CAPTURANDO A TERRA: Banco Mundial, políticas fundiárias neoliberais e reforma agrária de mercado

Sérgio Sauer João Márcio Mendes Pereira (orgs.)

CAPTURANDO A TERRA: Banco Mundial, políticas fundiárias neoliberais e reforma agrária de mercado

1ª edição

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR

São Paulo, 2006 Copyright © 2006, by Editora Expressão Popular, Sérgio Sauer e João Márcio Mendes Pereira

Coordenação e edição: Sérgio Sauer e João Márcio Mendes Pereira Tradução: Werner Fuchs (inglês) e Sérgio Sauer (espanhol) Revisão geral dos textos: João Márcio Mendes Pereira e Sérgio Sauer Projeto gráfico e capa: ZAP Design Diagramação: Mariana Vieira de Andrade Arte da capa: Obra de Candido Portinari, Mulher do pilão, 1945. (Pintura a óleo/tela 100x81cm) Imagem do acervo Projeto Portinari, gentilmente autorizada a reprodução por João Cândido Portinari. Impressão e acabamento: Cromosete Apoio: Action Aid e Terra de Direitos

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização da editora ou dos organizadores.

1ª edição: novembro de 2006

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4 SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...... 7

PARTE I AJUSTE ESTRUTURAL E POLÍTICAS PRÓ-MERCADO DE TERRAS DO BANCO MUNDIAL

Neoliberalismo, políticas de terra e reforma agrária de mercado na América Latina ...... 13 João Márcio Mendes Pereira Reestruturação territorial e fundamentação da reforma agrária: comunidades indígenas, mineração de ouro e Banco Mundial ...... 49 Eric Holt-Giménez

PARTE II EXPERIÊNCIAS NA AMÉRICA LATINA, ÁFRICA E ÁSIA

Aplicação das políticas agrárias do Banco Mundial na Guatemala: 1996 - 2005 ...... 77 Susana Gauster O Estado, o mercado ou o pior de ambos? A reforma agrária de mercado na África do Sul ...... 103 Edward Lahiff É possível implementar a reforma redistributiva através de esquemas de transferência voluntária de terra com base no mercado? Evidências e lições das Filipinas ...... 131 Saturnino M. Borras Jr.

PARTE III EXPERIÊNCIAS NO BRASIL História e legado da reforma agrária de mercado no Brasil ...... 171 João Márcio Mendes Pereira e Sérgio Sauer O mercado de terras ou a terra como mercadoria no Ceará ...... 205 Francisco Amaro Gomes de Alencar

A implantação dos programas orientados pelo modelo de reforma agrária de mercado no estado da Bahia ...... 227 Guiomar Germani, Alicia Ruiz Olalde, Gilca Garcia de Oliveira e Edmilson Carvalho

5 A implementação do Banco da Terra no Rio Grande do Sul: uma leitura política ...... 257 César Augusto Da Ros

Estado, Banco Mundial e protagonismo popular: o caso da reforma agrária de mercado no Brasil ....281 Sérgio Sauer

PARTE IV REFORMA AGRÁRIA, LUTA SOCIAL E SOBERANIA ALIMENTAR Alternativa à política fundiária de mercado: reforma agrária e soberania alimentar ...... 311 Peter Rosset

Sobre os autores ...... 339

6 APRESENTAÇÃO

Ao longo da década de 1990, sob o impulso das reformas neoliberais, uma nova onda de políticas pró-mercados de terra varreu inúmeros países na América Latina, Ásia e África. Em comum, propostas e programas foram implantados em sociedades marcadas por elevada concentração da propriedade da terra, altos ín- dices de pobreza rural, processos anteriores de reforma agrária e, especialmente, histórias de lutas pela democratização da estrutura agrária e econômica nacional. O principal ator dessa difusão foi, e continua sendo, o Banco Mundial (BIRD). Mediante a concessão cada vez maior de empréstimos, doações e auxílio “não- financeiro” – como, por exemplo, estudos, avaliações e divulgação de programas “inovadores” –, o BIRD desenhou uma agenda de políticas fundiárias “ajustada” à plataforma neoliberal. Crescentemente adotada por diversos governos nacionais, essa agenda tem como eixo a promoção acelerada de transações mercantis de ar- rendamento e compra/venda de terras como base para o aumento da produtivida- de agrícola e o alívio da pobreza rural. Um dos itens mais significativos dessa agenda é a chamada “reforma agrária de mercado”. Criada para substituir a reforma agrária redistributiva por esquemas de financiamento de compra de terras por trabalhadores rurais, tal política foi aplicada como uma forma supostamente mais barata, eficiente e politicamente viável de distribuição fundiária e alívio da pobreza rural em sociedades altamente desiguais. Esse processo ocorreu, em larga medida, contra a oposição de movi- mentos sociais camponeses e das articulações internacionais que os apóiam. Este conjunto de artigos oferece uma reflexão sobre a teoria, a política e os resultados da “reforma agrária de mercado” no Brasil e em outros países. Sua pu- blicação tem o objetivo de alimentar o debate sobre a configuração da questão agrária sob o ajuste neoliberal, o perfil e os resultados das ações de governos e do Banco Mundial afinadas com esse processo e, por fim, a necessidade de alternati-

7 vas verdadeiramente democratizantes, capazes de promover o acesso sustentável à terra, a reprodução social camponesa e a soberania alimentar dos países “pobres” e “em desenvolvimento”. O livro está organizado em quatro partes. A primeira é dedicada à discussão do papel do BIRD na ascensão de políticas pró-mercado de terras. Com foco na realidade latino-americana, o artigo de Pereira discute a teoria e prática da “refor- ma agrária de mercado” à luz da agenda de políticas agrárias do BIRD e da reciclagem da plataforma neoliberal articulada a partir de meados dos anos 1990. Na seqüência, o trabalho de Holt-Giménez analisa a “reforma agrária de mer- cado” no contexto das políticas para o campo do BIRD, tomando como referên- cia empírica os incentivos à mineração na Guatemala. Segundo o autor, os proje- tos agrários, em conjunto com os ambientais e de infra-estrutura, fazem parte de um pacote mais amplo de intervenções institucionais e financeiras cujo objetivo é beneficiar empresas extrativas, em detrimento das necessidades e reivindicações de camponeses e povos indígenas do Altiplano Guatemalteco. A segunda parte reúne textos dedicados à análise empírica da trajetória, das adaptações e dos resultados da “reforma agrária de mercado” em alguns países. Com base em uma ampla pesquisa de campo, Gauster estuda a implantação de programas de acesso à terra via mercado, concebidos e implantados como parte dos Acordos de Paz que puseram fim à guerra civil na Guatemala. A autora mos- tra como programas de venda de terras, arrendamento e outros, além de não de- mocratizar a propriedade fundiária, acabam penalizando os supostos beneficiários. Partindo do veto dos grandes proprietários de terra à reforma agrária na África do Sul após o regime de apartheid, Lahiff estuda os pressupostos da “reforma agrária de mercado” e as adaptações que os programas a ela vinculados sofreram no país. O autor constata o fraco desempenho destes programas, ressaltando ainda mais a necessidade urgente de uma reforma verdadeiramente redistributiva. Partindo da importância da reforma agrária, em resposta às lutas e demandas históricas pela democratização da propriedade da terra nas Filipinas, Borras Jr. analisa os programas governamentais agrários. Contextualiza a concepção, pro- blemas e limites na implantação do chamado “programa abrangente de reforma agrária”, nos anos 1990, e o fracasso do componente de “transferência voluntária de terras”. O artigo deixa claro que, apesar dos freqüentes anúncios internacio- nais, não se implantou nenhum programa de “reforma agrária de mercado” no país, apenas um pequeno projeto piloto, financiado pelo BIRD. A terceira parte abrange a experiência brasileira, de grande importância polí- tica no plano internacional em razão da sua magnitude financeira e social. Pereira

8 e Sauer analisam o surgimento, trajetória e resultados da “reforma agrária de mer- cado”, em especial do projeto Cédula da Terra, implementado pelo governo FHC a partir de um empréstimo do BIRD. Fazem um balanço político do caso brasilei- ro, englobando as continuidades e descontinuidades operadas pelo governo Lula, inclusive as mudanças no Fundo de Terras e a situação do Programa Nacional de Crédito Fundiário. O trabalho de Alencar analisa a implantação e os resultados dos projetos e pro- gramas ligados à política de “reforma agrária de mercado” no Ceará. Localizando geograficamente a distribuição dessas iniciativas no estado, o autor mapeia as to- madas de posição das agências públicas e de alguns dos principais atores sociais envolvidos nesse processo, destacando as resistências e as novas demandas das fa- mílias “beneficiárias” na passagem do governo FHC ao governo seguinte. O estudo de Germani, Olalde, Oliveira e Carvalho se debruça sobre a experiên- cia da Bahia, mostrando onde e como o Cédula da Terra e o Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural – também financiado pelo BIRD – foram implantados e que resultados alcançaram. Essa implantação tem sido permeada por problemas como, por exemplo, o aumento do número de “beneficiários” nos projetos, com- prometendo a capacidade produtiva da área e a própria sobrevivência das famílias. Com enfoque eminentemente político, o artigo de Da Ros analisa os embates que configuraram a implantação do Banco da Terra no Rio Grande do Sul, estado onde tal programa alcançou maior projeção, a despeito da recusa do governo Olívio Dutra (1999-2002) em implementá-lo. Da Ros mostra como a experiência gaú- cha trouxe conseqüências importantes não só para o desenho institucional da “re- forma agrária de mercado” no Brasil, mas também rearranjos na sua base social de apoio. O texto de Sauer problematiza o discurso do BIRD sobre a “participação” e o “empoderamento” dos trabalhadores rurais e camponeses em projetos de “refor- ma agrária de mercado”. Evidencia, com base na trajetória do Cédula da Terra, a falácia do suposto “protagonismo popular”, tanto pela negação explícita do go- verno e do BIRD em reconhecer a mediação política dos movimentos sociais, como pelas dificuldades das associações comunitárias envolvidas em organizar e repre- sentar os interesses das famílias “beneficiárias”. A quarta parte, dedicada às alternativas à política agrária neoliberal, traz a contribuição de Rosset sobre a relação entre reforma agrária e soberania alimen- tar. Sintonizado com o que vem sendo discutido e proposto por inúmeros movi- mentos sociais e organizações camponesas em âmbito internacional – especial- mente pela Via Campesina –, o texto procura delimitar o terreno político no qual

9 as forças populares têm se posicionado. Essa posição é claramente pela paralisação dos “programas de mercado” do BIRD e pela realização de reformas agrárias, or- ganicamente associadas, na sua visão, à luta pela soberania alimentar dos povos. Este livro é resultado do esforço de muitas pessoas, aliás, esforço esse que trans- cende aos trabalhos dos próprios autores e autoras, pois toma como base as lutas de movimentos agrários que, espalhados por vários continentes, reivindicam po- líticas agrárias redistributivas, e não programas “de mercado”. Conseqüentemen- te, este trabalho pretende ser uma contribuição, ainda que modesta, na luta pela democratização da terra, cuja concentação é a base da profunda desigualdade so- cial que marca o meio rural em muitos países.

Brasília e Rio de Janeiro, outubro de 2006. Sérgio Sauer e João Márcio Mendes Pereira

10 PARTE I

AJUSTE ESTRUTURAL E POLÍTICAS PRÓ-MERCADO DE TERRAS DO BANCO MUNDIAL

11 12 NEOLIBERALISMO, POLÍTICAS DE TERRA E REFORMA AGRÁRIA DE MERCADO NA AMÉRICA LATINA1

JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

Este artigo analisa os objetivos políticos e os pressupostos teóricos da “reforma agrária de mercado” do Banco Mundial (BIRD), bem como o desempenho e os resultados da sua aplicação na Colômbia, no Brasil e na Guatemala. O texto está organizado em cinco itens. O primeiro delimita os contornos gerais da reciclagem do neoliberalismo operada pelo BIRD em meados da década de 1990, bem como as razões que o levaram a retomar ações mais firmes no âmbito agrário. O segundo resume em que consiste a atual agenda de políticas agrárias do BIRD. O terceiro analisa em maior detalhe a lógica política e os pressupostos teóricos de um compo- nente específico dessa agenda: a reforma agrária de mercado. O quarto avalia o de- sempenho deste modelo nos três países latino-americanos que, até o momento, mais se destacaram na sua implementação. Por fim, uma breve conclusão.

