 24 de agosto, decidiu que seria astronauta. O plano não deu certo e a gaúcha radicada em São Paulo enveredou por outro caminho — o da literatura. Doutora em História da Arte, Veronica publicou seu livro de estréia, O trágico e outras comédias, em 2003, seguido por Gran cabaret demen- zial e Os anões. Desde então, trocou o terno de astronauta pela lite- ratura de Borges e os problemas da física pelos que cria para si própria quando escreve. A seguir, a autora esnoba a eternidade, desaponta ETs e fala sobre o trabalho de escritor e o meio literário. “Não acho que os defeitos capazes • Quando se deu conta de que queria • Um livro imprescindível e um ser escritora? descartável. de destruir Não lembro exatamente quando. Mas lem- Um livro imprescindível é Ficções, de bro o momento exato em que decidi que se- Borges. Os descartáveis são também es- um livro sejam ria astronauta. Foi às 15h14 de 24 de agosto quecíveis. Esqueci-os todos. de 1984, também conhecido como “o dia em generalizáveis. que nevou em Porto Alegre”. • Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro? Algo que é defeito • Quais são suas manias e obsessões Não acho que os defeitos capazes de des- num livro pode literárias? truir um livro sejam generalizáveis. Algo Minha maior mania, quando estou escre- que é defeito num livro pode revelar-se revelar-se elemento vendo, é me levantar para tomar água a elemento fundamental em outro. Esta é cada quinze minutos. a graça da literatura: não há receitas. fundamental

• O que lhe dá mais prazer no proces- • Qual a sua maior preocupação ao em outro.” so de escrita? escrever? Quando, enfim, consigo resolver todos os Enganar bem. problemas que eu mesma criei para mim. • O que você espera da eternidade? • Qual o maior inimigo de um escritor? Que não exista. O telefone. • Se um ET aparecesse na sua fren- • O que mais lhe incomoda no meio te e pedisse “leve-me ao seu líder”, literário? a quem você o levaria? Resenhistas que não lêem ou, se lêem, não Eu diria para ele: “O senhor chegou tarde. compreendem os livros que estão rese- Não há mais verdadeiros líderes. Estão to- nhando. dos mortos”. fevereiro de 2012 18 O negro e a véspera Américo Facó poetiza o banal e o cotidiano, desentranhando beleza inclusive do trabalho braçal

O AUTOR Américo Facó :: Gilberto Araújo princípio estruturador, na possível Pedro Lena, branco, sai do centro Imagem nunca mais perdida rio de Janeiro – RJ tentativa de, também na forma, ul- para o subúrbio. Como Pedro Osó- Surta na sombra, que demora! jornalista, poeta e escritor, trapassar a unilateralidade. rio de O recado do morro, recebe Nocturno ardor, boca de aurora nasceu em Beberibe (CE), uando lembrado, o es- Em diversas ocorrências, Sin- um recado, mas das águas: “Um Que oferta a fruta apetecida! em 21 de outubro de 1885. critor cearense Américo fonia negra encena a superação momento, um claro momento, ima- Forma de si mesma despida, Realizou os primeiros estudos Facó costuma ser inseri- do preconceito pelo amor, que desse ginou também que lhe chegava aos Imagem sempre a mesma — embora em Fortaleza. Em 1907, já do na Geração de 1945. A modo assume potencial revolucioná- ouvidos um murmúrio impreciso... Paire suspensa além da vida, colaborava no Jornal do Q Ceará, com artigos e poemas. maioria dos poetas dessa época retru- rio (já na mesma direção, Essa negra Como toada longínqua de um canto Penso que a vejo viva agora, Transferiu-se em 1910 para o cava aos desmandos do modernismo Fulô, de Jorge de Lima, é bastante sem palavras”. O encantamento com Não porque a veja revivida, Rio de Janeiro, onde fundou as de 1922 com uma assepsia estética, anterior — de 1928): “Toda raça ven- a linguagem, suscitado pelo contato Só por sonhá-la a igual de outrora. revistas Idéia Ilustrada, Pan saudosa das formas clássicas e dos te- cida por outra, e batida, e pisada, e com os negros, reflete-se na forma — ambas de 1924, publicando mas universais. Em vez das inovações esmagada sob o seu jugo, ainda sub- narrativa, que, como a rosiana, é A metáfora floral, herdeira da nesta última Triunfo, o primeiro estruturais e do nacionalismo paródi- siste femininamente”. Daí as muitas pródiga de assonâncias, aliterações e imagem baudelairiana da natureza conto de Clarice Lispector co, passou a predominar um discur- cenas de comunhão étnica. Apesar de ecos: “abril, águas mil!”; “Céu azul?/ como “floresta de símbolos”, ressur- — e O espelho (1930). so meditativo, filosófico e em geral descrever contatos de senhores com — Zu-zu-zulinho!”. ge em Ar da floresta noturna, onde Ainda em 1924, colaborou conciso. Américo assim o fez, mas escravas (Matita), Américo Facó não Em Sinfonia negra, des- a noite, como em Baudelaire e em na revista Estética e criou a Agência Brasileira de Notícias, sua poesia, a despeito do evidente se restringe ao conhecido fetiche, des- filam quadros de feitiçaria e de Novalis, é uma “doce mensageira”. primeira central de divulgação rigor formal, privilegiou uma dicção folhando, em contrapartida, vários sobrenaturalidade, nos quais o Em Facó, o tempo abriga epifanias: jornalística do país. Foi caudalosamente musical e imagética. arranjos amorosos: da criança branca misticismo e as religiões africa- se a noite desperta os fantasmas, o responsável pela página literária Boa parte de sua produção ainda está com a mucama (Experiência), do ne- nas realizam premonições certei- dia dissipa-os, numa dinâmica entre da revista carioca Fon-Fon. dispersa em jornais. Seus dois únicos grinho com sua senhora (Pai João), ras (Alma penada, Xandô, Cousa segredo e elucidação, “entre a res- Estreou em 1946, com Sinfonia livros — Sinfonia negra (1946) e das moças com suas mucamas (O ba- oculta, O colar de Oxumaré). É posta e a promessa”. negra, a que se seguiu, em Poesia perdida (1951) — tornaram- nho), da família branca com o escravo interessante observar que os mo- Essa tensão aparece na bela 1951, o volume de versos se raridades, felizmente repostas (O senhor pobre), do escravo com a dernistas geralmente comprovam a Sextina da véspera, transcrita nesta Poesia perdida. Faleceu em circulação por Floriano Martins, senhora (Justiça), de crianças negras “eficácia” desses vaticínios, como se página. Pequena jóia formal, o po- no Rio de Janeiro, em 3 de janeiro de 1953. que as reuniu no volume Américo e brancas (Divertimento), entre os com isso desfizessem o preconceito ema compõe-se de seis estrofes de Facó: obra perdida (2011). negros (Martim Jongo). Os constan- religioso: leiam-se, por exemplo, seis versos, que terminam com as Em jus ao título, a obra de 1946 tes casos de adultério (Alica, Sanim) Macumba do Pai Zuzé, de Manuel mesmas seis palavras, reorganiza- trata da negritude. Na literatura bra- não deixam de exprimir esse clima de Bandeira, bem como alguns Poe- das a cada estância. Formalmente, sileira oitocentista, de incontinência amorosa. mas negros. Entretanto, em ca- é redundante e claustrofóbico, mas aos abolicionistas do fim do século, Embora a sensualidade nun- minho diverso do desses autores, nele predominam, desde a primeira os textos sobre os negros eram em ca se dissipe, sobra espaço ao amor Facó incorpora muito obliquamen- sextilha, imagens de abertura e de geral combativos, com ênfase na brando e ingênuo, em que o corpo ne- te palavras africanas, projetando as desabrochamento. Tal conflito des- raça em detrimento do indivíduo, gro se torna maternal: “Estendendo marcas da cultura antes no ritmo dobra-se nos pares opositivos “sono” conforme evidencia a abundância de o braço, a mucama atingiu-lhe a ca- do que na seleção vocabular. e “sonho”, “tempo” e “destino”, “noi- plurais (Os escravos), metonímias beça, acariciou-lhe os cabelos. Juqui- Dentre os textos religiosos, te” e “manhã”. O jogo de inércia e e generalizações (O navio negreiro, nha sentiu-se aliviado”. O texto Mãe destaca-se Noite negra, uma “es- movimento atualiza o dilema pri- Vozes d’África). Se o apelo coletivo preta reforça a atmosfera afetiva: es- trada sonora” que cria jogos fô- mordial entre resposta e promessa e Obra perdida dificultou o aprofundamento psico- crito em versos, suas rimas internas nicos para mimetizar o batuque culmina na imagem da véspera, que, Américo Facó lógico, tal produção não deixa de ser lembram as cantigas de ninar: “Pre- ancestral: “Os atabaques toavam”; querendo o amanhã, sofre a angústia Secretaria da Cultura legítima, já que, contemporânea à es- so o infante no laço de teus braços / “Música abafada, soturna música, a do hoje. Por isso, a sextina situa na do Ceará cravidão, a atacou destemidamente. Com teu leite bebia a melodia / De um tempo remota e próxima, como tarde o esplendor da Rosa, como se 160 págs. Por outro lado, é válida a observação tua voz — o canto de acalanto”. Igual sombria, ondulosa murmuração da nesse período intermediário (como a de José Guilherme Merquior de que destaque merece a ausência de cenas noite”. O negro Casimiro é exímio véspera) a flor fosse simultaneamen- nosso romantismo “branqueou” o de sexo na Sinfonia, pois, como se dançarino e seduz as moças que, te óbvia e misteriosa, literal e simbó- negro: sem auscultar-lhe as especi- sabe, a caracterização do negro como como ele, estavam na festa de Tia lica, diurna e noturna. ficidades culturais, idealizou-o para ser intrinsecamente lúbrico tornou- Sabina. No entanto, sua idéia fixa é Afere-se a mesma dualidade, re- mais facilmente atrair a platéia bur- se estereótipo em nossa literatura: um amor ausente; para expurgá-lo, alçada pelos nanquins claros-escuros guesa à causa abolicionista. citemos, por exemplo, A carne, de ele dança sobre brasas vivas. Ca- de Chin ilustrando o livro (felizmente Declarada a Abolição, ganha Júlio Ribeiro, em que o intercurso se- tárticos, o fogo e a dança elevam o preservados na nova edição), em poe- relevo a obra de Cruz e Sousa, que xual entre dois escravos é descrito de personagem a um estágio de transe, mas como O outro e Narciso: “Minha incide na discrepância entre o reco- modo brutalmente animalizado. descrito com interessante oscilação alma se desdobra/ O mesmo e outro nhecimento legal da libertação e as A par da re-humanização do gráfica, conduzindo-o a uma floresta me vejo”; “Sou dois num sem mu- cicatrizes históricas deixadas pela amor negro, Facó, na esteira de imaginária, onde ele se purifica com dança,/ Uno e só duas vezes!...”. En- escravidão, legando uma obra rica , poetiza o banal e o concurso de orixás, em mágica tretanto, não se trata apenas de uma em nuances psicanalíticos, oscilan- o cotidiano, desentranhando bele- união de música, canto e dança. ambigüidade identitária, mas de uma tes entre o recalque e a aceitação za inclusive do trabalho braçal: em duplicidade ontológica, essencial: nós das matrizes africanas. Não esque- Roupa na corda, a animização das Harmonia e unidade seríamos ao mesmo tempo homens e çamos, porém, que Cruz e Sousa era peças no varal gera imagens de força Recorrente na obra de Américo deuses (daí a referência a Narciso), fi- negro, o que naturalmente favorecia ímpar: “Largos lençóis, alvos lençóis Facó, o desejo de harmonia e de uni- nitos e perenes: “Ó simultaneidade,/ a investigação interior. de linho! Elevam-se, estendem-se dade em todas as instâncias da vida — Rosto vivo de tudo,/ Espelho fundo, e Interessados na riqueza étnica em plano horizontal... Como leitos da social à cósmica —, consuma-se no mudo,/ E múltipla unidade!”. brasileira, os modernismos da pri- oferecidos e desertos”. As lavadeiras último poema de Sinfonia negra, Similarmente, as palavras meira metade do século 20 abrem de Sinfonia negra, como as dos Mestiça, cuja polimetria faz paralelo mostram-se­­­­­­­­ tão ineficazes quan- maior espaço ao negro e buscam re- Poemas negros, tornam-se pro- com a mestiçagem, “purpúrea síntese to necessárias na empreitada de presentá-lo por dentro, incorporan- tagonistas de beleza pura e honesta, promessa de unidade”. desvelamento do mundo: se não do seus costumes, línguas e religiões. mescla de canto e trabalho. Tal anseio implica a reconexão podem captá-lo, por outro lado, É nessa linhagem que se entroncam, do homem com suas matrizes des- preservam-no provisoriamente do dentre outros, Urucungo (1932), de Simplicidade conhecidas e abissais, tema em pri- esquecimento. Em decorrência dis- Raul Bopp, Sinfonia negra (1946), Na mesma trilha, o livro enal- meiro plano no livro de 1951, Poesia so, a linguagem, “pura imagem que de Américo Facó, e Poemas negros tece a simplicidade. As figuras mar- perdida, que, não por acaso, procura improvisa”, é também uma instân- (1947), de Jorge de Lima. ginais aparecem menos em recorte a Poesia que se perdeu ou que nunca cia de permeio, uma véspera: “As político-social do que existencial: “a se achou. Nele, abundam imagens so- palavras guardam consigo/ A ado- Variedade espiritualidade de Cordolina abra- turnas e caóticas. O assunto é nebu- lescência luminosa” (grifo nosso). Sinfonia destaca-se pela va- çava todas as formas. Mas eram ex- loso e diluído, justo numa época em O livro encerra-se com Presen- riedade de gêneros literários: poe- traordinariamente simples as expli- que o crescente apelo a imagens con- ça, poema que ironicamente consa- mas em verso e em prosa, narrativas cações que ela dava”. A prosa poética cretas (João Cabral) ou a referências gra a ausência: “Presença! — ausência curtas, prosa poética e aforismos. A dos anos 1940-50 devolve humani- a temas universas e a figuras mitoló- fugidia...”. A impossibilidade da des- diversidade justifica o título sinfôni- dade aos indivíduos socialmente des- gicas (Geração de 45) aspiravam ao coberta — de si, da natureza, da noite, co, que de imediato procura superar privilegiados, que, embora tenham máximo de clareza. A aurora do livro do mundo — vale como incitação ao o retrato monolítico do negro como ocupado o proscênio do romance é crepuscular: no primeiro poema, movimento, ao sonho e à poesia: escravo. Pastichando a linguagem regionalista de 1930, em geral lá fi- Nocturno, uma floresta preserva o se- bíblica, os dois textos inaugurais — guravam bestializados, reduzidos a gredo de nossa origem (“imensa noite Sozinha, uma aparência dança: Se não foi assim... e Foi talvez as- instinto ou a mão-de-obra. Contras- sem memória”), que só nos é imper- Dança a Noite, forma surpresa, sim... — confirmam esse propósito, temos, nesse aspecto, Cornélio Pena feitamente revelada pelo sonho: “So- Desvaira! devora a certeza, ao apresentarem versões distintas e Guimarães Rosa com José Lins do nho!... E sonho, por ele a nua/ Negra Que se vestia de esperança. sobre a origem dos afrodescenden- Rego, Rachel de Queiroz e outros. floresta reverdece;/ Por ele, outra vez, A murmurante onda sombria tes, rompendo assim a hegemonia do A começar pela exploração da no ar flutua/ A Presença, que não es- De lenta atenta sinfonia discurso branco, também quebrada prosa musical, não são poucas as quece.” Presentificar a ausência não Leva os pensares que abandono em Vislumbres: “Ser Negro — é ser semelhanças entre Américo Facó e significa apagá-la (cf. Presença); os Por dissonância antecipada Negro para o Branco”. Aforístico, o autor de Sagarana, também de sonhos tentam supri-la com imagens — Maravilhas voltas ao nada, esse texto elege o fragmento como 1946. Em Suburbia, o protagonista e nisso assemelham-se à poesia: À margem nocturna do sono!

