HELOISA HELOU DOCA

MARK TWAIN: UM PATRIOTA ANTIIMPERIALISTA E SEU RELATO DE

VIAGEM EM THE INNOCENTS ABROAD OR THE NEW PILGRIM’S

PROGRESS

Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em Letras. (Área de conhecimento: Literatura e Vida Social).

Orientador: Prof. Dr. Luiz Roberto Velloso Cairo

ASSIS

2005

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP

Doca, Heloisa Helou D636m Mark Twain: um patriota antiimperalista e seu relato de viagem em The innocents abroad or the new pilgrim’s progress / Heloisa Helou Doca. Assis, 2005 282 f. : il.

Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista.

1. Twain, Mark, 1835 – 1910. 2. Viagem na literatura. 3. Cultura. 4. Literatura americana. I. Título.

CDD 813

DEDICATÓRIA

EM MEMÓRIA

Ao meu querido amigo Prof. Dr. Mário Mascherpe que tanto me incentivou

para que eu fizesse esta viagem, entretanto, partiu com destino a outra.

Aos meus filhos, Leonardo, Isabela e Frederico, razão de minha vida que, a

bordo comigo, representam o porquê dessa jornada.

Ao meu querido Orientador Prof. Dr. Luiz Roberto Velloso Cairo que , com sua competência e determinação, ao perceber que meu steam-boat estava à deriva, reconduziu-o a sua rota.

À Profa. Dra. Elêusis M. Camocardi, minha grande companheira nesta viagem, fazendo-me questionar se é ela o próprio navio que me leva ou o porto seguro que me aguarda.

AGRADECIMENTOS

Enquanto meu navio singrava os mares de sua rota e aportava em ancoradouros diversos, pessoas especiais nele também embarcavam. A elas os meus agradecimentos:

- Ao programa de Pós-graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da

Unesp – campus de Assis – SP.

- À Biblioteca e bibliotecários do campus da UNESP de Assis, em especial à

Vânia Aparecida Marques Favato, Lucelena Alevato e Auro Mitsuyoshi Sakuraba que tão prontamente me atenderam sempre que solicitados.

- À Profª. Dra. Cleide A. Rapucci, que me acompanhou desde a graduação, em quem espelhei minha carreira acadêmica e, como membro da Banca de Exame de

Qualificação, pessoa que enriqueceu meu estudo com suas preciosas sugestões.

- À Profª. Dra. Ana Maria Domingues que também, como membro da Banca de

Exame de Qualificação, colaborou com valiosas e pertinentes idéias, dando-me suporte para formular parte do texto e concluí-lo

- Ao Prof. Dr. Luiz Roberto Velloso Cairo, que me orientou nesta travessia fornecendo-me grande parte do material bibliográfico utilizado e estendendo-me a mão para desenvolver o trabalho com segurança.

- Ao Prof. Dr. Paulo Zanotto, a quem devo muito do meu conhecimento na difícil

“arte da tradução”.

- À Profa. Dra. Heloisa Costa Milton, pelas luzes emanadas em seu curso de curso de Pós-graduação.

- Ao Prof. Dr. Luiz Angélico da Costa, pelo rico material enviado sobre Mark

Twain.

- Ao Prof. Dr. Carlos Daghlian, pelo carinho e torcida constantes e por sempre me fortalecer com apoio incondicional.

- Ao meu querido filho-poeta Frederico, que me brindou com o poema de abertura desta tese.

- À minha nora-filha Fernanda, pelo carinho constante.

- À minha amiga Profa. Dra. Maria Cecília Guirado, pelo estímulo profissional.

- Minha eterna amizade e gratidão aos meus queridos “irmãos” José Marcel

Lança Coimbra e Adriana – amigos de ontem, de hoje, de sempre...

- Ao querido amigo Prof. Dr. Altamir Botoso, que sempre me fortaleceu com seu carinho.

- Ao amigo Prof. Dr. Ivan Ribeiro - minha força virtual .

- Aos meus alunos formandos da turma de letras de 2005, da UNIMAR, que me ouviram falar de Mark Twain durante todo o curso e, atentos, com ele também se encantaram.

- A todos os meus colegas e amigos da UNIMAR, pelo estímulo recebido durante os momentos difíceis.

- Aos meus irmãos Ricardo, Fernando e Cláudio, por terem sempre acreditado em mim.

- Aos meus pais, Isa e João, que também partiram rumo a outra viagem, mas deixaram comigo o essencial para que eu continuasse a minha: o seu exemplo.

- Ao querido Leandro, que com paciência e competência formatou e fez a arte final de meu trabalho.

- E, acima de tudo e de todos, agradeço a DEUS por me fortalecer nesta viagem, privilegiando-me com saúde, disposição e energia. Através d’ELE pude receber o apoio e o carinho dos que comigo embarcaram.

SAMUELISMO

Mark Twain. Huckleberry Finn. Na Nova Inglaterra sem fim, peregrinos rosnavam aos red skins.

Mark Twain. Samuel Langhorne Clemens, um homem que vem à proteção da África exportada como semens.

Mark, na América estadunizada, não deixe que os canalhocratas com pose de bravata acabem com seu sonho de bufosa armada. Faça-os ingurgitar o Imperialismo de uma nação ingrata.

Frederico Helou Doca de Andrade

DOCA, H. Mark Twain: Um Patriota Antiimperialista e seu Relato de Viagem em

“The Innocents Abroad or The New Pilgrim’s Progress”. Assis, 2005, 282 p. Tese

(Doutorado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, UNESP –

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.

RESUMO

A leitura cuidadosa do texto do “Tratado de Paris”, em 1900, leva Mark Twain a concluir que a intenção política norte-americana era, claramente, a de subjugação.

Declara-se, abertamente, antiimperialista nesse momento, apesar das inúmeras críticas recebidas por antagonistas políticos que defendiam o establishment dos Estados

Unidos. Após viajar para a Europa e Oriente, em 1867, como correspondente do jornal

Daily Alta Califórnia, Mark Twain publica, em 1869, seu relato de viagem, The

Innocents Abroad or The New Pilgrim’s Progress. Nosso estudo demonstra que o autor, apesar das diversas máscaras usadas em seus relatos, narra histórias, culturas e tradições, tanto da Europa quanto do Oriente, já com os olhos bem abertos pelo viés antiimperialista. Faz uso da paródia, sátira, ironia e humor para dessacralizar impérios, monarcas e a Igreja que subjugavam os mais fracos, iluminando, desde então, os estudos sobre culturas.

O primeiro capítulo de nosso estudo enfoca os problemas que a Literatura

Comparada enfrenta face à globalização, descolonização e democratização, norteado pelo Relatório Bernheimer, como também faz uma reflexão sobre cultura, tradição e o olhar do viajante, justificando o olhar do narrador de The Innocents Abroad. Como pressupostos teóricos, usamos autores como Eliot, Edward Said, Todorov, Foucault, dentre outros. O capítulo subseqüente traz o histórico sobre como se procedeu o ideário antiimperialista de Mark Twain, além de uma abordagem geral em algumas de suas obras. Nosso próximo passo trata do “inocente relato” twainiano, dando uma compreensão maior ao leitor de como foi feita a colonização norte-americana, como a personagem burlesca é construída e também demonstra o modo como as ilustrações do livro foram delineadas. Encerramos nosso estudo balizando os entrechos de toda a expedição twainiana, que trazem à luz sua posição contra impérios.

Palavras-chave: The Innocents Abroad or The New Pilgrim’s Progress; Mark Twain; relato de viagem; jornal; paródia; cultura; antiimperialismo; América; Europa; Oriente.

DOCA, H. Mark Twain: The Anti-imperialist Patriotic and his Travel Report in “The

Innocents Abroad or The New Pilgrim’s Progress”. Assis, 2005, 282 p. Thesis (PhD. in Comparative Literature – Language). Faculdade de Ciências e Letras, Campus de

Assis, UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.

ABSTRACT

The careful reading of the “Trait of Paris”, in 1900, leads Mark Twain to conclude that America intended policy was clearly one of subjugation. He frankly declares himself an anti-imperialist at that time, notwithstanding the several criticisms he had received from political antagonists who had been defending the United States establishment for a long time. Having traveled to Europe and to the East in 1867 as the

Daily Alta California’s newspaper correspondent, Mark Twain edits, in 1869, his travel report, The Innocents Abroad or The New Pilgrim’s Progress. Our study demonstrates that the author, in spite of using different masks in his reports, narrates histories, cultures and traditions from both Europe and the East with his point of view imbued by his anti-imperialistic ideal. By using in his texts parody, satire, irony and humor to desacralize empires, monarchs, and the Church that had been subjugating the weaker since the Old Age, he highlights, indeed, the cultural studies.

The first chapter of our study focuses on Comparative Literature problems, face to globalization, decolonization and democratization, ruled by the Bernheimer Report.

It also reflects on themes as culture, tradition and the traveler point of view, justifying the narrator “innocent point of view” in his report. For theorical support we’ve concentrated on Eliot, Said, Todorov, Foucault’s among others. Subsequently, our study brings up Mark Twain’s anti-imperialism way as a general approach to his work.

Our next step is focused on the American colonization, and then we demonstrate how

Mark Twain created his travel report as a burlesque character and also the way the illustrations of the book were drawn. Finally, we enclose our study highlighting several fragments of The Innocents Abroad that clearly demonstrate Mark Twain’s position against empires.

Key Words: The Innocents Abroad or The New Pilgrim’s Progress; Mark Twain; travel report; newspaper; parody; culture; anti-imperialism; America; Europe; the East.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 15

I. LITERATURA COMPARADA, TRADIÇÃO, CULTURA E O OLHAR DO OUTRO...... 21

1. LITERATURA COMPARADA E MULTICULTURALISMO ...... 22 2. CULTURA E SOCIEDADE ...... 31 3. ALTERIDADE: A METAMORFOSE DO OLHAR DO OUTRO ...... 46 4. A CONSTRUÇÃO DE CULTURAS POR MEIO DOS RELATOS DE VIAGENS ...... 58

II. MARK TWAIN, O COMETA ANTIIMPERIALISTA ...... 81

1. A APARIÇÃO DO COMETA TWAIN ...... 82 2. A TRAJETÓRIA DO COMETA TWAIN ...... 85 3. O RASTRO DO COMETA VAI ALÉM DO ÍCONE ...... 92 4. O ASTRO MARK TWAIN E O NEBULOSO IMPERIALISMO NORTE – AMERICANO ...... 99

III. THE INNOCENTS ABROAD: UM LIVRO DE VIAGEM – UM “INOCENTE RELATO” ...... 118

1. COLONIZADOS E COLONIZADORES ...... 119 2. A COMPOSIÇÃO DE THE INNOCENTS ABROAD OR THE NEW PILGRIM’S PROGRESS ...... 127 3. ILUSTRADORES, ILUSTRAÇÕES E RECEPÇÃO DA OBRA ...... 132 4. A DESSACRALIZAÇÃO DA TRADIÇÃO, MITOS E CULTURAS DO VELHO MUNDO ...... 143

IV. TWAIN ANTIIMPERIALISTA: PEREGRINO E PECADOR ...... 170

1. A VIAGEM: AÇORES, ESTREITO DE GIBRALTAR E TÂNGER . 171 2. PEREGRINAÇÃO PELA FRANÇA E ITÁLIA ...... 184 3. O ORIENTE ...... 217 4. OS VÂNDALOS AMERICANOS ...... 232 5. UMA ÚLTIMA PALAVRA: O POSFÁCIO ...... 237

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 241

REFERÊNCIAS ...... 246

ANEXOS ...... 255

15

INTRODUÇÃO

Mas eu sou o exilado. Sela-me com teus olhos. Leva-me para onde estiveres – Leva-me para o que és. Restaura-me a cor do rosto E o calor do corpo A luz do coração e dos olhos, O sal do pão e do ritmo, O gosto da terra... a terra natal. Protege-me com teus olhos. Leva-me como uma relíquia da mansão do pesar. Leva-me como um verso de minha tragédia; Leva-me como um brinquedo, um tijolo da casa Para que nossos filhos se lembrem de voltar. Mahmoud Darwish apud Said Reflexões Sobre o Exílio, 2001, p. 52 16

O imperialismo é historicamente muito anterior ao surgimento do capitalismo. Os grandes impérios da Antigüidade, como o persa, o macedônio e o romano, apresentam- se, aos olhos contemporâneos, como formas ancestrais do imperialismo, ostentando já algumas de suas características mais essenciais.

Sob a forma capitalista, o imperialismo constrói seus mecanismos de controle por meio de investimentos realizados nos países dominados, transformando e direcionando a economia, a política e suas culturas.

No contexto norte-americano, o imperialismo faz parte de um processo de expansão colonialista, registrado no final do século XIX, que apresentou, desde o início, características diversas das observadas entre os grandes impérios constituídos em fases anteriores.

Desde 1823, o lema “A América para os Americanos”, postulado nos termos da

Doutrina Monroe, criara uma divisão de domínios em relação à Europa, procurando assegurar-se de que não haveria intervenções por parte das potências européias, e muito menos o estabelecimento de novas colônias no continente americano.

O Corolário Roosevelt, promulgado sob a presidência de Theodore Roosevelt, em 1904, acrescentou à Doutrina Monroe um adendo fundamental aos interesses norte- americanos, instituindo a chamada política do big stick, ou seja, oficializando a possibilidade de intervenção externa norte-americana, sempre que os Estados Unidos a considerassem necessária.

Entre o final da Guerra Civil (1865) e o início do século XX, os Estados Unidos foram rápida e significativamente guiados à condição de potência imperialista, e é 17 justamente nesse momento que Mark Twain escreve The Innocents Abroad or The

New Pilgrim´s Progress, objeto de nosso estudo que investiga sua postura antiimperialista nesse livro de viagem.

Seu relato de viagem nos leva a fazer várias considerações, pois, trata-se, primordialmente, de um livro que descreve culturas, raças e macropolítica – termo definido por Jonathan Arac e Harriet Ritvo em Macropolitics of Nineteenth- Century

Literature (1995, p. 3) com foco no nacionalismo e imperialismo - por meio de uma viagem transatlântica perscrutando a Europa e o Oriente.

Nesse sentido, torna-se essencial fazermos um estudo sobre a celeuma que envolve a tradição da Literatura Comparada, pois, após a II Guerra Mundial, seu cânone é transformado pela globalização, democratização e descolonização, fator esse que muitos comparatistas chamam de “exílio ontológico”.

Por esse caminho traçamos um estudo sobre cultura e sociedade que permeia nosso primeiro capítulo, com o propósito de iluminarmos a questão da tradição literária que se amalgama com a cultura e política no contexto da sociedade pós- colonial.

Assim construindo nosso estudo, utilizamo-nos de alguns pressupostos teóricos para que pudessem guiar e iluminar nossas inquietações relacionadas ao que comparar e como trabalhar no campo da literatura comparada, dentro desse contexto multicultural. Foram de grande valia os conceitos de Eliot, Raymond Williams assim como os de Edward Said, dentre outros. 18

É mister ressaltarmos, que o nosso estudo voltado para a elucidação da postura antiimperialista de Mark Twain, em The Innocents Abroad, deu-se por conta da pertinência do assunto – imperialismo – nos dias atuais.

Em nossa dissertação de mestrado contemplamos a construção do humor e preconceito no relato twainiano. Outrossim, sentimos a necessidade de nos aprofundarmos em nossas pesquisas com o propósito de trazermos à tona o ideário antiimperialista do autor, já presente na época em que escreve seu relato de viagem,

1867, entrementes, ainda imerso sob a forma de censura.

Recentemente, o professor da Syracuse University, nos Estados Unidos, Jim

Zwick, faz um levantamento historiográfico de textos de Mark Twain que não foram publicados por interpelação da censura. Estes textos comprovam a postura antiimperialista twainiana a partir de 1900. Época em que, cuidadosamente, Mark

Twain toma ciência da política externa e beligerante contida no “Tratato de Paris” que dava direito aos Estados Unidos de tomarem posse das Filipinas. Destarte, Twain declara-se, abertamente, à sua nação como um antiimperialista, apenas em 1900.

Urge ressaltarmos que optamos por traduzir nosso estudo com o propósito de abrirmos caminhos para todos os leitores, e também fornecermos visibilidade à obra, que não foi traduzida, segundo pesquisa feita no Index Translationum – Unesco.

Retomando ao roteiro de nossa pesquisa, ainda no primeiro capítulo fizemos um cuidadoso estudo de como a questão da alteridade se faz presente nas brechas de nossas identidades provando que, mesmo quando o indivíduo viaja, ele não se distancia de seu mundo, apenas o diferencia em relação ao novo perscrutado. Nosso passo seguinte, ainda no primeiro capítulo, foi demonstrar como a construção de 19 culturas é feita por meio de relatos de viagens. Como embasamento teórico fizemos uso dos preceitos de Todorov, Bakhtin, e Said.

Nosso segundo capítulo se responsabiliza pelo levantamento de dados de Mark

Twain quanto à sua trajetória antiimperialista fazendo uso da historiografia suscitada por Jim Zwick e publicada no Brasil sob os auspícios de Maria Sílvia Betti, em 2003, no livro, Patriotas e Traidores.

Por conseguinte, o terceiro capítulo trata das diversas vozes que o narrador emprega em The Innocents Abroad. Ora é um personagem burlesco, ora é um inocente iconoclasta, ora percebemos que a voz do autor real se faz presente em seu livro de viagem. Uma breve incursão na história da colonização norte-americana fez-se necessária para que pudéssemos justificar a construção das diferentes personagens usadas pelo narrador. A composição de The Innocents também foi refletida, pois o escritor-jornalista por muitas vezes se perde em sua narrativa, mesclando-a com fatos reais, ficção ou mesmo fazendo uso da linguagem jornalística.

O caminho percorrido por Twain, editores e ilustradores de The Innocents teve seu espaço nesse capítulo, por entendermos que as ilustrações contidas no livro também fazem parte do campo semântico da narrativa. Em um breve estudo, levantamos algumas questões quanto a repercursão de textos twainianos em Portugal e no Brasil. O tom dessacralizador de que ora o narrador se serve foi atendido em um tópico ulterior deste mesmo capítulo, com o intuito de demonstrar ao leitor as diversas máscaras usadas em seu relato de viagem.

O último capítulo baliza os entrechos onde o ideário antiimperialista de Mark

Twain se faz presente. Com o narrador fizemos a viagem passando por Gibraltar, 20

Tânger, França, Itália e Oriente. Assim fazendo, fizemos uma incursão em culturas e tradições, o que nos permitiu comparar literaturas em contextos macropolíticos.

Ao final do trabalho, expomos nossas conclusões sobre o caminho percorrido por

Mark Twain, ressaltando a real presença de sua postura contra impérios em The

Innocents Abroad or The New Pilgrim’s Progress.

Apresentamos, como última parte de nosso estudo, anexos nos quais constam informações maiores de nossa pesquisa para que o leitor possa, realmente, desfrutar do desenvolvimento de nosso trabalho.

Escolhemos como epígrafe da introdução de nosso estudo o poema de Mahmoud

Darwish, poeta palestino, que nos faz refletir sobre a questão do exilado. Assim o fizemos, pois, ao desenvolvermos uma pesquisa voltada para os Estudos Culturais, por muitas vezes, sentimos estar em um desterro e com necessidades tais quais a de um exilado: a de reconstruir identidades e a de trazer à tona novas ideologias “para que nossos filhos se lembrem de voltar.”(DARWISH apud SAID, 2003, p. 52). 21

I. LITERATURA COMPARADA, TRADIÇÃO, CULTURA E O OLHAR DO

VIAJANTE

O gentil leitor jamais imaginará o grande asno que pode vir a ser, ate o dia em que viaja ao estrangeiro

Mark Twain, Dicas úteis para uma vida fútil, p. 92

22

1. LITERATURA COMPARADA E MULTICULTURALISMO

A Literatura Comparada já foi chamada por Peter Brooks, Professor de

Humanidades e chefe do Departamento de Literatura Comparada, na Universidade de

Yale, nos Estados Unidos, de “Disciplina Indisciplinada”, em um texto inserido no livro Comparative Literature in the Age of Multiculturalism, organizado por Charles

Bernheimer (1995). A celeuma persiste, e quem com ela trabalha questiona-se constantemente: o que é Literatura Comparada? A resposta mais simples é que a

Literatura Comparada envolve o estudo de textos interculturais através do tempo e do espaço. Matthew Arnold já propunha, em seu discurso inaugural, em 1857, na

Universidade de Oxford, o seguinte:

Everywhere there is connection, everywhere there is illustration. No single event, no single literature is adequately comprehended except in relation to other events, to other literatures. (ARNOLD apud WILLIAMS, 1992, p.27)1

A asserção de Matthew Arnold, portanto, faz-nos refletir que quando lemos

Chaucer, percebemos influências de Boccaccio; deparamo-nos com as fontes shakespeareanas oriundas do Latim, Francês, Espanhol e Italiano; seguindo esse mesmo processo, observamos como a fascinação de Baudelaire por Edgar Allan Poe enriqueceu sua obra. Consideramos quantos romancistas ingleses aprenderam com os escritores russos do século XIX. James Joyce, por exemplo, teve como modelo, em seu estilo, Italo Svevo. Quando lemos Clarice Lispector, lembramo-nos de Jean Rhys, que busca influências em Djuna Barnes e Anaïs Nin.

1 Há conexão e ilustração em toda parte. Não existe um só fato e nem mesmo nenhuma literatura que seja adequadamente compreendida sem haver relações a outros fatos e a outras literaturas. (ARNOLD apud WILLIAMS, 1992, p.27, tradução nossa) 23

Não encontramos limites na extensa lista de exemplos na Literatura que podemos perscrutar. Assim que iniciamos a leitura de uma obra literária, movemo-nos através das fronteiras, fazendo associações e conexões o que Goethe chamou de Weltliteratur.

Goethe costumava comentar o quão lhe era magnífico manter-se informado sobre as

“produções estrangeiras.” Dizia ele: “It is becoming more and more obvious to me that poetry is the common property of all mankind.” (GOETHE apud CEVASCO, 2003, p.

38)2

Nesse processo de reflexões, poderemos, então, dizer, que a Literatura

Comparada não é nada além que o senso comum; um estágio inevitável da leitura, construído de forma mais fácil pelo mercado de livros e pela disponibilidade de traduções.

Mas, se nós mudarmos nossa perspectiva e olharmos novamente para o termo

“Literatura Comparada”, encontraremos uma história de um vultoso impasse que vai desde o princípio do uso do termo, no começo do século XIX, até os dias de hoje.

Os críticos, no final do século XX, em plena era do pós-modernismo, ainda questionam alguns pontos colocados há mais de um século: qual é o objeto de estudo da Literatura Comparada? Como a comparação pode ser objeto de alguma coisa? Se uma Literatura específica tem um cânone, qual seria o cânone da comparação? O que o comparatista seleciona para comparar? A Literatura Comparada é uma disciplina ou é apenas um campo de estudo?

Buscamos, para responder a todas essas questões, um artigo inserto na Revista

Apontamentos, nº. 59, da Universidade Estadual de Maringá, escrito por mim, em

2 Tem-se tornado mais e mais óbvio, para mim, que a poesia é o senso comum de toda humanidade. (GOETHE apud CEVASCO, 2003, p. 38, tradução nossa) 24 julho de 1997, sob o título de Literatura Comparada e Multiculturalismo, que é introduzido por um breve histórico dessa “disciplina indisciplinada.”

Sabemos que a Literatura Comparada começou a ter a sua sistematização como disciplina independente no final do século XIX. No entanto, não podemos deixar de dizer que, na prática, desde a Idade Média, já havia estudos comparatistas. Dante

Alighieri, com sua obra, De vulgari eloquentia, é considerado o marco inicial do comparatismo literário.

Na Antigüidade Grega, não havia interesse pela Literatura Comparada, pois os gregos só se importavam com sua própria língua e sua própria cultura. Os romanos tinham veneração pela Literatura Grega; o princípio de emulatio pode nos fazer compreender muito bem essa atitude.

Na Idade Média, devido ao surgimento de novas nacionalidades e ao fortalecimento de novas línguas, começaram a se comparar as obras e culturas de outros povos. Assim, os estudos comparativos foram surgindo lentamente através do tempo.

A razão de uma preocupação maior com estudos comparativos foi uma das vitórias do Iluminismo e, mais ainda, das idéias românticas que punham abaixo a estabilidade em relação ao gosto clássico, com vantagem para a noção instável de relatividade.

Madame de Staël é outro marco na evolução dessa disciplina, com sua obra De l’Allemagne (1800). E foi na França, primeiramente, que começaram a se consolidar os estudos de Literatura Comparada, sobretudo pela publicação de obras onde aparece essa expressão, ainda que tais estudos fossem feitos amplamente na Europa. 25

Goëthe pode ser considerado, também, um precursor fundamental da sistematização da Literatura Comparada, ao cunhar o termo “Literatura Mundial”

(Weltliteratur), em 1927, em oposição às literaturas nacionais, com o intuito de criar uma espécie de biblioteca de obras-primas.

Entretanto, o primeiro teórico que firmou a expressão “Literatura Comparada”, estabelecendo-lhe os princípios e pressupostos, foi o inglês Hutcheson Macaulay

Posnett, em 1886, no seu livro, Comparative Literature, onde inseriu o texto “O método comparativo e a literatura”, que é considerado o texto fundador da disciplina.

Dele partiram vários outros, que iluminaram a teorização desse estudo e, já se observava, a preocupação em saber até que ponto iriam os limites da Literatura

Comparada e quais eram seus objetivos.

Em cada país, devido às necessidades culturais e políticas, a Literatura

Comparada foi tomando formas diferentes e enfocava o que lhes interessava, estudando os assuntos que lhes tocavam mais fortemente. Assim, os estudos comparatistas foram se desenvolvendo ao sabor dos movimentos políticos, guerras e rivalidades entre as nações.

Formaram-se, então, as chamadas escolas, que propunham tipos diferentes de pesquisa: a Escola Francesa; a Alemã; a Soviética; a Americana e outras. René

Wellek, fundador da Escola rebela-se contra a metodologia francesa dominante. Ele trouxe a colaboração do Formalismo Russo e da Fenomenologia e amalgamou-os com as teorias do New Criticism, para negar as compartimentações existentes na Escola

Francesa. 26

Segundo ele, os pressupostos da Escola Francesa não poderiam analisar uma obra em sua totalidade. Na verdade, Wellek revitalizou o Comparativismo Literário questionando os caminhos tradicionais, embora não propusesse novas demarcações.

Com isso, a Literatura Comparada correu o risco de perder a sua especificidade.

Enquanto a Literatura Comparada, em fronteiras nacionais, é bem concreta em termos de definição, a literatura com ramificações genéricas, como ocorreu nos

Estados Unidos, a partir de Wellek, encontrou vários problemas de demarcação, observados até hoje.

Os americanos propuseram-se a dilatar as fronteiras impostas pelos franceses. A própria sociedade americana e as condições históricas e políticas do país provocaram tomadas de posições novas com relação a essa disciplina.

O fortalecimento e a união das minorias desfavorecidas provocaram transformações nos pressupostos teóricos do comparatismo. Dessa forma, a preocupação, antes primordial, de comparar as literaturas nacionais, não existe mais; existe apenas o comprometimento de colocar, dentro da Literatura Comparada, idéias provenientes dos Estudos Culturais, isto é, pensamentos nascidos no seio das comunidades minoritárias, tais como feminismo, homossexualismo, problemas raciais e de choque de classes.

A Literatura Comparada convive com esses temas, pois são eles que afetam a sociedade como um todo. Discute-se se a alta literatura ou literatura canônica não será suplantada por estudos de tal ordem. 27

Os estudiosos americanos acham que essa disciplina passa por três processos históricos: globalização, democratização e descolonização, que transformam a maneira como a literatura e a cultura são estudadas.

A Associação Americana de Literatura Comparada, American Comparative

Literature Association – ACLA, já organizou três relatórios: o Relatório Levin de 1965, o Relatório Greene de 1975 e o Relatório Bernheimer de 1993. Eles tentam estabelecer demarcações para a Literatura Comparada, isto é, criam normas para definir exatamente a intenção dessa disciplina e como ela deve ser encarada. Em outras palavras, como canonizar a nova disciplina.

Os três relatórios foram publicados juntos, em 1995, no livro Comparative

Literature in the age of Multiculturalism, editado por Charles Bernheimer.

Acompanham-nos ensaios de vários comparatistas que os discutem. A história dessa coletânea iniciou-se em 1992, quando Stuart Mac Dougal, então presidente da ACLA, pediu que Charles Bernheimer, presidente do Programa de Literatura Comparada na

Universidade da Pensilvânia, organizasse, com os diversos grupos de docentes da área, ensaios que abordassem o trabalho atual da Literatura Comparada.

Por tratar-se de um interesse geral dos estudiosos da disciplina Literatura

Comparada, traduzimos o Relatório Bernheimer, com o intuito de poupar esses estudiosos e pesquisadores de suas inquietações e angústias. (ver anexo 1, p.256)

De fato, o Relatório Bernheimer responde a algumas inquietações e tenta nortear os rumos da Literatura Comparada. Peter Brooks, em seu texto, Devemos Pedir

Desculpas?, também inserido na Revista Apontamentos, com tradução nossa, conta que havia uma lenda persistente entre os alunos de pós-graduação na Harvard, no 28 início dos anos 60. Referia-se ao pesadelo que um aluno do curso da disciplina de

Literatura Comparada tivera na noite de seus exames orais: a campainha soou, o estudante caiu da cama, abriu a porta e viu-se frente a frente com Harry Levin e

Renato Poggioli (os dois professores titulares do Departamento) vestidos de encanadores, carregando chaves inglesas e maçarico, anunciando: “Viemos para comparar a literatura.” O sonho tornou-se proverbial, sem dúvida, por causa da ansiedade do acadêmico com aquela noção de “comparar” literatura e com o que o fato pudesse significar.

Essa ansiedade ainda continua, pois, aqueles mares que, outrora, delimitavam territórios, histórias, culturas, políticas e línguas, atualmente, em pleno processo de multiculturalismo, pós-colonialismo e globalização, mantêm-se impregnados de águas turvas, chorumes da triste condição de exílio, poluições de preconceitos que emergem, impedindo a condição de contemplar um só lugar de encontro.

Mas o atento leitor pode refletir, diante da abertura que nos dá o Relatório em relação à Literatura Comparada que se dissemina em campos como os dos Estudos

Culturais – sobre o lugar de origem da tradição da literatura; a partir de quando eu falo, de quais tradições e de quais contra-tradições.

A invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns nas interpretações do presente. O que inspira tais apelos não é apenas a divergência quanto ao que ocorreu no passado e o que teria esse passado, mas também a incerteza de que se o passado é, de fato, passado morto e enterrado, ou se persiste, mesmo sob outras formas. 29

Em um de seus primeiros ensaios críticos mais famosos, T. S. Eliot aborda uma constelação similar de problemas. Diz Eliot que o poeta é, evidentemente, um talento individual, mas trabalha dentro de uma tradição que não pode ser simplesmente herdada, tendo de ser obtida “com grande esforço”. A tradição, prossegue ele,

supõe, em primeiro lugar, o sentido histórico que podemos dizer praticamente indispensável a qualquer um que continue a ser poeta depois dos 25 anos de idade; e o sentido histórico supõe uma percepção, não apenas do que é passado do passado, como também daquilo que permanece dele; o sentido histórico leva um homem a escrever não só com sua própria geração entranhada até a medula, mas ainda com a sensação de que toda a literatura da Europa, desde Homero, e dentro dela toda a literatura de seu país, possui uma existência simultânea e compõe uma ordem simultânea. O sentido histórico, que é um sentido tanto do intemporal quanto do temporal, e do intemporal e do temporal juntos é o que torna um escritor tradicional e é, ao mesmo tempo, o que torna um escritor profundamente consciente de seu lugar no tempo, de sua própria contemporaneidade. Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte tem seu pleno significado sozinho. (ELIOT, 1988, p.14)

A força desses comentários responde ao possível questionamento do leitor em relação à tradição da literatura. A idéia principal é que, mesmo que se deva compreender inteiramente o que ficou no passado, que de fato já passou, não há nenhuma maneira de isolar o passado do presente. Ambos se modelam mutuamente, um inclui o outro e, no sentido totalmente ideal pretendido por Eliot, um coexiste com o outro.

Valemo-nos de um exemplo extraído do livro editado por Homi K. Bhabha, em um ensaio de Ernest Renan, em que uma canção espartana diz: “We are what we were; we will be what you are” (BHABHA, 1995, p.19)3, para ilustrarmos a questão da tradição.

3 Somos o que fomos; seremos o que vocês são. (BHABHA, 1995, p.19, tradução nossa). 30

O que Eliot propõe, em suma, é uma visão da tradição literária, que, mesmo respeitando a sucessão temporal, não é de todo comandada por ela. Nem o passado, nem o presente, como tampouco qualquer poeta ou artista tem pleno significado sozinho. A maneira como formulamos o passado molda nossa compreensão e nossas compreensões do presente.

O Relatório Bernheimer, ao abrir o campo da literatura comparada para os estudos culturais, referenda que as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do mundo; elas também se tornam o método usado para afirmar sua identidade, cultura e a existência de uma história própria.

Temos ciência, portanto, que uma sombra ainda paira nos departamentos de literatura das universidades: os Estudos Culturais. Nas versões mais horrorizadas, a nova disciplina veio para destruir a alta literatura, transformando refinados amantes de um Shakespeare, de um Fernando Pessoa ou de um Guimarães Rosa em fãs de cultura pop e mídia ou de analistas de literaturas, ditas subalternas.

No Brasil, a data oficial do reconhecimento institucional dos Estudos Culturais foi em 1998, ano em que a Associação de Literatura Comparada, Abralic, escolheu para seu congresso bianual o tema “Literatura Comparada = Estudos Culturais?”

Nosso estudo, entretanto, visa a dar luz a essa sombra, mostrando como os

Estudos Culturais surgiram em um determinado ambiente sócio-histórico e suas relações com os Estudos Literários; que inclui, certamente, o estudo da cultura, dita popular, e dos fenômenos da vida cotidiana – reservando, ainda, espaço para um novo modo de ler a alta cultura. Fazemos uso, dessa forma, na seqüência deste trabalho, de 31 alguns conceitos sobre cultura que ajudarão a nortear nossa análise e a responder às perguntas feitas no início deste capítulo.

2. CULTURA E SOCIEDADE

Servimo-nos-nos de alguns críticos para compormos essa reflexão sobre cultura.

Iniciaremos nossa postura analítica novamente com T. S. Eliot. As atitudes conscientes e longamente pensadas de um norte-americano, voluntariamente exilado na Europa originaram-se não só nas angústias individuais do poeta, como também em uma longa reflexão acerca dos destinos da cultura ocidental.

Segundo o crítico Northrop Frye, tal reflexão teria levado Eliot a uma teoria do

“declínio” dessa cultura:

De acordo com esta, o ápice da civilização foi alcançado na Idade Média, quando a sociedade, a religião e as artes expressavam um conjunto comum de critérios e valores. Isso não quer dizer que as condições de vida eram melhores então – um item cuja importância deveria ser minimizada – mas que a síntese cultural da Idade Média simboliza um ideal de comunidade européia. Toda a história posterior representa uma degenerescência desse ideal. O cristianismo se decompõe em nações, a Igreja em heresias e seitas, o conhecimento em especializações, e o fim do processo é o que o escritor está pesarosamente observando em seu próprio tempo “a desintegração da cristandade”, a deterioração de uma crença comum e de uma cultura comum”. Essa visão, embora sustentada tão à esquerda quanto estava William Morris, é mais congenial a apologistas católicos tais como Chesterton, e a críticos literários como Ezra Pound, cujo conceito de “usura” resume boa parte de sua demonologia. A crítica social de Eliot, e muito de sua crítica literária, enquadra-se nesse esquema. Ele, uniformemente, opõe-se a teorias do progresso que recorrem à autoridade da evolução, e despreza escritores que, como H. G. Wells, tentam popularizar um ponto de vista progressista. A “desintegração” da Europa começou pouco depois da época de Dante; uma “redução” de todos os aspectos da cultura tem atormentado a Inglaterra desde a rainha Anne; o século XIX foi uma era de progressiva “degradação”; nos últimos cinqüenta anos as provas do “declínio” são visíveis em cada setor da atividade humana. Eliot adota também o recurso retórico, presente em Newman e outros, de afirmar que “Há duas e apenas duas hipóteses 32

sustentáveis a respeito da vida: a católica e a materialista”. O que quer que não seja uma das duas, incluindo o protestantismo, os princípios dos whigs, o liberalismo e o humanismo, está no meio, e forma conseqüentemente uma série de nauseantes hesitações de transição, cada uma pior que a anterior. (FRYE, 1972, p. 33)

E a definição que o poeta Stephen Spender4 dá ao reacionarismo de Eliot não destoa da de Frye:

Eliot era, no sentido mais rigoroso do termo, um “reacionário”. Ele reagiu contra o não-conformismo, o liberalismo, as idéias de progresso e de perfectibilidade do homem. Melhor é considerar o homem como vil e caído do que deixá-lo ouvir a voz de sua própria consciência e julgar-se segundo seus próprios critérios humanos. Ele era um reacionário também no promover sua idéia da Europa da Idade Média, na qual havia unidade de crença nos valores compartilhados por toda a sociedade, em detrimento do ocidente moderno, com suas metas e valores fragmentados. Contudo, apesar de ter pontos de vista morais e religiosos que eram medievalistas, ele não tinha nostalgia por esse passado.

(SPENDER, 1978, p. 43)

Em face do percurso eliotiano, seria difícil, mesmo para o mais radical conservador sustentar, hoje, uma imagem tão idílica da Idade Média européia.

Contudo, apesar do próprio Eliot, sua crença acabou adquirindo, em seus poemas e ensaios, uma função heurística, tornando-se uma hipótese de trabalho que, por contraste, permitia-lhe observar seu próprio mundo.

A produtividade desse método atinge o máximo nos melhores poemas, diminuindo à medida que os temas de sua prosa se tornam mais e mais genéricos. O decréscimo da produtividade não é, no entanto, contínuo, pois varia de acordo com o meio de expressão em que o “método” é empregado, e segundo a capacidade do autor em cada momento, durante a elaboração de seus trabalhos.

4 (1909-1995), poeta e ensaísta inglês que concentrou a temática da injustiça social e da classe trabalhadora em sua obra. (OUSBY, 1988, p. 360) 33

Assim, continuamos nossa reflexão, sua visão de história enquanto declínio não o impede de observar, num ensaio de juventude, Tradition and the Individual Talent

(1919), que cada nova obra relevante altera a configuração de toda uma tradição, ou seja, que não só o passado determina o presente, mas que o inverso também ocorre.

O papel da tradição, na sua poesia e crítica literária, é assumido, em seus escritos sociais, pela história e cultura, com a diferença de que estas aparecem como uma construção, na qual o autor acredita.

Em Notas Para uma Definição de Cultura, Eliot afirma que o termo “cultura” tem associações diferentes quando se tem em mente o desenvolvimento de um indivíduo, de um grupo ou classe e de toda uma sociedade.

Segundo o autor, a cultura do indivíduo depende da cultura de um grupo ou classe, e a cultura do grupo ou classe depende da cultura da sociedade a que pertence esse grupo ou classe. Para ele, portanto, a cultura da sociedade é que é fundamental, e o significado do termo “cultura”, em relação a toda a sociedade.

Continuando a referendar o autor, prosseguimos nosso estudo com a história de certas partes da cultura, como História da Arte, da Literatura ou da Filosofia. Diz ele:

“isolamos naturalmente uma classe particular de fenômenos; ainda que tenha havido um movimento, que produziu o livro de valor de interesse, para relacionar esses assuntos mais intimamente, como história social geral.”

Outrossim, entendemos da afirmação de Eliot, que os papéis que representam a elite e a classe na transmissão de cultura de uma geração à seguinte é que têm que ser considerados. O que é pertinente, nesse ponto, é que o surgimento de grupos mais cultos não deixa de afetar o resto da sociedade: é ele mesmo parte de um processo em 34 que toda a sociedade muda. E fica claro, assim refletindo, quando voltamos nossa atenção para as artes – que, conforme aparecem novos valores, e o pensamento, a sensibilidade e a expressão se tornam mais elaborados, desaparecem alguns valores mais antigos.

Isso quer dizer, apenas, que não podemos esperar ter todos os estágios de desenvolvimento ao mesmo tempo; que uma civilização não pode produzir, simultaneamente, uma grande poesia popular num nível cultural e o Paraíso Perdido, no outro.

A concepção do significado de cultura norteia toda a definição de disciplinas na

área das ciências humanas. Certamente, muitos outros países tiveram uma ou outra forma de estudos de cultura, muito antes que esse rótulo se transformasse na marca de uma disciplina nos departamentos de humanidades, a partir da segunda metade do século XX.

Mas, a verdade, é que a disciplina se constituiu primeiro na Inglaterra, nos anos

1950, suscitando, então, o interesse maior em escrutinar essa formação específica.

A palavra “cultura” entrou na língua inglesa a partir do latim colere, que significava habitar – daí, hoje, “colono” e “colônia”; adorar – hoje com o sentido preservado em “culto”; e, também, cultivar – na acepção de cuidar, aplicado tanto à agricultura, quanto aos animais. Era essa, portanto, a idéia preponderante no século

XVI. Como metáfora, estendeu-se ao cultivo das faculdades mentais e espirituais.

Até o século XVIII, cultura designava uma atividade. E foi nessa época que, ao lado da palavra correlata “civilização”, começou a ser usada como um substantivo abstrato, na acepção não de um treinamento específico, mas para designar um processo 35 geral de progresso intelectual e espiritual, tanto na esfera pessoal, como na social – o processo secular de desenvolvimento humano, como em cultura e civilização européia5.

Durante o Romantismo, em especial na Inglaterra e na Alemanha, passou a ser usada em oposição a seu antigo sinônimo, civilização, como uma maneira de enfatizar a cultura das nações e do folclore e, logo, o domínio dos valores humanos em oposição ao caráter mecânico da “civilização”. Trata-se de uma virada semântica notável, que dá notícia de uma intensa transformação social.

“Cultura” e “civilização” são palavras a um só tempo descritivas; como em civilização asteca, e normativas: denotam o que é, mas também o que deve ser - basta pensarmos no adjetivo “civilizado” e seu oposto “bárbaro”.

No decorrer dos processos radicais de mudanças sociais da Revolução Industrial, foi ficando cada vez mais evidente que o tipo de “desenvolvimento humano” em curso em uma sociedade como a inglesa, não era necessariamente algo a ser recomendado.

O fato de, em especial ao longo do século XIX, a palavra ter adquirido uma conotação imperialista - “civilizar os bárbaros” era um mote que justificava a conquista e a exploração de outros povos -, contribuiu para a virada de sentido.

Uma das coisas que ficam evidentes nesse apanhado rápido de mudanças de significado de cultura é que o sentido das palavras acompanha as transformações sociais ao longo da história e conserva, em suas nuanças e conotações, muito dessa história.

5 Ver Raymond Williams. Keywords: A Vocabulary of Culture and Society. Londres, Fontana, 1976. 36

Na Inglaterra dos anos de 1950, momento de estruturação da disciplina de

Estudos Culturais, o debate sobre a cultura parece concentrar muito do sentido de mudança em uma sociedade, que se reorganiza no segundo pós-guerra.

Raymond Williams (1912-1988), figura central na fundação dos Estudos

Culturais, conta como a palavra cultura começa a ser mais usada como eixo dos debates. No processo, uma de suas acepções de antes da guerra, a da distinção social, cultura como posse por parte de um grupo seleto, começa a desaparecer e dar lugar à preponderância do uso antropológico, cultura como modo de vida.

O outro sentido de cultura, designando as artes e, no contexto inglês, em especial, a literatura, pauta-se na predominância da crítica sobre a criação, um dos eixos do projeto intelectual dominante na academia inglesa, o Cambridge English.

O que Williams percebia, nessa concentração do debate, eram os primeiros passos gigantescos da nossa “era da cultura”, assim denominada pelo predomínio dos meios de comunicação em massa e pelo desvio político e econômico para o cultural.

Já na década de 1950, ficou claro para Raymond William a necessidade de tomar uma posição sobre a cultura e de intervir no debate para demonstrar as conexões entre as diversas esferas e salvaguardar o conceito para um uso democrático, que contribuísse para a mudança social.

O ponto de vista da inter-relação entre fenômenos culturais e sócio-econômicos e o ímpeto da luta pela transformação do mundo são o impulso inicial de seu projeto intelectual. Escrevendo, em 1961, diz:

(. . .) nessa altura ficou ainda mais evidente que não podemos entender o processo de transformação em que estamos envolvidos se nos limitarmos a pensar as revoluções democrática, industrial e cultural como processos separados. Todo 37

nosso modo de vida, da forma de nossas comunidades à organização e conteúdo da educação, e da estrutura da família ao estatuto das artes e do entretenimento, está sendo profundamente afetado pelo progresso e pela interação da democracia e da indústria, e pela extensão das comunicações. A intensificação da revolução cultural é uma parte importante de nossa experiência mais significativa, e está sendo interpretada e contestada, de formas bastante complexas, no mundo das artes e das idéias. É quando tentamos correlacionar uma mudança como esta com as mudanças enfocadas em disciplinas como a política, a economia e as comunicações que descobrimos algumas das questões mais complicadas mas também as de maior valor humano. (WILLIAMS, 1961, p. 11)

Fica claro, dessa forma, que as disciplinas, então existentes, não comportam as questões que têm interesse de formular. Para lidar com as novas complexidades da vida cultural, é necessário um novo vocabulário e uma nova maneira de trabalhar: nesse momento, foi dado o primeiro passo que leva à estruturação dos Estudos

Culturais.

O estudo clássico de reconstituição histórica dos discursos preponderantes sobre a cultura na tradição britânica está no livro Culture and Society, de Raymond Williams

(1958); ao lado dele temos The Uses of Literacy, de Richard Hoggart (1957) e The

Making of the English Working Class (1963) de Edward P. Thompson – os três considerados os livros fundadores dos Estudos Culturais.

O livro de Williams examina as idéias sobre cultura e sociedade voltadas para a mudança do significado de termos como os próprios “cultura e sociedade”, somados a

“indústria”, “classe e arte”, dos primeiros anos da consolidação da Revolução

Industrial até 1950.

O frame de significados desses termos é visto como um registro e uma reação às modificações sociais causadas pela Revolução Industrial e pela implantação de uma ordem capitalista hegemônica, na Inglaterra, a partir do século XVIII. Foi com esse livro que ficou estabelecida a existência de uma tradição inglesa de debate sobre a 38 qualidade da vida social: de diferentes pontos de vista políticos, os pensadores agrupados nessa tradição vão constituindo um discurso de crítica em relação à nova sociedade industrial.

Edward W. Said (1935-2003), consagrado como um dos mais importantes pensadores e intelectuais da cultura do nosso tempo, sobretudo das relações entre

Ocidente e Oriente, educado no Cairo e, mais tarde, em Nova York, onde lecionou

Literatura Comparada na Universidade de Columbia, tido como o maior crítico literário e cultural dos Estados Unidos, afirma que “a cultura é o campo de batalha no qual as causas se expõem à luz do dia e lutam umas com as outras.” (1995, p. 14).

Nesse sentido, fica-nos claro que, dos estudantes americanos, franceses ou indianos ensinados a ler seus clássicos nacionais antes de lerem os outros, espera-se que amem e pertençam de maneira leal a sua nação e suas tradições, enquanto não valorizam o suficiente as demais.

É mister ressaltarmos que Said problematiza a asserção supracitada, ao dizer que

“a imbricação dessa idéia de cultura é que faz com que a pessoa não só venere a sua cultura, mas também a veja como que divorciada, pois transcendente do mundo cotidiano” (1995, p.14), e, na página 39, de seu livro Orientalismo (2001) enfatiza:

“supõe-se que a literatura e a cultura são, política e até historicamente, inocentes; para mim, as coisas parecem diferentes, e , certamente, o meu estudo do orientalismo, convenceu-me de que a sociedade e a cultura literária só podem ser entendidas e estudadas juntas.”

Muitos humanistas de profissão são incapazes de estabelecer a conexão entre a longa e sórdida crueldade de práticas como a escravidão, a opressão racial e 39 colonialista e o domínio imperial, de um lado, e, de outro, a poesia, a ficção e a filosofia da sociedade que adota tais práticas.

Por essas razões, podemos afirmar que a cultura concebida sem esse elo pode se tornar uma cerca de proteção: deixe a política na porta antes de entrar, o que seria o certo.

Urge afirmarmos que, essa nova concepção, por um lado, deita por terra as pretensões à neutralidade e à inocência da cultura; por outro, estreita a noção do político, reduzida a uma prática cultural e à defesa do particularismo de diferenças culturais.

Esse afunilamento acaba aproximando os estridentes ativistas culturais pós- modernos dos combativos defensores da Cultura, como refúgio dos negócios do espírito; o reino onde seríamos todos humanos juntos e, a partir do qual, se julgaria a sociedade e, a longo prazo, a modificaria. Ambos deixam de lado, por exemplo, o domínio da economia e da coerção do poder do Estado que a serve. São estes, no fim das contas, que articulam as mudanças sociais de seus interesses.

Destarte, serão alguns dos postulados de Said que conduzirão muitas de nossas posturas analíticas relacionadas à formação do imperialismo norte-americano e à conduta antiimperialista de Mark Twain, em inúmeros artigos de jornais proibidos de serem publicados, na época em que foram escritos, como, também, relacionar-se-ão ao estudo de The Innocents Abroad, propriamente dito.

Para Said, que não dissocia a cultura do imperialismo, é também o romance uma importante forma cultural; o objeto estético, cujas ligações com as sociedades de expansão na Inglaterra e na França são particularmente interessantes como tema do 40 estudo sobre cultura. Como referência, como ponto de definição, como local facilmente aceito para viagens, riquezas e serviços, o império funciona para boa parte do século XIX europeu como uma presença codificada na literatura, ainda que apenas marginalmente visível, à semelhança dos criados das grandes mansões ou nos romances.

Os fatos do império estão associados à possessão sistemática, a espaços vastos e por vezes desconhecidos, a seres humanos excêntricos ou inaceitáveis, a atividades aventurosas ou fantasiadas, como a imigração, o enriquecimento e a aventura sexual.

Os territórios coloniais são campos de possibilidades e sempre estiveram associados ao romance realista. Robinson Crusoé é praticamente impensável sem a missão colonizadora que lhe permite criar um novo mundo próprio nos pontos remotos e agrestes da África, Pacífico e Atlântico.

De acordo com Said,

o principal objeto de disputa no imperialismo é, evidentemente, a terra; mas quando se tratava de quem possuía a terra, quem tinha o direito de nela se estabelecer e trabalhar, quem a explorava, quem a reconquistou e quem agora planeja seu futuro – essas questões foram pensadas, discutidas e até, por um tempo, decididas na narrativa. (SAID, 1995, p.13)

Seguindo a proposição de Said, referendamos o crítico literário Homi K. Bhabha, ao dizer que “as nações são narrativas” (1995, p. 1). O poder de narrar ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas é muito importante para a cultura e para o imperialismo e constitui uma das principais conexões entre ambos. Mais importante, as grandiosas narrativas de emancipação e esclarecimento, mobilizaram povos do mundo colonial para que se erguessem e acabassem com a sujeição imperial; nesse 41 processo, muitos europeus e americanos também foram instigados por essas histórias, e também lutaram por novas narrativas de igualdade e solidariedade humana, como veremos, subseqüentemente, na obra de Mark Twain.

A literatura dissidente sempre existiu nos Estados Unidos, ao lado do espaço público autorizado. Pode-se dizer que ela é de oposição ao desempenho nacional e oficial geral. Existem historiadores revisionistas, como William Appleman Williams,

Gabriel Kolko e Howard Zinn; existem também vigorosos críticos públicos, como

Noam Chomsky, Richard Barnet e muitos outros. Todos importantes, não só como vozes individuais, mas como participantes de uma corrente alternativa e antiimperial bastante considerável dentro do país.

É muito difícil dizer a quantidade de adeptos dessas opiniões, representadas pela oposição – antiimperialistas como Mark Twain, William James e Randolph Bourne – mas a triste verdade é que o seu poder dissuasivo não tem sido muito eficaz.

Com o tempo, a cultura vem a ser associada, muitas vezes, de forma agressiva, à nação ou ao Estado; isso “nos” diferencia “deles”, quase sempre com algum grau de xenofobia. A cultura, neste sentido, é uma fonte de identidade e, aliás, bastante combativa, como vemos em recentes retornos à cultura e à tradição.

Passemos, agora, para uma compreensão maior da questão da literatura diante do pós-colonialismo. O termo “pós-colonialismo”, no senso crítico, certamente é um dos mais significantes avanços na Literatura Comparada desde o século XX. Se nós considerarmos o pós-colonialismo em termos diacrônicos, o longo impasse dos escritores, tanto norte quanto sul-americanos, nos séculos XVIII e XIX, ao criarem suas literaturas próprias, pode ser comparado à celeuma dos escritores latino- 42 americanos e africanos, ao fazerem o mesmo. E toda a questão do que, na verdade, constitui uma literatura própria, é ainda debatida.

“O que é Literatura Americana?”, argüiu, em 1782, Crèvecoeur, quanto ao problema de definição, após a revolução de 1776, que parecia ainda ser tão crucial. É importante observarmos que, mesmo dois séculos depois, o mexicano Carlos Fuentes, segue o cubano Alejo Carpentier, ao declarar que o dever de um escritor americano é o de dar nomes às coisas que, porventura, ainda não os têm. É curioso também notar que, tanto Fuentes quanto Carpentier cruzam as culturas biograficamente, já que

Fuentes cresceu como filho de um diplomata, nos Estados Unidos, e Carpentier, passando anos em Paris, influencia-o sobremaneira.

O termo “exílio”, de pertencer ou não, é um elo em comum entre os escritores de culturas pós-coloniais. Da mesma forma que a problemática da língua e identidade nacional oferece outro ponto fundamental de união. Então, por exemplo, juntamente com a rejeição do cânone da Literatura Inglesa, vem a rejeição do inglês padrão britânico e o mesmo processo acontece em outras línguas européias , em sociedades pós-coloniais, ao longo de uma reavaliação das línguas vernaculares nativas.

Isso significa que há uma multiplicidade de horizontes de expectativas, de acordo com o ponto de partida lingüístico do leitor; por essa razão, um europeu, ao ler um poema escrito por um caribenho ou um romance de um escritor africano, encontrará um léxico e sintaxe não-familiares, em contraste com o leitor que compartilha de uma compreensão desses signos lingüísticos com o autor.

Cumpre ressaltarmos, portanto, que a Literatura Comparada pós-colonial é, também, uma viagem de descobertas, equipada com mapas e tabelas, que a guiarão em 43 direção à criação de um mundo plurisemântico de escritos contemporâneos. Os europeus, com certeza, não tardarão a embarcar nessa viagem também.

Iniciamos nosso estudo invocando o famoso ensaio de Eliot, A Tradição e o

Talento Individual, como forma de introduzirmos a questão da influência em sua significação mais básica e até abstrata. A ligação entre o presente e o que é (ou não) passado no passado, na abordagem de Eliot, inclui o vínculo entre um escritor individual e a tradição a que pertence.

Por essas razões, podemos responder às aflições e ansiedades do leitor diante da abertura que o Relatório Bernheimer dá em relação à Literatura Comparada, que se expande, abraçando formas correntes de significação, abrindo caminhos para o esforço, sempre necessário, de potencializar o aspecto de conhecimento social da crítica cultural em tempos de multiculturalismo; descolonização; democratização e do advento da globalização (global village), como também adentrar no rico território da intertextualidade (KRISTEVA, 1974, p. 12), pois segundo ela, nenhum texto é indiferente a outros. Ainda nesse sentido, Stuart Hall em A identidade Cultural na

Pós-Modernidade enfatiza nossa reflexão ao escrever: “no interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional que chamaremos de ´homogeneização cultural`”. (HALL, 2002, p. 76).

Os émigré pais fundadores da Literatura Comparada – Leo Spitzer; Erich

Auerbach; René Wellek e Wolfgang Kayser terão que dar boas vindas aos seus sucessores pós-coloniais – Homi K. Bhabha; Gayatri Chakravosty Spivak; Edward W.

Said; Anthony Appiah; Sara Suleri; V.Y. Mudimbe; Rey Chow e outros para que não 44 mais se ouça a desabrigada voz crítica. Essa voz sem teto acabaria por realçar a extensão de uma consciência exílica.

Por conta do nosso estudo, gostaríamos, outrossim, de que os acadêmicos e pesquisadores de Literatura Comparada do século XXI não tivessem o mesmo pesadelo que o aluno de Harry Levin e Renato Poggioli tivera, ao ser inquirido sobre a

Literatura Comparada, pois procuramos clarear a chamada “disciplina indisciplinada”, por meio de sua história, evolução e teorias que invocam padrões culturais e sociais ao longo de seu percurso, para que, de fato, ela contemple um só lugar de encontro.

Olhando essa relação do ponto de vista histórico, da formação dos estudos de cultura e a partir de obra de pensadores que eram primordialmente críticos literários, podemos considerar que essas mudanças trazem para esses estudos enriquecimento e, podemos pensar, ainda, que os estudos de cultura são uma extensão do campo dos estudos literários.

Metaforizando nossa conclusão, poderíamos reafirmar que nenhum grupo de patrulheiros de fronteiras irá manter os novos visitantes fora; eles encontrarão um lugar para ficar: na desconstrução; na teoria feminista; nos estudos homossexuais; nos filmes; na cultura popular; nos estudos culturais imperialistas e pós-coloniais, gostando o comparativismo continental ou não. E, certamente, esses novos visitantes serão abrigados em um imenso espaço internacional.

Continuando nossa metáfora, valemo-nos do livro A Jangada de Pedra, de José

Saramago (2000) , que descreve a história de um grande pedaço de terra que se racha dos Pirinéus, a Península Ibérica, desgarrando-se da Europa, e transformando-se em ilha, navega, à deriva, pelos mares do Atlântico. A esse espetacular acidente geológico 45 somam-se outros que unem os quatro personagens principais do romance em uma viagem utópica pelos caminhos da linguagem e, por meio desta, da cultura peninsular.

A ínsula ibérica vagueia ao acaso de um mar tecido por muitos mitos, culturas e história. Esses mitos se costuram nas pedras da fratura de que se fez a jangada. Neles se recuperam as crônicas, peregrinações de heróis anônimos ou notórios da identidade ibérica, como D. Quixote, dentre outros.

Assim, ao contrário de si mesmo e de suas aparentes e reais firmezas, o mundo abre-se para a aventura ficcional da desconstrução das certezas das palavras e dos objetos; deixa-se viajar no estranhamento que daí decorre; reencontra-se em signos velhos e cristalizados. E desses, surgem signos novos, constelações semânticas inusitadas que tornam-se reveladoras dos enigmas que não possuíam, anteriormente, respostas.

A península de Saramago, depois de tanto vagar, aporta em uma enorme praia: curiosamente, todas as mulheres, que nela viajavam, estavam grávidas; “...a viagem continua ...é a história, alguém há de querer contá-la um dia. Os homens e as mulheres, estes, seguirão o seu caminho, seu destino....A vara de negrilho está verde, talvez floresça no ano que vem” (SARAMAGO, 2000, p. 317), assim encerra, o autor, a sua

Jangada de Pedra.

Poderíamos dizer, para finalizarmos nossa metáfora, que na grande ilha, viajavam, sem rumo, os estudos pós-colonialistas, tais como os estudos culturais: teoria feminista, estudos de mídia, estudos, tidos subalternos e minoritários, etc; descobrem novos signos e significações, durante sua peregrinação, e, prenhes como 46 todas as mulheres que viajavam na península, e aportados em um grande abrigo cultural, continuam a contar a sua história.

