Título Entre Linhas

Autor

Design e paginação Jusko®

Impressão Cafilesa

1ª edição Novembro 2014

ISBN 978‑989­ ‑655­ ‑247­ ‑3­

Depósito legal

www.primebooks.pt clientes. [email protected] Índice

Prefácio 9

Zé António 13

Paulo Futre 15

Recuperação entre jogos 20

A harmonia de uma orquestra e o futebol 24

Noção de jogar à zona 28

Ter a bola 33

Testes físicos 37

Espaços, linhas e momentos no jogo 41

Amizade e solidariedade... na tarefa 46

Pré‑época­ 50

Paragens no Campeonato 54

Parar para subir e... descer 58

As lesões e o paradigma do futebol italiano 62

Fadiga mental 65 Mourinho, Lampard e o intervalo de tempo entre dois jogos 69

Como se formatou uma ideia 73

Modelo de jogo 77

A natureza do jogo... do caos à ordem 83

Da teoria à prática e da prática à teoria 87

Intensidade. Um conceito abstrato? 92

Jogadores ou processo? 96

A especificidade ou Especificidade99

“He understands the game...” 105

Os erros vistos pela natureza “sistémica” do jogo 109

Transições ofensivas 113

Momento de transição defensiva 117

As análises de jogo... ou o perigo de fragmentar sem entender 120

A fluidez do jogo124

Pressionar ou bascular 128

Jogador de qualidade ou jogador com qualidades 130

Defesas centrais 133

Trinco ou pivot defensivo, um olhar por dentro do campo 138 Espaços “cegos” 141

Será possível haver pressão numa panela sem testo? 144

Rotatividade 148

A estratégia... 152

Criatividade: reflexão sobre uma palestra de Sir Ken Robinson 155

Quando tudo se começa a... perder 160

Partir do que conheço melhor para o que conheço pior... 168

Futebol: um palco para todos 173

Do tático à desmotivação 176

Diário de um aspirante a crack 180

Combustível do ser humano 186

Liderar num contexto de extrema dificuldade 189

Liderar: um exemplo prático 192

Cultura e futebol – Turquia 196

Cultura e futebol – Emirados Árabes Unidos 201

Prefácio

— Carlos, vem pra dentro, é hora de jantar! Ou de fazer os deveres, chamava­‑se assim ao TPC na altura, os deveres, que era mesmo uma obrigação, isso ou o jantar signi‑ ficava o fim da pelada de rua. O grito dado pela mãe na soleira da porta, a mim e a outros Carlos, a ti também, presumo, quase ao mesmo tempo em e em Paredes, fosse “no campo da escola ou num espaço lá perto em terra batida”, escreves, era igual na minha terra, nasceu depois o Tribunal com nome em latim onde era terra batida, lá onde nasce a paixão, ou nas‑ cia, que hoje há retângulos uniformes de relva falsa à espera de mensalidades antes do talento, e crescem de outra maneira estes putos da bola. Nós não, era tudo autêntico, mais perigo‑ so, tanto que às vezes caíamos sobre a pedra que fazia de poste, ou havia risco de caírem as próprias balizas, velhas, quando as havia. Ninguém marca ao homem na rua, embora não o sou‑ besse na altura, joga‑se­ em função da bola, zona da mais pura, que jogar à bola também era “andar na zona”, no bem bom segundo a minha avó, também aprendi música, teclas de piano em vez de xilofone, mas o meu som eleito era o do pontapé na bola, do grito do golo em vozes esganiçadas de criança. Ia o Carlos ao 1º de Maio, vantagens de cidade grande, via eu os ídolos no pelado das velhas Laranjeiras alisado por uma car‑ rinha que arrastava uma rede antes dos jogos — Raios, perdemos, logo hoje que queria tanto ganhar.

9 CARLOS CARVALHAL

É talvez o único dérbi de que me lembro da curta carreira, quer dizer, lembro­‑me de outro, mas prefiro esquecer o resultado, também com o Penafiel, este não é tão traumático. Nas velhas Laranjeiras, com mais público do que hoje num jogo dos se‑ niores, eu vaidoso de braçadeira (tenho lá em casa o retrato do futebolista enquanto jovem), mas eles ganharam 4‑2­ sem espi‑ nhas. Seguimos a par, Carlos, naquelas primeiras semanas em que era só correr e subir bancadas, tipo tropa, também eu ia de livros para os treinos, lembrou­‑mo há pouco o meu Mister dos juniores, ganhaste avanço depois no futebol, com muito mais dérbis, e equipas, e transferências (ainda tenho cromos teus, misturados em pontas de inveja), jogador a sério, se bem que nunca se é jogador a brincar, quem calçou chuteiras sabe que lá dentro é para ganhar, como contas neste livro balneário aden‑ tro, com estórias sem H, dessas de contar mil vezes à mesa do restaurante entre amigos, dos bons e maus ambientes, do jogo especial, do colega maluco, dessa relevante divisão de cabina, e podia ser do mundo, entre “índios” e “anjinhos”. — Se é um todo, porquê treiná‑lo­ em fatias? Perceber isto foi entender a essência e mudar a forma de o ver, e pensar, como se físico, técnico, tático e emocional surgissem à vez em cada jogo – agora corre, ora passa, é a vez de pensares na equipa, supera­‑te –, que disparate, dizemos hoje, disparate não que tenha sido, outro era o tempo, dos “picos de forma”, mesmo se havia à frente do seu tempo, mas que seja ainda, dizes que já pensavas nisso quando jogavas, prenúncio de treinador, que acrescentou conhecimento e experiências, sem dogmas, e os expõe em livro aberto para que tantos de nós possamos lê‑lo­ melhor, ao jogo através do livro, jogo ca‑ ótico que se organiza, orientação com aleatório, dar princípios à rebeldia, ordem que respeita o caos, tática e talento a par. E perceber o jogador pelo “olhómetro” sem desprezar a ci‑ ência, dominar os momentos do jogo como as transições que tantos renegavam, alguns não entendem, mas todos citam,