1. Banco Mundial: reciclagem da agenda neoliberal e retomada da política agrária

Nos primeiros anos da década de 1990, por razões econômicas e políticas, a reestruturação capitalista neoliberal parecia não ter limites. A economia mundial vivia uma nova onda de expansão financeira. Com a implosão do chamado “socia- lismo real”, a transição para o capitalismo ocorria na ex-União Soviética e no Les- te Europeu sem qualquer gradualismo. No Oriente Médio, a Guerra do Golfo mostrava, entre outras coisas, que a “abertura dos mercados” e a “vitória da demo- cracia” seriam cobradas, inclusive militarmente, pelos Estados Unidos. Na América Latina, essa reestruturação ocorria com ainda mais força, impul- sionada pelo novo bloco de poder que surgia do manejo da crise da dívida externa e das políticas de liberalização (Vilas, 1997 e 1997a). Em poucos anos, uma série

13 de governos eleitos passaram a se comprometer firmemente com a implementação da agenda neoliberal. Por outro lado, os planos de integração econômica subordi- nada da região à economia norte-americana caminhavam a passos acelerados, a começar pelo Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA), iniciado em janeiro de 1994. Àquela altura, exceto Cuba, todos os governos da região es- tavam alinhados à plataforma neoliberal. Tudo parecia corroborar o discurso da estandartização do mundo e do “fim da história”. Entretanto, o impacto político provocado pela insurreição zapatista em janei- ro de 1994 e a crise financeira no final do mesmo ano arranharam a confiança do stablishment capitalista (Edwards, 1997a, p. 2-3). Até aquele momento, o México havia sido a economia “estrela” do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Ao mesmo tempo, em vários países, os efeitos socialmente re- gressivos das políticas em curso começaram a se avolumar e as tensões sociais ga- nharam mais visibilidade. Alguns governos da região alinhados ao Consenso de Washington passaram a sofrer uma queda rápida e acentuada de popularidade e as críticas ao neoliberalismo ganharam mais projeção. Por outro lado, os países que haviam adotado as receitas dominantes padeciam de baixo crescimento, quando não estagnação ou franca recessão, enquanto os que haviam decidido trilhar rotas capitalistas alternativas (como os países do sudeste da Ásia) ostentavam taxas ele- vadas de crescimento industrial. Tudo somado, acendeu o sinal de alerta. Alguns atores centrais da ordem internacional, então, passaram a reavaliar a implementação da agenda neoliberal. Com a crise financeira da Ásia em 1997, esse debate ga- nhou ainda mais força. Parte da rede de poder “infra-estrutural” externo dos Estados Unidos (Wade, 1997, p. 386), o BIRD, em especial, passou a advogar a realização de um segundo estágio de “reformas estruturais”, a fim de consolidar a estabilidade da paisagem macroeconômica criada no estágio anterior2, manter a orientação econômica ao exterior, corrigir eventuais desvios de rota e aprofundar o processo em curso, es- tendendo-o, inclusive, para novas áreas estratégicas. Para legitimar essa reciclagem do projeto neoliberal, o BIRD adotou o discurso da mudança, passando a defender uma agenda de reformas que, supostamente, fosse “além” do Consenso de Washington (Burki & Perry, 1998), ou mesmo que configurasse um “pós-Consenso de Washington” (Stiglitz, 2000 e 1998). Quatro consignas foram estabelecidas e repetidas como a ponta da “nova” agenda de desenvolvimento: a “complementariedade entre estado e mercado”, o abandono da idéia de estado “míni- mo” em favor de um estado “eficaz”, a centralidade das “instituições” e o “combate à pobreza” (Banco, 1997a). Com esse discurso, parte do núcleo da mesma coalizão de

14 poder que havia impulsionado a reestruturação capitalista neoliberal tentava, agora, definir a direção e os parâmetros do debate legítimo sobre as alternativas à crise do neoliberalismo (Weinberger, 2005 e 2003). Sem abandonar suas premissas teóricas fundamentais nem os interesses geopolíticos e de classe a que serve3, o BIRD cumpriu o papel de principal formulador do itinerário a ser seguido pelos países periféricos. Sistematizada pelo BIRD no triênio 1996-1998, a reciclagem do projeto neoliberal para a América Latina e o Caribe estabeleceu como prioridade a implementação de três ações estratégicas4. A primeira era a “reforma do Estado”, entendida, resumidamente, como a com- binação de dez medidas: 1) blindagem das agências estatais responsáveis pela con- dução da política econômica contra qualquer tipo de pressão ou controle demo- cráticos; 2) quebra dos direitos dos trabalhadores do setor público; 3) enxugamento e “racionalização gerencial” de todo funcionalismo público, por meio da adoção de novas tecnologias e formas de controle e concorrência do processo de trabalho já utilizadas no setor privado; 4) implementação acelerada da descentralização administrativa (na prática, muito mais uma desconcentração seletiva de funções do Executivo federal); 5) expansão de todo tipo de arranjos “público-privados” para a execução de políticas públicas; 6) reorganização do sistema escolar e do poder judiciário, mediante descentralização administrativa, padrões de remuneração por produtividade e adoção de formas de concorrência para captação de recursos; 7) finalização do ciclo de privatizações de empresas e bancos públicos; 8) reestruturação da seguridade social, aumentando o tempo de contribuição e abrindo espaço para fundos privados; 9) “modernização” do instrumental jurídico e re- pressivo necessário à segurança dos direitos de propriedade; 10) criação de marcos institucionais que garantissem a segurança e a alta rentabilidade dos fluxos de capital financeiro, especialmente os de curto prazo. A segunda ação estratégica era o “combate à pobreza”. Contra a noção de di- reitos universais de cidadania, as propostas do BIRD consistiam na criação de pro- gramas e projetos de alívio paliativo e focalizado da pobreza, preferencialmente onde as tensões sociais pudessem de algum modo fugir ao controle político-re- pressivo do estado. Para tal, o BIRD passou a estimular o redesenho da política social na direção de um novo tipo de filantropia, baseada na mobilização e articu- lação de empresas, organizações não-governamentais (ONGs), esferas subnacionais de governo e associações locais ou comunitárias. Termos como “sociedade civil”, “participação”, “capital social”, “descentralização”, “autonomia” e “empoderamen- to” foram criados ou resignificados para legitimar o ajuste das políticas sociais ao projeto neoliberal.

15 A terceira ação estratégica consistia em avançar na liberalização dos mercados de trabalho, terra e crédito – até então considerados pouco ou nada atingidos pela “primeira geração” de reformas –, por meio de mudanças na legislação vigente. Para esse segundo estágio – ainda em curso –, não apenas o conteúdo, mas a forma de execução das “reformas” assume importância central, uma vez que, na ava- liação do BIRD, salvo no caso das ações para o “alívio da pobreza”, a natureza da matéria em disputa torna o processo necessariamente mais lento e complexo, com resultados perceptíveis apenas a médio e longo prazo e sujeito a retrocessos. Preven- do resistência de segmentos organizados (sobretudo da burocracia pública e do ma- gistério) com relativo poder de vocalização, o BIRD sugere diversas medidas especí- ficas para dividi-los e cooptá-los (Burki & Perry, 1998). Porém, a principal diretriz consiste na construção prévia de um apoio político interno mais amplo às reformas. Para isso, além de criarem espaços para o “diálogo” e a “concertação” de interesses, os operadores locais deveriam dosar de maneira adequada a velocidade e o seqüenciamento tático de execução das reformas, a fim de ajustá-las às “especificidades nacionais”. Afinal, “o líder eficiente dá ao público o senso de que a reforma pertence ao povo e não foi imposta de fora para dentro” (Banco, 1997a, p. 15). Para amarrar ainda mais os governos da região à execução desse receituário, o Banco Mundial (1997a), além de chancelar as políticas do FMI e as decisões da OMC, propôs a realização de acordos internacionais pró-liberalização. Num pe- ríodo de ascensão da crítica ao neoliberalismo, essa “contratualização” serviria para aumentar os “custos políticos” a ser enfrentados por governos que decidissem – ou fossem levados a – trilhar uma rota alternativa de desenvolvimento. Assim, sob a bandeira da “governança” (governance), o direito público internacional de- veria legalizar formas “neocoloniais” de exploração e dominação. O arcabouço teórico dessa reciclagem é a “Nova Economia Institucional”, ramo de conhecimento que ambiciona construir uma teoria sobre a formação e evolu- ção das “instituições”5 compatível com o pensamento neoclássico (Medeiros, 2001). A adoção dessa perspectiva analítica permitiu ao BIRD aceitar a introdução da dimensão política na promoção da “economia de mercado”, desde que reduzida a uma questão técnica. Assim, a retórica sobre as “instituições” restringiu-se a uma discussão basicamente instrumental, cujo fim – a promoção da liberalização eco- nômica – aparece como algo dado (Vilas, 2001 e 2000). Do mesmo modo, as relações de poder que impõem e projetam tal fim são naturalizadas; portanto, aceitas como tais. Não é difícil perceber qual o sentido geral dessas diretrizes: converter o Estado numa agência mais “funcional” à globalização financeira, neutralizar tensões sociais

16 emergentes, potencializar e institucionalizar a ofensiva do capital contra o traba- lho, ajustar e subordinar as políticas sociais ao novo regime de acumulação e, por fim, aprofundar a liberalização das economias domésticas. A expectativa dos seto- res dominantes era a de que, dessa maneira, o gigantesco processo de reconfiguração da riqueza e do poder impulsionado pelas contra-reformas neoliberais se consoli- daria como um traço permanente das sociedades contemporâneas (Edwards, 1997, p. 386). Foi dito que um dos componentes da agenda de reformas de “segunda gera- ção” do BIRD é a liberalização dos mercados de terra. De fato, ao longo dos anos 1990, o BIRD gradativamente retomou e atualizou a sua agenda agrária, secundarizada na década anterior pela prioridade dada aos programas de ajuste estrutural e à renegociação da dívida externa dos países latino-americanos. Com esse novo movimento, o BIRD pretendia adequá-la à agenda macroeconômica e política então em curso. Nesse âmbito, a ação do BIRD passou a se dar em dois eixos complementares (Banco Mundial, 2002, 2002a e 1997). Por um lado, o estímulo à mercantilização total do acesso à terra rural, a ser viabilizada por mudanças institucionais e legais, com o objetivo de elevar a produtividade da terra, favorecer o livre fluxo de força de trabalho no campo, atrair o capital privado para a economia rural e potencializar a integração subordinada de parcelas específicas do campesinato pobre ao regime de acumulação comandado pela burguesia agroindustrial-financeira. Por outro lado, a defesa de um rol de programas “sociais” no meio rural, a fim de aliviar a pobreza de maneira focalizada, especialmente em países ou regiões onde as ten- sões no campo possam ameaçar ou comprometer a “governabilidade” das “demo- cracias de mercado”, conforme a linguagem adotada pelo governo Clinton. A partir da segunda metade dos anos 1990, a escala e a rapidez da ação do BIRD nessa direção aumentaram sensivelmente. O levantamento feito por Suárez (2005) mostra que, entre 1990 e 1994, o BIRD aprovou apenas 3 projetos cujo componente principal era uma ou mais linhas de ação de sua política agrária. Já entre 1995 e 1999 foram aprovados 19 projetos, totalizando US$ 700 milhões. Nos quatro anos seguintes foram aprovados 25 projetos, totalizando US$ 1 bi- lhão. Das 45 operações de empréstimo que o BIRD realizou em 32 países entre 1990 e 2005, 33,3% foram para a América Latina e Caribe, 26,6% para o Leste Europeu e a Ásia Central, 24,4% para o leste da Ásia e região do Pacífico, 13,4% para a África e Oriente Médio e, finalmente, 2,2% para o Sul da Ásia. Junto com o aumento na concessão de empréstimos, o BIRD passou a realizar outros três movimentos, sobretudo após o ano 2000. Primeiro, vem publicando

17 um conjunto de documentos que estabelecem uma base teórica sistemática e su- postamente universal para a formulação de políticas agrárias (Banco, 2004 e 2003; De Ferranti et al., 2005). Segundo, vem articulando o apoio político e financeiro de agências bilaterais e outros organismos internacionais à sua agenda rural (Ban- co, 2004a)6. Terceiro, vem promovendo em diversos países (p.ex., Brasil, Guatemala e Colômbia) seminários e oficinas para um público rigorosamente selecionado de pesquisadores, lideranças sociais e sindicais, gestores públicos e ONGs, com o objetivo não só de influenciar, mas de efetivamente dirigir a definição e a execu- ção da política agrária a ser reclamada legitimamente por parte da “sociedade ci- vil” e praticada pelos governos nacionais. O que levou o BIRD a assumir uma posição de protagonismo, frente às de- mais organizações internacionais, na elaboração e na implementação de uma agenda de políticas agrárias ao longo da década de 1990? Afinal, por que o BIRD passou a enfatizar a necessidade de desconcentração da propriedade da terra, num con- texto em que o tema “reforma agrária” parecia coisa de um passado já superado? Uma explicação possível é a de que o BIRD se viu diante de um conjunto especí- fico de oportunidades e necessidades. Em primeiro lugar, a oportunidade aberta pelo fim da Guerra Fria de tratar de maneira aparentemente “desideologizada” os problemas associados à concentra- ção fundiária (Deininger & Binswanger, 1999, p. 248). Segundo essa formula- ção, diferentemente dos anos 1960 ou 1970, quando a disputa pela realização de reformas agrárias evocava, em maior ou menor grau, algum ideal considerado “re- volucionário”, a derrocada do bloco soviético teria inaugurado uma nova fase, na qual essas questões poderiam ser tratadas de modo “pragmático” e “inovador” tanto por agências multilaterais como por governos nacionais. Ou seja, o impacto ideo- lógico da derrocada do “socialismo real” teria desarticulado a ligação entre a ban- deira da reforma agrária e referências mais abrangentes, de tal maneira que uma “nova era de políticas de reforma agrária” estaria se iniciando (De Janvry & Sadoulet, 2001, pp. 21-2). Caberia ao BIRD, então, aproveitar essa oportunida- de, tratando de maneira aparentemente “técnica” e “despolitizada” as tensões sociais no meio rural provocadas ou agravadas pelas políticas neoliberais. Por outro lado, o próprio processo de liberalização parecia criar novas oportu- nidades para uma ação mais proeminente do BIRD no meio rural. De acordo com o seu staff, a combinação de estabilidade macroeconômica, abertura comer- cial, desregulamentação das economias domésticas e, de maneira geral, o desmonte de políticas “desenvolvimentistas” (protecionismo, crédito subsidiado, isenções fiscais, etc.), estariam eliminando o uso da propriedade da terra como “reserva de