Embora a sensualidade nunca se dissipe, sobra espaço ao amor brando e ingênuo, em que o corpo negro se torna maternal. fevereiro de 2012 19 O catolicismo como profissão

Romance de Georges Bernanos narra a luta diária de um padre contra diversos e hostis demônios

O AUTOR reprodução Georges Bernanos :: Paula Cajaty a alegria. À medida que se depara rio de Janeiro – RJ com a má reputação que adquiriu foi um escritor e jornalista em sua própria aldeia, apesar de to- francês, tendo nascido em ngana-se quem imagina dos os seus esforços, o padre final- Paris, em 1888, e falecido em que Georges Bernanos, mente liberta-se da expectativa de Neuilly-sur-Seine, em 1948. com suas duras críticas ao agradar e assume ser apenas o que Foi soldado de trincheira na sistema católico tradicio- é, sem angústias e decepções, atin- I Guerra Mundial e repórter E na Guerra Civil espanhola, nal francês enraizado nos primórdios gindo um grau de serenidade que posteriormente formando- do século 20, queria denegrir a ima- antes lhe parecia impossível. se em Direito e em Letras. gem da Igreja. Muito ao contrário, foi No entanto, por um infeliz aca- Casado com Jeanne Talbert apontando os erros dos seus opera- so a condessa morre logo após sua d’Arc, descendente do irmão dores e de suas insensíveis audiên- acalorada discussão com o padre, de Joana d’Arc, teve seis cias, que ele finalmente encontrou o o que o deixa em situação extrema- filhos entre 1918 e 1933. modo de despertar aqueles que estão mente delicada, pondo em risco in- A família mudou-se para o a dormir no grande, profundo e te- clusive a sua designação para Ambri- Brasil em 1938, fugindo da II dioso sono da existência humana. court. Em particular, o conde deixa Guerra Mundial e defendendo a Resistência Francesa. É nesse espírito que o autor claro que considera a intervenção do Estabeleceu-se a princípio em dá vida ao pároco da pequena al- padre em sua família a causa “invo- Itaipava (RJ) e depois em Juiz deia de Ambricourt, situada numa luntária... ao menos inconsciente (...) de Fora, Vassouras, Pirapora e área rural ao norte da França no de uma grande desgraça”, tornando Barbacena, cidades mineiras romance O diário de um pároco o próprio padre e suas imprudências onde escreveu vários de seus de aldeia, romance publicado ori- “um perigo para a paróquia”. artigos e livros. Bernanos, ginalmente em 1936, apenas cinco Atravessando tais provações, após contribuir regularmente anos após a estréia de Georges Ber- malquisto por sua comunidade e para a imprensa brasileira nanos na literatura. com a desconfiança de seus supe- e para algumas revistas francesas, retorna à França Com a autoridade de quem riores, solitário e doente, o padre em 1946 e falece pouco ama intensamente o gênero humano, agarra-se cada vez mais ao diário e tempo depois, em 1948. é que Bernanos impõe sua voz narra- aos poucos amigos que teve a graça Sua última residência, no tiva e a concede a um jovem vigário, de encontrar. bairro de Cruz das Almas, hesitante, doente e frágil, mas reves- Além do diário, o frágil padre em Barbacena (MG), foi tido com a força do amor, o dom da conta com a amizade do vigário de transformada no Museu palavra e o espírito santificado da hu- Torcy, a quem admira especialmen- Georges Bernanos em 1968. mildade. O romance, de teor religio- te por sua altivez e alegria inigualá- so, filosófico e humanista, é extrema- veis. Este amigo é o único que lhe mente confessional e exige mais do fala as mais cruas verdades com ter- leitor do que um simples best-seller nura e compaixão, de tal modo que, aventuresco. Isso lhe rendeu, contu- alma. É tudo noite em mim. em descrever as reflexões mais ínti- a cada dificuldade enfrentada, era do, premiações e elogios públicos de mas do padre e seus encontros com preciso “lutar, sem descanso, con- diversos autores clássicos como Al- A partir dessas e outras inquie- o vigário de Torcy, além de se deter tra a tentação de correr a Torcy” e, bert Camus e Antônio Carlos Villaça. tudes, de uma “revolta surda” e um nas justificativas para a existência do por vezes, ao saber que o amigo não O vigário contava com um re- “impertinente silêncio da alma” cuja diário e em algumas questões práti- se encontrava para lhe ouvir, a de- banho que não chegava a duas cen- magnitude a solidão e o sofrimen- cas relativas à administração paro- cepção era tão forte que tinha de tenas de paroquianos, entre nobres, to apenas ampliavam, o jovem pa- quial: limpeza, contabilidade, tarefas apoiar-se à parede, para não cair. burgueses e camponeses, além de al- dre inicia o diário, com a pretensão e compromissos, ou, como ele mes- Outra amizade é feita quando guns amigos, religiosos e superiores de mantê-lo por somente doze me- mo lembra “Levar palha fresca para o inadvertidamente, ao pegar uma ca- das localidades vizinhas. Por algu- ses, para depois queimá-lo. A prin- boi, cuidar do burro”. rona de motocicleta, o padre resgata Diário de um mas vezes menciona a aldeia e seu cípio, a folha em branco era para Com isso, o leitor tem um lam- o prazer de sua juventude na estrada pároco de ALdeia sentimento para com ela. De início, ele “um espelho turvo do qual temia pejo da dimensão do catolicismo para Mésargues, com Olivier Som- George Bernanos o desafio: “Que coisa pequena, uma ver surgir, de repente, um semblan- enfrentado como profissão, obser- merange, primo da condessa e ex-sol- Trad.: Edgar de Godoi da aldeia! E essa aldeia era minha paró- te (...) Um semblante esquecido, no- va o dia-a-dia conflituoso do profis- dado da Legião Estrangeira. Em uma Mata-Machado quia. Era minha paróquia e eu nada vamente encontrado”. À medida em sional da fé. Claro que, como qual- breve conversa com Olivier, o padre É Realizações 285 págs. podia fazer por ela”. Em seguida, que o diário é escrito, a resolução de quer profissão, tudo aquilo que é compreende que suas provações não uma espécie de deslumbramento: destruí-lo vai se diluindo lentamente paixão pela teoria cede espaço à in- são muito diferentes daquelas que Nova história “Rezei muito, esta manhã, por minha enquanto o próprio diário vai se tor- tensa decepção da prática, e o pa- um soldado experimenta no front de de Mouchette paróquia, minha pobre paróquia, nando cada vez mais essencial, tor- dre, revestido da inocência que lhe batalha. Após algum tempo, final- George Bernanos minha primeira e talvez última paró- nando-se o verdadeiro companheiro é peculiar, sente-se extremamente mente indo à consulta médica na ci- Trad.: Pablo Simpson dade de Lille, também é capaz de des- É Realizações quia, pois eu gostaria de morrer aqui do padre, seu único alento. vulnerável ao confrontar a miséria 110 págs. (...) Sei que minha paróquia existe re- É nesse diário, um verdadeiro e a esterilidade dos corações huma- cobrir a intensa proximidade de sua almente, que pertencemos um ao ou- confessor, que o padre narra sua luta nos, chegando a preferir até mesmo história com a do médico Laville. tro, por toda a eternidade, porque ela diária contra diversos e hostis de- o destino abençoado de um frade de É nesse contexto que o padre é uma célula viva da Igreja imortal e mônios, encontrados em si mesmo, convento e os confortos de uma vida tem de enfrentar sua própria finitude não apenas uma ficção administra- em sua turma de catequese e nos de- simples de silêncio e oração. e por várias vezes compara o tédio — tiva. Mas eu quereria que Deus me mais paroquianos, fossem eles ricos Em certo ponto, contudo, o o mal oculto que enfraquece a religião abrisse os olhos e os ouvidos, me per- ou pobres: o mal, o desamor, a tris- leitor chega a se perguntar se o li- — às doenças silenciosas que tomam mitisse ver-lhe o rosto, ouvir-lhe a teza, o desentendimento, a angús- vro correrá todo ele no mesmo com- conta do homem e o debilitam seve- voz. Será pedir demais?”. tia, o pecado e, sobretudo, a deses- passo, divagando sobre questões ramente até a morte. O próprio padre Mais à frente, o desencanto se perança. Como o próprio narrador abstratas de economia, religião, é vítima desse mal insidioso. Lançan- aproxima de mansinho, minando- registra: “O mal lançado não impor- sermões, e as antigas dicotomias do mão de uma dieta rica em vinho TRECHO lhe o amor, as forças, a fé: ta onde germina quase fatalmente. ocidentais entre pobreza e rique- e pobre nos demais alimentos, com- diário de um párOco de aldeia Ao passo que a menor semente do za, bem e mal. Ainda neste momen- promete definitivamente sua saúde e Nesta região de bosques e pas- bem, para não ser abafada, precisa to, o padre sente-se extremamen- resta pouco tempo para reconciliar- tagens (...) não encontraria outro de uma sorte extraordinária, de uma te acolhido pela amizade do vigário se consigo mesmo, numa agonia per- observatório de onde a aldeia me prodigiosa fortuna”. de Torcy, homem mais experiente e feita, silenciosa, santificada. surgisse assim toda inteira, concen- Enquanto visita as casas dos al- cuja alegria suplantava os mais ter- Com a precisão de sua narra- Não passo de um pobre trada no côncavo de minha mão. deões, o pobre padre peregrina a pé ríveis obstáculos de um ministério. tiva, Bernanos cria sua maior obra- padre, muito indigno e Olho-a e nunca tenho a impressão levando o peso árduo de sua cruz: um A partir da metade do segundo prima a partir de um tema que não de que ela esteja me olhando tam- passado miserável, uma doença mis- capítulo, porém, Georges Bernanos poderia ser mais singelo: o diário muito infeliz. Mas sei o que bém. Mas não acredito que me ig- teriosa e a mais terrível das dores — surpreende o leitor ateando fogo de memórias e impressões de uma é o pecado. A senhora não nore. Dir-se-ia que ela dá as costas e a de sentir-se insuficiente e incapaz, nos diálogos do padre com a senho- pobre alma cristã perdida no turbi- o“ sabe. Todos os pecados se observa, olhos semicerrados, de es- a dúvida sobre seu próprio papel pe- rita Chantal, a jovem filha do Conde lhão de um mundo sem amor. Um guelha, à laia dos gatos. rante Deus, o medo de estar aquém Omer, e com sua esposa, a Condes- mundo que se assemelha ao inferno, parecem; há um só pecado. de sua grave e relevante missão. sa. Logo a partir desse momento, o pois, como ele repete enfaticamen- Não lhe falo em linguagem Aos poucos, uma espécie de Aprofundando a leitura do padre assume involuntariamente a te por duas vezes “O inferno é a au- obscura. Essas verdades vazio se instala no coração do pa- diário e aproximando-se cada vez função de compor o conflito fami- sência de amor”. Voltando ao livro, dre, chegando a dificultar suas ora- mais do cotidiano do padre e de liar no castelo, estabelecido entre mais detidamente, evidencia-se o estão ao alcance do mais ções mais íntimas: suas tantas agonias, o leitor antevê Chantal e seus pais, tendo como cuidado do autor dando a cada pa- humilde cristão, desde que o desamparado pároco de Ambri- pivô a preceptora Luíza. rágrafo seu peso, a cada palavra, sua ele se digne recebê-las de Uma hora: acaba de apa- court espelhar todos os padres do É então que a força do páro- particular relevância, de modo que nós. O mundo do pecado gar-se a última lâmpada da aldeia. mundo, experimenta seus dissabo- co se revela. Nos embates verbais nada é registrado frivolamente. Vento e chuva. A mesma solidão, res, disseca suas pequenas alegrias, com aqueles que já pareciam estar O romance, editado original- está perante o mundo da o mesmo silêncio. E, desta vez, ne- descortina suas árduas provações perdidos e para salvar suas ovelhas mente em 1936, possui tantas pas- graça, como uma paisagem nhuma esperança de vencer o obs- em um contexto no qual o divino vai desgarradas, ele parece ser dota- sagens geniais que ganhou o gran- perante sua própria imagem táculo ou evitá-lo. (...) Deus! eu res- se tornando cada vez mais dispen- do de uma força sobrenatural que de prêmio de melhor romance da piro, eu aspiro a noite, a noite entra sável e incômodo. o permite lutar com vigor na defe- Academia Francesa, e foi transfor- refletida em uma água em mim por não sei que inconcebí- Na primeiro e segundo capítu- sa das crenças mais profundas da mado em filme em 1951 pelo dire- negra e profunda. vel, que inimaginável brecha da los do livro, Bernanos concentra-se igreja: a fé, o amor, a esperança, tor Robert Bresson. feverEIro de 2012 20 O legado de Perseu A obra de Italo Calvino sempre manteve com seus leitores um diálogo aberto, democrático, afável e cordial