10 ENTRE LINHAS criar um “jogar” com impressão digital e depois treinar para jogar, esse jogar, que mais que a vontade de vencer conta a vontade de se preparar para vencer, no esforço das rotinas que impedem o erro, repetir em busca da perfeição coletiva, como numa orquestra que integra um tocador de piano, ou xilofone. “Cada vez penso mais e corro menos.” Carvalhal cita Puyol para, depois da evolução traçada, chegar ao modelo em que acredita, de um jogo inteligente, pensado para controlo e do‑ mínio dos espaços, incluindo os “cegos”, que também há lu‑ gares “à sombra” num relvado, da qualidade da posse e cir‑ culação, das referências para uma pressão eficaz, do perfil de central, de médio defensivo, dos exemplos de como tudo se constrói, no concreto. A zona triunfa como conceito, mas a história também se faz homem a homem: o Futre genial com quem o Carlos cresceu, Maradona, o génio acima dos outros, com quem privou há pouco, mais José Mourinho que joga todas as competições a top e despreza a rotatividade, Ferguson numa das lendárias reacções à derrota testemunhada in loco, até Guardiola já na construção do novo Bayern, ele que decerto aprovaria quando os técnicos da formação do Braga pediam no tempo do pequeno Carvalhal: “Joga o mais simples e, se possível, curto.” Sentir o futebol é vivê­‑lo, do berço ao futuro. Está tudo aqui. Vinicius, que era um génio, explica: nunca pense que está sozi‑ nho quando você vive futebol, respira futebol. Carlos Daniel

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00. Zé António Estava no balneário do estádio do Desportivo das Aves, onde era treinador na época 2000/01, tinha acabado o meu banho e oiço o roupeiro aos gritos para o Firmino (um anão, muito boa pessoa): — Quem deixou a porta do autocarro aberta? Estamos lixa‑ dos... Íamos sair rumo a Lisboa para jogar com o Benfica e não es‑ tava a entender nada do que estava a acontecer! Pergunto ao Firmino e ele responde muito alarmado: — O Zé Maria entrou para o autocarro, estamos feitos. Percebi o problema. O Zé Maria era um adulto, na casa dos 40 anos, que tinha Trissomia 21 e era ajudante do roupeiro. Era dotado de uma força incrível e a partir do momento que se sentava no autocarro ninguém o tirava de lá, nem de guindaste! A estratégia era manter a porta do autocarro fechada até à úl‑ tima, mas naquele momento alguém se descuidou. Conclusão: havia que marcar mais um quarto, o Zé Maria também ia para estágio. Foi neste simpático clube que contactei pela primeira vez com um lateral direito muito profissional e sério, equilibrado no bi‑ nómio defesa­‑ataque, com um espírito do tipo “mais vale que‑ brar que torcer”. Amigo do amigo, de conversa muito fácil, traços que ainda hoje conserva. Claro que me estou a referir àquele a quem dedico este livro por inteiro, estou a referir­‑me

13 CARLOS CARVALHAL ao Zé António. Seguimos juntos para o Leixões e vivemos mo‑ mentos de grandes emoções. O Zé António e mais uns quantos Bebés do Leixões retornaram a “casa” para escrever uma das páginas mais bonitas do clube e do futebol português. Sob a liderança do presidente Zé Manel Teixeira, tiramos literalmente o cube do “buraco” da 3a divi‑ são e em duas épocas fomos à final da Taça de Portugal (feito único em toda a história do futebol português), disputamos a Supertaça, entramos no quadro da UEFA (ainda hoje a primei‑ ra equipa de um terceiro escalão a consegui‑lo­ em toda a sua história) e, já sem mim, a equipa só parou na 1ª Liga de futebol profissional. Neste fantástico período deu para tudo, chorar de alegria, de tristeza, rir, abraçar... Os momentos maus (poucos) e muito bons (muitos) são excelentes para revelar o verdadeiro carácter das pessoas. O Zé é daquelas personalidades e amizades que ficam para a vida. O carácter que hoje demonstra na adversida‑ de não é surpresa para mim, é exatamente o mesmo que reve‑ lava enquanto jogador. A sociedade pode evoluir ou (in)voluir, mas há coisas que nunca passarão de moda e serão sempre importantes no êxito de qualquer atividade: o caráter humano. Por essas e por outras coisas o Leixões foi tão longe, o quanto desejo que o Zé continue a ir...