18 valor”. Nesse novo ambiente econômico – “aberto” e “orientado para fora” –, se- ria possível romper com a experiência passada e implementar uma reforma agrá- ria que não distorcesse preços, nem criasse regulações que impedissem a livre tran- sação mercantil de terras. Enfim, uma reforma agrária “menos prejudicial ao funcionamento dos mercados” (Deininger & Binswanger, 1999, p. 267). Em segundo lugar, havia a necessidade – que ainda persiste – de estimular a criação de mecanismos que prevenissem ou equacionassem rapidamente os con- flitos agrários, nas diversas configurações em que se apresentam pelo mundo. Isto porque, para o BIRD, é preciso neutralizar o potencial disruptivo, no plano da política e da economia, que uma eventual escalada de conflitos agrários contém (Binswanger & Deininger, 1995, p. 48). No seu último relatório sobre o tema, o Banco (2003, pp. 157-164) dá atenção especial à construção de mecanismos vol- tados para evitar ou reduzir o impacto das disputas sobre a posse e a propriedade da terra rural, mostrando não só que muitos dos embates políticos mais impor- tantes vividos por inúmeras sociedades tiveram raízes em lutas por terra (p.ex., Guatemala, Colômbia, El Salvador), como também que a resolução de conflitos agrários foi fundamental para viabilizar os acordos de paz que recentemente puse- ram fim a longas guerras civis (p.ex., Moçambique, Etiópia, Camboja, Nicará- gua). Recomenda que os Estados evitem o acúmulo de conflitos de “baixa inten- sidade”, pois não apenas a performance do setor agropecuário e da economia como um todo poderia ficar comprometida pelo sucessivo desinvestimento provocado pela “sensação de insegurança”, como também a escalada potencial de tensões poderia levar à quebra de legitimidade de governos e Estados. O relatório ratifica a preocupação com a estabilidade política e a segurança do capital, decisiva para que o BIRD retomasse o tema da reforma agrária nos anos 1990 e criasse a pro- posta de “reforma agrária de mercado”. Em terceiro lugar, o BIRD foi pressionado pela necessidade de estabelecer os termos legítimos de como lidar com a pobreza rural nos países periféricos, agrava- da pela implementação das políticas de ajuste estrutural (SAPRIN, 2002). Ao longo dos anos 1990, um conjunto de organismos internacionais passou a enfatizar o “combate à pobreza” como questão social central, inclusive mudando do enfoque centrado da transferência de renda para outro, centrado na geração de renda e na mudança de posição na esfera produtiva (De Janvry & Sadoulet, 2002, p. 3). O Banco Mundial (1990 e 2001) acompanhou e influiu nesse movimento, passan- do a reconhecer a necessidade de criação de mecanismos de acesso à terra como forma de aumentar as “oportunidades” para os “pobres rurais” e reduzir a sua “vulnerabilidade”. Assim, a distribuição de “ativos” (terra, por exemplo) – e a sub-

19 seqüente inserção mercantil dos agricultores – passou a ser defendida como um instrumento de “alívio da pobreza” mais barato, eficiente e afinado ideologica- mente com políticas pró-mercado. Em quarto lugar, o BIRD teve a necessidade de acelerar e orientar a transição capitalista das sociedades do antigo bloco soviético. Como revelam diversos do- cumentos (Banco, 1996 e 1997), a descoletivização e a desestatização da matriz de propriedade da terra ocuparam lugar central na estratégia do BIRD para aque- les países ao longo dos anos 1990, inclusive figurando como condicionalidades em empréstimos de ajuste estrutural concedidos em conjunto com o FMI. Por fim, o BIRD teve necessidade de melhorar a performance dos projetos ligados ao desenvolvimento rural, depois do fracasso – comprovado pelo próprio BIRD (1992 e 1997) – da grande maioria das iniciativas feitas nessa área entre os anos 1970 e 1980, normalmente em oposição a propostas de reforma agrária. De certo modo, tal fracasso desorientou o cerne da formulação do Banco para o setor rural, razão pela qual ele vinha executando desde meados dos anos 1980 apenas ações pontuais, desarticuladas de qualquer enfoque mais abrangente, como havia nos anos 1970 (Binswanger, 1995). A construção de um enfoque mais abrangente seria efetuada com base no “neo-institucionalismo”, configurando uma aborda- gem centrada inteiramente na promoção do “livre mercado” de terras.

2. A política agrária do Banco Mundial: objetivos, diretrizes e linhas de ação

A retomada da política agrária pelo BIRD acompanhou a agenda mais ampla de reformas estruturais de “segunda geração”. Assim, embora seja uma política essencial- mente “pró-mercado de terras”, não se sustenta pela dualidade – de todo modo falsa – entre “Estado” e “mercado”, mas sim pela construção do que seria o marco institucional adequado ao “funcionamento eficiente dos mercados”. Nesta lógica, para o BIRD, caberia aos Estados: a) consolidar as reformas macroeconômicas e ajustar o setor rural às novas condições vigentes, avançando na implementação das reformas que estabeleceriam a conexão entre a agenda macroeconômica e a agenda microeconômica e setorial de “desenvolvimento rural”; b) definir o marco normativo mais amplo – as “regras do jogo” – para as relações econômicas; c) eliminar a “rigi- dez” e as “distorções” provocadas pelas políticas econômica e setorial, a fim de esta- belecer um “campo de jogo nivelado” para a “livre concorrência” entre os atores. Este é o carro-chefe do receituário do BIRD para a economia rural. A política agrá- ria a ele se vincula de maneira subordinada. De fato, existe uma cadeia de determi-

20 nação que parte do macro e chega ao micro. Isto ocorre da seguinte maneira: a agen- da de reformas de “segunda geração” (nível 1) se traduz numa agenda de “desenvol- vimento rural” (nível 2), a partir da qual se desenha um rol de propostas para o âmbito agrário/fundiário propriamente dito (nível 3). São quatro os objetivos perseguidos pela política agrária do BIRD: a) como prioridade máxima, estimular relações de arrendamento; b) potencializar as rela- ções de compra e venda de terras; c) acelerar e aprofundar a privatização de direi- tos de propriedade em fazendas coletivas ou estatais; d) acelerar e profundar a privatização de terras públicas e comunais. Segundo o Banco Mundial (2004, 2003, 2002 e 1997), as quatro ações dinamizariam de tal maneira os mercados fundiários que o livre fluxo de transações (arrendamento e compra/venda de terras) permiti- ria a substituição rápida de produtores “menos eficientes” por “mais eficientes”, favorecendo uma distribuição mais equilibrada da propriedade da terra. Isto, por sua vez, contribuiria para atrair capital privado para a economia rural, possibili- tando a emergência ou o fortalecimento de mercados financeiros rurais. Para viabilizar os objetivos de sua agenda agrária, o BIRD vem promovendo, desde meados dos 1990, duas grandes iniciativas: de um lado, a constituição de um arranjo institucional de administração de terras; de outro, a implementação de um modelo de acesso à terra alternativo à reforma agrária. A primeira iniciativa busca traduzir a agenda mais ampla de “reforma do esta- do” para o âmbito da gestão fundiária. Aclamada como “novo paradigma” (Melmed-Sanjak & Lavadenz, 2002), a administração de terras consiste na municipalização dos instrumentos de política agrária e na criação de toda sorte de mecanismos de gestão “público-privados” locais. Na prática, isto exige mudanças simultâneas nos âmbitos político-administrativo, jurídico e tributário (Banco, 2004 e 2003). No plano político-administrativo, o BIRD advoga a montagem de uma “es- trutura institucional” que seja capaz de: a) garantir a segurança dos direitos de propriedade e uso da terra, a fim de preservar e estimular o fluxo de capital priva- do – inclusive estrangeiro – para a economia rural; b) formalizar os mercados fundiários, por meio, sobretudo, de programas de titulação privada; c) unificar informações relativas à distribuição e à situação legal dos estabelecimentos rurais; d) prover, de maneira rápida, informações necessárias às transações no mercado fundiário (preços, qualidade da terra, oferta e demanda, etc.); e) baixar “custos de transação”, a partir da informatização e da simplificação burocrática do registro e do cadastro de terras; f) dirimir ou controlar rapidamente tensões no campo, por meio de instâncias e órgãos locais, impedindo que o acúmulo de conflitos de “baixa

21 intensidade” se amplie e possa provocar efeitos politicamente disruptivos. Em tal estrutura, as funções de formulação, decisão e coordenação ficariam sob estrito controle federal, mas sua execução seria descentralizada e articulada em arranjos envolvendo agências estatais, associações voluntárias, ONGs e “setor privado” em geral (Deininger & Feder, 2002; Banco, 2003). No âmbito jurídico, o BIRD preconiza a revisão imediata da legislação agrária vigente, especialmente naqueles países que experimentaram processos de reforma agrária, uma vez que tal quadro legal, ao impedir ou dificultar o arrendamento e a compra/venda de terras, obstaculizaria o “livre funcionamento” do mercado fundiário. O chamado “setor reformado” seria o primeiro território cujas terras deveriam ser transacionadas em mercados formais de arrendamento e compra/ venda. No âmbito tributário, o Banco (2003, p. 22) defende a municipalização da tributação sobre a terra rural, com o objetivo de financiar a montagem de um aparato local de administração de terras, aumentar as finanças locais – e, com isso, contribuir para o movimento mais amplo de descentralização do Estado – e me- lhorar o uso produtivo da terra. Por outro lado, embora insista que propostas de tributação progressiva têm pouca ou nenhuma viabilidade política (Deininger & Feder, 2002: p. 34), faz questão de ressaltar que elas podem configurar uma espé- cie de “expropriação indireta”, o que, na sua visão, não seria recomendável (Ban- co, 2005, p. 104). As mudanças nos três âmbitos acima mencionados conformariam esse novo aparato institucional capaz de expandir e acelerar as relações de arrendamento e compra/venda de terras rurais. A segunda grande iniciativa do BIRD é o modelo de reforma agrária de merca- do, objeto central deste artigo, discutido em maior detalhe daqui para frente.

3. O modelo de reforma agrária de mercado

O modelo de reforma agrária de mercado (MRAM) foi elaborado com o ob- jetivo de substituir a reforma agrária redistributiva, baseada no instrumento da desapropriação de propriedades rurais que não cumprem a sua função social, por relações de compra e venda de terras. Posto em prática sob diferentes formatos, teve início em 1994 na Colômbia e, em três anos, já operava na África do Sul, no Brasil e na Guatemala. Uma década depois da sua estréia, países tão distintos como Honduras, México, Malaui, El Salvador e Filipinas já conheciam experiências a

22 ele associadas. De fato, uma onda de políticas de acesso à terra de novo tipo havia se estabelecido internacionalmente. Para legitimar o seu modelo, o BIRD realizou uma dupla operação. De um lado, procedeu a uma crítica radical ao que ele mesmo denominou de reforma agrária “conduzida pelo Estado”, baseada no instrumento da desapropriação. De outro, trabalhou para que o MRAM fosse aceito política e conceitualmente como uma nova modalidade de reforma agrária redistributiva7, depurada de todos os supostos “defeitos” das experiências do passado e, claro, coerente com os impera- tivos do livre mercado. Com esse duplo movimento, o BIRD ao mesmo tempo continuou a reconhecer a necessidade da reforma agrária para desconcentrar a propriedade da terra em sociedades altamente desiguais, mas passou a negar a atua- lidade da ação desapropriacionista e redistributiva do Estado. Dessa maneira, o MRAM foi entronizado como a ação fundiária adequada aos países periféricos marcados por graves problemas agrários e fortes tensões sociais no campo, agudizadas pelos efeitos socialmente regressivos provocados pelas políticas neoliberais. O pressuposto do MRAM é a falência histórica do que os economistas do BIRD denominaram de reforma agrária “conduzida pelo Estado”, modelo “desapropria- cionista” ou, simplesmente, modelo “tradicional” de reforma agrária8. Ou seja, o MRAM foi criado para substituir algo que teria deixado de ser viável na atual fase do capitalismo, porque, segundo o BIRD: a) é politicamente conflituoso e as con- dições para a sua execução não são replicáveis em condições democráticas “nor- mais”, uma vez que contém uma dimensão “confiscatória” (quando a indenização aos proprietários inexiste ou é fixada abaixo dos preços de mercado) contra a qual, inevitavelmente, insurgem-se os grandes proprietários de terra; b) é insustentável financeiramente, quando compensa os antigos proprietários a preços de mercado, que são distorcidos por políticas econômicas e setoriais que elevam o preço da terra acima da rentabilidade gerada pela atividade agrícola; c) é orientado para “substituir os mercados”, e não para dinamizá-los, resultando num complexo de restrições legais que teriam solapado o funcionamento dos mercados de arrenda- mento e de compra e venda de terras, dificultado o acesso à terra por potenciais demandantes mais eficientes e alimentado burocracias centrais encapsuladas em busca de sua auto-reprodução e, freqüentemente, corruptas; d) por ser baseado na desapropriação, carrega um componente coercitivo que enseja contestações judi- ciais que não apenas elevam a indenização dos antigos proprietários acima dos preços praticados no mercado, mas também retardam o processo de assentamen- to e reforma, prejudicando os potenciais beneficiários; e) em muitos casos consti-