Nossa viagem está apenas começando e dentre os novos signos e significações que pretendemos analisar, faz-nos necessário abordar alguns pensamentos filosóficos que contemplam a questão da alteridade e do olhar do “outro”.

3. ALTERIDADE: A METAMORFOSE DO OLHAR DO OUTRO

A novel is never anything but a philosophy put into images6. Albert Camus, Review de La Nausée - Sartre

Utilizamo-nos do ensaio que Michel Foucault faz de Las Meninas, pintura de

Diego Velázquez, em seu livro A Palavra e as Coisas (2000), para iniciarmos nosso

estudo sobre a alteridade: o olhar do

Velázquez realizou esta pintura em 1656. Manteve-se nas dependências do Alcázar de Madri até o incêndio de 1734; voltou ao Palácio Novo edificado sobre o solar incendiado. Veio ao Real Museu de Pintura e Escultura (atual Museu do Prado) no começo do século XIX, com obras procedentes da coleção real. Os inventários reais lhe haviam dado diferentes denominações: "La Señora Emperatriz con sus damas y una enana" (1666), " del Señor Rey Phelipe Quarto" (1734); já no Museu, no catálogo redigido por Pedro de Madrazo, em 1834, chamou-se pela primeira vez "Las Meninas" - expressão de origem portuguesa com que se designava as acompanhantes de crianças reais no século XVII

Fonte: WebMuseum Realism.htm

6 O romance nada é senão uma filosofia mostrada por meio de imagens. (CAMUS apud BRUMFIT, p. 54, tradução nossa) 47 outro, e como os povos de uma cultura específica olham para os povos de culturas adversas e o procedimento do olhar de um viajante sobre a novidade do mundo.

Para tanto, traremos à luz alguns dados do pintor espanhol, que foi, objeto de estudo desse ensaio foucaultiano. Diego Velázquez (1599-1660) foi o grande mestre da técnica e do estilo realista. Por causa de sua grande habilidade em fazer emergir cor, luz, espaço e ritmo em seus traços, tornou-se conhecido como “o pintor do pintor”. O Realismo rejeita a idealização subjetiva em favor de uma observação detalhista do mundo, o que se pode verificar desde as esculturas gregas helenísticas.

Em nossa dissertação de Mestrado, no capítulo III, “A Tradição do Olhar”, já foi observado que:

o olhar não descansa sobre a paisagem contínua de um espaço inteiramente articulado, mas se enreda nos interstícios de extensões descontínuas, desconcertadas pelo estranhamento. Aqui o olho defronta constantemente limites, lacunas, divisões e alteridade; conforma-se a um espaço aberto, fragmentado e lacerado. Assim, trinca e se rompe a superfície lisa e luminosa, antes oferecida à visão, dando lugar a um lusco-fusco de zonas claras e escuras, que se apresentam e se esquivam à totalização. E o impulso inquiridor do olho nasce justamente desta descontinuidade, deste inacabamento do mundo: o logro das aparências; a magia das perspectivas; a opacidade das sombras; os enigmas das falhas, enfim, as vacilações das significações. Por isso, o olhar não acumula e não abarca, mas procura; não deriva sobre uma superfície plana, mas escava, fixa e fura, mirando as frestas deste mundo instável e mutante que instiga e provoca a cada instante a função de busca e de surpresas. (DOCA, 2000, p. 53)

Foucault, portanto, ao descrever a pintura de Velázquez, bem observa como o olhar se confronta com limites, lacunas, sombras e com a questão da alteridade e assim inicia seu texto:

O pintor está ligeiramente afastado do quadro. Lança um olhar em direção ao modelo; talvez se trate de acrescentar um último toque, mas é 48

possível também que o primeiro traço não tenha sido aplicado. O braço que segura o pincel está dobrado para a esquerda, na direção da palheta; permanece imóvel, por um instante, entre a tela e as cores. Essa mão hábil está pendente do olhar; e o olhar, em troca, repousa sobre o gesto suspenso. Entre a fina ponta do pincel e o gume do olhar, o espetáculo vai liberar seu volume. (FOUCAULT, 2000, p. 3)

Levamos em conta o fenômeno da emergência de imagens no mundo contemporâneo, que é conseqüência de toda uma “tradição” do olhar, envolvendo a cultura do homem. O homem olha, mas seu olhar pode estar impregnado por sua cultura, práxis social, estranhamento, preconceitos e sombras.

...o pintor colocou-se ao lado da obra na qual trabalha. Isso quer dizer que, para o espectador que no momento olha, ele está à direita de seu quadro, o qual ocupa toda a extremidade esquerda. A esse mesmo espectador o quadro volta as costas: dele só se pode perceber o reverso, com a imensa armação que o sustenta. O pintor, em contrapartida, é perfeitamente visível em toda a sua estatura; de todo modo, ele não está encoberto pela alta tela que, talvez, irá absorvê-lo logo em seguida, quando, dando um passo em sua direção, se entregará novamente a seu trabalho; sem dúvida, nesse mesmo instante, ele acaba de aparecer aos olhos do espectador, surgindo dessa espécie de grande gaiola virtual que a superfície que ele está pintando projetada para trás. (FOUCAULT, 2000, p. 4)

Lendo o ensaio de Adauto Novaes, De Olhos Vendados (in: O Olhar, 1995, p.10), abstraímos que o conhecimento sensível é vago, confuso e inadequado, porque no mundo dos sentidos não há estabilidade nem harmonia. A realidade sensível jamais pode produzir um saber porque as coisas sensíveis são, ao mesmo tempo, dessemelhantes, muitas e múltiplas nelas mesmas.

Nesse sentido, aquele que se deixa seduzir apenas pelos sentidos, deve assumir os riscos da incerteza ou perder-se naquilo que vê; os sentidos, como as paixões, 49 perturbam a alma; o homem que contempla é absorvido pelo que contempla, refletem alguns destes autores e pensadores.

Assim posto, Platão nos convida a desconfiar da percepção, das pulsões e dos caprichos do corpo. Segundo o filósofo, “a estabilidade e harmonia estão no mundo supra-sensível, nas idéias transcendentes e separadas do sensível, imutáveis, genéricas.

Cada Idéia e todas as Idéias participam do Um transcendente, da Idéia universal”.

Esta concepção teve uma influência doutrinal e prática considerável, em todas as

épocas e em todos os domínios. Marca a grande cisão de dois reinos, que subsistem paralelamente. Quando Platão propõe, no Mito da Caverna que, por uma operação do olhar, o homem se afaste do mundo sensível, estava ao mesmo tempo dirigindo o olhar para “um ver concentrado no mundo da idéia” (BORNHEIM, “As Metamorfoses do

Olhar”, 1995, p. 18, 25).

Como escreveu Plutarco, ele não propunha suprimir os sentidos “que sofremos” e dos quais estamos impregnados, mas mostrava que existe algo mais “sólido e mais durável” na sua essência, porque esse algo “não nasce, nem sofre, nem morre”: é o pensamento divino universal ou, como disse Marx, “noção vazia de sentido, abstraída da realidade sensível” (NOVAES, “De Olhos Vendados”, 1995, p.10). Heidegger completa, ainda nesse ensaio: “as idéias [de Platão] não pertencem ao domínio daquilo que os sentidos nos fazem perceber; só podemos contemplar as idéias na sua pureza através da percepção não-sensível”. (NOVAES, “De Olhos Vendados”, 1995, p.11).

Por outro lado, continuando nossa reflexão, e deixando de lado os conceitos platônicos, Lucrécio7 convida-nos, primeiro, a libertar-nos do jugo da superstição e,

7 Poeta latino romano Titus Lucretius Carus (cerca de 98-95 a.C.), mais conhecido como Lucrécio, tornou-se famoso por seu poema filosófico Da natureza das coisas, no qual glorifica Epicuro e revela sua concepção do 50 depois, “distribuir feixos de luz sobre as mais obscuras matérias, e flores da poesia sobre os espinhos de uma filosofia árida” - citado por Marx na tese sobre Demócrito e

Epicuro em Oeuvres III, Philosophie. (NOVAES, 1995, p. 13).

Se a determinação platônica de distinguir o inteligível e o sensível, a idéia e a imagem, representou um momento importante na história do pensamento – a constituição, através de um esforço consciente de conceitos universais, mostrando que o elemento concreto não deve ser confundido com a Substância – essa determinação cria, ao mesmo tempo, uma relação de exterioridade: o objeto perde seu poder de constituição e transforma-se em Idéia do objeto.

Na idéia universal, a percepção sensível e as formas concretas de sua existência tornam-se objeto de pensamento e perdem a possibilidade de revelar a determinação oculta por meio de um desdobramento reflexivo nelas mesmas.

Observamos, portanto, que a consciência intelectual, esse esforço concentrado do pensamento clássico rumo às idéias inteligíveis, afasta-nos do mundo sensível, e que a consciência sensível de Epicuro8 indica outro caminho, que nos leva sempre a um encontro ou a um reencontro hoje como se, após uma travessia no vazio, o olhar não tivesse outra saída, a não ser uma volta impregnada de valores que transcendem à Idéia universal. E é baseada nessa concepção que prossegue nossa análise, assim como no ensaio de Foucault, que é permeado de elementos sensoriais.

mundo. A angústia que invade o poema lucreciano também é encontrada na base do filosofar de Epicuro: são justamente os obscuros males da alma, dos quais fala Lucrécio, que Epicuro queria afugentar com a sua palavra e recompor em superior ataraxia (termo grego que designa o estado da alma que nada consegue perturbar, exorcizando as paixões). (Enciclopédia BARSA, volume 14, 1989, p. 380). 8 Filósofo grego, nascido em Samos (341-270 a.C.), fundou uma escola no jardim de sua casa, em Atenas e, ao invés de reunir seus discípulos numa palestra, passava o dia familiarmente com uns e outros, valorizando as percepções individuais. Segundo o filósofo, “sábio é aquele que busca conquistar a liberdade e independência interior para atingir a felicidade”. Nos ensinamentos de Epicuro, é excluída qualquer explicação metafísica da realidade, não procurando nada, nem invocando outra origem das coisas além da natureza e dos sentidos humanos. (Os Pensadores). 51

A teoria de Epicuro é um permanente encontro, a começar pela sua escola: um

Jardim, que é mais o espaço de encontro dos amigos do que a Academia dos outros filósofos gregos; a sensação nasce do encontro de duas presenças, de dois corpos e, por isso, Epicuro diz que todo conhecimento começa nos sentidos.

Os sentidos são, pois, os mensageiros do conhecimento. Nem mesmo a razão ou conceito, podem refutar os sentidos porque toda razão, ou todo conceito dependem deles.

Percorrendo o caminho dos sentidos, ainda lembramos que, a exemplo de

Merleau-Ponty9, ao afirmar que “todo saber se instala nos horizontes abertos pela percepção” (BOSI, “Fenomenologia do Olhar”, 1995, p. 66), Epicuro completa que

“todos os nossos pensamentos têm a sua origem nas sensações por conjuntura, analogia, similitude e combinação, contribuindo, também, o pensamento para elas”

(BOSI, “Fenomenologia do Olhar”, 1995, p. 68). Após essa abstração, podemos afirmar que os sentidos são, pois, fenômenos objetivos.

Nada escapa, nada pode escapar ao olho sensível de Epicuro porque, além do objetivo, o sensível é material.

Juntamente com Lucrécio, ele construiu uma das mais curiosas concepções: os corpos da natureza desprendem elementos muito sutis, fluídos e tênues que são os simulacros, membranas superficiais que são levadas ao mundo dos fenômenos. São

9 Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), escritor e filósofo líder do pensamento fenomenológico na França, nascido em Rochefort, estudou na Ecóle Normale Supérieure, em Paris, graduando-se em filosofia em 1931. Lecionou em vários liceus antes da Segunda Guerra, durante a qual serviu como oficial do exército francês. Em 1945 foi nomeado professor de filosofia da Universidade de Lyon e em 1949 foi chamado a lecionar na Sorbonne, em Paris. Em 1952, ganhou a cadeira de filosofia no Collége de France. De 1945 a 1952 foi co-editor (com Jean Paul Sartre) do jornal Lês Temps Modernes. Suas obras mais importantes de Filosofia foram de cunho psicológico: La Structure du comportement (1942) e Phénoménologie de la perception (1945). Apesar de grandemente influenciado pela obra de Edmund Husserl, Merleau-Ponty rejeitou sua teoria do conhecimento intencional fundamentando sua própria teoria no comportamento corporal e na percepção. Sustentava que é necessário considerar o organismo como um todo para se descobrir o que se seguirá a um dado conjunto de estímulos. (Os pensadores) 52 estas formas que, ao penetrar nos sentidos, provocam um encontro e modificam a estrutura de nossos átomos.

Essa idéia de simulacro nos remete a uma das noções mais importantes em

Epicuro, que é o espaço, ou o vazio: o espaço é uma “natureza intangível” e o vazio é a condição da existência do movimento perpétuo dos átomos.

Fizemos o uso dessa breve incursão histórica na filosofia para reafirmar a análise foucaultiana, voltada para a escola dos jardins epicuristas.

A reflexão de Foucault está prenhe de sentidos; os signos tomam novos significados; a aventura do olhar colhe a sensação das cores, do espelho, do olho do pintor e dos reflexos existentes no vazio.

O pintor olha, o rosto ligeiramente virado e a cabeça inclinada para o ombro. Fixa um ponto invisível, mas que nós, espectadores, podemos facilmente determinar, pois que esse ponto somos nós mesmos: nosso corpo, nosso rosto, nossos olhos. O espetáculo que ele observa é, portanto, duas vezes invisível: uma vez que não é representado no espaço do quadro e uma vez que se situa precisamente nesse ponto cego, nesse esconderijo essencial onde nosso olhar se furta a nós mesmos no momento em que olhamos.

(FOUCAULT, 2000, p.4)

Realmente, como poderíamos deixar de ver essa invisibilidade que aí está sob nossos olhos, já que ela tem, no próprio quadro, a equivalência sensível e repleta de novos significados?

Poder-se-ia adivinhar o que o pintor olha, se fosse possível lançar os olhos sobre a tela a que ele se aplica; desta, porém, só se distingue a textura, os esteios na horizontal e, na vertical, o oblíquo do cavalete. O alto retângulo monótono que ocupa toda a parte esquerda do quadro real e que figura o verso da tela representada reconstituiu, sob as espécies de uma superfície, a invisibilidade em profundidade daquilo que o artista contempla: este espaço em que nós estamos, que nós somos. Dos olhos do pintor até aquilo que ele olha, está traçada uma linha imperiosa que nós, os que olhamos, não 53

poderíamos evitar: ela atravessa o quadro real e alcança, à frente de sua superfície, o lugar de onde vemos o pintor que nos observa; esse pontilhado nos atinge infalivelmente e nos liga à representação do quadro. (FOUCAULT, 2000, p. 5)

Segundo Alfredo Bosi, em seu ensaio Fenomenologia do Olhar, “os olhos recebem passivamente verdadeiras sarabandas de figuras, formas, cores, nuvens de

átomos luminosos que se ofertam, em danças e volteios vertiginosos aos sentidos do homem. E o efeito desse encontro deslumbrante pode ter um nome: conhecimento.” É esse conhecer, esse experimentar, essa metamorfose, esse reverso, que aqui se põem em questão.

... aparentemente, esse lugar é simples; constitui-se de pura reciprocidade: olhamos um quadro de onde um pintor, por sua vez nos contempla. Nada mais que a face, olhos que nos surpreendem, olhares retos que, em se cruzando, se superpõem. E, no entanto, essa tênue linha de visibilidade envolve, em troca, toda uma rede complexa de incertezas, de trocas e de evasivas. O pintor só dirige os olhos para nós, na medida em que nos encontramos no lugar do seu motivo. Nós, espectadores, estamos em excesso. Acolhidos sob esse olhar, somos por ele expulsos, substituídos por aquilo que desde sempre se encontrara lá, antes de nós: o próprio modelo. Mas, inversamente o olhar do pintor, dirigido para fora do quadro, ao vazio que lhe faz face, aceita tantos modelos quantos espectadores lhe apareçam; nesse lugar preciso, mas indiferente, o que olha e o que é olhado, permutam- se incessantemente. Nenhum olhar é estável, ou antes, no sulco neutro do olhar que traspassa a tela perpendicularmente, o sujeito e o objeto, o espectador e o modelo invertem seu papel ao infinito. E, na extremidade esquerda do quadro, a grande tela virada exerce aí sua segunda função: obstinadamente invisível, impede que seja alguma vez determinável ou definitivamente estabelecida a relação dos olhares. A fixidez opaca que ela faz reinar num lado, torna para sempre instável o jogo das metamorfoses que, no centro, se estabelece entre o espectador e o modelo. Porque só vemos esse reverso, não sabemos quem somos nem o que fazemos. Somos vistos ou vemos? (FOUCAULT, 2000, p.5-6)

Nesse jogo de metamorfose e inversões, inclui-se o mundo implicado na atividade do olhar, obrigando-nos a reconsiderar o estatuto que, talvez, tenhamos ingenuamente guardado para a conjunção que nessa atividade se opera entre o vidente 54 e o visível. Não podemos pensá-la como registro da visão: o ato de ver a integridade e a insuficiência do mundo, bem como sua sólida e rija consistência, rejeita o vidente para o domínio de uma total exterioridade em relação a si, faz o visível dublar-se em um outro absolutamente separado – que, como subjetividade ou como substância pensante o envolve e reflete na sua atividade de representação e conhecimento. Esse sujeito, como espírito retraído do mundo, parece encontrar, então, na película delgada e brilhante do olho, a única evocação mundana da sua potência de iluminação.

No universo do olhar, no entanto, deparamo-nos com outra forma de articulação.

Nele, vidente e visível, misturam-se e confundem-se em cada modulação do mundo, mostram-se imbricados em cada ponto de sua extensão. E, se a realidade os entrelaça,

é porque o mundo visível não se dá mais como conjunto de “coisas” rígidas e íntegras, mas como contorno de um campo em que o sentido, ora se adensa e se aglutina, ora se difunde e dilui numa existência rarefeita, sempre vazado de lacunas e indeterminação.

E nesse pensamento, prossegue Foucault em seu texto: “olhamo-nos olhados pelo pintor e tornados visíveis aos seus olhos, pela mesma luz que no-lo faz ver. E, no momento em que vamos apreender transcritos por sua mão como num espelho, deste não podemos surpreender mais que o insípido reverso. O outro lado de um reflexo”.

(FOUCAULT, 2000, p.8).

O olhar, sabemos, não descansa sobre o plano amplo e espraiado que define o horizonte, mas procura barreiras e limites, perscruta suas diferenças e vazios. Assim, o olhar se embrenha pelas frestas do mundo na investigação dos obstáculos, que constantemente comprometem a unidade hesitante das significações. 55

Da mesma forma, as viagens. Também elas – como exercícios do olhar – têm origem nas brechas do sentido. Se o viajante fura o horizonte da proximidade e transpõe os limites de seu mundo para fixar a atenção mais além – no que não se deixa ver, mas apenas adivinhar ou entrever – é sempre pelos vãos do próprio mundo que ele penetra, na medida em que surgem brechas na sua evidência, abrindo passagens na paisagem ou contornando desníveis e vazios.

A viagem, então, como o olhar, vazando por esses poros temporaliza a realidade, reempreendendo a busca de seu sentido. Assim, manifesta-se nela a abertura ou indeterminação do mundo e nesta – para usarmos a expressão de Merleau-Ponty – “o escoamento inesgotável do tempo” (BOSI, “Fenomenologia do Olhar”, 1995, p.78).

Valemo-nos, portanto, da leitura que Foucault faz de Las Meninas para chegarmos ao olhar de alteridade que o viajante faz do mundo, nessa metamorfose de significados.

As viagens revelam um claro parentesco com a atividade do olhar, revelando, também, expressões diversas. As viagens, na verdade, parecem mesmo ampliar – intensificar e prolongar – o mesmo movimento, que, cotidianamente, verificamos no exercício do olhar. Como se, em ocasiões privilegiadas, os olhos arrebatassem todo o corpo na sua empresa de exploração da alteridade, com seu intuito de investigar e compreender, no seu desejo de “olhar bem”.

Compreendemos que as viagens sejam sempre experiências de estranhamento.

Ora, essa experiência é freqüentemente atribuída à simples estranheza do entorno que localiza o viajante, a sua posição em um meio adverso, cuja oposição, separação e 56

“distância” relativamente ao seu universo próprio o fariam sentir-se “deslocado” ou

“fora do lugar”.

Esta oposição se encarregaria, então, de explicar o estreitamento de seu mundo - a redução da extensão das conexões da proximidade que o definem - e, com ele, a erosão da sua própria corporeidade; pois, contrai-se, afinal, a própria extensão do sujeito, visto que se imbrica e se confunde na grandeza e nas diferenças culturais do mundo, fazendo-o pousar como sombra num mundo alheio e exterior.

Esta interpretação, no entanto, certamente dissimula o sentido mais profundo dessa experiência, pois encontra suas balizas na consideração da extensão, esquecendo-se de que as viagens são, essencialmente, espreitadas no tempo.

Quando consideramos o caráter temporal das viagens, compreendemos que o dépaysement (expatriação) não testemunha a exterioridade e estranheza do mundo circundante, ou mesmo a intersecção ou sobreposição imaginária de extensões diversas, mas assinala sempre desarranjos internos ao próprio território do viajante, advindos das fissuras e fendas que permeiam sua identidade.

Temos consciência de que as viagens, na verdade, nunca transladam o viajante a um meio completamente estranho, nunca o atiram em plena e adversa exterioridade; mas, marcadas pela interioridade do tempo, alteram e diferenciam seu próprio mundo, tornam-no estranho para si mesmo.

Assim, neste sentimento de estranheza, de “alheamento” e distância, seu mundo não se estreita, se abre; não se bloqueia, mas experimenta a vertigem da desestruturação que lhe impõem as alterações do tempo. É desta natureza o estranhamento das viagens: não é nunca relativo a um outro, mas sempre ao próprio 57 viajante; afasta-o de si mesmo, deflagra-se sempre na extensão circunscrita de sua frágil familiaridade, no interior de si próprio. O distanciamento das viagens não desenraiza o sujeito, apenas diferencia seu mundo.

Procuraremos atentar ainda para um ensinamento mais amplo trazido por essa experiência. O que ela nos faz mais profundamente compreender é que o outro só o alcançamos em nós mesmos, que o estranho – quando não é absoluta exterioridade e não-sentido – está prefigurado no sentido aberto do nosso próprio mundo, inscrito no fluxo e no movimento da sua temporalidade.

Compreendemos, por ela, que o “estrangeiro” está sempre já delineado – latente e invisível – nas brechas da nossa identidade, na trilha aberta por nossa própria indeterminação. Não podemos apanhá-lo fora, só o tocamos dentro (de nós mesmos) pagando o preço da nossa própria transformação. Pois o outro, enfim – para parafrasear uma observação tornada emblemática da obra de Merleau-Ponty – “é sempre o que exige de nós distanciamento para que dele tenhamos experiência”.

(CARDOSO, “O Olhar dos Viajantes”, 1995, p. 360). Ou como diz Fernando Pessoa, numa ode de seu heterônimo Ricardo Reis: “Se recordo quem fui, outrem me vejo”.

(PESSOA, 1983, p. 217).

Concluímos, portanto, em nossa reflexão, que, de fato, o olhar epicurista, usado na análise de Las Meninas, de Foucault, ao afirmar que “os sentidos são os mensageiros do conhecimento” (BOSI, “Fenomenologia do Olhar”, 1995, p. 80), norteia o olhar do viajante, irradiando, sensorialmente, sua identidade e emanando de si para o outro e do outro para si próprio, centelhas de luz. 58

Passemos, por conseguinte, para o estudo da construção de culturas por meio dos relatos de viagens, o qual tratará especificamente sobre o olhar do viajante, dos relatos de viagens, enfocando, posteriormente, a obra literária de Mark Twain, The Innocents

Abroad or The New Pilgrims’ Progress, que também faz parte dessa gama de relatos, grávida de novos significados, repleta de olhares recíprocos que, sem dúvida, teve crucial importância para a construção da cultura estadunidense.

4. A CONSTRUÇÃO DE CULTURAS POR MEIO DOS RELATOS DE VIAGENS

Quero falar da descoberta que o eu faz do outro. Pode-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo o indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então como um grupo social concreto, ao qual nós não pertencemos. Ou pode ser exterior a ela, uma outra sociedade que, dependendo do caso, será próxima ou longínqua: seres que em tudo se aproximam de nós, no plano cultural, moral e histórico, ou desconhecidos, estrangeiros cuja língua e costumes não compreendo, tão estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma espécie. (TODOROV, 2003, p. 3-4)

Tzvetan Todorov, em A Conquista da América: A Questão do Outro (2003, p.3), abre o capítulo “A Descoberta da América”, com o excerto acima. Observamos que, no caso da literatura, é por meio da construção do “outro”, na fala ou no pensamento de personagens, narradores e, muitas vezes, do autor implícito, que se pode constatar a transversalidade promovida pela diferença.

Desse modo, nota-se, por exemplo, ao se examinarem os textos literários onde esse componente aparece, que, quanto mais próxima das fronteiras que separam 59 geográfica e culturalmente o “eu” e o “outro”, ou o “nós” e o “eles”, encontra-se o

“observador”; tende a ser menos estereotipada a representação ou construção das personagens e paisagens do “vizinho ao lado”.

Segundo Michel Foucalt, em seu livro As Palavras e as Coisas, 2000, p. 72, “há apenas duas formas de comparação: a comparação de medida, que analisa as relações de igualdade e desigualdade e aquela que analisa os elementos mais simples, e harmoniza as diferenças.”

Há algum tempo, o estudo da Literatura Comparada preocupava-se, apenas, com o primeiro tipo de comparação, ao fazer um levantamento dos cânones de autores mais e menos conhecidos, de textos maiores ou menores, de culturas mais fortes e mais fracas, de língua majoritárias ou minoritárias, e tentava, arduamente, manter as implicações ideológicas das hierarquias. Mais tarde, como já vimos, surgiu um novo olhar para os estudos de Literatura Comparada com mais significativos avanços que envolvem mudança nas leituras de relatos de viagens, diários, cartas, traduções e crônicas contadas por viajantes sobre suas experiências com novas culturas.

Os relatos de Colombo, por exemplo, em suas viagens ao Novo Mundo estão repletos de referências ao Dourado Mundo Mágico como aponta Todorov no livro supracitado que, na verdade, nem chegaram a se materializar.

Os colonizadores, atraídos pela certeza de que encontrariam o Ouro, perceberam, posteriormente, que o mesmo estava fora de seu alcance. Outros colonizadores expressaram suas viagens, relatando apenas o cultivo da terra, plantio e fertilização. 60

Alguns estudiosos chegam a apontar essa reação individual como um tipo de imagem de estupro10.

A colônia virgem deitada, à espera do defloramento, era uma fantasia erótica registrada nos relatos dos europeus em busca de fortunas além-mar, e o nome específico da colônia americana, Virgínia, inspirava um grande número de metáforas lascivas.

John Donne (1572-1631), poeta inglês, em um de seus poemas chamados profanos, traz a imagem da América penetrada como vemos a seguir (Elegie XIX – To

His Mistris Going to Bed – 1955- p. 88) e com a tradução de Augusto de Campos

(1986, p. 55-57):

ELEGY: GOING TO BED

Come, Madam, come, all rest my powers defy, Until I labour, I in labour lie. The foe oft-times having the foe in sight, Is tired with standing though they never fight Off with that girdle, like heaven’s zone glistering, But a far fairer world encompassing. Unpin that spangled breastplace which your wear That th’eyes of busy fools may be stopped there. Unlace yourself, for that harmonious chime, Tells me from you, that now ‘tis your bed time. Off with that happy busk, whom I envy, That still can be, and still can stand so nigh. Your gowns going off, such beauteous state reveals, As when from flowery meads th’hills shadow steals. Off with you wiry coronet and show The hairy diadem which on you doth grow: Off with those shoes, and then safely tread In this love’s hallowed temple, this soft bed. In such white robes, heaven’s Angels used to be Receaved by men; Thou Angel bringst with the A heaven like Mahomet’s Paradise; and though Ill spirits walk in white, we easily know, By these Angels from an evil sprite, They set our hairs, but these the flesh upright. License my roving bands, and let them go, Behind, before, above, between, below.

10 (ver Peter Hulme, Colonial Encounters, London, Routledge, 1986; Sabina Sharkey, Ireland and the Iconography of Rape: Colonization, Constraint and Gender, University of North London Occasional Papers Series, no. 4, setembro de 1992) 61

O my America! my new-found-land, My kingdom, safeliest when with one man manned, My Mine of precious stones, My Empery, How blessed am I in this discovering thee! To enter into these bonds, is to be free; Then where my hand is set, my seal shall be. Full nakedness! All joys are due to thee, As souls unbodied, bodies unclothed must be, To taste whole joys. Gems which you women use Are as Atlanta´s balls, cast in men´s views, That when a fool´s eye lighteth on a gem, His earthly soul may covet theirs, not them. Like pictures, or like books´ gay coverings made For lay-men, are all women thus arrayed; Themselves are mystic books, which onely we (Whom their imputed grace will dignify) Must see reveal´d. Then since that I may know; As liberally, as to a midwife, show Thy self: cast all, yea, this white linen hence, To teach thee, I am naked first: why then Why needst thou have more covering than a man

ELEGIA: INDO PARA O LEITO

Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz; Até que eu lute, em luta o corpo jaz. Como o inimigo diante do inimigo, Canso-me de esperar se nunca brigo. Solta esse cinto sideral que vela, Céu cintilante, uma área ainda mais bela. Desata esse corpete constelado, Feito para deter o olhar ousado. Entregar-te ao torpor que se derrama De ti a mim, dizendo: hora da cama. Tira o espartilho, quero descoberto O que ele guarda, quieto, tão de perto. O corpo que de tuas saias sai É um campo em flor quando a sombra se esvai. Arranca essa grinalda armada e deixa Que cresça o diadema da madeixa. Tira os sapatos e entra sem receio Nesse templo de amor que é o nosso leito. Os anjos mostram-me um branco véu Aos homens. Tu, meu Anjo, és como o Céu De Maomé. E se no branco têm contigo Semelhança os espíritos, distingo: O que o meu Anjo branco põe não é O cabelo mais sim a carne em pé. Deixa que a minha mão errante adentre Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre. Minha América! Minha terra à vista, Reino da paz, se um homem só a conquista, Minha Mina preciosa, meu Império, Feliz de quem penetre o teu mistério! Liberto-me ficando teu escravo; Onde cai minha mão, meu selo gravo Nudez total! Todo o prazer provém 62

De um corpo (como a alma sem corpo) sem Vestes. As jóias que a mulher ostenta São como as bolas de ouro de Atlanta: O olho do tolo que uma gema inflama Ilude-se com ela e perde a dama. Como encadernação vistosa, feita Para iletrados, a mulher se enfeita; Mas ela é um livro místico e somente A alguns (a que tal graça se consente) É dado lê-la. Eu sou um que sabe; Como se diante da parteira, abre- Te: atira, sim, o linho branco fora, Nem penitência nem decência agora. Para ensinar-te eu me desnudo antes: A coberta de um homem te é bastante.

Caetano Veloso compõe a canção homônima Elegia, intertextualizando o poema de Donne com a adaptação da lírica profana sobre a América, como podemos observar na letra transcrita a seguir.

ELEGIA

Deixe que minha mão errante Adentre atrás, na frente, Em cima, em baixo, entre Minha América Minha terra a vista Reino de paz se um homem Só a conquista Minha mina preciosa Meu império, feliz De quem penetre o teu mistério Liberto-me ficando teu escravo Onde cai minha mão Me selo gravo Nudez total Todo prazer provém do corpo Como a alma em seu corpo Sem vestes, como encadernação vistosa Feita para iletrados A mulher se enfeita, Mas ela é um livro místico E somente a alguns a que tal graça Se consente é dado lê-la. Eu sou um que sabe.

(Disponível em

63

Quanto aos relatos da colonização do Brasil, é privilégio de Gândavo a primeira divulgação eficiente, em língua portuguesa, sobre a terra brasilis, como escreve em seu livro, Relatos do Descobrimento do Brasil: As Primeiras Reportagens (2001, p.

241) a pesquisadora e jornalista, Maria Cecília Guirado. Caminha havia escrito, segundo Guirado, em 1500, a Primeira Carta, que ficaria inédita por mais de trezentos anos. Pero Lopez de Sousa, irmão de Martim Afonso, escreve um riquíssimo Diário de

Navegação, entre 1500-1530, e que também permanece oculto por mais de dois séculos. Gândavo expressa, no Tratado da Terra do Brasil (1965, p. 193-205), sua visão indignada diante do outro (o índio), ao relatar um ritual antropofágico, marcando o início da fusão do eu com o outro. Era impossível para Gândavo saber que:

a antropofagia era também uma expressão do atraso relativo dos povos Tupi. Comiam seus prisioneiros de guerra porque, com a rudimentaridade de seu sistema produtivo, um cativo rendia pouco mais do que consumia, não existindo, portanto, incentivos para integrá-lo à comunidade como escravo. (RIBEIRO, 1995, p.35)

Interessante observarmos que quando o movimento antropofágico converteu o canibalismo da população original do Brasil numa metáfora de auto-representação contemporânea, fez uma tentativa de assimilar o exotismo do olhar do estrangeiro para forjar uma identidade ofensiva pela apropriação de influências externas em que o

“híbrido” era louvado, estrategicamente, como sendo o “autêntico”. Este tipo de inversão de elementos acolhidos da cultura dominante foi o meio de auto- reconhecimento e auto-representação para uma cultura que se entendia, historicamente, como “marginal” em relação a um centro ocidental. Assim, buscava- 64 se liberar da condição de “objetivada” e periférica, assumindo positivamente sua condição excepcional.

Podemos dizer que as narrativas de viagem são documentos preciosos do encontro com o Novo e merecem atenção especial, por permitirem que o imaginário literário atue para compensar as deficiências nos esquemas científicos de compreensão.

Propomos, pois que a narrativa de viagem seja entendida como uma representação e interpretação do Outro, na qual a relação entre identidade e diferença se reflete e envolve, por um lado, um indivíduo narrador perante sua sociedade e cultura; por outro lado, dentre os recursos de interpretação oferecidos pela ciência, aqueles disponíveis na literatura.

Assim refletindo, a narrativa de viagem é a representação de uma experiência, na qual categorias de análise e conceitos científicos, que demarcam e classificam observações sobre a realidade cultural encontrada – geografia, paisagem, natureza, organização social, formação lingüística, sistema jurídico, tecnologias, mitos e lendas, etc. – podem interagir com a reflexão do observador ou do narrador sobre a relação entre essa vivência e sua formação pessoal.

Leituras contemporâneas de relatos de viagens, inspiradas por teorias diversas, oriundas dos Estudos de Gênero, Estudos Culturais e Teoria Pós-Modernista, expõem subtextos aquém dos aparentes e inocentes detalhes de viagens em outras terras, e nos habilita a ver com maior clareza a maneira como os viajantes constroem as culturas com as quais eles têm contato. 65

Nessa direção de nosso pensamento, ainda podemos afirmar que, por meio dos relatos de viagem, traçamos a presença de estereótipos culturais e a maneira como o indivíduo reage diante do que é visto, o que faz refletir tendências na cultura de origem do viajante. Essa nova relação com o outro pode ser melhor entendida com a asserção de Todorov:

a relação com o outro não se dá numa única dimensão. Para dar conta das diferenças existentes no real, é preciso distinguir entre pelo menos três eixos, nos quais pode ser situada a problemática da alteridade. Primeiramente, um julgamento de valor (um plano axiológico): o outro é bom ou mau, me é igual ou me é inferior. Há, em segundo lugar, a ação de aproximação ou de distanciamento em relação ao outro (um plano praxiológico): adoto os valores do outro, identifico-me a ele; ou então assimilo o outro, impondo-lhe minha própria imagem; entre a submissão ao outro e a submissão do outro há, ainda, um terceiro termo, que é a neutralidade, ou indiferença. Em terceiro lugar, conheço ou ignoro a identidade do outro (seria o plano epistêmico); aqui não há, evidentemente, nenhum absoluto, mas uma gradação infinita entre os estados de conhecimento inferiores e superiores. Existem, é claro, relações e afinidades entre esses três planos, mas nenhuma implicação rigorosa; não se pode, pois, reduzi-los um ao outro, nem prever um a partir do outro. (TODOROV, 2003, p. 269-270)

Por meio dessa mesma perspectiva, encontramos em Orientalismo: O Oriente como Invenção do Ocidente, de Edward W. Said, considerações que confirmam a asserção de Torodov. Segundo Said,

o Oriente era quase uma invenção européia, e fora, desde a Antigüidade, um lugar de romance, de seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de experiências notáveis. O Oriente não está apenas adjacente à Europa, é também onde estão localizadas as maiores, mais ricas e mais antigas colônias européias, a fonte de suas civilizações e línguas, seu concorrente cultural e uma das mais profundas e recorrentes imagens do Outro. Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente), como sua imagem, idéia, personalidade e experiência de contraste. Contudo, nada desse Oriente é meramente imaginativo. O Oriente é parte integrante da civilização e da cultura materiais da Europa. O Oriente expressa e representa esse papel cultural e até mesmo ideologicamente, com o apoio de 66

instituições, vocabulário, erudição, imagística, doutrina e até burocracias e estilos coloniais. (SAID, 2001, p.13-14)

Por conta dos excertos supracitados, podemos, realmente, traçar essa relação entre a cultura observada e o observador, como poderemos ver também no trecho abaixo de Bakhtin:

No domínio da cultura, a alteridade é um fator muito importante para a compreensão. É apenas através do olhar de uma cultura que uma cultura estrangeira revela-se completamente e profundamente[. . . .] Um significado só revela suas complexidades quando encontra e entra em contato com o outro, significado estrangeiro; eles se envolvem em um tipo de diálogo, que supera o hermetismo e a unilateralidade destes significados particulares, destas culturas. Nós formulamos novas questões a uma cultura estrangeira, questões que essa cultura não formulou para ela própria; nós buscamos nelas respostas para as nossas próprias questões; e uma cultura estrangeira responde-nos, ao revelar para nós, os seus aspectos novos e novas complexidades semânticas. (BAKHTIN, 1992, p. 53)

Por essas razões, ao estabelecermos essa relação, observamos que, na busca do conhecimento de “si mesmo”, esse reflexo do outro acaba por completar essa comunhão como se fosse a imagem de um espelho; e, novamente servimo-nos da pintura de Velázquez "A Vênus ao Espelho" de Diego Velázquez, nu que escapou incólume das severas condenações da para ilustrar essa troca, essa Inquisição espanhola no século XVII, mantém-se até hoje exposta na National Gallery de Londres, alteridade. como uma obra-prima incontestavelmente celebrada. Fonte: WebMuseum Realism.htm 67

Retomando o que já dissemos anteriormente, lembremos que o distanciamento das viagens não desenraiza o viajante, apenas torna seu mundo diferente. Remetendo- nos à asserção de Gaston Bachelard, em seu livro A Poética do Espaço, para sustentarmos nosso pensamento, lemos: “os pontos de partida da imagem revelarão concretamente os valores do espaço habitado, o ‘não-eu’ que protege o ‘eu’: todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa”. (BACHELARD, 1989, p.

24, 25).

Flora Süssekind, em seu livro O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem, complementa nossa reflexão ao escrever que “no caso de terras recém-descobertas, lugares ainda sem nome, o “eterno Adão”, de fato não pertence a elas, mas caberia a ele dar o nome ao que vê.” (1990, p. 15).

Como exemplo desse jogo dialético (eu e o não-eu), observemos o relato de Mark

Twain, em seu livro de viagem The Innocents Abroad or The New Pilgrims’ Progress, quando visita a Itália:

It is impossible to travel through Italy without speaking of pictures, and I can see through others’ eyes? If I did not so delight in the grand pictures that are spread before me every day of my life by that monarch of all the old masters, Nature, I should come to believe, sometimes, that I had in me no appreciation of the beautiful, whatsoever. It seems to me that whenever I glory to think that for once I have discovered an ancient painting that is beautiful and worthy of all praise, the pleasure it gives me is an infallible proof that it is not a beautiful picture and not in any wise worthy of commendation. This very thing has occurred more times that I can mention, in Venice. In every single instance the guide has crushed out my swelling enthusiasm with the remark: “It is nothing – it is of the Renaissance”. I did not know what in the mischief the Renaissance was, and so always I had to simply say, “Ah! so it is – I had not observed it before”. I could not bear to be ignorant before a cultivated negro, the offspring of a South Carolina slave. But it occurred too often for even 68

my self-complacency, did that exasperating “It is nothing – it is of the Renaissance”. I said at last: “Who is this Renaissance? Where did he come from? Who gave him permission to cram the Republic with his execrable daubs?” We learned, then, that Renaissance was not a man; that renaissance was a term used to signify what was at best but an imperfect rejuvenation of art. The guide said that after Titian’s time and the time of the other great names we had grown so familiar with, high art declined; then it partially rose again – an inferior sort of painters sprang up, and these shabby pictures were the work of their hands. Then I said, in my heat, that I “wished to goodness high art had declined five hundred years sooner”. The Renaissance pictures suit me very well, though sooth to say its school were too much given to painting real men and did not indulge enough in martyrs. The guide I have spoken of is the only one we have had yet who knew any thing. He was born in South Carolina, of slave parents11. (TWAIN, 1997, p. 240-241)

O narrador de The Innocents Abroad or The New Pilgrims’ Progress é o próprio

Mark Twain, o americano desprovido de passado histórico, o próprio “inocente” no exterior, simplesmente o “eterno Adão”. Ele propõe, logo no início do excerto, ser impossível olhar para as pinturas encontradas na Itália sem olhá-las por meio de seu

11 É impossível viajar pela Itália sem falar das pinturas, posso vê-las pelos olhos dos outros? Se eu não me embevecesse diante das magníficas pinturas espalhadas em todos os dias de minha vida, pelo monarca de todos os velhos mestres, a Natureza poderia vir a acreditar, às vezes, que não possuo, dentro de mim, nenhum tipo de apreciação pelo belo, sem sombra de dúvida. Parece-me que todas as vezes que, esplendorosamente, acho, por um instante, ter descoberto que uma pintura antiga é bonita e digna de ser elogiada, o prazer que ela me dá é um prova infalível de que ela não é uma pintura bonita e não é merecedora de um sábio elogio. Isso ocorre por mais vezes que eu possa mencionar, em Veneza. A cada momento, o guia pressionava meu formidável entusiasmo com a enfática afirmação: “Não é nada – ela é da Renascença”. “Eu não sabia que diabos de Renascença era aquela. Então, eu simplesmente dizia, Ah! Então é isso – eu não tinha reparado”. Eu não poderia me render ao fato de ser ignorante diante de um negro culto, descendente de um escravo da Carolina do Sul. Mas isso, geralmente, ocorria para minha satisfação própria; e , ao proferir aquele incômodo “não é nada” – é a Renascença”. Eu disse finalmente: Quem é este Renascença? De onde ele saiu? Quem lhe deu permissão para abarrotar a República com seus borrões execráveis?” Ficamos sabendo que essa Renascença não era um homem; essa renascença era um termo usado para significar o que havia de melhor, nada mais que um rejuvenescimento imperfeito da arte. O guia disse que após a época de Ticiano e no tempo de outros grandes nomes, com os quais nos familiarizamos, a alta arte decaiu; então, parte dela ergueu-se novamente – e uma quantidade de pintores inferiores surgiram e que essas pinturas desprezíveis foram feitas por suas mãos. Então eu disse, em meu calor, que eu “desejava que a qualidade da alta arte tivesse decaído há cinco séculos atrás”. As pinturas da Renascença servem-me muito bem, ainda que é eufemismo dizer que sua escola pintava o homem de fato e que não favorecia os mártires suficientemente. O guia de quem falei é o único que nos ensinou alguma coisa. Ele nasceu na Carolina do Sul, de pais escravos. (TWAIN, 1997 – p. 240-241, tradução nossa). 69 próprio olhar. O outro olhar, a que Twain se refere, é o olhar dos outros escritores, europeus ou não, que tanto enalteceram a beleza das antigas pinturas italianas.

A América era despojada das tradicionais pinturas ou pintores – já que sua cultura fora construída sem a luz da Idade Média, da Renascença ou dos pensadores e filósofos gregos. A concepção do belo que impregnava o olhar de Mark Twain referia- se à exuberante beleza da América, permeada de rios cristalinos, cores fortes e natureza exótica. A América de Twain ainda não havia passado por conquistas imperialistas iguais às da Europa; não sabia o que viera a ser o Império Otomano,

Império Romano ou Britânico. Era o Adão amnésico.

O guia fora um personagem, propositalmente construído por Twain – negro, filho de escravos e natural da Carolina do Norte . Aqui, entra o texto ficcional permeando o relato com o intuito de enaltecer o negro, que vivia, nessa época, 1867, nos Estados

Unidos, um mundo de injustiças e de opressão (ver em anexo 2 p. 264 o pensamento de Twain sobre o negro). Segundo Stuart Hall, em seu livro, Da diáspora: identidades e mediações,

a cor de um ser humano é sempre presumida, uma vez que a cor é uma categoria classificatória criada culturalmente. A atribuição ou a auto-atribuição de cor é a tentativa de situar o sujeito em um contexto social usando uma presumida aparência para posicionar o referido sujeito nas relações de poder como dominante, subalterno, igual ou diferente. (HALL, 2003, p. 191)

Esse negro, aculturado, e posicionado por Twain como um ser “dominante”, pelo menos naquele momento, menciona insistentemente o nome “Renascença”. O narrador fica incoformado pelo fato de o negro ter conhecimento sobre o período da 70

Renascença e ele não, e, travestido pelo olhar americano, desconstrói a Renascença ao questionar: “Quem lhe deu permissão para ela (a Renascença) abarrotar a República com seus borrões execráveis?”

Ao saber que a Renascença não era uma pessoa e sim um termo usado para significar o que havia de melhor em matéria de arte, escreve renascença com letra minúscula com o propósito de reduzi-la a nada, dessacralizá-la, provando, assim, que sua descoberta – o outro – associava-se a si próprio e que, para a cultura norte- americana, Renascença não possuía significado algum.

Dessa forma, os relatos de viagens fazem-nos contemplar a maneira pela qual viajantes percebem sua cultura e seu espaço, ao imergirem na cultura ou espaço de outrem.

Muitos autores fizeram uso desse olhar para compor suas obras. À guisa de exemplos, podemos citar: Gustave Flaubert (1821-1880), que em viagem para o

Oriente, em 1857, escreve Salammbô; Joseph Conrad (1857-1924) influenciado pela experiência de marinheiro que tivera e pelas constantes viagens cortando os mares, escreve The Nigger of the ‘Narcissus’, em 1897, Heart of Darkness, em 1902, dentre outros; Melville (1819-1991), marinheiro de baleeiros, também narra suas próprias experiências em viagens pelo Taiti e Ilhas Marquesas, nos mares do Sul até escrever

Moby Dick (1851), romance que narra a saga do Capitão Ahab, que se lança ao mar do

Pólo Norte em busca da baleia branca que lhe havia tirado parte da perna; Jonathan

Swift (1667-1745) ao escrever Gulliver’s Travels, em 1726, faz uso de seu verso satírico para conspirar contra o sistema de governo britânico; Rudyard Kipling, nascido na Índia e educado na Inglaterra, muito viajou devido à sua função de 71 jornalista e escreveu sobre suas experiências, The Jungle Book, em 1894 e Kim, em

1901 são alguns exemplos; Dos Passos (1896-1970), nascido em Chicago e considerado por Sartre o maior escritor de sua época, vem para o Brasil em 1948, ano em que Kennedy propôs a Aliança para o Progresso, sempre mencionada de maneira crítica pelo autor e, em 1963, escreve Brazil on the move.

A lista de escritores viajantes é enorme e repleta de significados, estranhamentos, desilusões, sátiras, comparações, paródias, mitos, humor; aventuras exóticas e de novos arquétipos que sempre remetem à cultura e aos olhos do observador; e, realmente, esses relatos de viagens, têm um papel fundamental na construção de novas culturas.

Pautando-nos pelas considerações até aqui apresentadas, empreendemos o estudo da Literatura Comparada, da questão da cultura e sociedade e do olhar do viajante na construção de culturas, em função da análise de The Innocents Abroad or the New

Pilgrims’ Progress que será nosso objeto de estudo no capítulo subseqüente.

A tradução do título do livro de viagem de Twain assim se dá: Os Inocentes no

Exterior ou a Jornada dos Novos Peregrinos (tradução nossa). Optamos em traduzir abroad por “exterior” ao invés de “estrangeiro”, pois nossa opção sugere uma ambigüidade, ou seja, exterior: em outros países e exterior do paraíso adâmico remetendo à idéia de desamparo. A Jornada dos Novos Peregrinos é uma alusão que

Mark Twain faz, referindo-se ao livro do escritor inglês John Bunyan (1628-1688),

The Pilgrim’s Progress (A Jornada do Peregrino – tradução nossa), escrito em partes que vão de 1678 até 1788. 72

Além de escritor, Bunyan foi também pastor não-conformista, no século XVII, e numa das várias vezes em que esteve preso escreve The Pilgrim’s Progress.

O livro alegórico relata, por meio do sonho do narrador, uma viagem ao céu. A

Livro do inglês não-conformista, John Bunyan, escrito no século XVII, no período em que se encontrava na prisão Fonte: WebMuseum Realism.htm maior fonte de inspiração de Bunyan foi a Bíblia, assim como a tradição puritana. Sua alegoria narra, com humor e em primeira pessoa, a história de Cristão, o herói, que deixa a Cidade da Destruição rumo à Cidade Celestial carregando um pesado fardo de pecados nas costas e a Santa Escritura nas mãos. Uma de suas primeiras dificuldades é passar pelo famoso Pantanal do Desalento onde seu companheiro, Volúvel, é 73 submetido a provações. Entretanto, Cristão, com a ajuda de Auxílio, consegue se arrastar e e de lá sair, continuando seu caminho pelo Rio da Morte.

Outros obstáculos são encontrados na Colina da Dificuldade, no Vale da

Humilhação e no Vale das Trevas, como também a prisão que se dá no Castelo da

Dúvida pelo Gigante Desespero. Nas primeiras aventuras, Cristão une-se a uma companheira de viagem - a Fé - e os dois finalmente alcançam os Portões do Paraíso onde são recebidos pelos anjos.

Assim como o narrador de Pilgrim’s Progress, o narrador de The Innocents

Abroad também peregrina, ao fazer uma Nova Jornada, e encontra em sua peregrinação o bem, o mal, a fé, a esperança, a desesperança, a destruição, a desilusão, o sonho, os prazeres, os perigos, o humor, a ironia, as almas, os anjos e santos, assim como os demônios e figuras que dessacraliza, a luz e também as trevas. Twain empresta a alegoria de Bunyan para traçar o destino daqueles que, com ele, viajavam para a Europa e Oriente no navio a vapor, The Quaker City – e assim, nomeia seu livro de viagem como sendo a “ jornada dos novos peregrinos.” (grifo nosso).

No livro de Bunyan, encontra-se uma enorme gama de pecadores peregrinos buscando a salvação; no entanto, em contrapartida, o que Twain propõe, ao nomear seu livro, é que seus peregrinos sejam “inocentes”. Não têm pecado algum; o único pecado que carregam é o fato de terem uma “amnésia” cultural, a “amnésia do colonizado” diante da sofisticação do Velho Mundo.

Em nossa dissertação de mestrado, Humor e Preconceito em The Innocents

Abroad, nossa análise parte do prefácio do livro escrito por Twain. Nele o autor coloca suas reais intenções ao escrever o livro de viagem, como vemos em seguida transcrito. 74

This book is a record of a pleasure-trip. If it were a record of a solemn scientific expedition, it would have about in that gravity, that profundity, and that impressive incomprehensibility which are so proper to works of that kind and withal so attractive. Yet not- withstanding it is only a record of a picnic, it has a purpose, which is, to suggest to the reader how he would be likely to see Europe and the East if he looked at them with his own eyes instead of the eyes of those who travelled in those countries before him. I make small pretence of showing any one how he ought to look at objects of interest beyond the sea – other books do that, and therefore, even if I were competent to do it, there is no need. I offer no apologies for any departures from the usual style of travel-writing that may be charged against me – for I think I have seen with impartial eyes, and I am sure I have written at least honestly, whether wisely or not12. THE AUTHOR San Francisco, 1869

(TWAIN, 1997, p. 1)

Twain, ao publicar seu livro de viagem, tenta derrubar arquétipos que outros escritores como Fenimore Cooper, Poe, Melville, Eliot e Pound haviam construído a respeito das culturas americana e européia. Novos significados emolduraram o olhar que Twain propõe passar ao leitor. O humor foi uma arma usada na desmistificação dos conceitos pré-existentes; a linguagem foi um instrumento de politização, pois em seu plurilingüísmo encontramos sua ideologia.

Estudar Mark Twain e conhecer melhor sua obra foi um incentivo que recebemos de nosso professor da Língua Inglesa na graduação e orientador de nossa dissertação de mestrado, Prof. Dr. Mário Mascherpe e, posteriormente, quando conhecemos, em

12 Este livro é um registro de uma viagem prazerosa. Se fosse um registro de uma solene expedição científica, ele teria que ter aquela sobriedade, profundidade e aquela comovente incompreensão que são tão próprias nas obras deste tipo e, além do mais, ser atraente. Ainda que não seja compreendido, é apenas o registro de um picnic, ele tem um propósito, que é sugerir ao leitor como ele deve ver a Europa e o Oriente se ele os olhar com seus próprios olhos, ao invés de olhá-los com os olhos daqueles que por lá já passaram. Faço uma pequena pretensão em mostrar a qualquer um como se deve olhar os objetos de interesse além-mar – outros livros já o fizeram e, por conseguinte, mesmo que eu fosse competente para fazê-lo, não há necessidade. Não peço desculpas a quaisquer partidas do estilo comum da escrita de viagem que pode ser apontada contra mim – pois eu penso ter olhado com olhos imparciais e, tenho certeza, que o escrevi pelo menos honestamente, se sabiamente ou não. (TWAIN, 1997, p. 1, tradução nossa) 75

1994, em um Seminário de Literaturas de Língua Inglesa, na PUC - Campinas, o Prof.

Dr. Luiz Angélico da Costa, professor emérito do Instituto de Letras da Universidade

Federal da Bahia, também profundo conhecedor e admirador de Mark Twain e responsável pelo envio de valoroso material que tanto nos ajudou no desenvolvimento de nossa pesquisa. Esses dois professores reacenderam a luz do fulgor do autor de

Huckleberry Finn, lido aos 12 anos e que tanto encantou nossos sonhos da adolescência.

Ao abrirmos este espaço para uma retomada de nossa dissertação, assim o fazemos com o propósito de mostrar ao nosso leitor a trajetória de nosso trabalho.

Imbuídos com a proposta do prefácio, fizemos um estudo sobre o narrador de The

Innocents Abroad. Nesse sentido, concluímos que a mistura de Sam Clemens e Mark

Twain na obra analisada, sem dúvida, é um apelo ideológico.

O livro prima pela intertextualidade, mesclando ora a voz do “comportado” Sr.

Samuel, ora a voz do “zombeteiro” Mark Twain. Nome e pseudônimo, autor e narrador: artifícios oriundos da necessidade de desmistificar o pensamento da época.

O personagem chamado “Mark Twain”, em The Innocents Abroad, é uma versão cômica de tipos heróicos, um viajante que zomba e que aprendeu com os young braves a detestar a arrogância, a desprezar sentimentalismo, a desconfiar da sofisticação e adquirir deles um vocabulário novo – uma autêntica forma americana – no qual o desprezo e a desconfiança transformam-se em um tipo de humor que resulta no riso e põe em dúvida a arte e a civilização da Europa e da Terra Santa. Além do mais, “Mark

Twain” é oriundo de uma paisagem onde a natureza fora extremamente generosa e o

Velho Mundo pareceu-lhe pálido, domesticado e pequeno. 76

Nosso estudo na dissertação de mestrado, portanto, verificou o olhar que Mark

Twain propõe passar ao seu leitor para que esse veja com outros olhos as diferenças arquetípicas entre a América, Europa e a Terra Santa, o encontro dos “Novos

Bárbaros” com o Velho Mundo. Focalizando, nesse encontro, o preconceito (oriundo desde a colonização da América) e o humor, tão peculiar em seu estilo.

Estudar e analisar esta obra específica de Mark Twain foi como embarcar no vapor The Quaker City e, com ele, zarpar nessa viagem olhando a Europa e o Oriente através de seus olhos, pois sua proposta, de fato, seduziu-nos.

A fortuna crítica twainiana é profícua e repercute seu primoroso talento. Existe, hoje, nos Estados Unidos, o Projeto Mark Twain, desenvolvido pela Universidade da

Califórnia, desde 1980 e responsável pela série dos livros Sapos Saltitantes que traz para os leitores os tesouros esquecidos que ele escreveu, como o livro Dicas Úteis para uma Vida Fútil, recém-lançado no Brasil (TWAIN, 2005).

Há o Banco Mark Twain em Saint Louis, o restaurante Mark Twain em Nova

York, a tabacaria Mark Twain em Lakeland, inúmeras escolas, faculdades, universidades, instituições culturais, sociais com o nome de Mark Twain em

Albuquerque, Dayton, Seattle e Sioux Falls e tantos outros lugares. A imagem de Mark

Twain é usada na propaganda de uma bebida chamada Bass Ale, apesar de sua bebida preferida ter sido o Scotch.

Mark Twain, em pleno século XXI, ainda é onipresente e, sem dúvida, um ícone, pois continua vivo por meio de sua obra. Huckleberry Finn é o romance mais lido em toda literatura americana. Centenas de personificadores de Twain o representam em 77 teatros, shows, escolas e universidades. São publicados inúmeros artigos e livros sobre

Twain todo ano e, na América, ele é o tema de infinitas pesquisas na internet.

Quem foi este homem? Que brilho é esse que ele nos deixou e que ainda continua reluzindo no coração e na memória de tantos? Ele foi apenas o homem que explorou e escreveu sobre a importância de sua pátria e de seus cidadãos. Os americanos construíram uma nova sociedade no século XVIII, mas foi Mark Twain quem

“coloriu” o Novo Mundo, escrevendo e discursando sobre suas belezas naturais e sobre o espírito nacionalista que brotava no coração da América e de americanos. Por que Mark Twain foi considerado a voz da América? Talvez porque a voz de Twain ressoava em uníssono com a voz de seu povo. Um crítico americano, Roy Blount

Junior, escreveu que é impossível para um escritor americano parodiar Mark Twain, pois “It would be like doing an impression of our father or mother: he or she is already there in our own voice”13. (INGE, 1984, p. 315). T. S. Eliot escreve em seu livro

American Literature in the American Language apud Inge :

Mark Twain reveals himself to be one of those writers, of whom there are not a great many in any literature, who have discovered a new way of writing, valid not only for themselves but for others. I should place him, in this respect, even with Dryden and Swift, as one of those rare writers who have brought their language up to date, and in so doing, “purified the dialect of the tribe”. In this respect I should put him above Hawthorne: though no finer a stylist, and in obvious ways a less profound explorer of the soul. [ . .] Mark Twain’s Mississippi is “the universal river of human life – more universal, indeed, than the Congo of Joseph Conrad. . .14” (INGE, 1984, p. 334)

13 Seria como dar uma impressão de seu pai ou de sua mãe: ele ou ela já estão presentes em sua própria voz. (INGE, 1984, p. 315, tradução nossa). 14 Mark Twain revela ser um daqueles escritores de que não existem muitos em qualquer literatura, aqueles que descobriram uma nova forma de escrita, válida não apenas para eles mesmos, mas também para outros. Eu o situaria a par com Dryden e Swift, na gama dos raros escritores que trouxeram sua linguagem à contemporaneidade e, ao fazer isso, “purificou o dialeto da tribo”. Nesse respeito eu devo colocá-lo acima de Hawthorne: posto que não foi um estilista tão refinado e, obviamente, um menor explorador da alma. [ . .] O Mississipi de Mark Twain é o “rio universal da vida humana – mais universal, de fato, que o Congo de Joseph Conrad ... (INGE, 1984, p. 334, tradução nossa) 78

James Cox, em seu livro Walt Whitman, Mark Twain and the Civil War (COX,

1961, p. 185) escreve:

Mark Twain’s Civil War was never the historical Civil War but an emotional equivalent of that war in which Mark Twain was perpetually involved as he created for himself and for his nation an image of the past which could contain the war instead of being destroyed by it. For Mark Twain the cost “was ultimately to be overtaken by the chaos of the inner war that all the stratagems and evasions of humor, burlesque, and parody could not resolve”. He was the novelist – or poet – of Reconstruction, “for in Huckleberry Finn he brought not the old south but an entirely new south back into the Union”.1 (COX, 1961, p. 185)

A “Casa Mark Twain” é um museu e centro de pesquisa dedicado ao estudo de

Mark Twain, sua obra e sua época. O museu é localizado na mansão onde morou

Twain, sua esposa e filhos, de 1874 a 1891, em Hartford, Connecticut. Nesse museu, encontram-se também vários ensaios críticos como o de Bobbie Mason (crítico literário) que observa, por exemplo, que “Twain loved the sound of words and he knew how to string them by sound, like different shades of one color. He was one of the first writers in America to deflower literary language16”. (TWAIN, 1997, p. 33).