14 01. Jogava nos iniciados do Braga e, depois de um treino, recebo uma grande notícia: estava convocado para a seleção nacional de sub‑14­ para um jogo, em França, com a Seleção francesa. A única coisa que me preocupava era o ter que faltar às aulas, de resto, iria concretizar um sonho, defender as cores do meu país. Viajo de comboio de Braga até Lisboa. No , entravam os restantes colegas convocados, oriundos de clubes do Norte. A meio da viagem, cumpro aquilo que iria ser um ritual: saco dos livros e começo a estudar de forma a não ficar para trás nas diversas matérias escolares. Começam os meus colegas a troçar e a fazer piadas, o mesmo aconteceria com os colegas de Lisboa, nos vários estágios que se seguiriam até aos sub‑21.­ Dava­‑me igual, tinha objetivos e nada me fazia desviar deles... Chegados à sede da Federação, foi hora de fazer contas. Tinha falado com colegas e havia uns truques para tentar ganhar algum dinheiro. Lá meti as minhas contas e meti o táxi de casa até à estação de comboios e de Santa Apolónia até à sede da Federação, que tinha dividido com os meus colegas. O Serra (colega de clube dos seniores do Braga), anteriormente, tinha metido uma conta de táxi de Maximinos (onde vivia) até à es‑ tação de Braga, na ordem de uns valentes escudos (moeda da altura). Ora, a informação, naquele tempo, não era tão fácil como agora. Maximinos é, precisamente, a freguesia onde está a estação de caminhos­‑de­‑ferro de Braga... Diga­‑se, em abono

15 CARLOS CARVALHAL da verdade, era também a única forma de conseguirmos ga‑ nhar uns trocos, já que, na altura, ninguém era remunerado, nem nos clubes nem nas seleções. Como a informação na altura era escassa, apenas tinha ouvido falar vagamente de um colega do Sporting que toda a gente dizia que era um talento e que, devido à escassez de jogos das seleções de iniciados, já tinha jogado pela equipa de juvenis. Com aspeto franzino, ar de reguila e um olhar atrevido, que era bem percetível nos seus olhos claros. Quase a postos para irmos para o treino, vira­‑se ele em voz baixa para o guarda­ ‑redes Sérgio Louro: — Vou já, só vou ali fumar um cigarrinho. Fico a pensar: será este o tal jogador de que falam? Ele é ma‑ landro e lidera esta gente toda, é um rapaz da rua, mas facil‑ mente se nota que é muito esperto. Começa o treino e, felizmente, fico na equipa do Paulo. Bola na nossa equipa, intenção era de ela chegar o mais rapidamente ao Paulo, depois, era driblar toda a gente até fazer golo ou assistir um colega para o fazer. Sempre com o pé esquerdo, domava a bola com excelentes receções, parava, movia o corpo num estranho bailado em que usava também os braços para iludir os adversários e, de repente, explodia numa velocidade descon‑ certante... Eu estava extasiado a ver este talento. Fomos para Paris. Um conjunto de rapazes de diferentes clubes, personalidades e estratos sociais diversos, unidos pelo serviço ao país. Só que, naquela altura, em Portugal, as coisas materiais não abundavam e ir ao estrangeiro era uma grande tentação para jovens de 15 anos, muitos deles vindos da rua e de bair‑ ros pobres. No dia antes do jogo tivemos a tarde livre. Fomos todos às compras, na primeira loja que entro fico petrificado... A maioria estava a gamar tudo o que aparecia à frente... Saio da loja e desisti de fazer compras, dei um a volta sozinho e voltei ao hotel, uma vez que a minha vontade era mesmo ficar com

16 ENTRE LINHAS o dinheiro que ganhei nas viagens e nas diárias, porque tinha outras prioridades. À noite, no fim do jantar, o Futre, que era o capitão, levanta­‑se e vai à mesa do José Augusto (selecionador à data) e fica lá um bom bocado. Quando volta, diz para toda a gente: — Daqui a 10 minutos, toda a gente no meu quarto. Nosso quarto, porque o Paulo foi meu colega de quarto du‑ rante os anos de seleção! Havia uma razão, eu era “certinho” e ele “malandro”, logo o selecionador pensou que eu poderia ser uma saudável companhia para ele. Realmente, tínhamos uma excelente relação e, como ele gostava de fumar e de dormir tarde, eu era uma excelente companhia porque, quando ele vol‑ tava ao quarto, vindo de jogar às cartas com outros colegas, já eu dormia e não acordava! Voltemos à história. Todos no quarto e o Paulo com olhar de preocupação e gravidade começa a falar: — Malta, estamos fodidos! Vai ser um escândalo nacional. Os gajos têm cameras de filmar nas lojas e já sabem que gamá‑ mos tudo. Aquele senhor que estava na mesa é o consul portu‑ guês em Paris e sabe que a polícia vem cá amanhã e vai ser uma vergonha para nós, porque os jornais vão falar disto. Notei o pânico em toda a gente, eu próprio, que não tinha feito nada, estava preocupadíssimo, alguns quase a chorar... Tinha que haver uma solução! E eis que o grande Paulo resolve o problema: — Estive a falar com o Mister e só há uma solução: vão aos quartos e tragam tudo o que gamaram, mas tudo, ouviram? Não se armem em espertos, porque os tipos com as cameras de filmar vão conferir tudo. Eram quase todos a correr aos quartos e, em cinco minutos, o nosso quarto parecia um centro comercial: material da Adidas dava para fazer uma loja, chocolates, relógios, etc... O mais im‑ portante é que o assunto estava resolvido e todos estávamos gratos ao nosso capitão, que conseguiu resolver o problema.