23 tui uma doação do Estado, quando os beneficiários não pagam pela terra recebi- da; f) é pautado pela lógica do conflito, uma vez que só são desapropriadas pro- priedades rurais objeto de ocupações de terra ou tensões sociais; g) quando isto não ocorre, funciona como um modelo dirigido pela oferta, cabendo ao Estado selecionar a terra ou os beneficiários independentemente da demanda real; histo- ricamente, esse processo de seleção não foi comandado por critérios técnicos ou de necessidade, mas sim por ingerências políticas, o que gerou ineficiência econô- mica, baixa competitividade e não necessariamente focalizou a parcela mais pobre do campesinato; h) não resolveu o problema da falta de acesso à terra para um amplo contingente de trabalhadores rurais, situação que estaria na origem de ocu- pações de terra, dos conflitos agrários e da violência rural; i) estabelece a aquisição da terra sem um planejamento prévio das atividades produtivas a serem realizadas posteriormente; j) é um modelo centralizado, estatista e burocrático, que desestimula a participação social, a transparência e o “empoderamento” dos beneficiários, e não cria as condições adequadas para as necessárias sinergias entre os setores público e privado; também não permite a fluidez dos mercados e das informações necessária à orientação dos agentes econômicos, nem contempla a heterogeneidade socioeconômica e cultural do universo rural; l) de modo geral, restringiu-se tão-somente à distribuição de terra, dando pouca ênfase ao desen- volvimento produtivo dos assentados ou do setor reformado; m) não oferece “op- ções de saída” para os produtores agrícolas ineficientes, seja porque sua implementação foi acompanhada por medidas restritivas ao funcionamento dos mercados de arrendamento e compra e venda, seja porque não incorporou a ques- tão do trabalho não-agrícola; n) é indissociável do modelo nacional-desenvolvi- mentista, que penaliza os pequenos agricultores e o setor agrícola, protege seg- mentos economicamente ineficientes e não responde aos imperativos da liberalização comercial; o) não reduziu ou eliminou a pobreza rural, nem promo- veu o desenvolvimento rural. O MRAM é, portanto, um constructo inteiramente baseado na crítica e na desqualificação de outro tipo de ação fundiária, considerada inviável e anacrô- nica na fase atual do capitalismo. Segundo os teóricos do BIRD, a principal diferença entre ambos reside na sua natureza: enquanto o modelo “tradicional” é visto como “coercitivo” e “discricionário”, posto que baseado na desapropria- ção, o modelo de mercado é exaltado como “voluntário” e “negociado” (Burki & Perry, 1997, p. 95). Em essência, o MRAM nada mais é do que uma mera relação de compra e venda de terras entre agentes privados financiada pelo Estado, que fornece um

24 subsídio variável para investimentos em infra-estrutura socioprodutiva e contratação de serviços privados de assistência técnica. Quanto menor for o preço pago pela terra (empréstimo), maior será a quantia a fundo perdido disponível para investimento, e vice-versa. Os vendedores são pagos previamente em dinhei- ro a preço de mercado, enquanto os compradores assumem integralmente (ou na sua maior parte) os custos da aquisição da terra e os custos de transação. Os com- pradores podem pleitear o acesso ao financiamento individualmente e/ou via as- sociações comunitárias, dependendo do formato dos programas. De acordo com os teóricos do Banco Mundial9, o MRAM é melhor do que a chamada reforma agrária “conduzida pelo Estado” pelas seguintes razões: a) custa menos, uma vez que a terra é adquirida por barganha mercantil entre comprado- res e vendedores voluntários, sobre a qual não cabem disputas judiciais; b) viabiliza o acesso à terra por meio de uma operação de mercado entre agentes privados, pela qual o agente financeiro é ressarcido pelo empréstimo concedido; c) tem ca- ráter voluntário, descentralizado e “dirigido pela demanda”, o que favorece a par- ticipação e a autonomia dos beneficiários, estimula ações criativas para a supera- ção de dificuldades e responde melhor às necessidades locais; d) é viável politicamente, pois transações mercantis voluntárias não penalizam os proprietá- rios de terra; e) estimula a cooperação, na medida em que a aquisição de terras ocorre através de associações comunitárias; f) incentiva o desenvolvimento pro- dutivo dos camponeses, porque pressupõe o planejamento das atividades antes da aquisição da terra, fornece recursos a fundo perdido para tal fim e estimula o associativismo; g) estimula a criação e/ou dinamização dos mercados de terra, re- quisito básico para a melhoria da eficiência econômica; h) contribui para a formalização dos direitos de propriedade, na medida em que, por um lado, só transaciona imóveis legalmente titulados e, por outro, dá origem a novos segmen- tos de proprietários; i) estimula o desenvolvimento dos mercados financeiros ru- rais, na medida em que os novos proprietários, com títulos seguros, passam a transacionar nos mercados de terra e a demandar crédito; j) oferece opções de saí- da para os agricultores “menos eficientes”, permitindo que outros (“mais eficien- tes”) possam ter acesso à terra; l) permite a realização simultânea de atividades agrícolas e não-agrícolas, uma vez que são os próprios agricultores que decidem que tipo de investimento e atividade querem desenvolver; m) é descentralizado e pouco burocrático, o que acelera o trâmite administrativo e reduz as condições para a corrupção praticada pela burocracia pública; o) é coerente com a liberalização das economias nacionais, que pressupõe a fluidez das relações mercantis em todos os setores; p) vincula-se ao processo mais abrangente de reformas estruturais de

25 “segunda geração”, direcionadas a consolidar as políticas de ajuste por meio da mudança institucional. Para os economistas do BIRD, a implementação do MRAM pressupõe o au- mento da oferta mercantil de terras, o que, por sua vez, dependeria de uma série de pré-condições e ações complementares. Seis delas são consideradas indispensá- veis: a) a constituição de um “campo de jogo nivelado”, i.e., a eliminação de sub- sídios, isenções fiscais e tarifas de proteção que privilegiam o segmento de grandes proprietários, os quais, junto com a inflação, contribuem para elevar o preço da terra acima da sua rentabilidade agrícola; b) o fim das restrições legais que impe- dem o “livre funcionamento” dos mercados de compra/venda e arrendamento; c) algum tipo de tributação (não necessariamente progressiva) sobre a terra, a fim de desestimular a sua subutilização e a especulação fundiária; d) a clareza legal dos direitos de propriedade e uso da terra, sobretudo por meio de sua formalização e individualização (titulação privada); e) a criação ou a melhoria dos sistemas de informação de mercado, a fim de orientar os agentes econômicos sobre preços e características dos imóveis; f) a redução dos custos de transação, por meio de medidas de simplificação administrativa e jurídica. Seguindo-se todos esses pas- sos, estaria aberta a oportunidade histórica para implementar uma reforma agrá- ria “amistosa com o mercado”. Articulado à realização das reformas de “segunda geração”, esse conjunto de ações criaria um novo ambiente econômico – “aberto” e “orientado para fora” –, no qual diminuiriam as “distorções” que elevam o preço da terra acima da renta- bilidade agrícola e restringem a sua oferta mercantil. A versão original do MRAM foi elaborada ainda na primeira metade dos anos 1990 para ser aplicada imediatamente na África do Sul pós-apartheid (Aiyar et al., 1995 e 1995a; Christiansen & van den Brink, 1994). Para o BIRD, era preciso naquele momento (1994-1995) enfrentar a “crise” do setor agropecuário nacional, entendida como a combinação de uma dupla pressão: de um lado, o endividamento de parte dos grandes produtores rurais e pecuaristas; de outro, o aumento potencial da luta por terra, reprimida durante décadas (van Zyl et al., 1995). Caberia ao MRAM atuar na administração da crise de endividamento de um segmento específico do setor agropecuário capitalista e, ao mesmo tempo, responder à pressão social. A condição para implementá-lo consistiria no encurtamento da distância entre o preço da terra e sua rentabilidade agrícola, em função da redução da inflação e da retirada de subsídios e tarifas protecionistas concedidos à grande agricultura (van Schalkwyk & van Zyl, 1995, p. 204).

26 Para os teóricos do BIRD, a realização do MRAM só seria possível se o gover- no sul-africano administrasse a crise de endividamento do patronato rural de maneira seletiva, evitando operações de “socorro geral” que beneficiassem, indiscriminadamente, a todos os devedores. Segundo Binswanger & van Zyl (1995), o esquema seria basicamente o seguinte: a) o segmento “consolidado” seguiria incólume a mudanças ou a qualquer medida de assistência financeira, uma vez que já estaria “ajustado” à dinâmica da liberalização econômica; b) o segmen- to considerado “viável” sob as novas condições macroeconômicas, porém altamente endividado, poderia receber assistência financeira, desde que promovesse sua pró- pria reestruturação produtiva; uma parte dos ativos fundiários sob seu controle seriam ofertados no mercado e o setor bancário ficaria responsável tanto pela de- cisão sobre quais produtores receberiam assistência financeira, como pela revisão das dívidas desse segmento; c) o segmento considerado “inviável” sob as novas condições deixaria o setor agropecuário mediante “bônus de saída” (p.ex., emprés- timos subsidiados para abertura de novos negócios) e ofertaria as terras sob sua propriedade; d) o setor bancário poderia auxiliar no aumento da oferta de terras, à medida que executasse as dívidas dos segmentos “inviáveis” e participasse do saneamento financeiro dos segmentos “viáveis” sob reestruturação; f) o Estado poderia incrementar a oferta de terras vendendo propriedades públicas; g) pelo lado da demanda, conceder-se-iam empréstimos e doações para a compra de terra a trabalhadores rurais pobres; inicialmente, o crédito para a compra da terra e os recursos a fundo perdido para o desenvolvimento produtivo viriam do governo; com o avanço do processo, o setor privado (em especial, os bancos) seria estimu- lado a também financiar transações patrimoniais. Estimava-se que o MRAM provocaria impactos estruturais: por influência do BIRD, a meta fixada pelo governo era redistribuir 30% das terras agrícolas entre 1994 e 1999, o que equivale a quase 30 milhões de hectares (Deininger, 2001, p. 93). Associado a outras ações, como a liberalização das relações de arrendamento (van Zyl, 1995), o MRAM daria origem a uma “nova agricultura”, condizente com a abertura radical da economia doméstica. Ao converter o mercado como principal mecanismo de alocação de terras (van Schalkwyk & van Zyl, 1995, p. 205), o MRAM poderia ajudar a administrar a crise de endividamento de uma parte do setor agropecuário, aliviar as tensões sociais geradas ou agravadas pela liberalização comercial e favorecer a criação de milhares de empregos no meio rural (Binswanger & van Zyl, 1995, p. 254). É verdade que entre 1994 e 1996-7 o partido no governo – o Congresso Nacional Africano, liderado por Nelson Mandela – abandonou o seu programa

27 nacionalista e reformista em prol da agenda neoliberal (Tilley, 2002; Lahiff, 2006). Porém, esta versão do MRAM jamais se materializou na África do Sul, nem em qualquer outro país. Sem dúvida, há uma distância entre as propostas do BIRD e o que os governos podem executar, condicionada pela estrutura socioeconômica e pela correlação de forças. Mas, neste caso específico, deve-se notar o caráter altamente idealizado da proposta do BIRD, baseada em pelo menos dois pressupostos equivocados: a crença de que os agentes sociais orien- tam suas ações por razões “puramente econômicas” e a crença de que, no capi- talismo, a especulação fundiária é conjuntural, produto de “distorções políti- cas” e “falhas de mercado”, e não estrutural. Assim, acreditou-se que haveria um aumento substancial da oferta mercantil de terras como resposta imediata à convergência entre queda relativa da inflação, abertura comercial e redução de subsídios e isenções fiscais a grandes proprietários “ineficientes”. Não se levou devidamente em conta o que a propriedade da terra rural significa em termos de ganhos financeiros e vantagens econômicas de todo tipo, nem o seu peso na configuração das relações de poder entre classes e grupos sociais, em sociedades altamente desiguais. Ao longo da segunda metade dos anos 90, a versão original foi dando lugar a outra, mais circunscrita ao tema do alívio da pobreza e das políticas agrárias, no bojo das quais o MRAM seria apenas mais uma opção, e não a ação principal (Burki & Perry, 1997, p. 97). As razões que levaram ao abandono da proposta original em favor de um enfoque mais pragmático e menos ambicioso jamais foram reve- ladas. No entanto, hoje parece claro que qualquer explicação desse processo deve considerar – sem prejuízo de quaisquer outros fatores – as contradições que os programas orientados pelo MRAM passaram a enfrentar em seqüência na Colôm- bia, na África do Sul, no Brasil e na Guatemala, bem como a oposição política que sofreram por parte de organizações camponesas. Nessa segunda versão (Burki & Perry, 1997; Banco, 2002 e 2003), realmente existente, o discurso em favor do MRAM eliminou por completo o tema da “ad- ministração da crise de endividamento do setor comercial”, apesar do mesmo não ser um fenômeno exclusivamente sul-africano. Ou seja, a dinâmica dos progra- mas orientados pelo MRAM foi desvinculada de qualquer consideração sobre o desempenho dos grandes e médios capitalistas estabelecidos no setor agropecuário. Conseqüentemente, o MRAM deixou de figurar como o instrumento central de uma estratégia de mudança da agricultura nacional, razão pela qual desapareceu a expectativa sobre os possíveis impactos estruturais que a sua execução poderia provocar. Por outro lado, ganhou ênfase a associação direta do MRAM com o

28 tema do alívio da pobreza rural, de tal maneira que os programas foram inseridos no rol de políticas paliativas aos efeitos socialmente regressivos provocados pelas contra-reformas neoliberais. Com esse deslocamento, o discurso pró-MRAM dei- xou de almejar uma ampla cobertura social, restringindo-se a segmentos específi- cos de trabalhadores rurais. Entre ambas as versões há em comum pelo menos cinco elementos principais: a) a centralidade da liberalização dos mercados de compra/venda e arrendamento como forma de distribuição de terras dos produtores menos eficientes para os mais eficientes; b) a crítica sistemática à reforma agrária “desapropriacionista”, consi- derada inviável, indesejável e anacrônica; c) a equivalência do MRAM à reforma agrária redistributiva, como se fossem sinônimos; d) a ênfase na necessidade de avanço e aprofundamento das reformas estruturais de “segunda geração”; e) a centralidade absoluta do conceito de compradores e vendedores voluntários/inte- ressados (willing sellers/willing buyers), que dá ao MRAM a característica ineludível de mera transação patrimonial. Mesmo reduzido à condição de mais um instru- mento de alívio paliativo da pobreza rural, o discurso pró-MRAM insiste na sua viabilidade e replicabilidade. A forma de implementação dos programas orientados pelo MRAM variou segundo as especificidades nacionais (base institucional-legal, correlação de for- ças, momento político, etc.). Seguindo a proposição de Borras Jr. (2003), pode-se comparar as experiências colombiana, brasileira e guatemalteca pelo grau de cor- respondência às diretrizes centrais do modelo.10 No grau máximo de correspondência, os governos dos três países, cada qual a seu modo: a) adotaram políticas de natureza voluntária e mercantil, método des- centralizado de execução e privatização da prestação de serviços; b) legitimaram a adoção dos programas orientados pelo MRAM a partir da crítica sistemática ao “modelo desapropriacionista”; c) adotaram, em algum momento, tetos de renda como critério para acesso ao financiamento, com o objetivo de focalizar os pro- gramas nos segmentos considerados extremamente pobres da população rural; d) estimularam o associativismo como critério de acesso aos programas; e) subordi- naram a política agrária ao receituário das reformas estruturais, ajustando-a aos imperativos do ajuste fiscal, da descentralização e da privatização, e rebaixaram o seu status, inserindo-a no rol de políticas paliativas de alívio da pobreza rural; f) no bojo da reforma neoliberal do estado, internalizaram o MRAM por meio da promulgação de leis (Colômbia) e da criação de instrumentos permanentes de política pública (Brasil e Guatemala), modificando a configuração do aparato es- tatal responsável pelo tratamento dos problemas agrários.