:: Maria Célia Martirani dada pelo general Fedina, militar se- Logo me dei conta de que en- uma burguesia nascente. Conforme Curitiba — PR vero e escrupuloso. O objetivo de tal tre os fatos da vida, que deviam ser ensina Spinazzola, tais estruturas missão seria o de examinar todos os minha matéria-prima, e um estilo se voltavam às tipologias mais pró- m dos aspectos mais livros da maior biblioteca do lugar. que eu desejava ágil, impetuoso, ximas aos arquétipos de uma nar- interessantes, que me- No início, a maioria das obras cortante, havia uma diferença que rativa primária, tais como o apólo- rece atenção quando se examinadas ia sendo vetada e posta eu tinha cada vez mais dificuldade go, o exemplum, a fábula, enfim, às Upretende tratar de Italo à parte. Mas, aos poucos, o que se em superar. Talvez que só então variações do que se convencionou Calvino, é a fecunda correspondên- verifica, diversamente do que se po- estivesse descobrindo o pesadume, denominar conte philosofique. Foi cia entre sua vasta obra ficcional deria esperar (isto é, a queima indis- a inércia, a opacidade do mundo — justamente para retirar o excesso de e a ensaística. Não são raros os es- criminada daquele acervo) é a verda- qualidades que se aderem logo à es- peso da bagagem que Calvino inves- O AUTOR critores de ficção que se dedicam a deira metamorfose por que passam crita, quando não encontramos um tiu em formas do contar que trans- Italo Calvino refletir sobre o literário e a arte em os militares envolvidos no processo, meio de fugir a elas. corressem com uma ligeireza irônica (1923-85) nasceu em geral, mas o caso do escritor lígure em contato rotineiro e cotidiano com Às vezes, o mundo inteiro me sobre os fatos, evitando o rigor das Santiago de Las Vegas é singular. E isso talvez se explique, a leitura. Os generais da censura, ao parecia transformado em pedra: narrativas peremptórias, de cenho (Cuba) e foi para a Itália num primeiro momento, por sua contrário do que deles se exigia, ca- mais ou menos avançada segundo franzido. Esse tipo de busca justifi- logo após o nascimento. aspiração evidente a querer manter pitulam diante da força arrebatado- as pessoas e os lugares, essa lenta caria, em particular no que se refere Participou da Resistência ao sempre vivo o diálogo com o públi- ra daquela sedução: petrificação não poupava nenhum à trilogia, a opção do escritor lígure Fascismo durante a guerra co, sem entretanto fazer concessões aspecto da vida. Como se ninguém pelo discurso galopante das peripé- e foi membro do Partido à superfluidade dos que aderem fá- [...] estavam tomando gosto pudesse escapar ao olhar inexorá- cias provenientes de matriz narrati- Comunista até 1956. Estreou na literatura em 1947 com cil à mise-en-scène da literatura en- por aquelas leituras e aqueles estu- vel da Medusa. va picaresca ou cavalheiresca. A trilha dos ninhos da carada como espetáculo. dos como nunca antes teriam ima- O único herói capaz de decepar Importa notar que essa busca aranha. Suas obras, tanto Conforme nos faz saber um ginado; por outro, não viam a hora a cabeça da Medusa é Perseu, que de leveza em nada pode ser tradu- de ensaios como as de de seus mais profundos conhecedo- de voltar para junto das pessoas, voa com sandálias aladas; Perseu, zida como espécie de escapismo. A ficção, foram traduzidas res, Vittorio Spinazzola, o público de retomar contato com a vida, que não volta jamais o olhar para a passagem a que já nos referimos an- para diversas línguas. Entre ao qual o grande autor se dirigia não que agora lhes parecia muito mais face da Górgona, mas apenas para teriormente deixa claro que Perseu as mais famosas estão as se limitava apenas aos destinatários complexa, quase renovada aos a imagem que vê refletida em seu es- traz consigo a realidade monstruosa da trilogia: O barão nas da alta competência especializada, olhos deles; e, além disso, a apro- cudo de bronze. Eis que Perseu vem e petrificadora da Medusa (que pre- árvores, O visconde mas principalmente ao interlocutor ximação do dia em que deveriam ao meu socorro até mesmo agora, cisa, necessariamente, enfrentar). partido ao meio, O cavaleiro inexistente, coletivo mais heterogêneo e vário, deixar a biblioteca enchia-os de quando já me sentia capturar pela O conceito do que represen- além de Cidades formado pelas classes de média cul- apreensão, pois teriam de prestar mordaça de pedra — como aconte- ta, para Calvino, essa subtração invisíveis, O castelo dos tura, que melhor representavam a contas de sua missão, e, com todas ce toda vez que tento uma evocação do peso da existência, precisa ser destinos cruzados, As consolidação do desenvolvimento as idéias que andavam brotando histórico-autobiográfica. Melhor bem compreendido, a fim de que cosmicômicas, Se um urbano-industrial da Itália dos anos em suas cabeças, não sabiam mais deixar que meu discurso se elabore não se lhe desvirtue o significado. viajante numa noite do pós-guerra. É, aliás, um traço ins- como sair dessa enrascada. com as imagens da mitologia. Para Com efeito, afirma: de inverno e o último tigante do fascínio da personalidade decepar a cabeça da Medusa sem romance Palomar. Da obra calviniana a aparente contradição Ensaísta e ficcionista se deixar petrificar, Perseu se sus- Cada vez que o reino do hu- ensaística, destacam-se: dos modos pelos quais um escritor, Para dar conta desse escritor tenta sobre o que há de mais leve, mano me parece condenado ao Assunto encerrado e Seis propostas para o cujo temperamento era considerado plural e diante do que expusemos as nuvens e o vento; e dirige o olhar peso, digo para mim mesmo que à próximo milênio. esquivo e aristocraticamente reser- parece ser de extrema importân- para aquilo que só pode se revelar maneira de Perseu eu devia voar vado, pôde desempenhar diante de cia, agora, enfatizar sua produção por uma visão indireta, por uma para outro espaço. Não se trata seus leitores um diálogo aberto, ex- ensaística, especialmente a dos tex- imagem capturada no espelho. Sou absolutamente de fuga para o so- tremamente democrático, afável e tos reunidos em 1980, no volume tentado de repente a encontrar nes- nho ou o irracional. Quero dizer cordial. Em franca atitude paritária, Una pietra sopra: Discorsi di se mito uma alegoria da relação do que preciso mudar de ponto de ob- nunca quis assumir a postura dos letteratura e società, publicado poeta com o mundo, uma lição do servação, que preciso considerar o que falam do alto, tão comum aos no Brasil, em 2006, com o título processo de continuar escrevendo. mundo sob uma outra ótica, outra que se sabem detentores de algum Assunto encerrado: Discursos [...] É sempre na recusa da visão lógica, outros meios de conhecimen- carisma. E não seria exagero perce- sobre literatura e sociedade direta que reside a força de Perseu, to e controle. As imagens de leveza ber a força de tal intenção dialógica, (já resenhado neste mesmo Ras- mas não na recusa da realidade do que busco não devem, em contato nas diversas metamorfoses que assu- cunho #113, setembro/2009) e mundo de monstros entre os quais com a realidade presente e futura, mem as formas narrativas adotadas também Lezioni americane: Sei estava destinado a viver, uma rea- dissolver-se como sonhos... pelo autor, ao longo de sua trajetória. proposte per il prossimo mille- lidade que ele traz consigo e assume Talvez, um bom exemplo disso seja o nio, de 1988, fruto das conferências como um fardo pessoal. As mil vidas do barão intuito explícito de hipervalorização que ministrou na Universidade de Tal necessidade de “voar para do leitor, levado a cabo em seu fa- Harvard, publicadas, entre nós, em O ideal de leveza perseguido outro espaço” é muito bem ilustrada, moso romance metaliterário, Se um 1990, como Seis propostas para pelo autor, tal como por ele mesmo por exemplo, em O barão nas ár- viajante numa noite de inverno, o próximo milênio. Tais obras enunciado, é um dos índices mais vores, com cujo herói o autor con- hoje exaltado como referência por representam bem mais do que perti- esclarecedores sobre o seu proceder firma mais ter se identificado. O ro- grande parte dos estudiosos da assim nentes e profundas reflexões acerca literário e que acompanhou todas mance traz à luz a história de Cosme, chamada Teoria da Leitura. A pro- do literário. São textos que buscam as fases de suas mutações. A neces- o menino que, não conseguindo se pósito, na opinião do crítico Mario o interlocutor, em exercícios acura- sidade de intervir para subtrair o adequar ao rigor da nobreza enges- Barenghi, nenhum escritor contem- dos de diálogo permanente, em que peso do que havia ao redor justifica, sada, pesada e vazia de sua aristocrá- porâneo parece ter se dedicado, tão a capacidade intelectiva do receptor por exemplo, de saída, a sua recusa tica família, foge do reino opressor e longa e proficuamente, ao papel do jamais é subestimada. Daí por que é à adesão às estruturas narrativas do auto-referente da “quase sombra” de leitor na literatura como Calvino. fundamental o reconhecimento da realismo romântico, voltadas aos Penúmbria, a fim de buscar uma sa- validade dessa produção ensaística, ideais de inteireza do mundo, numa ída. Resolve, então, subir às árvores, A leitura regenera não apenas como meio de compre- espécie de totalidade sapiencial, que para de lá nunca mais voltar. É, sob Em páginas de exaltação ao ensão da trajetória do intelectual muitas vezes conduziam a uma visão o prisma do olhar de seu irmão — o ato de ler, como fundamental no ativo e do excepcional ficcionista que unilateral e obtusa da realidade. A narrador dessa fascinante e temero- processo de humanização do indi- foi Calvino, mas também pelo fato de propósito, vale lembrar que, mesmo sa aventura — que Cosme nos apre- víduo, nosso autor enfatiza o papel que se trata do conjunto de textos- em seu primeiro romance, A trilha senta suas infinitas peripécias. regenerador do literário. Um exem- bússolas, capazes de nortear quem dos ninhos de aranha, de 1947, Mas o que pode significar, em plo ilustrativo dessa temática é o quer que queira se debruçar sobre as muito representativo do espírito neo- essência, essa alegoria do indivíduo interessante conto Um general na lides da arte, como forma fidedigna realista de pós segunda guerra mun- que, por se sentir inadequado e es- biblioteca, que dá título à antologia de conhecimento do mundo. dial, o protagonismo se volta à causa tranho ao próprio meio, decide fugir, de contos e apólogos, escritos entre Além de dar conta, com profun- marginal da resistência partigiana, indo habitar as árvores? O que pode- 1943-1958. Algo desse enredo re- didade, de diversos temas literários, com suas histórias cheias de aventu- ria traduzir essa partida do chão, da mete ao célebre Fahrenheit 451, tais obras representam um contínuo ra, ousadia e movimento. Ainda que terra firme, para querer viver a vida de Ray Bradbury, imortalizado no exercício de autocrítica do pensa- de forma incipiente, já em seus pri- no alto? Num primeiro momento, cinema por François Truffaut. Com dor reflexivo acerca de seu proceder meiros passos como ficcionista, mes- sem dúvida, a necessidade urgente efeito, há nas duas obras, ainda que enquanto ficcionista. A chave para mo que o espírito da época exigisse de ampliar as perspectivas do ver, de modo alegórico (e guardando as a compreensão da amplitude desse uma literatura engajada, de cunho transcendendo a estreiteza do reino respectivas diferenças), a ambienta- tipo de comportamento não se reduz ético-político, capaz de dar conta das fechado e obscuro das sombras, em ção comum às épocas em que, siste- à imediata pressuposição de que, ao conseqüências funestas daqueles que não entra a luz. maticamente, regimes ditatoriais e ler os ensaios, estaremos mais ap- embates, vemos aqui pré-anunciada Do alto das árvores, o univer- tirânicos se mobilizavam, de modo tos a enfrentar as complexidades do uma tentativa de deslocamento do so todo se amplia, a visão se alarga violento, contra a arte, a literatura e universo ficcional calviniano. Em centro — que significaria excesso de e pode-se ver o que antes não se a cultura em geral. Como é sabido, os parte, isso pode até ser verdade, peso — em direção à marginalidade via, por ser vetado ou simplesmente agentes desses sistemas se pautavam mas o que aqui se apresenta como daquele grupo de resistentes. desconhecido. Lá das árvores, toma- (e ainda hoje se pautam) pelo poli- traço de instigante singularidade Mas a grande guinada na cons- se a distância tão necessária para a ciamento ostensivo, censura, perse- de nosso autor é a evidência de que ciência do Calvino ficcionista se dará, percepção do mundo. E, mais ain- guição e queima de livros e execução o ensaísta e o ficcionista andam de efetivamente, na década de 50, com da, abre-se mão do terreno seguro de artistas, intelectuais e pensadores mãos dadas, jamais ensimesmados a publicação da famosa trilogia O das verdades postas para penetrar o que, em tese, pudessem representar em mirabolantes e herméticos ar- visconde partido ao meio (1951), universo movediço e imbricado dos algum tipo de ameaça ao poder. roubos filosóficos. Eles interagem O barão nas árvores (1956-57) e infinitos galhos, ramos e copas ver- Assim também, no conto em dialogicamente com os interlocuto- O cavaleiro inexistente (1959). dejantes, suspensos, repleto de inu- questão, instaura-se nas mentes dos res-leitores que, dessa inquietante Compreendendo perfeitamente que sitadas descobertas e novos desafios. oficiais superiores da “nação ilustre” viagem, queiram participar. a arte precisava buscar outros ares No chão, tudo é firme demais. da Panduria a suspeita “de que os li- Por isso, vale a pena tomar e formas renovadas de expressão e No confinado reino da Penúm- vros contivessem opiniões contrárias como ponto de partida para iniciar tal obstinado em sua busca pela leveza, bria, a família aristocrática se auto- ao prestígio militar”. Diante disso, o travessia uma página antológica de nessa fase, é que o autor privilegia e consome em mesquinharias e valo- Estado-Maior decide nomear uma suas Seis propostas para o próxi- investe nos módulos narrativos da res vãos. Não há curiosidades, nada comissão de inquérito, a ser coman- mo milênio, a respeito da Leveza: época pré-burguesa; ou melhor, de é novo e todos parecem se arrastar, feverEIro de 2012 21

Italo Calvino por robson vilalba

como um conjunto de sombras le- rendas e bordados que, em geral, re- do sistema não implica no escapis- Aqui também, eu tinha uma A trajetória de Cosme é análoga tárgicas a desfilar, na penumbra das presentavam mapas geográficos; e, mo alienante de buscar soluções fá- imagem em mente: a de um ra- à enaltecida pelo autor no referido en- paredes frias do castelo de uma exis- estendidos em almofadas ou painéis ceis. Em sentido radicalmente opos- pazinho que sobe em uma árvore; saio em que trata de um dos imperati- tência triste e neurótica. Mesmo tra- para tapeçaria, mamãe os enchia de to, parece ser uma preocupação do sobe e encontra personagens ex- vos fundamentais de sua escrita: o da tando dessa pesadíssima carga exis- alfinetes e bandeirinhas, assinalan- autor a idéia de que “saindo para ver traordinários. Isso mesmo, sobe busca incessante pela leveza. Diante tencial, o narrador — pelo hábil viés do os planos de batalha das Guerras melhor, com outros olhos” é que se ao alto e de árvore em árvore, via- da monstruosa Medusa ou das pesa- da ironia e do sarcasmo — manipula de Sucessão que conhecia na ponta torna possível interagir com o real, ja por dias e dias, melhor ainda, das sombras do reino da Penúmbria, as formas do narrar, que se traduzem da língua. Ou então, bordava ca- num comprometimento atuante. não desce nunca mais, recusa-se é preciso, tal como Perseu ou Cosme, perfeitamente como um dos índices nhões, com as várias trajetórias Assim é que o barão, desde a descer a terra, vivendo sobre as pôr asas nos pés e voar ou se deslocar da gravidade sem peso, que enfrenta que partiam da boca-de-fogo, e as suas primeiras iniciativas e durante árvores toda sua existência. Devia para outro espaço, sem contudo per- a Medusa, à maneira de Perseu, con- forquilhas de tiro e os ângulos de suas múltiplas façanhas intelectu- fazer dessa idéia uma história de der de vista o peso da existência. forme já citado pelo Calvino ensaísta. projeção, porque era muito compe- ais, de aventura, políticas, comuni- fuga das relações humanas, da so- Vários exemplos ilustram essa estra- tente em balística e além disso tinha tárias, jamais se mostra como um ciedade, da política, etc.? Não, te- Partido ao meio tégia narrativa. Num deles, o narra- à disposição toda a biblioteca de seu alienado. O papel do intelectual ria sido óbvio e fútil demais: o jogo As outras duas obras da trilo- dor enfatiza a personalidade da mãe, pai, o general, com tratados de arte aqui representado se aproxima da começava a me interessar, desde gia, por sua vez, são as que melhor extremamente rígida, apelidada “ge- militar, mesas de tiro e atlas. figura-ícone de Antonio Gramsci, que eu fizesse desse personagem, representam o conflito do homem nerala”, já que obcecada por tudo que tão cara à grande parte da geração que se recusa a caminhar sobre moderno, concebido como indivíduo se referia às lides bélicas de combate: De todo modo, cumpre notar de escritores filiados aos Partidos a terra como os outros, não um dividido ao meio. Em O visconde que, mesmo “voando para outro es- da Esquerda Italiana da época, misantropo, mas um homem con- partido ao meio, o visconde Me- Durante o resto do dia, mamãe paço”, em nenhum momento Cosme como o próprio Calvino (que era tinuamente dedicado ao bem do dardo, vítima de uma bala de ca- ficava fechada nas suas dependên- se desconecta do que acontece no do Partido Comunista). A propósi- próximo, inserido no movimento nhão, sofre a divisão de seu corpo em cias a fazer rendas, bordados e filé, mundo abaixo dele, isto é, da reali- to, vale conferir o que ele afirma no de sua época, querendo participar metades, que sobrevivem apartadas, pois a generala só era capaz de se dade. Quanto mais se distancia das posfácio à edição italiana de I nos- de cada aspecto da vida ativa: des- com características opostas. ocupar dessas tarefas tradicionais coisas, vendo-as do alto, mais se tri antenati, de 1960 (Os nossos de os avanços das técnicas da ad- de mulher e apenas nelas desafo- aproxima delas, interessado, partici- antepassados), em que se reuni- ministração local até as peripécias gava a sua paixão guerreira. Eram pativo e engajado. O fato de ter saído ram os três romances da trilogia: da vida galante. continua na página 22

UEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS

EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO fevereiro de 2012 22

reprodução É mais uma vez o Calvino en- saísta que vem em nosso auxílio O que se apresenta no posfácio à edição italiana de Os nossos antepassados, revelan- do que o homem contemporâneo é como traço de mutilado, incompleto, inimigo de si mesmo: “Marx o chamou de ‘alie- nado’, Freud de ‘reprimido’, o esta- instigante singularidade do de antiga harmonia se perdeu e se aspira a uma nova forma de com- pletude”. Mas o que mais fascina, de Italo Calvino é no que propõe o escritor lígure, não é apenas a representação conflituo- sa dessa cisão. Com efeito, à primei- a evidência de que o ra vista, poder-se-ia pensar que a grande causa do sofrimento de Me- ensaísta e o ficcionista dardo fosse a perda de integridade ou que O visconde pudesse se ali- nhar, de modo fidedigno, a obras andam de mãos dadas, como Dr. Jekyll and Mr. Hyde ou a dos dois irmãos de Master of Ballantrae, de R. L. Stevenson. jamais ensimesmados Porém, o que se observa, contraria- mente a essas, em que uma metade, em geral, boa contrasta com a ou- em mirabolantes e tra má, a riqueza de Medardo está justamente nas contradições não maniqueístas, vivenciadas por cada herméticos arroubos uma de suas partes. Nesse sentido, aqui, a incli- nação à leveza dá-se por uma es- filosóficos. pécie de elogio à dimidiação como verdadeiro modo de ser. Quem vive na história é apenas Medardo, en- quanto metade de si mesmo. E cada uma dessas metades, carregada de Palomar: move, recolhem-se como uma flor contradições, apresenta, respecti- o olho telescópico que se fecha, para tornar depois a vamente, o lado “mau” do Viscon- O último romance de Calvi- se distender e a se comprimir con- de, cheio de piedade e, em contra- no é de novembro de 1983. Neste, tra o vidro, fazendo aparecer es- partida, o lado “bom”, repleto de o protagonista é o senhor Palomar, trias miudíssimas, como as que se tiradas sarcásticas. Melhor dizen- um indivíduo com nome de telescó- vêem nas impressões digitais. Ao do, o indivíduo, com suas particula- pio, que se detém a contemplar mel- mesmo tempo delicadas e fortes, es- ridades e idiossincrasias, é o que in- ros, girafas, tartarugas, ervas dani- sas mãos se libertam da função de teressa pôr em cena, ainda que essa nhas, queijos, açougues e estrelas, se manter ali aderidas à superfí- esquizofrenia identitária seja a me- concedendo a tudo a dignidade de cie vertical, readquirir os dotes das lhor tradução do homem do século consciência que o permita existir — meio das aporias e paradoxos. ser objeto de pensamento. Junto ao mãos humanas, as quais segundo 20 até a contemporaneidade. só pode ser conquistada se os com- No que se refere à tradição da princípio norteador da leveza, pode- dizem se tornaram hábeis a partir Aqui, Medardo cindido encar- ponentes trágicos, inerentes a es- literatura italiana do século 20, essa ríamos acrescentar à análise dessa do momento em que não tiveram na o Perseu que enfrenta a mons- sas situações, perseguirem o legado trajetória pode ser sintetizada, por obra derradeira a ênfase à proposta mais de se manter agarradas aos truosidade da Medusa, cuja face é deixado por Perseu. exemplo, no que Victor Brombert da “visibilidade”, uma vez que o que ramos ou aderidas ao solo. o da homogeneização generaliza- E, então, chegamos a um dos denominou “coragem do desespe- aqui mais se nota, de modo flagran- da, da busca por uma inteireza que traços mais relevantes na análi- ro” de Zeno Cosini de A consciên- te, é a preocupação com os modos Palomar age também à manei- é obtusa, porque plasma todos no se de um autor do cabedal de Ita- cia de Zeno, de Italo Svevo, ou em de ver e perceber o mundo. ra de Perseu, resgatando a leveza por mesmo universo forjado e artificial lo Calvino, qual seja o de que ja- Um, nenhum e cem mil, do cha- O mesmo insight já anunciado meio da resistência, fazendo com dos condicionamentos e que aborta mais pode se perder de vista o fato mado “mestre da razão enlouqueci- em O barão nas árvores, cujo pro- que seu olhar arguto incida sobre o preconceituosamente as diversida- de que ele se insere na tradição da”, Luigi Pirandello. E ainda mais tagonista se desloca por não agüen- que se desaprendeu a ver. Reverte des, rejeitando, de antemão, tudo dos escritores italianos que me- em Primo Levi, diante da violência tar o peso sufocante de seu ambiente o que Cesare Cases havia denomi- que lhe é estranho e disforme. lhor atualizaram o conceito de trá- emudecedora do horror do holo- e, subindo às árvores, amplia o foco nado em O barão das árvores de gico na contemporaneidade. causto, por meio do ato de testemu- de visão, também neste caso, o que “pathos da distância”, aproximan- Vazia armadura nhar como forma de sobrevivência. se propõe é um redimensionamento do o olho despido de recursos, em O cavaleiro inexistente ele- Trágico moderno Em Calvino, considerado um do ver, já que em tempos de satura- busca do “aspecto oculto” das coi- va à máxima potência o que já se Algumas obras dos grandes au- “camaleão” que se molda às mais ção de imagens e cegueira generali- sas. A linguagem se compraz da iro- anunciara no Visconde e conta a tores da literatura italiana do século diversas formas do narrar, cons- zada, tem-se a impressão de que se nia e do paradoxo de que o que de- história de uma armadura que ca- 20, tais como Svevo, Pirandello, Pa- ciente de que a única permanência vê tudo, porém, na maior parte das veria ser o mais evidente — uma vez minha, mas que é vazia por dentro. vese, Primo Levi e obviamente Italo está na mudança, a busca de parâ- vezes, perdendo o frescor e a agude- que não exige esforço, nem apare- Para compreender melhor o que, no Calvino, abrem-nos um amplo leque metros do que ele denomina “leve- za do olhar capaz de ver o essencial lhos especializados para ser visto — fundo, Calvino pretendia representar de possibilidades de compreensão za”, “rapidez”, “exatidão”, “visibili- (a propósito ver Quando o olhar se no mundo multimidiático do impé- com o guerreiro inexistente Agilulfo ao que se costuma chamar de “con- dade”, “multiplicidade”, cada uma faz visão, neste mesmo Rascunho, rio das imagens, passa despercebido como uma das melhores metáforas figurações do trágico” na moderni- de suas seis conferências, elenca- #104, dezembro/2008). ao olhar. O que deveria ser simples e do homem totalmente artificial, ve- dade. Uma análise acurada, que dá das em Seis propostas para o Mas o homem Palomar — di- direto torna-se de difícil apreensão. jamos o que ele mesmo pondera: conta de um histórico dessa interes- próximo milênio, voltam-se, versamente das paisagens panorâ- O mais trágico, denunciado sante evolução conceitual, é feita por sobretudo para a linguagem. Nes- micas sobre as quais, a princípio, o por Italo Calvino em Palomar, é Do homem primitivo que, cons- Glenn W. Most, em Da tragédia ao se sentido, confirma o que propõe telescópio homônimo pousa — pers- que se hoje Perseu tivesse que to- tituindo um todo com o universo, trágico. A transformação radical Eduardo Lourenço em O canto cruta o universo muito de perto, nas mar emprestado nossos olhos em- poder-se-ia afirmar que ainda fos- pela qual passou esse conceito, se- do signo ao afirmar que “o trági- filigranas minuciosas do que está ao botados e violentamente cegados se inexistente, porque indiferencia- gundo o eminente estudioso, deu-se co agora é outro; reflui da exterio- alcance do olho nu, despojado de pelo excesso de luz, numa espécie do da matéria orgânica, chegamos com as propostas de Schiller que: ridade onde sempre parece ter tido lentes de qualquer tipo. A estrutura de cegueira branca, como a que con- lentamente ao homem artificial que, o centro, para o seu núcleo primor- narrativa exacerba os elementos des- cebeu José Saramago, talvez, ofus- constituindo um todo com os produ- [...] formulou, pela primeira dial: a Linguagem”. critivos, numa poética de precisão e cado, não conseguisse nem mesmo tos de consumo e com as situações, é vez, uma visão do trágico como um Contra a concepção românti- adjetivação exaustiva, que lembra identificar a horrível face da Medu- inexistente porque não se confronta aspecto fundamental da existên- ca de integridade coesa de mundo, as análises minuciosas de pesquisas sa, a que, desde sempre, é preciso mais com nada, não estabelece mais cia humana, indicativo da irreme- Calvino almeja o que é em partes, o de rigor científico. Essa investida no continuar a combater. nenhum tipo de relação (de luta e diável, dolorosa incompatibilidade que jamais se completa, o que pre- ato de ver em detalhes adensa a ne- através da luta, de harmonia) com entre o homem e o mundo em que cisa vir a ser, numa verdadeira apo- cessidade de resistir ao ver superfi- aquilo que (seja natureza, seja histó- ele se acha por acaso — uma idéia logia das potencialidades e da falta cialmente, como se necessitássemos PRATELEIRA ITALO CALVINO ria) lhe está em torno, mas que ape- absolutamente moderna que está como melhor representação do de- voltar à visão virginal, num proces- nas abstratamente, “funciona”. intimamente ligada à seculariza- sejo. É por isso que seus modos de so de reeducação de nossa percep- A especulação imobiliária (2011) Agilulfo é, no limite, uma das ção e ao desencantamento do mun- narrar, tantas vezes, se apropriam ção sensorial do mundo, resgatando Coleção de areia (2010) faces mais terríveis da Medusa que do e, é claro, largamente estranha da fabulação picaresca ou cavalhei- sua instância inaugural, pré-lógi- Assunto encerrado (2009) o Perseu contemporâneo deve en- à maior parte do pensamento gre- resca, dos reinos e espaços imaginá- ca, de tempos muito remotos e que Todas as cosmicômicas (2007) carar: a da total desintegração do go antigo — e então, num segundo rios, em que o tempo histórico e cro- acabou por nos ser tolhida ou defor- Eremita em Paris (2006) eu, que só passa a existir funcional e passo, designou ao gênero da tra- nológico se suspende para dar lugar mada pelo excesso de imagens que, A trilha dos ninhos de aranha (2004) maquinalmente como um autômato, gédia a missão de incorporar ade- à existência atemporal de Caste- ininterruptamente, nos assolam: O dia de um escrutinador (2002) que remete ao personagem memo- quadamente este insight. los dos destinos cruzados ou Um general na biblioteca (2001) rável, interpretado por Charles Cha- de Cidades invisíveis, que estão O senhor Palomar e a senhora O caminho de San Giovanni (2000) plin em Tempos modernos, em que Percebe-se, a partir dessa por trás do que ordinariamente se Palomar toda noite acabam deslo- Se um viajante numa um operário de fábrica, manipulado nova teorização, uma ruptura com vê. É, a propósito, na célebre passa- cando as poltronas de frente da te- noite de inverno (1999) pelo sistema da alta produtividade, a tradição canônica da tragédia gre- gem com que encerra essas suas Ci- levisão para junto da vitrine; do in- Os nossos antepassados (1997) acaba neurótico, robotizado, cheio ga, porque o trágico passa a ser vis- dades que Marco Polo, em diálogo terior da sala contemplam a barriga O visconde partido ao meio (1996) de tiques e esgares, decorrentes da- to como inerente à experiência hu- com o sábio Kublai Kan, ensina: esbranquiçada do réptil sobre o fun- Perde quem fica zangado primeiro (1995) quele excessivo apelo de funcionali- mana, como abismo que se abre do escuro [...] a televisão se move pe- Sob o sol - Jaguar (1995) dades utilitárias e jamais estéticas. entre o homem e o mundo. — O inferno dos vivos não é los continentes recolhendo impulsos Marcovaldo (1994) De toda forma, o que obser- Se pensarmos que os heróis algo que será; se existe, é aquele que luminosos que descrevem a face vi- Palomar (1994) vamos como linha a ser persegui- gregos devem cumprir um Desti- já está aqui, o inferno no qual vive- sível das coisas; o camaleão ao con- O cavaleiro inexistente (1993) da pelo ficcionista, sempre reite- no inexorável, notaremos que, em mos todos os dias, que formamos es- trário representa a concentração Por que ler os clássicos (1993) rado pelas reflexões acuradas do tese, eles só podem ser “aproble- tando juntos. Existem duas manei- imóvel e o aspecto oculto, o contrá- As cosmicômicas (1992) brilhante ensaísta, é a premissa máticos”. Em sentido radicalmente ras de não sofrer. A primeira é fácil rio daquilo que se mostra à vista. Os amores difíceis (1992) de que a subtração do peso — seja oposto, o anti-herói moderno é, em para a maioria das pessoas: acei- A coisa mais extraordinária Fábulas italianas (1992) agindo como Cosme, que se desloca si mesmo, a tradução perfeita do tar o inferno e tornar-se parte deste são as patas, verdadeiras mãos de O barão nas árvores (1991) para outro espaço; seja investindo que vem a ser “problema”, já que o até o ponto de deixar de percebê-lo. dedos moles, só falanges, que pre- O castelo dos destinos cruzados (1991) nas metades apartadas do Viscon- desajuste e a incapacidade de per- A segunda é arriscada e exige aten- midas contra o vidro a ele se ade- As cidades invisíveis (1990) de, muito peculiares em suas con- tencimento a qualquer sistema faz ção e aprendizagem contínuas: ten- rem com suas ventosas minúsculas: Seis propostas para o próximo milênio (1990) tradições intrínsecas; seja nas pe- parte do que o constitui. Daí, talvez tar saber reconhecer quem e o que, os cinco dedos se alargam como pé- rambulações da armadura errante e se compreenda por que o trágico, no meio do inferno, não é inferno, e talas dessas florzinhas dos desenhos *Obras publicadas no Brasil pela vazia de Agilulfo, à procura de uma hoje, se expresse, sobretudo, por preservá-lo, e abrir espaço. infantis, e quando uma das patas se Companhia das Letras fevereiro de 2012 23 Poesia ao pé da letra Na poesia de E. E. Cummings, o olho do leitor precisa estar sensível a cada letra ou espaço em branco