17 CARLOS CARVALHAL

Lembro ­‑me de acordar de manhã e de, estranhamente, o Paulo já estar de pé e do material não estar no quarto. — Bom dia, Car. Já resolvi esta merda, vamos mas é pensar em ganhar aos franciús — disse‑me­ muito bem‑disposto­ e a puxar por um cigarrito na varanda do quarto, local onde tínha‑ mos combinado ele fumar e que sempre respeitava ao longo de todos aqueles fantásticos anos. Vim eu a saber uns bons 30 anos depois, ao ler o livro do Paulo Futre, que foi tudo armadilhado por ele. Inventou aquela histó‑ ria para ficar com tudo, ligou a uma familiar que vivia em Paris para lhe ir buscar o material no dia seguinte de manhã, para, depois, lhe entregar no Montijo. Com 15 anos a “orquestrar” isto?! O rapaz era mesmo um génio... No pequeno estádio dos arredores de Paris, situado em Nogent sur Marne, começa o jogo e bola para o Paulo. Os franceses ficam de olhos em bico, ele dribla, volta a driblar, começa a levar umas pancadas. Na segunda‑par­ te, a atenção sobre o Paulo é redobrada e, embora com mais dificuldades, consegue sair dos adversários, nasce uma estrela e todos que ali estavam sentiram isso. Empatámos o jogo e, para primeiro, tinha sido bom (a escola francesa era muito respeitada e temida na altura, porque já possuíam um nível de organização muito bom). Como gostava de refletir, havia ali coisas que me maravilhavam e outras que me preocupavam. Por um lado, estava extrema‑ mente feliz por ter ao lado um jogador como o Paulo Futre. Quando cheguei a Braga, dei o testemunho aos meus amigos e disse‑lhes­ que havia um colega do Sporting que, no mínimo, iria ser como o Chalana (na altura, Chalana brilhava a grande altura e encantava quem gostava de futebol). Os meus amigos troçaram de mim e foi preciso uns anos para eu poder troçar deles. Mas, por outro lado, pensava: e se o Paulo adoece ou se lesio‑ na? Que plano vamos usar? Ou se está num dia mau? Pode uma equipa depender em absoluto apenas de um jogador? Não

18 ENTRE LINHAS seria melhor termos uma equipa a jogar e um grande jogador integrado nela e acrescentar a sua qualidade individual”? As dúvidas assaltavam­‑me, mas entendia o que se passava no momento, esta equipa tinha tido dois treinos em conjunto, antes daquele jogo, e realmente o Paulo era um grande talento que atraía naturalmente a bola para si. No entanto, desta reflexão concluí o seguinte: a equipa tem que estar em primeiro lugar e o talento dos jogadores é importan‑ tíssimo para acrescentar valor e dinâmica à equipa. Nunca um jogador pode comprometer a dinâmica de uma equipa, mas também a equipa não pode tirar asas a um jogador que tem potencial para voar... Equipa que depende de um ou outro jo‑ gador em termos absolutos, não pode nunca ser uma grande equipa. Imaginemos que o Paulo Futre naquela altura ficava com gripe no dia antes do jogo e não podia jogar...

19 02. Recuperação entre jogos Londres, 1984, jogo da segunda mão da Taça UEFA, com o Tottenham, em White Hart Lane. Na primeira mão, em Braga, tínhamos perdido 0­‑3. O Tottenham tinha uma superequipa (viria a ganhar a Taça UEFA nesse ano) e o jogo seria dispu‑ tado na sua casa com o estádio completamente cheio. O ad‑ versário apresentou uma intensidade de jogo para a qual não estávamos minimamente preparados e sofremos a mais pesada derrota de toda a minha carreira: 6­‑0! No final do jogo, esperávamos, cabisbaixos e tristes, pelo nosso treinador, Quinito, que estava na conferência de imprensa. Era uma quarta­‑feira e tínhamos já outro jogo em Faro, contra o Farense, no domingo seguinte, para o Campeonato. De repen‑ te, entra Quinito no autocarro, dava a impressão que todos deslizávamos para debaixo do assento do autocarro com ver‑ gonha. Quinito levanta a voz: — Estão tristes? Olhem para ali (apontava para a porta de saída do jogadores, onde aguardavam por eles as suas famí‑ lias e onde estavam os seus verdadeiros bólides), olhem para aquele jogador (saía Glen Hoddle, uma figura que mais parecia um modelo, loiro, bonito e elegante), olhem para as mulheres deles... Já viram aqueles carros? Ficámos a olhar uns para os outros... — Olhem agora bem para vocês: feios, pequeninos, cheios de pelos e barba, com carros que parecem pandeiretas! Queriam ganhar?! Vocês estão tristes?! Vamos mas é olhar em frente e