29 Num grau médio de correspondência, identifica-se que: a) o arrendamento das terras adquiridas pelo MRAM foi legalmente proibido na Colômbia, mas não nos demais países, embora apenas na Guatemala tais relações tenham sido de fato estimuladas pelo governo central, ainda que tardiamente; b) no Brasil, pôde-se acessar financiamento individualmente e/ou por associações, dependendo do pro- grama; na Guatemala, ambas as formas foram aceitas; na Colômbia, apenas por intermédio de associações; c) somente Brasil e Guatemala adotaram arranjos fle- xíveis de empréstimos e doações, com percentuais variáveis conforme a operação de compra e o programa; na Colômbia, 70% do preço da terra eram subsidiados, mas nenhuma doação foi autorizada para investimentos produtivos. Por fim, alguns componentes do MRAM sequer chegaram a se materializar. Em todos os três países não foram adotadas a tributação progressiva, nem a titulação sistemática. Tampouco foi criado um aparato descentralizado de informações de mercado e registro de terras. Ou seja, a implementação dos mecanismos de apoio considerados necessários para o aumento da oferta de terras, a segurança institucional dos direitos de propriedade e, consequentemente, a clareza legal dos bens a serem transacionados no mercado, ficaram, basicamente, no nível das “re- comendações”. Por fim, também em nenhum país o MRAM foi inserido numa estratégia “ampla e efetiva” de redução da pobreza rural. Todos os três países realizaram operações de empréstimo com o BIRD, embo- ra em proporções bastante distintas: para o Brasil, US$ 90 milhões em 1997 e EUR 218,2 milhões em 2001, com a possibilidade de um adicional até 2012 que totalizaria um empréstimo de US$ 1 bilhão, com igual contrapartida nacional; para a Guatemala, US$ 77 milhões em 2000 para um projeto de dez anos; para a Colômbia, US$ 50 milhões em 1996. Dos três países, o Brasil, de longe, é o que mais tomou empréstimos do BIRD para implementar programas dessa natureza.

4. Da teoria à prática: modus operandi e resultados do MRAM

Em que pese a dificuldade – maior ou menor, mas sempre comum – de se ter acesso a dados atualizados sobre o andamento dos programas inspirados pelo MRAM nos três casos latino-americanos, já se dispõe de uma massa crítica suficiente para uma avaliação mais ampla e empiricamente fundamentada sobre o tema. É interes- sante notar que a ação de movimentos sociais tem sido crucial para aclarar algumas questões, ao estimular o debate, promover pesquisas e articular ações concretas con- tra o MRAM. Além disso, a resistência ao avanço desse modelo não só retardou ou

30 obrigou o BIRD e os gestores locais a promoverem modificações no seu formato operacional, como também permitiu um aprofundamento da relação política entre movimentos sociais, organizações não-governamentais e pesquisadores. Por outro lado, hoje está claro que a implementação do MRAM contou com o apoio de uma gama variada de forças sociais, principalmente de organizações patronais, mas também de entidades sindicais de representação de trabalhadores rurais. Isto realça a existência de divergências sérias entre as diversas “forças popu- lares” no campo sobre a postura a ser adotada frente a projetos elaborados por organismos financeiros internacionais, como o BIRD. Evidentemente, tais diver- gências remetem a desacordos mais profundos relacionados ao projeto político, ao método de ação e ao diagnóstico sobre as causas dos problemas que afligem os trabalhadores rurais e o campesinato. Como não poderia ser diferente, as propos- tas também diferem de maneira significativa. A crítica aqui empreendida abrange três pontos: o antagonismo do MRAM à qualquer modalidade de reforma agrária redistributiva, a inconsistência da crítica do BIRD à chamada reforma agrária “conduzida pelo Estado” e os resul- tados concretos da implementação do MRAM na Colômbia, no Brasil e na Guatemala. A primeira crítica parte da seguinte questão: é correto considerar o MRAM como uma modalidade de reforma agrária redistributiva, como tenta fazer crer o BIRD? Definitivamente não, pois o MRAM tem como princípio a compra vo- luntária de terra entre agentes privados mediada e financiada pelo Estado, acresci- da de uma parcela variável de subsídio para investimentos socioprodutivos. Já a reforma agrária redistributiva consiste numa ação do Estado que, num curto es- paço de tempo, redistribui para o campesinato pobre uma quantidade significati- va de terras privadas monopolizadas por grandes proprietários e grupos econômi- cos (Barraclough, 2001; El-Ghonemy, 2001). Seu objetivo é democratizar a estrutura agrária de um país e promover o desenvolvimento nacional, o que pres- supõe transformar as relações de poder econômico e político responsáveis pela reprodução da concentração fundiária. Enquanto política redistributiva, implica, antes de tudo, a desapropriação de terras privadas que não cumprem a sua função social, mediante indenização pelo valor produtivo da terra, abaixo do preço de mercado. O pagamento das indenizações em títulos públicos resgatáveis a longo prazo foi a maneira historicamente encontrada para assegurar que o processo pu- desse ganhar escala, uma vez que o pagamento em dinheiro e a preço de mercado exige uma mobilização de recursos numa magnitude impraticável para os cofres públicos de qualquer país.

31 Além disso, precisa vir acompanhada não só de um conjunto de ações na área de infra-estrutura, educação, saúde e transporte, mas também de uma política agrícola que proteja e favoreça o campesinato, baseada na concessão de crédito subsidiado, na assistência técnica pública, no apoio à construção de agroindústrias e na garantia de acesso a mercados consumidores. Isto sem mencionar toda discussão sobre sobe- rania alimentar, controle popular de sementes e agroecologia, que ganha corpo em resposta a dois processos em curso organicamente ligados: de um lado, a privatização crescente dos recursos naturais (terra e água, sobretudo); de outro, a concentração, centralização e financeirização do capital no sistema agroalimentar. Em outras palavras, a reforma agrária tem como objetivo central redistribuir terra e garantir as condições de reprodução social do campesinato, atacando as relações de poder na sociedade que privilegiam os grandes proprietários, que po- dem ser grandes empresas e bancos, nacionais ou estrangeiros. Ela só é viável se for compulsória, o que exige a ampliação do poder redistributivo do Estado fren- te ao monopólio privado da terra. Como uma política de desenvolvimento nacio- nal, exige o fortalecimento do papel do Estado na provisão de bens e serviços pú- blicos essenciais à melhoria das condições de vida dos trabalhadores rurais assentados e à projeção econômica do setor reformado. Percebe-se que os pressupostos do MRAM são distintos dos da reforma agrá- ria redistributiva (Borras Jr., 2004; El-Ghonemy, 2001). No primeiro caso, a ter- ra é vista como um mero fator de produção, uma mercadoria como outra qual- quer. No segundo caso, a terra é vista pela sua gravitação política, econômica e cultural, razão pela qual os direitos de propriedade sobre ela expressam, antes de mais nada, relações de poder entre classes e grupos sociais. Não há, portanto, qualquer semelhança entre o MRAM e reformas agrárias redistributivas. Transações mercantis e ações paliativas de “alívio” da pobreza ru- ral nada têm a ver com redistribuição do estoque de riqueza (no caso, a terra ru- ral) acumulado por uma classe ou frações de classe. Também em nada se asseme- lham à democratização de poder político e tampouco contribuem para um suposto “empoderamento” dos trabalhadores rurais.11 A natureza voluntária e mercantil do MRAM o distingue completamente de qualquer política de reforma agrária, cuja viabilidade depende da luta social autônoma do campesinato e da ampliação do poder sancionador e redistributivo do Estado contra o monopólio privado da terra (Barraclough, 2001; El-Ghonemy, 2002). Não é demais lembrar que a lógi- ca do MRAM pressupõe a redução de ambos. A segunda crítica a ser feita diz respeito à inconsistência da “análise” do Banco Mundial sobre o que seus teóricos nomearam de reforma agrária “conduzida pelo

32 Estado”. Na verdade, o objeto de ataque do BIRD inexiste no mundo real, pois se trata de uma caricatura que concentra em si todas as características supostamente negativas das reformas agrárias realizadas ao longo do século XX em diferentes sociedades. A base do discurso do BIRD não é a análise dos processos de luta social e política que condicionaram a realização e o desenvolvimento das reformas agrá- rias, mas sim a montagem de um “modelo” ao qual se atribui uma responsabilida- de quase que genética pelo suposto fracasso da imensa maioria das reformas agrá- rias realizadas pelo mundo afora. Em outras palavras, a crítica ao modelo “desapropriacionista” é feita de maneira abstrata, homogeneizadora e universalista, deslocada da análise empírica dos conflitos sociais que definiram a natureza, o grau, a extensão, o ritmo, a direção e mesmo o refluxo ou a desconstituição das políticas de reforma agrária, sempre muito heterogêneas entre si, como mostra qualquer estudo sério sobre o tema (Thiesenhusen, 1995; Borras Jr., 2004; Kay, 2002 e 1998). Todavia, mais do que caricatural é a repetição desse mesmo discur- so no caso brasileiro: afinal, como lembra Groppo (2000), como considerar “es- gotado” ou “falido” um “modelo” de reforma agrária que, a rigor, jamais foi leva- do adiante em escala substantiva? Além disso, o núcleo da crítica do BIRD à reforma agrária “conduzida pelo Estado” realmente não tem consistência empírica (Borras Jr., 2005 e 2003a). Em primeiro lugar, a reforma agrária, onde ocorreu, jamais foi “dirigida pela oferta”, pois sempre foi impulsionada, em maior ou menor grau, pela “demanda” por ter- ra provocada pela luta social do campesinato e das coalizões políticas que o apoiam. Em segundo lugar, não é válido atribuir o suposto “fracasso” das reformas agrárias ao seu caráter coercitivo e centralizado, uma vez que, nessa matéria, existe histo- ricamente uma associação positiva entre grau de redistribuição, sanção estatal e centralização político-administrativa. Em terceiro lugar, a lentidão na execução de políticas de reforma agrária sempre tendeu a ser maior onde os mecanismos de mercado foram privilegiados, em detrimento da ação compulsória do Estado. Em quarto lugar, não é correto atribuir eventuais superindenizações concedidas aos proprietários ao caráter mais ou menos “estatista” da reforma agrária, mas sim à corrupção e, fundamentalmente, à minimização do poder desapropriatório do Estado, em geral inversamente proporcional ao poder político e social dos gran- des proprietários de terra. Em quinto lugar, é falsa a idéia de que os casos de corrupção nos processos de reforma agrária se devem ao seu caráter “estatista”, como se, na prática, o agente corruptor por excelência não fosse o “mercado”, i.e., os grandes proprietários interessados na superavaliação de suas terras. Em sexto lugar, é igualmente falso atribuir à reforma agrária responsabilidades que não lhe

33 competem exclusivamente, uma vez que a ela não é, nunca foi e jamais será uma panacéia. Com razão, Kay (2002) mostra que uma reforma agrária é condição para a redução da pobreza e das desigualdades sociais e de poder no meio rural, mas não uma política suficiente para, por si mesma, alcançar tais fins. Questionar a crítica enviesada do BIRD não implica desconsiderar que as políticas de reforma agrária padeceram – e ainda padecem, nos poucos países onde estão sendo muito precariamente implementadas, como no Brasil – de enormes deficiências, provocadas por uma série de razões, dentre as quais destacam-se o veto permanente das classes dominantes à qualquer política de natureza redistributiva, a manutenção de políticas econômicas que prejudicam o campe- sinato e a desarticulação neoliberal do aparato público responsável por garantir as condições necessárias ao desenvolvimento econômico e social dos assentamentos rurais. Porém, o que deve ficar claro é que a crítica do BIRD constrói uma carica- tura para disputar política e ideologicamente – eis o cerne da questão – qual deve ser o papel do Estado em sociedades marcadas por grave problema agrário na atual fase do capitalismo. Para o BIRD, qualquer política redistributiva – i.e., que redistribua para a base da sociedade parte do estoque de renda e riqueza acumula- do pela burguesia e modifique as relações de poder entre classes e grupos sociais – deve ser a priori rejeitada, preventivamente neutralizada ou implacavelmente com- batida. A terceira crítica apoia-se em evidências da experimentação do MRAM na Colômbia, no Brasil e na Guatemala. No caso colombiano: a) o programa não conseguiu atingir escala, pois entre 1995 a 2001 foram financiadas tão-somente 12.974 famílias, que adquiriram 180.211 hectares (Suhner, 2005; Mondragón, 2003); b) em todos os anos de execução, o número de famílias que solicitou aces- so ao crédito foi muito maior do que o número aceito, assim como a demanda foi maior do que a oferta de terras (Mondragón, 2003); c) o programa incidiu sobre um segmento restrito do mercado de terras, composto por médios proprietários arruinados pela abertura comercial, e nunca latifundiários, de sorte que as transa- ções passaram por fora do circuito das terras de melhor localização e qualidade (Mondragón, 2003; Höllinger, 1999); d) segundo o próprio Banco (2003, p. 150), parte significativa dos beneficiários está inadimplente, revelando que mesmo com a alta taxa de subsídio conferida à compra da terra (70%), os “beneficiários” não conseguem quitar a dívida; e) os preços pagos pela terra foram largamente arbitra- dos pelos proprietários, em função da fragilidade política dos agricultores (Höllinger, 1999); f) a implantação do programa levou à sobrevalorização do pre- ço da terra, pelo menos nos dois primeiros anos (Deininger, 2000); g) de modo