reprodução :: Luiz Guilherme Barbosa Microestrutura perimentação formal, podemos en- rio de Janeiro — RJ do poema tender que, como a forma e o conte- A princípio, a obra de Cum- údo estão, em poesia, relacionados, a capa azul escuro do li- mings interessou ao poeta paulista a experimentação do conteúdo oní- vro que reúne as tradu- pelo que se poderia chamar, tecni- rico do surrealismo também é um ções do norte-america- camente, de uma inteligência iso- modo de experimentar a forma da Nno E. E. Cummings, um mórfica na microestrutura do poe- arte. O poema como objeto sai de perfil do rosto do poeta, sereno, de ma. É que ela, em sua vertente mais cena; o poema como performance olhos fechados, confronta a tradu- experimental, é composta por poe- é uma imagem que entende qual- ção de um de seus poemas, numa mas que descrevem elementos sim- quer poema, por ser poema, como acareação a princípio desigual, en- ples do mundo: trem, lua, espelho, uma experimentação. tre poeta e tradução — e não entre o gafanhoto, gato, chuva, camisa, for- poema original e a tradução. Pare- migas, estrelas, pássaros, mosca, Eu lírico ce tratar-se de uma ironia e de uma névoa, botão, jornal, abelhas. Ao No caso de Cummings, seus homenagem. Uma ironia porque, descrever esses elementos, através poemas líricos e de reflexão não na tradução deste poema, Augusto do recurso da fragmentação das pa- abrem mão do testemunho de um de Campos consegue tantos jogos lavras e da motivação tipográfica, o eu lírico, de modo que, no conjun- de linguagem que acaba superando poema procura imitar a coisa repre- to de sua obra, é possível afirmar tecnicamente a versão original. O sentada sem utilizar nenhum artifí- que ela se aproxima mais — teori- que não deixa de ser uma homena- cio além da língua e da tipografia. camente — das propostas do “Ma- gem: a Cummings, que ganha uma Por exemplo, num poema que nifesto Neoconcreto” do que da- tradução mais “cummingsiana” que ecoa a cantiga “brilha, brilha estre- quelas presentes no “plano piloto o original, e à língua portuguesa, linha”, a cada aparição do verbo da poesia concreta”. Não será à toa que realiza a obra — e o estilo — de brilhar, uma letra diferente é des- que encontramos, no último livro um poeta da língua inglesa. tacada em maiúsculas, como a su- de poemas de , pe- A tradução-arte a que se pro- gerir a cintilância inconstante do quenos trechos “cummingsianos”, põe Augusto de Campos procu- brilho das estrelas no céu: “brIlha”, como no poema Abduzido, em que ra traduzir o conteúdo e a forma “bRilha”, “Brilha”, “briLha”. Este o apagar da luz se confunde com do poema relacionados. Como em procedimento foi privilegiado pela os versos cada vez menores: cada língua essa relação se dá de vanguarda concreta em detrimen- modos diferentes, poucas vezes é to do caligrama, um tipo de poema e possível manter a mesma relação formulado pelo francês Guillau- apa original entre forma e conteúdo. me Apollinaire que propunha que go Assim, o tradutor, se quiser produ- a mancha gráfica do poema dese- a zir, na tradução, um poema (em vez nhasse o objeto a ser representado, luz de uma paráfrase em outra língua), sobrepondo à escrita o artifício do precisa responder o poema origi- desenho. O mérito de Cummings Afinal, já encontrávamos a nal com novas relações de forma e estaria em manter a autonomia ti- presença de Cummings — ainda conteúdo, compensando a traição pográfica do poema em face da su- que muito discretamente — na obra do traduzir. É necessário, portan- posta facilidade do desenho. de Manuel Bandeira, que, no livro to, criar mais uma vez aquele po- Daí que a edição das traduções Mafuá do Malungo, compõe um ema, exigindo, do tradutor, habili- de Cummings vem acompanha- poema à maneira de Cummings de- dade — e dom — de poeta. da, nos diversos prefácios de Au- dicado a Elizabeth Bishop. Além Na tradução que se lê na capa gusto de Campos para cada edição, disso, em 2007 foi publicada uma do livro, por exemplo, a imagem de uma defesa da “verdadeira”, da pequena coletânea de traduções de O AUTOR (que constitui todo o poema) de Edward Estlin na decomposição das palavras a “necessária” revolução poética de poemas de Cummings, realizada um floco de neve sobre um túmu- Cummings um nível, digamos, submórfico (ou Cummings. Embora o valor histó- por Adalberto Müller, Mario Do- lo é sintetizada, com imaginação ti- seja, menor do que o nível dos ra- rico e a inteligência dessas leituras mingues e Mauricio Cardozo (cha- pográfica, no trecho final. Edward Estlin Cummings, dicais, afixos e desinências). Assim, sejam muito evidentes, as transfor- ma-se O tigre de veludo: alguns que assina E. E. Cummings, sobre um t fragmentando o núcleo semântico mações por que a poesia brasileira poemas). Nela, uma proposta tra- nasceu em 1894, em Mas- sachusetts, e faleceu em das palavras, outros sentidos se ir- vem passando nos últimos 40 anos dutória um pouco diversa da de Au- ú 1962. Especializado em radiam, à semelhança da grande li- mostraram que a via única das van- gusto de Campos comparece, como um literatura grega em Harvard, beração de energia que a divisão de guardas não garante a qualidade da um modo de reler a recepção do po- l foi voluntário na Primeira um núcleo atômico produz. poesia do futuro, sendo, na verda- eta no Brasil. Os mesmos versos de Guerra Mundial. Seu primeiro O trecho que representa as de, uma via possível — mas não ine- um poema são mais coloquialmen- o livro, The enormous room migalhas com que uma velha ali- vitável — para a poesia. te traduzidos por Mario Domingues (1922), narra sua experiência menta os pardais numa praça é Por isso a leitura de E. E. (“curto meu corpo quando junto ao (No original: “is upon a gra// de guerra. Também foi drama- exemplo disso: “mig alha/ sumaa Cummings em nova edição dirige a teu/ corpo”) do que por Augusto turgo, mas é como poeta que v/ es/ t// one”.) A consoante “t”, umaado/ istrêsq uatroc/ inços atenção do leitor para a beleza dos (“eu gosto do meu corpo quando sua obra se afirma, de 1923 a isolada, ressalta, pela pronúncia 1983, como uma das princi- eisp/ ard ai// s”. Nele, os grupos de poemas que não utilizam o recur- está com o seu/ corpo”). oclusiva (ou seja, que interrompe pais contribuições modernis- letras são divididos independen- so da fragmentação das palavras, A curiosa dispersão da obra momentaneamente o fluxo de ar da tas em língua inglesa. temente da unidade das palavras mas, em vez disso, se compõem em de E. E. Cummings pelo Brasil é, boca para se pronunciar), os sinais (“migalhas uma a uma três qua- versos longos, numa prosa experi- sem dúvida, fruto do pioneirismo de interrupção da morte, ao mes- tro...”), seguindo, em vez disso, a mental, lírica e seca, o que transfor- de Augusto de Campos, que, com mo tempo em que desenha uma lógica do número de letras (três le- ma a recepção que o poeta tem tido esse livro, produz a antologia mais cruz no papel. Já a vogal que segue, tras, quatro letras, cinco letras...). no Brasil. Tais poemas muitas ve- completa do poeta em língua portu- “ú”, é a única no poema que recebe Outro motivo de aproxima- zes são imagens da própria obra de guesa. Com isso, a leitura do poeta um acento gráfico, recurso inexis- ção com as pesquisas científicas Cummings, como o do espelho que- norte-americano vai se descolan- tente em língua inglesa. Com isso, subatômicas encontra-se no fato brado, que se pode ler como metáfo- do aos poucos da visão interessa- ela acaba sugerindo, pelo dese- de que, quanto menor for o ob- ra das palavras quebradas do poeta. da e excelente que a poesia con- nho, o detalhe (fundamental, para jeto observado, maior será a in- creta produziu dele. Percorrer as o poema) do floco de neve, branco terferência do observador em seu cacos(no mais escuro superfícies textuais de Cummings e efêmero, sobre um túmulo. E se posicionamento, já que luz emiti- que mínimo é mais sujo é uma experiência única, de muita o original termina, no último ver- da para visualizar uma partícula da cidade o menor surpresa e sensibilização poética. so, enfatizando a unidade do floco é uma onda eletromagnética que beco)de espelho Um laboratório do poema, a lei- de neve (“one”), a tradução devolve, exerce uma força sobre a partícula, tura deste moderno retorna como embora com menos ênfase, a con- Poem(a)s deslocando-a. Na poesia de Cum- são cada qual(por que um jogo de equilibrar o poema na soante “l” isolada no penúltimo ver- E. E. Cummings mings, o olho do leitor precisa es- a gente diz que é des corda bamba da língua, no fio tê- so, muito semelhante ao algarismo Trad.: Augusto de Campos tar sensível a cada letra ou espaço graça quebrar um) nue que sustenta a relação infra- correspondente ao número um. Unicamp em branco, de modo a movimentar céu por sua vez semântica de uma letra a outra. 248 págs. o sentido dessas formas mínimas. Minúcia construtiva Mas tanto essa relação com a Torna-se importante notar, n Tal minúcia construtiva con- ciência do muito pequeno quanto o portanto, que o privilégio inicial de AdacO tamina inclusive os sinais de pon- desafio da tradução tipográfica cons- Augusto de Campos na tradução n tuação, cujos desenhos servem a tituem uma herança da leitura que dos poemas mais descritivos e frag- uma imaginação poética que pres- os poetas concretos construíram da mentados estava fundado na noção, segue cinde da tradução. Num poema obra de Cummings. Especificamen- fundamental à época para o progra- que descreve a fase nova da lua, o te no caso de Augusto de Campos, ma da poesia concreta, de que o po- s desenho do parêntese, destacado que tem a carreira de tradutor mar- ema consistia num objeto de pala- obrEpas num verso, sugere a lua minguan- cada pela obra do norte-america- vras. Como objeto, ele era produto s do, prestes a se tornar nova: no: seu primeiro livro de tradução, de uma inteligência poética que in- Dez poemas de E. E. Cummin- vestia nele técnicas inovadoras. ar o m (lua começa A gs, foi publicado em 1960, e desde Como objeto, era preciso reconhe- ) então o poeta vem reunindo, prati- cer, por exemplo, o “equívoco” do i camente a cada década, novas tra- surrealismo, que estava “compro- StéR A poesia de E. E. Cummings duções, chegando a 74 poemas na metido até os dentes com o formal i se aproxima curiosamente das pes- coletânea recém-lançada pela edito- sintático convencional”. Como ob- quisas científicas que, na primeira ra Unicamp. Trata-se, portanto, de jeto, era preciso contrapor o poema o d parte do século 20, investigaram o um trabalho tradutório que já dura à experimentação subjetiva que não mundo do muito pequeno: atômi- pouco mais de meio século e parece implicasse experimentação formal. o co, subatômico. Primeiro porque fundamental na constituição da es- Ora, em lugar de centralizar a silÊnci ela se baseia, em muitos poemas, crita de Augusto. novidade do poema na exclusiva ex- o fevereiro de 2012 24 : : prateleira : : INTERNacional

O que quer de mim, amor? A questão humana Os exércitos A estrela do diabo Vida e proezas Manuel Rivas François Emmanuel Evelio Rosero Jo Nesbo de Aléxis Zorbás Trad.: Elisa Martins Trad. Marina Appenzeller Trad.: Maria Paula Gurgel Ribeiro Trad.: Grete Skevik Nikos Kazantzákis Tinta Negra • 128 págs. Estação Liberdade • 88 págs. Globo • 192 págs. Record • 420 págs. Trad.: Marisa Ribeiro Donatiello Grua • 384 págs.

Nos contos do escritor espanhol, O escritor belga constrói O cotidiano tranqüilo de vida inte- Mentiras, traição e maldade Um intelectual grego decide o amor permeia as narrativas, um thriller em torno de um riorana na Colômbia de um casal compõem o labirinto deste explorar uma mina de linhito em assim como o mistério das psicólogo encarregado de de aposentados vai aos poucos romance policial. Harry Hole, Creta. Para chefiar os trabal- relações humanas e a falta de investigar os aparentes sinais sendo abalado e transformado protagonista alcoólatra que já hos, contrata Aléxis Zorbás, de comunicação. Em meio à dor e de demência de Mathias Jüst, pela guerra. Junto a ela chegam emprestou sua personalidade quem ouve histórias sobre suas à solidão, retratam também o um dos diretores de uma a San José homens armados e de anti-herói a outros romances mulheres, as guerras que viveu, humor e a ternura de personagens grande empresa. No entanto, desaparecem habitantes, entre do escritor norueguês, tem de suas certezas e dúvidas. São como Pardal, menino que firma as implicações morais da tarefa eles a mulher do narrador. Assim, investigar o brutal assassinato elas que colocarão em xeque a forte amizade com seu professor acabam por desestabilizar a vida a vida é transformada em uma de uma jovem. Porém, o que visão de mundo do narrador e anarquista no conto A língua das do próprio psicólogo, que logo se seqüência de acontecimentos parecia ser um simples caso de seu modo de pensar, resultando mariposas, levado ao cinema por depara com uma densa rede de terríveis, fragilizando as virtudes homicídio revela-se o trabalho num romance ao mesmo tempo José Luis Cuerda. intrigas tecida décadas atrás. do cotidiano. de um serial killer. de aventura e de formação.

Atrás da estação Saber perder Uma aventura secreta Aço Byron apaixonado ferroviária fica o mar David Trueba do Marquês de Bradomín Silvia Avallone Edna O’Brien Jutta Richter Trad.: Carlos Nougué Teresa Veiga Trad.: Eliana Aguiar Trad.: Mauro Gama Trad. José Feres Sabino Rocco • 472 págs. Companhia das Letras • 126 págs. Alfaguara • 344 págs. Bertrand Brasil • 296 págs. Iluminuras / 96 págs.