20 ENTRE LINHAS

“solta o colete”! (expressão usada quando o treino significava uma “pelada” com espírito de brincadeira) Dirigiu­‑se ao motorista, music, siga a festa... O ambiente desanuviou com as gargalhadas de todos e, embo‑ ra tristes, percebemos a mensagem transmitida, de uma forma muito particular, pela fantástica personalidade do Quinito. Começámos já aí a preparar o próximo jogo. Quinito sabia que o jogo tinha sido muito duro para nós, não só pela exigência física como mental. O peso de uma goleada para uma equipa que não está habituada a tê­‑la é enorme. Esta foi uma forma muito particular de tentar descomprimir o sistema nervoso central dos jogadores, de modo a preparar o próximo jogo. No dia seguinte fizemos um treino muito ligeiro, em Londres, um período de corrida de dez minutos e uns estiramentos. Viajámos de tarde e, sexta­‑feira e sábado, voltámos a treinar de forma muito idêntica, mas com exercícios a contemplar a velocidade de reação. No domingo, jogo no difícil estádio de São Luís, com o Farense, empatámos 1­‑1. O que mais me sal‑ tava aos olhos não era a capacidade de aguentar o jogo ou até de correr mais do que o adversário! Era, sim, o falhar passes de uma forma incrível e a incapacidade de tomar as melhores decisões. Já antes tinha vivido, com Quinito, semanas com jogos a meio da mesma e acho que ele estava avançado no tempo relativa‑ mente a muitas questões. A da recuperação era uma delas, não na forma como a operacionalizava (era limitada porque “isola‑ da”), mas sim como a entendia como absolutamente necessá‑ ria. Não só entre jogos, como entre exercícios e entre unidades de treino. A recuperação estava no topo das suas prioridades como treinador. Conto este episódio porque Quinito foi uma exceção. O para‑ digma era diferente: a recuperação, após jogo, era feita de uma forma completamente descontextualizada, normalmente 20 a 30 minutos de corrida, mas cheguei a fazer três séries de 20

21 CARLOS CARVALHAL minutos de corrida em regime de “endurance” com três minu‑ tos, entre séries, para alongar. Eram estes os dias que mais me custavam, não só pela duração das corridas, como pela falta de variedade. Terminávamos o treino de recuperação com o sen‑ timento de que estávamos muito mais cansados do corpo, mas fundamentalmente da cabeça. As preocupações com a recuperação entre exercícios e entre unidades de treino eram praticamente inexistentes. Elas só se manifestavam com o aproximar do jogo seguinte, ou seja, a partir de sexta‑feira.­ Não descortinava grande preocupação pela recuperação após jogos. O grande problema era quando as equipas tinham um jogo a meio da semana. Não era uma situação habitual, mas as equi‑ pas que disputavam provas da UEFA debatiam­‑se com este problema, muito maior para aquelas que iam a esta competição esporadicamente. Recordo­‑me de, pelo menos, duas equipas que descerem de divisão no ano em que disputaram provas da UEFA. Na altura, para além de vivenciar várias situações, procurei saber através de colegas o que teria acontecido. A maior parte das vezes, os jogos da UEFA eram disputados à quarta­‑feira e o próxi‑ mo jogo do Campeonato era apenas no domingo. Então, pela lógica da altura, na quinta­‑feira o treino seria de recuperação (dentro daqueles moldes que mais cansava que recuperava...) e, a partir de quinta‑feira,­ já se podia treinar normalmente, den‑ tro da lógica do padrão semanal de jogo domingo a domingo, de forma a preparar o jogo seguinte. Conclusão: equipas des‑ gastadas física e, sobretudo, mentalmente, com uma incapaci‑ dade enorme para escolher corretas “tomadas de decisão”; o exacerbar de focalização em jogos que habitualmente não dis‑ putavam, com a ausência de uma correta recuperação, atirava a equipa para níveis de intensidade muito baixos; descoorde‑ nação coletiva e individual provocada por uma incapacidade

22 ENTRE LINHAS de recuperar para níveis mínimos exigidos; quando por vezes eram bem sucedidos num jogo, espalhavam­‑se no jogo a seguir. Para andar a alto nível, entenda‑se­ por alto nível jogar sempre para ganhar em todas as competições, é necessário dominar muitas coisas. Uma das mais importantes é assumir que o mús‑ culo é um “órgão sensível” e não um “órgão de trabalho”.