34 geral, a produção agrícola ficou tão-somente no nível da subsistência das famílias (Borras, 2003, pp. 381-3). Os resultados do MRAM na Guatemala (Garoz & Gauster, 2003; Garoz et al., 2005) também deixaram a desejar, uma vez que: a) de 1997 a julho de 2005, apenas 17.822 famílias foram financiadas; b) o que predomina é a oferta de terras privadas de má qualidade e má localização; c) o processo de seleção dos beneficiários e de liberação do crédito é extremamente lento e burocratizado, variando, respec- tivamente, de 13 a 24 meses e meio; d) há inúmeros casos de irregularidade e desvios de finalidade no processo de seleção dos beneficiários; e) a grande maioria dos projetos produtivos não têm rentabilidade comercial, em razão de serviços inade- quados de assistência técnica, da falta de mecanismos de comercialização, da má localização e qualidade das terras compradas, da insuficiência de recursos para investimento e da ausência de preços favoráveis para a produção; f) é muito baixa a participação dos beneficiários, seja por falta de conhecimento sobre as regras básicas do programa, seja pela assimetria de poder entre os agentes envolvidos, seja ainda pelo trâmite burocrático do programa. No Brasil, levando-se em conta apenas a experiência do Cédula da Terra12, as metas foram cumpridas. Entre julho de 1997 e dezembro de 2002, 15.267 famí- lias foram financiadas. Porém, em relação aos seus congêneres latino-americanos, as diferenças param por aí. Alardeado como projeto “bem sucedido” e “exemplar” pelo BIRD, o Cédula, na verdade, não chegou a resultados tão animadores assim, pois: a) a maioria dos imóveis adquiridos estavam abandonados ou subutilizados, em razão da seca e da crise da pecuária e das culturas tradicionais (Buainain et al., 1999, p. 31); b) a adesão social ao projeto foi fortemente condicionada pela seca, pelo grave empobrecimento e absoluta falta de perspectivas de trabalho dos traba- lhadores rurais, pelo direcionamento que agentes do estado e políticos locais im- primiram a todo processo – priorizando os “mais pobres” – e pelo “sonho” da terra de trabalho e moradia alimentado por aquelas populações (Buainain et al., 1999, p. 27; Victor & Sauer, 2003, pp. 34-5); c) metade das associações comuni- tárias foi criada exclusivamente para participar do projeto (Buainain et al., 1999, p. 223); d) os recursos destinados a investimentos produtivos foram consumidos, na maioria dos casos, como custeio diário, esgotando-se antes de cobrir o pacote mínimo de investimentos (Buainain et al., 2003, pp. 100-1 e 150); e) sinal da total falta de transparência e prestação de contas, pouco se sabe sobre o pagamen- to das prestações derivadas da compra de imóveis rurais, pois os dados oferecidos pelo BIRD são insuficientes e pouco confiáveis, na medida em que versam apenas sobre 243 associações comunitárias, quando no final de 2003 constavam 609 delas

35 (Banco Mundial, 2003a, p. 16); f) as projeções de geração de renda estão longe de ser consideradas positivas, ainda mais considerando-se que, na maioria das regiões, estão atreladas ao desempenho comercial de uma só cultura (Buainain et al., 2003, pp. 157-70). Com base na literatura disponível13, pode-se afirmar que o desempenho dos programas de fato contradiz suas supostas vantagens e as expectativas inicialmen- te atribuídas a ele pelos seus proponentes e operadores locais, uma vez que: a) os preços pagos pela terra não foram tão baratos como havia se pensado, apesar do pagamento à vista, e a má qualidade das terras adquiridas em parcela significativa dos casos só vem a ressaltar esse fato, de modo que é válido afirmar que os progra- mas se constituíram num “prêmio” a proprietários que por meio deles venderam propriedades abandonadas, falidas e de má localização; b) em nenhum dos três países foi ofertada no mercado uma quantidade substancial de terras por parte de grandes proprietários endividados, apesar de períodos de queda relativa do preço da terra, de maneira que o perfil predominante dos vendedores parece ser de mé- dios e até pequenos produtores arruinados pela abertura comercial e pelas políti- cas neoliberais; c) há evidências de que a execução dos programas provocou o aumento do preço da terra em muitas localidades, ainda que tal efeito não tenha sido homogêneo nem constante no tempo; d) majoritariamente, os projetos pro- dutivos são dominados pela agricultura de subsistência, e não por uma agricultu- ra comercial de alta rentabilidade; e) nos casos considerados positivos pelo BIRD, houve a reprodução da dependência à monocultura e ao modelo tecnológico tra- dicional, inviável economicamente para os agricultores pobres e ecologicamente insustentável; f) a quantia concedida a fundo perdido se revelou insuficiente para alavancar a produção agrícola, razão pela qual os agricultores permanecem depen- dentes de uma política pública substantiva de crédito rural; g) os mercados for- mais de crédito privado permaneceram inacessíveis aos que ingressaram nos pro- gramas orientados pelo MRAM; h) ocorreu enorme deficit de participação social em diversos – em alguns casos, em todos – componentes e fases dos programas implementados; i) os beneficiários tiveram poder desigual na negociação com os proprietários de terra, fato que, por si só, demonstra que a formulação do MRAM não leva em conta as relações realmente existentes de exploração econômica, do- minação política e prestígio social inscritas no monopólio da propriedade da terra em países altamente desiguais; j) ficou evidenciado que são os agentes do Estado que efetivamente protagonizam todo o processo de compra e venda de terras, e não “compradores e vendedores voluntários e racionais”, como pressupõe o MRAM; l) não ocorreu nas associações comunitárias nenhum processo de “auto-

36 seleção” dos mutuários, pois, de diferentes maneiras, houve influência ou tutela de forças externas, como agentes governamentais, proprietários, políticos locais, ONGs, etc.; m) na prática, a elaboração de projetos produtivos viáveis não se deu antes da aquisição da terra, como estabelece o MRAM, de modo que não serviu como precondição para as transações imobiliárias; n) quando existiu, a assistência técnica foi precária e irregular, dificultando sobremaneira o desempenho produti- vo das famílias financiadas; o) não houve transparência na execução dos progra- mas nem prestação de contas dos seus resultados à sociedade, o que realça ainda mais a total falta de controle social e participação efetiva dos trabalhadores sem- terra; p) houve inúmeras denúncias de corrupção e favorecimento ilegal a grandes e médios proprietários; q) não foram oferecidas condições para os camponeses cons- truírem e gerirem suas próprias agroindústrias; r) tais programas operaram de maneira seletiva e pontual, freqüentemente para aliviar tensões sociais no campo ou atender aos interesses dos proprietários ou de políticos locais, sem qualquer articulação com estratégias de desenvolvimento rural e de redução da pobreza; s) em nenhum país o “setor privado” se dispôs a financiar a compra de terras, ou qualquer outro componente dos programas, de tal maneira que todo o ônus re- caiu sobre o Estado; t) em maior ou menor grau, é significativo contingente de trabalhadores endividados. Além disso, como já foi mencionado, não foram implementadas as ações de apoio ao MRAM necessárias ao incremento da oferta mercantil de terras e à dimi- nuição dos “custos de transação”, como a tributação sobre a propriedade rural, a titulação privada e a modernização dos sistemas de registro e cadastro de terras. Igualmente, em lugar algum ocorreu um “campo de jogo nivelado”, tão recla- mado pela retórica neoclássica. Em vez da eliminação dos “privilégios” concedi- dos pelo Estado a grandes proprietários de terra e produtores rurais que “distorceriam” os mercados, houve, isto sim, mudanças significativas na forma de articulação entre Estado, empresariado rural e capital financeiro, impulsionadas pelas políticas neoliberais. Ainda em curso de maneira altamente diferenciada nos três países, tais mudanças têm em comum o reforço aos processos de internaciona- lização, concentração, centralização e financeirização do capital no sistema agroalimentar. Nessas novas condições, o monopólio de classe sobre a terra rural nem de longe foi questionado; ao contrário, foi reforçado e renovado. Por fim, em nenhum país os programas foram inseridos numa estratégia am- pla de redução da pobreza rural. Na prática, foram programas mais ou menos pontuais, com orçamentos minguados, executados sem qualquer conexão com políticas públicas de caráter estrutural.

37 Tais resultados demonstram que a teoria do MRAM não se sustenta empiricamente. Os seus pressupostos básicos não se materializaram nos progra- mas implementados, assim como suas supostas vantagens não se concretizaram. Algumas pesquisas sobre as experiências colombiana, brasileira e guatemalteca (Garoz et al., 2005; Mondragón, 2003; Suhner, 2005; Pereira, 2004) permitem concluir que os programas orientados pelo MRAM não contribuem para democra- tizar a estrutura agrária, nem é esse o seu objetivo, pois foram criados para tão-so- mente aliviar de maneira paliativa e focalizada os efeitos sociais negativos provoca- dos pelas políticas de ajuste estrutural. Além disso, não têm condições de minimamente atenderem à “demanda” por terra existente, porque são desprovidos da capacidade de ganhar escala social devido ao pagamento em dinheiro a preços de mercado. Aliás, pela mesma razão, são caros, o que os condena a serem programas completamente incapazes de fazer frente à magnitude do problema agrário “real- mente existente”. Seguem o objetivo de esvaziar a pressão social pró-reforma agrá- ria, porque propõem uma forma de acesso à terra que concorre com as ocupações organizadas pelos movimentos sociais. Por fim, em todos os três casos, a implementação de tais programas requereu a introdução de mudanças no aparato estatal responsável pelo tratamento do problema agrário, sempre com o mesmo sen- tido: atacar a legitimidade do poder redistributivo do Estado. Por outro lado, no plano político, está claro que a implementação do MRAM de fato competiu diretamente com os programas de reforma agrária em curso no Brasil e na Colômbia (já precariamente executados, sobretudo nesta). No caso guatemalteco, o MRAM converteu-se na única política pública de acesso à terra, associado, posteriormente, a um programa de fomento a relações de arrendamen- to. Ademais, nos três países a sua execução contribuiu para reforçar a ideologia da mercantilização dos direitos sociais e a crítica neoliberal sobre a ineficiência e a inviabilidade de políticas redistributivas massivas na atualidade. Nos três casos, em maior ou menor grau, houve uma relação direta entre a adesão a tais progra- mas e a repressão às ocupações de terra organizadas por movimentos camponeses. Entretanto, embora tenham cumprido bastante bem a sua função precípua – ajustar a política agrária à agenda neoliberal e desviar a luta popular pela democra- tização do acesso à terra, em sociedades altamente desiguais –, os programas orien- tados pelo MRAM perderam força relativa em nível internacional. Diversos fatores contribuíram para isso, em especial as suas próprias contradições e inconsistências internas, as margens de ação permitidas pelo quadro legal existente, a debilidade do arranjo institucional montado para geri-los, as mudanças de prioridade dos gover- nos nacionais, a sua incapacidade de resolver os problemas reais dos trabalhadores

38 sem-terra e a oposição que sofreram de certos movimentos sociais camponeses. Re- centemente, altos funcionários do BIRD criticaram o fato de os programas implementados na Colômbia, no Brasil e na Guatemala terem ficado presos à dinâ- mica dos conflitos sociais e operado sem o propósito de reduzir de fato a pobreza rural (De Ferranti et al., 2005, p. 183). Ou seja, o que antes era alardeado como uma panacéia, hoje recebe críticas explícitas de dentro do próprio BIRD. No caso da Colômbia, a alocação de recursos para o MRAM foi significativa apenas entre 1996 e 1998. Depois de 2000, os recursos foram divididos mais ou menos na mesma proporção entre a compra direta pelo governo federal e o MRAM, porém já em níveis bastante reduzidos (Grusczynski & Jaramillo, 2002). O BIRD, por sua vez, passou a priorizar um projeto de integração subordinada de pequenos produtores rurais a empresas agroindustriais, liberando em 2002 um novo emprés- timo de US$ 32 milhões. Quanto ao MRAM, o Banco (2004) esmoreceu na sua defesa, mas insiste na centralidade das transações de mercado (arrendamento e com- pra/venda) como meio preferencial de acesso à terra pelo campesinato pobre, em detrimento das desapropriações. Suas posições mais recentes advogam também a municipalização da política agrária, o abandono da lei nº 160/94 e a criação de outros expedientes legais que viabilizem a dinamização das transações mercantis. Quanto à experiência guatemalteca, por lei o governo federal terá de injetar recursos no Fundo de Terras até 2008. Mesmo que essa obrigação legal seja revis- ta, persiste o fato de que grande parte dos mutuários está (ou tende a ficar) inadimplente, o que compromete seriamente a sustentabilidade financeira daquele instrumento (Garoz et al., 2005). De resto, mesmo observadores simpáticos ao MRAM reconhecem que programas nele inspirados não são viáveis para o campesinato mais pobre (Molina, 2001, p. 21). Dos três casos aqui examinados, foi no Brasil que a implementação de progra- mas orientados pelo MRAM mais avançou e ainda têm potencial para tal, devido, em larga medida, ao apoio de confederações sindicais de trabalhadores rurais e ao respaldo do governo Lula (Pereira, 2005a e 2004). Porém, deve-se notar que, in- dependentemente do resultado das eleições presidenciais de 2006, um novo qua- dro institucional-legal já foi construído para permitir que esse tipo de política perdure por muitos anos como política de Estado, embora, evidentemente, o for- mato, a direção e a intensidade de sua execução possam variar de maneira signifi- cativa de um governo para outro. De todo modo, ainda que de maneira específica, o conflito social em torno da apropriação e do uso da terra rural permanece intenso nos três países. O caso bra- sileiro, exaltado como o mais bem sucedido pelo BIRD na execução do MRAM,