Sally Boland, jornalista e escritora, publicou no jornal Dakota do Norte, em

1968: “Mark Twain’s use of dialect is not an end in itself, but a literary tool to delineate characters. The speech of the Negro and backwoodsman is represented

15 A Guerra Civil de Mark Twain nunca foi a Guerra Civil histórica, mas sim uma equivalência emocional da Guerra, na qual Mark Twain “foi perenemente envolvido, já que criou para si e para sua nação uma imagem do passado, que poderia conter a Guerra, ao invés de ser destruído por ela. Para Mark Twain, o custo era basicamente assolado pelo caos da guerra interna, que todos os estratagemas e evasivas de humor, o burlesco e a paródia não pudessem resolver”. Ele foi um romancista – ou poeta – da Reconstrução, pois em Huckleberry Finn ele trouxe não o velho sul, mas um total novo sul de volta à União. (COX, 1961, p. 85, tradução nossa) 16 Twain amava o som das palavras, sabia como dedilhá-las em sua sonoridade, assim como as diferentes nuanças de uma cor. Foi um dos primeiros escritores na América a deflorar a linguagem literária. (TWAIN, 1997, p. 33, tradução nossa). 79 phonetically, in a conspicuous “eye – dialect”, but there is no such representation of the pronunciation and social differences in the characters”17. (INGE, 1984, p. 317).

Ainda no museu “Casa de Mark Twain” há um ensaio de um crítico americano,

Herman Vouk, com o título de America’s Voice is Mark Twain ressaltando que “Mark

Twain, the archetype of American writers’ is an exact observer whose novels are

‘extravagant romances’”18. (INGE, 1984, p. 410).

Professor da Syracuse University, Jim Zwick, há cerca de dez anos, desenvolve uma pesquisa sobre o ideário antiimperialista de Twain. Publicou, em 1992, o livro

Mark Twain’s Weapons of Satire: Anti-Imperialist Writings on the Philippine-

American War e, em 2003, é lançado no Brasil o livro organizado por Maria Sílvia

Betti, Patriotas e Traidores: Antiimperialismo, Política e Crítica Social, contendo dados historiográficos e edições críticas levantadas por meio do estudo de Zwick.

Sobre o relato de viagem The Innocents Abroad, foi publicado em 1958 o livro

Travelling with The Innocents Abroad, de Daniel Morley McKeithan, Franklin Walker e G. Ezra Dane publicaram, em 1940, Mark Twain’s Travels with Mr. Brown. Em

1987, Richard Bridgman publica Travelling in Mark Twain; Franklin Walker, em

1974, publica Irreverent Pilgrims: Melville Brownnie, and Mark Twain in the Holy

Land. Henry Nash Smith publica, em 1962, The Innocents Abroad in Mark Twain: The

Development of a Writer. Shelly Fisher Fishkin publica, em 1988, From Fact to

Fiction: Journalism and Imaginative Writing in America.

17 O uso do dialeto de Mark Twain não é um fim, mas sim uma ferramenta literária para delinear suas personagens. O discurso do Negro e do matuto é representado foneticamente em um notável ‘dialeto - vivo’, entretanto, não há tal representação da pronúncia, nem diferenças sociais nas personagens. (INGE, 1984, p. 317, tradução nossa). 18 Mark Twain, o arquétipo dos escritores americanos, é um observador acurado, cujos romances são ‘extravagantes aventuras cheias de amor’. Em Huckleberry Finn, ele estabeleceu a proeza do estilo coloquial que impulsionou a literatura americana e, assim, transbordando no mundo da literatura. (INGE, 1984, p. 410, tradução nossa). 80

Nossa fortuna crítica sobre Mark Twain se estenderia sobremaneira se transcrevêssemos apenas parte da crítica sobre ele. Existe, atualmente, uma enciclopédia com o nome The Oxford Mark Twain. Em cada volume dessa enciclopédia, críticos, romancistas, jornalistas, humoristas, colunistas, fabulistas, poetas, escritores e dramaturgos escrevem sobre o que Twain lhes deixou. Por que continuamos lendo Mark Twain? O que nos atrai? Sua perspicácia? Seu humor? Sua coragem? Sua compreensão sobre quem e o que somos?

Talvez continuamos lendo Mark Twain porque (citaremos Arthur Miller para responder) “ [ ] he wrote much more like a father than a son. He doesn’t seem to be sitting in class taunting the teacher but standing at the head of it challenging his students to acknowledge their own humanity, that is their immemorial attraction to the untrue”19. (TWAIN, 1997, p. 36).

Dados que constatam a trajetória antiimperialista de Mark Twain comporão o capítulo que se segue com o propósito de elucidarmos o pensamento antiimperialista que contempla, veladamente, a obra do autor até 1900 – após essa data, Twain declara- se, abertamente, antimperialista. Pautaremos, outrossim, o caminho do Cometa Twain.

19 [..] ele escreveu mais como um pai que como um filho. Ele não parece estar sentado na sala de aula provocando o professor, mas sim postado em pé, à frente dela, desafiando seus alunos ao conhecimento de sua própria humanidade que é sua imemorável atração pelo que não é verdadeiro. (TWAIN, 1997 – p. 23, tradução nossa). 81

II. MARK TWAIN, O COMETA ANTIIMPERIALISTA

A PROCISSÃO ESTUPENDA

Na hora marcada ela atravessou o mundo na seguinte ordem:

O SÉCULO XX – Uma figura loura e jovem, bêbada e imoral, levada nos braços de Satã. Uma bandeira com o lema “Agarre o que puder, guarde o que agarrar”. Guarda de honra: Monarcas, presidentes, chefes políticos, ladrões, condenados, todos vestidos a caráter e trazendo os símbolos de sua profissão.

CRISTANDADE – Uma matrona imponente vestida com túnicas encharcadas de sangue. Sobre a cabeça, uma coroa dourada de espinhos; empaladas nos espinhos as cabeças sangrentas de patriotas – bôeres, boxers, filipinos, árabes; numa das mãos uma funda, na outra, a Bíblia, aberta no texto “Faça aos outros”, saindo do bolso uma garrafa com o rótulo “Trazemos a voz às bênçãos da civilização”. Colar: algemas e um pé de cabra. Seguidores: de um lado, a Matança, de outro, a Hipocrisia. Bandeira com o lema “Ama os bens de teu próximo como a ti mesmo”. Insígnia: a bandeira negra. Guarda de Honra: missionários e soldados alemães, franceses, russos, carregados de saques. E assim por diante, com uma seção dedicada a cada nação da Terra, encabeçada pela bandeira negra, cada uma trazendo símbolos horríveis, instrumentos de tortura, prisioneiros mutilados, colonizados de corações partidos, jangadas cobertas de cadáveres sangrentos.

Mark Twain em “Saudação do século XIX ao século XX” Artigo não publicado na época (1901)

Mark Twain, Patriotas e Traidores

82

1. A APARIÇÃO DO COMETA TWAIN

Tive apenas duas grandes ambições na vida. Uma, ser piloto de navio e a outra, pregador do Evangelho. Consegui uma, fracassei na outra porque não tive cabedal suficiente (isto é, religião). (. . .) Mas eu tinha uma “vocação” para a literatura de pouca monta (isto é, para escritos de humor). Nada que alguém possa se orgulhar, mas é o que mais me convém. Mark Twain, Dicas Úteis Para uma Vida Fútil

A aparição do cometa Halley se deu em 16 de novembro de 1835. Mark Twain nasce em 30 de novembro do mesmo ano. Setenta e cinco anos após, em 20 de abril de

1910, reaparece o cometa. E, em 21 de abril do mesmo ano, morre Mark Twain.

De acordo com Albert Bigelow Paine, o primeiro biógrafo de Mark Twain, em seu livro, Mark Twain, A Personal and Literary Life of Samuel Langhorne Clemens, de 1923, os primeiros sintomas de problemas cardíacos do biografado apareceram em

1909 e, com isso, o autor preparou-se para sua partida: “I came in with Halley’s Comet in 183520”, disse Twain a Paine. “It’s coming again next year and I expect to go out with it. It will be the greatest disappointment of my life if I don’t go out with Halley’s

Comet”21. (PAINE apud TWAIN, 2003, p. 56)

Como a data indica, Mark Twain realizou seu desejo. Nasceu apenas catorze dias após o Perihelius (do Grego, Peri – em torno de; Helius – Sol), pois o cometa emergiu do outro lado do Sol , morrendo, apenas um dia, após o Perihelius, em 1910.

O que fazem os cometas? Eles iluminam o Universo, deixando, em seu rastro de luz, o momento da parada para a reflexão, para a observação e, também, em alguns, a parada para o “estranhamento”. Seu pó cósmico sugere mudanças, traz novas luzes,

20 Eu vim com o cometa Halley em 1835. (PAINE apud TWAIN, 2003, p. 56, tradução nossa). 21 Ele está chegando novamente no próximo ano e eu espero ir com ele. Será o maior desapontamento de minha vida se eu não partir com o cometa Halley. (PAINE apud TWAIN, 2003, p. 56, tradução nossa). 83 emana, até mesmo, novos pensamentos que gerarão inusitadas pesquisas, estudos, reflexões e análises.

Buscamos, no dicionário de símbolos, o significado de “cometa” e pudemos observar como ele era visto em outros tempos.

No antigo México, como no antigo Peru, a passagem dos cometas era observada pelos padres e adivinhos. Constituíam um mau presságio, anunciador de uma catástrofe nacional, como fome, guerra desastrada, morte próxima do rei. Tanto a tradição asteca quanto a inca faz menção de um cometa que teria anunciado a Montezuma (Moctezuma) II e ao inca Huayna Capac a chegada dos espanhóis e a queda do império. No México, os cometas eram chamados serpentes de fogo ou estrelas que fumam (fumegantes). Crença análoga existe entre os bantos do Kassai (Kasai), no Zaire, para os quais a aparição de um cometa é prenúncio de grandes desgraças ou de graves ameaças à comunidade. Um cometa precedeu à morte de César. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1994, p. 268)

No entanto, Mark Twain subverte a simbologia e o imaginário e, ao contrário do verbete, deixa-nos contemplações surpreendentes em relação às suas idéias, tanto na

Literatura, como na sua, quase oculta, postura antiimperialista.

A condição de inegável celebridade de Mark Twain sempre contribuiu, ironicamente, para que seus escritos antiimperialistas fossem, como ocorre ainda hoje, relativamente desconhecidos, e pouco presentes no campo dos Estudos Literários e

Historiográficos. Isso se deve à própria história do destino editorial de seu trabalho, após sua morte. Seria eufemismo falarmos em omissão ou em mero mascaramento da produção relacionada ao tema do Imperialismo e das freqüentes e veementes referências feitas a ele por Mark Twain, principalmente nos últimos anos de sua vida. 84

O termo correto é censura, e a posição de destaque que o autor ocupa no cânone literário norte-americano atesta esse aspecto, tornando-o inequívoco, sobretudo a partir do minucioso levantamento que vem sendo realizado há cerca de dez anos por Jim

Zwick, a quem devemos neste capítulo as edições críticas e os estudos historiográficos utilizados como base para compormos nossa reflexão.

Não há muitos outros escritores da literatura norte-americana a terem alcançado a popularidade de Mark Twain, seja entre a crítica, em geral, seja no setor editorial e na indústria da cultura.

Dialogando com nossa dissertação de Mestrado, Humor e Preconceito em The

Innocents Abroad, de Mark Twain, encontramos um trecho interessante de sua fortuna crítica:

Twain já foi chamado de o Cervantes americano, Homero, Tolstoy, e, até mesmo, de Shakespeare da América. Howells, seu particular amigo, o cognomina de “O Lincoln da Literatura Americana”. Ernest Hemingway dizia que toda literatura americana provém de um só livro de Mark Twain, Huckleberry Finn. O presidente Franklin Delano Roosevelt retirou o termo New Deal, do livro de Twain, A Connecticut Yankee in King Arthur’s Court. O livro The Gilded Age nomeou toda uma época. Bernard Shaw, certa vez, escreveu a Twain: “Os historiadores da América terão como fonte de consulta indispensável, a sua obra, da mesma forma que os historiadores franceses procuram se nortear nos tratos políticos de Voltaire. (DOCA, 2000, p.17)

Homem de múltiplos talentos, Twain foi humorista, ficcionista, jornalista, conferencista e, acima de tudo, crítico das mudanças sociais registradas nos Estados

Unidos no período compreendido entre o final da Guerra da Secessão, em 1865, e o início do século XX. Todo teor de crítica de seu trabalho, em relação ao imperialismo, em geral, e ao expansionismo imperialista norte-americano, em particular, foi deliberadamente mantido, durante décadas, à margem das edições e dos estudos 85 acadêmicos, mostrando ter sido objeto de acirrada censura, por parte do establishment editorial e acadêmico norte-americano.

Inicialmente um defensor manifesto do processo de anexações territoriais, empreendido pelos Estados Unidos, Twain veio, gradativamente, a tornar-se um crítico ferrenho da rapina imperialista praticada pelo país, o que o levou, em seu retorno em

1900, após longa ausência, a fazer-se membro ativo da Liga Antiimperialista Norte-

Americana. A partir desse momento, todo seu prestígio literário e seu talento na expressão escrita e oral, foram colocados a serviço da causa antiimperialista, dando origem a uma produção extensa e diversificada, que inclui artigos, cartas, panfletos, ensaios e textos satíricos.

De fato, Mark Twain ilumina novas posturas. Seu pó cósmico paira pelo universo. Sua causa é nobre. Ela vem instigando outros críticos e pensadores a seguirem o rastro do cometa twainiano.

2. A TRAJETÓRIA DO COMETA TWAIN

A biografia de Mark Twain é longa e assombrosamente prolífica em várias áreas.

Seu nome verdadeiro era Samuel Langhorne Clemens, oriundo da pequena cidade de

Flórida, no estado do Missouri. A primeira parte de sua infância foi passada na cidade de Hannibal, no mesmo estado, às margens do rio Mississípi. A família era proveniente do estado de Tennessee, no Sul, e a atmosfera social de Hannibal assemelhava-se muito à das cidades sulistas, principalmente devido à vigência da escravidão. 86

O menino Clemens cresceu em um ambiente onde presenciou a opressão, o domínio e, muitas vezes, a injustiça. Vivenciou, aos 10 anos, a história de um escravo que foi acusado injustamente de estuprar uma moça branca e, depois, linchado nas redondezas de Hannibal. Ver texto, em anexo, publicado no jornal Buffalo Express, em

1869, sem assinatura, que trata das injustiças sofridas pelos negros nos Estados

Unidos, nessa época (p.264). Se essas memórias da infância e adolescência sedimentaram algumas obras de Mark Twain, elas também ecoaram na memória de muitos americanos, que cresceram no Sul, no período que antecedeu à Guerra Civil.

A pequena cidade onde cresceu Mark Twain, Hannibal, se localizava em uma região fronteiriça, atravessada pelas enormes balsas e barcaças, que subiam e desciam o rio, constantemente, cruzada por viajantes e peregrinos das mais diversas procedências, muitos dos quais fugitivos, e nela, o pequeno Clemens viveu a primeira parte de infância. Escreve Mark Twain, mais tarde, sobre essa fase de sua vida:

If I confine myself to boy life at times, it is because that life had a peculiar charm for me, and not because I was unfamiliar with other phases of life22. (SMITH, 1967, p. 74)

Aos doze anos, com a morte de seu pai, Twain se vê na necessidade de trabalhar e, tornando-se aprendiz dos impressores locais, emprega-se como tipógrafo e, posteriormente, como jornalista, vindo a trabalhar no jornal local de Hannibal, dirigido por seu irmão mais velho, Orion. É nesse jornal que Twain inicia sua carreira de ficcionista, escrevendo pequenas histórias humorísticas sob o pseudônimo de W.

Spaminondas Adrastas Blab.

22 Se eu, às vezes, detenho-me à minha infância é porque aquela vida teve um significado especial para mim, não porque as outras fases não tiveram importância. (SMITH, 1967, p. 74, tradução nossa). 87

Um período de profundas mudanças, tanto domiciliares, como profissionais, inicia-se, para ele, ao completar dezoito anos. Essas mudanças, que se estendem por cerca de quatro anos, levam-no a estabelecer-se sucessivamente em cidades localizadas entre o Meio-Oeste e o Leste. Decidido a empreender uma viagem ao Sul,

Twain desce o Mississípi rumo a Nova Orleans, num dos famosos barcos a vapor característicos desse período (steam boat). A viagem viria a transformar-se num marco importante de sua vida: nela, ele conhece o veterano piloto de bordo Horace Bixby, e inicia o aprendizado do ofício de piloto, que se estende durante quatro anos. É na experiência adquirida na arte da navegação do Mississípi que o jovem Samuel trava contato com a expressão, que posteriormente se converteria em seu próprio pseudônimo literário – Mark Twain. Guiado pelo veterano piloto Bem Thornburgh, nas passagens de difícil travessia, o aprendiz aguardava ouvir do mestre o grito de aviso, informando que a profundidade atingida já permitia seguir viagem. Esse grito era o esperado “mark twain” (indicador da profundidade de 3,65m), informando que a barra já havia sido transposta e que era possível seguir a todo vapor.

O início da Guerra Civil, em 1861, vem interromper o tráfego fluvial entre o Sul e o Norte, e a pilotagem de vapores deixa de ser uma atividade lucrativa. Engajado numa tropa de Confederados voluntários, Twain desloca-se até o então recém- organizado território de Nevada. Após um período inicial, em que se põe à procura de jazidas de prata e especula em reivindicações de terras, emprega-se como repórter no

Enterprise, jornal local para o qual escreve pequenas histórias humorísticas. É nessa

época que, pela primeira vez, utiliza o pseudônimo com o qual viria a notabilizar-se. 88

Em 1864, um desentendimento com um jornalista local obriga-o a deixar a cidade. Estabelecendo-se temporariamente em São Francisco, Twain trabalha como repórter para o Golden Era. A tarefa, exercida na qualidade de free-lancer, lhe dá condições de encontrar tempo para a prospecção de ouro nas montanhas da Califórnia e para uma viagem às Ilhas Sandwich, cujos custos ele paga com colaborações para o

Sacramento Union, sob a forma de cartas. E, é precisamente assim, que Twain haveria de passar os anos que se seguem, firmando-se como repórter nacional e realizando viagens que se estendem até a Europa e o Oriente Próximo. Esse período proporciona- lhe o primeiro contato com uma cultura estrangeira in loco, assim como seus primeiros contatos com povos que sofrem na carne o processo expansionista estadunidense e haveria de dar-lhe os primeiros discernimentos na contemplação de uma consciência crítica quanto à política externa norte-americana.

Juntamente ao trabalho de correspondente, Twain inicia sua jornada de conferencista, utilizando seu olhar crítico e a sua fluência vernacular ao contar casos e relatar as experiências de viagem. O sucesso é tão grande, que sua primeira turnê, apresentando palestras, rende-lhe uma série de dezesseis apresentações por todo o país.

Sua fama literária se faz sentir já no período posterior ao de sua viagem às Ilhas

Sandwich, em 1866, quando ele, de passagem por Nova York, trata de publicar seu primeiro livro, baseado em histórias que ouvira na região das Sierras, de Nevada: A

Célebre Rã Saltadora do Condado de Calaveras e Outras Histórias. Twain era agora colaborador não apenas do Golden Era, da Califórnia, mas também do Tribune, de

Nova York, e sua popularidade aumentava progressivamente, não apenas sob a forma 89 impressa, mas também por intermédio das conferências, que o levaram a cruzar o país sucessivas vezes.

Em 1867, Mark Twain zarpa para a Europa e Oriente e cognomina seus companheiros de viagem de peregrinos, fazendo alusão ao pequeno grupo de colonizadores e separatistas da Igreja da Inglaterra, que se estabelece em Plymouth,

Massachussets, e funda a primeira colônia do Norte, em 1620 e, também, remetendo aos peregrinos de John Bunyan, como vimos anteriormente. Assim, escreve The

Innocents Abroad or The New Pilgrim’s Progress – Os Inocentes no Exterior ou a

Jornada dos Novos Peregrinos.

Em 1870, um acontecimento indica uma mudança de rumo em sua vida, de incessantes e incansáveis viagens: o casamento com a filha de um rico industrial de

Nova York, Olívia Langdon, que ele cortejara insistentemente. Com a ajuda econômica do sogro, Twain compra parte de um jornal em Buffalo, em 1871, e, no ano seguinte, estabelece-se em uma luxuosa residência construída em Hartford, em meio à elite da Nova Inglaterra. Nasce sua primeira filha Suzan e ele parecia aclimatado aos atos da burguesia, que caracterizavam os moradores de Hartford. Alguns de seus trabalhos já eram, nessa época, conhecidos nacionalmente.

The Innocents Abroad atingira a casa de cem mil exemplares vendidos, e assim,

Twain podia desfrutar a estabilidade financeira de que agora dispunha, e viver confortavelmente da profissão de escritor. Inicia-se, assim, um período prolífico e socialmente agitado.

Em uma viagem à Inglaterra, em 1874, trava contato pessoal com algumas das celebridades do mundo literário de então: o poeta Robert Browning, o escritor russo 90

Ivan Turgueniev e o excêntrico reverendo e escritor Lewis Carroll. Nesse mesmo ano nasce sua segunda filha, Clara, e, em 1876, publica As Aventuras de Tom Sawyer. Um contrato editorial para um livro sobre a Europa, leva-o a viajar novamente entre abril de 1878 a setembro de 1879, período em que visita a França, a Bélgica e a Holanda.

Para Twain, as viagens estavam diretamente ligadas à sua produção literária: em

1880, ano que nasce sua terceira filha, Jean, ele publica Um Vagabundo no

Estrangeiro e, nos anos seguintes, O Príncipe e o Plebeu (1881), A Vida no Mississípi

(1883), As Aventuras de Huckleberry Finn (terminadas em 1884 e publicadas em1885) e Um Ianque na Corte do Rei Arthur (1889), interessante sátira política que faz alusão, implicitamente, aos processos expansionistas e imperialistas do Reino Unido e dos

Estados Unidos.

O espírito empreendedor que sempre o caracterizou leva-o, em meio a essa fase de intensa criação, a associar-se a um amigo, James Paige, criador de uma máquina tipográfica, que ele resolve financiar. Tratava-se de uma máquina de habilidade e rapidez superiores às habituais, mas o surgimento do linotipo, nesse mesmo período, rapidamente contribui para que a mesma se tornasse obsoleta. Utilizado em caráter experimental pelo Chicago Harold, a máquina é considerada um fracasso. Twain, que havia investido nela contando com um retorno lucrativo, quase vai à falência, sendo obrigado a encerrar sua participação na casa editorial Charles L. Webster & Co; que publicara muitos de seus trabalhos.

A solução lhe veio por meio da ajuda de Henry Hatson Rogers, executivo da

Standard Oil e um dos industriais mais bem-sucedidos daquele momento. Como admirador de Twain, Rogers intercedeu em seu favor, além de orientá-lo com relação à 91 questão dos direitos autorais, fazendo de Livy (Olívia Clemens, mulher de Twain), a beneficiária oficial.

Em 1890, duas perdas levam Twain a fechar sua casa em Hartford e transferir-se para a Europa: as mortes de Jean, sua mãe e de Olive, sua sogra. Entre 1892 e 1900 viaja incansavelmente, apresentando conferências e escrevendo. As viagens vão aos poucos modificando sua visão no que diz respeito à propagada legitimidade do imperialismo, ao mesmo tempo que lhe dão experiência de convívio com diferentes povos e culturas. Em 1893 e 1894, retorna aos Estados Unidos. Em 1895, um contrato com a editora Harper & Brothers, para um livro sobre viagens, leva-o a uma turnê, que inclui visitas à Colúmbia Britânica, ao Havaí, às Ilhas Fiji e à Nova Zelândia.

Entre 1896, ano em que publica um livro sobre a vida de Joana d’Arc, e 1897, seguem-se as viagens à Índia, à África do Sul, à Inglaterra, à Suíça e à Áustria, e, em

1898, à Tchecoslováquia, e, novamente, à Inglaterra e à Suécia.

Mesmo com a perda de sua filha mais velha, Susan, aos 23 anos, em 1896, Twain não se deixa abalar, como atesta o seu cronograma de conferências e sua produção de todos esses anos pelo continente europeu. Em 1899, ano em que escreve O Homem que Corrompeu Hadleyburg, ele volta à Inglaterra.

Em outubro de 1900, aclamado e recebido como uma celebridade nacional,

Twain retorna aos Estados Unidos, fixando-se em Riverdale. Com o agravamento do estado de saúde de sua mulher, resolve voltar à Europa, onde permanece entre 1903 e

1904. O falecimento de sua mulher, ocorrido em Florença, e a crise nervosa que acometeu sua filha Clara, levam-no a voltar aos Estados Unidos, estabelecendo-se em

Nova York, em 1905. 92

Famoso e homenageado pelos seus setenta anos, Twain publica Os Diários de

Adão e Eva e é recebido na Casa Branca pelo, então, vice-presidente Theodore

Roosevelt. Uma série de questões relacionadas aos direitos autorais, preocupam-no, e

Twain dirige apelo aos membros do Congresso, procurando estimular a elaboração de uma legislação coerente.

Apesar das adversidades atravessadas e da agitação à sua volta, é um período bastante produtivo, em que ele publica The 30,000 Bequest, What is Man? e Chapter’s from my Autobiography e, no ano seguinte, Christian Science.

Em 1907, Twain realiza sua última viagem à Inglaterra, onde recebe um título honorário na Universidade de Oxford. Nesse mesmo período, Albert Bigelow Paine é convidado por ele a tornar-se seu biógrafo oficial e, passando a morar na residência do escritor, dá início à compilação de seus escritos e à elaboração do trabalho. Apesar de ter fixado residência em Connecticut, Twain realiza sucessivas viagens às Bermudas, em 1908, 1909, ano em que publica Shakespeare Está Morto? e em 1910, ano em que vem a falecer, aos 75 anos, um ano após a morte de sua filha caçula, Jean.

3. O RASTRO DO COMETA VAI ALÉM DO ÍCONE

Apesar de sua inegável celebridade e da elevada estima que tantas gerações de leitores e críticos lhe dedicaram, Twain foi sempre, predominantemente, considerado autor de uma obra infanto-juvenil, o que, sem dúvida, também contribuiu para que se ignorasse o aspecto da militância antiimperialista. Isso se deve, em grande parte, à sua inclinação ficcional para uma literatura “de ação”, voltada ao desenvolvimento de enredos repletos de acontecimentos inesperados e de reviravoltas do destino dos 93 protagonistas. Sem sombra de dúvida, existe, aí, uma afinidade com os segmentos que a indústria cultural viria a tornar indissociáveis de uma faixa de leitores mais próximos

à adolescência.

Por outro lado, o vigor juvenil de seu estilo vernacular, permite-lhe tratar de forma pitoresca e inventiva uma enorme gama de temas, seja em um estilo mais propriamente realista e impregnado da tão propalada “cor local”, seja em um campo mais abertamente fantasioso, em que se permite liberar sua imaginação e desenvolver alegorias históricas e políticas.

Na produção ensaística e jornalística, Twain não deixou nunca de lado a sua bem- humorada ironia, que se transformava em corrosivo sarcasmo, sempre que necessário, e com freqüência se associava ao recurso do paradoxo para produzir páginas de grande contundência crítica, quase sempre dotadas de caráter paródico.

Recorremos à nossa dissertação de mestrado, que, nesse tema do humor, faz uso dos preceitos teóricos de Mikhail Bakhtin,

Samuel Clemens criou, ou tornou-se Mark Twain, que provocava o riso, mas era algo mais que um bufão. Segundo Mikhail Bakhtin, em seu ensaio Funções do Trapaceiro, do Bufão e do Bobo no Romance, o bufão cria em volta de si microcosmos e cromotopos especiais. A existência desta personagem tem um significado que não é literal, mas figurado: sua aparência, tudo o que faz e diz não tem sentido direto e imediato, mas sim figurado e, às vezes, invertido. Não se pode entender o bufão literalmente, ele não é o que parece ser. A existência dele é o reflexo de alguma existência. Os bufões são os saltimbancos da vida. São personagens estrangeiras nesse mundo, pois não se solidarizam com nenhuma situação de vida existente nele, elas vêem o avesso e o falso de cada situação, por isso, podem utilizar qualquer situação de vida somente como máscaras. Estas figuras que riem são, também, objeto de riso. Seu riso assume o caráter público da praça do povo. Elas restabelecem o aspecto público da representação, pois toda a existência dessas figuras está totalmente exteriorizada. Sua função consiste nisso: viver no lado exterior. Com isso, cria-se um modo particular de exteriorização do homem por meio do riso paródico. 94

Quando essas personagens permanecem no palco real, elas são perfeitamente compreensíveis e tão familiares que parecem não despertar nenhum problema. Portanto, elas exercem influência sobre o estatuto do próprio autor e sobre o seu ponto de vista. O problema geral da autoria pessoal complica-se, aqui, pela necessidade de ter alguma máscara importante não inventada, que defina tanto a posição do autor em relação à vida que ele evoca (como e de onde ele, um homem particular, vê e revela toda essa vida privada), como também a sua posição em relação aos leitores e ao público. O humor, escreveu certa vez Mark Twain, é apenas uma fragrância, um adorno. Samuel Clemens viu o mundo como vê um menino, em suas infinitas possibilidades de liberdade e diversão, e em suas obscuras profundezas de desilusão. E, tal como o menino embaraçado, riu pela primeira vez, fê-lo de forma a que o riso que lhe respondesse, risse com ele, e não dele. Mesmo quando fazia críticas sérias, Mark Twain aparentava algo cômico, parecendo sugerir que estivesse ele em mais alegre disposição, teria ridicularizado o assunto. (DOCA, 2000, p. 49-51)

Dentre as obras mais conhecidas de Twain destacam-se alguns títulos considerados clássicos da literatura norte-americana, como os romances As Aventuras de Tom Sawyer, de 1876, O Príncipe e o Plebeu, de 1881, As Aventuras de

Huckleberry Finn, de 1884, e Um Ianque na Corte do Rei Arthur, de 1889.

As Aventuras de Tom Sawyer relatam as peripécias de Tom, um garoto da região próxima às margens do Mississípi, experimentadas durante um verão da década de

1840. Juntamente com seu amigo Huck Finn, o menino pobre, cujo pai é o bêbado da cidade, Tom envolve-se numa aventura noturna, em pleno cemitério e acaba presenciando o assassinato do Dr. Robinson, médico e cientista, pelo cruel Injun Joe.

A situação complica-se quando um inocente (Muff Potter) é acusado pelo crime. Após uma série de aventuras que envolvem a fuga dos dois garotos, acompanhados pelo amigo Joe Harper para uma ilha deserta (a ilha Jackson), em meio ao Mississípi, a verdade é revelada: Tom encontra o tesouro de Injun Joe e, com a ajuda de Huck, acaba sendo aclamado como um herói local. 95

O Príncipe e o Plebeu é uma fantasia com episódios reais da história da

Inglaterra, ocorridos em 1547, quando morre o Rei Henrique VIII e seu filho Eduardo

VI assume o trono. O enredo concebido por Mark Twain, pouco após a morte do Rei

Henrique, o jovem herdeiro da coroa inglesa, troca inadvertidamente de lugar com o sósia, Tom Canty, um pequeno indigente. As experiências por que passam, em suas novas confissões, colocam os meninos em situações desafiadoras: Eduardo é atormentado por John Canty, o pai de Tom, ladrão e dado à bebida. Logo na primeira noite, apanha por afirmar ser o príncipe de Gales, afirmação que repete constantemente, sem conseguir que acreditem em suas palavras. Logrando finalmente escapar, encontra Miles Hendon, um nobre que retornava à Inglaterra após dez anos de ausência, período em que lutou com o soldado e acabou sendo feito prisioneiro.

Hendon decide protegê-lo, apiedando-se dele por julgá-lo louco.

Também Tom passa por alguém fora de seu perfeito juízo e é assistido pelo

Conde de Hertford, o lorde protetor do jovem rei. Apesar de desempenhar muito bem seu papel real e de tomar decisões bastante humanitárias com relação a seus súditos,

Tom avista sua mãe verdadeira em meio ao povo, em pleno dia de coroação, e é tomado de culpa diante da sua própria conduta. Eduardo aparece, durante a cerimônia, a tempo de reclamar seu verdadeiro lugar como rei.

As Aventuras de Huckleberry Finn relatam as aventuras de Huck (o mesmo que participara do enredo de As Aventuras de Tom Sawyer) e Jim, um escravo fugido, em seu percurso Mississípi abaixo, em uma pequena jangada. O enredo inicia-se pouco depois das cenas finais de As Aventuras de Tom Sawyer. Os capítulos iniciais 96 apresentam o mundo divertido e emocionante de Tom, Huck, Joe Harper e outros garotos, que resolvem formar uma gangue de aventureiros.

O conflito se apresenta quando Huck escapa do cativeiro que lhe havia sido imposto por seu pai, o bêbado Pap Finn e, juntamente com Jim, um escravo fugido proveniente de Hannibal, no Missouri, foge pelo Mississípi com destino a Ohio, estado onde a escravidão já fora abolida e onde Jim poderia viver e trabalhar como homem livre.

O nevoeiro faz com que eles errem o percurso e se envolvam em uma série de peripécias com King e Duke, dois trapaceiros que conhecem no caminho. O desfecho vem na seqüência de uma série de aventuras que contam com a participação de Tom

Sawyer e apresentam a decisão de Jim, mesmo após constatar-se liberto, de marchar para os territórios onde a abolição já havia sido decretada.

Um Ianque na Corte do Rei Arthur é uma fantasia política, que apresenta as aventuras de Hank Morgan, cidadão norte-americano que, golpeado durante uma luta em Hartfield, nos Estados Unidos do século XIX, cai inconsciente e acorda na

Inglaterra no ano de 538, em plena corte do lendário Rei Arthur. Ao longo de um período de aproximadamente dez anos de permanência na corte arthuriana, Morgan acaba introduzindo uma série de modificações na sociedade da época.

O desenrolar dos fatos é relatado por um narrador, que conhecera Morgan no castelo de Warwick, ouvira dele a história surpreendente de suas aventuras e, por fim, ganhara um manuscrito contendo a íntegra de sua fabulosa história, desde o momento em que despertara na Inglaterra lendária dos tempos arthurianos e fora levado a

Camelot por um cavaleiro. 97

A leitura do manuscrito pelo narrador ativa o desenvolvimento do enredo, mediante uma estrutura episódica, enfatizando o aspecto surpreendente da forma como

Morgan, usando sempre de astúcia, escapa aos perigos mais incríveis. Fazendo-se passar por um mago, capaz de fazer obscurecer o próprio Sol, Morgan, que na verdade se vale de um eclipse, acaba sendo nomeado Ministro Perpétuo e Executivo do Rei.

O desejo de aprimorar a qualidade de sua vida na corte leva-o, pouco a pouco, a introduzir pequenos utensílios, como sabonetes, livros, canetas e tinta. Aos poucos sua notoriedade vai crescendo, a ponto de lançar sombra até mesmo ao Mago Merlin, seu poderoso rival.

Passam-se muitos anos, durante os quais Hank introduz importantes mudanças na sociedade inglesa do período, fundando indústrias e escolas, dando treinamento a professores e apoiando a tolerância religiosa.

Nos anos que se seguem, Hank é responsável pela implementação de grandes progressos sociais e técnicos, inventando o telégrafo, o telefone, o barco a vapor e as ferrovias.

As experiências de Hank, no século VI, terminam quando ele, envenenado por

Merlin, é condenado a dormir por treze séculos. Merlin é morto ao tropeçar e cair sobre uma cerca eletrificada. A história se encerra quando o narrador, ao concluir o manuscrito, vai espiar o adormecido Hank, que, em meio ao sono, balbucia nomes de personagens dos eventos relatados.

O trabalho ficcional de Mark Twain transcende em muito os parâmetros dentro dos quais a tradição crítica e acadêmica veio a imortalizá-lo como ícone da Literatura

Norte-Americana. A sutileza crítica, prenunciada na extraordinária riqueza de temas e 98 formas trabalhados, vai muito além do mero registro cronístico saboroso, e abre significativas possibilidades de discussão do processo vertiginoso de transformações vividas pelo país, passando pela Guerra Civil, pela ocupação do Oeste, pela urbanização em suas variantes regionais, pelos conflitos raciais, pela luta a favor do voto feminino e pela ascensão do país à condição de potência internacional nos planos político e econômico.

A militância antiimperialista, abraçada por ele no momento (1898) em que desfruta indiscutível prestígio literário nacional e internacional, encontra-se presente, ainda que muito embrionariamente, nas entrelinhas de obras anteriores de sua produção. Ao longo da cronologia de seus trabalhos, pode-se acompanhar, implicitamente, a gradativa constituição de uma consciência crítica em relação aos mitos da nacionalidade norte-americana e aos seus pressupostos e contradições. No estágio atual de estudos da obra de Twain, é precisamente essa a diretriz de trabalho mais estimulante, pelo fato de convidar ao reexame de sua produção e de desdobrar-se em instigantes revelações e debates, de surpreendente atualidade.

Imortalizado nas tradições literárias e culturais dos Estados Unidos e submetido à institucionalização daí decorrente, o nome de Twain foi, durante décadas, veiculado por iniciativas de propagação de uma “americanidade” pouco condizente com a militância antiimperialista que desenvolveu.

99

4. O ASTRO MARK TWAIN E O NEBULOSO IMPERIALISMO NORTE- AMERICANO

“Parece-me que nosso prazer e dever seria tornar livres aquelas pessoas e deixar que elas próprias resolvam sozinhas as suas questões internas. E é por isso que sou antiimperialista. Eu me recuso a aceitar que a águia crave suas garras em outras terras”.

MARK TWAIN

A águia – bald eagle - símbolo nacional norte-americano, é vista, de acordo com a epígrafe twainiana, como a ave de rapina que usurpa povos e terras minoritárias, ao cravar neles suas unhas. Buscamos, no Dicionário de Símbolos, seu significado, para fazermos um estudo desse símbolo nacional norte-americano:

rainha das aves, encarnação, substituto ou mensageiro da mais alta divindade uraniana e do fogo celeste – o Sol, que só ela ousa fixar sem queimar os olhos. Símbolo de tamanha importância, que não existe nenhuma narrativa ou imagem, histórica ou mítica, tanto em nossa civilização quanto em todas as outras, em que a águia não acompanhe, ou mesmo não represente os maiores deuses e os nossos 100

maiores heróis. Símbolo de força, de coragem, de penetração, em virtude da acuidade de sua visão. Entretanto, por causa de seu caráter de ave de rapina, que carrega as vítimas com suas garras para conduzi- las para lugares de onde não podem escapar, a águia simboliza, também, o desejo de poder inflexível e devorador.

(CHEVALIER & GHEERBRANT, 1993, p. 22-26)

Segundo Eliade, em seu livro, Imagens e Símbolos, “os símbolos jamais desaparecem da atualidade psíquica: eles podem mudar de aspecto; sua função permanece a mesma. Temos apenas de levantar suas novas máscaras”. (ELIADE,

1991, p. 13). Percebemos, nesse sentido, que a imagem da águia, para Twain, deixa de ter sua função de transmissora da coragem e força, transformando-se em “ave de rapina que crava suas garras em outras terras”. A águia passa a possuir, desta forma, uma nova máscara: a máscara do mal, da usurpadora e da devoradora inflexível.

Bald Eagle – Símbolo nacional norte-americano

101

O poema de Helen Spencer Payne (1850-1922), poeta da literatura indianista norte-americana, ainda carrega, em seu significado, o tom eufemista da simbologia, como veremos abaixo, em breve análise. Entretanto, na visão twainiana, essa águia deixa de ter sua beleza poética e passa a representar a formação injusta de um império; o medo e a subjugação dos colonizados, dos mais fracos e oprimidos.

A imagem da águia, assim, invoca a nostalgia de um passado mitificado, transformado em arquétipo. Esse passado contém, além da saudade de um tempo que acabou, mil outros sentidos: ele expressa o que poderia ter sido, mas não foi; a tristeza de toda existência que só subsiste quando cessa de ser outra coisa; o pesar de não viver na paisagem e no tempo o que ela representara um dia.

Percebemos, hoje em dia, que a figura emblemática da águia ao lado da bandeira norte-americana, diante dos inúmeros fatos relativos ao abuso de poder estadunidense, também tem a mesma conotação do Twain antiimperialista, tornando verdadeira a asserção de Eliade. Observemos, outrossim, como a águia é vista pelo sujeito lírico do poema:

Where Eagles Fly

Helen S. Payne

The coolness of the mountains and the deepness of the sea The blueness of the sky, The Eagles fly - They do not flee. The long amber grasses floating in the breeze, The smell of sweet flowers are just thoughts inside of me. Where men would never venture, That's where the Eagles fly On top of purple mountains You can hear their shrieking cry. In the mountains are their nests 102

Hidden from the prey

They won't be fools or be victims Or fall along the way. They fight for life, these large strong birds, They won't let it pass them by. Examples in our life should be. To fly where Eagles fly23.

(GOWER, 1990, p. 67)

A dinâmica do movimento permeia o poema de Payne. “O entrelaçamento de tensão de uma poesia de Rimbaud se estabelece por meio de energias semelhantes às da música” (FRIEDRICH, 1978, p.90), diz-nos o autor. Assim como o vai-e-vem da

águia, indo do alto das montanhas até as profundezas do mar, remetendo-nos ao espaço de seu vôo: o vôo livre, empreendedor e pleno é o movimento da música, com suas gradações de intensidade, alternância entre estagnação e alívio. Esses movimentos, mais que o conteúdo, ordenam a poesia, fazendo-nos idealizar a águia planando, flutuando no ar.

23 POR ONDE AS ÁGUIAS VOAM

Na brancura nevoenta das montanhas e na profundidade abissal do mar No azul etéreo do céu, As águias planam – não fogem Na amplidão da relva amarelecida Flutuando no ar, O doce perfume das flores são tão somente pensamentos meus Onde os homens nunca penetrariam É bem aí que as águias voam Do alto das montanhas arroxeadas Pode-se ouvir seu grito a crocitar Nas montanhas, constróem seus ninhos Escondidos das presas

Elas não seriam vítimas titubeantes a caírem durante o vôo Elas voam em direção à vida, esses grandes e fortes pássaros não permitindo que a vida feneça. Deveriam ser exemplos para nós Para voarmos por onde as águias voam. (GOWER, 1990, p. 67, tradução nossa) 103

A beleza poética das palavras, a dinâmica do movimento encontrada nos versos, a sonoridade das rimas interpoladas, realmente servem de argumentos para enaltecer a imagem da ave de rapina. E finda o “eu lírico” sugerindo que deveríamos ser como elas, diferentemente da águia de Mark Twain, já que para ele a águia tornou-se vulnerável (foi atingida em seu ninho) perfazendo uma ironia dramática.

Mark Twain chegou ao antiimperialismo pelos caminhos da incompreensão entre as raças. Já na tenra idade, entendia o racismo nos Estados Unidos, de uma forma que poucos de seus contemporâneos anglo-americanos o faziam. Durante a Guerra Civil

(1865), e como repórter em São Francisco, Mark Twain escreveu sobre as brutalidades sofridas pela população chinesa, causadas pela polícia nessa cidade, sem obter, porém, a permissão de publicação. “Vergonhosa Perseguição de um Garoto” foi publicado apenas em 1870, abordando o mesmo tema, dessa vez sob a forma de sátira paródica, marcada por uma ironia aguda e contundente.

A crítica de Twain, desencadeada a partir da notícia do apedrejamento de um chinês por um garoto de São Francisco, desenvolve-se de modo a expor, inequivocamente, os diferentes aspectos e implicações do episódio: a xenofobia arraigada na educação e cultura dominantes nos Estados Unidos, o interesse sensacionalista da imprensa, a existência da cobrança de taxas ilegítimas e absurdas, discriminando os cidadãos chineses e a desigualdade de tratamento por parte das autoridades policiais.

Em 1882, pouco mais de uma década após o episódio, o governo instituiria o Ato de Exclusão de Chineses, proibindo aos cidadãos chineses a entrada como imigrantes em todo o território norte-americano. O Ato só vem a ser repelido em 1942, quando a 104

China se aliou aos Estados Unidos por ocasião da entrada desse país na Segunda

Guerra Mundial. Transcrevemos, na íntegra, o artigo twainiano (ver anexo 3 p. 266):

Como vimos, Mark Twain escreve sobre a opressão racial, com um vigor maduro, usando uma nova e democrática linguagem literária, que mudaria para sempre a prosa norte-americana.

Embora o pensamento antiimperialista de Mark Twain não se relacione exclusivamente, à sua atuação na Liga Antiimperialista Americana, que vai de 1898 a

1910, foi sua entrada para essa associação que assinalou a forma mais sistemática sobre a elaboração de escritos relacionados ao tema. A adesão ao movimento antiimperialista foi, seguramente, a mais longa e significativa forma de ativismo político de sua vida, tendo fornecido farto material de inspiração a editores e cartunistas políticos da época.

No cerne específico da Liga, Twain foi, juntamente com William Dean

Howells24, a figura de maior projeção pública, e o estudo de sua participação na entidade e da produção a ela relacionada possui crucial importância para uma rediscussão crítica, tanto de sua obra, como do debate antiimperialista nos Estados

Unidos.

A história do processo da supressão da dimensão política do trabalho de Twain, dentro do movimento antiimperialista, associa-se diretamente à exclusão institucionalizada do imperialismo, como tema de reflexão e debate, seja no campo da formação cultural do cidadão estadunidense, seja no âmbito da pesquisa acadêmica. O

24 1837-1920. Escritor norte-americano e editor-chefe (1871-1920) do Atlântico Mensal (Atlantic Monthly), encorajou um grande número de escritores, entre eles Mark Twain e Henry James. Escreveu o romance A Ascensão de Silas Lapham (The Rise of Silas Lapham), de 1885, entre outros, e muitos trabalhos de crítica literária. Amigo pessoal de Mark Twain. (OUSBY, 1995, p. 413) 105 tratamento dispensado pela crítica aos escritos de Twain, desde o período que se segue a seu falecimento, indica que o esvaziamento do teor político de seu trabalho envolveu pressões políticas em vários níveis. Embora inúmeros outros autores tenham sido vítimas de mecanismos semelhantes, sua posição de inegável destaque no cânone literário norte-americano confere a essa história um especial interesse.

Como muitos escritores que viriam a tornar-se antiimperialistas proeminentes,

Twain acreditava, até seu retorno da Europa, em 1900, que a Guerra Hispano-

Americana, de 1898, havia sido travada, visando à libertação de Cuba do jugo da

Espanha; é o que atesta a carta escrita ao amigo e pastor de Hartford, Joseph Twichell.

Entretanto, logo ele mudou seu ponto de vista, assim que os fatos revelavam os verdadeiros propósitos das regras dos governantes americanos. A leitura cuidadosa do texto do “Tratado de Paris” leva-o a dar o primeiro passo no sentido de uma reavaliação desse julgamento e a concluir que a intenção política norte-americana era, claramente, a de subjugação.

Esse foi o momento em que, de forma pública e clara, Twain declarou-se abertamente antiimperialista, e é também o momento em que ele começa a sofrer ataques de antagonistas políticos e de críticos descontentes com suas posições. Em fevereiro de 1901, um detrator, em Albany, tentou desacreditá-lo afirmando que, se fosse levado realmente a sério por suas declarações, ele, com certeza, àquela altura, já teria sido no mínimo linchado. O comentário foi feito a propósito do fato de o escritor haver-se referido à bandeira norte-americana como uma bandeira desonrada. Twain respondeu de forma contundente num discurso em 23 de março, no Lotus Club:

106

Ele nada tinha de pessoal contra mim, exceto o fato de eu me opor à guerra política, e ele disse que eu era um traidor e não fui lutar nas Filipinas. Isso não prova nada. Não quer dizer que um homem seja um traidor. Onde está a prova? Somos 75 milhões aprimorando nosso patriotismo. Ele próprio fez a mesma coisa. Seria completamente diferente se a vida do país estivesse em perigo, sua existência em jogo; então – e esse é um tipo de patriotismo – seríamos todos voluntários ao lado da bandeira, e ninguém iria pensar se a nação estava certa ou errada; mas quando não se trata de qualquer ameaça à nação, mas apenas de uma guerrinha distante, então pode-se dar que a nação se divida em torno da questão política, metade patriotas, metade traidores, e ninguém será capaz de distinguir entre eles. (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 56)

Suas palavras corroboram a posição firmada logo após seu retorno da Europa, quando dissera aos repórteres que cobriram sua chegada, no final de 1900: “oponho- me a deixar que a águia ponha as suas garras sobre qualquer outra terra”. Uma série de discursos e entrevistas nos meses seguintes, já em 1901, vêm confirmar sua posição, como o discurso “Saudação do século XIX ao século XX”, proferido no final desse mesmo ano, atacando frontalmente as quatro manifestações exponenciais do poder imperial do momento: a tomada da Baía de Kiao Chow, na China, pela Alemanha; a ocupação da Manchúria pela Rússia; a Guerra dos Bôeres, na África do Sul e a Guerra

Filipino-Americana. A Saudação havia sido originalmente escrita para uso da Cruz

Vermelha, em uma série de noites de vigília, que ocorreria por todo o país na passagem do ano. Mas, a constatação de que seu nome estaria sendo usado para a publicidade do evento, levou Mark Twain a não autorizar a sua utilização. O texto veio a ser publicado em 30 de dezembro de 1900, pelo New York Herald e foi divulgado por todo o país por meio de pequenos cartões postais, impressos pela Liga

Antiimperialista da Nova Inglaterra.

Apresento aos senhores esta majestosa senhora chamada Cristandade – que volta encharcada, enlameada e desonrada dos ataques piratas a Kiao Chow, Manchúria, África do Sul e Filipinas; tem a alma cheia de maldade, o 107

bolso carregado de espólios e a boca cheia de pia hipocrisia. Dêem-lhe sabão e toalha, mas escondam o espelho. Dez, 31, 1900

Dêem-lhe o espelho; talvez ela negue a mentira. Ao ver como os outros a vêem. (TWAIN, 2003, p. 47)

Duas semanas após a publicação do discurso, Twain foi convidado a ocupar o posto de vice-presidente da Liga Antiimperialista, aceitando prontamente. Embora ele próprio não se imaginasse exercendo atividades exaustivas nessa função, ela lhe concedia um importante canal para a expressão da solidariedade à luta contra o imperialismo. O ensaio intitulado “Para aquele que vive nas trevas”, escrito um mês depois, viria a ser publicado sob a forma de panfleto, tendo sido, segundo Jim Zwick, a publicação sem dúvida mais popular da entidade (ver anexo 4 p. 268).

A Liga Antiimperialista havia sido fundada dois anos antes, em 1898, em Boston, logo após o final da Guerra Hispano-Americana, quando o governo norte-americano passou a demonstrar, abertamente, não estar disposto a libertar Porto Rico, Guam e as

Filipinas. Políticos, empresários, líderes trabalhistas, educadores, religiosos e intelectuais haviam aderido, afirmando seu apoio ao movimento.

Rapidamente, filiais da Liga organizaram-se por todo o país, arregimentando, entre outros, figuras cujas ligações com o movimento antiimperialista eram as mais diversas.

O imperialismo era uma questão polêmica em todos os movimentos sociais de então, e a oposição a ele aglutinou membros indiscutivelmente inconciliáveis em outras áreas. A Liga congregava tanto os setores que condenavam o imperialismo, por julgá-lo negativo para o trabalho, como outros que o condenavam por seus efeitos negativos para o mundo empresarial. A diversidade de opiniões abrangia, ainda, 108 racistas que levantavam a bandeira do antiimperialismo por entender que os territórios anexados iriam, ao final, tornar-se estados da união, levando, assim, à inclusão de povos considerados “inferiores” ao conjunto da população norte-americana. Estes setores, em particular, acabaram por afastar-se da entidade assim que o recém-firmado

“Tratado de Paris” se encarregou de deixar claro que o temor era infundado e que as colônias anexadas não haveriam de tornar-se estados: nas palavras do comissário de

Paz Whitelaw Reid, era necessário “resistir à doutrina insana que pressupõe que o governo deriva seus poderes e legitimidade do consentimento dos governados25”(ZWICK in TWAIN, 2003, p. 58)

A campanha contra a ratificação do “Tratado de Paris”, em janeiro de 1901, foi a primeira organizada pela Liga e destinava-se a denunciar a existência de campos de concentração, organizados por norte-americanos em território filipino e a cobrar do governo uma investigação a respeito (ver anexo 5 p. 270). Fazendo uso de uma propaganda intensiva e de uma grande diversidade de formatos e materiais, a Liga procurou utilizar-se, tanto quanto possível, da mídia disponível naquele momento, fazendo circular panfletos, folhetos, brochuras, livros, poemas avulsos, jornais, cartazes, circulares e cartas.

Sem dúvida alguma, Mark Twain manteve-se sempre atualizado em relação à literatura antiimperialista da época e recebeu uma grande variedade de livros e panfletos publicados pela Liga, entre os quais encontram-se os discursos de Carl

Schurtz26 enviados em dezembro de 1900, pronunciamentos de congressistas sobre a

25 Zwick, Jim. Mark Twain’s Anti-imperialist Writings in the American Century. (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 58) 26 (1829-1906), oficial do Exército, político e editor nascido na Alemanha, Senador por Missouri, de 1869 a 1875, disseminou as idéias políticas do Partido Republicano com seus discursos e, posteriormente, com seus editoriais. (TWAIN, 2003, p. 25) 109 captura do líder filipino Emílio Aguinaldo, a íntegra da Lei Tarifária Filipina, de 1901, panfletos sobre as atrocidades norte-americanas nas Filipinas, um panfleto e um livro de Louis F. Post (editor do jornal The Public), uma cópia do bem-conceituado estudo historiográfico de Henry Parker Willis intitulado Nosso Problema Filipino: Um estudo da Política Colonial Americana (nunca publicado no Brasil) e, provavelmente, cópias da maioria dos panfletos publicados pela Liga Antiimperialista de Nova York e pela

Liga Antiimperialista Nacional.

Foi no âmbito da Liga que Mark Twain fez suas mais importantes contribuições à causa antiimperialista. A condição de celebridade que desfrutava e sua indiscutível habilidade de escritor permitiram-lhe produzir para a organização vários documentos que circularam de costa a costa por todo o país, tanto separadamente, sob a forma de panfleto, como em jornais.

Também o ensaio “Para Aquele que vive nas Trevas”, ironizando a idéia da civilização como “bênção” concedida aos povos “libertados”, teve ampla circulação após ter sido publicado em um número de fevereiro de 1901, da North American

Review. Twain tornou-se, simultaneamente, e num curto espaço de tempo, o mais influente e o mais odiado crítico das políticas adotadas pela Casa Branca, fato que, na

época, veio a dividir seu próprio público leitor. Um admirador, em uma carta dirigida a ele nesse período resume bem a questão: “até aqui o senhor foi estimado pelos amigos que conquistou; agora o senhor deve ser estimado pelos inimigos que faz”27(ZWICK in TWAIN, 2003, p. 76)

27 Zwick, Jim, Mark Twain’s Anti-imperialist Writings in the American Century. (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 76). 110

A associação de Twain com a Liga irá desempenhar, a partir de então, uma influência marcante em seus escritos, além de levá-lo a empreender a revisão de uma série de princípios que defendera até pouco antes. Isso se dá, principalmente, no que diz respeito à idéia de uma “missão” norte-americana diante das demais nações e de uma suposta natureza “não-americana” do imperialismo. A afirmação de que os

Estados Unidos “importaram” o ideário imperialista da Europa e de que esse ideário era “estranho” à expansão dos ideais da República Norte-Americana, cai por terra diante da forma de atuação norte-americana no plano internacional e do discurso inegavelmente imperialista, que predomina no plano institucional em todo o país.

Muitos antiimperialistas defendiam esse mesmo ponto de vista, ou seja, acreditavam que o imperialismo era uma deturpação do verdadeiro americanismo e aceitavam como historicamente indiscutível o fato de que um império não apenas se constituía numa república, como vinha a tornar-se um risco para a sua sobrevivência política. Zwick cita, como representativo dessa oposição, o discurso proferido no

Congresso pelo deputado John F. Shafroth:

As repúblicas formam-se somente após as revoluções. A mudança para o império é lenta e gradual. Uma das mais tristes lições da história é que, quando quer que essas escolas políticas se confrontem, nas repúblicas antigas, a escola imperial, com sua ofuscante influência da riqueza e do poder, sempre vence28. (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 78)

Muitos dos escritos de Twain a respeito do tema apontam na mesma direção do discurso de Shafroth, ou seja, ressaltam a idéia da degeneração dos ideais fundadores dos princípios políticos da nação. Para Jim Zwick, esta seria uma das razões pelas

28 Zwick, Jim, Mark Twain’s Arguments Against War and Imperialism. (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 78). 111 quais muitos pesquisadores consideram “pessimista” o tom de Twain nos escritos dessa fase que é também a fase final de sua carreira. Os chamados dark writings, como foram designados os textos elaborados nesse período, encontram-se impregnados de antiimperialismo, aspecto, no qual, aliás, o autor nunca esteve isolado, dispondo sempre de um número amplo de significados que corroboram seus livros.