23 A harmonia de uma orquestra 03. e o futebol Ainda não tinha completado seis anos de idade e estava na‑ turalmente um pouco nervoso porque iria participar no meu primeiro dia de aulas. Não sei como, a minha mãe, procuran‑ do sempre o melhor para os filhos, conseguiu matricular­‑me naquela que era a melhor escola da cidade de Braga, o colé‑ gio Calouste Gulbenkian. Duas coisas me preocupavam: por um lado, tratava­‑se de uma escola de “meninos bem, filhos de gente com boas posses” e eu era do Bairro da Misericórdia; por outro, era uma escola de música e eu não me sentia nada vocacionado para a música. Queria era jogar à bola... Por ironia do destino, a minha vida iria ficar marcada, logo na primeira semana daquele ano letivo. Na aula de Educação Física – uma raridade nas escolas primárias daqueles tempos, mas que já denotava a preocupação do colégio pelo desenvol‑ vimento “integral” dos alunos –, o professor Pardal resolve abordar o futebol com um jogo. Eu vinha do Bairro da Misericórdia, que era habitado por pes‑ soas de classe baixa ou média­‑baixa. O nosso divertimento era jogar “à bola”, jogávamos horas e horas num campo da escola do bairro ou num espaço lá perto, de terra batida, cheio de bu‑ racos e pedras, com balizas improvisadas com sacos da escola ou paus. Muitas vezes, tínhamos que fintar as pedras e os bura‑ cos antes de enfrentarmos os adversários. Realizávamos jogos improvisados: de três contra três ou quatro contra quatro; se o número de jogadores era ímpar a melhor equipa jogava em in‑

24 ENTRE LINHAS ferioridade numérica; por vezes, até se podia jogar cinco contra três, uma vez que o importante era que existisse equilíbrio no sentido para que houvesse competição. A dificuldade era um imperativo. No bairro, eu tinha uma desvantagem: era dos mais novos e, se calhar, em alguns jogos teria que ficar de fora. Mas tinha tam‑ bém uma importante vantagem: as pessoas eram pobres e o meu pai era guarda­‑redes de equipas de futebol sénior amador, logo eu tinha sempre em casa uma bola de capão (bola de pele ou couro igual às de verdadeira competição da altura), contras‑ tando com as de plástico com que eles muitas vezes jogavam. Logo, ou eu jogava ou não havia bola de capão... Voltando ao colégio e à aula do professor Pardal. Era a pri‑ meira vez que estava a ter um “treino” orientado, num campo de terra mas direitinho, sem um único buraco e com balizas a sério. A forma como este professor falava era interessante e sedutora. Organizou as equipas e eu senti‑me­ a brilhar. Tinha uma disponibilidade motora e habilidade muito mais evoluída do que os meus colegas, apesar de ser mais novo – todos eles tinham já seis anos completos. Fiz golos e grandes jogadas, fui abraçado pelos meus companheiros de equipa, dei por mim a festejar golos como os jogadores a sério. Devido à rotatividade feita pelo professor, porque ninguém queria ir para a baliza, acabou por chegar a minha vez. Lembro­‑me, como se fosse hoje, do que idealizei na altura: queria ser jogador de futebol profissional e professor de Educação Física como o professor Pardal. Havia que perseguir o sonho... Como referi anteriormente, eu não tinha vocação nem ouvi‑ do para a música e ficava maravilhado como os meus colegas descortinavam as notas musicais nos ditados de piano. Se ca‑ lhar, o mesmo espanto que eles sentiam quando eu fazia uma habilidade com a bola. Eu achava aquilo incrível, a professo‑ ra dava a primeira nota musical, dizia qual era e, a partir daí, tocava e tínhamos de acertar e escrever as notas numa pauta.

25 CARLOS CARVALHAL

Normalmente, eu acertava apenas na primeira e, às vezes, na segunda nota, mas a maioria dos meus colegas acertava em tudo. Eram músicos em potência, eu era jogador de futebol... Durante todo o ano, preparávamos um espetáculo de fim de aulas. Era um concerto e todos fazíamos parte da orquestra. Eu, como não era nada bom em qualquer instrumento, para não dizer mau, fiquei com pequenas intervenções no xilofone baixo. Apesar da menoridade do meu papel, ouvia muitas vezes da professora frases como “Carlos, sente a música, fazes parte da orquestra e o teu papel é tão importante como o dos teus colegas”, “concentração, olha o timming de entrada, se o falhas há descoordenação e a música não sai”, “fixa­‑te no todo, na música na sua totalidade e não apenas na tua deixa, porque, se te fixares apenas nesse pormenor, não entendes o espírito da música que estamos a tocar e a probabilidade de errares é maior!”, “sente a música e a tua entrada vai ser natural e a mú‑ sica flui”... Este era um feedback que não era dirigido apenas a mim, mas também a todos os jovens músicos. Eu fazia um es‑ forço para entender, mas o meu cérebro estava a formatar algo muito mais importante: a noção de complexidade. Tudo tinha a ver com tudo. Antes de mais, tinha que existir uma ideia, uma música. A coordenação entre todos os elemen‑ tos da equipa era importante e os timings de entrada eram fun‑ damentais para essa coordenação. Sem sentir a ideia, não existia emoção e a emoção era importante para transmitir qualidade e exaltação. Independentemente das características e diversidade dos instrumentos, eles estavam em harmonia porque perse‑ guiam a ideia musical... Isto não tem nada ver com uma equipa de futebol?! Tem tudo! Naquela altura, acompanhava os meus pais ao estádio 1º de Maio para assistir aos jogos do SC Braga. Os meus pais gosta‑ vam de ficar num cantinho, onde, tirando os jogos com as me‑ lhores equipas do Campeonato, não estava lá quase ninguém. Local ideal para apreciar a beleza do jogo. Quando vinha