39 é emblemático a esse respeito. Nem o legado dos programas criados pelo governo Cardoso, nem o seu prosseguimento pelo governo Lula, foram capazes de conter o crescimento, após 2002, das ocupações de terra e da população acampada. Esta, no último ano do governo Lula, alcançou um número recorde: 230.813 famílias, segundo levantamento da Ouvidoria Agrária Nacional (Escolese, 2006). Mesmo que tal cifra seja questionável, é indiscutível que a magnitude da pressão social pelo acesso à terra existente no Brasil hoje nem de longe pode ser atendida por programas inspirados no MRAM. Ainda que o modelo do BIRD tenha perdido força no plano internacional, o seu fim não está posto no horizonte imediato. Longe disso. Dois exemplos bas- tam. Em 2005, o BIRD ofereceu ao governo mexicano um empréstimo para implementar um programa de “crédito fundiário” para jovens agricultores, seme- lhante ao que foi criado no Brasil pelo governo Lula no final de 2003. Por sua vez, no Malaui – um pequeno país da África fora das vistas da opinião pública inter- nacional –, o BIRD fez a sua aposta mais ousada: financiar diretamente a compra de terras, e não mais apenas a infra-estrutura socioprodutiva. Uma doação foi li- berada em 2004 no valor de US$ 27 milhões para a compra de terras por vinte mil famílias. Esta decisão requereu uma revisão das normas internas do Banco, que proibiam esse tipo de operação. O Banco (2004a) já admite que pretende replicar essa operação em outros países, dependendo do resultado. Dos três países aqui examinados, o Brasil sem dúvida é o principal palco de disputa sobre a continuidade ou não do MRAM enquanto proposta aplicável aos países latino-americanos. Se os programas orientados pelo MRAM terão vida longa, dando origem a uma convivência política mais ou menos estável entre “desapro- priação” e “compra e venda”, ou terão vida curta, o tempo mostrará.

Conclusão

Na região da América Latina e do Caribe, as reformas de “segunda geração” preconizadas pelo BIRD aprofundam o cerne do projeto neoliberal, à medida que potencializam formas de exploração de tipo “neocolonial” e, sobretudo, a ofensi- va do capital sobre o trabalho. As ações de “alívio da pobreza” servem para dar funcionalidade a esse processo, amenizando seletivamente as contradições sociais provocadas ou agudizadas por políticas operadas em nível macro. A política agrária do BIRD para a região não pretende oferecer soluções para o grave quadro de pauperização, dominação e exploração em que vive a maior

40 parte dos trabalhadores rurais e do campesinato latino-americano, pois subordi- na-se a uma estratégia de desenvolvimento rural vinculada ao projeto neoliberal. Tal estratégia naturaliza e potencializa o modelo agrícola dominante, comandado por grandes empresas multinacionais agroindustriais e suas ramificações financei- ras. Além de ser ecologicamente insustentável, esse modelo desemprega trabalha- dores, precariza o contrato de trabalho e tem custos econômicos elevadíssimos. Por tudo isso, tanto a estratégia de desenvolvimento rural como a atual política agrária do BIRD favorecem a consolidação de uma nova matriz de poder no cam- po surgida no bojo do ajuste estrutural. Este é o sentido político-estratégico de ambas. E é por isso que ambas não preconizam ou admitem políticas redistributivas. Enquanto objeto da crítica do BIRD, a reforma agrária “conduzida pelo Esta- do” é uma caricatura, como tal inexistente no mundo real. O MRAM, por sua vez, é mais um item da agenda agrária do BIRD, razão pela qual segue a mesma lógica macro que a determina. Assim, mesmo que os programas inspirados nesse modelo sejam redefinidos tecnicamente, os fins a que servem permanecem intocáveis. Em resposta às mudanças regressivas no tecido social e à emergência ou con- solidação de novas configurações de poder no sistema agroalimentar, a ação per- sistente de movimentos sociais camponeses tem alimentado o debate sobre a ne- cessidade da reforma agrária redistributiva, os instrumentos para realizá-la e as múltiplas exigências que ela precisa atender na fase atual do capitalismo. Na pon- ta da reação liberal-conservadora está o BIRD, cuja agenda intelectual e política tenta hegemonizar o debate teórico e a formulação de políticas agrárias para o cam- po num sentido muito específico, qual seja, o do fortalecimento de políticas pró- mercado de terras vinculadas ao estilo de desenvolvimento agrícola em curso. O embate em torno do rol legítimo de ações do Estado prosseguirá. Uma orien- tação mais favorável ao “mundo do trabalho” no meio rural – redistributiva, por assim dizer – depende da mudança nas relações de poder que se expressam e con- formam o próprio Estado. Não se trata apenas, nem fundamentalmente, de uma questão técnica, e sim política. No fundo, o ponto central da disputa não é sobre o futuro de um ou outro programa, nem sobre o MRAM em si mesmo, mas sim sobre qual deve ser o papel do Estado em sociedades altamente desiguais e injus- tas. Considerando, de um lado, o estágio atual de concentração, centralização e financeirização do capital no agro latino-americano e, de outro, a gravitação das políticas neoliberais na região, parece claro que uma alternativa democratizante pressupõe mudanças de caráter macropolítico e macroeconômico, o que traz à tona a questão das coalizões de poder capazes de impulsioná-las e sustentá-las.

41 Notas

1 Parte de um programa de pesquisa mais abrangente, este artigo retoma, sintetiza e avança reflexões desen- volvidas em Pereira (2006, 2005 e 2004). 2 Sob o estilo “terapia de choque” – na verdade, mais “choque” do que “terapia” – a agenda de reformas de “primeira geração” abarcou, basicamente, a abertura comercial e financeira, a privatização, a desregulamentação da economia e o ajuste fiscal drástico. 3 Ver Panitch (1997), Hildyard (1998), Fiori (2000), Vilas (2000), Fine (2003), Tabb (2003), Toussaint (2004) e Önis & Senses (2005). 4 Ver Burki & Edwards (1996), Burki & Perry (1998 e 1997), Edwards (1997) e Banco Mundial (2002a, 1997a e 1996a). 5 Com base nos trabalhos de Douglas North, o BIRD define as instituições como “normas formais e infor- mais, e os mecanismos para assegurar o seu cumprimento, que configuram o comportamento de indiví- duos e organizações numa sociedade” (Burki & Perry, 1998, p. 11). 6 Evidência recente desse processo é dada pelo fato de que as diretrizes de assistência internacional para políticas de terra da União Européia (2004) reproduzem, em linhas gerais, as categorias e as propostas do BIRD. 7 Eis apenas um exemplo: “O Banco ajudou a África do Sul (...) a desenvolver um programa de reforma agrária redistributiva, baseado em transações negociadas ou voluntárias entre compradores e vendedores (...). Essa abordagem, chamada de reforma agrária ‘negociada’ ou ‘assistida pelo mercado’, também está sendo desenvolvida na Colômbia, no Brasil e na Guatemala. Todos os três países tão preparando projetos de reforma agrária com a assistência do Banco” (Banco Mundial, 1997, p. 85). 8 Cf. Banco Mundial (s/d e 2003), Binswanger (1995a), Binswanger & Elgin (1989), Deininger (2001) e Deininger & Binswanger (1999). 9 Cf. Binswanger (1995a), Burki & Perry (1997), Binswanger & van Zyl (1995), Christiansen (1995), Christiansen & van den Brink (1994), van Schalkwyk & van Zyl (1995), van Zyl et al. (1995) e Banco Mundial (s/d). 10 Cf. Deininger (2000), Höllinger (1999), Grusczynski & Jaramillo (2002), Banco Mundial (2004, 2003a e 1998), Garoz et al. (2005), Congreso de Colombia (1994) e Congreso de Guatemala (1999). 11 O pressuposto da noção de “empoderamento”, tal como formulada pelo BIRD, é a inexistência de desi- gualdades estruturais produzidas por relações de exploração e dominação capitalistas. Ora, consideran- do-se a fase ultra-regressiva do capitalismo contemporâneo, como imaginar que o “empoderamento” de atores subalternizados possa prescindir da transformação das relações que os subalternizam? Se o poder é uma relação social assimétrica que implica, necessariamente, alguma forma a subjugação do outro, como imaginar que o “empoderamento” de trabalhadores rurais dominados e explorados não exija, necessaria- mente, o “desempoderamento” daqueles que os dominam e exploram? 12 Uma análise detalhada deste e dos demais programas orientados pelo MRAM no Brasil está em Pereira (2004). 13 Sobre a Colômbia, ver Deininger (2000), Höllinger (1999), Mondragón (2003), Suhner (2005), Grusczynski & Jaramillo (2002) e Banco Mundial (2004). Sobre a Guatemala, ver Molina (2001), Garoz & Gauster (2003) e Garoz et al. (2005). Sobre o Brasil, ver Buainain (1999 e 2003), Victor & Sauer (2002), Groppo et al. (1998) e Banco Mundial (2003a). Sobre o Brasil e a Colômbia, ver Borras (2003).

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47

REESTRUTURAÇÃO TERRITORIAL E FUNDAMENTAÇÃO DA REFORMA AGRÁRIA: COMUNIDADES INDÍGENAS, MINERAÇÃO DE OURO E BANCO MUNDIAL

ERIC HOLT-GIMÉNEZ

Muitas das críticas atuais aos programas de reforma agrária “assistida pelo mercado” do Banco Mundial (BIRD) se concentram nas contradições entre o dis- curso agrário neoliberal do BIRD e os precários resultados distributivos de seus projetos no campo (Barros, Schwartzman & Sauer, 2003; Martins, 2005). É im- portante chamar o BIRD à responsabilidade pela inconsistência entre sua missão de aliviar a pobreza rural e a natureza regressiva de seus programas de reforma agrária, não apenas porque isso pode auxiliar a amplificar as vozes dos sem-terra, mas porque ajuda a expor, de forma geral, as hipocrisias inerentes ao enfoque não- distributivo do Banco em relação ao crescimento econômico e ao desenvolvimen- to rural. No entanto, essas críticas não esclarecem necessariamente por que o BIRD implementa continuamente, com tanta insistência, esses programas malsucedidos. Simplesmente apontar para o “Consenso de Washington” não viabiliza uma com- preensão específica do papel da reforma agrária de mercado no contexto das estra- tégias de desenvolvimento nacional do BIRD. Sem uma análise estrutural da agenda do BIRD, será difícil entender a extensão política de seus programas de reforma agrária. Ademais, é importante considerar o conjunto das políticas e projetos em determinado país para saber que papel a reforma agrária (ou ausência dela) pode- ria desempenhar na estratégia global do BIRD. Um projeto de reforma agrária de mercado pode ser um fracasso rural para o campesinato e, no entanto, pode ter relativo êxito no sentido de ajudar a reestruturar, por exemplo, as instituições so- ciais e econômicas no interior de um país para favorecer a agroindústria, o turis- mo ou as indústrias extrativas. O presente trabalho argumentará que, para construir estratégias viáveis de re- sistência, de base ampla, que engajam o BIRD em questões rurais e agrárias, é preciso entender o que este de fato está fazendo no campo, ao invés do que parece estar fazendo. No caso da Guatemala, como em outras regiões da América Latina, o programa do Banco Mundial para a reforma agrária de mercado complementa sua estratégia de abrir os Altiplanos Ocidentais para indústrias extrativas. Enquanto movimentos indígenas e camponeses travam uma batalha verbal contra o progra- ma de reforma agrária de mercado, projetos patrocinados pelo BIRD, que favore- cem interesses estrangeiros de mineração, desencadearam uma transformação muito mais profunda e socioambientalmente destrutiva de terras indígenas. Para com- preendermos esse processo, introduzirei, como um conceito axial do desenvolvi- mento, a reestruturação territorial, acompanhada de seus componentes adicionais, ou seja, o hiperespaço de desenvolvimento e as áreas de mineração. A carteira de projetos de desenvolvimento do BIRD, em um país qualquer, constitui um reflexo de suas operações para ajudar o capital a conquistar merca- dos e ganhos específicos em favor de empresas privilegiadas e atores políticos em nível nacional e subnacional ou territorial. Muitos dos projetos do BIRD preci- sam ser entendidos no sentido da reestruturação de espaços territoriais e locais para favorecer tipos selecionados de capital, empresas específicas, e/ou atores po- líticos fundamentais. Na presente análise, “lugares” são as áreas físicas em que acon- tecem a produção e a reestruturação (por exemplo, os Altiplanos indígenas da Guatemala, ricos em minério). “Espaços” são as arenas sociopolíticas em que os diferentes atores competem pelo poder sobre esses espaços, por exemplo, as estru- turas do mercado, da política e da gestão. A reestruturação territorial visa o controle sobre os lugares e espaços em que se produzem excedentes pela adequação e pelo controle das instituições e relações sociais que comandam a produção, extração e acumulação. Esse controle inclui, embora não se limita a elas, diferentes formas de gestão nacional e subnacional. Como acontece nas reformas neoliberais, o controle também pode ser exercido quando se limita a gestão formal para permitir acesso irrestrito a matérias-primas por parte de empresas estrangeiras. Não é necessário que o BIRD, as empresas privadas ou os governos nacionais cheguem a consensos sobre o processo de reestruturação territorial. As formas como essas instituições usam o desenvolvi- mento para redefinir e controlar o território dependem muito de interesses indi- viduais, muitas vezes complementares. O resultado somado das atividades, tensões e alianças entre esses diferentes atores leva à reestruturação de espaços e lugares nacionais, por exemplo, mercados e municípios, fazendas, florestas e estradas que perfazem as instituições e a paisa- gem local. No processo, a reestruturação territorial se depara com atritos, desloca- mentos e resistência, o que pode redundar em resultados inesperados para o BIRD,