O livro infanto-juvenil narra a No romance do escritor espan- As três histórias do volume O romance de estréia da escri- A biografia do poeta inglês história de dois amigos que hol, as personagens têm em e seus segredos giram em tora italiana narra a descoberta símbolo do romantismo se vivem nas ruas e cujo sonho é comum a marca causada pela torno de mulheres complexas do sexo e do amor por duas debruça justamente sobre conhecer o mar. Uma opor- perda, mas também o desejo de e misteriosas, como Marianina, adolescentes numa pequena Lorde George Gordon Byron tunidade surge quando uma viver, que nasce em uma jovem corpo e alma de uma aldeia de e violenta cidade à beira-mar, e suas paixões, revelando em mulher oferece a eles o dinheiro de 16 anos que sofre um aci- camponeses a qual ninguém cujo cotidiano é de luta diária detalhes um homem rebelde, im- necessário para a viagem, pedin- dente de carro; em seu pai, que ousa abandonar, ou Edwarda, para seus moradores, seja aginativo e afeiçoado a notícias do em troca o anjo da guarda de vive o fracasso da vida profis- que retém informações inéditas trabalhando inúmeras horas nas escandalosas. Desta forma, a Novênio. Feito o acordo, a saúde sional e amorosa; em seu avô, e embaraçosas sobre a biografia indústrias da região ou apáticos autora irlandesa propõe serem do menino se debilita, sendo que revela uma obsessão por até então imaculada do Marquês em frente à televisão, sonhando o comportamento e as paixões então necessário a seu amigo prostitutas enquanto assiste ao de Bradomín e está disposta a com uma vida melhor que do autor fundamentais para suas recuperar seu anjo da guarda. declínio da saúde de sua mulher. revelar a um estudante. parece nunca chegar. obras e fundadores de seu estilo.

fevereiro de 2012 26 Moçambique em versos

Coleção apresenta três dos principais poetas moçambicanos, suas preocupações estéticas e temáticas

:: Henrique Marques-Samyn OS AUTORES como poucos apta a eleger os no- recusou cantar o homem em sua verdes com sal (1969), poema rio de Janeiro – RJ José Craveirinha, mes certos para colaborar nessa grandeza e em sua miséria, em seu que sintetiza, com singular força Rui Knopfli e Luís Carlos Patraquim empreitada editorial. Com efeito, amor e em seus vícios — e que, por lírica, os perenes questionamentos m tempos de guerra, a po- os responsáveis pelos volumes isso mesmo, acolhe em si as con- existenciais humanos. esia, mais que possível, é José Craveirinha (1922-2003), que abrem a coleção elaboraram tradições da condição humana. necessária. Que tematize Rui Knopfli (1932-1997) e obras de valor impecável. Luís Carlos Patraquim o próprio conflito não é Luís Carlos Patraquim (1953-) Rui Knopfli A obra fundacional de Cravei- E são alguns dos nomes mais algo essencial; fundamental é que José Craveirinha Rui Knopfli, dez anos mais rinha e Knopfli tem prosseguimen- representativos da poesia trate do assunto fulcral da literatura moçambicana de expressão À própria Ana Mafalda Leite jovem que Craveirinha, morreu to com a poética renovadora de de todos os tempos: a experiência portuguesa, que conta coube a organização do volume de- mais cedo, em 1997. Deixou oito Luís Carlos Patraquim, cuja obra humana, assim resgatando os senti- ainda com nomes como Rui dicado a José Craveirinha. Nascido livros, todos representados na co- foi antologiada para a coleção por dos solapados pela força das armas. de Noronha (1909-1943), em 1922, falecido em 2003, Cravei- letânea organizada por Eugénio Carmen Lucia Tindó Secco. Como A Catulo não interessava a guerra considerado precursor; rinha publicou cinco livros em vida; Lisboa, que nela incluiu um pos- Craveirinha, Patraquim se debruça civil, mas aquela que cinde o ho- Noémia de Sousa (1926-2003) sua obra é constituída também por fácio assinado por Roberto Said. sobre a terra e as tradições moçam- mem enamorado; embora na obra e Eduardo White (1963-), volumes póstumos, poemas dis- Juízos apressados não tardaram bicanas; como Knopfli, engendra de Dante haja referências aos con- entre outros. Dirigida por persos e por um numeroso espólio a ver em Knopfli uma espécie de um diálogo franco com múltiplas Ana Mafalda Leite, a coleção flitos que dividiam Florença, asso- que permanece inédito. O já men- antípoda de Craveirinha. Filho da vozes da literatura ocidental. Não Poetas de Moçambique obstante, sua obra não se reduz à ciá-la unicamente a isso encerraria pretende apresentar ao cionado Xigubo (1964), obra com burguesia, descendente de suíços um imperdoável reducionismo; e, público brasileiro a moderna a qual estreou o poeta e que abre e portugueses, estreava com um li- assimilação dos que o precederam: se Camões figurou a si mesmo por- poesia moçambicana. a compilação, é adequadamente vro em cujo título — O país dos Patraquim não se esquiva à tarefa tando a espada em uma das mãos e, qualificado como uma “rapsódia outros (1959) — não seria difícil primordial do poeta, que é desve- na outra, a pena, o que esta regis- anticolonialista” por Emílio Ma- sentir uma provocação, agudizada lar para o lirismo novas sendas. No trava podiam ser tanto feitos bélicos ciel, autor da biobibliografia inclu- pelos poemas que o compunham: posfácio ao volume, observa Cín- (como em tantas passagens d’Os sa no volume. “Xibugo estremece onde os cânticos de guerra, os dis- tia Machado de Campos Almeida Lusíadas, porventura espelhados terra do mato/ e negros fundem-se cursos inflamados, a convocação tratar-se de uma poesia construída em suas próprias vivências) quanto ao sopro da xipalapala/ e negri- aos heróis? Em vez disso, Knopfli em torno de uma tríade temática: o lirismo amoroso dos sonetos. nhos de peitos nus na sua cadência apresentava uma poesia de tom re- “a memória, o erotismo e a reflexão Em 25 de setembro de 1964, levantam os braços para o lume da flexivo, composta com impecável metapoética”; percebe-se, assim, tinha início (nos registros oficiais, irmã Lua/ e dançam as danças do rigor formal, que dialogava expli- como a trajetória inaugurada por ao menos) a Guerra da Indepen- tempo da guerra/ das velhas tribos citamente com a tradição literária Monção (1980) já dispensa o de- dência de Moçambique — mesmo na margem do rio”, escreve o poe- ocidental. Injustas, no entanto, as ver de poetizar a terra, em vez disso ano em que José Craveirinha pu- ta, na lírica imagem sintetizando o acusações de que o poeta voltava assumindo como pressuposto uma blicava Xigubo, seu primeiro po- ímpeto que percorre toda a obra: a as costas para Moçambique; a par força lírica que é reelaborada pela emário; não obstante, já na déca- síntese de uma pluralidade de vozes dos diálogos com Fernando Pessoa subjetividade poética para a cons- da de 1950 a resistência se havia e identidades que se reconhecem e Manuel Bandeira, Rui Knopfli trução de uma dicção nova. organizado em grupos orientados como pertencentes a uma nação publicava poemas de teor franca- Notável em sua escrita é, por ideais nacionalistas — decênio Antologia poética por haver. “Vim de qualquer parte/ mente político. Leia-se A melhor particularmente, a relação com o em cujo ano derradeiro estreava José Craveirinha de uma nação que ainda não exis- das distracções, que encena a fala espaço, ora enquanto referencial literariamente Rui Knopfli, com O Org.: Ana Mafalda Leite te”, afirmam os primeiros versos de de um grão-senhor — “marajá, bey, geográfico que expande os limites país dos outros. Se muito insinu- Editora UFMG Poema do futuro cidadão. Poesia khan,/ um nababo qualquer desses do exercício poético — ressalte- am já os títulos das obras (Xigubo 198 págs. panfletária, diriam alguns; a poesia com poderes/ de Vida e Morte” — se, a esse respeito, o sentido fun- é uma dança tradicional que veio a possível, diriam outros, estes mais que, sem pudor, afirma: “Afastei dacional de Noções de geografia, representar a resistência colonial cientes da missão a que se dedica- enfadado/ as inomináveis iguarias espécie de escorço cartográfico do moçambicana), os poemas que va, na hora de urgência, um poeta que me foram servidas/ e nem se- lirismo: “a sul/ implanto uma car- delas constam não frustram essas que, nas últimas obras, construiria quer me dignei/ olhar as dezasseis tografia sem limites/ traço e com- expectativas. Knopfli e Craveiri- textos de impecável lirismo. virgens sortidas,/ fruto do último passo/ depois da madrugada// de nha nasceram literariamente como As modulações da obra de saque./ Onde me diverti a valer,/ ti/ um rosto iridescente/ alastra o cronistas poéticos de uma nação Craveirinha talvez possam ser qua- foi com as línguas que mandei cor- voo claro/ das mãos// ao sul/ des- apenas sonhada, cuja construção lificadas como as múltiplas vozes de tar”. Leia-se Casamento de con- cobrimos vozes abertas/ sem oclu- suas trajetórias líricas acompanha- um homem que jamais se fechou ao veniência, em que assoma a críti- são/ e mastigamos água” —, ora ram, indagando insistentemente mundo. O discurso dilatado de Xi- ca aos costumes: “Meus pais não enquanto âmbito imagético que sobre sua identidade. Dessa tarefa gubo representa a primeira irrup- querem que ame/ a quem amo./ enseja a eclosão mesma da poesia; participaria também Luís Carlos ção de uma fala há muito silencia- Pretendem que me case contigo,/ vejam-se as Quatro meditações na Patraquim, cujo poemário de es- da — e que não expressa a vontade Juventina./ [...]/ Dão-me um au- margem ao longo do Zambeze, do Antologia poética tréia, Monção (1980), renovaria Rui Knopfli de um, mas a de muitos homens, tomóvel e uma casa/ pra que case recente Pneuma (2009), em cuja esteticamente a literatura moçam- Org.: Eugénio Lisboa ainda soantes em Karingana ua contigo,/ Juventina./ Tens um segunda parte lemos: “Senhora, eu bicana sem recusar a dimensão po- Editora UFMG Karingana (1974). Depois do gri- nome que te quadra à figura,/ ra- não vi os três jacarés/ imóveis na lítica da palavra poética. 206 págs. to, o silêncio: a contenção lírica pariga,/ e trazes intacto o selo ne- margem,/ A luz, espelho da carne A esses três autores são dedi- do poeta que cantou o futuro, mas cessário./ [...]/ Aceitarás com sub- branca/ E a boca metafísica,/ Sua cados os primeiros volumes da co- que percebe um presente feito de missão/ que te mande à merda de canoa vogando o desenho do som/ leção Poetas de Moçambique, sé- perdas. A maior delas: Maria, a es- quando em vez/ e não farás muitas E a elipse das asas;// Vi o rio que rie publicada pela editora UFMG posa falecida em 1979, cujo nome ondas./ Sei que não pedes mais,/ é rilhava e seus dentes,/ O canavial e dirigida por Ana Mafalda Leite, intitula o pungente livro em que pegar ou largar,/ Juventina!”. V do Tempo,/ nodoso e debruçado professora na Universidade de lemos um poema como Memó- Visitando a tradição literária, sobre o impulso líquido// Como o Lisboa que viveu a infância e par- ria dos dois — “Ambos/ juntos na porque sempre falou de si, Rui Kno- primeiro timbre evolando a cor,/ te da juventude em Moçambique, mesma memória.// Eu/ o Zé que pfli sempre falou de Moçambique, O Sangue do início e a bolsa rom- chegando a iniciar estudos univer- não te esquece.// Tu/ a Maria sem- embora nele tantas vezes a nação pida/ Para a convulsão do mun- sitários em Maputo. Ana Mafalda pre lembrada”. O tom afirmativo não se reconhecesse. Ressalte-se do”. Não se limitando a falar sobre conhece de perto as literaturas dos primeiros livros cede espaço que, da obra de estréia ao derradei- Moçambique, Patraquim cede a africanas: lecionou em diversos a uma poética de indagações, en- ro O monhé das cobras (1997), voz à terra: “concebe as paisagens países do continente (Cabo Verde quanto variações da escrita de um seus livros mantêm uma elevadís- como exímias contadoras de (suas e Senegal, entre outros, inclusive poeta que permanece fiel a si mes- sima qualidade estética; não há al- próprias) histórias”, observa Cíntia Antologia poética Moçambique); é autora de estudos Luís Carlos Patraquim mo. “Cada homem é sofisma/ bem tos e baixos, mas irrupções que se Almeida. E, esse modo, contribui fundamentais sobre o assunto — Org.: Carmen Lucia Tindó Secco engendrado”, afirma um dos Poe- podem igualar às grandes obras da para a construção de uma tradição A poética de José Craveirinha Editora UFMG mas eróticos (2004), derradeiras poesia de todos os tempos — como poética que, conquanto jovem, já (1990), Modalização épica nas 187 págs. páginas de uma obra que jamais o magistral O deserto, de Mangas se revela inegavelmente pujante. literaturas africanas (1996) e Oralidades & escritas nas li- teraturas africanas (1998) são alguns dos títulos que constam de sua produção bibliográfica, recen- temente complementada com Li- teraturas africanas e formu- lações pós-coloniais (2003). Valioso adendo para essa traje- tória é o fato de Ana Mafalda ser também escritora, autora de uma obra poética que não se esquiva à Knopfli e Craveirinha nasceram literariamente como cronistas poéticos tarefa de reelaborar as vivências moçambicanas; trata-se, portanto, de uma nação apenas sonhada, cuja construção suas trajetórias líricas de alguém que conhece a literatu- ra em suas múltiplas dimensões, acompanharam, indagando insistentemente sobre sua identidade. fevereiro de 2012 27

Estação clínicas

Eltânia André

ilustração: Carolina Vigna-Marú

oi o diabo quem a obrigou. Em de- fracassos. Somos o que somos, porque não de verdades prontas e certezas envelhecidas lírio confessou que ardia como o sabemos o que fazemos de nós, o que dei- que envilecem o mundo. A melodia e a pala- fogo selvagem, um calor desconhe- xamos que façam de nós. “São Paulo esfre- vra são as únicas instâncias da liberdade — é Fcido e alucinante, a pele queimava ga seu sexo na minha cara”, grita o CD no nelas que o espírito, a consciência e a vida se como na fogueira de enxofre do inferno, aparelho de som, enquanto tento procurar expressam sem condicionamentos. Na voz então tirou a roupa para o Aquiles, patrão. respostas para tantas interrogações. E o que de Caetano, Chico, Gil ou dos Beatles, nos Prometeu a salvação e os irmãos em ora- esfrego na face intangível da realidade? O acordes de Tom ou de Mozart, no canto afia- ção, louvação, profecias, línguas estranhas, que faço para desfigurar-lhe o rosto sinistro, do, enfrentando os quartéis, de Mercedez coitada está perdida, ela é filha do demo, as que cada dia me desafia com sua sisudez e Sosa, Violeta Parra ou Geraldo Vandré, nos irmãs com suas roupas compridas, sua fal- suas tantas exigências? versos de Neruda ou Gullar, há mais ciência ta de vaidade, sua castrante cegueira, seus “Cospe em mim, Cássia Eller”, diz a mú- e verdade, há mais religiosidade e poder que cabelos raspando o chão, e sambando nas sica. É preciso ir fundo como a letra fria, mas nos templos e academias. bocas suas dentaduras, aleluiavam em coro verdadeira da melodia que sensibiliza meus O cemitério repleto de jazigos onde clamando aos céus, entoando hinos, salmos tímpanos e ressoa em minha consciência. E repousam silenciosas as vidas que conhe- e corinhos, deixa essa vida, Satanás... Inó- como o poeta que carregava sobre os ombros cemos e as que nunca vimos: é uma lição cuas todas as tentativas de expulsar seus de- a dor do mundo, entre uma tosse tísica e o nova a cada dia. Ensina tanto como os aero- mônios, a repetitiva e farisaica ordem contra suspiro de suas viagens oníricas, que no iní- portos. As lições de partir e recomeçar. Nos o tinhoso emanava da boca de irmãs e irmãos cio do século passado, quando uma guerra mármores suntuosos ou nas covas rasas, posicionados com as mãos sobre sua cabeça, mundial estourou depois de sua morte em nos mausoléus aristocráticos, ou nos jazigos novamente o idioma sendo violentado e o Leopoldina, não temia instigar-nos — “escar- sem arte — a morte nivela sem condescen- “inimigo” sem dar trela. O pastor, homem ra nessa boca que te beija”. Quero também dência. E todos são os mesmos, crentes de bom, praticamente deu de sua melhor co- recolher minhas mãos hábeis, para não re- sinagogas, fundamentalistas de mesquitas, mida, daquelas de lamber o fundo do prato, ceber o gesto vil das que me afagam impune- budistas, católicos, terreiros. Entre divin- ofereceu abrigo. Deus e o diabo se digladian- mente. Boa noite, Augusto dos Anjos! dades e orixás, o que resta é a certeza de do para tomar conta de uma vida desde cedo A mesa dos sacrifícios se divide entre que toda fé, todo sistema de pensamento, perdida entre o tumulto das paixões insanas o medo do indizível e a solidão de não saber religioso o filosófico, são como os rios, que e o tédio dos amores insensatos, nada, nada, nada, nada... a pressão atmosfé- correm para um único oceano: o mar de dú- rica da vida é um poço fundo onde a falácia vidas onde tentamos entender a passagem abre seu coração ao Senhor, minha de vozes não impede o vácuo. Um balcão de do tempo e a morte. filha, não deixe que o devorador tome ouro habita o menor país. O bispo Edir em- Quando o pavor consome a carne e o conta de sua vida, irmã, o sangue de panturra os cofres impunemente. Os santos espírito, é apenas assim que se pode seguir? Jesus tem poder, eu ordeno, quebra as se embebedam num bailar contagiante. Seja Pura tritura da hóstia e o pó em apenas um correntes agora, liberta essa vida, eu em Pirapetinga ou Budapeste, os homens sopro pode romper as dissimuladas barrei- clamo em nome de Jesus, ó derrotado... sofrem do mesmo jeito. E nenhuma reli- ras da fé que agoniza no ínfimo da alma que gião terá sido suficiente para minimizar as não quer conviver com a falta. O vazio exis- (...) Essa gente tem mais medo do dia- suas dores. A literatura é que nos redime, é tencial é o ser que fala, além do arco-íris, bo do que fé em Deus. a palavra poética que nos faz crer que não pois o infinito é maior ainda se não estamos acabaremos nunca (“Se não for pela poesia/ com as mãos entrelaçadas aos amuletos dis- Eu sou eu e minhas circunstâncias — como crer na eternidade?” — Alphonsus de persos ao redor do homem. Nas mãos va- gritou bem alto Ortega y Gasset. Quem não Guimaraens Filho). Quimbanda, umbanda zias, límpidas, sedentas de vida, encontram ouviu, que ouvisse. Que depois não venham e Padre Marcelo Rossi e Fábio de Melo dis- alças para percorrer a viagem em terrenos dizer que eu não avisei. Não coloquem nas tribuindo melodias como se percebessem o áridos e pedregosos. costas de quem não deve a culpa pelos seus mundo. Mas à parte de tudo, a miscelânea Oxalá! Assim seja! Amém!