Outro aspecto de importância a ser lembrado é a forma singular como Twain, decano da literatura do país e celebridade de renome internacional, permite-se rever sua posição acerca do imperialismo e modificá-la, levado pela análise dos fatos e de suas implicações. Discorrendo a respeito da posição norte-americana diante de Cuba, logo após seu retorno da Europa, Twain afirmara que os Estados Unidos estavam

“jogando o jogo americano”, ou seja, apoiando, segundo ele ainda acreditava no momento, um movimento libertário. Segundo um raciocínio análogo, sua visão inicial da Guerra das Filipinas leva-o a enxergar um caráter libertário e humanista como fator para a participação norte-americana. Pouco tempo depois, ele próprio revia essas avaliações em entrevista ao jornal New York Herald:

Eu dizia com meus botões: aqui está um povo que sofre há trezentos anos. Temos capacidade de torná-los livres como nós, dar- lhes um governo e um país que sejam só seus, colocar uma miniatura da Constituição Americana a flutuar no Pacífico, fundar uma república absolutamente nova e que há de tomar seu lugar entre as nações livres do mundo. Pareceu-me grandiosa a tarefa que nos havíamos imposto. Mas repensei muito desde então, li com todo o cuidado o Tratado de Paris e vi que nunca tivemos a intenção de libertar, mas a de subjugar aquele povo. Fomos até lá para conquistar, não para salvar. (TWAIN, 2003, p. 28)

Evidentemente as palavras de Twain ilustram o vigor de seu pensamento e sua notável disponibilidade para pensar de forma crítica. A despeito disso, é importante 112 lembrarmos, por outro lado, que ele é essencialmente um homem de sua época. Para

Twain, assim como para outros antiimperialistas, o aspecto mais nefasto desse processo era o de traição do que acreditava serem os “ideais republicanos” do país, uma vez que os Estados Unidos haviam sido a primeira nação surgida de uma revolução contra um império colonial. A idéia fundamental era que a constituição de um império, por parte dos Estados Unidos, teria um efeito desagregador em relação aos princípios verdadeiramente fundadores dessa república. Esse argumento demonstra o quanto o autor ainda acreditava no caráter indiscutível desses princípios, crença que se incorporava de forma inseparável aos seus mais calorosos argumentos antiimperialistas.

Alguns desses argumentos encontram-se em uma série de fantasias históricas escritas, a partir de 1901, abordando a ascensão hipotética de uma monarquia despótica ou de uma ditadura militar que derruba a República e implanta a censura a livros e bibliotecas, levando ao esquecimento das tradições americanas e reescrevendo a história de modo a glorificar o imperialismo e o autoritarismo.

A idéia de uma forte ligação entre a expansão paralela do comércio e do império havia sido, anteriormente, formulada num livro escrito por um autor do qual, com razões muito compreensíveis, o presidente Theodore Roosevelt era um dos mais influentes admiradores: A Influência do Poder Marítimo sobre a História, do capitão

Alfred T. Mahan29. Para Mahan, os três pontos-chave para entender as histórias e as estratégias políticas das nações dotadas de fronteiras marítimas eram a produção, associada à necessidade do intercâmbio de produtos; o comércio marítimo, pelo qual o

29 (1840-1914). Oficial da Marinha norte-americana e historiador. Este seu livro desencadeou um verdadeiro processo de armamentismo naval no período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. (TWAIN, 2003, p. 52) 113 intercâmbio se processava; e as colônias, que facilitavam e aumentavam as operações de embarque e tendiam a protegê-lo mediante a multiplicação dos pontos de segurança30.” (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 80).

Por ocasião da Guerra Hispano-Americana, em 1898, as idéias de Mahan e de outros teóricos do imperialismo rapidamente popularizaram-se nos meios de comunicação de massa. À guisa de exemplo, Jim Zwick cita o subtítulo de um dos panfletos de 1898 sobre “As Ilhas Filipinas”, que anunciava, oficialmente, os benefícios do imperialismo de forma tão exageradamente entusiástica a ponto de parecer uma paródia: “anexação: como ela americanizará, civilizará e desenvolverá as muitas ilhas, expandirá nosso comércio ao extremo, absorverá nossa produção, manterá nosso circuito comercial ativo e dará emprego a todo nosso povo31.” (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 82).

Durante a campanha presidencial de 1900, o Comitê Republicano Nacional publicou um panfleto intitulado “Expansão Comercial”, que, apesar de reiterar muitos dos argumentos de forma um pouco mais sóbria, encerrava-se com um “Mapa do

Oriente, mostrando Manilla, Filipinas, como Centro Geográfico do Campo Comercial

Oriental”.

Muito estrategicamente, na campanha presidencial daquele ano, a plataforma republicana não fazia a menor menção aos benefícios econômicos a serem obtidos com a tomada das Filipinas, mas afirmava a obrigação do país de “subjugar insurreições

30 Zwick, Jim. Mark Twain’s Arguments Against War and Imperialism. (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 80). 31 Zwick, Jim. Mark Twain’s Arguments Against War and Imperialism. (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 82). 114 armadas e conferir as bênçãos da liberdade e da civilização a todos os povos libertados”32. (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 88).

Com o intuito de assegurar e proteger a nova expansão comercial, os contingentes da Marinha norte-americana haviam sido aumentados e as novas bases navais haviam sido estabelecidas em Cuba, Porto Rico, Guam e nas Filipinas. Também o exército permanente havia praticamente quadruplicado, passando de 26.800 soldados, em 1898 a 104.000, em 1901.

Pela primeira vez na história norte-americana, o aumento das tropas do exército tornava oficial a distribuição de contingentes no além-mar. As próprias militâncias estaduais, autônomas até 1903, foram reorganizadas sob controle militar federal e o apoio norte-americano ao Panamá, em sua luta pela independência da Colômbia, só se dá em troca do controle exclusivo da zona do Canal.

Acompanhando de perto a distribuição das novas posições militares no exterior, estabelecidas pela Lei Militar de 1901, Twain chega a afirmar que esse processo haveria de estender-se até 1946. Por uma grande ironia, a data projetada por ele viria marcar, na verdade, o início de um novo ciclo: o do estabelecimento militar e armamentista da Guerra Fria, quando mais uma vez o intervencionismo externo seria justificado com os argumentos da defesa às instituições democráticas.

Embora evidentemente voltado à atuação do país no plano internacional, o pensamento crítico de Mark Twain a respeito do imperialismo não deixa de lado sua repercussão interna no país. A idéia de patriotismo é um dos tópicos mais constantes neste campo, principalmente a veiculada junto à opinião pública pelos canais oficiais do Estado e pela imprensa, procurando defender os antiimperialistas da condição de

32 Zwick, Jim. Mark Twain’s Arguments Against War and Imperialism. (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 88). 115 serem antipatrióticos, Twain apóia sua defesa numa analogia de grande eficácia argumentativa: assim como os antiimperialistas neste momento, também os nortistas, opositores da escravidão haviam sido desprezados e sofrido perseguições no período que precedera a Guerra Civil, quando a causa abolicionista não se encontrava ainda associada à causa “patriótica” da União.

Para o autor, os momentos de crise cívica são precisamente aqueles em que a grande massa da população preocupa-se prioritariamente em estar do lado vencedor, qualquer que seja ele: o relativismo do jogo político e a natureza dos fatores que o compõem associam-se àquilo que é costumeiramente chamado de patriotismo, e que consiste, como ele acentua, na covardia moral e na acomodação às circunstâncias dominantes. O ponto central da análise desenvolvida por Twain a respeito é a necessidade de preservar o direito individual de livre manifestação, mesmo em situação de discordância em relação ao Estado, sob o risco de tornar “grotesca” e

“risível” a prática do chamado patriotismo.

Twain preocupa-se em analisar também a natureza do pensamento imperialista no plano conceitual. Para ele, a idéia de imperialismo encontra-se associada à de monarquia, o que o leva a classificar de “monárquica” a atitude do governo ao impor aos cidadãos uma noção fechada e indiscutível do que é politicamente certo e defensável. “Nossa pátria, esteja ela certa ou errada!”, a lição cívica que ele próprio ouvira repetidas vezes ao longo de sua formação escolar, seria agora o equivalente ao dogma do monarquismo segundo o qual “O rei não erra”33. Ao ser chamado publicamente de “traidor” pelo fato de não ter apoiado a guerra contra as Filipinas,

Twain ironiza e questiona os tênues limites que separam patriotas de traidores diante

33 http://www.boondocksnet.com/ai [17-03-2005] 116 dos interesses e conveniências dos diversos grupos. O ponto de vista implícito é o professado pela Liga desde sua fundação, estabelecendo uma oposição fundamental entre dois lados antagônicos: o da luta pelos valores associados aos princípios fundadores da nação americana e o das recentes políticas “não-americanas” do imperialismo. A plataforma que orientou as posições da Liga desde o início de suas atividades é clara a esse respeito:

afirmamos que a política conhecida como imperialismo é hostil à liberdade e tende ao militarismo, um mal do qual sempre nos orgulhamos de estar livres. Lamentamos que tenha sido necessário, na terra de Washington e Lincoln, reafirmar que todos os homens, qualquer que seja sua raça ou cor, têm o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Defendemos a idéia de que os governos extraem seus justos poderes do consentimento dos governados. Insistimos que a subjugação de qualquer povo é “agressão criminosa” e deslealdade aberta aos princípios distintivos de nosso governo.34 (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 90).

A estreita e pública associação de Twain com a Liga leva-o, gradualmente, a aceitar convites como o da Associação Americana de Reforma do Congo (American

Congo Reform Association), em 1905, para atuar como seu representante, e o do comitê de organização de uma homenagem a Maxim Gorky, para presidir a cerimônia destinada a levantar fundos para a Revolução Russa.

As atividades de Twain em apoio à Revolução Russa são geralmente desconhecidas ou ignoradas pela maior parte da crítica. Twain foi co-fundador da entidade denominada Amigos Americanos da Liberdade Russa (American Friends of

Russian Freedom), em seu ensaio “O solilóquio do Czar”, publicado em 1905, trata diretamente do assunto. No início de 1906 Twain escreve uma carta para ser lida em

34 Zwick, Jim. Mark Twain’s Arguments Against War and Imperialism. (ZWICK in TWAIN, 2003, p. 90). 117 um encontro destinado a arrecadar fundos para a revolução. “Alguns de nós”, afirmou ele nessa ocasião, “podem viver para ver o dia abençoado em que czares e grão-duques serão tão escassos como acredito que sejam no céu.”(TWAIN, 2003, p.32)

Twain, ao relatar, em The Innocents Abroad or The New Pilgrims’ Progress, fatos, situações, histórias e culturas tanto da Europa quanto do Oriente, já o faz com os olhos impregnados pelo seu olhar antiimperialista e pelo seu ideário social.

118

III. THE INNOCENTS ABROAD: UM LIVRO DE VIAGEM - UM “INOCENTE” RELATO

Viajar é fatal para o preconceito, a intolerância e as idéias ilimitadas; só por isso, muitas pessoas precisam muito viajar. Não se pode ter uma visão ampla, abrangente e generosa dos homens e das coisas vegetando num cantinho do mundo a vida inteira.

Mark Twain, Dicas Úteis para uma Vida Fútil 2004, p. 92

119

1. COLONIZADOS E COLONIZADORES

Antes de entrarmos no estudo investigativo da presença do ideário antiimperialista twainano, abordaremos sutilmente o pano de fundo da colonização americana e o espírito de nacionalidade que norteou Twain a compor sua obra. Não pretendemos, aqui, tratar exaustivamente do assunto, mas apenas apontar alguns dados significativos que sejam suficientes para provar um estudo orientado na direção do pensamento de Twain perante o Velho Mundo, o mundo dos colonizadores, com um olhar dessacralizador e subversivo aos valores culturais e monárquicos.

Quando os primeiros exploradores e pioneiros europeus se encontraram com os americanos nativos, entre 1400 e 1500, “ uma longa história de mútua incompreensão e conflito começou” (MAUK, 1995, p. 3). Esses encontros resultaram em uma colisão de mundos, culturas, línguas e, posteriormente, literaturas.

O Novo Mundo, o próprio nome sugeria que seria um mundo diferente daquele que existira. Um mundo onde se iniciaria a Nova Era Dourada; um novo começo para o novo Adão; um mito idílico; um novo Jardim do Éden. Portanto, sabemos que a

“visão da América como paraíso gradualmente se dissipou” (LEMAY, 1988, p. 38).

Já na metade do século XVI, quando os europeus referiam-se a um novo mundo, vinha-lhes à mente um mundo de riquezas e de fartura, onde os nativos trabalhariam como escravos para que os colonizadores retornassem à Europa carregados de ouro.

Porém, os colonizadores ingleses não encontraram cidades, nem montanhas de ouro, encontraram, sim, matas habitadas por índios que viviam precariamente e que se negavam a tornarem-se seus escravos. 120

No início do século XVII, ainda parecia remota a perspectiva de que a América abrigasse pessoas de dezenas de heranças díspares para que pudessem viver em harmonia geral. Neste clima de colonizados e colonizadores, constatamos que também foi uma celeuma a questão da existência de uma literatura genuinamente americana.

Antes de 1776, muitos autores escreviam nas colônias americanas e por vezes, especificamente, acerca da América e Europa. Mathew Arnold afirmava “não existir literatura americana, já que a língua era inglesa.” (ARNOLD, 1993, p. 45).

O tom desprendido de Arnold enfureceu alguns americanos, dentre eles, Mark

Twain. Mas o pensamento “europeu” da época reforçava a asserção de Arnold – se a língua constitui a característica básica de uma literatura (como nas antigas Grécia e

Roma, ou nas partes do mundo moderno que falavam alemão ou italiano, sem necessariamente corresponderem às fronteiras nacionais ou operando apenas dentro de vastas nações-estado), então o que era escrito em inglês, onde quer que tivesse sido escrito, pertencia à “Literatura Inglesa”.

A América, nesse pensamento, era apenas uma projeção cultural da Europa.

Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare ou Cervantes representavam a genialidade e retórica européias, portanto, quem ousaria escrever sobre a América sem a influência daqueles que transcenderam o tempo e o espaço?

Mas, por volta de 1880, já não passavam despercebidos os diversos talentos revelados por Edgard Allan Poe, Emerson Thoreau, Hawthorne, Melville e Walt

Whitman, que representavam, em algumas de suas obras, o Novo Mundo como um mundo periférico, oposto ao fascínio metropolitano dos centros como Londres, Paris,

Roma ou Madrid. 121

Alguns escritores e pensadores europeus, dessa época, chegaram a desenvolver a teoria de que o continente americano representava um estado de evolução inferior ao da Europa: por razões climáticas e ambientais, a fauna a flora, os seres humanos- aborígines e imigrantes - eram, segundo alegaram, comparativamente fracos e desinteressantes. Segundo eles, não havia nesse empobrecido hemisfério, nem cavalos, nem ovelhas, nem mesmo gado.

Edward Said escreve em seu livro Reflexões sobre o Exílio o ensaio “A

Representação do Colonizado : os interlocutores da antropologia”, que explica bem esse fenômeno. Nele, Said afirma que

o “colonizado” não era um grupo histórico que conquistara a soberania nacional e se dispersara, mas uma categoria que incluía os habitantes de novos Estados independentes, bem como povos subjugados em territórios adjacentes, ainda colonizados por europeus. O racismo continuava a ser uma força importante, com efeitos mortais em guerras coloniais terríveis e sociedades rígidas e fechadas. Portanto, a experiência de ser colonizado significou muito para regiões e povos do mundo, cuja experiência como dependentes, subalternos e súditos, em muitos lugares, ainda não acabou. (SAID, 2003, p. 115)

Correntes opostas, entretanto, ganhavam forças na literatura européia, oriundas do modelo biológico de Charles Darwin e sua Teoria da Seleção Natural. Darwin criou o contexto que deu base ao Naturalismo e Émile Zola, em Le Roman Expérimental

(1880), abre novos caminhos para uma visão literária diferente: o pensamento era mais importante que a personagem; o cenário não poderia ser separado da teoria naturalista do meio ambiente, e o enredo tinha que caminhar junto com a Teoria da Evolução.

Essa visão de Zola chegou ao Novo Mundo, o mundo dos colonizados e, desde então, suas “histórias” eram contadas e contextualizadas dentro de um mundo mágico e encantador: seus tomates eram recomendados como afrodisíacas “maçãs do amor”; 122 seu tabaco tornou-se um conforto indispensável; suas batatas e seu trigo passaram a alimentar, também, os colonizadores; o nobre selvagem era posto em contraste com o decadente homem europeu.

Nesta versão positiva, portanto, o continente americano passa de periférico para progressista. Muito do humor do Novo Mundo fora construído sobre ironias especiais deste tipo: a diferença entre o universalismo americano e a pomposidade européia; a discrepância entre a “gloriosa fronteira” da retórica e a freqüente esqualidez do autêntico cenário americano. Essas dicotomias foram fundamentais para o conjunto da literatura norte- americana.

Surgiram, então, os arquétipos: a América feita inocência, não o “velho Adão”, mas o início adâmico cheio de encanto, de experiência na confrontação; o herói feito viajante, prosseguindo seu caminho na estrada. Um estranho, talvez um órfão, vítima ou beneficiário de amnésia, com destino prometido, mas sem destinação específica.

O destino desse novo Adão aos poucos foi-se traçando. Sua seqüência histórica como “descoberta”, conflito colono-índio e acomodação, importação de escravos, revolta colonial, independência nacional, deslocação para o Oeste, lutas internas ou guerras com os vizinhos (Guerra Civil), imigração em larga escala, urbanização e industrialização suscitaram na América o espírito de luta, conquista e nação.

Ernest Renan, em seu ensaio “What Is a Nation”?, publicado em Nation and

Narration, editado por Homi Bhabha , há alguns anos, define bem a idéia de nação:

A nation is a soul, a spiritual principle. Two things, which in truth are but one, constitute this soul or spiritual principle. One lies in the past, one in the present. One is the possession in common of a rich legacy of memories; the other is present-day consent, the desire to live together, the will to perpetuate the value of the heritage that one has 123

received in an individual form. Man, Gentlemen, does not improvise. The nation, like the individual, is the culmination of a long past of endeavours, sacrifice and devotion. Of all cults, that of the ancestors is the most legitimate, for the ancestors have made us what we are. A heroic past, great men, glory (by which I understand genuine glory), this is the social capital upon which one bases a national idea. To have common glories in the past and to have a common will in the present; to have performed great deeds together, to wish to perform still more these are the essential conditions for being a people. One loves in proportion to the sacrifices to which one has consented, and in proportion to the ills that one has suffered. One loves the house that one has built and that one has handed down35. (RENAN apud BHABHA, 1995, p. 19)

De fato, grandes homens instituíram esse princípio de nacionalidade na América.

Podemos citar alguns, à guisa de exemplo: Tomas Jefferson, em 1774, publicou A

Summary View of the Rights of British America, onde reivindicava os direitos americanos perante o rei; em 1776, como membro do Second Continental Congress, redigiu a Declaração da Independência Americana, ressoando, desde então, nos corações americanos ecos de igualdade e de justiça. Abraham Lincoln, ao proferir seu discurso diante dos corpos de centenas de vítimas da Guerra Civil, no Cemitério

Nacional de Gettysburgh, estabelece um novo padrão de lealdade e nacionalismo, que transcende o próprio indivíduo. As palavras de Lincoln, durante sua breve fala, calaram profundamente no interior de cada cidadão norte-americano, após serem pronunciadas. Não houve aplausos, houve, sim, o silêncio da reflexão, o silêncio da

35 Uma nação é a alma, o princípio espiritual. Duas coisas que, na verdade, são uma só: a primeira, remete ao passado e a outra ao presente. Uma é a posse em comum de um rico legado de memórias; a outra é a comunhão do dia presente, do desejo de junto viver, do desejo de perpetuar o valor da herança que se recebe de uma maneira indivisível. O homem, senhores, não improvisa. A nação, assim como o indivíduo, é o ápice de um longo passado de empreendimentos, sacrifício e devoção. De todos os cultos, o dos antepassados é o mais legítimo, pois os ancestrais nos fizeram o que somos. Em um passado heróico, grandes homens, na glória (que eu entendo como glória genuína) está o capital social sobre o qual baseia-se a idéia nacional. Para ter glórias comuns no passado e uma vontade comum no presente; ter desempenhado grandes façanhas juntos e desejar fazer ainda mais, são as condições essenciais para ser um povo. Ama-se na proporção dos sacrifícios que foram juntos vividos e na proporção do mal que se sofreu. Ama-se a casa que foi construída e, também, a que nos foi passada. (BHABHA, 1995, p. 19, tradução nossa) 124 descoberta de uma nova nação, de um novo povo, que vislumbrava um governo of the people, by the people and for the people.

Ainda segundo o crítico literário Homi K. Bhabha,

nations like narratives lose their origins in the myth of time and only fully realize their horizons in the mind’s eye. Such an image of the nation – or narration – might seem impossibly romantic and metaphorical. But it is from those traditions of political thoughts and literary language that the nation emerges as a powerful historical idea.36 (BHABHA, 1995, p.1)

A asserção de Bhabha, de fato, faz-se verdade ao constatarmos que a América, por meio de sua literatura, encontra forças no nacionalismo alimentado pelo pensamento e tradições políticas presentes em obras de “novos Adões”, como Mark

Twain, que representava o estereótipo do genuíno cidadão americano.

Antes da Guerra Civil (1861-1865), houve duas tradições de críticas americanas sobre a Europa. A primeira representava o turista romântico, buscando instituir seu legado em um passado mais rico que sua pátria e a segunda, a crítica perscrutando o esquálido europeu, afirmando, assim, uma América pujante. As duas tradições se fazem presentes nas primeiras obras de William Dean Howells.

A princípio, Howells procurou na Europa a realização de seu ideal romântico por meio do afastamento do mundo imediato. Twain chegou à Europa como uma conseqüência de continuar sua carreira, descrevendo lugares novos e estranhos para seu leitor. Os dois escritores viajaram pela Europa, com motivações e expectativas

36 As nações, assim como as narrativas, perdem suas origens no mito do tempo e só plenamente percebem seus horizontes através do olho da mente. Tal imagem da nação – ou narração - poderia parecer impossivelmente romântica e metafórica. Mas, são dessas tradições de pensamentos políticos e de linguagem literária que a nação emerge como uma poderosa idéia histórica. (BHABHA, 1995, p.1, tradução nossa) 125 totalmente diferentes. Howells obteve sua imagem da Europa por meio da literatura.

Para ele, o Velho Mundo, representava a fonte do romance, o corpus do espírito poético que ele conheceu durante sua juventude, em Ohio. Para Twain, a Europa representava apenas um mito. Ele não tinha nenhum senso de familiaridade e nenhuma visão romântica daquela que Howells nutria. Sua experiência e sua personalidade foram oriundas de leituras de livros sobre a Europa e por meio de seu discernimento e ideário próprios.

Ambos conheceram os monumentos que os turistas geralmente apreciam. No entanto, Howells descrevia situações com um toque romântico, enquanto Twain empregava a técnica do burlesco, aproximando-se mais da Estética Realista.

Venetian Life (1866), Italian Journeys (1867) escritos por Howells e The

Innocents Abroad (1869) de Mark Twain, representam os primeiros frutos de suas experiências na Europa. Entretanto, como vimos, Twain foi um homem que fazia reflexões sobre as discrepâncias entre a expectativa americana e a realidade perturbadora e usa seu humor irreverente, às vezes, inocente, para satirizar os problemas sociais que vivia a América.

Embarca, entretanto, em 1867, em um vapor com mais de sessenta passageiros oriundos de diversos lugares dos Estados Unidos para a Europa e Oriente. A idéia dessa viagem transatlântica proveio de um anúncio veiculado em jornais de toda a

América. Esse tipo de excursão era uma novidade no turismo, e hoje, cento e trinta e oito anos depois dessa aventura, constatamos que Mark Twain foi o pioneiro no turismo em massa dos Estados Unidos. 126

Com o intuito de darmos maiores informações sobre essa novidade turística servimo-nos de alguns dados do livro Análise Estrutural do Turismo:

O turismo considerado organizado, surgiu em meados do século XIX, como conseqüência do desenvolvimento tecnológico iniciado pela Revolução Industrial e da formação da burguesia comercial com tempo, dinheiro e disponibilidade para viajar. Houve, com a Revolução Industrial, uma nova divisão do tempo: o tempo biológico, o tempo de trabalho, o tempo livre e o tempo inoperante. Divisão esta com grandes implicações na vida de todos os cidadãos e, conseqüentemente, também no que diz respeito às viagens turísticas. A primeira excursão ao estrangeiro no turismo em massa, nos Estados Unidos, acontece em 1867. (BENI, 2000, p. 87)

Como correspondente do jornal Daily Alta California, de São Francisco, Mark

Twain anotou tudo que viu e transformou seus relatos em um livro de viagem: The

Innocents Abroad or The New Pilgrims’ Progress (1869).

Narra, portanto, com humor e irreverência – estilo que adotou em sua obra como crítica – as diferenças entre a América, Europa e Oriente imerso em seu ideário democrático, contrário aos modelos de usurpações ilegais que tanto permeavam a história do Velho Mundo com a formação dos Impérios – Romano, Otomano,

Britânico e até mesmo o Sacro.

Sem dúvida, Mark Twain foi um novo Adão. Subverteu valores europeus ao escrever a história da América e de americanos, pautando-a como uma história genuína e única, fazendo-a emergir como uma poderosa idéia histórica – diferente, até então, das histórias contadas por outrem. Essa nova história pode ser visualizada na composição de The Innocents Abroad or The New Pilgrims’ Progress.

127

2. A COMPOSIÇÃO DE THE INNOCENTS ABROAD OR THE NEW PILGRIM’S PROGRESS

Diz o provérbio que Deus protege as crianças e os idiotas: é verdade. Sei disso porque comprovei. Mark Twain – Dicas Úteis para uma Vida Fútil

O livro The Innocents Abroad representa o primeiro esforço de Mark Twain em construir um livro de narrativa longa, apesar de tê-lo escrito sem obedecer criteriosamente aos esquemas convencionais da narrativa.

Twain, ao escrever The Innocents Abroad, já havia escrito sobre o Faroeste e

Havaí, mas agora lidava com importantes tópicos da literatura européia e americana.

Como correspondente jornalístico, Twain escrevia de maneira direta com a fluência do pensamento. Não se preocupava com o gênero narrativo; como resultado, The

Innocents Abroad é em parte um registro jornalístico do que Twain viu em sua viagem, em parte uma autobiografia com forte colorido subjetivo e em parte uma narrativa ficcional.

Segundo a reflexão de Pierre Bourdieu, em seu livro As Regras da Arte – Gênese e Estrutura do Campo Literário,

compreender a gênese social do campo literário, da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que aí se joga, dos interesses e das apostas materiais ou simbólicas que aí se engendram não é oferecer sacrifícios ao prazer de reduzir ou de destruir; é simplesmente olhar as coisas de frente e vê-las como são. (BOURDIEU, 1992, p. 15)

Os diferentes tipos de escrita, portanto, se misturam para compor a gênese social de Twain. Os registros de fatos encontrados em manuais, tais como a dimensão da

Catedral de Milão, devem ser desconsiderados no livro, por terem sido conduzidos 128 pelo estilo criativo e crítico do autor. Twain “blefa”. E com esse proposital “logro” ele

“inocentemente” denuncia, ao leitor atento, os exorbitantes gastos e a doutrina da usura existentes na história da “Santa Igreja” ao formar o Sacro Império, e a intervenção de Lutero e de Calvino (século XVI) culminando na Reforma.

O exagero na narrativa, números aleatoriamente colocados servem o autor para criar o clima de denúncia social, como podemos observar:

I like to revel in the dryest details of the great cathedral. The building is five hundred feet long by one hundred and eighty wide, and the principal steeple is in the neighborhood of four hundred feet high. It was 7,148 marble statues, and will have upwards of three thousand more when it is finished. In addition, it has one thousand five hundred bas-reliefs. It has one hundred and thirty-six spires – twenty-one more are to be added. Each spire is surmounted by a statue six and a half feet high37. (TWAIN, 1997, p. 180)

Observamos, ainda, uma variedade de modos literários a serem considerados.

Nas partes do livro que vão além da rotina jornalística, a distinção mais iluminada está entre as passagens nas quais Mark Twain fala em sua própria pessoa, e naquelas em que o narrador se desenvolve como uma personagem ficcional, a persona narrativa. A exemplo do texto twainiano, falando em sua própria pessoa, podemos citar: “after reading so much about it, I am satisfied that The Last Supper was a very miracle at art once. But it was three hundred years ago.”38(TWAIN, 1997, p. 193). E a exemplo da personagem ficcional, “I can not write about the Vatican. I think I shall never

37 Agrada-me regozijar-me diante dos detalhes mais ridículos da grande catedral. A construção tem 16,5m de extensão por 5,94m de largura e o campanário principal ronda 13,2m de altura. Havia 7148 estátuas de mármore e terá pra lá de 3000 quando terminada. Além do mais, há 1500 partes rebaixadas. Há 136 espirais – mais 21 serão adicionadas. Cada espiral é sobreposta por uma estátua de 1,98m de altura. 1 pé=33cm. (TWAIN, 1997, p. 180, tradução nossa). 38 após tanto ler sobre ela, sinto-me satisfeito em saber que a Santa Ceia foi um verdadeiro milagre de arte na ocasião. Mas isso foi há trezentos anos. (TWAIN, 1997, p. 193, tradução nossa). 129 remember anything I saw there distinctly but the mummies, and the Transfiguration, by Raphael, and some other things it’s not necessary to mention now39.”(TWAIN,

1997, p. 302).

A melhor maneira de distinguir a ficção real que emerge dessa matriz é identificar as outras variedades da escrita imaginativa na narração.

Bakhtin afirma, em seu livro Questões de Literatura e de Estética, que,

na realidade existe um plano comum que justifica metodologicamente esta composição: todas as linguagens do plurilingüismo, qualquer que seja o princípio básico de seu isolamento, são pontos de vista específicos sobre o mundo, formas da sua interpretação verbal, perspectivas específicas objetais, semânticas e axiológicas. Como tais, todas elas podem ser confrontadas, podem servir de complemento mútuo entre si, oporem-se umas às outras e se corresponder dialogicamente. (BAKHTIN, 1988, p. 351)

O estilo humorístico exige esse movimento vivo do autor em relação à língua e vice-versa; essa mudança constante da distância e a sucessiva passagem de luz para a sombra, ora de uns, ora de outros momentos da linguagem cria, assim, a estilização paródica. Como ilustração dessa estilização paródica, transcrevemos as impressões de

Twain diante da biblioteca Ambrosiana, na Itália:

We wished to go to the Ambrosian Library, and we did that also. We saw a manuscript of Vergil, with annotations in the hand- writing of Petrarch, the gentlemen who loved another man’s Laura and lavished upon her all through life a love which was a clear waste of the raw material. It was sound sentiment, but bad judgement. It brought both parts fame and created a fountain of commiseration for them in sentimental breasts that is running yet. But who says a word in behalf of poor Mr. Laura? (I do not know his other name). Who glorifies him? Who writes poetry about him? Nobody. How do you suppose he liked the state of things that has given the world so much

39 Não consigo escrever sobre o Vaticano. Penso que nunca me lembrarei claramente de nada que lá vi, a não ser as múmias e a Transfiguração, de Raphael e de algumas outras coisas que penso não haver necessidade de mencionar agora. (TWAIN, 1997, p. 302, tradução nossa). 130

pleasure? How did he enjoy having another man following his wife everywhere and making her name a familiar word in every garlic- exterminating mouth in Italy with his sonnets to her preempted eyebrows? They got name and sympathy – he got neither. This is a peculiarly felicitous instance of what is called poetic injustice. It is all very fine, but it does not chime with my notions of right. It is too one- sided – too ungenerous. Let the world go on fretting about Laura and Petrarch if it will; but as for me, my tears and my lamentations shall be lavished upon the unsung defendant.40 (TWAIN, 1997, p. 131)

Twain subverte a história de amor de Laura e Petrarca. Enquanto o mundo reverencia, até hoje, o grande poeta, ele enaltece o pobre “senhor Laura” (o homem com quem Laura fora casada e cujo nome ninguém sabe). Twain coloca em questão os sentimentos do pobre homem traído e encerra, dizendo: “deixe o mundo continuar reverenciando e chorando por Laura e Petrarca, mas minhas lágrimas e lamentações serão derramadas sobre o pobre homem não-glorificado.” (TWAIN, 1997, p. 131, tradução nossa).

Observamos o uso da estilização paródica para expressar o julgamento de valor de Mark Twain, que subverte as concepções prontas da cultura européia e coloca à luz o pobre “senhor Laura”. Com essa atitude faz-se humor, desmistifica-se “o grande

Petrarca” e o nosso narrador alcança mais uma vez sucesso em sua proposta: mostrar ao leitor os logros e as injustiças sociais, políticas e religiosas do Velho Mundo.

40 Queríamos visitar a Biblioteca Ambrosiana e assim o fizemos. Vimos um manuscrito de Vergílio com anotações de próprio punho de Petrarca, o bom homem que amou a Laura de outro homem e dedicou-lhe um amor que foi um claro desperdício de matéria prima. Era um bom sentimento, mas foi mal julgado. Esse amor trouxe para ambos fama, criando, também, uma fonte de comiseração em corações sentimentais até os dias de hoje. Mas, quem pronuncia uma palavra sequer a favor do pobre Senhor Laura? (nem sei seu outro nome). Quem o glorifica? Quem lhe dedica poemas? Ninguém. Como você acha que ele se sentiu perante o estado de coisas que dá ao mundo tanto prazer? Como ele se sentiu ao saber que havia outro homem seguindo sua mulher por todo lado e tornando seu nome uma palavra familiar em toda boca exterminadora de alho da Itália, com seus sonetos dedicados a suas cobiçadas sobrancelhas? Eles tiveram nome e simpatia – ele não teve nada. Esse é um venturoso e peculiar exemplo do que é chamada injustiça poética. Tudo é muito bonito, mas não está de acordo com minha noção de correto. É muito tendencioso – muito egoísta. Deixe o mundo continuar reverenciado e chorando por Laura e Petrarca, se é esse o seu desejo; minhas lágrimas e lamentações serão derramadas sobre o pobre homem não-glorificado. (TWAIN, 1997, p. 131, tradução nossa) 131

Cabe ressaltar, no final deste tópico, que todas as culturas ensinam sobre elas mesmas e todas afirmam naturalmente sua supremacia sobre as demais. O estudo da tradição de uma cultura, das obras primas, de seus grandes métodos interpretativos, leva os membros dessa cultura à reverência, ao respeito, lealdade e até ao patriotismo.

Podemos dizer que Mark Twain tem postura patriótica, nacionalista e, ao mesmo tempo, antiimperialista ao se travestir de “inocente bufão”, em The Innocents Abroad.

Porém, é importante que tenhamos em mente que nenhuma cultura existe em isolamento e, uma vez que o estudo da própria tradição, no meio acadêmico, é considerado garantido, devemos estar atentos para estudarmos quais são as outras culturas, as outras tradições, as outras comunidades nacionais que também são comunicadas quando se estuda uma cultura específica.

Said nos diz em Reflexões sobre o Exílio que

ao longo da história, cada sociedade teve o seu Outro: os bárbaros para os gregos; os persas para os árabes; os muçulmanos para os hindus, e assim por diante. Mas, desde que o século XIX consolidou o sistema mundial, todas as culturas e sociedades estão entremisturadas. Nenhum país é composto por nativos homogêneos; cada um de seus imigrantes, seus “Outros” internos, e todas as sociedades, tal como o mundo em que vivemos são híbridas. No entanto, há uma discrepância bem no âmago desse mundo vital, complexo e mesclado, entre a realidade heterogênea e o conceito de identidade nacional. (SAID, 2003, p. 199)

Nosso estudo contempla o ideário de Twain, porém, devemos estar atentos, para não amalgamarmos nosso olhar com esse ideário e nos esquecermos de que, se a autoridade concedida a uma cultura traz com ela a autoridade para perpetuar a hostilidade cultural, a verdadeira liberdade acadêmica está em risco, como se tivesse 132 concedido que o discurso intelectual devesse sacrificar-se no altar da identidade nacional e, portanto, menosprezar os outros.

Faremos uma breve incursão na história das ilustrações contidas nos livros de

Twain e também naquelas que tanto enriqueceram o volume de The Innocents Abroad or The New Pilgrims’ Progress, pois essas complementarão parte do corpus de nossas análises.

3. ILUSTRADORES, ILUSTRAÇÕES E RECEPÇÃO DA OBRA TWAINIANA

Entre a fina ponta do pincel e o gume do olhar, o espetáculo vai libertar o seu volume. Michel Foucault, As Palavras e as Coisas

Desde a simpática rã dourada, estampada na capa de The Celebrated Jumping

Frog of Calaveras County, em 1867, até a gravura do capitão no cometa em Extract from Captain Stormfields’ Visit to Heaven, em 1909, ilustradores e ilustrações faziam parte integral das primeiras edições de Mark Twain.

A maior parte dos livros twainianos era lançada no mercado por meio de vendas feitas por assinaturas, e as ilustrações eram um apelo importante nas vendas. Esses livros chegavam ao público com figuras de todo o tipo e tamanho e suas capas eram estampadas com letras douradas. Dessa forma, eram vendidos por agentes que panfletavam prospectos repletos de ilustrações vivas, com amostras de partes do texto. 133

As ilustrações davam sentido à história, fazendo valer a proverbial premissa:

“uma imagem vale mais que mil palavras” e delineavam o estilo que o consumidor em potencial iria ler. Os ilustradores recebiam 50% do preço de venda e esses livros, raramente, ficavam prontos até que um bom número de assinantes fizesse seus pedidos. Para justificar o preço, relativamente alto, e para enfatizar que os compradores haviam feito um bom negócio, esses livros, publicados por assinatura, tinham que oferecer um exemplar extraordinário e ter aparência convidativa.

Como Frank Bliss, do American Publishing Company observou, esses consumidores “não pagariam por folhas em branco cheias de margens imensas. Eles querem tudo preenchido com texto ou figuras.” (TWAIN, 1997, p. 23).

O humorista George Ade (1866-1944), também conhecido como o “fabuloso fabulista”, faz-nos lembrar a eficácia dos livros de Mark Twain, dando-nos o ponto de vista perscrutado por meio dos olhos de uma criança sobre o mercado de livros adquiridos por assinatura, no século XIX.

Just when front-room literature seemed at its lowest ebb, so far as the American boy was concerned, along came Mark Twain. His books looked at a distance, just like the other distended, diluted, and altogether tasteless volumes that had been used for several decades to balance the ends of the center table [. . .] so thick and heavy and emblazoned with gold that [they] could keep company with the bulky and high-price Bible [. . .] The publisher knew his public, and crowded in plenty of wood-cuts and stamped the outside with golden bouquets and put in a steel engraving of the author, and “sicked” his multitude of broken-down clergymen, maiden ladies, and college students on the great America public. Can you see the boy, Sunday morning prisoner, approach the book with a dull sense of foreboding, expecting a dose of Tupper’s Proverbial Philosophy? Can you see him a few minutes later when he finds himself linked arm-in-arm with Mulberry Sellers or Buck Fanshaw or the convulsing idiot who wanted to know if Christopher Columbus was sure-enough dead? No wonder he curled up on the hair-cloth sofa and hugged the thing to his bosom and lost all interest in Sunday school. Innocents Abroad was the most enthralling book 134

ever printed until Roughing It appeared. Then along came The Gilded Age, Life on the Mississippi, and Tom Sawyer. . . . While waiting for a new one we read the old ones all over again.41 (TWAIN, 1997, p. 24)

Editores, redatores e até mesmo Twain empenhavam-se, sobremaneira, na disposição gráfica dos livros – escolhendo os artistas mais talentosos, dirigindo suas interpretações, fazendo a arte final e, às vezes, retirando todo o material que achavam estar desapropriado para uma ilustração específica. Com exceção de Following the

Equator, 1897, os livros publicados no final da carreira de Twain não eram vendidos por meio de reembolso postal. Seus últimos livros, lançados no mercado pela editora

Harper & Brothers, continham poucas gravuras, diferentemente das centenas de ilustrações por volume que as vendas por assinatura exigiam. As ilustrações, no entanto, continuavam a ser o principal componente em algumas de suas últimas publicações, como em Extracts from Adam’s Diary, ilustrado por Fred Strothmann, em

1904, e Eve’s Diary, ilustrado por Lester Ralph, em 1906.

As histórias das ilustrações e ilustradores das primeiras edições de Mark Twain são cheias de intrigas de bastidores. Os grotescos e negligentes lapsos que alguns dos

41 Bem na época em que a literatura de primeira decaía vertiginosamente e o envolvimento do garoto americano com ela parecia também estar em declínio, aparece Mark Twain. Seus livros, à distância, pareciam uma extensão dos outros que já existiam no mercado: volumes diluídos, totalmente sem sabor e que, certamente, foram usados durante décadas para equilibrar a mesinha de centro [. . .] tão grossos, pesados e cheios de brasões dourados que poderiam fazer companhia à Bíblia que era vendida a um alto preço [. . .] o editor conhecia seu público, então enchia os livros com trabalhos de marchetaria e estampava a parte externa com ramalhetes dourados, fixando em aço, uma gravura do autor e “incomodava” o clero em decadência, as donzelas e universitários do grande público americano. Você consegue imaginar um garoto prisioneiro das manhãs de domingo aproximar-se de um livro com o tedioso senso de pressentimento, buscando uma dose da Proverbial Philosophy, de Tupper? Você pode vê-lo, alguns minutos mais tarde, grudado com Mulberry Sellers [editora que publicava os livros de Mark Twain] ou Buck Fanshaw [personagem de Roughing It], ou com o perturbado idiota que queria saber se Cristóvão Colombo estava realmente morto? Sem dúvida, ele se aninharia no sofá e abraçaria um desses livros e perderia todo o interesse pela escola dominical. Innocents Abroad foi o livro mais encantador já impresso até que Roughing It aparecesse. Em seguida vieram: The Gilded Age; Life on the Mississippi e Tom Sawyer. . . Enquanto esperamos pelos novos, lemos os velhos de novo. (TWAIN, 1997, p. 24, tradução nossa). 135 artistas cometiam são legendários. A demora de entregas, prazos expirados e problemas de direitos autorais implicavam faltas que enfureciam Twain. Cansado desses tipos de problema Twain encorajou-se, posteriormente, para ter a sua própria editora.

No dia de Ação de Graças, de 1884, três meses antes da publicação oficial de The

Adventures of Huckleberry Finn, os jornais de Nova York e Chicago já proclamavam a obra de Twain como “indecente”42. Não era o texto de Twain que era ofensivo, mas sim uma das ilustrações contidas no livro. Três mil cópias dos livros já estavam nas mãos dos revendedores com uma ilustração, mostrando o tio Silas em um ato de

“indecorosa exposição”. Um dos impressores havia, maldosamente, subornado por uma editora concorrente, alterado a placa de impressão, produzindo, dessa forma, um pênis em tio Silas, fato esse nunca intencionado por Twain ou o ilustrador.

Twain imediatamente recolheu todas as cópias dos livros que estavam disponíveis. A página obscena foi retirada e trocada por outra ilustração previamente retocada. O mistério da famosa página 283 ecoou nas principais manchetes de jornais.

E artigos acadêmicos por muito tempo ainda ruminavam o triste desastre que veio a ser completamente esclarecido apenas em 196043.

Esse acidente, curiosamente, leva-nos a uma reflexão: por que as outras 174 ilustrações de Huck Finn deixaram de ter valor ou beleza e apenas a “indecente” foi capaz de estimular no leitor uma reação tão depreciativa do todo?

42 New York World, 27 de Novembro de 1884, p.1; New York Tribune, 29 de Novembro de 1884, p. 3; Chicago Tribune, 30 de Novembro de 1884, p. 23. 43 O conteúdo de inúmeros artigos produzidos sobre os problemas da primeira edição e da cópia da placa alterada foram finalmente compilados em um artigo escrito por Franklin Meine, “Some notes on the First Editions of Huck Finn”, American Book Collector, 1960, p. 10-31-34. (TWAIN, 1997, p. 30). 136

A famosa página nº. 283 de Huckleberry Finn que, sabotada, aparece com Uncle Silas com o pênis à mostra (INGE, 1984, p. 248)

Os 3 mil exemplares foram recolhidos e o próprio Twain, juntamente com seus editores, retiram a ilustração “indecorosa”, colando, em seguida, esta. (INGE 1984 p 248) 137

Lembremo-nos de que a América, em pleno século XIX, ainda estava impregnada pelo espírito puritano, trazido pelo grupo de colonizadores e separatistas da Igreja

Anglicana. E esse espírito ainda permeava o inconsciente coletivo do leitor norte- americano. Eliade chama esse fenômeno de “imperialismo das convicções religiosas”.

(ELIADE, 1991, p. 119). A imagem do falo de Tio Silas simbolizava arquétipos tão

“indecentes” que sobrepujavam as outras tantas ilustrações, causando, dessa forma, a reação de desprezo e deboche de leitores perante o livro todo.

Os romances do século XIX eram repletos de imagens e o próprio Mark Twain achava que as ilustrações não só eram importantes em seus livros, como também provocavam um grande efeito em seus leitores. Segundo o livro biográfico, escrito por

Albert Bigelow Paine, Twain decidiu, por si mesmo, que Huck Finn teria muitas ilustrações. Evidentemente, assim procedendo, reafirmava que a junção de texto e imagens causariam o maior impacto em seu público-leitor.

Esta edição que nos serve para análise de The

Innocents Abroad or The New Pilgrims’ Progress é

um fac-símile fotográfico de uma cópia da primeira

edição americana de 1869 e as belas e bem feitas

ilustrações que nos servem darão um brilho especial

em nossas análises textuais, elencando,

perfeitamente, a linguagem verbal com a não-verbal.

As placas das primeiras edições publicadas Primeiro exemplar de The Innocents Abroad or The New Pilgrim’s Progress, atualmente eram produzidas à mão até 1901, dessa forma, as exposto em The Mark Twain’s House. http://etext.virginia.edu 138 primeiras cópias da primeira edição foram encadernadas em 20 de Julho de 1869. Os direitos autorais do livro foram registrados em 28 de Julho, no mesmo dia em que a primeira revisão foi publicada.

Nosso exemplar é uma réplica da terceira tiragem. Ao contrário das primeiras cópias (primeira tiragem), a segunda e a terceira tiragem contêm algumas correções necessárias, como a numeração das páginas (que fora omitida na placa da primeira tiragem); a ilustração de Napoleão III, que foi recolocada na página 129, pois não tinha saído na primeira tiragem, e a correção de alguns números de capítulos que também tinham sido editados de forma errada. Com toda a autenticidade, essa cópia está entre os 31.680 volumes que foram impressos e encadernados no final de dezembro de

1869. O volume original se encontra na coleção da “Mark Twain’s House”, em

Hartford, Connecticut.

The Innocents Abroad or The New Pilgrims’ Progress marca a entrada de Mark

Twain no mercado de vendas por assinatura, ao fechar contrato com Elisha Bliss, do

American Publishing Company. A primeira pergunta que Twain fez a seu editor, foi:

“whether [the book] should have pictures in it or not?44”. Bliss lhe afiançou que sim. O time de ilustradores de The Innocents Abroad incluía True Williams (1839-1897), um artista gráfico com grande talento, mas pouca prática formal. Williams trabalhou em todos os livros de Twain, publicados pela American Publishing Company até A Tramp

Abroad, 1880. Roswell Morse Shurtleff (1838-1915), um ilustrador de revistas e, posteriormente, um pintor de paisagens e membro da Academia Nacional de Desenho, contribuiu na maior parte das cenas de Gênova, Pisa e Pompéia.

44 se [o livro] deveria ter ilustrações ou não. (TWAIN, 1997, p. 27, tradução nossa) 139

Twain se envolveu arduamente na produção das imagens de seu livro, reunindo uma grande quantidade de fotos, cartões e postais de referência para o uso do trabalho dos artistas. Contavam, também, com os slides de William E. James, fotógrafo que documentou a viagem, como podemos constatar no trecho “Several times the photographer of the expedition brought out his transparent pictures and gave us a handsome magic lantern exhibition.” 45 (TWAIN, 1997, p. 43)

Twain sugerira que a primeira página do livro houvesse a imagem do Quaker

City. Entretanto, a data de publicação se aproximava e a gravura do navio ainda não estava pronta, forçando Elisha Bliss a usar uma ilustração do livro de Thomas Knox,

Overland Through Asia, que sua editora houvera publicado anteriormente.

Produziram, dessa forma, uma impressão de página inteira do navio a vapor Wrighs, ao invés do navio em que os “inocentes” realmente tinham navegado.

(TWAIN, 1997, p. 15)

45 Diversas vezes o fotógrafo da expedição mostrava imagens transparentes e nos dava uma atraente exibição de lanterna mágica. (TWAIN, 1997, p. 43, tradução nossa). 140

Apesar dos problemas encontrados pelo editor, na publicação de The Innocents

Abroad, o livro foi um best-seller no mercado de vendas por assinaturas. Suas ilustrações representavam a arte popular americana. Se Twain parodiou o gênero da narrativa de viagem, por outro lado, desempenhou um papel fundamental ao mostrar a arte de suas ilustrações, que serviram de modelo para seus livros que vieram posteriormente, assim como para outros escritores da época.

O olhar que Twain lança tanto à civilização européia quanto à oriental é contraditório, irônico: as ilustrações refletem essa ambivalência do olhar, indo desde o deslumbramento exagerado até ao cartoon paródico.

Esse tipo de “xenofobia” ou nacionalismo exacerbado que ora permeia o olhar twainiano provoca , de alguma maneira, uma certa má vontade na recepção de seus livros na Europa.

Ao percorrermos o V volume de A Tradução em Portugal (1999), no intuito de fazermos um breve estudo da recepção de alguns escritos de Twain na língua portuguesa, encontramos um título curioso e mal traduzido, A Célebre Rã Saltadora do

Condenado de Calaveras (grifo nosso), tradução de The Celebrated Jumping Frog of

Calaveras County (o correto seria Condado e não Condenado - grifo nosso), atribuído a uma tradução mal feita oferecida aos leitores de A Tribuna – Porto, de 7 a

17 de outubro de 1922, demonstrando displicência e desprezo em relação ao texto de

Twain.

Após um estudo cuidadoso, percebemos que o ideário twainiano não foi bem- vindo em Portugal, pelo menos no início de sua carreira. Xavier da Cunha (1840-

1920), crítico literário português, já não via com bons olhos o estilo jocoso de Twain 141 em face da tradição européia, e escreve, em 1879, a seguinte introdução em um estudo que faz sobre a literatura norte-americana e especificamente sobre o escritor e jornalista, Mark Twain:

[...] todo o afan com que dentro de cada povo as conquistas intellectuais se vão dia por dia addicionando ás da véspera, - tudo isso dá como resultado infalível o aproximar simultâneo das differentes raças, dos diferentes povos, das diversas nações fraternalmente unidas em torno do banquete social. As litteraturas, como todos os outros elementos, conspiram unissonas para o mesmo fim; nem outra coisa póde significar este alvoroço, com que mutuamente se esquadrinham e se estudam os lavores litterarios dos differentes povos, que há pouco ainda nem siquer de nome se conheciam.

(CUNHA, apud RODRIGUES, 1999, p. 5)

Ao contrário de Washington Irving (1783-1859), Nathaniel Hawthorne (1804-

1864), Edgar Allan Poe (1809-1902) – via Baudelaire e Henry Longfellow (1836-

1902), Mark Twain não foi, no início de sua carreira, um escritor popular em Portugal.

A imagem de Twain como um despretensioso, mas subversivo criador que mordazmente encarna o espírito crítico e livre de uma América que se crê também independente, é que é a causadora de displicentes traduções, como vimos no início deste estudo e de outras tantas que chegaram tão tardias, invocando a censura e o silêncio. Lawrence Venuti, em seu livro, Escândalos da Tradução, diz a respeito disso:

A tradução, com freqüência, é vista como suspeita porque, inevitavelmente, domestica textos estrangeiros, inscrevendo neles valores lingüísticos e culturais inteligíveis para comunidades domésticas específicas. Esse processo de inscrição opera em cada um dos estágios na produção, circulação e recepção da tradução.

(VENUTI, 2002, p. 129) 142

Apenas por meio da profusão do impresso, os textos mais mordazes de Mark

Twain divulgaram o autor americano em Portugal, definindo para o leitor português (o que antes não fora aceito) a marca fundamental da escrita twainiana: um percurso narrativo em que se configurava um universo discursivo particular e aliado a um realismo radicado num humor genuíno, criando a caricatura flexível do inocente democrata americano diante dos conflitos da sociedade, e apagando e desmitificando o herói tradicional.

The Innocents Abroad or The New Pilgrims’ Progress ainda não foi traduzido para a língua portuguesa – segundo pesquisa realizada via internet e em bibliotecas no

Index Translationum - UNESCO, em julho de 2005 - fato que demonstra ainda um certo desinteresse dos portugueses em melhor conhecer e criticar a “personagem burlesca” que aporta em seu continente para tudo desconstruir.

No Brasil, a ausência da tradução pode ser dada ao fato de não ser seu relato de viagem tão conhecido, limitando Twain à autoria de apenas algumas obras que ganharam maior avultamento editorial que o consagraram como, por exemplo, The

Adventures of Tom Sawyer e Huckleblerry Finn.

É pelas mãos de Monteiro Lobato que pela primeira vez um livro de Mark Twain irá ter, em 1934, sua primeira tradução nacional - As Aventuras de Huck.

Posteriomente, ele viria a traduzir e adaptar também As Aventuras de Tom Sawyer.

Lobato não foi o único escritor a traduzir trabalhos de Twain. Também Fernando

Sabino, Carlos Heitor Cony e José Geraldo Vieira realizaram traduções e recriações ainda encontráveis em edições correntes.

143

4. A DESSACRALIZAÇÃO DA TRADIÇÃO, MITOS E CULTURAS DO VELHO MUNDO

O mito é um espelho eterno no qual vemos a nós mesmos. J. F. Bierlein, Mitos Paralelos

Em momentos anteriores de nosso estudo afirmamos que a narrativa de viagem é uma representação e interpretação do Outro e que reflete as identidades e diferenças do próprio narrador. Assim posto, o narrador de The Innocents Abroad faz uso de diferentes discursos que representam o status quo do cidadão americano. Assim, ao dessacralizar as culturas e mitos do Velho Mundo, esse narrador torna-se a voz do americano impregnado pelo espírito nacionalista, refletindo, portanto, sua própria identidade e, em algumas passagens, seu desencanto com a “América idealizada”, como veremos posteriormente. Alguns entrechos serão analisados, demonstrando, outrossim, a construção dessa personagem que, em muitos momentos, assemelha-se, também, a um tipo picaresco, pois o humor se faz presente na maioria das aventuras e peripécias narradas. Passemos, por conseguinte, às análises.

Para Foucault, “nenhuma palavra ou nenhuma proposição jamais visa a algum conteúdo senão pelo jogo de uma representação que se põe à distância de si, e desdobra e se reflete numa outra representação que lhe é equivalente.”(2000, p.108).

Baseados nessa proposição analisaremos o momento em que Twain e seus companheiros de viagem vão a um Café, para sua primeira refeição, na França, e pedem vinho. Os peregrinos não falavam o francês, mas nem por isso deixam de zombar da cultura e língua francesas, como podemos observar em seguida:

144

We stopped at the first Café we came to, and entered. An old woman seated us at a table and waited for orders. The doctor said: “A vez vous du vin?”, The dame looked perplexed. The doctor said again, with elaborate distinctness of articulation: “A vez-vous du--vin!” The dame looked more perplexed than before. I said: “Doctor, there is a flaw in your pronunciation somewhere. Let me try her. Madame, avez-vous du vin? It isn’t any use, doctor – take the witness”. “Madame, avez-vous du vin--ou fromage--pain--pickled pigs feet--beurre--des oefs--du beuf--horse-radish, sour-crout, hog and hominy--any thing, any thing in the world that can stay a Christian stomach!” She said: “Bless you, why didn’t you speak English before?--I don’t know any thing about your plagued French!” The humiliating taunts of the disaffected member spoiled the supper, and we dispatched it in angry silence and got away as soon as we could”46. (TWAIN, 1997, p. 94-95)

O doutor, amigo de Twain, pronuncia com a ignorância que lhe é peculiar a língua que não é sua, fazendo o pedido de vinho; a senhora francesa não compreende seu francês mal pronunciado e, também constatamos que ela não se esforça em compreendê-lo. Twain intervém debochando, ao fazer uma literal “salada” da língua, demonstrando irritação pelo fato de a francesa não os ter compreendido. A francesa, ao vê-lo misturar o inglês na difícil comunicação, dá graças a Deus e os espezinha ao dizer que não entendia nada daquele francês “macarrônico”. Os peregrinos sentem-se

46 Paramos no primeiro Café que vimos e entramos. Uma velha senhora sentou-nos em uma mesa e esperou pelos pedidos. O doutor disse: “Avez vous du vin?” A dama olhou perplexa. O doutor repetiu, com elaborada clareza na articulação: “Avez-vous du-vin?” A dama olhou ainda mais perplexa que antes. Eu disse: “Doutor, deve haver algum problema na sua pronúncia. Deixe-me tentar. Madame, avez-vous du vin? não adiantou nada, doutor – observe”. “Madame – avez-vou du vin? – ou fromage – pain – pés de porco em conserva – beurre – des oefs – du beuf – rábano picante – casca de pão verde, porco e guisado de milho – qualquer coisa, qualquer coisa neste mundo que possa acalmar o estômago de um Cristão!” Ela disse: “Graças a Deus, por que não falaram em inglês antes! Eu não conheço nada desse seu francês calamitoso!” O sarcasmo humilhante da criatura indignada estragou o jantar, fazendo-nos liquidá-lo com um silêncio irritante. Saímos assim que terminamos. (TWAIN, 1997, p. 94-95, tradução nossa) 145 humilhados e mal vêem a hora de terminar a refeição para voltarem ao hotel que os hospedava.

A língua remete-nos à questão do poder. Lembremo-nos de como foram feitas as conquistas durante o período Anglo-Saxônico (449-1066). Invasores de diferentes localidades lutaram pela conquista da Inglaterra Anglo-Saxônica – Angle-land – e uma das maneiras de detenção desse poder era feita por meio de suas línguas. Essas línguas representavam uma proteção e uma distinção de quem era o escravo ou o senhor.

Esse pensamento se fortaleceu ao longo dos séculos. Entendemos, portanto, que um dos objetivos da educação colonial era exaltar a história da França ou da Inglaterra.

Todavia, essa educação também rebaixava a história nativa. Assim, para o nativo, existiam sempre as Inglaterras, Franças ou Alemanhas como repositórios distantes do

Verbo, apesar das afinidades entre o nativo e o “branco” estabelecidas durante os anos de fecunda colaboração. Stephen Dedalus, de Joyce, é um exemplo famoso de alguém que descobre esse fato como um choque inusitado, ao encarar seu orientador inglês:

A língua que estamos falando é mais dele do que minha. Como são diferentes as palavras casa, Cristo, cerveja, senhor, em sua boca e na minha! Não consigo falar nem escrever essas palavras sem que meu espírito se sinta inquieto. A língua dele, tão familiar e tão estranha, para mim sempre será uma língua adquirida. Não fiz nem aceitei suas palavras. Minha voz as mantém presas. Minha alma se corrói à sombra de sua língua. (JOYCE, 1964, p. 189)

Verificamos, nesse sentido, que a “displicência” e “ignorância” dos peregrinos em relação à língua francesa representam uma irreverência que remete à demonstração de poder da América sobre a França. Constatamos também que a asserção de Foucault faz-se verdadeira ao analisarmos o fragmento sob seu ponto de vista. Ora, os 146

“inocentes” não pronunciaram as palavras em francês com o intuito de “bem falar” a língua; pronunciaram-nas displicentemente, fazendo o jogo da representação que se colocava à distância dos mesmos. As palavras mal pronunciadas refletem numa outra representação (o discurso sarcástico da francesa), que lhes foi equivalente, ou seja, se a intenção era a de caçoarem da língua francesa, sentiram-se, em troca, humilhados e também caçoados, resultando no desastre da refeição.

Um pouco adiante, na narrativa, Twain descobre que não existe, em francês, palavra para diferenciar maison (house) de lar (home), como existe house e home para a língua inglesa. Então, como por desforra, diz, ironicamente: “Let’us not waste too much time on ‘homeless’ France.” “Não vamos desperdiçar muito tempo com a França

‘sem lar’ ou desabrigada e sem teto.”(p.106 tradução nossa).

(TWAIN, 1997, p. 106) 147

No hotel, o narrador indigna-se por não ter naquele país “tão famoso” pelos seus perfumes, sabão junto à bacia com água, para o asseio..