26 ENTRE LINHAS embora, ouvia os comentários ao jogo que se iam fazendo... “Aquele não jogou nada! Quem nos safou naquela jogada foi o guarda­‑redes! O treinador anda a dormir...” Eu não via os jogos assim! Eu olhava para a rede constituída pelos jogadores da equipa, como se movimentavam, os timimgs de desmarcação e de passar a bola, a beleza de uma jogada. Começava a per‑ ceber a orquestra. Acho que a orquestra me ajudou a entender o funcionamento de uma equipa e que o futebol me ajudou a perceber a necessidade de “sentir” a música do jogo.

27 04. Noção de jogar à zona Sabes qual é a diferença entre um cão guardião e um cão feroz? Pões um cão feroz em frente à porta de tua casa e veêm dois ladrões. Ao primeiro “ que se aproxima, o cão feroz ladra e atira­‑se ao ladrão. Ele corre, o cão vai atrás e deixa a porta, o outro ladrão entra e rouba. Pelo contrário, o cão guardião ladra ao primeiro ladrão, mas volta para gurdar a porta, não a abandona. Entendes? O cão guardião é o que marca a zona, o outro marca o homem. César Luis Menotti

Corre o ano de 1975 e em Braga, no recinto de terra batida do “campo da ponte”, às 19:30, centenas de miúdos da minha idade estão nos treinos de captação. Eu era mais alto do que a generalidade dos miúdos que ali estavam. Naquele espaço éramos todos iguais, estavam lá ricos e pobres, brancos e pre‑ tos, altos e baixos, gordos e magros. Todos com um objetivo comum: mostrar o talento que nos permitisse ficar no clube e alimentar o sonho de ser jogador de futebol. O meu querido e saudoso Sampaio era o responsá‑ vel pelas captações para os miúdos da minha idade, tendo em vista um torneio internacional a ter lugar no Porto. Rolando Sampaio perguntava: “Defesas direitos?” Dezenas levantavam a mão! Escolhia dois para jogar. “Defesas centrais?” Seguia‑se­ o mesmo ritual! “Defesas esquerdos?”. O mesmo... “Espera lá!” Os mesmos miúdos levantam sempre o dedo para todas as posições! Os miúdos queriam era jogar e mostrar o seu talento

28 ENTRE LINHAS e não se importavam qual a posição, a maioria vinha da rua e não fazia ideia que posição queria ocupar, queriam era jogar à bola. Eu tinha uma ideia prévia, era alto e tecnicamente não era muito evoluído. Gostava de ver alguns defesas‑centrais­ a jogar: na al‑ tura, Beckenbauer, Baresi, , o Braga tinha sempre bons defesas centrais formados no clube, Fernando, Serra, Nelito... E começava a despontar um talento: . Estava determinado e também reparei, na primeira ronda, que, para o lugar de defesa central não havia muitos dedos levanta‑ dos. Segunda ronda para escolher mais duas equipas... “Defesas centrais?” Levantei o dedo, o treinador reparou em mim e chamou ­‑me. Tinha uma vantagem: sem ser muito dotado tec‑ nicamente, entendia o jogo e a posição. Aliado à minha altura para o lugar, fui logo escolhido no primeiro treino. Bilhete de identidade e duas fotos... Cumpria um desejo, era jogador de futebol federado. A escola do Braga tinha pergaminhos e com legitimidade. Todos os anos saíam jogadores da formação para a equipa pro‑ fissional. Um conjunto de treinadores na formação que, sem ganhar dinheiro algum, fazia um excelente trabalho: Carlos Baptista, Rolando Sampaio, Jorge Frade, Sr. Machado, Prof. Aguiar, Palmeirinha... Existia uma “cultura de jogo”, as equi‑ pas do SC Braga eram bem dotadas tecnicamente, normalmen‑ te com estaturas menores que os adversários nos escalões etá‑ rios mais baixos. Os três centrocampistas da minha primeira equipa de infantis eram mais baixos do que eu um bom palmo de mão, mas jogavam muito: Manso, Rifa e Serrinha... Os dois últimos, mais tarde, foram jogadores profissionais na primeira divisão. O critério de escolha era a qualidade técnica, indepen‑ dentemente da estatura. Claro que, em escalões mais baixos, ainda perdíamos uma ou outra vez, porque nestes escalões a estatura ainda pode fazer a diferença, devido ao facto de os jo‑ vens maturarem em tempos diferentes. Mas existia uma cultura