A AUTORA ELTÂNIA ANDRÉ

Nasceu em Cataguases (MG). É autora de Meu nome agora é Jaque (contos, 2007). Vive em São Paulo (SP). fevereiro de 2012 28 Rinaldo de Fernandes

O crime Só

Ela não o perdoou. O cachorro latiu na Tudo pode piorar. No jardim, a lagarta, hora. E depois largou, entre as plantas pensa no galho, padece para contornar do jardim, o pênis decepado do velho. o espinho. Que, neste momento, vazou- lhe as cores.

O fiel Bola Meto-te a mão. Entre as coxas. Ninguém vendo na igreja. Penumbra. Reclinas, Os passos foram ouvidos pela vizinha. acolho-te o busto. E finco o dedo: Ele fez questão de pisar forte. E de chu- – Ui, Pai! tar a cabeça cortada da cunhada.

No assalto A lágrima

Tenho dez anos, tio. Sim. Já matei. Cortava árvores. Tinha grande prazer Três. A mãe. Ela que mandou eu vir. É. em decepar-lhes os braços. Um dia, de Arrombei ali a... Aí me interrogando, um galho ferido, respingou a lágrima. pra quê?! Que o cegou.

No asilo No bar

Já tive tudo, moça. Saúde, casa boa, Ah! Perdi minha noiva, amigo, e não filhos perto. Até que fui jogado aqui. vem com essa de que amor é isso, é Para piorar, perdi uma perna. Hoje aquilo. O amor é uma merda onde todo pulo por aí... mundo se lambuza.

Bom-dia O jardineiro

Na ditadura, ele foi pego. Tomou pau- Ganho meio salário e amo minha pa- de-arara, socos. Hoje o torturador cru- troa. Eu choro quando ela passa no za com ele na caminhada. E desfere-lhe short verde. Choro escondido, com o um bom-dia. nariz na flor

30% Em casa

Sra. Isa, a nova coleção... Precisava 70 anos e com minha nora de 23. Ao mesmo ouvir alguém... De inverno... cheirar a calcinha dela, o olho verde Vou me matar... Com 30% de... Vou do meu filho me apanhou. Ontem ele Essa sobra me matar... Alô... Tola! soluçou no quarto. O pai Ceias

A poltrona está vazia. Aí já se sentou A terra do homem é onde ele faz ami- meu pai. Meu pai... Posso mudar de gos. Confiante nisso, Alan se afundou assunto? nos seios de uma mulher e nas ceias de mim dos parentes dela. A mãe O apito Reginaldo Pujol Filho Meus filhos cresceram, se foram. Há anos não me vêem. É. Fez dez dias. Que A mendiga mijava ao pé do muro, sem ILUSTRAÇão: Felipe Rodrigues minha calcinha está ali, no banheiro, se importar com ninguém. Na sombra suja de cocô. do poste, próximo, o guarda apertando o apito.

stavas tão bonito, recolhendo meu olhar pela calçada. E eu O filho aqui a te observar com o olhar que me sobrou. Recolhias meu Dois canudos glóbulo que agora nem sei se ainda é olhar, fora do meu ros- Enfim, o que temia. Dar banho em mi- Eto. Minha orelha que pende no meio-fio é ouvir? E essa mão nha mãe doente de 93 anos. Ela pen- Levou a pé os filhos para o parque, lon- minha na mão tua que tiras do asfalto, como se me tirasse para dançar? dendo, tirei-lhe a roupa. Ai, puta que ge. Chorou ao vê-los, quietos, os dois ca- Pena que é só ela que vai, já que meu braço foi descansar lá do outro lado pariu! Ô sorte! nudos, tomar o primeiro refrigerante. no momento em que o carro me partiu em duas, três, quatro, tantas. Mas agora sou apenas uma, um olho só, uma cabeça só a te mirar tão lindo. O que sentes neste exato momento em que seguras firme uma das minhas A tia O gato coxas? Percebes minhas horas de academia, meus anos de balé? Tem nome essa tua profissão de recolher meus pedaços, meu san- Queria tanto a minha tia. Tanto. Ela Foi forte o último olhar do gato. Foi gue do chão? E importam nomes agora que encontrei um homem capaz dormindo no sofá, tudo lhe crescia: os forte e pedia socorro ao louco urinando de tocar cada pequeno canto de mim? Olha, que lindo, tu reparas, eu seios, o sexo no short. Eu namorava perto. O gato, no beco, sendo morto a era feita de mínimos detalhes, notas o mindinho do meu pé esquerdo com a almofada. perfuradas. que, não imagino como, se desgarrou, foi para longe dos quatro irmãos, que devem estar ainda com o pé (com a perna) em algum lugar que este único olho que me resta não consegue alcançar. O gesto O casebre Quem me dera ter sido forte e resistir ao impacto do pára-choques, do capô, dos estilhaços, quem me dera ter caído inteira no asfalto, para O gesto o fez tremer, sofrer muito. Passa- Beirando a estrada, recuado, entre ro- depois ter caído inteira nos teus braços. Mas, fosse assim, tu virias me dos anos, ainda se lembra. Chora, pende chas bicudas, o casebre. Dizem que o ve- recolher? Ou seria um enfermeiro, cuidando para que eu sobrevivesse? no travesseiro. Olha para a porta. E só. lho a mantém acorrentada. A menina. Isso sim seria a morte, não descobrir que algum homem, alguma vez na vida, poderia recolher meu tronco com o zelo, com o carinho e com a firmeza com que pegas esta parte de mim. Veja, lindo, teu olhar Ao repórter Como fazer? agora encontra este meu. Vens por ele ou pela cabeça, ou, devaneio, por isso tudo que sinto? Sinto onde se meu coração já está naquele saco pre- A gente não rouba pra comprar droga, Parou no acostamento, olhou para o to? Mas sinto, sinto, sinto em algum lugar dessa sobra de mim que agora não, moço! Deixem disso! Eu roubo é morro azulado. Bateu o barro no pneu. sou, sinto que esse homem que recolhe minha cabeça da calçada como pra comer! Comer! Merda de mentira, e Pensou na filha, em como ia fazer. se fosse me dar um beijo é o homem da minha vida, mesmo que nessa todo dia! hora derradeira, em que me dela me despeço. Estás tão bonito aí fora, lançando minha cabeça aqui no saco preto.

REGINALDO PUJOL FILHO RINALDO DE FERNANDES Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1980. Publicou os livros Azar do personagem (2007) e Quero É contista, romancista e antologista. Autor dos livros de contos O perfume de Roberta ser Reginaldo Pujol Filho (2010). Também organizou a antologia Desacordo ortográfico, (2005), O professor de piano (2011) e do romance Rita no pomar (2008). Organizador lançada no Brasil pela Não Editora (2009) e em Portugal pela Livro do Dia (2010). É um dos 10 das antologias Contos cruéis (2006) e Capitu mandou flores (2008). Publica no autores selecionados por Marcelino Freire para a coleção Que viagem! (Edith) e atualmente Rascunho a coluna Rodapé. Os minicontos acima integram seu novo livro, Contos vive em Lisboa, onde cursa a pós-graduação em Artes da Escrita da Universidade Nova. de amor e de dor inteiros, a sair neste ano. fevereiro de 2012 29 Fausto Amadigi

ILUSTRAÇÕES: Theo Szczepanski

O CAPACHO DO 414

No capacho em frente à porta está escrito: “Seja bem-vindo à república independente da minha casa”. Apesar da amabilidade da mensagem, bem sei que o vizinho não me convidaria para entrar. São seis da tarde, horário de depositar o lixo no contêiner próximo à escada, no outro extremo do corredor. O corredor estreito e comprido tem exatamente dez portas numeradas de quatrocentos e onze a quatrocentos e vinte, cinco à direita e outras cinco à esquerda. Naturalmente, cada número corresponde a um morador. De ponta a ponta estende-se um tapete verde desbotado e sujo que percorro com vinte e seis passos. Com as sacolas de lixo na mão, detenho-me no passo de número dezessete, em frente ao apartamento quatrocentos e quatorze, o único da fileira de portas com capacho e mensagem de boas-vindas. Foi apenas este detalhe que me levou a cogitar a possibilidade de fazer uma visita ao vizinho. Reflito um instante e considero minha impulsiva intenção completamente fora de propósito: oras! bem sei que o vizinho não me convidaria para entrar. De qualquer modo, antes de seguir os nove passos restantes até o contêiner de lixo, limpo o calçado no capacho de boas vindas do 414.

O VENDEDOR DE BANDEIROLAS UM PASSEIO

Juan é hondurenho e vive em Madri há quase um ano. Faz Paga pelo serviço e não tem nenhum parte da legião de estrangeiros ilegais no país. Não tem parentesco com a jovem que empurra a documentos de imigração, não tem trabalho regular, não cadeira de rodas. O passeio de meia hora, tem benefícios sociais. Para sobreviver, compra artigos em três vezes por semana, custa ao velho lojas chinesas e revende na rua e nos bares. Leva na bolsa a meio salário mínimo por mês. Calado e tiracolo óculos luminosos, colares extravagantes de plástico frágil, nos últimos anos seu único prazer colorido, isqueiros, máscaras e flores. Sua jornada começa é esquentar o corpo ao sol, ver o tráfego, às seis da tarde, quando os que saem do trabalho lotam os ouvir o barulho turbulento da rua. Gosta bares do centro, e segue até cessar o movimento da rua. de fazer sempre o mesmo trajeto, ela já Por esses dias, aproveitando a Copa do Mundo, Juan sabe. Os primeiros minutos passam rápidos passou a vender exclusivamente um produto de ocasião: descendo do sexto andar, superando com bandeirolas da seleção espanhola. As vendas aumentaram ajuda do porteiro as escadas da entrada do consideravelmente, em especial nos dias de jogo. edifício, cruzando cautelosamente a faixa de Hoje Juan começa uma nova jornada. Entra cauteloso no pedestres, desviando aqui e ali de alguma bar lotado de torcedores. Todos estão em silêncio e olham bosta de cachorro, rodando pela calçada de na mesma direção, concentrados na imagem e no som da cimento até o jardim onde estão as árvores. tela pendurada na parede. Circula pelo balcão e entre as Superado o percurso, estaciona com cuidado mesas oferecendo o produto. É metade do primeiro tempo, a cadeira de rodas ao lado do banco em que Espanha marca um a zero contra Honduras. A torcida do senta. Assim estarão os dois a compartilhar bar grita, aplaude, brinda com cerveja. Juan olha por um os próximos minutos do passeio: ele, momento quase estático o replay do gol em câmera lenta. instalado e taciturno, mirando os brotos Saca as bandeirolas da bolsa e põe na cara um sorriso das rosas; ela, apressada, o relógio. simpático de vendedor. Agita as bandeiras com entusiasmo emprestado e vibra meio desbotado um vermelho-amarelo que não lhe pertence, pensando que os gols da Espanha podem ser bons para o negócio. Não há ninguém na rua quando Juan sai do bar, relativamente satisfeito, com a bolsa quase vazia e a noite ganha.

FAUSTO AMADIGI Nasceu em Querência do Norte (PR), em 1978. É autor de Cento e tantos poemas. Vive em Itacaré (BA).