(TWAIN, 1997, p. 99) 148

We are not getting used to carrying our own soap. We are sufficiently civilized to carry our own combs and tooth-brushes; but this thing of having to ring for soap every time we wash is new to us, and not pleasant at all. We think of it just after we get our heads and faces thoroughly wet, or just when we think we have been in the bath- tub long enough, and then, of course, an annoying delay follows. These Marseillaise make Marseillaise hymns and Marseilles vests, and Marseilles soap for all the world; but they never sing their hymns or wear their vests, or wash with their soap themselves47. (TWAIN, 1997, p. 98)

Afirma a teoria bakhtiniana que, no romance humorístico, a introdução do plurilingüismo e a sua utilização estilística caracterizam-se por duas particularidades: introduzem-se “linguagens” e perspectivas ideológico-verbais multiformes

(BAKHTIN,1988, p. 245) – de gêneros, de profissões, de grupos sociais – linguagens orientadas e familiares. Na verdade, isto ocorre principalmente nos limites da língua literária escrita e falada; além disso, na maioria dos casos, essas linguagens não são reforçadas por personagens definidos, mas são introduzidas sob forma impessoal, “por parte do autor”, com o discurso direto do mesmo.

Passemos, por conseguinte, a um hilário exemplo da introdução desses tipos de linguagem. Twain e seu grupo, ainda em Paris, procuram por um guia para conduzi-los pela Cidade Luz. Após dois mal-sucedidos contatos, encontram um homem que, pelas referências de bem falar o inglês, sua postura e distinção, acaba sendo contratado. Mas ao dizer que seu nome era Billfinger, o narrador retruca, dizendo:

- Billfinger! Oh, carry me home to die! I was almost sorry we had hired this man, his name was so unbearable. (TWAIN, 1997, p. 120)

47 Não estamos acostumados a carregar nossos sabonetes. Somos civilizados o suficiente para carregarmos nossos pentes e escovas de dente; mas essa coisa de ter que tocar a campainha para pedir um sabonete, todas as vezes que nos lavamos, é nova para nós e nem um pouco agradável. Lembramos dele apenas na hora que estamos com a cabeça e o rosto molhados, ou então quando já ficamos em uma banheira o tempo suficiente e queremos sair, acontece a demora desagradável. Estes marselheses fazem hinos marselheses, roupas marselhesas e sabonetes marselheses para o mundo todo; entretanto, nunca cantam seus hinos ou vestem suas roupas ou se lavam com seus sabonetes. (TWAIN, 1997, p. 98, tradução nossa) 149

O doutor, companheiro de viagem, completa:

I expected to have a guide named Henri de Montmorency, or Armand de la Chartreuse, or something that would sound grand in letters to the villagers at home; but to think of a Frenchman by the name of Billfinger! Oh! This is absurd; it is nauseating. (TWAIN, 1997, p. 120)

Twain, então, sugere:

- Alphonse Henri Gustave de Hauterville or Aléxis du Caulaincourt48. (TWAIN, 1997, p. 120)

Resolvem, finalmente, mudar o nome do pobre homem para “Ferguson” e assim o chamam por toda Paris.

- “Ferguson, what’s this?” – “Zis is ze finest silk magazin in Paris - Ze most celebrate.” “ What did you come here for? We told you to take us to the palace of the Louvre.” “ I suppose ze gentleman say he wish to buy some silk.” “ You are not required to ‘suppose’ things for the party, Ferguson49.

(TWAIN, 1997, p. 121)

48 - Billfinger! Valha-me Deus! Estava quase arrependido por ter contratado este homem. Seu nome era tremendamente insuportável. Minhas expectativas eram as de ter um guia com o nome de Henri de Montmorency ou Armand de la Chartreuse ou algo que tivesse grande repercussão nas cartas que enviaria para casa. Mas imaginar que um cidadão francês pudesse se chamar Billfinger! Oh! Isso é um absurdo, é de embrulhar o estômago. - Alphonse Henri Gustave de Hauterville ou Aléxis du Caulaincourt. (TWAIN, 1997, p. 120, tradução nossa) 49 –“ Ferguson, o que é isto?” – “Éza é za mais fina loja de zeda de Paris - Za mais zelebrada”. “ Pra que você veio até aqui? Te falamos para nos levar ao palácio do Louvre.” “Acho que o cavalheiro diz ele querer comprar seda.” “Não te é requisitado ‘supor’ coisas para o grupo, Ferguson.” (TWAIN, 1997, p. 121, tradução nossa) 150

(TWAIN, 1997, p. 122)

Percebemos que o grupo já não é mais o grupo de “inocentes” observando Paris.

Eles se transformam em zombeteiros ao fazerem chacota do nome e do modo de falar do pobre parisiense: a expectativa ideológica de nomes franceses seria ou Alex Henri

Gustave ou Armand de la Chartreuse (expectativa exagerada, é claro); entretanto, o nome do guia era simplesmente Billfinger. Além de troçarem do nome do “infeliz”, recusam-se a pronunciá-lo, trocando-o por Ferguson.

Aqui os papéis são trocados: não é mais o injustiçado e inocente peregrino que se posta diante do brilho e da pompa, e sim a impetuosidade e arrogância que fazem submissos os valores do Velho Mundo. De fato, faz-se humor e traça-se o preconceito; 151 a rejeição da cultura e língua francesa mostra-se presente, por meio do plurilingüismo e de sua utilização estilística.

Obras como Domestic Manners of the Americans (1832), de Frances Trollope

(1780-1863), um best-seller na Inglaterra, Letters from an American Farmer (1782), de Hector St. John de Crèvecoeur (1735-1813) e Democracy in America (1835-1840) , de Tocqueville (1805-1859) tentaram explicar a América aos europeus. No entanto, o relato de viagem twainiano concedeu aos seus compatriotas um novo olhar perante os

ícones culturais do Velho Mundo, sem se envergonharem dos palácios e brilhos que a

América não possuía.

Ainda referendando Bakhtin, quanto à linguagem, ele nos diz que a introdução das linguagens e das perspectivas sócio-ideológicas, apesar de serem utilizadas também para realizar a refração das intenções do autor, são reveladas e destruídas como sendo realidades falsas, hipócritas, de raciocínio estreito e inadequadas

(BAKHTIN, 1988, p. 302). Na maioria dos casos, todas essas linguagens são linguagens já constituídas, oficialmente reconhecidas como autoritárias e reacionárias.

Exemplificamos com a passagem em que o grupo de Twain, perto do Arco do

Triunfo, vê passar, sob grande pompa, alarido e música, majestades imperiais como

Napoleão III e Abdul Aziz. As pessoas acenam com seus lenços e chapéus e Twain, assim os descreve:

Abdul Aziz, absolute lord of the Ottoman Empire, ___ clad in dark green European clothes, almost without ornament or insignia of rank; a red Turkish fez on his head – a short, stout, dark man, black bearded, black-eyed, stupid, unprepossessing – a man whose whole appearance somehow suggested that if he only had a cleaver in his hand and a white apron on, one would not be at all surprised to hear him say: 152

“A mutton-roast to-day, or will you have a nice porter-house steak?” […] Born to a throne; weak, stupid, ignorant, as his meanest slave…50 (TWAIN, 1997, p. 126)

[…] Napoleon III, Emperor of France! Surrounded by shouting thousands, by military pomp, by the splendors of his capital city, and companioned by kings and princes – this is the man who was sneered at, and reviled, and called Bastard – yet who was dreaming of a crown and an Empire all the while; who was driven into exile – but carried his dreams with him; who associated with the common herd in America, and ran foot-races for a wager – but still sat upon a throne, in fancy…β (TWAIN, 1997, p. 127)

50 Abdul Aziz, o absoluto senhor do Império Otomano, - vestido com roupas européias verde-oliva, quase sem adorno ou insígnias de distinção; um barrete vermelho turco na cabeça – um homem escuro, baixo, corpulento, barba negra, olhos negros, um idiota, asqueiroso – um homem cuja aparência, de alguma forma sugere que se tivesse um cutelo em sua mão e vestido com um avental branco, ninguém se surpreenderia ao ouvi-lo dizer: “Um carneiro assado hoje ou prefere uma bela bisteca?” [...] Nascido para um trono; fraco, tolo, ignorante, assim como seu mais desprezível servo. (TWAIN, 1997, p. 126, tradução nossa) β [...] Napoleão III, Imperador da França! Rodeado por milhares que o aclamavam; pela pompa militar; pelos esplendores de sua cidade capital e acompanhado por reis e príncipes – este é o homem que foi desprezado, insultado e chamado de Bastardo – contudo, aquele que sonhava com a coroa e com um Império o tempo todo; aquele que foi mandado para o exílio – mas com ele levou seus sonhos; aquele que se aliou à ralé ordinária na América e disparou em corrida para o desfile – e ainda senta-se em um trono, por obsessão [...]. (TWAIN, 1997, p. 127, tradução nossa) 153

Com o uso de uma linguagem impregnada de desdém, Twain torna-se um democrata destemido com seu autoritarismo reacionário, o antiimperialista que descreve homens de poder ora com tom depreciativo, ora com tom denunciador.

O autor usa também, em sua linguagem, um ritmo de narração que é mais uma armadilha para moldar o rumo do pensamento do leitor; é a reconstrução da realidade que se faz presente na harmonia e nas ondas sintáticas intencionais, criando, assim, o estilo retórico. A narração em primeira pessoa baseia-se na existência da voz que narra. A intenção de apresentar uma “nova realidade” faz-se com a presença dominante do narrador, o próprio Twain, que se funde em vários tipos de narrador: ora

é burlesco; ora é pautado dentro da ficção; ora é severo democrata e antiimperialista; ora é jocoso e irônico. Mas o que importa é que o narrador está sempre presente, contestando as convenções, tradições e formações do Império.

Esta presença constante do narrador se apóia muito no ritmo. As frases twainianas mergulham-se umas nas outras, criando um encadeamento explícito na frase. É o narrar do viajante, do estrangeiro; é a fala daquele que conta sua viagem e experiências dentro de um ritmo e harmonia peculiares; Twain consegue dar à sua narração o ritmo de quem conta e, mais ainda, o ritmo de quem conta e tenta subverter o convencional.

Nesse processo de recriar a “realidade”, o narrador de The Innocents Abroad recria também a imagem da mulher. Veremos como Twain as mostra, dependendo da cultura de que provêem. Iniciaremos esta abordagem com a história de Abelardo e

Heloísa, ainda na França, quando o autor faz uma paródia da história real, ao levar à luz a pobre Heloísa enquanto Abelardo é condenado às trevas. 154

(TWAIN, 1997, p. 141)

Após a leitura do texto (ver anexo 6 p. 272), observamos, de fato, o tom irônico e cheio de humor contido no olhar do narrador. Percebemos que Mark Twain desconstrói mitos, dessacraliza a Igreja Católica por meio da figura do ambicioso cônego Fulbert, personagem descrita sem o menor escrúpulo, que entrega a sobrinha

(Heloísa) às aulas de retórica de Abelardo, pensando apenas no fato de não lhe custar um centavo. Este olhar traz à tona uma "realidade" oculta, que desvenda mistérios, ridiculariza, condena, enaltece e desconstrói o Sacro-Império.

Abelardo é mostrado como uma personalidade sem caráter. Um “lobo mau”, sedutor e faminto que não tem escrúpulos ao devorar a desprotegida e inocente ovelha

(Heloísa), remetendo-nos à figura dos lobos de Angela Carter – escritora britânica

(1940-1992), ao escrever: “um animal só, e só um, uiva de noite nos bosques. O lobo é 155 carnívoro personificado e é tão astuto quanto feroz; se provou carne uma só vez, nada mais o satisfará”, no conto “A companhia dos lobos”. (CARTER, 2000, p.199).

Os olhos do narrador vêem Heloísa como uma personagem pura e vítima do tio

(um canalha perdulário) e de Abelardo (um desqualificado que abusa sexualmente dela). Abelardo perde o falo (a mando de Fulbert). Neste episódio há total desconstrução do mito, pois se o mundo, até então, lamentava o ocorrido, o narrador de The Innocents Abroad glorifica o castigo. A narração torna-se hilária quando nos deparamos com o trecho em que Mark Twain sugere ao leitor que procure o túmulo dos rufiões - que cometeram o “falocídio” - para, ali, depositar flores e derramar lágrimas em homenagem àqueles, “que foram tão justos”.

Abelardo, segundo a narração, por justo castigo, perde o falo e a fala (de grande retórico torna-se gago) e morre como um simples desconhecido. Heloísa morre depois, sendo enterrada junto com o “lobo mau”.

Interessante também observarmos o nome que, aleatoriamente, Twain dá a

Fulbert , o homem sem escrúpulos, ávido pelo poder e que usa as pessoas cruelmente com propósitos desleais - George W. Poderíamos aqui refletir se Twain, em 1867, já não tivera uma antecipação de nomes que fariam parte da história americana no século

XXI e que também teriam as mesmas características do sórdido caráter do tal cônego?

“Such is the story of Abelard and Heloise. Such is the history that Lamartine has shed such cataracts of tears over”51, escreve o narrador, fazendo alusão à história de

Abelardo e Heloisa, dentro de sua visão, e à história de Lamartine (1790-1869), poeta francês, autor de obras profundamente impregnadas de sentimento melancólico,

51 Essa é a história de Abelardo e Heloisa. Essa é a história de Lamartine, que tantas cataratas de lágrimas fez derramar por todo mundo. (tradução nossa) 156 amoroso e religioso, e autor do romance que traz a narrativa de Abelardo e Heloísa. O narrador, ao intertextualizar a história de Lamartine, utiliza-se do recurso paródico: “as mesmas personagens são mencionadas, a mesma postura moral sugerida, mas as relações com elas são ironicamente diferentes”, define Linda Hutcheon (1989, p. 17-

18).

Os peregrinos visitam a Biblioteca Ambrosiana e a imagem de Lucrécia Bórgia também é desconstruída pelos seus “raros valores”, inclusive o de “esganiçar uma

ópera”, o que nos leva a crer que fora uma péssima e desafinada cantora de ópera.

Consegue encomendar um funeral sêxtuplo e obter todos os cadáveres (alusão feita como crítica a Lucrécia, pois mandava matar seus maridos). O fio de cabelo de

Lucrécia (louro e áspero) despertara emoções em todos os turistas, mas não fora suficiente para emocionar o grupo de americanos que estava com Twain, conforme constatamos no texto abaixo:

We saw also an autograph letter of Lucrezia Borgia, a lady for whom I have always entertained the highest respect, on account of her rare distinction as an operatic screamer, and the facility with which she could order a sextuple funeral and get the corpses ready for it. We saw one single coarse yellow hair from Lucrezia's head, likewise. It awoke emotions, but we still live52. (TWAIN, 1997, p. 185)

Continuando a peregrinação pela Europa, surpreendemo-nos com a indignação do narrador ao observar que a visitação à Capela de São João Batista só era permitida às mulheres em um único dia do ano, devido ao repúdio pelo sexo feminino que fora a

52 Vimos também uma carta autografada por Lucrécia Bórgia, a dama por quem eu sempre tive grande respeito, por conta de sua rara distinção ao esganiçar uma ópera e a facilidade que tinha ao encomendar um funeral sêxtuplo e já ter os corpos prontos para isso. Vimos um único áspero fio de cabelo de Lucrécia, que despertara emoções, mas sobrevivemos a elas. (TWAIN, 1997, p. 185, tradução nossa) 157 causa do assassinato de João Batista, a mando do rei Herodes Antipas (21 a.C. - 39 d.C.).

Segundo o evangelho de São Mateus, o rei Herodes recebera advertência de João

Batista pela sua prevaricação com a mulher de seu irmão Filipe, cujo nome era

Herodias. João Batista fora encarcerado pelo rei, que o julgou insolente. Ao festejar seu aniversário, o rei Herodes se encanta por Salomé, que dança para entretê-lo.

Salomé era sobrinha de Herodias, a mulher adúltera. O rei pede que Salomé lhe faça um pedido. Incitada pela tia, Salomé pede a cabeça de João Batista em uma bandeja. O rei afligiu-se, mas, por causa da promessa e dos que estavam à mesa com ele, ordena que o pedido de Salomé seja de pronto atendido. Segue a passagem abaixo para apreciação:

The main point of interest about the Cathedral is the little Chapel of St. John the Baptist. They only allow women to enter it on one day in the year, on account of the animosity they still cherish against the sex because of the murder of the Saint to grafity a caprice of Herodias. In this Chapel is a marble chest, in which, they told us, were the ashes of St. John; and around it was wound a chain, which, they said, had confined him when he was in prison. We did not desire to disbelieve these statements, and yet we could not feel certain that they were correct - partly because we could have broken that chain, and so could St. John, and partly because we had seen St. John's ashes before, in another Church. We could not bring ourselves to think St. John had two sets of ashes53. (TWAIN, 1997, p. 165)

53 O principal ponto de interesse da Catedral é a pequena Capela de São João Batista, em que é permitida a entrada de mulheres apenas uma vez ao ano, por conta da animosidade ainda existente contra o sexo feminino, devido ao assassinato do Santo para satisfazer os caprichos de Herodias. Nessa Capela, há uma urna de mármore em que nos disseram estarem as cinzas de São João e, em volta dela, estava a corrente criminosa, a qual nos disseram ser o objeto responsável pelo seu confinamento enquanto estava na prisão. Não queríamos duvidar dessas afirmações, ainda que não pudéssemos sentir certeza de que estivessem realmente corretas – parte pelo fato que conseguiríamos arrebentar aquela corrente com facilidade, e, assim, conseguiria também São João, e parte pelo fato de termos visto as cinzas de São João em outra igreja. Não poderíamos acreditar que São João tivesse dois jogos de cinzas. (TWAIN, 1997, p. 165, tradução nossa) 158

O olhar do narrador mais uma vez dessacraliza a Igreja Católica. Na verdade, percebemos que esse olhar não é o de um defensor feminista – como Twain era (ver anexo 7, p. 278) – pois seu intento não é enaltecer a figura feminina, mas sim depreciar, mais uma vez, o domínio e o poder da Santa Igreja .

Assim sendo, ao registrar seu descrédito às correntes que aprisionaram João

Batista, na cadeia, e criticar as cinzas ali depositadas, já que foram vistas em outra capela, o olhar do narrador revela as inverossimilhanças e logros encontrados na Igreja

Católica.

Contra esse mundo criado por várias formas de artes, religião, mitos, política e lendas, o narrador constrói um mundo de novas “realidades”, fazendo uso do seu olhar crítico. Negando veracidade a várias associações históricas e literárias, esse olhar desnuda tradições como se elas não tivessem a menor importância. O resultado é a depreciação dos valores europeus, tão diferentes daqueles que possuía o cidadão norte- americano.

Nesse mesmo processo, também podemos notar a desconstrução do folclore francês quando Twain assiste a uma apresentação do típico cancã.

The dance had begun, and we adjourned to the temple. Within it was a drinking saloon; and all around it was a broad circular platform for the dancers. I backed up against the wall of the temple, and waited. Twenty sets formed, the music stuck up, and then - I placed my hands before my face for very shame. But I looked through my fingers. They were dancing the renowned "Can-can". A handsome girl in the set before me tripped forward lightly to meet the opposite gentleman - tripped back again, grasped her dresses vigorously on both sides with her hands, raised them pretty high, danced an extraordinary jig that had more activity and exposure about it than any jig. I ever saw before, and then, drawing her clothes still higher, she advanced gaily to the centre and launched a vicious kick full at her vis-a-vis that must infallibly have removed his nose if he had been seven feet high. It was a mercy he was only six. 159

That is the can-can. The idea of it is to dance as wildly, as noisily, as furiously as you can; expose yourself as much as possible if you are a woman; and kick as high as you can, no matter which Sex you belong to. There is no word of exaggeration in this. Any of the staid, respectable, aged people who were that night can testify to the truth of that statement. There were a good many such people present. I suppose French morality is not of that straight-laced description which is shocked at trifles54. (TWAIN, 1997, p.135-136)

(TWAIN, 1997, p. 136)

54 A dança havia começado e nos adiantamos até a sala do concerto. Dentro dela havia um salão de bebidas e em volta uma ampla plataforma circular para os dançarinos. Afastei-me um pouco contra a parede e esperei. Vinte pares se formaram. A música irrompera e então – coloquei minhas mãos no rosto, com muita vergonha. Mas eu olhava através dos dedos. Estavam dançando o famoso “Can-can”. Uma linda garota do par que estava à minha frente deslizou suavemente para encontrar-se com o cavalheiro do lado oposto – deslizou de volta, pegou seu vestido vigorosamente pelos dois lados, levantou-o bem alto, rodopiou um extraordinário gingado, com mais saliência e agilidade que qualquer outra dança. Nunca tinha visto isso e então, puxando suas roupas mais para o alto, ela avançou vivamente até o centro e arremessou um insolente pontapé cheia de si mesma, que deveria, sem dúvida, ter removido o nariz de seu par se ele tivesse 2,31m de altura. Foi um alívio ele medir apenas 1,98m. Isso era o Can-can. A idéia é dançar o mais descontroladamente, o mais ruidosamente, o mais furiosamente possível; expor-se ao extremo, se você é uma mulher; e chutar o mais alto que se possa, não importando de que sexo você seja. Não há palavra de exagero. De qualquer modo, pessoas respeitáveis e mais velhas que lá estiveram naquela noite podem atestar a veracidade desta afirmação. Havia muitas pessoas presentes. Posso supor que a moralidade francesa não é daquelas do tipo de laços estreitos que se choca com pouca coisa. (TWAIN, 1997, p.135-136, tradução nossa) 160

Segundo o olhar de Twain, o cancã depõe contra a moralidade das francesas. É uma vergonha! Nosso narrador coloca as mãos no rosto procurando tapar os olhos

(mas olhava através dos dedos) para não ver o agito das saias, as pernas para o alto, os chutes cheios de vigor. Traveste-se de “inocente puritano” e ainda coloca, como cúmplices de seu olhar, as pessoas idôneas e idosas que, lá estavam, assistindo à dança

“imoral” para dar maior veracidade à sua narrativa.

Ainda na França, o olhar do narrador

α se depara com outra “fraude”: as grisettes

(TWAIN, 1997, p. 151)

Segue abaixo o inserto que retrata mais essa desilusão:

Ah, the grisettes! I had almost forgotten. They are another romantic fraud. They were (if you let the books of travel tell it,) always so beautiful - so neat and trim, so graceful - so naive and trusting - so gentle, so winning - so faithful to their shop duties, so irresistible to buyers in their prattling importunity - so devoted to their poverty-stricken students of the Latin Quarter - so light hearted and

α As grisettes eram balconistas que trabalhavam durante o dia, no comércio, usando roupas cinza e, à noite, “enfeitavam” as ruas de Paris, fazendo programas baratos com estudantes e jovens intelectuais. 161

happy on their Sunday picnics in the suburbs - and oh, so charmingly, so delightfully immoral! Stuff! For three or four days I was constantly saying: "Quick, Ferguson! is that a grisette?" And he always said "No". He comprehended, at last, that I wanted to see a grisette. Then he showed me dozens of them. They were like nearly all the Frenchwomen I ever saw - homely. They had large hands, large feet, large mouths; they had pug noses as a general thing, and mustaches that not even good breeding could overlook; they combed their hair straight back without parting; they were ill-shaped, they were not winning, they were not graceful; I knew by their looks that they ate garlic and onions; and lastly and finally, to my thinking it would be base flattery to call them immoral55. (TWAIN, 1997, p. 150-151)

Perpassando por Milão, o olhar crítico do narrador encontra, dessa vez, as mulheres milanesas e é cruel ao afirmar que elas são “levemente embigodadas” e muito feias.

We got a carriage at twilight and drove in the shaded avenues with the other nobility, and after dinner we took wine and ices in a fine garden with the great public. The music was excellent, the flowers and shrubbery were pleasant to the eye, the scene was vivacious, every body was genteel and well-behaved, and the ladies were slightly moustached, and handsomely dressed, but very homely56. (TWAIN, 1997, p. 186)

55 Ah, as grisettes! Já ia me esquecendo. São outra fraude romântica. Eram (se você permitir que os livros de viagem lhe digam) sempre tão lindas – tão puras e tão catitas – tão ingênuas e confiáveis – tão gentis, tão cativantes – tão fervorosas aos seus deveres comerciais – tão irresistíveis aos seus consumidores com suas inoportunas conversinhas – tão devotadas à extrema pobreza dos estudantes do Latin Quarter – tão doces de coração e felizes em seus piqueniques domingueiros suburbanos – e, oh, tão fascinantes, tão desfrutavelmente imorais! Arre! Durante três ou quatro dias eu ficava dizendo a toda hora: “Rápido, Ferguson! Aquela é uma grisette?” E ele sempre dizia: “Não”. Ele compreendeu, finalmente, que eu queria ver uma grisette. Então mostrou-me dúzias delas. Eram parecidas com quase todas as francesas que eu tinha visto – feias. Tinham mãos enormes, pés imensos, bocarra; tinham o nariz amassado como de cachorro como característica geral e bigode, que nem as mais distintas raças ficariam sem notar; penteavam seus cabelos espichados para trás sem parti-los; tinham porte de doentes, não eram cativantes, não eram graciosas. Podia perceber pela sua aparência que tinham comido muito alho e cebola; e, finalmente, para encerrar, para mim seria um ignóbil lisonjeio chamá-las de imorais. (TWAIN, 1997, p. 150-151, tradução nossa) 56 Pegamos uma carruagem ao entardecer e dirigimo-nos às avenidas assombreadas com outra aristocracia e após o jantar tomamos vinho e refrescos em um fino jardim lotado de gente. A música era excelente, as flores e licores eram aprazíveis aos olhos, a cena era animada. Todos eram pessoas distintas e bem comportadas e as damas eram levemente embigodadas, apesar de elegantemente trajadas, mas muito feias. (TWAIN, 1997, p. 186, tradução nossa) 162

Já na Turquia, nosso narrador lança um olhar de defesa às mulheres ao indignar- se com a moral dos muçulmanos, que, por meio do Alcorão, têm permissão para se casarem várias vezes. Também constata, estarrecido, que as mulheres ainda são vendidas no mercado de Constantinopla como se fossem animais.

Mosques are plenty, churches are plenty, graveyards are plenty, but morals and whiskey are scarce. The Koran does not permit Mohammedans to drink. Their natural instincts do not permit them to be moral. They say the Sultan has eight wives. This almost amounts to bigamy. It makes our cheeks burn with shame to see such a thing permitted here in Turkey. We do not mind it so much in Salt Lake, however. Circassian and Georgian girls are still sold in Constantinople by their parents, but not publicly. The great slave marts we have all read so much about - where tender young girls were stripped for inspection, and criticized and discussed just as if they were horses at an agricultural fair - no longer exist57. (TWAIN, 1997, p. 368)

As mulheres armênias recebem um olhar benevolente. A adjetivação excessiva é usada para construir uma fantasia. As mulheres são, sob o ponto de vista do narrador, sociáveis, bonitas e simpáticas, como vemos a seguir:

Some of the young ladies - many of them, I may say - are even very beautiful; they average a shade better than American girls - which treasonable words I pray may be forgiven me. They are very sociable, and will smile back when a stranger smiles at them, bow back when he bows, and talk back if he speaks to them. No

57 As mesquitas são lotadas, as igrejas, fervilhantes, os mausoléus, abarrotados, mas a moral e o uísque são escassos. O Alcorão não permite que o muçulmanos bebam. Seus instintos naturais não os permitem serem morais. Dizem que o sultão tem oito esposas. Isso é bigamia. Nossas bochechas queimam de vergonha ao vermos tal fato permitido aqui na Turquia. Entretanto, não damos muita importância a isso em Salt Lake. Garotas circassianas e georgianas ainda são vendidas em Constantinopla pelos seus pais, mas não publicamente. Todos nós já lemos que os grandes mercados de escravos – onde doces ninfetas eram despidas para inspeção e julgadas e discutidas como se fossem cavalos em uma feira pecuária – não mais existem. (TWAIN, 1997, p. 368, tradução nossa) 163

introduction is required. An hour's chat at the door with a pretty girl one never saw before, is easily obtained, and is very pleasant58. (TWAIN, 1997, p. 410)

No entanto, as mulheres de Nazaré recebem adjetivações cruéis quando o narrador de The Innocents Abroad visita a fonte das virgens: são feias, mal vestidas, possuem olhos muito grandes e rostos grosseiros. É colocada em questão, nesta visão, a beleza de Nossa Senhora de Nazaré. Twain critica o olhar generoso que alguns peregrinos, que o acompanhavam, tiveram ao ver uma moça em Nazaré – chega a chamar um deles de “Entusiasta” - e discorda ao caracterizá-la como, baixota, rude e feia. Para dar maior autenticidade ao seu julgamento, o narrador “cria” um escritor que já havia escrito sobre a

Palestina - C. Grimes – e culpa-o de lançar, por meio de seus relatos, a idéia de beleza nas mulheres de Nazaré.

Critica, até mesmo,

Fenimore Cooper

(1789-1851), escritor nascido na Nova Jersey e autor do livro que (TWAIN, 1997, p. 530)

58 Algumas jovens – muitas delas, posso dizer – são muito bonitas; têm uma média de beleza maior que a das americanas – que me perdoem as palavras traidoras. São muito sociáveis e retornam o sorriso quando um estranho lhes sorri, fazem mesuras quando são interpeladas e respondem quando falam com elas. Não são necessárias apresentações. Pode-se facilmente tagarelar com uma linda moça que nunca vimos antes, por um bom tempo, na porta de suas casas e isso é muito agradável. (TWAIN, 1997, p. 368, tradução nossa) 164 relata as guerras entre os franceses e os índios norte-americanos, em 1757 – The Last of the Mohicans (1826) - por ter descrito esses índios com uma beleza idealizada.

Segue o texto para apreciação:

The Nazarene girls are homely. Some of them have large, lustrous eyes, but none of them have pretty faces. These girls wear a single garment, usually, and it is loose, shapeless, of undecided color; it is generally out of repair, too. They wear, from crown to jaw, curious strings of old coins, after the manner of the belles of Tiberias, and brass jewelry upon their wrists and in their ears. They wear no shoes and stockings. They are the most human girls we have found in the country yet, and the best natured. But there is no question that these picturesque maidens sadly lack comeliness. A pilgrim – the “Enthusiast” – said: “See that tall, graceful girl! look at the Madonna-like beauty of her countenance!” Another pilgrim came along presently and said: “Observe that tall, graceful girl; what queenly Madonna-like gracefulness of beauty is in her countenance”. I said: “She is not tall, she is short; she is not beautiful, she is homely; she is graceful enough, I grant, but she is rather boisterous”. The third and last pilgrim moved by, before long, and he said: “Ah, what a tall, graceful girl! What Madonna-like gracefulness of queenly beauty!” The verdicts were all in. It was time, now, to look up the authorities for all these opinions. I found this paragraph, which follows. Written by whom? Wm. C. Grimes: “After we were in the saddle, we rode down to the spring to have a last look at the women of Nazareth, who were, as a class, much the prettiest that we had seen in the East. As we approached the crowd a tall girl of nineteen advanced toward Miriam and offered her a cup of water. Her movement was graceful and queenly. We exclaimed on the spot at the Madonna-like beauty of her countenance. Whitely was suddenly thirsty, and begged for water, and frank it slowly, with his eyes over the top of the cup, fixed on her large black eyes, which gazed on him quite as curiously as he on her. Then Moreright wanted water. She gave it to him and he managed to spill it so as to ask for another cup, and by the time she came to me she saw through the operation; her eyes were full of fun as she looked at me. I laughed outright, and she joined me in as gray a shout as ever country maiden in old Orange country. I wished for a picture of her. A Madonna, whose face was a portrait of that beautiful Nazareth girl, would be a ‘thing of beauty’ and ‘a joy forever’”.

[. . .] That is the kind of gruel which has been served out from Palestine for ages. Commend me to Fennimore Cooper to find beauty in the Indians, and to Grimes to find it in the Arabs. Arab men are often fine looking, but Arab women are not. We can all believe that the Virgin Mary was beautiful; it is not natural to think otherwise; but 165

does it follow that it is our duty to find beauty in these present women of Nazareth?59 (TWAIN, 1997, p. 530 e 532)

Depois de Twain transcrever algumas passagens do suposto livro, que enalteciam a beleza do Oriente e das mulheres de Nazaré, de autoria do Sr. Grimes, “confessa” ter dado nomes fictícios tanto ao autor quanto ao livro. Critica, assim, todos os autores que, de alguma forma, exaltaram tais belezas por meio de um olhar “oblíquo”, ou seja, um olhar que não retratava a realidade. Henry Nash Smith afirma em seu livro, Mark

Twain: The Development of a Writer (1967, p. 28), que Mark Twain, na verdade, lança crítica ao escritor e historiador norte-americano, William C. Prime (1825-1905), que ao escrever, Boat Life in Egypt and Nubia (1857) e Tent Life in the Holy Land (1857), descreve cenas e pessoas com um olhar demasiadamente romântico e irreal.

59 As moças de Nazaré são feias. Algumas delas possuem olhos grandes e brilhantes, mas nenhuma tem o rosto bonito. Usam apenas uma vestimenta que comumente é larga, disforme e de cor indefinida; nada que chame a atenção. Elas usam da cabeça ao queixo curiosos cordões de moedas antigas e jóias de latão nos pulsos e orelhas. Não usam sapatos, nem meias. São as mulheres mais humanas que encontramos no país até agora e também as de melhor índole. Mas não há dúvida que nessas damas pitorescas, infelizmente, falta graciosidade. Um peregrino – o “Entusiasta” disse: “vejam aquela moça alta e graciosa! Olhem a beleza de Madona em seu semblante!” Outro peregrino chegou e disse: “Observem aquela moça esguia e cheia de graça; que realeza e graciosidade da beleza de Madona há em seus traços”. Eu disse: “Ela não é esguia, é baixota; ela não é bonita, é feia, tem graça suficiente, admito, mas é mais propriamente rude”. O terceiro e último peregrino moveu-se e foi logo dizendo: “Ah! Que jovem graciosa e alta! Que graciosidade parecida com a de Madona e que beleza régia!” Os vereditos eram todos assim. Estava na hora, agora, de buscar nas autoridades a responsabilidade por todas estas opiniões. Descobri este parágrafo que se segue. Escrito por quem? Wm. C. Grimes: “Depois de estarmos montados, cavalgamos até a fonte abaixo para darmos a última olhada nas mulheres de Nazaré que eram, assim como todas, as mais lindas que vimos no Oriente. Assim que nos aproximamos do grupo, uma jovem alta de 19 anos, dirigiu-se na direção de Míriam e ofereceu-lhe uma caneca d’água. Seu movimento era gracioso e régio. Exclamamos, ao vê-la próxima, a beleza tal qual a de Madona em seu semblante. Whitely repentinamente ficou com sede e pediu-lhe água com fervor e bebeu-a vagarosamente. Com os olhos fixos acima da caneca, encarou seus enormes olhos negros que fitavam-no com a mesma curiosidade. Então, Moreright quis água. Ela deu-lhe e este tratou de derramá-la para pedir-lhe outra caneca e no momento em que ela chegou-se até mim, percebeu a brincadeira; seus olhos estavam cheios de graça enquanto me olhavam. Eu sorri-lhe abertamente e ela aproximou-se tão alegre quanto uma risada de uma dama no velho condado Laranja. Desejei uma fotografia dela. Uma Madona cujo rosto era um retrato daquela bonita garota de Nazaré, seria um “quê” de beleza e “uma felicidade eterna”. Este é o tipo de sopão que foi servido da Palestina por muito tempo. Recomendações minhas a Fenimore Cooper por ter encontrado beleza nos índios e a Grimes por tê-la encontrado nos árabes. Os homens árabes são, em geral, bem apessoados, mas as mulheres não. Podemos todos acreditar que a Virgem Maria era bonita; não é natural pensarmos ao contrário; mas em decorrência disto, é nosso dever acharmos que todas as mulheres de Nazaré o são? (TWAIN, 1997, p. 530 e 532, tradução nossa). 166

I am aware that this is a pretty voluminous notice of Mr. Grime’s book. However, it is proper and legitimate to speak of it, for “Nomadic Life in Palestine” is a representative book – the representative of a class of Palestine books – and a criticism upon it will serve for a criticism upon them all. And since I am treating it in the comprehensive capacity of a representative book, I have taken the liberty of giving to both book and author fictitious names. Perhaps it is in better taste, any how, to do this.60 (TWAIN, 1997, p. 536)

O tom irreverente de Twain, ao dessacralizar o Velho Mundo, provocou opiniões díspares quando foram publicados nos jornais dos Estados Unidos seus relatos de viagem. The New York Times publicou uma nota afirmando que o autor “had no great respect for associations and surroundings” – “não tinha grande respeito pelas sociedades e adjacências” (1868 apud SMITH,1967, tradução nossa). Já o jornal The

Syracuse Standard incumbiu-se de publicar uma elaborada defesa relativa ao olhar depreciativo e irreverente que Twain lança a Jerusalém.

Mark Twain sees just what all of us would see under the same circumstances; and he tells the truth about what he sees. The wit is his own; the phraseology is his own; but the eyes with which he sees are our eyes as well as his. They are not the eyes of the solemn old humbugs through which we have been forced to look so often. And thus the book becomes a transcript of our own sentiments61. (1868 apud SMITH, 1967, p. 38)

60 Tenho consciência de que seja uma informação um tanto quanto extensa sobre o livro do Sr. Grimes. Entretanto, é apropriado e justo falar sobre ele, pelo fato de Vida Nômade na Palestina ser um livro representativo – a representação de uma espécie de livros sobre a Palestina – e uma crítica sobre ele servirá para criticar todos. E desde que eu esteja considerando-o na capacidade de abrangência de um livro representativo, tomei a liberdade de dar, tanto ao livro quanto ao autor, nomes fictícios. Talvez seja de bom tom, de qualquer forma, assim o fazer. (TWAIN, 1997, p. 536, tradução nossa). 61 Mark Twain vê o que todos nós veríamos sob as mesmas circunstâncias; e ele diz a verdade a respeito do que vê. O talento é próprio; a fraseologia é própria, mas os olhos com os quais ele vê são tão nossos quanto dele. Eles não são os olhos dos solenes e velhos impostores, por meio dos quais somos tão freqüentemente forçados a olhar. Desse modo, o livro torna-se uma transcrição de nossos próprios sentimentos. (1868 apud SMITH, 1967, p. 38, tradução nossa) 167

A nota do Syracuse Standard ilustra bem o pensamento americano da época. A construção do self made man não poderia ser ultrajada pelas culturas de outros povos e o olhar de Twain, de fato, retratava o próprio olhar do cidadão estadunidense.

Reafirmamos que o protagonista de The Innocents Abroad é um Adão

Americano, parecido, em muitos aspectos, com o protagonista de Leaves of Grass

(1855), de seu contemporâneo Walt Whitman (1819-1892). No entanto, o protagonista de The Innocents Abroad, ao atravessar o Atlântico, é imbuído de maior realidade histórica e psicológica que a vaga passagem pela Índia feita pelo herói de Whitman

(1986 – p. 47).

A história do Mark Twain inocente é extremamente coerente ao espírito da cultura americana do século XIX. O herói não é vencido pelas forças da tirania e da superstição, nem se perde nos tortuosos corredores da história. É apropriado a ele fazer muitas piadas, boas e más ao longo de seu caminho, rir do sacro transformando-o em profano e, inclusive, usar uma variedade de máscaras, mesmo que essa pluralidade de identidades, algumas vezes, o transforme em um tolo.

Assim posto, Twain-narrador tem um só propósito: mostrar ao leitor uma “nova realidade”, disseminando novos campos de significados associados à sua cultura e negando a cultura de outrem. Segundo Eliade, “as Imagens e símbolos constituem

“aberturas” para um mundo trans-histórico. Graças a elas, as diversas “histórias” podem se comunicar.” (1991, p. 174).

Dando prosseguimento à nossa reflexão, podemos dizer que o narrador de The

Innocents Abroad não deu a devida abertura para que as histórias, de fato, pudessem se comunicar ao travestir-se de “zombeteiro” e depreciar outras culturas e mitos; 168 desencadeando, anos depois da publicação de The Innocents Abroad, acirrada crítica por parte de Said, ao assim referir-se ao autor, em Orientalismo: “a experiência americana com o Oriente, antes da Segunda Guerra, era limitada. Solitários culturais como Melville interessavam-se por ele; cínicos como Mark Twain visitaram-no e também escreveram sobre ele.” (2001, p. 295, grifo nosso). A crítica do orientalista foi veemente, talvez pelo fato de desconhecer as propositais intenções do autor em mesclar-se em variadas máscaras para compor seu estilo burlesco.

A personagem do narrador, ao se fazer de “tolo inocente” e com uma visão preconceituosa, assemelha-se à personagem picaresca, pois, de acordo com Guillén,

a presença do pícaro – que se diferencia do vagabundo, do despossuído e do delinqüente histórico –, que não é uma reprodução de um fato social da Espanha, de Felipe II, nem uma “figura típica” da época. Ele é, antes de mais nada, um órfão que, solitário, deve se valer por si mesmo. (GUILLÉN apud GONZÁLES, 1994, p.226)

Em sua passagem pelo Líbano, Twain experimenta as tão famosas uvas orientais e, ao invés de apreciá-las, assim redige sua narrativa:

The Sunday-school books exaggerated it a little. The grapes are most excellent to this day, but the bunches are not as large as those in the pictures. I was surprised and hurt when I saw them, because those colossal bunches of grapes were one of my most cherished juvenile traditions62. (TWAIN, 1997, p. 441).

62 Os livros da Escola dominical exageraram um pouco. As uvas são de excelente qualidade até os dias de hoje, mas os cachos não são tão grandes como aqueles das figuras. Fiquei surpreso e chocado quando as vi porque aqueles colossais cachos de uvas eram uma de minhas melhores lembranças das tradições juvenis. (TWAIN, 1997, p. 441, tradução nossa). 169

A ilustração que acompanha essa passagem é um exagerado cartoon paródico da imagem das uvas do Líbano. Seu humor refere-se às figuras contidas nos livros que, segundo o narrador, as crianças e jovens que freqüentavam a Escola Dominical norte- americana liam.

(TWAIN, 1997, p. 442)

Dessa forma, portanto, o narrador de The Innocents Abroad, fazendo referência à epígrafe no início desse tópico, ao negar o mito, quebra o espelho como uma forma de negar a si próprio – é a própria não-aceitação do Adão despido de um passado histórico. 170

IV. TWAIN ANTIIMPERIALISTA: PEREGRINO E PECADOR

Afirmamos que a política conhecida como imperialismo é hostil à liberdade e tende ao militarismo, um mal do qual sempre nos orgulhamos de estar livres. Lamentamos que tenha sido necessário, na terra de Washington e Lincoln, reafirmar que todos os homens, qualquer que seja sua raça ou cor têm o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Defendemos a idéia de que os governos extraem seus justos poderes do consentimento dos governados. Insistimos que a subjugação de qualquer povo é “agressão criminosa” e deslealdade aberta aos princípios distintivos de nosso governo. Mark Twain, Patriotas e Traidores (2004).

171

1. A VIAGEM: AÇORES, ESTREITO DE GIBRALTAR E TÂNGER

Fonte: http://etext.virginia.edu/railton/innocent/iamaphp.html

Alguns fragmentos da aventura twainiana já foram relatados e analisados em momentos anteriores. Entretanto, agora iniciaremos a grande viagem propriamente dita, balizando os entrechos onde se encontram, mesmo que por detrás da ironia, sátira e humor do autor, seu olhar antiimperialista, assim como algumas outras passagens que achamos pertinente analisar. Todavia, urge ressaltarmos que Twain só se declara publicamente antiimperialista em 1900, após constatar, por meio da leitura cuidadosa do “Tratado de Paris” - 1889, a tomada ilegal das Filipinas pelos Estados Unidos. Sua literatura anterior a essa data, entretanto, já traz nuanças do perfil de um americano que lutava pela igualdade das raças e pela defesa dos subjugados.

O navio de primeira classe, The Quaker City, zarpa de Nova York em 8 de junho de 1867 – a ilustração nos mostra o mapa com o trajeto percorrido por Twain e 172 peregrinos em sua venturosa expedição - anexamos também a cópia do anúncio publicado nos jornais dos Estados Unidos que divulgava a excursão, com o intuito de melhor direcionar nosso leitor nessa primeira viagem de turismo em massa da

América. ( ver anexo 8, p. 279).

Dando prosseguimento em nossa viagem, após dez dias em alto mar, Twain e peregrinos alcançam os Açores e, assim que lá aportam, o escritor-jornalista já descreve suas primeiras impressões.

(TWAIN, 1997, p. 49)

The community is eminently Portuguese – that is to say, it is slow, poor, shiftless, sleepy, and lazy. There is a civil governor, appointed by the King of Portugal; and also a military governor, who can assume supreme control and suspend the civil government at his pleasure. The islands contain a population of about 200,000, almost entirely Portuguese. Every thing is staid and settled, for the country was one hundred years old when Columbus discovered America63.

(TWAIN, 1997, p. 55)

A adjetivação depreciativa usada na passagem demonstra a indignação do narrador em virtude de sua observação quanto à tamanha morosidade dos habitantes das ilhas açorianas. Contrasta essa lentidão com o mundo de progresso e tecnologia qua vivia a América, no final do século XIX. Twain não era apenas um americano, era

63 A comunidade é eminentemente portuguesa – quer dizer, é morosa, pobre, inábil, sossegada e preguiçosa. Há um governador civil indicado pelo rei de Portugal e também um governador militar que pode assumir controle supremo e suspender o governo civil a seu bem entender. As ilhas possuem uma população de aproximadamente 200.000 habitantes, quase todos portugueses. Tudo está assentado (no lugar) e colonizado (habitado), pois o país já tinha cem anos quando Colombo descobriu a América. (TWAIN, 1997, p. 55, tradução nossa) 173 um sulista que vivenciou, de perto, a Guerra Civil. O resultado dessa revolução foi a consolidação do capitalismo industrial, politicamente representado pelos republicanos

– os Estados Unidos foram o primeiro país a se industrializar fora da Europa.

Depois da Guerra Civil ou Guerra da Secessão (1860-1865), os Estados Unidos contavam com um território unificado, uma rede de transportes em expansão, uma população em rápido crescimento impulsionado pela migração. “Essas condições permitiram a produção para um consumo de massa, o que, por sua vez, facilitava a racionalização da economia”, escreve José Jobson Arruda no livro, Nova História

Moderna e Contemporânea (2004, p. 265).

É necessário ressaltarmos, portanto, que essa modernidade pós-guerra suscita uma certa desilusão em Twain, como veremos em momentos posteriores. Todavia, convém ao narrador compor ironias e humor para esconder-se sob elas.

O narrador critica o sistema de governo português ao reiterar o poder do governador militar que tem uma autonomia sobre o governo civil, denunciando, por meio de seu olhar, as injustiças e a pobreza em que vivia o povo açoriano sob os auspícios de um rei negligente.

Twain constrói o humor baseado na ironia. Booth escreve em seu livro A

Rhetoric of Irony: “ a ironia tem uma ligação intrínseca com o poder ou com o desejo de poder. Para valorizar-se, para demonstrar superioridade, o ironista muitas vezes deprecia o adversário ou então elogia-o exageradamente.” (BOOTH, 1974, p. 175). O poder de que Twain se vale é o próprio poder do viajante que sempre tem como ponto de referência seu lugar de origem. 174

Apesar da ironia e do tom depreciativo, Twain mostra-se contra o jugo português que “por meio de suas expansões marítimas em 1415, conquistam as ilhas da Madeira,

Açores e Cabo Verde” (ARRUDA, 2004, p.32) e, depois disto, deixa o povo viver na mais profunda penúria, sem investimentos e melhorias que lhe facilitassem a vida.

Em adição, não poderíamos deixar de citar o pensamento de Bachelard que bem ilustra a história do povo açoriano que parece ter consciência da plenitude da vida e de sua origem, mesmo quando nada se faz.

O homem que tanto se arriscou ao voltar-se à inteligência – guardou instintos bastantes para se sustentar na ignorância e no erro. Entre duas decisões conscientes, ele caminha com a segurança do sonâmbulo. Vai até mais depressa quando não sabe aonde vai, quando se confia ao elã vital que impele sua raça, no momento em que se afasta da solidão pessoal. Nossa vida é tão plena que age mesmo quando não fazemos nada. Sempre existe, de certa maneira, alguma coisa atrás de nós, a Vida atrás de nossa vida, o elã vital sob nossos impulsos. Nosso passado inteiro também vela atrás de nosso presente, e é por ser antigo, profundo, rico e pleno que o eu tem uma ação verdadeiramente real. Sua originalidade vem de sua origem. Ela é a lembrança, não descoberta. Estamos ligados a nós mesmos e nossa ação presente não tem como ser descozida e gratuita; deve sempre exprimir nosso eu. (BACHELARD, 1988, p. 11-12)

Em seqüência, o narrador em primeira pessoa manifesta um posicionamento crítico em relação à Igreja Católica ao visitar uma catedral jesuíta, ainda nos Açores.

It is in communities like this that Jesuit humbuggery flourishes. We visited a Jesuit cathedral nearly two hundred years old, and found in it a piece of the veritable cross upon which our Saviour was crucified. It was polished and hard, and in as excellent a state of preservation as if the dread tragedy on Cavalry had occurred yesterday 175

instead of eighteen centuries ago. But these confiding people believe in that piece of wood unhesitatingly64. (TWAIN, 1997, p. 57)

Ao se referir aos jesuítas como “impostores”, Twain denuncia o enriquecimento ilícito acumulado pela Santa Igreja desde os tempos anteriores às reformas religiosas, no século XVI, culminando na formação do Sacro Império. Denuncia também a ingênua credulidade dos fiéis que acreditavam nos engodos em que esses soldados de

Cristo lhes faziam acreditar.

O pedaço da cruz onde o Salvador fora crucificado e que se encontrava em perfeito estado de conservação faz-nos lembrar do romance de Eça de Queirós, A

Relíquia, escrito em 1887. A personagem queirosiana, o jovem bacharel Teodorico

Raposo, criado em Lisboa pela tia, uma católica fervorosa, vai em peregrinação a

Jerusalém com o intuito de conquistar o coração da velha beata e herdar-lhe a fortuna.

Ao retornar a Lisboa entrega à tia a preciosa relíquia: um ramo de espinhos da coroa que martirizou o Salvador, assim como pregos usados na construção da Arca de Noé:

_ Titi. . . Eu não quis revelar ainda a relíquia que vem aqui no caixotinho, porque assim mo recomendou o senhor Patriarca de Jerusalém. . . Agora que vou dizer. . . Mas antes de tudo, parece-me bem a pêlo explicar que tudo cá nesta relíquia, papel, nastro, caixotinho, pregos, tudo é santo! Assim por exemplo os preguinhos. . . são da Arca de Noé. . . Pode ver, senhor padre Negrão, pode apalpar! São os da Arca, até ainda enferrujados. . . E aqui a coroa de espinhos. (QUEIRÓS, 1997, p. 232)

64 O logro dos jesuítas viceja em comunidades como esta.Visitamos uma catedral jesuítica de cerca de duzentos anos e descobrimos nela um pedaço da verdadeira cruz onde nosso Salvador fora crucificado. Estava polida e firme e em um excelente estado de conservação, como se a terrível tragédia do Calvário tivesse ocorrido ontem, ao invés de mil e oitocentos anos atrás. Mas estas crédulas pessoas acreditam nesse pedaço de madeira sem hesitação. (TWAIN, 1997, p. 57, tradução nossa). 176

Despedindo-se da credulidade do miserável povo português e enfrentando fortes tempestades, o Quaker City alcança, após uma semana, o estreito de Gibraltar. O estreito é colônia britânica encravada em território espanhol. Foi tomada pelos ingleses em 1704 e ainda permanece em seu poder, apesar de repetidas representações do governo de Madrid – que exige a devolução – enviando medidas de pressão e intimidação, como o bloqueio periódico, a denegação de facilidades como água potável e luz elétrica, ou mesmo a proibição à mão-de-obra espanhola de trabalhar no rochedo.

Twain, mesmo ao narrar a repetitiva história da rainha da Espanha temperando-a com humor, deixa transparecer seu olhar antiimperialista. A narrativa é cheia de detalhes, tanto em relação à generosa natureza que toma conta do lugar, quanto relacionada às armas e canhões que se misturam ao cenário do estreito. Segue a passagem para apreciação.

But behold how annoyances repeat themselves. We had no sooner gotten rid of the Spain distress than the Gibraltar guides started another – a tiresome repetition of a legend that had nothing very astonishing about it, even in the first place: “That hill yonder is called the Queen’s Chair; it is because one of the Queens of Spain placed her chair there when the French and Spanish troops were besieging Gibraltar, and said she would never more move from the spot till the English flag was lowered from the fortress. If the English hadn’t been gallant enough to lower the flag for a few hours one day, she’d have had to break her oath or die up there”. We rode on asses and mules up the steep, narrow streets and entered the subterranean galleries the English have blasted out in the rock. These galleries are like spacious railway port-holes five or six hundred feet above the ocean. There is a mile or so of this subterranean work, and it must have cost a vast deal of money and labor. The gallery guns command the peninsula and the harbors of both oceans, but they might as well not be there, I should think, for an army could hardly climb the perpendicular wall of the rock any how. Those lofty port-holes afford superb views of the sea, though. At one 177

place, where a jutting crag was hollowed out into a great chamber whose furniture was huge cannon and whose windows were port- holes, a glimpse was catch of a hill not far away, and a soldier said: “That hill yonder is called the Queen’s Chair; it is because one of the Queens of Spain placed her chair there when the French and Spanish troops were besieging Gibraltar, and said she would never more form the spot till the English flag was lowered from the fortress. If the English hadn’t been gallant enough to lower the flag for a few hours one day, she’d have had to break her oath or die up there”. On the topmost pinnacle of Gibraltar we halted a good while, and no doubt the mules were tired. They had a right to be. The military road was good, bur rather steep, and there was a good deal of it. The view from the narrow ledge was magnificent; from it vessels seeming like the tiniest little toy-boats, were turned into noble ships by the telescopes; and other vessels that were fifty miles away, and even sixty, they said, and invisible to the naked eye, could be clearly distinguished through those same telescopes. While I was resting every soul comfortably on a rampart, and cooling my baking head in the delicious breeze, and officious guide belonging to another party came up and said: “Señor, that high hill yonder is called the Queen’s Chair” – “Sir, I am a helpless orphan in a foreign land. Have no pity on me. Don’t – now don’t inflict that most in – FERNAL – old legend on me any more to – day!” There – I had used strong language, after promising I would never do so again; but the provocation was more than human nature could bear. If you had been bored so, when you had the noble panorama of Spain and Africa and the blue Mediterranean, spread abroad at your feet, and wanted to gaze, and enjoy, and surfeit yourself with its beauty in silence, you might have even burst into stronger language than I did. Gibraltar has stood several protracted sieges, one of them of nearly fours years duration (it failed) and the English only captured it by stratagem. The wonder is that any body should never dream of trying so impossible a project as the taking it by assault – and yet it has been tried more than once65. (TWAIN, 1997, p. 65-68)

65 Mas observe como as chateações se repetem. Ainda nem tínhamos nos livrado das agruras da Espanha quando os guias de Gibraltar começaram com outras – uma exaustiva repetição de uma lenda que nada tinha de surpreendente mesmo na época no fato ocorrido: “o topo daquela colina é chamado a Cadeira da Rainha; o nome veio da história de que uma das rainhas da Espanha colocou sua cadeira lá quando as tropas francesas e inglesas estavam cercando Gibraltar e disse que não sairia de lá até que a bandeira inglesa fosse arriada do forte. Se os ingleses não tivessem sido galantes o suficiente e abaixado a bandeira por algumas horas, ou ela quebraria seu juramento ou morreria lá”. Subimos no lombo de burros e mulas o escarpado por caminhos estreitos até entrarmos nas galerias subterrâneas que os ingleses irromperam na rocha. Essas galerias são como espaçosos túneis de ferrovia e de quando em quando impertinentes armas surgem sobre o mar e cidade por meio de canhoneiras posicionadas a 16,5m ou 19,8m acima do oceano. Há cerca de uma milha desse trabalho subterrâneo e deve ter custado uma grande soma de dinheiro, além de muito trabalho. A galeria de armas controla a península e os portos dos dois oceanos, mas na minha opinião não deveriam estar lá pelo fato de que um exército dificilmente conseguiria escalar a perpendicular muralha de rocha. Entretanto, esses grandiosos canhoneiros proporcionam uma magnífica vista do mar, em um determinado ponto onde a saliência do rochedo fora escavada e transformada em um enorme quarto cuja mobília era um gigantesco canhão e cujas janelas pareciam escotilhas, dei uma olhadela em direção a uma colina não distante dali e um soldado disse: “o topo daquela colina é chamado de Cadeira da Rainha; o nome veio da história de que uma das rainhas da Espanha colocou sua cadeira lá quando as tropas francesas e espanholas cercavam Gibraltar, dizendo que não sairia de lá até que a bandeira inglesa fosse arriada 178

(TWAIN, 1997, p. 67)

do forte. Se os ingleses não tivessem sido suficientemente educados e arriado a bandeira por algumas horas, ou ela quebraria seu juramento ou morreria lá”. Descansamos por um tempo sobre o mais alto pico de Gibraltar e sem sombra de dúvida as mulas estavam bem cansadas. Tinham o direito de estar. A trilha militar estava boa, apesar de bem íngreme e foi um longo trajeto. A vista da estreita orla era magnífica, as embarcações que pareciam minúsculos barquinhos de brinquedo transformavam-se em imponentes navios vistos pelos telescópios e outras embarcações que estavam a cinqüenta e até mesmo sessenta milhas de distância, conforme nos disseram e invisíveis a olho nu, podiam claramente ser vistas por meio daqueles telescópios. Enquanto estava descansando confortavelmente em uma plataforma e refrescando minha cabeça ardente na deliciosa brisa, um guia intrometido que pertencia a outro grupo chegou e disse: “Señor, o topo daquela colina é chamado de Cadeira da Rainha” – “senhor, sou um órfão desamparado em uma terra estrangeira. Tenha dó de mim. Não – agora não me amole mais hoje com a mais in-FERNAL e antiga lenda!” Então – tive que usar uma linguagem ríspida depois de ter prometido que não mais faria isto. Mas a provocação foi maior que aquela que um ser humano pode suportar. Se você tivesse sido importunado enquanto estivesse desfrutando do majestoso panorama da Espanha, da África e do azul Mediterrâneo espalhado em volta de seus pés e quisesse fitar, apreciar e saciar-se com sua beleza em silêncio, você usaria até mesmo uma linguagem mais rude que a minha. Gibraltar suportou firme diversos longos cercos. Um deles com aproximadamente quatro anos de duração (sem sucesso) e os ingleses o capturaram por meio de uma vil armadilha. O curioso é que ninguém podia sonhar em tentar tão impossível projeto – o de tomá-lo por ataque – ainda que fosse tentado por mais de uma vez. (TWAIN, 1997 – p. 65 – 68, tradução nossa) 179

A repetição da história da “Cadeira da Rainha” narrada por todos os guias demonstra a importância que Gibraltar teve para o governo espanhol, perdendo-o posteriormente para a Inglaterra. Entretanto, Twain se farta com tanta repetição e é rude com um dos guias. Ao dizer que é um “órfão desamparado” em uma terra estrangeira, constrói o humor.

De acordo com Candace D. Lang, em Irony/Humour – Critical Paradigms, “o humor consiste exatamente numa ironia em que o objeto é o próprio eu que enuncia, ou a ele se refere.” (LANG,1988, p.37). Assim posto, o narrador se expõe em seu momento de fúria e ainda blasfema dizendo que não mais suportava aquela in –

FERNAL e antiga lenda. Tenta atenuar seu momento de ira buscando argumentos para se redimir e procura no leitor uma conivência ao dizer: “você usaria até mesmo uma linguagem mais rude que a minha.”(TWAIN, 1997, p. 68)

Percebemos, outrossim, que, o que verdadeiramente importa, é que construindo humor, ironia ou paródias, Twain deixa à mostra sua indignação pela usurpação de terras pelos mais fortes – “os ingleses capturaram Gibraltar por meio de uma vil armadilha”, encerra o narrador a sua passagem pelo rochedo.