29 CARLOS CARVALHAL e quando existe este desiderato é fundamental que haja paci‑ ência. Avançava o escalão e a equipa já ganhava aos mesmos adversários, porque a dimensão da estatura se equilibrava um pouco mais e o talento fazia a diferença. Naquela altura, o paradigma na minha posição era um central marcar e o outro na “sobra” (digamos que este jogava por de‑ trás dos outros três defesas e era, por isso, chamado o “quar‑ to defesa”). O primeiro era, normalmente, mais agressivo e menos dotado tecnicamente, mais de “marcação”, enquanto que o “quarto defesa” era mais técnico e com capacidade para organizar o jogo a partir de trás. Existiam “quartos defesas” de grande qualidade e que eram grandes ídolos internacionais (já falamos de Beckenbauer e Baresi), existindo muitos miúdos a pretender imitá­‑los. Eu gos‑ tava de os ver jogar, mas na prática não achava piada nenhuma! Eu marcava o ponta­‑de‑lança­ adversário por todo o campo e o meu colega Manelito jogava de “cadeira” por trás de mim. Comecei a reparar, nos poucos jogos que davam na televisão, que existiam algumas equipas que começavam a ter uma con‑ figuração diferente com os defesas centrais lado a lado, sem libero definido. No segundo ano de iniciado no Braga, começámos a experi‑ mentar esta nova solução porque, tanto eu como o meu novo colega de equipa (Boticas), não éramos o protótipo do libero e possuíamos características idênticas. As vantagens eram muitas porque dividíamos o espaço: se o avançado viesse para a es‑ querda, eu marcava e ele fazia cobertura; se fosse para a direita, ele marcava e eu fazia cobertura. Sentíamo­‑nos confortáveis a jogar assim, corríamos menos e tínhamos a convicção de que era mais complicado para o avançado contrário, porque tinha os espaços bloqueados. No fundo, a grande diferença era que não andávamos atrás do avançado, ele vinha ter connosco. Começámos também a en‑ tender que, embora exigisse mais concentração no fechar dos

30 ENTRE LINHAS espaços, criava muitas dificuldades às equipas que pretendiam que outros jogadores fizessem desmarcações de rutura em fun‑ ção da mobilidade do avançado. Era o início do entendimento do que era “jogar à zona”. Nessa altura, comecei a perceber a importância de “fechar es‑ paço” para quem está a defender e “criar espaço” para quem está a atacar. A relação com os laterais era também importante para fechar os espaços. Pelo fato de sofrermos alguns golos, porque o de‑ fesa do lado contrário marcava em cima o adversário e exis‑ tia um grande espaço entre o defesa central e este, fui tentan‑ do ajudar a organizar as minhas defesas. (A preocupação dos treinadores com a defesa não era uma prioridade, na altura! Se cada um marcasse o seu, a defesa estava organizada – não estava ainda desenvolvido o conceito de zona). Assim, ia su‑ gerindo aos defesas laterais que fechassem o espaço interior, quando a bola estava do lado contrário, e tentava explicar as vantagens de fechar esse espaço. Umas vezes, era entendido. Mas, muitas vezes, o receio de deixar o extremo sozinho sem marcação era tal que esta tarefa era impossível. Até porque, na altura, existia muita responsabilização individual por falta de marcação ao adversário direto. Recordo ­‑me, uma vez, de insistir com o defesa esquerdo para fechar o espaço entre mim e ele, quando a bola estava no lado contrário. Ele ia­‑me dizendo, “Carlos eu fecho e, depois, o ex‑ tremo fica sozinho! Se ele marca golo ou cruza, o treinador vai­ ‑me dar cabo da cabeça!” Eu lá lhe ia explicando que era mais importante fechar os espaços interiores, porque tinha sempre tempo para pressionar o seu adversário direto enquanto a bola viajava de um lado para o outro. Jogo de juvenis em Guimarães, estávamos a ganhar 1‑0,­ quase a terminar a primeira parte, bola longa da direita para a es‑ querda, ele estava a fechar bem o espaço interior, mas a bola foi direitinha para o extremo contrário, receção, remate, a bola

31 CARLOS CARVALHAL ressalta no pé do meu colega, faz um arco enorme, passa por cima do guarda redes... grande golo. Ele fez o que tinha a fazer, quando reduziu distância, estava em cima do ala, mas este fez uma receção orientada, tirando­‑o da frente, e foi muito feliz no remate. Ele só me dizia: — O treinador vai­‑me tirar da equipa e a culpa é tua! Ao intervalo, antes de chegarmos ao balneário, fui a correr ter com o treinador e disse‑lhe:­ — Mister, a culpa do golo é minha! Eu é que lhe pedi para fe‑ char por dentro, porque o avançado estava sempre a fugir para as minhas costas. Por acaso, não houve complicação de maior porque o treina‑ dor entendeu que foi um grande golo e que são coisas que acontecem... Não deixou de reforçar ao Dani que marcasse em cima o adversário direto e que eu acompanhasse a marcação ao avançado quando ele tentava fugir para as minhas costas. Eu gostava muito de comunicar e de tentar ajudar os colegas e a equipa a fazerem melhor, porque sentia que entendia o jogo, creio convictamente que sempre o entendi melhor do que o joguei. Talvez também por esse facto era o capitão ou um dos capitães de quase todas as equipas de eu fiz parte.

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