ESTAÇÃO CERCEDILLA

Chego caminhando à Estação Cercedilla. Há um velho sentado no único banco livre junto à plataforma. Olha o calor que sobe dos trilhos. Ao seu lado, uma sacola com plantas. O velho e a sacola ocupam quase todo o banco. Peço licença, ele abre espaço escorregando para o lado. Sento à esquerda, na ponta. Sinto o cheiro que vem das profundezas do seu sobretudo preto, emanações de vários dias sem banho. Tem a expressão murcha das plantas que carrega na sacola e certo desamparo. É uma árvore antiga que caiu sem raízes; um espelho fosco passivamente absorvendo a luz com suas roupas escuras. Tira um lenço usado do bolso, limpa o nariz, guarda o lenço. Simula um gesto com as mãos, como se tocasse flauta, e assovia algo molhado entre os dentes que faltam na boca. Repete os mesmos movimentos várias vezes, obsessivamente. O trem apita longe, o metal dos trilhos chia antecipando a entrada na estação, as luzes piscam, as portas abrem. Embarco com outros poucos passageiros. Sento numa poltrona vazia num vagão vazio e olho o velho pela janela. Continua no banco acompanhado da sacola, mãos fechadas entre as pernas. O velho não espera o trem, espera algo muito mais remoto. fevereIro de 2012 30 : rogério pereira : : sujeito oculto : : Aprendiz de Zatopek

A corrida em direção ao muro chapiscado, sujo e feio

onhei com Zatopek. Foi ar — Tarzan dependurado em ci- O mundo notívago era atraente e ••• o adversário. Eu me contentava em nosso primeiro encon- pós imaginários —, as pernas finas não denunciava as imperfeições do Ao entrar no ônibus, avistei-a. jogar a bola para o mais longe pos- tro. Na agitação do sono, trotavam na ânsia de vencer. Mas- muro onde roçávamos os corpos. Sentada perto da porta, abaixou a sível das redondezas da área defen- Sele corria. Uma besta en- tigava cada passada com a fome Ao trabalhar o dia todo, não preci- cabeça. Fingia não me reconhecer, dida com empenho e pouquíssima furecida, sem qualquer técnica. dos desesperados. Transpirava na sava participar das aulas de educa- ao mesmo tempo em que eu trei- habilidade. Na corrida, eu o vencia, Apenas corria. Forrest Gump de camiseta de cujo tecido o símbolo ção física aos sábados pela manhã. nava a técnica da invisibilidade. mesmo perdendo para o futuro cai- nervuras indestrutíveis, trem sem escolar já desbotara havia tempo. O pulmão já esburacado pela nicoti- Tínhamos vergonha daquilo que já xa de banco, sob o olhar amável da freios a arrancar sangue dos tri- O barulho seco e oco dos pés na na agradecia. No entanto, nunca es- não éramos, da ingenuidade per- menina silenciosa sentada próximo lhos. Havia sofrimento nas ranhu- pista denunciava o improviso do queci as derrotas. Escrevi-lhe uma dida. Quando ele tocava o muro a à porta do ônibus. Éramos ligados ras do rosto, no cabelo lambido, tênis inadequado — soldado, em carta, cujo final ainda está impresso denunciar minha incapacidade de pela mesma obsessão: a amizade nos braços longos, nas pernas es- plena batalha, montado em um nos movimentos da caneta de tinta vencê-lo, ela olhava-me com ca- escolar. E corríamos. Eu corria no quálidas e torneadas por múscu- cavalo-marinho, a combater um preta e escrita fina: “Jamais o alcan- rinho. Sabia que seria impossível. encalço do futuro caixa de banco; o los a romper a geografia do corpo. submarino atômico. A derrota me çaria”. Nunca obtive resposta. Dividíamos a certeza da derrota. Ao bom jogador de futebol corria logo Sulcava as pistas com passadas de esperava no muro adiante. Certo dia, ao chegar ao caixa partir para a noite, fizemos juras de atrás; a menina do ônibus corria os animal voraz. Nada o parava até a Nos infinitos segundos da- do banco, estendi a conta. O ra- amizade eterna. Além de ser uma olhos em nossos corpos infantis. O linha de chegada. A dor em busca quela guerra, bastava o desvio do paz magro e de óculos olhou-me batalha perdida, a infância esconde fim chegou rapidamente. As cartas da vitória. Na Olimpíada de Hel- olhar para avistá-lo. Pescoço esti- com indiferença. Pegou a conta, o mentiras eternas. No início, um pu- minguaram. A musculatura ganhou sinque, em 1952, transformou-se cado às alturas, braços e mãos em dinheiro, digitou vários números, nhado de cartas tentava nos conven- novos contornos. A noite de nicotina em lenda. Em apenas dez dias, sincronia. Pés gigantes a escavar o imprimiu o valor na máquina de ba- cer de que a distância era de apenas soterrou as tardes ensolaradas. venceu três provas de longa dis- cimento. Nada o assustava. Tinha rulho irritante, devolveu-me o do- poucas horas entre o turno da tarde Na praça, ele (o bom jogador tância, inclusive a maratona. O a certeza da vitória. Asas o faziam cumento quitado. Seus movimentos e o da noite. Quando ela desembar- de futebol) vinha em minha direção. sonho rápido, em compasso com flutuar quando o cansaço brotava. eram lentos e medidos. Fazia tudo cou do ônibus e ameaçou um leve Cabeça raspada, corpo magricelo. o personagem, arrastou-me às E, então, os dedos longos tocavam o com métrica e precisão para evitar meneio de cabeça, descobrimos que Algumas rugas se agarravam aos cartas. Elas, assim como Emil Za- muro chapiscado, sujo e feio. Logo qualquer equívoco. Por alguns se- a distância sempre foi a mesma que, cantos dos olhos em harmonia com topek, também estão mortas. em seguida, minha derrota se esta- gundos, parado à sua frente, olhei-o nas corridas, separava-me do caixa os vincos da testa. Olhamo-nos e um Quando o professor grita- telava ao seu lado. O apito do pro- à espera de uma resposta. Ele falou de banco que tocava o muro antes de tímido cumprimento perdeu-se por va “já”, meu corpo desprovido fessor levava-nos novamente à sala “próximo”. Um aviso para que a fila mim: pequena, mas intransponível. entre os respingos do chafariz inun- de qualquer adiposidade tentava de aula. Fim da educação física. andasse. Ali, ninguém corria. A len- ••• dado pela molecada de rua. Toma- superar-se. Tinha de chegar antes Quando a necessidade jogou- tidão e a impaciência rondavam os Ele chegava em terceiro ao mos direções contrárias. Cada qual dos demais ao muro chapiscado, me numa fábrica de móveis durante clientes. Coloquei a conta paga no muro. No futebol, tinha mais ha- em sua velocidade imaginária. sujo e feio. Sob meus pés, no piso o dia, mudei de turno na escola. À bolso da calça e ouvi um barulho bilidade, corria com desenvoltura, ••• irregular de cimento bruto, uma noite, diante do portão semi-escu- oco e seco a cada passada em dire- apesar de não ter muito arranque. Zatopek sempre rompia a linha infância febril. Os braços tenta- ro, agarrei-me ao cigarro e às bo- ção à porta giratória. Nunca mais O toque na bola era refinado, o cor- de chegada com uma expressão de vam em desespero agarrar-se ao cas disponíveis das novas colegas. voltei àquela agência. po gingava e iludia com facilidade dor e desespero desenhada no rosto. ALMIR CASTRO BARROS

ILUSTRAÇões: Rafa Camargo

Enganos

Enverdecer calores é mentir, Como igualmente faz quem ri de loucos Dizendo-os chorar.

E enquanto difamados, Malucos ressonham marselhesas No firme e seu caminho — único. Ditadores e seus narcisóides

Magnificar O quê?

Neles, A esperança não tem pacto: Está em seu abecedário.

Nalguns porões, Bichos já com garras de aço

Aguardam no chão que lhes resta — Fogo e ordem Déspota.

A Deus, ou Retratos — na rua lendo Rilke em Duíno

Ferozes andam todos, Dos olhos E quando esquecem a própria jaula, E nas águas que eles podem, Matam. Relembro.

Conforme os apetites, Então, A devoração virá. Fecha-se a janela onde estou, A exigir-me ALMIR CASTRO BARROS Luz nenhuma Contra o inferno dos frios Nasceu em Maraial, cidade da mata Infernizará no remorso, esses, — Uma coberta. sul pernambucana, em 1945. É autor, entre outros, de Um beijo para os Contra quem descerá das faixas do céu crocodilos, O lugar da alma. Vive Rapinas em multidão — famintas. em Jaboatão dos Guararapes (PE). fevereiro de 2012 : : HQ : : ramon muniz 31 FEVEREIRO de 2012 32 : : intercâmbios ficcionais : : carola saavedra Bestiários

A terrível missão enfrentada por tradutores diante das inúmeras possibilidades apresentadas por um texto ficcional

trabalho do tradutor é tantas intervenções cirúrgicas que é um jogo de cartas típico da região trazem doenças, que devastam as da folha escrita. O que fazer diante um dos mais ingratos já em nada lembraria o seu sem- dos Alpes, e só existe lá, não tem colheitas. Mas isso não é tudo, é ne- do texto que nos encara exigente que existem, é um des- blante anterior. No segundo caso, tradução. O que não seria um pro- cessário buscar a origem da palavra, e cheio de recriminações? O que Oses casos em que (no como num filme B, a mulher jovem blema não estivesse o livro todo es- ungeziefer vem de geziefer, palavra fazer diante de watten? Ou de um melhor dos casos) se o profissional e sedutora ao se virar deixa entrever truturado a partir desse jogo e não bíblica, que se refere a um animal ungeziefer? Que solução encontrar for muito bom, ninguém percebe a através da fenda do vestido um rabo repetisse a palavra watten (como que pode ser oferecido em sacrifí- para aquilo que não tem solução? sua existência. Como um mordomo, de salamandra ou um pé de bode, e substantivo ou como verbo) a cada cio. Já o ungeziefer, o prefixo un- É a pergunta que o tradutor se faz a só nos lembramos dele quando algo o leitor, já prevenido da sua verda- duas frases. Nesse caso, um tradu- em alemão designa uma negação, é cada página, sabendo que faça o que dá errado, faltou champanhe, aca- deira natureza, não se deixa mais tor paranóico poderia concluir que justamente o animal que, segundo fizer, ele (assim como o mordomo) bou o caviar, a cozinha pegou fogo. seduzir assim tão facilmente. Pois se trata de um plano mirabolante os preceitos bíblicos, não serve para sempre será o culpado. Acidentes dos quais, nós leitores, vi- no fundo a tradução é sempre isso, arquitetado pelo autor no intuito de ser sacrificado, o que inclui insetos, Afinal, como todos sabemos, sitas ilustres e bem acomodadas na uma mulher mais ou menos seduto- desencorajar as traduções do livro. claro, mas também camelos, bodes, o tradutor é um traidor. A questão sala de estar, não deveríamos sequer ra que esconde seu pé de bode, ou Sim, parece um exagero, mas con- salamandras. Ou seja, trata-se de é que precisamos dele. É claro que tomar conhecimento, mas por culpa seja, tenta impedir a todo custo que siderando as palavras de Bernhard outra coisa. Gregor Samsa, que até se tivermos sorte, e com algum es- do mordomo (sempre ele), somos percebamos a aberração. O sucesso na entrevista em Madri, até que não então havia servido (em sacrifício) forço, podemos aprender inglês, surpreendidos por uma estranha do tradutor depende do seu talen- é uma hipótese tão absurda. à família, e de forma mais geral à francês, espanhol. Mas e russo, por inquietude no rosto do anfitrião, e to em vestir, maquiar, esconder tal Mas não é preciso a misan- sociedade, de um momento a outro exemplo? Certamente, muitos mor- talvez até um início de fumaça que detalhe, sem que por isso a mulher tropia de Bernhard para enlouque- perde essa serventia. Ao acordar de reremos sem falar russo. Está certo, se esgueira cozinha afora. perca o seu frescor original. cer um tradutor. Há o exemplo de sonhos intranqüilos, Gregor Samsa sem falar russo tudo bem, mas por Quando algo falha e a tradução Quem exprimiu essa idéia de Kafka, cuja expressão “ungeheures não servia mais ao sacrifício. Essa que teríamos que morrer sem ter é ruim, em geral os motivos podem tradução como aberração de forma ungeziefer”, traduzido como inseto leitura tem o aval das últimas pá- tido lido Dostoiévski? Até pouco ser compreendidos entre duas cate- mais radical foi Thomas Bernhard, monstruoso, é a chave intraduzível ginas, quando, após a morte de tempo atrás, Dostoiévski era tra- gorias extremas: ou o tradutor errou escritor austríaco conhecido por que permeia toda a Metamorfose. Samsa, os pais olham com outros duzido do francês. Aliás, até pouco porque não respeitou o texto origi- suas declarações misantropas. Num Há inclusive no imaginário popular olhos para a irmã, e percebem de tempo atrás era muito comum tra- nal, ou ele errou porque respeitou documentário feito em 1986, pas- a idéia de que Gregor Samsa acorda repente, que ela havia se tornado duções serem de segunda mão, ou demais. No primeiro caso, o leitor, seando pelas livrarias de Madri, de sonhos intranqüilos transforma- uma moça de grande beleza. seja, traduzia-se Dostoiévski, Bre- desavisado, acaba lendo algo que ele comenta, em tom que lhe era do numa barata, a famosa barata de Mas voltemos à tradução, Ka- cht, e tantos outros do francês, o que desvirtua o que o autor escreveu, característico: “Um livro traduzido Kafka. Na realidade Kafka em ne- fka escolhe a palavra ungeziefer, muitas vezes tornava as traduções não respeita o seu estilo, o ritmo é como o cadáver de um autor, mu- nhum momento especifica o inseto que carrega em si toda a conotação uma espécie de telefone sem fio, um escolhido, e em alguns momentos, tilado até tornar-se irreconhecível. em que Samsa se transformara, e acima. Mas em português não há pa- dizquemediz, fulano que falou para suprime palavras ou até mesmo fra- (...) Tradutores são algo terrível. (...) talvez esta seja uma questão essen- lavra correspondente, afinal, inseto sicrano e disse para beltrano, até ses inteiras, como se elas fossem um Para que serve uma tradução?”. cial. Kafka não escolhe a palavra un- não é ungeziefer, inseto é apenas, finalmente chegar aos nossos ouvi- estorvo e pudessem ser facilmente Não é por acaso que os livros geziefer por acaso. Ungeziefer pode segundo o dicionário etimológico, dos, ou melhor, aos nossos olhos sa- excluídas. No segundo caso, o leitor de Bernhard são famosos por dei- ser traduzido como inseto, porém um insectum, animal segmentado. be-se lá o quê. Afinal, ninguém fala- vê-se diante de uma espécie de pa- xarem os tradutores de cabelo em designa em alemão, não insetos em O que faz o tradutor? Bom, nada, se va russo. Continuamos não falando limpsesto indesejado no qual o tex- pé. Frases longuíssimas, às vezes geral, mas refere-se mais especifica- for um bom tradutor, escreve mons- russo (com raras exceções), e nunca to original se sobrepõe à tradução. estendendo-se por uma, duas pá- mente a insetos nocivos, daninhos. truoso inseto e pronto, se for ruim, conheceremos o semblante origi- Os motivos podem ser vários, entre ginas, repletas de orações interca- O alemão, aliás, é um idioma que diz que é uma barata. Resta aos aca- nal de um Raskólnikov, por melhor eles, o tradutor manteve-se ao pé da ladas e conectivos, que levam ao jamais generaliza, ao contrário, e dêmicos, aos estudiosos de Kafka e que seja a tradução, nunca vamos letra, ou se ateve à estrutura sintáti- extremo a sintaxe da língua alemã, se os esquimós, como dizem por aí, leigos que resolvam se preocupar acompanhar as palavras originais, ca original, causando um estranha- e que muitas vezes “quebram” ao têm vinte palavras para a cor bran- com o assunto esclarecer as origens os seus gestos, nunca vamos saber mento não desejado pelo autor. serem traduzidas para idiomas de ca, os alemães tem vinte palavras e possibilidades da palavra. a especificidade do seu tom de voz, E para usar outra imagem estrutura diferente como é o caso para cada uma das cores do uni- Por essas e outras sempre me nunca vamos ter acesso às escolhas (deixemos o mordomo em paz), do português. Bernhard tem um verso. Mas voltando ao ungeziefer, pareceu curioso que se fale tanto da exatas do autor. Mas e daí? Antes se a tradução fosse uma mulher, livro chamado Watten, cuja tra- não se trata de um inseto qualquer, angústia diante da folha em branco, um Raskólnikov com pé de bode do no primeiro caso, ela teria sofrido dução é quase impossível. Watten mas daqueles desagradáveis, que mas tão pouco da angústia diante que Raskólnikov nenhum. Certificado de Autorização CAIXA nº 6-1360/2011. 11/01/2012, 05/03/2012 e 09/04/2012. Imagens meramente ilustrativas. Consulte o regulamento da promoção no site www.livrariascuritiba.com.br. Promoção válida de 15/11/2011 a 09/04/2012. Os sorteios dos prêmios ocorrerão em

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