A viagem continua. Aportam agora em Tânger – porto e cidade do Marrocos, situada no estreito de Gibraltar. Os peregrinos são carregados pelos mouros, nas costas, dos botes à terra firme. Twain ainda censura aqueles que se ergueram com o sofrimento da Espanha nas primeiras linhas de sua narrativa sobre Tânger, mas não deixa de exprimir sua primeira impressão das terras marroquinas: “Isso é régio!.”

Segue o fragmento para a averiguação do leitor.

180

This is royal! Let those who went up through Spain make the best of it – these dominions of the Emperor of Morocco suit our little party well enough. We have had enough of Spain at Gibraltar for the present. Tangier is the spot we have been looking for all the time. Elsewhere we have found foreign-looking things and foreign-looking people, but always with things and people intermixed that we were familiar with before, and so the novelty of the situation lost a deal of its force. We wanted something thoroughly and uncompromisingly foreign – foreign from top to bottom – foreign from center to circumference – foreign inside and outside and all around66. . . (TWAIN, 1997, p. 76).

A busca pelo novo, pelo estrangeiro que pudesse realmente causar estranhamento

é observada no entrecho acima citado; porém, na passagem subseqüente, vemo-nos diante de um narrador que retoma os diferentes povos que lutaram pela posse de

Tânger e também daquele que lança seu olhar ao negro maltrapilho, oriundo de algum lugar deserto do interior da África e que se serve da água suja e poluída de uma fonte construída pelos romanos, há mais de mil e duzentos anos.

Ao iniciar a passagem com uma frase exclamativa e com um vocábulo com valoração positiva – “Isso é régio!”- o leitor atento percebe, assim que adentra na narrativa, que o narrador novamente constrói uma ironia, ao dizer o contrário do que realmente viam seus olhos.

No desenrolar da narrativa twainiana, podemos encontrar indícios de um olhar que registra o pouco apreço que os colonizadores têm em relação ao colonizado, registrando a presença de um negro, com aparência oriental, que se serve de uma água suja. Segue o inserto para sua constatação:

66 Isto é régio! Deixemos que aqueles que se ergueram com o sofrimento da Espanha tirem o melhor proveito disso – esses domínios do Imperador de Marrocos servem ao nosso pequeno grupo o suficiente. Já tivemos, até aqui, o bastante da Espanha em Gibraltar. Tânger é o lugar que ansiávamos conhecer. Em todos os lugares encontramos coisas e pessoas com aspectos estrangeiros, mas sempre com uma noção de mistura com o familiar. Então, a novidade da situação perdia parte de sua força. Queríamos algo total e inflexivelmente estrangeiro – estrangeiro de cima abaixo – estrangeiro do centro à circunferência – estrangeiro dentro, fora e em volta. (TWAIN, 1997, p. 76, tradução nossa). 181

The Phoenicians, the Carthagenians, the English, Moors, Romans, all have battled for Tangier – all have won it and lost it. Here is a ragged, oriental-looking negro from some desert place in interior Africa, filling his goat-skin with water from a stained and battered fountain built by the Romans twelve hundred years ago67. (TWAIN, 1997, p. 79)

Twain perambula pelas ruas de Tânger. Visita o mercado, observa as pessoas e sua extrema pobreza que lhe pareciam, realmente, tão estrangeiras e faz seu relato sobre esses mouros.

(TWAIN, 1997, p. 77)

67 Os fenícios, os cartagineses, os ingleses, mouros e romanos, todos batalharam por Tânger – todos ganharam e a perderam. Aqui existe um negro maltrapilho com aparência oriental, vindo de algum lugar deserto do interior da África, enchendo seu embornal com águas de uma fonte suja e barrenta, construída pelos romanos há mil e duzentos anos. (TWAIN, 1997, p. 79, tradução nossa). 182

They have also a small gold coin worth two dollars. And that reminds me of something. When Morocco is in state of war, Arab couriers carry letters through the country, and charge a liberal postage. Every now and then they fall into the hands of marauding bands and get robbed. Therefore, warned by experience, as soon as they have collected two dollars’ worth of money they exchange it for one of those little gold pieces, and when robbers come upon them, swallow it. The stratagem was good while it was unsuspected, but after that the marauders simply gave the sagacious United States mail an emetic and sat down to wait68. (TWAIN, 1997, p. 81)

A passagem é uma denúncia social vista pelos olhos de um narrador que mirava a penúria daquele povo. O fato de o Marrocos estar em constante estado de guerra gera uma taxação postal liberal e os mensageiros mouros são roubados por saqueadores. A indigência é tanta que, advertidos pela experiência, trocam os dólares que recebem por uma pequena peça de ouro e as engolem para não serem malogrados. O relato, no final da passagem, causa um certo mal estar, ao lermos que tais saqueadores, advertidos pela experiência, dão ao mensageiro uma droga para fazê-lo vomitar e sentam-se para esperar.

Apesar de a narrativa causar no leitor um certo estranhamento em relação ao ato escatológico de vomitar, não observamos ironia ou humor por parte da burlesca personagem twainiana. A máscara de que o narrador se serve, nesse momento, traduz a própria voz de Samuel Clemens – nascido no Mississipi e testemunha de tantas injustiças que acometeram seu povo.

Adiantando-nos mais um pouco na narrativa, Twain descreve com acuidade o

Imperador de Marrocos.

68 Eles também têm uma pequena moeda de ouro no valor de dois dólares e faz-me lembrar de algo. Quando Marrocos está em estado de guerra, os mensageiros árabes transportam cartas por todo o país e cobram uma franquia postal liberal. A cada instante, eles caem nas mãos dos bandos saqueadores e são roubados. No entanto, advertidos pela experiência, assim que recolhem os dois dólares, trocam por uma daquelas pequenas moedas de ouro e quando os ladrões chegam, eles as engolem. O estratagema era bom enquanto não era suspeito, mas depois disso os saqueadores simplesmente davam ao sagaz mensageiro dos Estados Unidos, um emético (droga que provoca o vômito) e sentavam-se para esperar. (TWAIN, 1997, p. 81, tradução nossa). 183

The Emperor of Morocco is a soulless despot, and the great officers under him are despots on a smaller scale. There is no regular system of taxation, but when the Emperor or the Bashaw want money, they levy on some rich man, and he has to furnish the cash or go to prison. Therefore, few men in Morocco dare to be rich. It is too dangerous a luxury. Vanity occasionally leads a man to display wealth, but sooner or later the Emperor trumps up a charge against him – any sort of one will do – and confiscates his property. Of course, there are many rich men in the empire, but their money is buried, and they dress in rags and counterfeit poverty. Every now and then the Emperor imprisons a man who is suspected of the crime of being rich, and makes things so uncomfortable for him that he is forced to discover where he has hidden his money69. (TWAIN, 1997, p. 82)

A descrição retrata a própria voz do Twain antiimperialista ao revelar que tanto o

Imperador ou o Paxá quando querem dinheiro tomam-no, subjugando seu povo. A tirania dos déspotas obriga as pessoas que possuem algum bem a enterrá-lo para não serem usurpadas e, quando descobertas, são obrigadas a entregar o que possuem para os “desalmados.”

Ainda em Marrocos, novamente o ideário antiimperialista de Twain vem à tona ao fazer mais uma denúncia contra a tirania e ao mostrar-se em defesa desse povo dominado, como vemos no episódio subseqüente:

When a man steals cattle, they cut off his right hand and left leg, and nail them up in the market-place as a warning to every body. Their surgery is not artistic. They slice around the bone a little; then break off the limb. Sometimes the patient gets well; but, as a general thing, he don’t. However, the Moorish heart is stout. The Moors were always brave. These criminals undergo the fearful operation without a wince, without a tremor of any kind, without a groan! No amount of

69 O Imperador do Marrocos é um déspota desalmado e as grandes autoridades abaixo dele são déspotas em menor escala. Não existe um sistema regular de impostos, porém, quando o Imperador ou o Paxá querem dinheiro, eles arrecadam-no de um algum homem rico e esse tem de fornecê-lo ou vai para a prisão. Por essa razão, poucos homens em Marrocos atrevem-se a ser ricos. O luxo é muito perigoso. Às vezes, a vaidade leva um homem a ostentar sua riqueza, mas mais cedo ou mais tarde o Imperador arruma uma acusação – qualquer tipo serve – e confisca sua propriedade. Claro que existem homens ricos no Império, mas seu dinheiro fica enterrado e eles se vestem de trapos e fingem indigência. A cada momento, o Imperador aprisiona um homem que é suspeito do crime de ser rico e faz com que as coisas lhe sejam tão desagradáveis que ele é forçado a revelar onde escondeu seu dinheiro. (TWAIN, 1997, p. 82, tradução nossa). 184

suffering can bring down the pride of a Moor, or make him shame his dignity with a cry70. (TWAIN, 1997, p. 84)

A cena narrada é permeada de perversidade. Twain não está blefando. Fala novamente por meio dos olhos de um narrador indignado com as atrocidades sofridas pelos mouros. Ao descrever a fatídica cirurgia, não poupa o leitor dos detalhes.

Enaltece a bravura desse povo que mesmo submetido à terrível mutilação, nada pronuncia, não lamenta. Quando usa o adjetivo “criminosos” referindo-se a essa gente,

Twain o faz aludindo ao passado dos mouros que tantas invasões sangrentas realizaram ao longo da história, todavia o agravo sofrido não era racional.

2. PEREGRINAÇÃO PELA FRANÇA E ITÁLIA

A grande expedição continua. Nossos peregrinos agora navegam em direção à

França. Passam o dia da Independência norte-americana – 4 de julho - a bordo do

Quaker City, em alto mar. “We passed the Fourth of July on board the Quaker City, in mid-ocean.” (TWAIN, 1997, p. 90). Ao aportarem em Marselha e depois de algumas peripécias lá experimentadas e narradas em momentos anteriores, os peregrinos resolvem percorrer o continente de trem para melhor apreciá-lo.

70 Quando um homem rouba gado, eles cortam sua mão direita e a perna esquerda e penduram-nas no mercado aberto como uma advertência a todos. A cirurgia não é artística. Eles dilaceram um pouco em volta do osso e quebram fora o membro. Algumas vezes, o paciente fica bem; mas, geralmente, não. Entretanto, o coração do mouro é valente. Os mouros sempre foram corajosos. Esses criminosos suportam a pavorosa operação sem nenhuma contorção, sem um tremor qualquer que seja, sem um gemido! Nenhum tipo de sofrimento pode abater o orgulho de um mouro ou fazê-lo humilhar sua dignidade com uma lamentação. (TWAIN, 1997, p. 84, tradução nossa). 185

(TWAIN, 1997, p. 108)

O relato se desdobra mostrando um narrador diferente daquele que anteriormente fizera denúncias sociais deixando transparecer seu ideário antiimperialista, como podemos verificar no excerto que se segue:

We are not infatuated with these French railway cars, though. We took first class passage, not because we wished to attract attention by doing a thing which is uncommon in Europe, but because we could make our journey quicker by so doing. It is hard to make railroading pleasant, in any country. It is too tedious. Stage-coaching is infinitely more delightful. Once I crossed the plains and deserts and mountains of the West, in a stage-coach, from the Missouri line to California, and since then all my pleasure trips must be measured to that rare holiday frolic. Two thousand miles of ceaseless rush and rattle and clatter, by night and by day, and never a weary moment, never a lapse of interest! The first seven hundred miles a level continent, its grassy 186

carpet greener and softer and smoother than any sea, and figured with designs fitted to its magnitude – the shadows of the clouds71. (TWAIN, 1997, p. 106)

Mark Twain-narrador nesse momento representa a voz do americano iconoclasta ao desestimar a tecnologia européia. A viagem de trem de primeira classe não supera uma viagem de diligência pela América – “é enfadonha”, relata o narrador impregnado pelo espírito de um nacionalismo exacerbado, referindo-se à comodidade oferecida nas viagens pelos trens europeus. Ao dizer que certa vez fizera uma viagem de diligência do Missouri à Califórnia e que fora extremamente agradável, o narrador mais uma vez blefa. Faz-se de tolo e provoca o humor.

Em sua proposição inicial, no prefácio de The Innocents Abroad, Twain declara- se honesto ao sugerir ao leitor um novo olhar diante do Velho Mundo. Nesse sentido, o leitor, proclamado pela suposição de que o narrador dirigirá seu olhar de forma justa, deixa-se levar por suas impressões. Assim, as impressões e a visão do narrador significarão as mesmas do leitor. Essa cumplicidade existente entre narrador e leitor é ingrediente indispensável na construção do humor e da ironia do autor Samuel

Clemens.

A descrição da natureza norte-americana, “com seu tapete de relva mais verde, mais macio e mais suave que qualquer mar e decorado com esboços talhados para a sua magnitude – as sombras das nuvens ”(TWAIN, p.106) remete à questão da

71 No entanto, não estamos deslumbrados com esses vagões franceses. Compramos passagens de primeira classe, não por que quiséssemos chamar a atenção por fazermos algo que não fosse comum na Europa, mas sim pelo fato de podermos fazer nossa viagem o mais rápido possível. É difícil fazer uma viagem de trem agradável em qualquer país. É extremamente tedioso. Viajar de diligência é infinitamente melhor. Uma vez, atravessei as planícies, desertos e montanhas do Oeste em uma diligência, na linha que ia do Missouri à Califórnia e, desde então, todas as minhas viagens agradáveis devem ser medidas por aquelas raras e divertidas férias. Duas mil milhas de incessante agitação, algazarra e barulho dia e noite. E nenhum momento enfadonho, nenhuma falta de interesse! As primeiras setecentas milhas, uma planície uniforme com seu tapete de relva mais verde, mais macio e mais suave que qualquer mar e decorado com esboços talhados para a sua magnitude – as sombras das nuvens. (TWAIN, 1997, p. 106, tradução nossa). 187 alteridade refletida por meio da natureza. “As nature seems to be the most radical representative for the Other, and the encounter with nature the most sharply marked experience of Otherness, literature, by its very nature, is also an active force in the struggle with the natural Otherness72” escrevem, na introdução do livro Nature:

Literature and its Otherness (1997, p. 8), Svent Erik Larsen, Morten NØjgaard e

Annelise Ballegaard Petersen.

Dentro dessa perspectiva, podemos afirmar que o narrador de The Innocents

Abroad, ao buscar na natureza da América o escopo de seu relato, encontra a própria imagem do norte-americano: aquele “inocente” que não crê encontrar na Europa as modernidades tecnológicas e nem mesmo as instituições republicanas do Novo Mundo e sim, pobreza, tirania e um “cansativo passado histórico”.

Quando o “inocente” narrador reitera, no trecho subseqüente, as belezas naturais americanas com sua paisagem permeada por búfalos e índios, afirma não haver razões para comparações tão depreciativas entre uma viagem de trem monótona e a régia viagem ensolarada atravessando o continente em uma diligência e, finda, ao confirmar que, realmente, a viagem de trem era chata - esse narrador, mais uma vez, esforça-se em mostrar as discrepâncias entre o Novo e o Velho Mundo, demonstrando soberania.

But I forgot. I am in elegant France, now, and not scurrying through the great South Pass and the Wind River Mountains, among antelopes and buffaloes, and painted Indians on the war path. It is not meet that I should make too disparaging comparisons between hum- drum travel on a railway and that royal summer flight across a continent in a stage-coach. I meant in the beginning, to say that

72 Como a natureza parece ser a mais fundamental representação do Outro e o encontro com ela, a mais evidente experiência da Alteridade, a literatura, por sua própria natureza, é também uma força ativa na luta com a Alteridade natural. (LARSEN, NØJGAARD, PETERSEN, 1997, p. 8, tradução nossa). 188

railway journeying is tedious and tiresome, and so it is73. . . jlnthlkthetj (TWAIN, 1997, p. 107)

Há de se observar que esta soberania do americano remete-nos ao clássico shakespeariano, The Tempest, escrito em 1611. A peça retrata a soberania que vitimou tanto a natureza quanto o homem.

Para Leo Marx, professor de Literatura nos Estados Unidos e pesquisador de temas que abordam as diferenças entre tecnologia e cultura americanas, nos séculos

XIX e XX, The Tempest retrata o modelo típico da literatura norte-americana, pois está inserida em algumas obras de escritores clássicos como Melville, Thoreau e Mark

Twain, cujos heróis saem em viagem em busca de sua própria identidade e ao retornarem à sociedade recuperam a sensação de perda que foi a razão de seu “exílio temporário.” (MARX apud LARSEN, NOJGAARD, PETERSEN, 1997, p. 156).

Nesse sentido, Twain, ao sair da América e se deslocar rumo a diferentes lugares, busca reafirmar sua própria identidade de cidadão americano; um escapismo, talvez, do momento pós-guerra.

A Guerra Civil e o progresso das estradas de ferro encerraram os gloriosos dias em que o rio Mississipi representava a artéria central da nação. E a guerra, dando por encerrados os ricos dias do Mississipi, marcou também uma modificação na qualidade de vida da América que, para muitos, constituiu uma deterioração dos valores morais norte-americanos. “Mark Twain, particularmente, referia-se a algo que desaparecera da

73 Mas me esqueci – estou na elegante França agora e não percorrendo o grande Canal do Sul, nem as Montanhas do Rio Caudaloso entre antílopes, búfalos e índios pintados para a guerra. Não há razão para eu fazer comparações tão depreciativas entre uma viagem de trem monótona e aquela régia viagem ensolarada, atravessando um continente em uma diligência. Mencionei, no começo, que a viagem de trem é entediante e cansativa, e é mesmo. (TWAIN, 1997, p. 107, tradução nossa). 189 vida norte-americana depois da guerra: uma certa simplicidade, uma certa inocência”, referenda Lionel Trilling, em Literatura e Sociedade (1953, p. 135).

Assim refletindo, a “soberania” vestida por Mark Twain, na passagem do trem europeu, é uma defesa pessoal por viver, no momento em que escreve seu relato de viagem, a perda do rio Mississipi que tanto encantava a sua infância.

Mergulhando mais profundamente em nossa reflexão, podemos afirmar que a topografia de The Tempest antecipa a geografia moral da imaginação americana e, conseqüentemente, a peça “deve ser lida como um prólogo da literatura norte- americana”, afirma Marx (p.156). O professor também cognomina The Tempest de “A fábula shakespeariana sobre a América” pelo fato de sua gênese, metaforicamente, relacionar-se com a formação das colônias estadunidenses, com a questão da deteriorização da natureza e, claro, mais significantemente, pela figura de Caliban que representa o colonizado, o criado servil que é subjugado pela soberania de Próspero – duque de Milão que representa o europeu, o colonizador.

Analisando sob essa perspectiva, podemos dizer que esta é uma das várias fábulas que vigiam a imaginação do Novo Mundo; outras histórias que também traçam essa relação são as aventuras e descobertas de Colombo, Robinson Crusoe, John Smith e Pocahontas

Voltando à soberania de que o narrador Twain se vale, em algumas passagens, podemos agora compreendê-la melhor, após uma breve imersão feita na última peça escrita por Shakespeare – The Tempest, e também justificá-la por entendermos, por meio da linguagem metafórica, que tanto a literatura norte-americana quanto seu povo, ao vivenciarem o processo de colonização e de perdas, herdam do colonizador uma 190 espécie de auto-soberania como desforra. E essa ironia twainiana ao relatar, com desdém, os avanços da modernidade, traz à tona sua profunda desilução que acaba por transformar-se em uma espécie de soberania.

Verdade é que, em muitas passagens, podemos notar um certo orgulho do narrador oriundo de uma América “notável” – nacionalismo - construindo um humor picante ao relatar, em tais entrechos, as diferenças arquetípicas entre a América e o

Velho Mundo; entretanto, tal conduta, na verdade, é mais uma máscara para esconder a sensação de estar “fora do lugar” – expressão usada por Said referindo-se àqueles que saem de sua terra natal carregando a condição de apátridas. Fora do Lugar (2003)

é o nome do livro de memórias de Said que relata sua experiência como um hierosolimita que passa a viver no Egito, no Líbano e, posteriormente, nos Estados

Unidos.

Indo adiante em nossa viagem, Twain e peregrinos após o “incômodo” trajeto percorrido no trem de primeira classe chegam a Paris. Olhando, vendo e tudo registrando no Arc de l’Etoile, o narrador tece escarnecedores comentários sobre o

Sultão da Turquia. Em momentos anteriores já mencionamos tal passagem, entretanto, não pudemos nos abster de, aqui, transcrever mais esse fragmento:

Abdul Aziz, Sultan of Turkey, Lord of the Ottoman Empire! Born to a throne; weak, stupid, ignorant, almost, as his meanest slave; chief of a vast royalty, yet the puppet of his Premier and the obedient child of a tyrannical mother; a man who sits upon a throne – the beck of whose finger moves navies and armies – who holds in his hands the power of life and death over millions – yet who sleeps, sleeps, eats, eats, idles with his eight hundred concubines, and when he is surfeited with eating and sleeping and idling, and would rouse up and take the reins of government and threaten to be a Sultan, is charmed from his purpose by wary Fuad Pacha with a pretty plan for a new palace or a new ship – charmed away with a new toy, like any other restless child; a man who sees his people robbed and oppressed by soulless tax- 191

gatherers, but speaks no word to save them; who believes in gnomes, and genii and the wild fables of the Arabian Nights, but has small regard for the mighty magicians of to-day, and is nervous in the presence of their mysterious railroads and steamboats and telegraphs; who would see undone in Egypt all that great Mehemet Ali achieved, and would prefer rather to forget than emulate him; a man who found his great Empire a blot upon the earth – a degraded, poverty-stricken, miserable, infamous agglomeration of ignorance, crime, and brutality, and will idle away the allotted days of his trivial life, and then pass to the dust and the worms and leave it so!74 (TWAIN, 1997, p. 127-128)

O olhar twainiano é totalmente embebido pelo seu pensamento antiimperialista.

Não temos mais à nossa frente o americano repleto de soberania como narrador, mas sim o cidadão, o homem simples que se incomodava com o poder da tirania e dos monarcas que deixavam à margem da pobreza seu povo sofrido. Reduz Abdul-Aziz a um completo nada por ter edificado seu grande império às custas de injustiças, negligências, oprobriedades e domínio sobre um povo oprimido.

A peregrinação continua. Ainda em Paris o grupo conhece a Catedral de Notre

Dame. Assim que inicia o relato, o narrador finge despir-se do papel de tolo e tece elogios a si mesmo e ao grupo de peregrinos dizendo surpreender-se com o quanto sabem e conhecem e o quão inteligentes são por terem reconhecido “na hora, o velho amontoado gótico marron.” (TWAIN, 1997, p. 130).

74 Abdul Aziz, Sultão da Turquia, Senhor do Império Otomano! Nascido para um trono; fraco, idiota, ignorante, quase como seu mais ignóbil escravo; dirigente de uma imensa realeza, ainda que uma marionete de seu Premier e o filho obediente de uma mãe tirana; um homem que se senta em um trono – e ao estalar dos dedos, move armadas e exércitos – que segura em suas mãos o poder da vida e da morte de mais de milhões – ainda que durma, durma, coma, coma, prevarique com suas oitocentas concubinas, quando está farto de comer, dormir e prevaricar, desperta e toma os reinos do governo e ameaça ser um Sultão, é atraído de seu propósito pelo bélico Paxá Fuad, com um plano fenomenal para um novo palácio ou um novo navio – encantado com um novo brinquedo como qualquer outra criança inquieta; um homem que vê seu povo sendo roubado e oprimido pelos desalmados coletores de impostos e nada pronuncia a favor dele; que acredita em gnomos, gênios e nas extravagantes lendas das Noites Árabes, mas tem pequena consideração pelos poderes mágicos de hoje e fica incomodado com a presença de suas misteriosas estradas de ferro, navios a vapor e telégrafos; que vê inacabado, no Egito, tudo o que o grande Mehemet Ali realizou e prefere esquecê-lo a emulá-lo; um homem que edificou seu grande Império, uma mácula sobre a terra – um degradado, desprezível, miserável, vil amontoado de ignorância, crime e brutalidade e quer continuar no ócio os dias destinados de sua insignificante vida para então, passar ao pó e aos vermes e deixar tudo no mesmo! (TWAIN, 1997, p. 127-128, tradução nossa). 192

O tom iconoclástico e irônico volta na narrativa ao se referir à catedral como “um amontoado gótico” e percebemos que o Twain burlesco se faz presente no relato. A descrição da grande catedral se transforma em uma verdadeira comédia. Porém, observamos que mesmo dentro dessa narrativa tão cheia de meneios de humor, existe também a denúncia contra as atrocidades cometidas em nome da Santa Madre Igreja.

Segue o texto para o deleite do leitor:

We went to see the Cathedral of Notre Dame. – We had heard of it before. It surprises me, sometimes, to think how much we do know, and how intelligent we are. We recognized the brown old Gothic pile in a moment; it was like the pictures. We stood at a little distance and changed from one point of observation to another, and gazed long at its lofty square towers and its rich front, clustered thick with stony, mutilated saints who had been looking calmly down from their perches for ages. The Patriarch of Jerusalem stood under them in the old days of chivalry and romance, and preached the third Crusade, more than six hundred years ago; and since that day they have stood there and looked quietly down upon the most thrilling scenes, the grandest pageants, the most extraordinary spectacles that have grieved or delighted Paris. These battered and broken-nosed old fellows saw many and many a cavalcade of mail-clad knights come marching home from Holy Land; they heard the bells above them toll the signal for the St. Bartholomew’s Massacre, and they saw the slaughter that followed; later, they saw the Reign of Terror, the carnage of the Revolution, the overthrow of a king, the coronation of two Napoleons, the christening of the young prince that lords it over a regiment of servants in the Tuileries to-day – and they may possibly continue to stand there until they see the Napoleon dynasty swept away and the banners of a great Republic floating above its ruins. I wish these old parties could speak. They could tell a tale worth the listening to75. p. 130) (TWAIN, 1997, p. 130)

75 Fomos ver a Catedral de Notre Dame. – Já tínhamos ouvido falar dela. Surpreende-me, às vezes, o quanto sabemos e o quão inteligente somos. Reconhecemos o velho marrom amontoado Gótico na hora; era tal qual as fotografias. Postamo-nos a uma pequena distância e mudávamos a posição de nossa observação de um ponto para outro e olhávamos atentamente para sua imponente simetria e para sua suntuosa entrada, densamente amontoada com pedras, santos mutilados que, do alto, olhavam, há anos, calmamente para baixo. O Patriarca de Jerusalém ficava abaixo deles, como nos velhos tempos de cavalaria e lirismo e apregoou a Terceira Cruzada há mais de seiscentos anos; e desde este dia, estão postados lá e olhando silenciosamente para as mais emocionantes cenas, os mais suntuosos e mais extraordinários espetáculos que molestaram ou deleitaram Paris. Esses velhos companheiros rebocados e de nariz quebrado viram muitas e muitas cavalgadas dos cavaleiros mensageiros, marchando para casa, vindos da Terra Santa; chegaram a ouvir o badalar dos sinos, avisando o massacre de São Bartolomeu e viram a carnificina que se seguiu; mais tarde, foram testemunhas do Reino do Terror, da matança da Revolução, da queda do rei, da coroação de dois Napoleões, do batismo do jovem príncipe que controla um regimento de criados em Tuileries hoje – e eles possivelmente continuarão a se postar lá até verem a dinastia de Napoleão ser varrida e as bandeiras da grande República flutuando sobre suas ruínas. Desejaria que esses velhos 193

Por meio dos olhos dos “santos mutilados e de nariz quebrado”, Twain volta no tempo – faz um flash back – e relata as horrendas conquistas realizadas pela Santa

Igreja repletas de sangue, massacres e impiedades.

A cena é contemplada com uma série de imagens sensoriais (imagery), tanto visuais – “olhavam silenciosamente para as mais emocionantes cenas”, quanto auditivas – “chegaram a ouvir o badalar dos sinos avisando o Massacre de São

Bartolomeu.” Nesse processo, o narrador faz dos santos, ali postados, testemunhas oculares e auditivas da “imoralidade do clero católico”(ARRUDA, 2004, p. 61) durante as reformas religiosas e ainda deseja dar vida a elas: “desejaria que esses velhos partícipes pudessem falar. Eles contariam uma história digna de ser ouvida.”(TWAIN, 1997, p. 130). Assim procedendo, o narrador traz à guisa de exemplo, as idiossincrasias do autor marcadas pela sua posição contra os impérios.

Ainda na suntuosa catedral, Twain diz conhecer a história de sua construção: “It was built by Jean Sans-Peur, Duke of Burgundy, to set his consciense at rest – he had assassinated the Duke of Orleans” – “Ela fora construída por Jean Sans-Peur, Duque de Bourgogne, para tirar-lhe o peso da consciência por ter assassinado o Duque de

Orleans” (TWAIN, 1997, p. 131 – tradução nossa) e, em seguida, escreve:

Alas! those good old times are gone, when a murderer could wipe the stain from his name and soothe his troubles to sleep simply by getting out his bricks and mortar and building an addition to a church76. (TWAIN, 1997, p. 131)

partícipes pudessem falar. Eles contariam uma história digna de ser ouvida. (TWAIN, 1997, p. 130, tradução nossa). 76 Ave! aqueles bons e velhos tempos se foram, quando um assassino podia apagar a mácula de seu nome e suavizar seus problemas de consciência simplesmente removendo seus tijolos e argamassa e, em seguida, construindo uma igreja. (TWAIN, 1997, p. 131, tradução nossa). 194

A justiça não era cumprida naqueles “bons e velhos tempos” e a construção de uma igreja era o bastante para redimir um criminoso de seus pecados, denuncia o peregrino Twain por meio de seu olhar de censura contra as impunidades que privilegiavam as classes dominantes.

Prosseguindo a peregrinação e ainda tendo como pano de fundo a Notre Dame, o olhar do “inocente ianque” e agora o de um “filisteu” relata as incontáveis pinturas que vira nas capelas. Descreve os mantos usados pelo Papa, na época que coroou Napoleão

I e a quantidade de ouro e prata guardada na sacristia. O narrador não poupa os detalhes na descrição; entretanto, assim o faz para mostrar ao leitor, mais uma vez, o grande poder detido pela Igreja.

Dentro dessa perspectiva, o narrador ainda referenda aos leitores seu prévio conhecimento, nos Açores, do “pedaço grande da verdadeira cruz do Salvador” e, ironicamente, completa: “mas não os pregos”. Dessa forma, Twain reitera a contumaz fé que a Igreja apregoava aos seus seguidores para dela tirar proveito. Quando descreve o manto cheio de sangue do Arcebispo de Paris, Twain é irônico. O exagero dos detalhes encontrados na narrativa, leva-nos a perceber que a ficção permeia o

“honesto” relato twainiano. Todavia, esse artifício é mais uma armadilha usada pelo narrador para denunciar o poderoso império criado pela Igreja, como também a extremada idolatria pelas relíquias que essa cultivava, com a intenção de mais arrebatar de seus fiéis. Ver inserto subseqüente:

We loitered through the grand aisles for an hour or two, staring up at the rich stained glass windows embellished with blue and yellow and crimson saints and martyrs, and trying to admire the numberless great pictures in the chapels, and then we were admitted to the sacristy and shown the magnificent robes which the Pope wore when he 195

crowned Napoleon I; a wagon-load of solid gold and silver utensils used in the nails of the true cross, a fragment of the cross itself, a part of the crown of thorns. We had already seen a large piece of the true cross in a church in the Azores, but no nails. They showed us likewise the bloody robe which that Archbishop of Paris wore who exposed his sacred person and braved the wrath of the insurgents of 1848, to mount the barricades and hold aloft the olive branch of peace in the hope of stopping the slaughter. His noble effort cost him his life. He was shot dead. They showed us a cast of his face, taken after death, the bullet that killed him, and the two vertebrae in which it lodged. These people have a somewhat singular taste in the matter of relics. Ferguson told us that the silver cross which the good Archbishop wore at his girdle was seized and thrown into the Seine, where it lay embedded in the mud for fifteen years, and then an angel appeared to a priest and told him where to dive for it; he did dive for it and got it, and now it is there on exhibition at Notre Dame, to be inspected by any body who feels an interest in inanimate objects of miraculous intervention. 77 (TWAIN, 1997, p. 131-132)

Interessante observarmos que, “debochadamente”, Twain chama todos os guias que encontra durante sua peregrinação de “Ferguson” e assim procedendo, faz uma crítica ao turismo em massa que ainda em expansão não contava com guias competentes, apesar dos anúncios e das propagandas afirmarem o contrário.

Dando andamento à nossa excursão, os peregrinos rumam em direção ao

Necrotério. O narrador se serve da descrição de cenas mórbidas com o intuito de mostrar ao leitor as vítimas silenciosas de mortes que guardavam um “sinistro

77 Demoramo-nos cerca de uma ou duas horas nas grandiosas passagens, olhando fixamente para as ricas e descoloridas janelas de vidro, enfeitadas com santos e mártires azuis, amarelos e carmesins, e tentando admirar as incontáveis grandes pinturas nas capelas, e então foi-nos permitido entrar na sacristia e nos mostraram os magníficos mantos que o Papa usou quando coroou Napoleão I; um monte de apetrechos de ouro e prata maciços usados nas grandiosas procissões públicas e cerimônias da Igreja; alguns pregos da Cruz verdadeira, um fragmento da própria Cruz, uma parte da coroa de espinhos. Já tínhamos visto um pedaço grande da cruz verdadeira em uma igreja nos Açores, mas não pregos. Eles nos mostraram, também, o manto cheio de sangue que o Arcebispo de Paris usou quando expôs sua sagrada pessoa e enfrentou corajosamente a fúria dos insurgentes de 1848 para montar as barricadas, segurando para o alto o galho de oliveira pacífico, na esperança de cessar o massacre. Seu nobre esforço custou-lhe a vida. Fora nocauteado. Mostraram-nos um molde de seu rosto tirado após sua morte, assim como a bala que o matou e as duas vértebras onde se instalou a bala. Estas pessoas têm um gosto especial em matéria de relíquias. Ferguson nos contou que a cruz de prata que o bom Arcebispo usava na cintura foi encontrada e lançada ao Sena, onde permaneceu enterrada no lodo por quinze anos e, então, um anjo apareceu a um padre e lhe disse onde mergulhar para recuperá-la; ele realmente mergulhou em busca dela e recuperou-a e, agora, está lá em exibição; na Notre Dame pode ser vista por todos que sentem um interesse em objetos inanimados da intervenção miraculosa. (TWAIN, 1997, p. 131-132, tradução nossa). 196 segredo”. As peças de roupa manchadas de sangue, vestimentas patrícias picadas e perfuradas por instrumentos cortantes completam, juntamente com um chapéu roto e também cheio de sangue, o quadro das atrocidades sofridas pelos anônimos perseguidos pela política dominante.

O tom da narrativa é despojado da habitual comicidade. Twain mostra-se contrito diante do cenário impiedoso. As vítimas vilipendiadas, ali dispostas, naquele necrotério, guiam o olhar de Twain para mais uma barbárie deflagrada em nome do império. Se o narrador faz seu relato por meio da voz do autor ou se serve da ficção, não sabemos; não obstante, temos consciência de que sua intenção, ao assim narrar essa passagem, é a de trazer, mais uma vez, à superfície, o seu olhar contra as iniqüidades verificadas em prol da construção de um grande império.

O homem nu que jazia sobre a pedra e agarrado a um galho, com a mão entumecida, complementa nossa reflexão sobre as mortes misteriosas e nos faz questionar: o homem naturalmente morrera afogado ou afogaram-no? A água que fluía incessantemente sobre seu “rosto medonho”, leva-nos a buscar no Dicionário de

Símbolos seu significado: “ a água é fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência.” (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1982, p. 15) . Destarte, podemos dizer que a água, que sobre o rosto do homem nu fluía, trazia-lhe a vida que perdera imerso nela própria. Segue a passagem para verificação:

Next we went to visit the Morgue, that horrible receptacle for the dead who die mysteriously and leave the manner of their taking off a dismal secret. We stood before a grating and looked through into a room which was hung all about with the clothing of dead men; coarse blouses, water-soaked; the delicate garments of women and children; patrician vestments, backed and stabbed and stained with red; a hat that was crushed and bloody. On a slating stone lay a drowned man, 197

naked, swollen, purple; clasping the fragment of a broken bush with a grip which death had so petrified that human strength could not unloose it – mute witness of the last despairing effort to save the life that was doomed beyond all help. A stream of water trickled ceaselessly over the hideous face78. (TWAIN, 1997, p. 132-133)

(TWAIN, 1997, p. 132)

78 Em seguida, fomos visitar o Necrotério. Aquele horrível refúgio para os mortos que morrem misteriosamente e deixam, a maneira de sua passagem, um sinistro segredo. Postamo-nos diante da grade e olhamos para dentro de um quarto onde estavam penduradas as roupas dos homens mortos; blusões grosseiros, encharcados d’água; peças de roupas delicadas, de mulheres e crianças; vestimentas patrícias, picadas e esfaqueadas e manchadas de vermelho; um chapéu que estava despedaçado e cheio de sangue. Sobre uma pedra inclinada, jazia um homem afogado, nu, inchado, roxo; agarrado a um fragmento de galho quebrado, com um vigor que a morte petrificara aquela força humana de tal modo que não conseguira afrouxá-lo – vítima silenciosa do último desesperador esforço para salvar a vida que estava condenada, não obstante qualquer ajuda. Um fluxo de água escoava incessantemente sobre o rosto medonho. (TWAIN, 1997, p. 132-133, tradução nossa). 198

As ilustrações contidas em The Innocents Abroad - linguagem não-verbal - representam um “objeto segundo com relação a um primeiro (linguagem verbal) e o emissor deverá apresentar traços comuns possíveis de serem confrontados tanto em seus elementos constitutivos como em sua significação ou interpretante.”(PIERCE,

1987, p. 43).

Assim, podemos dizer que Twain, o emissor, realmente se preocupou em proporcionar ao seu leitor uma coerente constelação de significados ao unir o vernacular de sua prosa com a imagem. Convidamos, outrossim, nosso leitor para constatar essa coerência comunicativa encontrada na imagem que ilustra o relato do necrotério.

A narrativa se desenrola concomitante à andança dos peregrinos. No parque francês, Bois de Boulogne, a atenção de Twain é atraída por uma cruz que marca o local onde um celebrado trovador fora morto: “the cross marks the spot where a celebrated troubador was waylaid and murdered in the fourteenth century”79. (TWAIN,

1997, p. 138). O fato chama-lhe a atenção e não deixa de registrar mais um delito acontecido no século XIV. Porém, ao registrar o fato, sutilmente, ironiza o povo francês por tanto reverenciar o passado a ponto de uma morte ocorrida há tanto tempo e com desconhecimento do nome do trovador, merecer uma cruz como marco de contrição.

A passagem que se segue é mesclada por ironia e humor como bem pode observar o leitor:

79 A cruz marca o local onde um celebrado trovador foi tocaiado e assassinado no século XIV. (TWAIN, 1997, p. 138, tradução nossa). 199

It seemed curious enough to be standing face to face, as it were, with old Dagobert I, and Clovis and Charlemagne, those vague, colossal heroes, those shadows, those myths of a thousand years ago! I touched their dust-covered faces with my finger, but Dagobert was deader than the sixteen centuries that have passed over him, Clovis slept well after his labor for Christ, and old Charlemagne went on dreaming of his paladins, of bloody Roncesvalles, and gave no heed to me80. (TWAIN, 1997, p. 139)

Em visita ao Père la Chaise, cemitério parisiense, Twain novamente se traveste de “inocente filisteu” ao postar-se “face a face” com Dagoberto I – “rei franco da dinastia merovíngia, início do séc. VII” (Enciclopédia Barsa – Vol. 6 p. 153) , Clóvis – também “rei da dinastia merovíngea, conquista a Gália em 482, originando o Reino

Franco” (Enciclopédia Barsa – Vol. 5 p. 356) e Carlos Magno – (742-814) “Imperador da dinastia carolíngia.”(Enciclopédia Barsa – Vol. 5 p.106).

Nesse gênero, entrementes, o narrador constrói seu relato cheio de irreverência e comicidade ao pronunciar que Dagoberto estava mais morto que outrora, Clóvis dormia após seu labor por Jesus Cristo – “convertera-se ao catolicismo para ter mais poderes sobre seu império”(ARRUDA, 2004, p. 357) e o velho Carlos Magno sonhava com paladinos e com sanguinários Roncesvalles – “turba de sarracenos que lutou com o Conde Rolando – nome que inspira a Canção de Rolando: texto fundador da literatura cavalheiresca medieval” (ARRUDA, 2004, p. 107) ; todavia, ninguém lhe

“dera bola.”

80 Parecia um tanto curioso estar postado face a face, como eu estava, com o velho Dagoberto I, Clóvis e Carlos Magno, aqueles irresolutos e colossais heróis, aquelas sombras, aqueles mitos de mil anos atrás! Toquei seus rostos cobertos de pó com meu dedo, todavia Dagoberto estava mais morto que os dezessei séculos que o precediam, Clóvis dormia bem após seu labor por Jesus Cristo e o velho Carlos Magno sonhava com seus paladinos, com seus sangüinários Roncesvalles e não me deu a mínima. (TWAIN, 1997, p. 139, tradução nossa). 200

A grandiosidade e a pompa do Palácio de Versalhes não foram elementos suficientes para que nosso narrador pudesse omitir sua posição antiimperialista como pode o leitor constatar no fragmento:

We walked through the great hall of sculpture and the one hundred and fifty galleries of paintings in the palace of Versailles, and felt that to be in such a place was useless unless one had a whole year at his disposal. These pictures are all battle-scenes, and only one solitary little canvas among them all treats of anything but great French victories. We wandered, also, through the Grand Trianon and the Petit Trianon, those monuments of royal prodigality, and with histories so mournful – filled, as it is, with souvenirs of Napoleon the First, and three dead Kings and as many Queens81. (TWAIN, 1997, p. 156)

(TWAIN, 1997, p. 154)

81 Caminhamos por meio do grande saguão de esculturas e, através das cento e cinqüenta galerias de pinturas do palácio de Versalhes, sentimos que estar em tal lugar era inútil, a não ser que tivéssemos um ano inteiro à disposição. Essas pinturas são todas cenas de batalhas e apenas uma tela solitária, dentre todas elas, trata de algo que não se relaciona com as grandes vitórias francesas. Percorremos, também, por meio do Grande e Pequeno Trianon, monumentos de prodigalidade régia e com suas histórias tão deploráveis – cheios, claro, de souvenirs de Napoleão I e de três Reis mortos e igual número de Rainhas. (TWAIN, 1997, p. 156, tradução nossa). 201

As inúmeras pinturas expostas significavam o orgulho das grandes vitórias francesas em batalhas de competições pelo poder. No percurso dos peregrinos por meio do Grande e do Pequeno Trianon, não obstante a “prodigalidade régia” descrita no entrecho, incita em nosso narrador o comentário: “com suas histórias tão deploráveis.” Os souvenirs que sortiam as grandes salas representavam emblemas dos grandes mitos do império – Napoleão I, reis e rainhas; contudo, para Twain, esses símbolos figuravam a opressão e a luta desigual.

O fragmento subseqüente relata o poder dissipador de Luís XIV (1661-1715) que manteve, ao logo de seu governo, a supremacia francesa na Europa. No plano social,

“Luiz XIV promoveu a ascensão da burguesia e para controlar a nobreza atraiu-a para a corte, oferecendo luxo, festas e orgias.” (ARRUDA, 2004, p. 87)

O Palácio de Versalhes passou a acolher cerca de seis mil pessoas que satisfaziam a vaidade de Luiz XIV, o “Rei Sol”, que adorava ver-se cercado por centenas de cortesãos adulando-o. Símbolo da monarquia absolutista, Luiz XIV provoca inúmeras guerras com o propósito de estender as terras da França para o Leste.

Prova de sua vaidade e de seu descabido poder pode ser apreciado no relato de

Twain quando, em companhia dos ianques peregrinos, percorre Versalhes.

When Louis XIV had finished the Grand Trianon, he told Maintenon he had created a Paradise for her, and asked if she could think of any thing now to wish for. He said he wished the Trianon to be perfection – nothing less. She said she could think of but one thing – it was summer, and it was balmy France – yet she would like well to sleigh-ride in the leafy avenues of Versailles! The next morning found miles and miles of grassy avenues spread thick with snowy salt and sugar, and a procession of those quaint sleighs waiting to receive the 202

chief concubine of the gayest and most unprincipled court that France has ever seen!82 (TWAIN, 1997, p. 156-157)

Transcrevemos um excerto da história do poder absolutista na França para que o leitor, realmente, possa constatar as idiossincrasias de Luíz XIV: “para ratificar e dar maior valor ao tratado de paz com a Espanha, Luíz XIV, apesar de ter várias amantes, casa-se, em 1600, com Marie-Thérèse, da Áustria, filha do rei espanhol e tem como amante preferida, Maintenon a quem satisfaz os mais extravagantes caprichos.”

(ARRUDA, 2004, p. 88). O despotismo, a falta de moral e os crimes de perjúria cometidos por Luiz XIV tanto desinquietam Twain que esse lhe dedica um fragmento denunciando um pouco da história francesa que poucos americanos conheciam.

A história de Napoleão III também merece destaque na narrativa twainiana, contudo, em primeiro lugar, iluminaremos nossa análise com mais um pouco da história francesa para melhor situar o nosso leitor: “em 1832, com a morte do único filho de Napoleão I, o rei de Roma, Luiz Napoleão tornou-se o pretendente bonapartista ao trono francês. Tentou em 1836, em Estrasburgo e em 1840, em

Bolonha, fazer-se proclamar imperador e derrubar Luiz Felipe.” (ARRUDA, 2004,

224). Assim posto, Twain, ao chamar Napoleão III de “ex-camarada americano”, referenda o tempo em que fora deportado para os Estados Unidos (1836), lá, permanecendo por quatro anos. “Ao voltar à França, apresenta-se como defensor dos

82 Quando Luís XIV terminou o Grande Trianon, ele disse a Maintenon que havia criado um Paraíso para ela e perguntou-lhe se ela ainda tinha algum desejo. Ele disse que seu desejo era que o Trianon fosse a perfeição – nada menos. Então ela lhe falou que para a perfeição faltava uma coisa – era verão e tempo da França aromatizada – mas mesmo assim, o que ela realmente gostaria era de andar de trenó pelas grandes avenidas cheias de folhas em Versalhes! Na manhã seguinte, foram encontradas milhas e milhas de avenidas cheias de grama, cobertas com neve de sal e açúcar espalhados e um cortejo com aqueles esquisitos trenós esperando para receber a concubina-mór da corte mais imoral e sem princípios que a França já houvera visto. (TWAIN, 1997, p. 156-157, tradução nossa). 203 ideais napoleônicos e com a nova Constituição chega à presidência da República, em

1848.”(ARRUDA, 2004, 225).

O narrador de The Innocents Abroad menciona a história da ligação entre

Napoleão III e Maximiliano, uma vez que, naquele momento – julho de 1867 – Twain podia imaginar “sua crédula vítima, Maximiliano, jazer rija e dura no

México”(TWAIN, 1997, p. 158), em virtude do “fracasso de Napoleão III, ao tentar expandir os interesses coloniais franceses ao México, culminando na execução de

Maximiliano, da Áustria, pelos nacionalistas mexicanos liderados por Benito

Juarez.”(Arruda, 2004, 226).

Tanto Napoleão III quanto sua mulher, Eugênia de Mondijo são exilados.

Destarte, Twain ainda lança, no entrecho a seguir, algumas palavras irônicas destacando a “autoconfiança”, “bom senso” e “vigor” de Napoleão III, pelos feitos causados após sua rendição: a queda do regime imperial e a instauração da República francesa.

I can not feel friendly toward my quondam fellow-American, Napoleon III, especially at this time*, when in fancy I see his credulous victim, Maximilian, lying stark and stiff in Mexico, and his maniac widow watching eagerly from her French asylum for the form that will never come – but I do admire his nerve, his calm self- reliance, his shrewd good sense. *July, 186783 (TWAIN, 1997, p. 158)

Outrossim, podemos perceber, na narrativa, mais um traço antiimperialista do jornalista-escritor. É mister destacarmos, antes de continuarmos a peregrinação, que

83 Não posso sentir-me simpatizante diante de meu ex-camarada americano Napoleão III, especialmente neste momento*, quando, em imaginação, vejo sua crédula vítima, Maximiliano, jazer rija e dura no México e sua maníaca viúva esperando, ansiosamente, de seu asilo francês, pelo documento de liberdade, que nunca virá –, mas eu realmente admiro seu vigor, sua autoconfiança, seu perspicaz bom senso. *Julho de 1897. (TWAIN, 1997, p. 158, tradução nossa). 204 quando Twain zarpa no Quaker City e escreve seu relato de viagem, ele tinha apenas

32 anos. Talvez a quantidade de informações, nomes e datas que faziam parte do repertório cultural twainiano, como também seu grande talento ao construir humor, ironia, sátira e paródia, possam causar um certo estranhamento em nosso leitor, já que mencionamos, em momentos anteriores, que Twain era apenas um cidadão comum oriundo de uma pequena cidade do sul da América.

Nesse sentido, uma palavra em defesa ao “senso comum” de Mark Twain será dada. Para tanto, faremos uso de alguns fragmentos do poema do poeta norte- americano, James Fields (1817-1881) – The Owl-Critic - “O Crítico da Coruja”

(tradução nossa) - encontrado no livro, The Comic Imagination in American

Literature, editado por Louis Rubin Jr., em um ensaio escrito pelo próprio editor.

(1974, p. 413).

The Owl-Critic descreve um jovem intelectual que entra em uma barbearia e põe- se a observar uma coruja em seu poleiro. “Quem empalhou esta coruja?”, pergunta.

Refere-se à maneira incorreta como a coruja fora empalhada e informa ao barbeiro suas impecáveis credenciais que lhe conferiram tal julgamento. “I’ve learned Owl- eology, I’ve passed days and nights in a hundred collections and cannot be blinded to any deflections.”(p.413). “Aprendi eologia de corujas, passei dias e noites estudando centenas de exemplares e não posso deixar de observar qualquer desvio.” (tradução nossa). E o jovem intelectual continua, em seu poema, a dizer em detalhes o que há de errado no modo como a coruja fora empalhada. A posição de suas garras, pernas, bico e pescoço estão “against all bird-laws” – “contra todas as leis da ornitologia.”

(tradução nossa). 205

No final das várias estrofes encontramos o refrão: “And the barber kept on shaving” – “E o barbeiro continuava a barbear” (tradução nossa). Na penúltima estrofe a coruja se mexe, sai de seu poleiro, caminha e pia para o jovem e o barbeiro, passivamente, continuava a barbear, enquanto o jovem taxidermista se indigna pelo fato de seus estudos não lhe terem valido para fazer uma apreciação correta da coruja.

O poema de Fields nos demonstra, com humor, que a proposição de que a aprendizagem, por meio de livros e cursos de ornitologia, é tão irreal quanto não ser capaz de discernir entre uma coruja morta - empalhada - e uma viva, e também que o

“conhecimento” adquirido em razão de estudos avançados pode falhar ao tentar descrever a vida real.

O herói do poema é o barbeiro. Ele não tem educação universitária, nunca estudara ornitologia; não obstante, sabe o essencial – a coruja não está morta.

Enquanto o jovem platonista discorre sobre os detalhes de uma pobre taxidermia, o barbeiro, bom aristoteliano, não diz nada e continua passivamente a barbear. O jovem intelectual tem conhecimento, podendo, dessa forma, teorizar com eloqüência. O barbeiro, a figura vernacular, não necessita de teoria, pois ele possui o fato, que é o que interessa.

Assim ilustrado, podemos ponderar que Samuel Clemens não é oriundo da cultura dos grandes letrados que tiveram sua formação acadêmica em centros como o de Boston, Nova York ou Filadélfia, onde a aptidão fora importada da Inglaterra ou

Europa. Ele não freqüentou a universidade. Seu riverboat foi a sua Yale ou a sua

Harvard. Ele veio do Missouri e sempre esteve em contato com a vida real, sem nenhuma teoria. Entrementes, sua origem não diminui seu talento, seu humor 206 sobrepuja a teoria, seu estilo lingüístico vai além de qualquer habilidade, vindo a ser o ponto fundamental de sua obra.

Em suma, Mark Twain é o barbeiro do poema de Fields, pois o essencial ele sabe e conhece: colorir a vida real com seu humor inigualável e fazer deste humor e desta linguagem a voz de seu povo.

Dando continuidade à excursão, a peregrinação alcança Milão e mais uma vez o olhar do Twain-filisteu toma conta da narrativa. Na Catedral de Milão, detalhes cheios de humor são relatados com o intuito de afiançar a sua posição contrária ao procedimento da Igreja.

(TWAIN, 1997, p. 181) 207

The priests showed us two of St. Paul’s fingers, and one of St. Peter’s; a bone of Judas Iscariot, (it was black) and also bones of all the other disciples; a handkerchief in which the Saviour had left the impression of his face. Among the most precious of the relics were a stone from the Holy Sepulchre, part of the crown of thorns, (they have a whole one at Notre Dame,) a fragment of the purple robe worn by the Saviour, a nail from the Cross, and a picture of the Virgin and Child painted by the veritable hand of St. Luke. This is the second of St. Luke’s Virgins we have seen. Once a year all these holy relics are carried in procession through the streets of Milan84. (TWAIN, 1997, p. 180)

O narrador faz uso de uma espécie de ritmo narrativo carregado de exageros para enfatizar o acentuado apreço que a Igreja dá às relíquias. As frases mergulham-se umas nas outras e nesse encadeamento semântico nada fica solto. No movimento da narrativa é construído o humor.

Ana Cristina César, em Escritos da Inglaterra (1988) chama esse movimento de

“melodia da narração, corrente sintática que organiza o mundo da prosa.”(p. 95).

Acrescenta ainda que “esse fato ocorre principalmente quando a narração está diretamente voltada para o leitor, quando há intenção clara de seduzi-lo através do estabelecimento de laços entre leitor e narrador.” (p. 96).

De fato, o personagem narrador de Twain, ao dizer ter visto os dedos de São

Paulo e de São Pedro, um osso (preto) de Judas Iscariotes, um lenço do Salvador com seu rosto impresso, uma pedra do Santo Sepulcro, parte da coroa de espinhos do

Senhor (reiterando ter visto uma inteira em Notre Dame), um pedaço do manto do

Salvador, um prego da cruz e a pintura da Virgem pintada por São Lucas – sendo esta a segunda Virgem de São Lucas que ele havia visto – transforma-se, mais uma vez, em

84 Os padres nos mostraram dois dedos de São Paulo e um de São Pedro; um osso de Judas Iscariotes (estava preto) e também ossos de todos os outros discípulos; um lenço em que o Salvador deixou impresso seu rosto. Dentre as relíquias mais preciosas, estavam uma pedra do Santo Sepulcro, parte da coroa de espinhos (eles tinham uma inteira em Notre Dame), um pedaço do manto roxo usado pelo Salvador, um prego da Cruz e uma pintura da Virgem com o menino Jesus, pintada pela própria mão de São Lucas. Essa é a segunda das Virgens de São Lucas que vimos. Uma vez por ano essas santas relíquias são carregadas em procissão pelas ruas de Milão. (TWAIN, 1997, p. 180, tradução nossa). 208 um americano iconoclástico, um turista desordeiro, um filisteu ignorante, um democrático destemido que desnuda os logros imperiais da Igreja; seduzindo, dessa forma, o olhar do leitor, uma vez que foram estabalecidos laços entre leitor e narrador, por meio do encadeamento semântico presente no relato.

A viagem se adianta. Os “inocentes” agora esquadrinham as igrejas de Veneza.

Depois de “apreciarem” inúmeras obras de arte e imagens de santos na Catedral de São

Marcos, Twain narrador relata:

(TWAIN, 1997, p. 226)

When we see a monk going about with a lion and looking tranquilly up to heaven, we know that that is St. Mark. When we see a monk with a book and a pen, looking tranquilly up to heaven, trying to think of a word, we know that that is St. Matthew. When we see a monk sitting on a rock, looking tranquilly up to heaven, with a human skull beside him, and without other baggage, we know that that is St. Jerome. Because we know that he always went flying light in the 209

matter of baggage. When we see a party looking tranquilly up to heaven, unconscious that his body is shot through and through with arrows, we know that is St. Sebastian. When we see other monks looking tranquilly up to heaven, but having no trade-mark, we always ask who those parties are. We do this because we humbly wish to learn. We have seen thirteen thousand St. Jeromes, and twenty-two thousand St. Marks, and sixteen thousand St. Matthews, and sixty thousand St. Sebastians, and four million of assorted monks, undesignated. . .85 (TWAIN, 1997, p. 238)

A narrativa torna-se cada vez mais hilária ao passo que as frases vão se mergulhando umas nas outras e criando seu campo semântico. A extenuante mostra de imagens de santos suscita no narrador um tom irreverente. Faz-se mais uma vez de tolo ao mencionar os nomes dos santos – São Marcos, São Mateus, São Jerônimo, São

Sebastião e a maneira como se postam.

O tolo narrador mais parece uma criança “passando a lição da escola” para si mesma com o propósito de decorá-la. Os símbolos que identificam as imagens dos santos são dessacralizados na narrativa. O leão de São Marcos, o livro e a caneta de

São Mateus, a pedra e o crânio humano de São Jerônimo, as flechas de São Sebastião transformam-se todos em “marcas registradas”- “trade-marks.” A ilustração do “Santo

Desconhecido” – “St. Unknown by the Old Masters” – é uma paródia àquelas imagens que não possuíam os símbolos identificadores ou “trade-marks”, segundo o narrador.

A comicidade no relato do “inocente narrador” aumenta ao chegar ao clímax da narrativa. Admite a ignorância dos ianques ao dizer que “quando vêem outros monges

85 Quando vemos um monge circulando com um leão e olhando tranqüilamente para o céu, sabemos que é São Marcos. Quando vemos um monge com um livro e uma caneta, olhando tranqüilamente para o céu, tentando pensar em uma palavra, sabemos que é São Mateus. Quando vemos um monge sentado sobre uma pedra, olhando tranqüilamente para o céu, com um crânio humano ao seu lado e sem nenhum apetrecho, sabemos que é São Jerônimo. Quando vemos um indivíduo olhando tranqüilamente para o céu, sem ter consciência de que seu corpo está todo furado por flechas, sabemos que é São Sebastião. Quando vemos outros monges olhando tranqüilamente para o céu, mas sem nenhuma marca-registrada, sempre perguntamos quem são. Fazemos isso porque nós humildemente desejamos aprender, vimos treze mil São Jerônimos, vinte e dois mil São Marcos, dezesseis mil São Mateus, sessenta mil São Sebastiões e quatro milhões de monges variados, sem designação. . . (TWAIN, 1997, p. 238, tradução nossa) 210 olhando tranqüilamente para o céu, mas sem nenhuma marca registrada, sempre perguntam quem são e assim o fazem porque ‘humildemente’ desejam aprender.”(TWAIN,1997, p. 238, tradução nossa).

(TWAIN, 1997, p. 238)

211

(TWAIN, 1997, p. 238) 212

(TWAIN, 1997, p. 238)

213

(TWAIN, 1997, p. 239) 214

O vocábulo “humildemente” fora empregado com ironia. Na verdade, o narrador dele faz uso para criticar, mais uma vez, o excessivo número de imagens de santos espalhados pelo Velho Mundo e logra ao criar “axiomáticas” quantidades das imagens que, até então, vira por toda Itália; assim delineando, enfaticamente, sua ironia e seu humor.

Um pouco mais à frente, na passagem, Twain escreve: “It is impossible to travel through Italy without speaking of pictures, and I can see them through others’eyes?”–

“É impossível viajar pela Itália sem falar das pinturas e posso vê-las por meio dos olhos dos outros?” (TWAIN, 1997, p. 240, tradução nossa). Percebemos nesse fragmento uma introspecção do narrador: o mesmo narrador que escrevera, no prefácio do relato, que mostraria ao leitor algo diferente do que vira até então.

Mais uma vez, a indignação de Twain quanto ao enorme patrimônio da Igreja e à isenção de impostos que o Estado lhe concede instiga-o a fazer uma acusação contra o clero que, insensível ao gentio, desfrutava desse império. O contraste entre a ignóbil pobreza do povo italiano e a faustosa pompa da Igreja está registrado na ilustração subseqüente. O entrecho seguinte faz o relato dessa discrepância flagrada pelos olhos denunciadores do narrador:

There are thousands of churches in Italy, each with untold millions of treasures stored away in its closets, and each with its battalion of priests to be supported. And then there are the estates of the Church – league on league of the richest lands and the noblest forests in all Italy – all yielding immense revenues to the Church, and none paying a cent in taxes to the State. In some great districts the Church owns all the property – lands, watercourses, woods, mills and factories. They buy, they sell, they manufacture, and since they pay no taxes, who can hope to compete with them?86 (TWAIN, 1997, p. 256)

86 Há milhares de igrejas na Itália, cada uma com incontáveis tesouros acumulados em suas dependências e cada uma com seu batalhão de padres para sustentar. E assim então, ela tem seu patrimônio próprio – léguas e léguas das mais ricas terras e das mais nobres paragens por toda a Itália – todas trazendo imensos rendimentos para a Igreja e nenhuma pagando um centavo de imposto ao Estado. Em algumas vastas regiões, a Igreja é dona de toda 215

(TWAIN, 1997, p. 258)

Mark Twain, um pouco mais à frente de sua narrativa, ainda conjetura sobre a discrepância entre a riqueza da igreja e a pobreza do povo italiano: “something must be done to feed a starving treasury, and there is no other resource in all Italy – none but the riches of the Church”87(TWAIN, 1997, p. 257)

Em Roma, Twain não deixa de dar destaque ao extermínio dos cristãos que, por muitas vezes, teve como palco o grande Coliseu. A combinação impiedosa de dever

a propriedade – terras, cursos d’água, bosques, engenhos e fábricas. Eles compram, vendem, produzem e uma vez que não pagam impostos, quem tem esperança de com eles competir? (TWAIN, 1997, p. 256, tradução nossa). 87 Algo tem que ser feito para alimentar os carentes cofres públicos e não há outro recurso em toda a Itália – nenhum, a não ser as riquezas da Igreja. (TWAIN, 1997, p. 257, tradução nossa). 216 religioso e prazer suscita perplexidade aos olhos do jornalista-narrador, como podemos averiguar:

But in ancient Rome they combined religious duty with pleasure. Since it was necessary that the new sect called Christians should be exterminated, the people judged it wise to make this work profitable to the State at the same time, and entertaining to the public. In addition to the gladiatorial combats and other shows, they sometimes threw members of the hated sect into the arena of the Coliseum and turned wild beasts in upon them. It is estimated that seventy thousand Christians suffered martyrdom in this place. This had made the Coliseum holy ground, in the eyes of the followers of the Saviour.88 (TWAIN, 1997, p. 277)

Não há comicidade no inserto supracitado. Os olhos twainianos não deixariam de registrar as inúmeras mortes de cristãos no velho Coliseu por terem conclamado sua fé a Jesus Cristo, negando reverência a imperadores e a deuses pagãos que lhes era imposta.O Império Romano tem início em 27 a.C. perdurando até 476 d.C. (TWAIN, 1997, p. 281) Durante esse período Roma viu passar incontáveis dinastias, imperadores, tetrarquias e homens sem escrúpulos que usurparam seu povo em nome do poder.

A viagem continua, o Quaker City singra pelas águas mediterrâneas. Destino? O

Oriente.

88 Mas na Roma antiga eles associavam dever religioso com prazer. Desde que se julgava necessário que a nova seita, denominada Cristãos devesse ser exterminada, as pessoas julgavam sensato fazer essa tarefa proveitosa ao Estado e, ao mesmo tempo, divertir o público. Em adição aos combates dos gladiadores e outras apresentações, eles, algumas vezes, jogavam membros da odiada seita na arena do Coliseu e lançavam feras famintas sobre eles. É estimado que setenta mil Cristãos sofreram martírio nesse lugar. Isso faz do Coliseu um chão sagrado aos olhos dos seguidores do Salvador. (TWAIN, 1997, p. 277, tradução nossa). 217

3. O ORIENTE

Segundo Edward Said em seu livro Orientalismo, o Oriente é parte integrante da civilização e da cultura materiais da Europa. (2001, p.14). O que Said propõe, portanto, é reafirmar que o Oriente seja visto e estudado como uma extensão da

Europa, já que lá estão localizadas as maiores, mais ricas e mais antigas colônias européias.

Durante o século XIX, o Oriente foi o destino favorito do viajante europeu e sobre ele, esses viajantes escreviam. Essa literatura européia de estilo oriental baseava- se nas experiências pessoais desses viajantes. À guisa de exemplo, podemos nos lembrar de Flaubert. Said escreve em Orientalismo que “os momentos mais célebres da viagem oriental de Flaubert têm relação com Kuchuk Hanem, uma famosa dançarina e cortesã egípcia que ele conheceu em Wadi Halfa, no Egito. Ela foi o protótipo de várias personagens femininas de seus romances, com sua sensualidade, delicadeza e, segundo Flaubert, ‘estúpida vulgaridade’.”(2001, p.194). O que lhe agradou especialmente na dançarina era que ela parecia não lhe fazer nenhuma exigência. Assim, ao mesmo tempo em que o “odor nauseabundo” dos percevejos de sua cama se misturavam, de modo encantador, com “o perfume de sua pele, banhada em sândalo”, Flaubert desfrutava da luxúria oriental, de acordo com Said. Depois de sua viagem ao Oriente, Flaubert escreve que “a mulher oriental não passa de uma máquina: não distingue um homem de outro.”(2001, p. 194).

A sexualidade bruta e irredutível de Kuchuk permitia que a mente de Flaubert vagasse em ruminações, cujo obsessivo poder sobre ele nos lembra um pouco as 218 personagens Deslauriers e Frédéric Moreau, no final de A Educação Sentimental, escrito em 1869. Segue fragmento para constatação.

Quanto a mim, mal fecho os olhos. Olhando para aquela bela criatura adormecida, (ela roncava, com a cabeça encostada em meu braço: eu havia enfiado meu dedo indicador debaixo do colar dela), minha noite foi um longo e infinitamente intenso devaneio – foi por isso que eu fiquei. Pensava em minhas noites nos bordéis de Paris – toda uma série de velhas memórias voltou – e pensava nela, na sua dança, na sua voz quando cantava canções que para mim eram sem sentido e até mesmo sem palavras distingüíveis. (FLAUBERT, 2002, p. 220)

Em todos os seus romances Flaubert associa o Oriente ao escapismo da fantasia sexual. Emma Bovary e Frédéric Moreau anseiam por aquilo que não têm em suas monótonas vidas burguesas, e aquilo que eles se dão conta de que querem vem-lhes facilmente, em seus devaneios, envoltos em chavões orientais: haréns, princesas, príncipes, escravos, véus, homens e mulheres que dançam. Repertório esse experimentado durante as viagens do próprio Flaubert pelo Oriente. Em Victory,

Joseph Conrad repete a experiência de Flaubert, ao fazer de sua heroína, Alma, “uma dançarina prostituta e irresistivelmente atraente.” (SAID, 2001, p. 196).

Mulheres também viajaram pelo Oriente e sobre ele escreveram. Lady Mary

Wortley Montagu (1689-1762), descendente da nobreza inglesa viaja para a Turquia, em 1714, acompanhando o marido que era embaixador no país. Imergindo nos costumes turcos e transformando suas experiências em um livro de gênero epistolar, escreve Turkish Embassy Letters (1718). Os costumes sexuais dos otomanos são descritos em uma das cartas, experiência esta adquirida quando conhece uma das esposas favoritas do imperador Mustafá:

219

I did not omit this opportunity of learning all that I possibly could of the Seraglio, which is so entirely unknown amongst us. She assured me that the story of the Sultan’s throwing a handkerchief is altogether fabulous89. (MONTAGU apud BASSNETT, 1993, p. 109)

De acordo com Bassnett, a carta de Lady Mary refere-se a um relato de Paul

Rycaut em seu livro, Present State of the Ottoman Empire (1668), no momento que escreve: “the Damsels being ranged in order by the Mother of the Maids, he (the

Sultan) throws his handkerchief to her, where his eye and fantasy best directs, it being token of her election to his bed.”(RYCAUT apud BASSNETT, 1993, p.109) – “As

Donzelas dispostas em ordem pela Serva-Mor, ele (o Sultão) lança-lhe seu lenço, onde seu olhar e fantasia melhor lhe aprazerem, simbolizando a ela, a eleita para sua cama.”

(tradução nossa).

O historiador inglês, Alexander Kinglake (1809-1891), ao escrever sobre o

Oriente, também observa o tom sensual. O excerto subseqüente narra as águas de

Bósforo e compara Constantinopla com Veneza.

Venice strains out from the steadfast land, and in old times would send forth the Chief of State to woo and wed the reluctant sea; but the stormy bride of the Doge is the bowing slave of the Sultan – she comes to his feet with the treasures of the world – she bears him from palace to palace – by some unfailing witchcraft, she entices the breezes to follow her, and fan the pale cheek of her lord – she lifts his armed navies to the very gate of his garden – she watches the walls of his Serail – she stifles the intrigues of his Ministers – she quiets the scandals of his Court – she extinguishes his rivals and hushes his naughty wives all one by one. So vast are the wonders of the Deep.90 gmçlkmgçlmfgçmfnçl(KINGLAKE apud BASSNETT, 1993, p. 112)

89 Não omiti essa oportunidade de aprender tudo que eu podia sobre o Harém, que é totalmente desconhecido entre nós. Ela me afiançou que a história do Sultão jogar o lenço é completamente fantástica. (MONTAGU apud BASSNETT, 1993, p. 109, tradução nossa). 90 Veneza se estende da terra firme e, em tempos passados, enviaria o Chefe de Estado para cortejar e desposar o mar renitente; a tempestuosa noiva do Doge é a submissa escrava do Sultão – ela vem com seus pés repletos de tesouros do mundo – ela o conduz de palácio a palácio – por alguma magia infalível, ela seduz a brisa para segui-la e refresca o rosto pálido de seu senhor – ela iça sua esquadra munida de armas ao exato portão de seu jardim – ela vigia os muros de seu Harém – ela sufoca as intrigas de seus Ministros – ela abranda os escândalos 220

Na narrativa de Kinglake as águas são sexualizadas. O mar de Constantinopla é descrito como a figura masculina do século XIX, cheia de fantasias sexuais que sonha com amantes escravas que servem seus senhores com a luxúria. Ao findar, o autor usa a letra maiúscula no vocábulo Deep para ressaltar a vastidão das maravilhas da

“Profundeza”, remetendo às entranhas do órgão sexual feminino.

Fazendo um estudo comparativo entre as literaturas dos séculos XVII, XVIII e

XIX, que tiveram no Oriente seu cenário, podemos ressaltar que, de fato, para o europeu, o Oriente representou mais que um lugar exótico. Significou também a lascívia e o erotismo. No entanto, a literatura norte-americana do século XIX, ao narrar viagens ao Oriente, é desprovida dessa sexualidade e mostra mais o autor engajado em diferentes aventuras – Melville e Twain, por exemplo, cujo texto reflete os melindres vitorianos em relação ao sexo.

O fragmento que se segue traz o relato twainiano sobre o mesmo lugar que

Kinglake descrevera – as águas de Bósforo que banham Constantinopla. No entanto,

Twain dá mais luz à embarcação que lhe serviu para fazer a travessia que às águas orientais – que tanto despertaram o interesse de Kinglake - como podemos constatar no inserto que dá prosseguimento à expedição dos peregrinos:

It is handsomely and neatly fitted up, but no man could handle it well in the turbulent currents that sweep down the Bosporus from the Black Sea, and few men could row it satisfactorily even in still water. It is a long, light canoe (caique), large at one end and tapering to a knife blade at the other. They make that long sharp end the bow, and you can imagine how these boiling currents spin it about. It has two oars, and sometimes four, and no rudder. You start to go to a given point and you run in fifty different directions before you get there. First one oar is backing water, and then the other; it is seldom

de sua Corte – ela aniquila seus rivais e silencia suas desobedientes esposas, uma a uma. Tão vastas são as maravilhas da Profundeza! (BASSNETT, 1997, p. 112, tradução nossa). 221

that both are going ahead at once. This kind of boating is calculated to drive an impatient man mad in a week. The boatmen are the awkwardest, the stupidest, and the most unscientific on earth, without question. Ashore, it was – well, it was an eternal circus. People were thicker than bees, in those narrow streets, and the men were dressed in all the outrageous, outlandish, idolatrous, extravagant, thunder-and- lightning costumes that ever a tailor with the delirium tremens and seven devils could conceive of91. (TWAIN, 1997, p. 358-359)

A experiência pessoal do autor com as embarcações do Mississipi leva o zombeteiro narrador a subestimar a embarcação em que atravessam o estreito de

Bósforo. Ao descrever a ampla canoa em seus detalhes buscamos no texto de Lukács –

Narrar ou Descrever – suas palavras ao escrever: “a narração distingue e ordena. A descrição nivela todas as coisas.”(LUKÁCS, 1968, p. 66)

De fato, o nivelamento determinado pelo método descritivo faz com que o texto assuma um caráter episódico. A cena da embarcação descrita é delineada na mente do leitor no ato da leitura, criando, assim, um elo entre significantes e significados – cena cinematográfica. Twain troça dos remadores e ao chegar em terra firme descreve as estranhas vestimentas dos homens de Constantinopla de maneira extremamente jocosa.

91 Ele é amplo e habilmente construído. Porém, nenhum homem consegue manobrá-lo bem na turbulenta correnteza que arrasta Bósforo do Mar Negro e poucos homens conseguem remá-lo com eficácia, mesmo em águas calmas. É uma canoa (caiaque) comprida, espaçosa e leve em uma ponta e afilando como lâmina de faca na outra. Eles fazem daquele alongamento pontudo e comprido a proa e você pode imaginar como estas agitadas ondas o fazem rodopiar. Ele tem dois remos, algumas vezes quatro e nenhum timão. Você começa a ir para algum ponto específico e percorre umas cinqüenta direções diferentes até chegar onde deseja. O primeiro remo fica na parte de trás, seguido pelo outro e raramente os dois se adiantam com presteza. Calcula-se que esse tipo de embarcação enlouquece um homem impaciente em uma semana. Os remadores são os mais desengonçados, os mais idiotas e os mais despreparados da terra, sem dúvida. Em terra firme era, bem, era um circo eterno. As pessoas fervilhavam como abelhas naquelas ruas estreitas e os homens vestiam os mais ultrajantes, grotescos, idólatras, extravagantes e o “raio que o parta” trajes que nem mesmo um alfaiate com delirium tremens e possuído por sete demônios poderia conceber. (TWAIN, 1997, p. 358-359, tradução nossa). 222

(TWAIN, 1997, p. 411) 223

Na Síria, ao ver a pobreza de seu povo, o narrador põe de lado sua postura burlesca e mostra-se oposto à tirania do Império Otomano. Essa é a mesma voz do cidadão Mark Twain que se declara antiimperialista na América, trinta e três anos após essa viagem. A opressão à raça humana sempre incomodou o escritor-jornalista, seja essa raça filipina, cubana, chinesa ou oriental. O fragmento demonstra sua indignação com o abusivo sistema de impostos cobrados na Síria.

If ever an oppressed race existed, it is this one we see fettered around us under the inhuman tyranny of the Ottoman Empire. [. . .] The Syrians are very poor, and yet they are ground down by a system of taxation that would drive any other nation frantic92. (TWAIN, 1997, p. 443)

O povo sírio é descrito como pessoas de boa índole. Falta-lhe, entretanto, educação e liberdade para ser feliz. O assédio ao turista estrangeiro questionando se o poderoso mundo não virá socorrê-lo e salvá-lo, retrata a esperança da indigência em ver-se liberta, algum dia, da subjugação de seu impiedoso governo. A esperança que tinha esse povo por uma vida digna nos dirige à lenda de Ali Babá – o herói do Oriente que consegue desmantelar uma quadrilha de quarenta ladrões e devolver o dinheiro ao povo miserável. Nesse sentido, cada estrangeiro representava uma nova expectativa, era a própria história de Ali Babá personificada. A ilustração nos mostra “Twain- turista-Babá”, no Oriente.

O Sultão, denuncia o narrador, esbanja dinheiro como água em Paris e na

Inglaterra e seus subjugados sofrem as conseqüências desse esbulho. Aqui, mais uma

92 Se já existiu uma raça oprimida, é esta que vemos subjugada à nossa volta, sob a tirania desumana do Império Otomano. [. . .] Os sírios são muito pobres e ainda são assolados por um sistema de impostos que deixa qualquer nação desolada. (TWAIN, 1997, p. 443, tradução nossa). 224 vez, faz-se presente o olhar antiimperialista do autor-narrador. O excerto ulterior bem demonstra nossa análise:

These people are naturally good-hearted and intelligent, and with education and liberty, would be a happy and contented race. They often appeal to the stranger to know if the great world will not some day come to their relief and save them. The Sultan has been lavishing money like water in England and Paris, but his subjects are suffering for it now93. (TWAIN, 1997, p. 444)

(TWAIN, 1997, p. 466)

93 Essas pessoas têm bom coração e são inteligentes. Com educação e liberdade, seriam uma raça feliz e satisfeita. Elas freqüentemente interpelam o estrangeiro para saber se o poderoso mundo não virá, algum dia, socorrê-las e salvá-las. O Sultão anda esbanjando dinheiro como água na Inglaterra e em Paris e seus subjugados sofrem por isso atualmente. (TWAIN, 1997, p. 444, tradução nossa). 225

A peregrinação alcança Jerusalém.

Mendigos, maltrapilhos, aleijados e cegos

se misturavam à cena das ruas. Os

ianques dirigem-se à Basílica do Santo

Sepulcro. O momento é solene. Diante do

Twain-adâmico toda a história cristã se

(TWAIN, 1997, p. 559) descortina: o local da crucificação de

Jesus, o cenário da flagelação do filho de Deus, o lugar da tumba de onde o Salvador saíra ileso e ressuscitara.

O leitor espera, nesse glorioso momento, um Adão-narrador circunspecto.

Entretanto, a cena Santa é trocada pelos irreventes olhos twainianos que deixam de lado o Sagrado para fazer seu relato sobre o suposto túmulo onde o próprio Adão fora enterrado.

There is no question that he is actually buried in the grave which is pointed out as his – there can be none – because it has never yet been proven that that grave is not the grave in which he is buried. The tomb of Adam! How touching it was, here in a land of strangers, far away from home and friends, and all who cared for me, thus to discover the grave of a blood relation. The unerring instinct odd nature thrilled its recognition. The fountain of my filial affection was stirred to its profoundest depths, and I gave away to tumultuous emotion. I leaned upon a pillar and burst into tears. I deem it no shame to have wept over the grave of my poor dead relative.[…] Noble old man – he did not live to see me – he did not live to see his child. And I – I – alas, I did not live to see him94. (TWAIN, 1997, p. 567)

94 Ninguém duvida de que ele esteja, de fato, enterrado no túmulo que nos foi mencionado como dele – pode ser que não haja ninguém lá – porque nunca foi provado que aquela sepultura não seja a sepultura em que ele está enterrado. O túmulo de Adão! Quão comovente foi, aqui, em terra de estrangeiros, tão longe de casa, dos amigos e de todos que se importam comigo, assim descobrir a sepultura de um parente consangüíneo. Verdade, um parentesco distante, mas mesmo assim um parentesco. O infalível instinto da natureza estremeceu à sua identificação. A fonte de minha filial afeição foi afetada em seu mais profundo âmago e cedeu a uma violenta emoção. Debrucei-me sobre um pilar e irrompi em lágrimas. Julgo não ter que envergonhar-me por ter pranteado sobre a sepultura do meu pobre parente morto.[...] Nobre homem ancião – ele não viveu para me ver – não viveu para ver seu filho. E eu – eu – pobre de mim, não vivi para vê-lo. (TWAIN, 1997, p. 567, tradução nossa). 226

(TWAIN, 1997, p. 566)

A passagem faz uma série de exposições. Primeiro, Mark Twain escarnece a credulidade daqueles que visitavam o túmulo, em seguida parodia a indulgência 227 emocional do turista diante das ruínas do passado e, finalmente, usa clichês desgastados para expressar sua “tristeza pessoal”.

Os peregrinos na Terra Santa tudo vêem e admirados caminham por algumas ruínas que, até então, são mantidas como testemunhas da destruição de Jerusalém, em

70 d.C. “Com ataques de catapultas os romanos romperam os muros de Jerusalém, incendiaram a cidade e massacraram todos os judeus.” (Enciclopédia Barsa – v. 9, p.

456). O cartoon paródico

retrata a tristeza do narrador

diante de algumas ruínas.

Castro Alves (1847-

1871), escreve em 1862, o

poema Destruição de

Jerusalém. Faremos uso das

três últimas estrofes de sua

lírica com o propósito de

registrarmos o extermínio da

Cidade Sagrada.

(TWAIN, 1997, p. 536)

Do viajante os olhos não encontram Senão negros vestígios de cidade; Foi Sião, que findou-se, como um ninho Arrancado ao tufão da tempestade.

Jerusalém na febre dos prazeres A voz não quis ouvir de Jeremias; Pois sim!. . . mas viu bem cedo realizadas Do profeta sombrio as profecias. 228

E em vez do canto ardente das orgias, Só se ouviam as aves de rapina; Os povos converteram-se em argila. Sião? – ei-la – confusa e vasta ruína!!!

Recife – 1862 (ALVES, 1963, p. 60-62)

Assim, podemos justificar grande parte do porquê da desagradável impressão que

Twain tivera ao relatar sobre a Palestina. O eu lírico, ao descrever as ruínas encontradas pelos olhos do viajante, a paisagem desolada que contempla os “negros vestígios de cidade”, transforma signos e imagens em realidade. As aves de rapina se fazem presente na poética de Castro Alves, remetendo, mais uma vez, a imagem da ave de rapina à destruição. O narrador de The Innocents Abroad assim descreve a

Palestina e questiona se pode a praga da Divindade tornar bela uma terra:

Palestine is desolate and unlovely. And why should it be otherwise? Can the curse of the Deity beautify a land?95. (TWAIN, 1997, p. 608)

Deixando para trás a Terra Santa, o Quaker City sulca as águas azuis das

Bermudas. Twain e peregrinos, à proa, despedem-se dos amigos bermudenses: “We bade good-bye to our friends, the Bermudians” (TWAIN, 1997, p.641) e se aproximam do final de seu cruzeiro.

O navio singra pelas águas do Atlântico até que em uma manhã agradável:

95 A Palestina é desolada e desagradável. E por que deveria ser de outra forma? Pode a praga da Divindade embelezar uma terra? (TWAIN, 1997, p. 608, tradução nossa). 229

At last, one pleasant morning, we steamed up the harbor of New York, all on deck, all dressed in Christian garb – by special order, for there was a latent disposition in some quarters to come out as Turks – and amid a waving of handkerchiefs from welcoming friends, the glad pilgrims noted the shiver of the decks that told that ship and pier had joined hands again and the long, strange cruise was over. Amen96. (TWAIN, 1997, p. 642)

(TWAIN, 1997, p. 640)

A viagem chega ao seu fim. O narrador ainda lança uma palavra à latente disposição de alguns marujos de aportarem vestindo trajes turcos - que ele tanto criticara em fragmento anterior -, conquanto ordens especiais de usarem vestimentas

96 Finalmente, em uma manhã agradável, ancoramos no porto de Nova York, todos no convés, todos vestidos com trajes cristãos – por odem especial, pois lá havia uma latente disposição em alguns marinheiros de aportarem como turcos – e dentre o aceno de lenços dos amigos que nos davam boas vindas, os contentes peregrinos perceberam a vibração do convés que dizia que navio e ancoradouro haviam enlaçado novamente as mãos e que a longa e estrangeira viagem havia terminado. Amém! (TWAIN, 1997, p. 642, tradução nossa). 230

“cristãs”, ou seja, roupas mais apropriadas - sóbrias e discretas – em comemoração ao retorno à pátria.

(TWAIN, 1997, p. 635)

Lenços, acenos dos amigos saúdam a chegada dos peregrinos que, alegres observam a junção do navio e ancoradouro, metaforicamente um enlace de mãos, significando que o longo cruzeiro terminara. “Amém!”, finda o narrador o seu relato de viagem.

A cena da chegada do Quaker City pode ser visualizada pela descrição detalhada do narrador. Vem-nos à mente, nesse instante, a chegada do metafórico navio de Walt

Whitman, em seu poema - O Captain, my Captain! – trazendo seu capitão morto, deitado no convés – Abraham Lincoln. Apesar das emoções que tomam conta dos 231 tripulantes dos dois navios serem díspares – os do Quaker City regozijam-se por voltarem aos seus lares e os do navio de Whitman encontram-se imersos em profunda tristeza - , o ardor dos acenos, o flamular das bandeiras e o louvor das pessoas que aguardam no porto são os mesmos.

Com o fim de nossa viagem e também concluindo este capítulo, podemos dizer que procuramos balizar entrechos que justificassem a posição antiimperialista de Mark

Twain na narrativa de seu relato de viagem, pois foi essa nossa proposta no início do capítulo. Porém, o narrador, em sua peregrinação, muitas vezes se transforma em pecador ao zombar da cultura de outrem, pois, às vezes, ele se esquece que a cultura transcende o mundo cotidiano. Assim agindo, dentro de sua personagem burlesca ele parodia a “inocência” dos americanos. E, ao invés de rirmos dele, rimos dos ianques que tiveram uma certa resistência em se “aculturarem”.

Interessante observarmos que a personagem de Bunyan, Cristão, chega ao céu depois de sua peregrinação, enquanto o narrador de The Innocents Abroad e seus peregrinos, ao desempenharem, muitas vezes, o papel de “pecadores” retornam, metaforicamente, ao inferno – a América – pois, será lá que esses exercitarão o papel de sua identidade nacional sem menosprezar os Outros.

232

4 - OS VÂNDALOS AMERICANOS

Propositalmente deixamos os próximos excertos em um tópico distinto, pois neles, o narrador deita um outro olhar. Dos tantos peregrinos que embarcaram na excursão com Twain, um grupo, à parte, é chamado de “vândalos”, pelo narrador. “I could have said more about the American Vandal abroad, and less about other things, but I found that he had too many disagreeable points about him.” (SMITH, 1967, p.

40). “Eu poderia ter dito mais sobre o Vândalo Americano no estrangeiro e menos sobre outras coisas, mas achei que ele tinha pontos desagradáveis demais” – (tradução nossa) - pronuncia Twain em uma de suas conferências sobre a expedição ao retornar do cruzeiro.

Buscamos o significado do verbete, no Novo Dicionário Aurélio da Língua

Portuguesa (1986) e encontramos: vândalo - “membro de um povo germânico de bárbaros que, na Antigüidade, devastaram o sul da Europa e o norte da África.” Pois bem, fica-nos claro que, além desses vândalos praticarem o vandalismo, depredações de monumentos respeitáveis, Twain os inseriu em seu relato, com o propósito de representarem, na expedição, a gama de americanos que, na época, já tinha propósitos devastadores.

Assim refletindo, ao estabelecermos uma relação entre os propósitos de uma

América como a de Lincoln, Whitman ou Twain voltados para o espírito democrático, podemos afirmar que, Twain criou tais personagens para acusar, veladamente, as intenções usurpadoras que possuía o governo norte-americano, nessa ocasião. A exemplo, mencionaremos a idéia do governo estadunidense em realizar uma missão

“civilizadora”, no Havaí, em 1868. 233

Twain, ao chegar de sua excursão, escreve um artigo para o New York Tribune mostrando-se veemente contra as intenções governamentais. Usando de sua ironia,

Twain parodia o discurso xenófobo dos “defensores” das instituições norte- americanas: “podemos transformar aquelas ilhas sonolentas num dos locais mais agitados da terra. É da anexação que aqueles pobres ilhéus precisam. Devemos àqueles que vivem nas trevas negar a luz da vida?”(TWAIN, 2003, p.127).

Por essas razões, ao analisarmos os extratos que se seguem, o leitor poderá também constatar nossa postura:

The incorrigible pilgrims have come in with their pockets full of specimens broken from the ruins. I wish this vandalism could be stopped. They broke off fragments from Noah’s tomb; from the exquisite sculptures of the temples of Baalbec; from the houses of Judas and Ananias, in Damascus; from the tomb of Nimrod the Mighty Hunter in Jonesborough; from the worn Greek and Roman inscriptions set in the hoary walls of the Castle of Banias; and now they have been hacking and chipping these old arches here that Jesus looked upon in the flesh. Heaven protect the Sepulchre when this tribe invades Jerusalem97! (TWAIN, 1997, p. 471)

Percebemos, logo após a leitura do fragmento, que se trata de uma ficção na narrativa twainiana. Ao elencar as várias esculturas depredadas pelo vandalismo do grupo de peregrinos – aqui Twain ainda os chama de peregrinos – o narrador traz à luz o barbarismo e a falta de respeito com o território de outrem. A atitude profana ao cortarem, inclusive, pedaços dos arcos que infligiram o corpo de Jesus remete, tanto à

97 Os incorrigíveis peregrinos chegaram com os bolsos cheios de exemplares quebrados das ruínas. Gostaria que esse vandalismo cessasse. Eles quebraram fragmentos da tumba de Noé; das extraordinárias esculturas dos templos de Baalbec; das casas de Judas e Ananias, em Damasco; da tumba de Nimrod, o poderoso caçador em Johanesburgo; das desgastadas inscrições gregas e romanas fixadas nas paredes envelhecidas do castelo de Banias; e agora, estão cortando e esgravatando esses antigos arcos aqui que Jesus experimentou no corpo. Que os céus protejam o Sepulcro quando esta tribo invadir Jerusalém! (TWAIN, 1997, p. 471, tradução nossa). 234 atitude bárbara, quanto, também, à inverdade de, realmente, haver as lanças que ultrajaram a carne do filho de Deus.

O narrador refere-se, no fragmento seguinte, a esses depredadores como “tribos perdidas da América”. Tais personagens aportam do Quaker City e percorrem, em uma pitoresca procissão, os pontos turísticos do Egito. Apesar da contumaz crítica aos

“caçadores de relíquias”, o narrador constrói o humor ao mencionar que um deles carregava um martelo com a intenção de quebrar a ponta da Agulha de Cleópatra, mas a tentativa fora em vão. Tentou o Pilar de Pompéia e também foi frustrado em seu intento.

In the morning the lost tribes of America came ashore and infested the hotels and took possession of all the donkeys and other open barouches that offered. They went in picturesque procession to the American Consul’s; to the great gardens; to Cleopatra’s Needles; to Pompey’s Pillar; to the palace of the Viceroy of Egypt; to the Nile; to the superb groves of datepalms. One of our most inveterate relic- hunters had his hammer with him, and tried to break a fragment off the upright Needle and could not do it; he tried the prostrate one and failed; he borrowed a heavy sledge hammer from a mason and failed again. He tried Pompey’s Pillar, and this baffled him .98 (TWAIN, 1997, p. 612-613)

Oscar Tacca, em Vozes do Romance (1983), afirma que “o recurso da transcrição ou relato é o mais frágil de todos os processos narrativos, pois o recurso do transcritor tende para a verossimilhança, mas, em rigor, o relato nunca é verossímil: finge verossimilhança.”(TACCA,1983, p. 32). Tomamos os postulados teóricos de Tacca para sustentar nossa proposição de que o narrador, realmente, tende a ser verdadeiro;

98 Pela manhã as tribos perdidas da América vieram para a terra firme e infestaram os hotéis e tomaram posse de todas as mulas e outras carruagens abertas disponíveis. Foram, em uma pitoresca procissão, ao consulado americano; até aos imponentes jardins; até as Agulhas de Cleópatra; até o pilar de Pompéia; ao Palácio do vice- rei do Egito; ao Nilo; aos soberbos bosques de coqueiros imperiais. Um de nossos mais inveterados caçadores de relíquia carregava seu martelo e tentou quebrar um fragmento da ponta da Agulha, mas não conseguiu; tentou nocautear outra e falhou; arrumou emprestado de um pedreiro uma marreta e falhou de novo. Ele tentou o Pilar de Pompéia e foi frustrado em seu intento. (TWAIN, 1997, p. 612-613, tradução nossa). 235 não obstante, sabemos que o relato nunca é verossímil. Ressaltamos, no entanto, que existem sempre intenções veladas por detrás deste ato comunicativo.

No excerto subseqüente, percebemos que Mark Twain inicia seu relato falando com a própria voz do autor real. Ao escrever que: “há coisas que para o crédito da

América, talvez devessem ser omitidas, portanto, essas coisas específicas, algumas vezes, são as coisas precisas que, para o legítimo benefício dos americanos, têm que ter notável comentário.”(TWAIN, 1997, p. 629, tradução nossa), o narrador anuncia a verossimilhança de seu relato. Destarte, Twain “anuncia” uma intenção verdadeira que ultrapassa o espaço dos vândalos – Egito – e se estende até a América. Observemos no inserto:

There are some things which, for the credit of America, should be left unsaid, perhaps; but these very things happen sometimes to be the very things which, for the real benefit of Americans, ought to have prominent notice. While we stood looking, a wart, or an excrescence of some kind, appeared on the jaw of the Sphynx. We heard the familiar clink of a hammer, and understood the case at once. One of our well-meaning reptiles – I mean relic-hunters – had crawled up there and was trying to break a “specimen” from the face of this the most majestic creation the hand of man was wrought. But the great image contemplated the dead ages as calmly as ever, unconscious of the small insect that was fretting at its jaw. Egyptian granite that has defied the storms and earthquakes of all time has nothing to fear from the tack-hammers of ignorant excursionists – highwaymen like this specimen. He failed in his enterprise. We sent a sheik to arrest him if he had the authority, or to warn him, if he had not, that by the laws of Egypt the crime he was attempting to commit was punishable with imprisonment or the bastinado. Then he desisted and went away.99 OOO (TWAIN, 1997, p. 629-630)

99 Há algumas coisas que para o crédito da América talvez devessem ser omitidas; mas essas coisas específicas, algumas vezes, são precisamente as coisas que, para o legítimo benefício dos americanos, têm que ter notável comentário. Enquanto nos postávamos olhando, uma verruga ou uma excrescência de algum tipo apareceu no queixo da Esfinge. Escutamos o familiar toc-toc de um martelo e compreendemos o acontecido na hora. Um de nossos bem-intencionados répteis – quero dizer, um caçador de relíquias – tinha trepado lá e estava tentando quebrar uma “amostra” do rosto da mais sublime criação feita pela mão do homem. Porém, a imponente imagem continuava contemplando as eras passadas tão impassível como sempre, sem tomar consciência do ínfimo inseto que estava esfolando seu queixo. Granito egípcio – esse que tem desafiado as tormentas e terremotos de todos os tempos – nada tem a temer dos martelos cabeçudos de excursionistas ignorantes – salteadores desse tipo. Ele falhou em sua aventura. Mandamos um sheik prendê-lo, se tivesse autoridade para tal ou adverti-lo, se não 236

Percebemos que, após

a exposição com a própria

voz do autor, o narrador

intervém e, com humor,

contrói sua narrativa. A

verruga que se forma no

queixo da Esfinge, o toc-toc

do martelo de um dos “bem

intencionados répteis”

tentando depredar o rosto da

“mais sublime criação feita

(TWAIN, 1997, p. 630) pela mão do homem” formam um campo semântico inverossímil. No entanto, podemos refletir se esse personagem criado na ficção twainiana – o “bem intencionado réptil” - não representa o governo norte-americano que tinha intenções, na época, de “civilizar” a “mais sublime criação feita pela mão do homem” - as Ilhas Sandwich, no Havaí? Fica-nos bem claro que o cidadão Twain faz uso dos “Vândalos” para mostrar as intenções usurpadoras do governo americano. No livro, Patriotas e Traidores, encontramos a seguinte anotação de Twain: “a fonte secreta do humor não é a alegria, mas a tristeza.”(TWAIN, 2003, p. 186). A asserção twainiana leva-nos a refletir se o autor não criara um “estilo burlesco” para trazer à tona seu pensamento que, muitas vezes, não corroborava com o da América, tornando-o triste. tivesse, pois, pelas leis do Egito, o crime que ele estava tentando cometer era penalizado ou com detenção, ou com tortura. Então ele desistiu e se foi. (TWAIN, 1997, p. 629-630, tradução nossa). 237

Em suma, concluímos que muito do humor de Mark Twain fora criado para expressar sua desilusão àquela pátria que lhe fora ensinada ser democrática e com um governo que fosse “do povo, pelo povo e para o povo.”(Abraham Lincoln) e que, de fato, os “Vândalos” foram personagens criadas para denunciar as intenções governamentais da época: a de subjugação e de posse – testemunhando, mais uma vez, a presença do Mark Twain antiimperialista, em The Innocents Abroad.

5 - UMA ÚLTIMA PALAVRA: O POSFÁCIO

Optamos por não excluir o posfácio de The Innocents Abroad em nosso estudo, pois ele ainda nos trará luzes que comprovarão a construção do personagem narrador.

Foi escrito por Twain quase um ano após o retorno de sua viagem e percebemos ter, diante de nós, o autor real da narrativa dos “inocentes” relatos, o autor despojado das tantas máscaras que lhe serviram ao longo da jornada narrativa.

O leitor perceberá que o texto se tece por meio de outro estilo narrativo. As paródias, a gama sarcástica e as atitudes zombeteiras da personagem “picaresca” são deixadas de lado, sendo substituídas por um estilo poético permeado de metáforas e de outras figuras de linguagem que contemplam uma distinta constelação semântica.

Observemos, neste ínterim, o que Twain escreve:

Nearly one year has flown since this notable pilgrimage was ended; and as I sit here at home in San Francisco thinking, I am moved to confess that day by day the mass of my memories of the excursion have grown more and more pleasant. If the Quaker City 238

were weighing her anchor to sail away on the very same cruise again, nothing could gratify me more than to be a passenger.100 (TWAIN, 1997, p. 648)

O autor real, o cidadão Samuel Clemens, sentado em sua casa, vê crescer, dia a dia, as memoráveis lembranças da grande viagem. Finda o fragmento confessando que se o Quaker City estivesse arremessando sua âncora para zarpar rumo ao mesmo cruzeiro, Clemens sentir-se-ia gratificado em ser um de seus passageiros.

Aqui, não mais encontramos Twain reclamando da falta de sabonetes, nos hotéis da França, ou fazendo chacota dos guias, ou zombando das obras de arte, ou depreciando as belezas naturais tanto da Europa quanto do Oriente. Encontramos sim, o autor convicto de que nunca se esquecerá das maravilhas das diversas culturas visitadas. Segue o excerto para apreciação:

We shall remember something of pleasant France; and something also of Paris, though it flashed upon us a splendid meteor, and was gone again, we hardly knew how or where. We shall remember, always, how we saw majestic Gibraltar glorified with the rich coloring of a Spanish sunset and swimming in a sea of rainbows. In fancy we shall see Milan again, and her stately Cathedral with its marble wilderness of graceful spires. And Padua – Verona – Como, jeweled with stars; and patrician Venice, afloat on her stagnant flood – silent, desolate, haughty – scornful of her humbled state – wrapping herself in memories of her lost fleets, of battle and triumph, and all the pageantry of a glory that is departed. We can not forget Florence – Naples – nor the forestate of heaven that is in the delicious atmosphere of Greece – and surely not Athens and the broken temples of the Acropolis. Surely not venerable Rome – nor the green plain that compasses her round about, contrasting its brightness with her gray decay – nor the ruined arches that stand apart in the plain and clothe their looped and windowed raggedness with vines. We shall remember St. Peter’s: not as one sees it when he walks the streets of Rome and fancies all her domes are just alike, but as he sees it leagues away, when every meaner edifice has

100 Quase um ano se passou desde que a notável peregrinação chegou ao seu fim. Enquanto descanso aqui em minha casa em São Francisco, pensativo, sinto-me persuadido a confessor que dia após dia a maior parte de minhas lembraças da excursão florescem cada vez mais agradáveis. Se o Quaker City estivesse arremessando sua âncora para novamente embarcar rumo ao mesmo e exato cruzeiro, nada mais me gratificaria que ser um de seus passageiros. (TWAIN, 1997, p. 648, tradução nossa). 239

faded out of sight and that one dome looms superbly up in the flush of sunset, full of dignity and grace, strongly outlined as a mountain. We shall remember Constantinople and the Bosporus – the colossal magnificence of Baalbec – the Pyramids of Egypt – the prodigious form, the benignant countenance of the Sphynx – Oriental Smyrna – sacred Jerusalem – Damascus, the “Pearl of the East”, the pride of Syria, the fabled Garden of Eden, the home of princes and genii of the Arabian Nights, the oldest metropolis on earth, the one city in all the world that has kept its name and held its place and looked serenely on while the Kingdoms and Empires of four thousand years have risen to life, enjoyed their little season of pride and pomp, and them vanished and been forgotten!101 (TWAIN, 1997, p. 650-651)

(TWAIN, 1997, p. 651)

Aqui termina o posfácio twainiano. A imagem do charuto perfaz o quadro semântico quanto à veracidade de um texto que explicita o sentimento real do autor

Mark Twain que, apesar de ter escrito um livro de viagem travestido por olhos

101 Devemos nos lembrar de alguma coisa da agradável França e também de Paris, posto que Paris flamejou sobre nós um esplêndido meteoro que se foi e, dificilmente, saberemos como e para onde. Devemos nos lembrar para sempre de como vimos o majestoso Gibraltar, glorificado pelo esplêndido pôr-do-sol espanhol e flutuando em um mar de arco-íris. Em imaginação, veremos Milão outra vez e a magnificente Catedral com sua imensidão marmórea de elegantes colunas. E Pádua – Verona – Como – cravejados, como jóias, no céu estrelado; e a aristocrata Veneza, flutuante na mansidão de suas águas – muda, solitária, altiva – despojada de sua modesta dignidade – envolta nas recordações de seus navios perdidos, de suas batalhas, de suas vitórias e de toda pompa que se foi. Não podemos nos esquecer de Florença – Nápoles – nem da antecipação do paraíso presente na deliciosa atmosfera da Grécia – e, com certeza, nem de Atenas, nem dos templos em ruínas de Acrópole. Certamente, nem da venerável Roma – nem das verdes planícies que a abraçam, contrastando seu esplendor com seu triste declínio – nem das colunas em ruínas que se postam dispersas nas planícies e vestem seus escombros com videiras. Devemos nos lembrar da Catedral de São Pedro: não como alguém que a vê enquanto caminha pelas ruas de Roma e supõe que todas as suas cúpulas sejam iguais, mas como alguém que vê a léguas de distância, quando cada construção inferior vai se dissipando de nossa vista e, então, aquela abóbada vai se tecendo magnificamente ao resplendor do pôr-do-sol, cheia de dignidade e beleza, poderosamente delineada como uma montanha. Devemos nos lembrar de Constantinopla e de Bósforo – da magnificência colossal de Baalbec – das pirâmides do Egito – da prodigiosa estrutura, do semblante da Esfinge – da Smirna Oriental – da sagrada Jerusalém – de Damasco, a “Pérola do Oriente”, do orgulho da Síria, do mitológico Jardim do Éden, habitat dos príncipes e gênios das Noites Árabes, da mais antiga metrópole do planeta, a única cidade do mundo que manteve seu nome e consagrou seu espaço e velou serenamente os reinos e impérios de quatro mil anos que se ergueram vigorosos desfrutando de seu pequeno período de orgulho e de pompa e, depois, banidos e esquecidos! (TWAIN, 1997, p. 650-651, tradução nossa) 240 inocentes, tem consciência da importância de cada cultura, de cada raça e de cada gênero.

A imagem que a folha de rosto de nosso estudo traz retrata o Twain-narrador. Lá o encontramos com seu charuto e com suas malas, pronto para iniciar sua viagem.

Aqui, simplesmente, o autor deixa de lado seu charuto e tira a roupa de sua personagem burlesca. Desfaz-se das malas cheias de preconceitos e se desnuda, mostra-nos quem, realmente, é esse cometa Twain.

Para encerrarmos esse tópico diante do belo posfácio de Mark Twain, resta-nos buscar um fragmento poético para dele fazermos jus. Para tanto, deliberadamente, tomamos a poética de um negro colonizado pelos franceses – Aimé Césaire, nascido na Martinica, na América Central, em 1913, que bem encerra o posfácio de Mark

Twain:

Mas a obra do homem está apenas começando e resta ao homem conquistar toda a violência entrincheirada nos recessos de sua paixão

E nenhuma raça possui o monopólio da beleza, da inteligência, da força, e há lugar para todos no encontro da vitória. CÉSAIRE apud SAID, 2003, p. 336

Assim posto, os sentimentos de Césaire Aimé e de Mark Twain preparam o caminho para a dissolução das barreiras culturais, em vez da dominação de raça, gênero ou classe.

241

CONSIDERAÇÕES FINAIS

∗ Oração da Guerra “Oh, Senhor, nosso Pai, nossos jovens patriotas, à luz de nosso coração, vão para a batalha. Acompanhai-os! Com eles, em espírito, deixaremos a doce paz da nossa lareira para atacar o inimigo. Oh, Senhor, nosso Deus, ajudai-nos a rasgar a carne dos soldados do inimigo em postas sangrentas com nossas bombas; ajudai-nos a cobrir seus campos alegres com as formas pálidas de seus patriotas mortos; permiti-nos abafar o trovão dos canhões com os feridos retorcendo-se de dor; ajudai-nos a destruir seus lares humildes com um furacão de fogo; ajudai-nos a arrancar com dor inútil o coração de viúvas inocentes; ajudai-nos a deixá-las sem lar a vagar, com trapos, fome e sede, na companhia dos filhos pequenos, abandonadas pelas ruínas de sua terra desolada, enfrentando o calor do Sol de verão e os ventos gelados do inverno, o espírito abatido, exaustas de aflição, implorando a Voz, o refúgio da tumba e vê-lo negado... Por nós, que Vos adoramos, Senhor, matai suas esperanças, estiolai suas vidas, prolongai sua amarga peregrinação, tornai pesados os seus passos, molhai com suas lágrimas o seu caminho, manchai a branca neve com o sangue de seus pés feridos! Imploramos a quem é o Espírito do amor, refúgio e amigo fiel de todos os que sofrem e buscam Sua ajuda com humildade e contrição. Atendei a nossa prece, oh Senhor, e Vossas serão a gratidão, a honra e a glória por todos os séculos dos séculos, Amém. Mark Twain, 2003, p. 226

∗ Oração escrita por Mark Twain em 22 de março de 1905, durante a Guerra Filipino-americana, no entanto, só é publicada em 1923, por ter sido considerada imprópria a seu público. 242

A construção da personagem que narra The Innocents Abroad or The New

Pilgrim’s Progress fez-nos imergir em um estudo sobre a abertura que a Literatura

Comparada dá a quem com ela trabalha, diante da era multicultural.

Os relatos de viagens, de fato, recebem um novo olhar da disciplina já que a lista de escritores viajantes é extensa e repleta de novos significados, estranhamentos, aventuras exóticas e de novos arquétipos que sempre remetem à cultura do observador.

A constatação de que realmente a construção de novas culturas se deve aos relatos de viajantes escritores foi de suma importância para nosso estudo. Quando buscamos escritores como Flaubert, Melville, Jonathan Swift, Kipling, Kinglake, Lady

Mary Montagu, Mark Twain dentre tantos outros pudemos reafirmar a grande colaboração que essas obras trazem ao comparatista literário.

A trajetória do cometa twainiano comprova sua postura e a construção de sua personagem em The Innocents Abroad. A personagem burlesca criada pelo autor representa, verdadeiramente, o Novo Adão desprovido de um passado histórico que a

América não possuía.

O livro de viagem de Mark Twain inaugura na literatura norte-americana um novo olhar que o narrador lança à Europa e ao Oriente. Diante desse novo olhar, podemos afirmar que, apesar da construção de sua personagem, em alguns momentos, dessacralizar as culturas de outrem, Mark Twain parodia a própria visão da América à abertura de novas perspectivas culturais, justificada pelo comportamento do self made man. 243

É preciso acrescentar ainda que Mark Twain, apesar de sua postura nacionalista e patriótica, tinha convicção de que nenhuma cultura existe em isolamento. Fica claro, no posfácio do livro, comprovarmos tal afirmação.

O autor real ao “confessar” que nunca se esquecerá das maravilhas encontradas em sua peregrinação em terras estrangeiras evidencia que, na verdade, o humor e a ironia usados pelo narrador, ao depreciar tudo o que vê pela frente, é uma paródia do próprio americano, que ri, ao ler o livro, no entanto, quem deles ri, é Twain.

Apenas parte dos escritos antiimperialistas de Mark Twain foram publicados por ele em vida, embora seu ativismo nunca tenha sido interrompido ao longo de sua prolífica carreira e das inúmeras entrevistas e declarações que deu. Entretanto, somente após a fundação do Projeto Mark Twain (Mark Twain Project) e dos

Documentos Mark Twain (Mark Twain Papers), que ocorreu após a morte de sua filha, Clara Clemens, em 1962, tornou-se possível o livre acesso aos originais do autor.

A maior parte de seus críticos teve de contentar-se, até aquele momento, com edições que, conforme as pesquisas posteriores de Jim Zwick revelaram, eram produtos do esforço de manutenção de uma certa imagem pública de Mark Twain, associada à sua celebridade como humorista, satirista de costumes e integrante de uma forma de criação já completamente identificada à tradição literária e cultural do país.

Paralelamente a Zwick, pesquisadores como Paul Baender e Terry Oggel encarregaram-se de reexaminar os escritos twainianos, o que os levou à produção de reveladores ensaios que discutem a trazem novamente a público o caráter, por tanto tempo encoberto, do engajamento de Twain no debate antiimperialista e na discussão das questões sociais de seu tempo. 244

Reafirmamos, outrossim, que um estudo voltado ao pensamento de Mark Twain, em 1867, em seu livro The Innocents Abroad or The New Pilgrim’s Progress, colabora com a pesquisa desenvolvida pelo Projeto Mark Twain, nos Estados Unidos. Ao darmos visibilidade à obra, por meio de nossas traduções, pretendemos levar ao conhecimento do leitor, no Brasil, mais informações que corroboram seu pensamento antiimperialista.

Nas passagens do livro em que, claramente, percebemos ser narradas pela voz do autor, confirmamos sua postura contra impérios. A voz do autor, às vezes, amalgamada pela personagem burlesca denuncia impérios e imperadores, tiranos, déspotas, igreja e seu clérigo lançando luz ao oprimido, subjugado e usurpado.

Vários fragmentos da narrativa foram demarcados e analisados, cuidadosamente, provando que Twain, ao fazer essa viagem, revela as diversas faces do “inocente” americano, do homem desiludido com a depredação das belezas naturais de seu país, do ianque cheio de soberania, inconformado com os avanços tecnológicos europeus, do cidadão democrata, do jornalista convicto de que precisa ser sensacionalista para que o jornal seja bem recebido pelo público leitor (correspondente do Daily Alta

Califórnia) do autor que renova, na América, um estilo narrativo e, principalmente, do pensamento antiimperialista do Sr. Clemens.

É mister enfatizarmos que os diversos narradores que encontramos no relato de viagem de Twain, e que se alternam constantemente e expõem pontos de vista conflitantes sobre um mesmo fato, servem como alerta para que o leitor se conscientize de que o livro de viagem trabalha com as várias versões que os olhos do viajante flagram. 245

A questão da alteridade proposta por Todorov nas narrativas de viagem, de fato, faz-se presente ao deflagrarmos com o olhar do viajante que, em sua relação com o

Outro, julga-lhe bom ou mau, “me é igual ou me é inferior”. Há também a ação de aproximação ou de distanciamento em relação ao Outro, o narrador identifica-se com ele, ou então o assimila, impondo-lhe sua própria imagem. Entre a submissão ao Outro e a submissão do Outro, há ainda a neutralidade ou a indiferença.

O narrador de The Innocents Abroad, ao discorrer sobre os vândalos, é mais uma constatação de seu pensamento democrático da época. A idéia de “A América para

Americanos” trazia-lhe desconforto e a idéia de uma missão “civilizadora” no Havaí, no momento em que escreve seu relato de viagem, faz dos “Vândalos” a representação dos “defensores” das instituições norte-americanas. Assim, verificamos mais uma paródia construída em prol do pensamento antiimperialista de Mark Twain.

Ao encerrarmos, buscamos nas anotações de Mark Twain mais um fragmento que corrobora seu pensamento democrático: “um dos maiores ideais de um cidadão é acreditar que todos os homens foram criados livres e iguais e o outro é o de que o bom governo é o que existe pelo consentimento dos governados”. (TWAIN, 2003, p. 2002).

O fato é que Mark Twain continua vivo por meio de seu espírito democrático, da igualdade que apregoava e de sua postura antiimperialista. O cometa se foi, mas seu rastro ainda flameja luz em épocas tão voltadas para a opressão de nosso Outro.

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255

ANEXOS 256

1. O RELATÓRIO BERNHEIMER: A LITERATURA COMPARADA NA VIRADA DO SÉCULO

DAS NORMAS E DISCIPLINAS

Este é o terceiro relatório de normas escrito para a ACLA (American Comparative Literature Association) e distribuído de acordo com seus regulamentos. O primeiro relatório, publicado em 1965, foi preparado por um comitê presidido por Harry Levin; o segundo, publicado em 1975, foi produto de uma comissão presidida por Thomas Greene. Os pontos de vista sobre a Literatura Comparada contidos nesses dois documentos são extremamente similares. Realmente, o relatório de Greene não só articula novas metas e possibilidades para a Literatura Comparada, como também defende as normas propostas por Levin contra desafios notórios. Juntos, os relatórios de Levin e Greene fortemente articulam a percepção da disciplina que prevaleceu ao longo das décadas de 50, 60 e 70. Muitos dos membros atuais da ACLA receberam seus títulos de doutor em departamentos que aderiram às normas definidas nesses relatórios. Mas, o contexto histórico, cultural e político em que esses comparatistas estão atualmente trabalhando e as questões que muitos deles estão levantando, mudaram tão notavelmente desde o tempo de seus aprimoramentos profissionais, que as práticas concretas nessa área os transformaram. Nosso relatório está voltado para a questão das normas no contexto dessa profunda transformação. Com o propósito de elucidar o que percebemos ser a problemática dessa evolução disciplinar, começaremos com uma breve análise dos dois relatórios anteriores. Ambos atribuem ao rápido crescimento da Literatura Comparada nos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial, a uma nova perspectiva internacionalista que buscava, na afirmação de Greene, “contextos de maior abrangência na busca dos temas, motivos e classes, assim como uma maior compreensão de gêneros e modos”. Esse impulso para expandir o horizonte dos Estudos Literários deve ter-se originado do desejo de demonstrar a unidade essencial da cultura européia em face à sua recente e violenta divisão. De qualquer modo, a perspectiva de expansão não foi além da Europa e de toda a linhagem da alta cultura européia, voltando para as civilizações da Antigüidade Clássica. De fato, os Estudos Literários Comparativos tendiam a reforçar uma identificação de nações-estado como comunidades imaginadas com línguas nacionais como suas bases naturais. Esse foco na identidade nacional e lingüística é aparente na maneira em que os relatórios de Levin e Greene abordam a noção de normas. Normas superiores são necessárias, eles afirmam, com o intuito de defender o caráter de elite da disciplina, o qual, diz Levin, “deve reservá-la para estudantes mais altamente qualificados” e limitá-la a grandes pesquisas universitárias com competentes departamentos de línguas e bibliotecas otimizadas. Notando que “esse ideal, que parecia tão desejado e tão provável há dez anos, tem sido desafiado para melhor ou pior, por meio da rápida mudança histórica”, Greene vai adiante argüindo a questão por resistência à mudança. “Há causa”, ele escreve, “para séria preocupação com receio de que as tendências atuais, transformando nossa disciplina, tomada como agregada, não depreciem aqueles 257 valores nos quais ela está fundamentada. Os deslizes das normas, uma vez permitidos, seriam difíceis de serem resguardados”. O maior perigo percebido está em relação à base da imagem de elite da Literatura Comparada: a leitura e o ensino de obras de Língua Estrangeira em seu original. Greene critica o crescente uso de traduções por professores de cursos de Literatura Mundial, que não conhecem as línguas originais. O uso de traduções é condenado em ambos os relatórios: de Levin e Greene, entretanto, Levin admite que, assim como os cursos de Literatura Comparada “incluem uma substancial proporção de obras com os originais”, seria indevidamente purístico excluir algumas leituras mais remotas em tradução”. Essa afirmação ilustra a extensão, na qual a noção internacionalista tradicional da Literatura Comparada, paradoxalmente sustenta o domínio de poucas literaturas nacionais européias. A Europa é lar dos originais canônicos, o próprio objeto do estudo comparativo; as então chamadas culturas remotas são periféricas à disciplina e, por essa razão, podem ser estudadas em tradução. Outra ameaça à Literatura Comparada, de acordo com Greene, é o crescimento de programas interdisciplinares. Apesar dele afirmar que devemos dar boas-vindas a esse desenvolvimento, a ênfase de Greene é cautelosa: “Devemos estar alerta”, ele escreve, “para que o cruzamento de disciplinas não envolva em um relaxamento da Literatura Comparada”. “Cruzamento” aqui assume, em relação ao rigor disciplinar, o mesmo papel que a “tradução” envolve em relação à pureza lingüística. Há um esforço em restringir o trabalho de comparação aos limites de uma simples disciplina e desencorajar qualquer desordem potencial deixada ou transferência de uma disciplina para a outra. Assim como a Literatura Comparada trabalha para definir entidades nacionais, até mesmo como ela as coloca em relação uma com a outra, então ela deve também trabalhar para reforçar limites disciplinares e até mesmo transgredi-los. A terceira maior ameaça aos valores de fundação da Literatura Comparada lê-se entre as linhas do relatório de Greene: uma crescente proeminência nos departamentos de Literatura Comparada nos anos 70 como as arenas para o estudo da Teoria Literária. Embora a expansão da Teoria tenha sido promovida nos departamentos de Inglês e Francês, o conhecimento dos comparatistas de línguas estrangeiras oferecia acesso não só aos textos originais de teóricos europeus influentes, como também às versões originais de obras filosóficas, históricas e literárias que eles analisavam. O problema desse desenvolvimento, para a visão tradicional da Literatura Comparada, foi o estudo diacrônico da literatura, ameaçando tornar-se secundário ante ao estudo sincrônico da teoria. “Literatura Comparada como uma disciplina, permanece inalterada no conhecimento da história”, escreve Greene, em uma censura implícita para a onda de teorização alcançada na área. A ansiedade relativa às mudanças articuladas no relatório de Greene sugere que, já em 1975, a área começava a olhar confusamente estrangeiros como algumas de suas eminentes autoridades. Sua reação tendia a considerar a definição e coação das normas como constituintes da disciplina. Mas os perigos, confrontando a disciplina desse modo construtivo, apenas intensificaram-se em 17 anos, desde a publicação do relatório de Greene, a um ponto que, na opinião da comissão de redação desse relatório, a construção não mais corresponde às práticas que atualmente definem a área. Sentimos, portanto, que a nossa articulação de normas pode ser empreendida responsavelmente apenas no contexto de uma redefinição dos métodos e metas da 258 disciplina. Baseamos essa redefinição não apenas no sentido abstrato do futuro da disciplina, mas também nas direções que já estão sendo seguidas por muitos departamentos e programas de pós-graduação nos Estados Unidos.

RENOVANDO A ÁREA

O aparente internacionalismo dos anos pós-guerra sustentou um restrito eurocentrismo que, recentemente, tem sido ameaçado em múltiplas perspectivas. A noção de que a promulgação das normas pudesse servir para definir a disciplina ruiu em face à porosidade aparente e crescente da prática de uma disciplina para a prática de outra. Estudos valiosos usando os modelos tradicionais de comparação ainda estão sendo produzidos, claro mas esses modelos pertencem a uma disciplina que, por volta de 1975, já se sentia na defensiva e oprimida. O espaço da comparação, hoje, envolve comparações entre produções artísticas, geralmente estudadas por disciplinas diferentes; entre várias construções culturais daquelas disciplinas; entre tradições culturais ocidentais, altas e populares e culturas não ocidentais; entre o pré e pós- contato de produções culturais de povos colonizados; entre construções de gênero definidas como feministas e aquelas definidas como masculinas, ou entre orientações sexuais definidas como corretas e aquelas definidas como “gay”; entre modos raciais e étnicos de significação; entre articulações hermenêuticas de significado e análises materialistas e suas maneiras de produção e articulação, e muito mais. Esses modos de contextualizar literatura nos campos expandidos do discurso, cultura, ideologia, raça e gênero são tão diferentes dos velhos modelos de Estudos Literários, de acordo com autores, nações, períodos e gêneros, que o termo “Literatura”, pode não mais, adequadamente, descrever nosso objeto de estudo. Nesse meio ambiente instável e de rápido envolvimento sócio-cultural, muitos dos estudiosos inseridos no “repensamento” na área da Comparação têm uma relação de inquietação crescente para com as práticas chamadas “Literatura Comparada”. Eles se sentem alienados por causa da associação contínua dessas práticas, tanto intelectual, quanto institucional, com normas que tornam a disciplina quase irreconhecível à luz de seus métodos e interesses reais. Um sinal desse ressentimento se vê naqueles muitos colegas cujo trabalho se encaixaria dentro de uma definição expandida da área e, não têm uma afiliação institucional com a Literatura Comparada e nem são membros da ACLA. Outro sinal é a discussão que ocorreu em alguns campi sobre a possibilidade de adicionar expressões como: “Literatura Comparada e Estudos Culturais”, “Literatura Comparada e Crítica Cultural” ou “Literatura Comparada e Teoria Cultural”, com o propósito de sugerir caminhos nos quais, a antiga designação estaria inadequada. Mas, tais mudanças de nome não foram totalmente adotadas. Sentimos, por causa da crença geral, que esses novos caminhos de leitura e de contextualização poderiam estar incorporados dentro do feitio da disciplina. Nesse relatório, esperamos dar uma idéia de como essa incorporação capacitará a Literatura Comparada a se posicionar como um lugar produtivo em um trabalho prodigioso nas Ciências Humanas.

259

O PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

1 – Fenômenos literários já não são o foco exclusivo de nossa disciplina. Ao contrário, textos literários estão sendo agora abordados como uma prática discursiva dentro de um complexo mutável e, muitas vezes, dentro de um campo contraditório de produção cultural. A área desafia as muitas noções de interdisciplinaridade para a extensão, já que as disciplinas foram historicamente construídas para dividir o campo de conhecimento em territórios mutáveis de perícia profissional. Comparatistas, conhecidos pelas suas propensões a mudar de disciplinas, agora têm oportunidades expansivas para teorizar a natureza das fronteiras a serem atravessadas e participar de seus remapeamentos. Esse relatório sugere, dentre outros ajustes fundamentais, que os Departamentos de Literatura Comparada deveriam moderar a focalização em discursos alto-literários e examinar todo o contexto discursivo em que os textos são criados e como tais eminências são construídas. A produção de “literatura” como um objeto de estudo, poderia, dessa maneira, ser comparada à produção de música, filosofia, história ou leis, assim como sistemas discursivos similares. Nossa recomendação para ampliar o campo de pesquisa, já implementado por alguns programas e departamentos, não significa que o estudo comparativo deva abandonar a detalhada análise de retórica, prosódia e outras características formais; mas, aquelas leituras precisas textualmente deveriam conter, assim como os contextos ideológicos, culturais e institucionais, a produção de seus significados. Do mesmo modo, as formas mais tradicionais de obras interdisciplinares, tais como comparações entre as artes irmãs, deveriam ocorrer em um contexto de reflexão nas estratégias privilegiadas de construção em cada disciplina, incluindo seus debates teóricos internos e a objetividade do instrumento ao qual ela se dirige.

2 – O conhecimento de línguas estrangeiras permanece fundamental para nossa raison d’être. Os comparatistas sempre foram pessoas com interesse excepcional pelas línguas estrangeiras, com uma habilidade incomum para a aquisição das mesmas e uma grande capacidade de desfrutar de seu uso. Essas qualidades devem continuar a ser cultivadas em nossos alunos. Além disso, eles devem ser encorajados a dividir seus horizontes lingüísticos para cercar, pelo menos, uma língua não-européia. As exigências específicas de língua diversificarão de departamento para departamento. Sentimos que o mínimo a ser esperado é o estudo de duas literaturas em sua língua original; um bom conhecimento de leitura de duas línguas estrangeiras e, para estudantes de campos mais antigos de culturas européias, arábicas ou asiáticas, a aquisição de uma língua “clássica” da Antigüidade. Alguns departamentos ainda exigem pelo menos três línguas estrangeiras e mais a língua clássica. Muitos exigem um conhecimento de três literaturas. Em todo caso, o contexto para essas exigências deve-se estender além de seus valores para a análise de significação literária, para que esses valores possam criar uma compreensão do papel da língua nativa ao criar subjetividade, ao estabelecer padrões epistemológicos, ao imaginar estruturas em comum e ao formar noções de nacionalidade e articular conceitos para a hegemonia política e cultural. Além disso, os comparatistas deveriam estar alerta às diferenças de significantes dentro de qualquer cultura nacional, que provêm a base para a comparação, pesquisa e busca crítico-teórica. Entre essas, há diferenças (e conflitos) 260 de acordo com a região, etnia, religião, gênero, classe e status colonial ou pós-colonial. A pesquisa comparatista é idealmente indicada para seguir caminhos nos quais essas diferenças são co-reunidas com discrepâncias em língua, dialeto e uso (incluindo jargões e gírias), bem como em problemas de linguagem dupla ou múltipla e em modos de hibridização.

3 – Enquanto a necessidade e os benefícios únicos de um conhecimento profundo de línguas estrangeiras devem continuar a serem enfatizados, as velhas hostilidades, com referência à tradução, devem ser diminuídas. De fato, a tradução deve ser vista como um paradigma para problemas maiores de compreensão e interpretação, por meio de diferentes tradições discursivas. A Literatura Comparada visa explicar tanto o que é perdido quanto o que é ganho nas traduções entre os sistemas de valores distintos de diferentes culturas, mídias, disciplinas e instituições. Além disso, o comparatista deve aceitar a responsabilidade de localizar o tempo e o lugar específicos onde ele estuda essa prática: De onde eu falo e de qual(is) tradição(ões) ou contra-tradição(ões)? Como eu traduzo a realidade cultural européia ou sul-americana ou sul-africana em uma realidade norte-americana? Ou a norte-americana em algum outro contexto cultural?

4 – A Literatura Comparada deve ser engajada ativamente no estudo comparativo da formação do cânone. Deve-se também atentar para o papel de leituras não-canônicas de textos canônicos, leituras de diversas perspectivas: contestatória, marginal ou subalterna. O esforço para produzir tais leituras, dada à sua recente proeminência, por exemplo, teoria feminista e pós-colonial, complementa a investigação crítica do processo de formação do cânone – como os valores literários são criados e mantidos em uma cultura particular – e vitalizar o esforço para expandir os cânones.

5 – Os departamentos de Literatura Comparada deveriam desempenhar um papel ativo em promover a recontextualização multicultural das perspectivas européias e anglo- americanas. Isso não significa abandonar aquelas perspectivas, mas, mais propriamente questionar e resistir aos seus domínios. Essa tarefa necessita de uma reavaliação significante em nossa definição como pesquisadores e também das normas comuns para o trabalho comparativo. Deve ser melhor, por exemplo, ensinar uma obra em tradução mesmo se não se tiver acesso à língua original, que omitir vozes marginais oriundas de uma transmissão mediadora. Dessa maneira, não apenas endossamos a observação de Levin, citada anteriormente de que ela seria “indevidamente purística” para exigir que todas as leituras nos cursos de Literatura Comparada fossem feitas no original; poderíamos até perdoar certos cursos sobre literaturas minoritárias, em que a maioria das obras é lida em tradução. (Aqui deveria ser admitido que literaturas minoritárias também existissem dentro da Europa; a eurocentricidade, na prática, vincula um foco nas literaturas inglesa, francesa, alemã e espanhola. Até a literatura italiana, com exceção de Dante, é geralmente marginalizada). Igualmente, modelos antropológicos e etnográficos para o estudo comparativo de culturas, devem ser vistos como apropriados para certos cursos de estudos como modelos derivados da crítica e teorias literárias. Cadeiras de programas e de departamentos devem, ativamente, recrutar o corpo docente de literaturas não- européias e das disciplinas associadas para fornecer cursos e colaborar para expandir o 261 escopo cultural das contribuições da Literatura Comparada. Em todos os contextos de sua prática, o multiculturalismo deverá ser abordado, não como uma forma politicamente correta de adquirir mais ou menos informações pitorescas sobre outros que realmente não queremos conhecer, mas sim um instrumento para promover uma relação significante entre as relações culturais, traduções, diálogos e debates. Assim concebida, a Literatura Comparada se aproxima com o trabalho que está sendo realizado nos Estudos Culturais. Mas devemos estar atentos em nos identificar com esse campo, onde a maior parte do conhecimento, tende a ser monolíngüe e focado em questões de culturas populares contemporâneas específicas.

6 – A Literatura Comparada deve incluir comparações entre a mídia, desde manuscritos primitivos até a televisão, hipertexto e realidades virtuais. A forma material que constitui nosso objeto de estudo por séculos, o livro, está em processo de ser transformada por meio da tecnologia dos computadores e da revolução na comunicação. Como um lugar privilegiado para a reflexão transcultural, a Literatura Comparada deve analisar as possibilidades materiais da expressão cultural, tanto fenomenal quanto discursiva, em seus diferentes contextos epistemológicos, econômicos e políticos. Esse foco mais abrangente envolve estudo, não apenas o trabalho de fazer um livro, mas também o lugar cultural e função de leitura e escrita, como também as propriedades físicas da mídia comunicativa.

7 – As implicações pedagógicas dos pontos previamente esboçados devem ser exploradas em cursos, colóquios e outros fóruns patrocinados pelos departamentos de programas de Literatura Comparada. Professores de diferentes disciplinas devem ser encorajados a unirem-se aos docentes de Literatura Comparada. Uma assistência ativa deve ser dada aos colóquios, nos quais o corpo docente e os alunos discutem tópicos interdisciplinares e transculturais. Em tais contextos, a diversidade cultural, tanto do corpo docente quanto do discente transformar-se-á em um assunto de reflexão e em um agente promotor do crescimento da sensibilidade diante das diferenças culturais.

8 – Tudo acima sugere a importância do pensamento teoricamente informado para a Literatura Comparada como disciplina. O aprimoramento de um comparatista deve proporcionar uma base histórica para seu pensamento. No início de suas carreiras, provavelmente no primeiro ano, pós-graduandos devem ser convocados a fazer um curso sobre A Teoria e a Crítica da História da Literatura. Esse curso deve ser projetado com o intuito de mostrar como as publicações maiores foram desenvolvidas e modificadas através dos séculos e de dar aos estudantes o embasamento necessário para avaliar debates contemporâneos em seus contextos históricos.

O PROGRAMA DE GRADUAÇÃO

1 – Como a disciplina se desenvolveu no programa de pós-graduação, mais cursos de graduação irão, naturalmente, refletir sobre essas mudanças de perspectiva. Por exemplo, os cursos de Literatura Comparada devem trabalhar não apenas com “grandes obras”, mas também como uma obra vem a ser designada grande em sua cultura particular, ou seja, que interesses foram e são investidos para manter esse 262 rótulo. Cursos mais avançados devem enfocar a discussão em aula sobre controvérsias atuais a respeito do eurocentrismo, formação de cânone, essencialismo, colonialismo e estudos de gênero. A nova composição multicultural da maioria de nossas salas de aula deve ser ativamente tomada como um estímulo pedagógico para a discussão desses tópicos.

2 – Os requisitos para as áreas principais devem oferecer um conjunto flexível de opções. Uma maneira de defini-los, já adotada em muitas instituições é: (a) duas literaturas estrangeiras com duas línguas exigidas; (b) duas literaturas, sendo uma delas anglofônica, e (c) uma literatura não-anglofônica e outra disciplina. Para promover algumas condições concretas para as publicações de tradução, além da matriz cultural européia, os estudantes devem ser encorajados a estudar línguas como o árabe, hindu, japonês, chinês e swahili. Departamentos e programas de Literatura Comparada devem lutar por cursos dessas línguas e encontrar maneiras nas quais suas literaturas possam ser incluídas na grade curricular da graduação.

3 – Os programas de graduação devem oferecer uma extensão de cursos que estudam relações entre as culturas ocidentais e as não-ocidentais. Esses e outros cursos de Literatura Comparada devem engajar os alunos na reflexão teórica sobre os métodos de execução de tal estudo. Há, também, a necessidade de cursos de graduação em Teoria Literária Contemporânea.

4 – Mesmo que os alunos tenham conhecimento da língua original, os professores dos cursos de Literatura Comparada devem se referir, com freqüência, ao texto original da obra apontada em tradução. Além disso, discutir a teoria e a prática da tradução deve ser parte integrante desses cursos.

5 – Os professores de Literatura Comparada devem atentar-se, assim como seus alunos, para as áreas relacionadas, tais como Lingüística, Filosofia, História, Estudos de Mídia, Estudo de Filmes, História da Arte e Estudos Culturais e encorajar migrações e trocas extradisciplinares.

CONCLUSÃO

Sentimos que a Literatura Comparada vive um ponto crítico em sua história. Dado que nosso objeto de estudo nunca teve um tipo de estabilidade que fosse determinado pelas fronteiras nacionais e pelo uso lingüístico, a Literatura Comparada não é avessa à necessidade de se redefinir. O momento atual é particularmente propício para tal revisão, desde que as tendências progressivas em estudos literários rumo ao curriculum multicultural, global e interdisciplinar são comparativas por natureza. Os alunos de Literatura Comparada com seus conhecimentos de línguas estrangeiras, estudiosos de traduções, peritos em diálogos interdisciplinares e refinamento teórico estão bem posicionados para tirar vantagem do amplo espaço dos Estudos Literários Contemporâneos. Nosso relatório apresenta algumas idéias dirigidas ao modo como a grade pode ser estruturada, visando à expansão das 263 perspectivas dos alunos e a estimulá-los a pensar em termos culturalmente pluralísticos. Uma palavra de cautela, entretanto, está em questão. Apesar de acreditarmos que “comparação” como definida aqui, representa a onda do futuro, as incertezas econômicas do presente estão fortemente segurando esta onda para trás em muitas universidades e faculdades. As restrições de orçamento têm levado os departamentos de literatura a um engessamento nos moldes conservadores. Dado ao caráter imprevisível do atual mercado de trabalho, é de suma importância que os alunos comecem logo a pensar em suas carreiras de pós-graduação e que professores lhes ofereçam orientação a cada etapa de seus estudos sobre a formação da identidade profissional. Essa recomendação não representa uma análise cética das forças de mercado, mas o reconhecimento de que passamos por um período de transição e de que os comparatistas precisam estar alerta para a mudança econômica e ao cenário sócio-político em que os estudantes estão operando. Dito isso, sentimos que as novas direções que defendemos para a área a manterão na vanguarda dos Estudos Humanísticos. Estamos ansiosos para ver os desafios que os futuros progressos trarão. (DOCA. Revista Apontamentos – UEM,1997, p. 5-15, tradução nossa)

264

2. SÓ UM NEGRO (26 de agosto de 1869)

Na época em que escreveu este pequeno ensaio satírico, em 1869, Mark Twain era co-proprietário e editor do Buffalo Express, em que veio a publicá-lo sem assinatura. A autoria foi atribuída a Twain por Philip S. Foner, autor de Mark Twain: Social Critic (Nova York, International Publishers, 1958). Posteriormente o texto veio a ser incluído em Mark Twain at the ‘Buffalo Express’, editado por Joseph B. McCullough e Janice McIntire-Strasbourg (Dekalb, Northern Illinois University Press, 1999). O texto encontra-se entre os primeiros escritos nos quais Twain manifesta-se contra os linchamentos, assunto que ele viria a abordar também em sua produção literária, como fez em Aventuras de Huckleberry Finn, de 1885, e em “Os Estados Unidos do Linchamento”, de 1901. Utilizando deliberadamente a palavra “negro”, que possui, em inglês, violenta carga discriminatória, Twain procura, por meio do uso satírico do termo, denunciar o racismo de forma assemelhada à que emprega no capítulo 32 de Huckleberry Finn. Quando Tia Sally pergunta se alguém havia se ferido num acidente com um barco a vapor, Huck responde com a naturalidade de alguém criado numa comunidade escravista: “Não, senhora. Morreu um negro”. A colocação da palavra entre aspas no texto aqui representado indica o realce de crítica e estranhamento que Twain deseja conferir-lhe, em um escrito marcado pela contundência da ironia e do sarcasmo, que são, juntamente com a paródia e a alegoria política, as armas mais eficientes de denúncia empregadas por Twain.

Buffalo Express (26 de agosto de 1869)

Um telegrama de Memphis menciona que, de dois negros recentemente condenados à morte na região, um deles, chamado Woods, acaba de confessar ter violentado uma jovem durante a guerra, crime pelo qual outro negro foi enforcado à época pela multidão vingativa, sendo a evidência que condenou o infeliz inocente o seu chapéu, que Woods agora informa ter roubado e deixado no local para desviar atenções. Ah, bom! É uma pena, é claro! Um pequeno erro cometido na administração da justiça pela lei da turba sulista, mas nada de importante. Só um “negro” morto por engano, nada mais. É claro que todo cavalheiro aristocrata, cujos esforços foram lamentavelmente mal orientados nessa questão pela astúcia do depravado Woods, lamenta o fato como se espera que um cavalheiro aristocrata lamente a triste sorte de um “negro”. Mas erros acontecem, mesmo na conduta das multidões mais bem reguladas e aristocráticas, e não existe razão por que um cavalheiro sulista deva se angustiar com lamentos inúteis, pois trata-se apenas de, vez por outra, um “negro” inocente ser enforcado, ou queimado, ou açoitado até a morte. Suponhamos que o erro de linchar o homem errado aconteça uma vez em quatro ou cinco casos! E isso é razão para se argumentar contra o refinamento e a gratificação dessas paixões cavalheirescas e contra o nobre espírito do Sul que não suporta a formalidade fria do direito regular, quando a feminilidade sulista ultrajada clama por vingança? Morra pensamento tão 265 indigno da alma sulista! Que ele fique restrito ao sentimentalismo e ao humanitarianismo da fria civilização ianque! O que representam as vidas de alguns “negros” comparadas à preservação dos instintos impetuosos de uma raça orgulhosa e inflamada? Guardem, portanto a corda, ó cavalheiros de Menphis! Guardem pronto o laço; guardem a lenha da fogueira para uso no próximo “negro” suspeito de crime condenável! Imponham a ele uma vingança rápida, para satisfação dos nobres impulsos que animam corações cavalheirescos, deixando a cargo do tempo e do acaso descobrir, se for possível, se ele era culpado ou não.

(TWAIN, 2003, p. 297-298) 266

3. VERGONHA E PERSEGUIÇÃO DE UM GAROTO

Galaxy, maio de 1870.

Em São Francisco, há alguns dias, “um garoto bem vestido, a caminho da escola dominical, foi preso e atirado na cadeia por ter apedrejado um chinês”. Que comentário sobre a justiça humana! Que proeminência ele atribui à nossa disposição humana de tiranizar os fracos! São Francisco não tem direito a reivindicar o crédito pelo trabalho desse pobre rapaz. Como o rapaz foi educado? Como ele iria saber que é errado apedrejar um chinês? Antes de tomarmos posição contra ele, ao lado da ultrajada São Francisco, devemos dar-lhe uma oportunidade: vamos ouvir seu testemunho de defesa. Era um menino bem vestido e freqüentava a escola dominical, portanto é provável que tenha pais inteligentes, bem de vida, em cuja formação entra a vilania natural suficiente para justificar o enorme interesse no que dizem os jornais diários, bem como satisfazer esse interesse; portanto, esse menino teve a oportunidade de saber como agir corretamente durante a semana, assim como no domingo. E foi assim que ele descobriu que a grande comunidade da Califórnia impõe ao John estrangeiro uma taxa ilegal de mineração, enquanto permite ao Patrick, estrangeiro, garimpar ouro sem nada pagar, provavelmente porque o degradado mongol não consome uísque, ao passo que o refinado celta não passa sem ele. Foi assim que ele descobriu que alguns coletores de impostos cobrem duas vezes, e não uma, e que, como o fazem apenas para desencorajar a migração de chineses para as minas, trata-se de uma atividade merecedora de aplauso, e que pode ser mesmo considerada divertida. Foi assim que ele descobriu que, quando um homem branco rouba ouro da caixa de cascalho de um garimpeiro (o termo branco indica espanhóis, portugueses, irlandeses, hondurenhos, peruanos, chilenos e outros), ele é expulso do garimpo, e que quando um chinês faz a mesma coisa, é enforcado. E foi assim que ele descobriu que em muitos distritos da vasta costa do Pacífico, o amor pela justiça é tão agreste e livre nos corações dos homens, que sempre que algum crime misterioso é cometido, eles dizem: “Que se faça a justiça, ainda que o céu caia sob a nossa cabeça”, e enforcam algum chinês. Foi assim que ele descobriu, pelo estudo diário da metade dos “assuntos locais”, que a polícia de São Francisco vivia adormecida ou morta, e que, pelo estudo diário da outra metade, os repórteres haviam enlouquecido de admiração pela energia, virtude, eficiência e intrepidez da mesma polícia, fazendo inúmeras referências a como, “sempre atento, o guarda Fulano de Tal capturou um perigoso chinês, no momento em que ele roubava galinhas e o trouxe gloriosamente para a cadeia da cidade”; e como o bravo detetive Beltrano vigiou silenciosamente os movimentos de um filho de Confúcio de olhos amendoados” (esse repórter é muito bem humorado), seguindo-o com aquele olhar distante e vazio, que sempre foi característica do policial de quarenta dólares, durante suas horas de vigília, e finalmente o capturou no ato de lançar mão sobre um punhado de alfinetes deixados, expostos pelo proprietário; como um guarda realizou tal feito importante, outro detetive, aquele outro feito e um seguinte, ainda outro – e todos esses acontecimentos tinham como elemento central um chinês culpado de um crime de centavos, um infeliz cuja infração deve ser ampliada em algo enorme, para evitar que o público saiba quantos bandidos realmente importantes deixaram de ser presos e como esses policiais são superestimados. Foi 267 assim que o garoto descobriu que a Assembléia Legislativa, apesar de saber que a Constituição transformou os Estados Unidos no asilo dos pobres e oprimidos de todas as nações e que, portanto, não se poderá cobrar dos pobres e oprimidos que fogem para o nosso abrigo, nenhum taxa de admissão, aprovou uma lei estabelecendo que todo chinês, ao pisar no solo americano, deverá ser vacinado e pagar ao funcionário indicado pelo Estado, uma taxa de dez dólares pelo serviço, quando existem inúmeros médicos em São Francisco, que o fariam por meros cinqüenta centavos. Foi assim que ele descobriu que nenhum chinês tem os direitos que todos devem respeitar; que o sofrimento do chinês não causa pena; que sua vida e sua liberdade não valeriam um centavo se algum branco precisasse de um bode expiatório; que ninguém ama um chinês, ninguém é seu amigo, ninguém lhe poupa sofrimento quando é conveniente infligir-lhe sofrimento; que todos, indivíduos, comunidades, e mesmo a majestade do Estado, se unem no ódio, no abuso e na perseguição desses estrangeiros humildes. Ou seja, o que poderia ser mais natural que esse garoto, de coração puro a caminho da igreja, dizer para si mesmo, depois de tomar ciência de todos esses incentivos: “Olha ali um chinês! Deus não vai me amar se eu não lhe jogar uma pedra”. E por isso ele foi preso e atirado na cadeia. Tudo conspirou para lhe ensinar que apedrejar um chinês era um ato sagrado, e mesmo assim ele é punido tão logo tenta cumprir seu dever; ele, pobre coitado, que sempre soube que um dos principais divertimentos da polícia era observar e desfrutar, tranqüilamente, do espetáculo dos açougueiros, da rua Brannan, atiçando os cachorros contra um chinês pacífico, que tinha de correr para salvar a própria vida102. Tendo em mente o curso de humanidade oferecido por toda a costa do Pacífico aos seus jovens, há até uma certa sublimidade no grotesco da proclamação dos grandes da cidade (recentemente tornada pública), de que a polícia “tem ordens de prender todos os garotos, de qualquer classe ou raça, e sempre que encontrados, que cometerem violência contra os chineses”. Ainda assim, devemos nos alegrar por eles terem dado a ordem, apesar de sua inconsistência; e devemos ter a certeza de que a polícia também ficará feliz, pois não há risco de prender garotos, desde que pequenos, e desde que os repórteres louvem essa ação com a mesma lealdade de sempre, ou a deixem sem menção. O novo formato dos “assuntos locais”, em São Francisco será: “O sempre vigilante e atento guarda Fulano de tal prendeu ontem o jovem Tommy Jones depois de renhida resistência”, etc. etc., acompanhado da costumeira estatística e do elogio final, com o sarcasmo inconsciente: “É bom que se diga também que esta foi a quadragésima sétima prisão deste bravo policial desde que esta ordem entrou em vigor. É extraordinária do nosso Departamento de Polícia. Jamais se viu algo semelhante”. (TWAIN, 2003, p. 231-234)

102 Eu próprio me lembro de muitas dessas ocasiões, mas estou agora me lembrando de uma em particular, quando os açougueiros da rua Brannan atiçaram os cachorros contra um chinês que passava tranqüilamente com uma cesta de roupa na cabeça, enquanto os cachorros rasgavam a carne do chinês, um dos açougueiros o faziam engolir os dentes com um tijolo. Este incidente talvez viva mais forte na minha memória, pelo fato de, à época, eu estar a serviço de um jornal de São Francisco e não ter tido autorização para publicá-lo por ele ofender algum dos assinantes do jornal. MEMÓRIA DO EDITOR. 268

4. BEM-VINDO AO LAR: DISCURSO EM JANTAR NO LOTOS CLUB (10 de novembro de 1901)

Ah, os senhores muito realizaram durante o tempo em que estive ausente; muitas coisas, algumas delas merecedoras de menção. Ora, lutamos uma guerra justa enquanto estive fora, e isso é algo raro na história – uma guerra justa é tão rara a ponto de ser quase desconhecida na história, mas foi graças àquela guerra que trouxemos a liberdade para Cuba e a juntamos àquelas três ou quatro nações livres que existem no mundo; e decidimos libertar também os pobres filipinos, e por que, por que, por que fracassou aquele justo objetivo, creio que nunca vou saber. Mas acabamos de realizar um feito muito respeitável na China; nossa admiração prudente e ponderada realizou um feito respeitável naquelas paragens, e outras potências não podem, de forma alguma, afirmar o mesmo. O Terror Amarelo é uma ameaça para o mundo hoje. Paira, enorme e ominoso, sobre aquele horizonte distante; não sei o que há de resultar do Terror Amarelo, mas nosso governo não pode ser responsabilizado por sua invocação; por isso nos felicitamos, e disso nos orgulhamos. Criamos a prata livre, guardamos o seu berço; fizemos tudo o que nos foi possível para educar aquela criança, mas aqueles republicanos pestilentos... quero dizer, eles vivem espalhando o sarampo sempre que podem, e nunca conseguiremos educar essa criança. Mas não tem importância, há muitas outras coisas a serem feitas, e temos de pensar em outra coisa. Ora, experimentamos um presidente durante quatro anos, e durante todo esse tempo ele foi criticado e considerado fraco, e então viramos a folha e há dois dias ele foi reeleito com votos suficientes para eleger dois. Ah, coerência, coerência! Teu nome é... Não sei qual o teu nome... digamos Thompson, qualquer nome está bom, mas o fato é que a coerência existe. Depois experimentamos no governo do estado um valente cavaleiro, e gostamos tanto dele nesse cargo que agora ele foi feito vice-presidente, não para que o cargo lhe dê distinção, mas para que ele confira distinção ao cargo. E isso é uma necessidade... uma necessidade. E agora, pelo menos durante algum tempo, não precisamos mais gaguejar canhestramente quando um estrangeiro nos perguntar: “Como se chama o seu vice-presidente?”. O que temos agora é conhecido; é muito, amplamente conhecido, e é até bem visto em alguns círculos. Não sou acostumado ao louvor excessivo, talvez esteja exagerando um pouco; mas, ora, minha antiga e afetuosa admiração pelo governador Roosevelt talvez me tenha traído nesse excesso de reverência; mas eu o conheço, e os senhores o conhecem; e se lhe derem corda – quero dizer, se – ele há de justificar todos esses elogios; é melhor deixar como está. E acabamos de colocar em seu lugar o Sr. Odell, ao que me parece outro valente cavaleiro; ultimamente todas as coisas boas se oferecem para essa profissão. Eu mesmo poderia ter me feito um valente cavaleiro se adivinhasse a abertura desse Klondike103 político, mas só teria sido um cavaleiro se me fosse possível ir para a guerra de automóvel, mas nunca a cavalo! Eu conheço bem os cavalos; conheci cavalos na guerra e na paz, e um cavalo nunca se sente à vontade em lugar nenhum. É muito caprichoso, muito dado a iniciativas. Cheio de idéias; não, de cavalos nem quero chegar perto.

103 Região do território de Yukon, no Canadá, a leste do Alasca, atravessada pelo rio Klondike num percurso de cerca de 145km. A descoberta de ouro nessa região, em 1896, levou a uma corrida do ouro entre 1897 e 1898, quando 25 mil pessoas acorreram à região. 269

E então afastamos Chauncey Depew de uma vida ativa e útil e o fizemos senador, embalsamado, arrolhado. E eu não posso me queixar. Esse homem disse muitas verdades a meu respeito e eu sempre afirmei que alguma coisa ainda iria lhe suceder. Vejam aquela (apontando para o Sr. Depew) múmia dourada! Em tantos banquetes, dos dois lados do oceano, ele fez de minha vida um sofrimento, e agora é a vez dele. Morra a mão que arrancar aquela rolha! Tudo isso aconteceu, todas essas coisas se deram, durante a minha ausência, o que demonstra a pouca importância de um mugwump104 neste mundo frio e insensível, ainda que seja o último existente – um Partido Republicano de um só. E mais uma coisa aconteceu, talvez o acontecimento mais imponente de todos: a instituição chamada As Filhas da Coroa – As Filhas da Coroa Real –, que foi fundada e começou a funcionar. Ora, eis uma idéia americana; existe um ideal, nascido de não sei que tipo especial de insanidade, mas certamente uma que não deixa ninguém de miolo mole – não se pode amolecer o que não existe –, As Filhas da Coroa Real! Apenas as descendentes americanas de Carlos II se qualificam. Deus meu, como é duradouro o produto elegante daquele velho harém! Muito bem, estou realmente muito feliz por poder me reunir mais um vez com os senhores, partilhar mais uma vez o pão e o sal desta casa hospitaleira. Há sete anos, quando aqui fui recebido, estava velho e sem esperança e os senhores me deram força e o incentivo necessário para erguer um homem, fazê-lo ver a felicidade de estar vivo; e agora volto do meu exílio rejuvenescido, forte e vivo, pronto a recomeçar a vida, e sua recepção dá o toque final à minha juventude reconquistada e a torna para mim uma realidade, não um sonho gracioso que se esvai pela manhã. Muito obrigado. (TWAIN, 2003, p. 60-63)

104 Palavra de origem índia, tanto pode significar independência quanto indecisão. Neste contexto o termo designa os republicanos que, na eleição presidencial de 1884, se recusaram a apoiar o candidato do partido, James G. Blaine, levando à sua divisão. (N.T.) 270

5. INFORMAÇÕES (10 de dezembro de 1867)

O senhor poderia me oferecer informações, se as há, sobre as ilhas que o governo está pensando em comprar? Quem quer saber é o meu tio. É um homem industrioso, cheio de disposição, e pretende ganhar a vida honesta e humildemente, mas, acima de tudo, ele quer viver em paz. Quer se estabelecer, viver em paz e sem ostentação. Visitou a ilha de São Tomás, mas acha que as coisas ainda estão meio desorganizadas por lá. Há algum tempo ele foi até lá com um attaché do Departamento de Estado, que devia levar o dinheiro para pagar a ilha. O dinheiro do meu tio também ficou na mesma caixa, e assim, quando desceram em terra para pegar o recibo, os marinheiros arrombaram a caixa e levaram todo o dinheiro, sem distinguir entre o dinheiro do governo, que podia legitimamente ser roubado, e o do meu tio, que era sua propriedade privada e devia ter sido respeitado. Mas ele voltou, pegou mais dinheiro e retornou à ilha. E então pegou febre. O senhor deve saber que existem sete tipos diferentes de febre por lá e, como o sangue estava fraco em razão da falta de sono e cansaço mental, ele não conseguiu se curar da primeira febre, e depois, ninguém sabe como, pegou as outras seis. Ele não é homem de gostar de febres, apesar de ser bem-intencionado e de sempre fazer o que acha certo, então ficou muito irritado quando teve a impressão de que ia morrer. Mas ele sofreu com as doenças, curou-se e fundou uma fazenda. Cercou as terras, mas no dia seguinte veio uma enorme tempestade e carregou tudo para Gibraltar, ou algum outro lugar ali por perto. Ele só disse, no seu jeito paciente, que tudo havia sumido, e que não ia esquentar a cabeça procurando, embora achasse que tudo tivesse ido parar em Gibraltar. Então investiu numa montanha e montou uma fazenda lá no alto, para não ficar no caminho quando o mar voltasse a invadir a praia. Era uma boa montanha e uma boa fazenda, mas não adiantou; houve um terremoto na noite seguinte e sacudiu a terra até destruir tudo. Restaram apenas fragmentos, entende, tudo misturado com a propriedade de outro homem; ele não conseguiu separar os fragmentos dele sem acionar a Justiça, mas não queria fazê-lo porque seu principal objetivo quando foi para São Tomás era viver sossegado. Ele só queria se estabelecer e viver em paz. Pensou muito e, finalmente, decidiu tentar as terras baixas novamente, principalmente porque dessa vez queria montar uma olaria. Comprou um terreno plano e preparou 100 mil tijolos para secar antes de irem ao forno. Mas parece que a sorte não estava do lado dele. Um vulcão furou a terra aquela noite e os tijolos foram parar numa altura de 600 metros. Ele ficou muito irritado. Esteve lá em cima e viu que os tijolos até já estavam cozidos e prontos, mas não conseguiu trazê-los para baixo. De início pensou que o governo talvez fizesse descer os tijolos para ele, pois quem comprara a ilha devia proteger a propriedade em que um homem havia investido de boa-fé. Mas ele queria sossego e decidiu não pedir o subsídio que estava considerando. Na semana passada ele voltou à ilha em dois navios de guerra, para contornar a costa em busca de um lugar seguro para montar uma fazenda onde pudesse viver sossegado, mas veio um grande “maremoto” que carregou os dois navios para uma das 271 províncias do interior e ele quase perdeu a vida. Então desistiu de usar navios para conduzir pesquisas e está desanimado. E agora não sabe o que fazer. Já tentou o Alasca, mas os ursos o perseguiram tanto, ele vivia tão sobressaltado que teve que ir embora. Nunca ia ter sossego com todos aqueles ursos correndo atrás dele o tempo todo. Foi por isso que ele veio para essa nova ilha que compramos – São Tomás. Mas ele está começando a achar que São Tomás não é um lugar tranqüilo para um homem de temperamento igual ao dele, e é por isso que ele quer que eu descubra se o governo está pensando em comprar mais algumas ilhas. Ouviu falar que é verdade, e espera que seja Porto Rico, se for uma ilha sossegada. O senhor acha que o governo vai comprá-la? (TWAIN, 2003, p. 53-55) 272

6. ABELARD AND HELOISE:

But among the thousands of tombs in Père la Chaise, there is one that no man, no woman, no youth of either sex, ever passes by without stopping to examine. Every visitor has a sort of indistinct idea of the history of its dead, and comprehends that homage is due there, but not one in twenty thousand clearly remembers the story of that tomb and its romantic occupants. This is the grave of Abelard and Heloise - a grave which has been more revered, more widely known, more written and sung about and wept over, for seven hundred years, than any other in Christendom, save only that of the Saviour. All visitors linger pensively about it; all young people capture and carry away keepsakes and mementoes of it; all Parisian youths and maidens who are disappointed in love come there to bail out when they are full of tears; yea, many stricken lovers make pilgrimages to this shrine from distant provinces to weep and wail and "grit" their teeth over their heavy sorrows, and to purchase the sympathies of the chastened spirits of that tomb with offerings of immortelles and budding flowers. Go when you will, you find somebody snuffling over that tomb. Go when you will, you find it furnished with those bouquets and immortelles. Go when you will, you find a gravel- train from Marseilles arriving to supply the deficiencies caused by memento-cabbaging vandals whose affections have miscarried. Yet who really knows the story of Abelard and Heloise? Precious few people. The names are perfectly familiar to every body, and that is about all. With infinite pains I have acquired a knowledge of that history, and I propose to narrate it here, partly for the honest information of the public and partly to show that public that they have been wasting a good deal of marketable sentiment very unnecessarily.

STORY OF ABELARD AND HELOISE

Heloise was born seven hundred and sixty-six years ago. She may have had parents. There is no telling. She lived with her uncle Fulbert, a canon of the cathedral of Paris. I do not know what a canon of a cathedral is, but that is what he was. He was nothing more than a sort of a mountain howitzer, likely, because they had no heavy artillery in those days. Suffice it, then, that Heloise lived with her uncle the howitzer, and was happy. She spent the most of her childhood in the convent of Argenteuil - never heard of Argenteuil before, but suppose there was really such a place. She then returned to her uncle, the old gun, or son of a gun, as the case may be, and he taught her to write and speak Latin, which was the language of literature and polite society at that period. Just at this time, Pierre Abelard, who had already made himself widely famous as a rhetorician, came to found a school of rhetoric in Paris. The originality of his principles, his eloquence, and his great physical strength and beauty created a profound sensation. He saw Heloise, and was captivated by her blooming youth, her beauty and her charming disposition. He wrote to her; she answered. He wrote again, she answered again. He was now in love. He longed to know her - to speak to her face to face. His school was near Fulbert's house. He asked Fulbert to allow him to call. The good old swivel saw here a rare opportunity: his niece, whom he so much loved, would absorb knowledge from this man, and it would not cost him a cent. Such was Fulbert - penurious. Fulbert's first name is not mentioned by any author, which is unfortunate. However, George W. Fulbert will answer for him as well as any other. We will let him go at that. He asked Abelard to teach her. Abelard was glad enough of the opportunity. He came often and staid long. A letter of his shows in its very first sentence that he came under that friendly roof like a cold-hearted 273

villain as he was, with the deliberate intention of debauching a confiding, innocent girl. This is the letter:

"I can not cease to be astonished at the simplicity of Fulbert; I was as much surprised as if he had placed a lamb in the power of a hungry wolf. Heloise and I, under pretext of study, gave ourselves up wholly to love, and the solitude that love seeks our studies procured for us. Books were open before us, but we spoke oftener of love than philosophy, and kisses came more readily from our lips than words".

And so, exulting over and honorable confidence which to his degraded instinct was a ludicrous "simplicity", this unmanly Abelard seduced the niece of the man whose guest he was. Paris found it out. Fulbert was told of it - told often - but refused to believe it. He could not comprehend how a man could be so depraved as to use the sacred protection of such a crime as that. But when he heard the rowdies in the streets singing the love-songs of Abelard and Heloise, the case was too plain - love-songs come not properly within the teachings of rhetoric and philosophy. He drove Abelard from his house. Abelard returned secretly and carried Heloise away to Paris, in Brittany, his native country. Here, shortly afterward, she bore a son, who, from his rare beauty, was surnamed Astrolabe - William G. The girl's flight enraged Fulbert, and he longed for vengeance, but feared to strike lest retaliation visit Heloise - for he still loved her tenderly. At length Abelard offered to marry Heloise - but on a shameful condition: that the marriage should be kept secret from the world, to the end that (while her good name remained a wreek, as before,) his priestly reputation might be kept untarnished. It was like that miscreant. Fulbert saw his opportunity and consented. He would see the parties married, and then violate the confidence of the man who had taught him that trick; he would divulge the secret and so remove somewhat of the obloquy that attaclied to his niece's fame. But the niece suspected his scheme. She refused the marriage, at first; she said Fulbert would betray the secret to save her, and besides, she did not wish to drag down a lover who was so gifted, so honored by the world, and who had such a splendid career before him. It was noble, self- sacrificing love, and characteristic of the pure-souled Heloise, but it was not good sense. But she was overruled, and the private marriage took place. Now for Fulbert! The heat so wounded should be healed at last; the proud spirit so tortured should find rest again; the humbled head should be lifted up once more. He proclaimed the marriage in the high places of the city, and rejoiced that dishonor had departed from his house. But lo! Abelard denied the marriage! Heloise denied it! The people, knowing the former circumstances, might have believed Fulbert, had only Abelard denied it, but when the person chiefly interested - the girl herself - denied it, they laughed despairing Fulbert to scorn. The poor canon of the cathedral of Paris was spiked again. The last hope of repairing the wrong that had been done his house was gone. What next? Human nature suggested revenge. He compassed it. The historian says:

"Ruffians, hired by Fulbert, fell upon Abelard by night, and inflicted upon him a terrible and nameless mutilation".

I am seeking the last resting-place of those "ruffians". When I find it I shall shed some tears on it, and stack up some bouquets and immortelles, and cart away from it some gravel whereby to remember that howsoever blotted by crime their lives may have been, these ruffians did one just deed, at any rate, albeit it was not warranted by the strict letter of the law. Heloise entered a convent and gave good-bye to the world and its pleasures for all time. For twelve years she never heard of Abelard - never even heard his name mentioned. She had 274

become prioress of Argenteuil, and led a life of complete seclusion. She happened one day to see a letter written by him, in which he narrated his own history. She cried over it, and wrote him. He answered, addressing her as his "sister in Christ". They continued to correspond, she in the unweighed language of unwavering affection, he in the chilly phraseology of the polished rhetorician. She poured out her heart in passionate, disjointed sentences; he replied with finished essays, divided deliberately into heads and sub-heads, premises and argument. She showered upon him the tenderest epithets that love could devise, he addressed her from the North Pole of his frozen heart as the "Spouse of Christ!" The abandoned villain! On account of her too easy government of her nuns, some disreputable irregularities were discovered among them, and the Abbot of St. Denis broke up her establishment. Abelard was the official head of the monastery of St. Gildas de Ruys, at that time, and when he heard of her homeless condition a sentiment of pity was aroused in his breast (it is a wonder the unfamiliar emotion did not blow his head off,) and he placed her troop in the little oratory of the Paraclete, a religious establishment which he had founded. She had many privations and sufferings to undergo at first, but her worth and her gentle disposition won influential friends for her, and she built up a wealthy and flourishing nunnery. She became a great favorite with the heads of the church, and also the people, though she seldom appeared in public. She rapidly advanced in esteem, in good report and in usefulness, and Abelard as rapidly lost ground. The Pope so honored her that he made her the head of her order. Abelard, a man of splendid talents, and ranking as the first debater of his time, became timid, irresolute, and distrustful of his powers. He only needed a great misfortune to topple him from the high position he held in the world of intellectual excellence, and it came. Urged by kings and princes to meet the subtle St. Bernard in debate and crush him, he stood up in the presence of a royal and illustrious assemblage, and when his antagonist had finished he looked about him, and stammered a commencement; but his courage failed him, the cunning of his tongue was gone: with his speech unspoken, he trembled and sat down, a disgraced and vanquished champion. He died a nobody, and was buried at Cluny, A.D., 1144. They removed his body to the Paraclete afterward, and when Heloise died, twenty years later, they buried her with him, in accordance with her last wish. He died at the ripe age of 64, and she at 63. After the bodies had remained entombed three hundred years, they were removed once more. They were removed again in 1800, and finally, seventeen years afterward, they were taken up and transferred to Père la Chaise, where they will remain in peace and quiet until it comes time for them to get up and move again. History is silent concerning the last acts of the mountain howitzer. Let the world say what it will about him, I, at least, shall always respect the memory and sorrow for the abused trust, and the broken heart, and the troubled spirit of the old smoothbore. Rest and repose be his! Such is the story of Abelard and Heloise. Such is the history that Lamartine has shed such cataracts of tears over. (TWAIN, 1997, p. 140-147)

ABELARDO E HELOÍSA

Mas, dentre os milhares de túmulos existentes no Père la Chaise, há um que nenhum homem ou mulher ou jovens de ambos os sexos, passa, sem parar para olhar. Todo visitante tem uma vaga idéia da história de sua morte e compreende a reverência que tem que ser feita, mas ninguém, em 20.000, lembra-se claramente da história deste túmulo e de seus românticos ocupantes. Esta é a tumba de Abelardo e Heloísa – a tumba que mais foi venerada, a mais conhecida, a mais reportada, cantada e lamentada por 700 anos que qualquer outra, em toda a cristandade, perdendo apenas para a do Salvador. 275

Todos os visitantes ficam pensativos diante dela; todos jovens pegam e levam lembranças e recordações, jovens parisienses e damas, que estão sofrendo por amor, vão até lá para desabafar quando estão transbordantes de lágrimas; sim, muitos amantes aflitos fazem peregrinações a este santuário, vindos de províncias distantes para lamentarem, chorarem e “rangerem” seus dentes, com suas mágoas profundas e para negociarem a simpatia dos espíritos virtuosos, ofertando mortalhas e ramalhetes de flores. A qualquer hora que se vá, você encontrará alguém fungando sobre o túmulo, a qualquer hora que se vá, você a encontrará lotada, com aqueles buquês e mortalhas. A qualquer hora que se vá, você encontrará um trem de cascalho, oriundo de Marselha, chegando para suprir as deficiências causadas pelos vândalos do memorial arrepolhado, cujas afeições foram malogradas. E quem realmente conhece a história de Abelardo e Heloísa? Pouquíssimas pessoas. Os nomes são perfeitamente familiares para todos, e isso é tudo. Com infinita dor, adquiri conhecimento desta história e me proponho a narrá-la aqui; parte, pela honesta informação do público e parte, para mostrar a esse público que eles têm desperdiçado notável sentimento desnecessariamente.

A HISTÓRIA DE ABELARDO E HELOÍSA

Heloísa nasceu há 736 anos, deve ter tido pais, mas não há registro disto. Morava com seu tio Fulbert, um cônego da Catedral de Paris, eu não sei o que um cônego de catedral é, mas é o que ele era e não passava de um tipo de morteiro montanhoso, parecido, já que não havia artilharia pesada naquela época. Esqueça isso, então Heloísa morava com seu tio morteiro e era feliz. Passa a maior parte de sua infância no convento de Argenteuil – nunca tinha ouvido esse nome antes, mas vamos supor que realmente existiu esse lugar. Então ela volta a viver com seu tio, o velho canhão ou o filho do canhão, no caso pode até ser, e ele ensina-lhe a escrever e falar latim, que era a língua da literatura e da sociedade educada, nesse período. Bem nessa época, Pierre Abelardo, que já era um retórico renomado, funda uma escola de retórica em Paris. A originalidade de seus princípios, sua eloqüência e sua enorme força física e beleza causam grande sensação. Ele vê Heloísa e é cativado pelo seu frescor que desabrochava, e sua beleza e disposição intrigantes. Escreve para ela; ela responde. Escreve de novo, ela responde novamente. Ele se apaixona e deseja conhecê-la, falar-lhe pessoalmente. Sua escola ficava perto da casa de Fulbert. Pede, então, permissão a este para visitá-la. O bom e velho canhão vê uma rara oportunidade: sua sobrinha que tanto amava, poderia obter conhecimento deste homem e não lhe custaria nenhum centavo, já que era um sovina. O nome de batismo de Fulbert não é mencionado por nenhum autor, o que é uma pena. Entretanto, George W. Fulbert responderá por ele, assim como qualquer outro. Vamos deixá- lo assim. Então, ele convida Abelardo para ensinar sua sobrinha. Abelardo se alegra com a oportunidade. Vai com freqüência e não economiza tempo. Uma carta, de próprio punho mostra, na primeira linha, que vai até aquele teto amigo como um vilão de coração frio, pois era isso o que era; com a intenção deliberada de perverter a crédula garota inocente. Esta é a carta:

Não consigo conter meu espanto quanto à estupidez de Fulbert; fiquei tão surpreso, como se ele tivesse colocado uma ovelha sob o poder de um lobo faminto. Eu e Heloísa, sob o pretexto de estudarmos, tivemos toda a chance para o amor. Os livros eram abertos; entretanto, falávamos muito mais de amor que de filosofia, e os beijos vieram muito mais prontamente em nossos lábios que as próprias palavras. 276

E então, exultante diante da confiança que, para seu degradado instinto era uma “ridícula ignorância”, este Abelardo desumano seduz a sobrinha do homem que o hospedava. Paris descobre. Fulbert fica sabendo – contaram-lhe antes – mas se recusava a acreditar. Não conseguia entender como um homem poderia ser tão depravado a usar a sagrada proteção para tal crime. Mas, quando ouve a turba, nas ruas, cantando as canções de amor de Abelardo e Heloísa, o caso fica evidente – as canções de amor não se adequavam aos ensinamentos de retórica e filosofia. Abelardo é expulso pelo cônego e retorna, em seguida, secretamente, e a leva de Paris para a Bretanha, sua terra natal. Em seguida, ela dá à luz a um filho que, por sua rara beleza, recebe o nome de Astrolábio William G. A fuga da moça enfurece Fulbert e este promete vingança, porém, temia romper com Heloísa, já que a amava tanto. Finalmente Abelardo decide-se casar-se – mas sob condições indecorosas: que o casamento fosse mantido em sigilo – enquanto o nome de Heloísa continuava arruinado – a reputação sacerdotal de Abelardo era mantida sem máculas. Isso era tal qual canalha. Fulbert vê sua oportunidade e consente, ele veria o casal casado e então violaria o segredo do homem que tinha-lhe ensinado a trapacear; e revelaria a confidência e retiraria as calúnias que mancharam a reputação de sua sobrinha. Mas sua sobrinha desconfiou de sua intenção e recusou-se a casar-se; ela confessa que sabia que Fulbert trairia o segredo para salvá-la e que não queria destruir o amante tão querido, tão honrado pelo mundo e que possuía uma carreira brilhante à sua frente. Isso foi nobre, um amor auto-sacrificante e característico da pura alma de Heloísa; porém, sem grande sabedoria. Mas, Heloísa sente-se acuada e o casamento sigiloso acaba acontecendo. Agora Fulbert! O ardor da ferida poderia ser amenizado; o espírito orgulhoso tão torturado poderia descansar outra vez; a cabeça humilhada poderia se erguer novamente. Então, ele proclama o casamento por todos os lugares da cidade e regozija- se da desonra que fenecera de sua casa. Mas, alto lá! Abelardo nega a união! Heloísa também! O povo, conhecendo as circunstâncias do Padre poderia ter acreditado em Fulbert, mesmo com Abelardo negando, mas, quando a maior interessada nega também, as pessoas riram jocosamente de Fulbert escarniando-o. O pobre cônego da Catedral de Paris fica em maus lençóis, escarnecendo-se novamente. A última esperança para reparar o mal que fora feito em sua casa, dissipa-se. O que acontece em seguida? O instinto humano sugere vingança. Ele se defende, mas os historiadores afirmam:

Rufiões, contratados por Fulbert, debruçam-se sobre Abelardo pela madrugada e infligem-lhe com uma mutilação terrível e indescritível.

Estou procurando o último lugar de descanso desses rufiões. Quando o encontrar, derramarei algumas lágrimas sobre ele e depositareis alguns ramalhetes e coroas e levarei, também, alguma recordação, para lembrar-me que, de qualquer forma, maculados pelo crime, estes rufiões realizaram uma proeza, sem a menor dúvida, mas, infelizmente, não autorizados pelo severo regimento da lei. Heloísa vai para um convento e despede-se dos prazeres do mundo. Fica 12 anos sem ter notícias de Abelardo – sem nem mesmo ouvir seu nome. Torna-se priora de Argenteuil e vive em completa reclusão. Surpreende-se, um dia, ao ver uma carta escrita por Abelardo, na qual narra sua história. Ela chora e escreve para ele, ele responde, dirigindo-se a ela como sua “irmã em Cristo”. Continuam a se corresponder; ela, em um linguajar leve e afetuoso com discreta afeição. E ele usa a fraseologia fria do refinado retórico. Ela mostra seu coração apaixonado, com frases desconexas; ele retorna com ensaios prontos, divididos deliberadamente em títulos e subtítulos, premissas e argumentos. Ela, despeja sobre ele os 277

epítetos mais suaves que o amor possa imaginar e ele se dirige a ela como se viesse do Pólo Norte, com o coração congelado, tratando-a como “esposa de Cristo”! O vilão desertado. Por conta da administração maleável com as freiras, algumas irregularidades foram descobertas no convento que Heloísa liderava e o abade de São Denis irrompe o estabelecimento. Abelardo era o oficial responsável pelo monastério de São Gildas de Ruys, nessa época, e quando ele ouve a condição de desabrigo de Heloísa, um sentimento de piedade brota em seu peito (é uma sorte que a estranha emoção não lhe tivesse decapitado), coloca-a, juntamente com sua irmandade, em um pequeno oratório de Paraclete, um estabelecimento religioso que ele havia fundado. Ela se submete a várias privações e sofrimento, no começo, mas seu valor e grande disposição ganham amigos influentes, construindo, assim, um próspero convento. Ela torna-se a grande favorita da cúpula da igreja e também das pessoas, apesar de raramente aparecer em público. Ela rapidamente ascende e Abelardo rapidamente cai. O Papa tanto a estimava que a fez a superiora de sua ordem. Abelardo, o homem de esplêndidos talentos e o grande debatedor de seu tempo, tornou-se tímido, irresoluto e sem os seus poderes. Ele precisava apenas de um pequeno deslize para fazê-lo cair da alta posição que mantinha na excelência do mundo intelectual, e teve. Instigado pelos reis e princesas para enfrentar São Bernardo em um debate, levantou-se na presença dos ilustres da realeza e, quando seu antagonista terminou, olhou para ele e sua coragem desapareceu, o dom da retórica havia dissipado: com seu discurso não-feito, ele sentou-se, campeão desgraçado e ultrapassado. Ele morre incólume e é enterrado em Cluny, em 1144. Seu corpo foi removido para a Paraclete e, quando morre Heloísa, 20 anos mais tarde, é enterrada com ele, de acordo com seu último desejo. Ele morre em volta de seus 64 e ela aos 63. Depois que os corpos permaneceram enterrados por 300 anos, foram removidos mais uma vez, em 1800 e, finalmente, 17 anos depois, foram transferidos ao Pèle la Chaise, onde permanecerão em paz e quietos até chegar a hora deles se levantarem e se moverem de novo. A história é silenciosa no que diz respeito aos últimos atos do canhão montanhoso. Deixe o mundo dizer o que quiser sobre ele, eu, pelo menos, sempre respeitarei a memória e a dor da verdade.Como a história de Abelardo e Heloísa, a história de Lamartine derramou cataratas de lágrimas. (TWAIN, 1997, p. 140-147, tradução nossa) 278

7. MULHER – UMA OPINIÃO (1868)

Senhor presidente, não sei por que devera ser eu o escolhido para receber a maior distinção desta noite – pois assim foi considerado em todas as eras o ofício de responder ao brinde à mulher. Não sei a razão de eu ter recebido esta distinção, a menos que eu seja um tanto menos honesto que os outros membros do clube. Mas, seja qual for a razão, senhor presidente, tenho orgulho dessa posição, e o senhor não poderia ter escolhido ninguém que a aceitasse com maior alegria, ou que trabalhasse com maior boa vontade para fazer justiça ao objeto do brinde do que eu – porque, senhor, eu amo aquele sexo, amo todas as mulheres, independentemente de idade ou cor. O intelecto humano não tem condições de avaliar o que devemos à mulher, senhor. É ela quem prega nossos botões; quem repara nossas roupas; quem nos arrasta para as feiras da igreja; ela confia em nós; ela nos conta tudo o que descobre sobre os pequenos casos dos vizinhos; ela nos dá bons conselhos, e muitos; ela nos alivia a dor de cabeça; ela gesta nossos filhos – nossos, de modo geral. Em todas as relações da vida, é um tributo justo e gracioso à mulher dizer que ela é uma prata. Onde quer que seja colocada a mulher – em qualquer posição ou condição – ela é um ornamento para o lugar que ocupa, e um tesouro para o mundo. [Aqui o Sr. Clemens fez uma pausa, olhou inquisitivo para os ouvintes e observou que esperava aplausos naquele ponto. Os aplausos vieram e ele retomou o elogio.] Vejam Cleópatra! Vejam Desdêmona! Vejam Florence Nightingale! Vejam Joana d’Arc! Vejam Lucrécia Bórgia! [Expressão de desaprovação.] Ora [o Sr. Clemens coçou a cabeça, em dúvida], talvez seja melhor deixar Lucrécia de fora. Veja Joyce Heth! Veja nossa mãe, Eva! Ninguém é obrigado a olhar para ela, se não quiser, mas [disse o Sr. Clemens, meditativo, depois de uma pausa] Eva foi um ornamento, senhor, particularmente antes da mudança da moda. Repito, senhor, veja os nomes ilustres da história. Veja a viúva Machree! Veja Lucy Stone! Veja Elizabeth Cady Stanton! Veja George Francis Train! E, senhor, isto eu digo com a maior veneração, veja a mãe de Washington! Criou um filho incapaz de dizer uma mentira...incapaz de dizer uma mentira! Mas a verdade é que ele nunca teve uma oportunidade. A história talvez fosse outra tivesse ele sido membro do Clube dos Correspondentes de Washington. Repito, senhor, em qualquer posição que se coloque uma mulher, ela é um ornamento para a sociedade e um tesouro para o mundo. Como namorada, tem poucos iguais e nenhum superior; como prima, é conveniente; como avó rica e mal-humorada, ela é preciosa; como ama-de-leite, não tem igual entre os homens. O que, senhor, seria a humanidade sem a mulher? Seríamos poucos, senhor, pouquíssimos. Vamos então tratá-la com todo carinho; vamos lhe dar todo apoio, incentivo, simpatia, e a nós mesmos – se for possível. Mas, deixando de facécias, senhor presidente, a mulher é amável, graciosa, gentil, bela – merecedora de todo respeito, de toda estima, de toda deferência. Ninguém aqui há de se recusar a beber à sua saúde este cálice de vinho, pois todos aqui conhecem, honram e amam pessoalmente a melhor de todas – sua própria mãe. (TWAIN, 2003, p. 326-328)

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8- ROTEIRO DA VIAGEM DE THE INNOCENTS ABROAD

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) (TWAIN, 1997, p. 20-23)