50 governo ou empresa. A resistência efetiva à reestruturação territorial a favor da sobrevivência indígena, ou da reforma agrária redistributiva, requer que não ape- nas se desmascarem os interesses, predominantemente de capital, por trás das es- tratégias de desenvolvimento rural do BIRD, mas também que se identifiquem as fissuras inerentes às suas alianças. Deixando de lado, por ora, o discurso de desenvolvimento,1 a estrutura admi- nistrativa do Banco Mundial assegura que suas operações privilegiem o “desenvolvi- mento” do capital do Norte. A fim de facilitar os interesses empresariais das corporações que apóiam os governos, os membros patrocinadores (o G-8), o BIRD tem que criar condições estáveis para a produção e extração de riqueza de países no Hemisfério Sul, onde as condições são social, política ou economicamente instá- veis. Essa tarefa – que não é idêntica ao trabalho para estabilizar esses países em si – é concretizada não apenas pela reestruturação das condições em escalas nacionais, mas territoriais, onde de fato acontece o investimento estrangeiro direto. Os empréstimos do Banco Mundial na Guatemala constituem um exemplo da forma como reforma agrária, projetos ambientais e projetos de infra-estrutura fazem parte de um pacote de intervenções institucionais e financeiras que favore- cem o desenvolvimento de indústrias extrativas de base estrangeira nos Altiplanos Ocidentais do país. Enquanto os projetos do BIRD para a reforma agrária e servi- ços ambientais fracassam, de acordo com declarações e termos próprios, o pacote global de projetos e políticas é bem sucedido no lançamento de uma ponta-de- lança para indústrias extrativas nos Altiplanos. Ao mesmo tempo em que os em- préstimos públicos do BIRD promoviam a reforma agrária de mercado, seu braço de empréstimos ao setor privado ajudava a Glamis Gold Ltd., uma corporação canadense-americana, a reabrir a mina de Marlin, no Departamento de San Mar- cos. Reativada apesar de protestos locais das comunidades indígenas, a mina abri- rá os Altiplanos para operações com ouro, níquel e – muito em breve – urânio.2 Os projetos de reforma agrária do Banco Mundial precisam ser vistos como parte de uma tendência mais abrangente de reestruturação territorial. Comprometer-se com o Banco em relação a seus programas de reforma agrária apoiados pelo mercado – quando a pressão da reestruturação territorial vai em direção à expansão do setor da mineração – pode não ser a maneira mais efetiva de conservar o meio-ambiente, proteger os interesses de comunidades indígenas ou até mesmo fazer avançar a re- forma agrária redistributiva. É importante compreender a natureza da reestruturação territorial para analisar o significado do programa de reforma agrária do BIRD, depreender as ameaças estruturais à sobrevivência camponesa na área rural e formu- lar estratégias territoriais eficazes de engajamento ou resistência.

51 1. Reforma agrária e controle territorial

Reivindicações privadas sobre a propriedade, legalizadas e sancionadas pelo Estado... podem tornar a ‘economia rural’ segura para investimentos; [esses investimentos vão] em troca conduzir ao crescimento econômico e… à erradicação da pobreza (Banco Mundial, 2003, p. xix. In: Borras Jr., 2006).

Na América Latina de hoje, planos de reforma agrária de mercado visam esta- belecer direitos formais de propriedade. Historicamente, foram tendenciosos em favor do indivíduo, e não de posses comunais ou coletivas. Contudo, a preocupa- ção com a terra não trata apenas da forma social da documentação, mas de como se distribui o poder sobre a produção e de como se distribuem os excedentes. De acordo com Borras, a reforma agrária redistributiva é “controle real e efetivo sobre a natureza, o ritmo, a extensão e a direção do excedente da produção e extração da terra, bem como a transferência desse excedente” (2006, p. 125) da elite latifun- diária para o campesinato. Entretanto, ter terra e controlar o fluxo e a acumulação do excedente é con- trolar o território. As condições estruturais determinam as formas e influenciam os tipos de produção, canalizando o fluxo e a acumulação de excedentes dentro dos territórios. Políticas (e projetos) regressivas podem provocar mudanças estru- turais que diminuem ou transferem o controle territorial de matérias-primas das comunidades rurais pobres e indígenas para elites poderosas ou para interesses estrangeiros.3 A reestruturação territorial envolve negociação, ajuste e recolocação de custos e benefícios da produção de excedentes, obedecendo a uma “lógica do território” e a uma “lógica do capital” (Harvey, 2003). A primeira lógica inclui atividades como privatização, apêndices ambientais e reformas agrárias, enquanto a segunda pode usar os instrumentos de investimento, de liberalização de mercado, de desa- propriação, etc. A primeira está preocupada com o lugar, a segunda com o espaço. A reforma agrária obviamente é apenas uma maneira de apropriação ou reestruturação do território. Por causa da fragilidade de planejamento e de capaci- dade reguladora de muitos países sulistas, a infra-estrutura – estradas, eletricidade ou geração de energia – também constitui formas primordiais de organização e controle. Pelo fato de, muitas vezes, haver disputas – internacionais e intranacionais – em torno da apropriação do excedente, as tentativas de reforma agrária devem ser entendidas no contexto de projetos que competem pelo controle territorial. A

52 reforma agrária implementada no contexto de uma reestruturação territorial re- gressiva pode ou não alcançar seus resultados distributivos declarados, ou pode acabar sendo completamente abandonada. Movimentos em prol da reforma agrá- ria redistributiva e uso sustentável e eqüitativo da terra têm que levar em conta a interação entre os programas oficiais de reforma agrária e o arranjo de projetos e políticas que influenciam as condições estruturais e determinam o controle sobre o território. O Banco Mundial é, evidentemente, a principal instituição global responsável por estabelecer condições estruturais, tanto em escala nacional como subnacional.

2. O contexto estrutural e o papel de instituições financeiras internacionais

A “condição de superprodução” do capitalismo configura diretamente o con- texto estrutural em proporções globais. Caracteriza-se pela extração excessiva dos excedentes e por crises cíclicas de acumulação do capital, nas quais a formação e concentração de capitais ficam sem oportunidades viáveis de reinvestimento e/ou capacidades correspondentes do mercado para consumir os bens produzidos. Na esteira de uma tendência de vinte anos de acumulação intensa de capital, as institui- ções financeiras globais se deparam agora com o problema de quitar grandes quan- tias de juros sobre seus ativos. Essas instituições têm de emprestar grandes quantias para transferir o ônus da “liquidez excessiva” aos tomadores de empréstimo. Esses empréstimos abrem oportunidades, particularmente em atividades de lucro rápido, elevado, mas arriscado, como as indústrias extrativas.4 Tanto as opor- tunidades de investimento e como a extração são facilitadas e limitadas pelos atuais ambientes de investimento no hemisfério Sul. Por um lado, a dilapidação de paí- ses do Sul pelos programas de ajuste estrutural (SAP) do FMI e Banco Mundial, nas últimas duas décadas, deixou os governos frágeis e incapazes de fornecer ga- rantias políticas, sociais e financeiras a investidores estrangeiros. Por outro, isso também os tornou dependentes de investimentos estrangeiros para sua sobrevi- vência como países e, por isso, vulneráveis para acordos enviesados a favor de com- panhias estrangeiras. Por causa dos riscos políticos e econômicos envolvidos na exploração dessas oportunidades, companhias e instituições financeiras se dirigem a instituições financeiras internacionais (IFI), como o Banco Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento (por exemplo, o Banco Interamericano de Desen- volvimento – BID), para que forneçam as garantias financeiras, políticas e sociais para seus investimentos.5

53 Graças à sua natureza poderosa e multilateral, as IFIs conseguem forçar os governos tomadores de empréstimos fracos a modificar seus parâmetros regula- dores de investimentos para favorecer investidores estrangeiros. Significativamente, ao contrário de bancos privados, as IFIs também são capazes de moldar as condi- ções estruturais diretamente a nível nacional e subnacional. As grandes IFIs têm dois braços distintos de empréstimos – privado e público – a fim de fazer o servi- ço. Junto ao Grupo do Banco Mundial, a Corporação Internacional de Financia- mento (IFC) concede empréstimos ao setor privado, enquanto o Banco Interna- cional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD) viabiliza empréstimos a governos. As mesmas pessoas no Conselho de Administração que aprovam os projetos para reformas governamentais, infra-estrutura, meio-ambiente e saúde também aprovam os empréstimos da IFC para projetos do setor privado, nos quais o BIRD, não raro, tem um interesse de ganhos patrimoniais. Associando o BIRD e a IFC com uma mão e uma foice, um líder camponês comentou certa vez: “O que o Banco cultiva com uma mão, colhe com a outra.”

3. O caso da Guatemala

Na Guatemala, o desenvolvimento de indústrias extrativas é determinado por um Estado frágil pós-guerra (firmemente controlado por uma poderosa e vitoriosa elite) e por preços extraordinariamente altos do ouro no mercado internacional. No primeiro caso, o governo do partido de coalizão (GANA), de Oscar Berger, realizou uma campanha de sucesso com uma plataforma de crescimento econô- mico, por meio da “integração regional”, i.e., o Plano Puebla-Panamá e o DR- CAFTA.6 O encolhimento da iniciativa anterior e a incapacidade da segunda para produzir benefícios sociais em um futuro próximo e a médio prazo obrigou Berger (assim como aos dois presidentes anteriores) a se voltar para os recursos minerais do país como fonte de renda e poder político. Porém, na Guatemala, trinta e seis anos de guerra civil haviam afastado a maioria das companhias da zona rural. Reavivar o setor era uma possibilidade remota até que, nos anos de 2001 a 2004, o preço internacional do ouro saltou de US$ 277 para mais de US$ 400 por onça (Solano, 2005). De acordo com a IFC, a elevação dos preços do ouro deve-se, em grande par- te, ao “dólar fraco, baixas taxas de juros reais, baixo crescimento econômico, risco geopolítico maior, mineração em queda, diminuição de medidas compensatórias de perdas da maioria dos produtores e incerteza no mercado de capitais” (IFC,

54 2004, p. 13). Acrescente-se a isso a explosão da demanda nas classes médias altas da Índia e China, em rápido crescimento. Ao redor do mundo, minas antigas, de baixa qualidade, esgotadas ou difíceis de serem exploradas, de repente tornaram- se potencialmente lucrativas. Na Guatemala, essas jazidas se encontram nos Altiplanos Ocidentais, terra natal da maioria da população indígena empobrecida do país. Durante décadas, os Altiplanos foram o cenário dos mais alastrados e horrí- veis episódios de abusos dos direitos humanos pelo governo e por paramilitares. Depois da assinatura dos Acordos de Paz do país, em 1996, o Banco Mundial rapidamente aconselhou o governo de Arzú para que modernizasse o setor de mi- neração guatemalteco. Isso levou a uma das mais draconianas legislações de mine- ração desde a Conquista espanhola. Sob a nova lei de mineração, as companhias não apenas são 100% de propriedade estrangeira, mas os antigos 6% obrigatórios de royalties foram substituídos por mero 1% e o imposto de 58% sobre os lucros foi reduzido a 31%. Em um país onde os consumidores pobres pagam até US$ 140 por mês pela água, as imensas quantidades de água necessárias para processar minério de ouro são gratuitas para companhias mineradoras.7 O licenciamento foi agilizado e, embora alguns regulamentos ambientais se tornassem mais rigoro- sos, não se tomou nenhuma providência para aumentar a capacidade reguladora dos ministérios de Minas ou Meio-Ambiente, o que torna essas melhorias efetiva- mente simbólicas. O Banco Mundial e o atual governo de Berger racionalizam essa “corrida ao abismo”, insistindo em que essas concessões atrairão novos investimentos para um setor politicamente arriscado. Nessa visão, em algum dia no futuro, os benefícios da mineração levarão ao desenvolvimento econômico e social. Mas esse argumen- to se baseia na suposição de que o preço alto do ouro e as reservas do minério do país durarão tempo suficiente para construir, de fato, uma indústria nacional para depois que expirarem as concessões das companhias mineradoras estrangeiras, dentro de vinte anos. Ainda que o ouro tenha saltado para os atuais US$ 650/onça, a onda do ouro não durará para sempre. As moedas se estabilizarão, a demanda será saturada e o Fundo Monetário Internacional – atualmente com mais de US$ 40 bilhões em reservas de ouro – poderá vender seu ouro em barras no mercado internacional para lidar com sua própria crise financeira, derrubando assim os preços internacio- nais e tornando novamente não-rentáveis as minas de baixa produtividade. Até então a corporação estrangeira terá obtido seus lucros e provavelmente cairá fora, deixando as sobras para companhias nacionais e toda a limpeza ambiental para os

55 pagadores de impostos da Guatemala – ou pior, para os aldeões locais. Nitida- mente, o apoio do Banco Mundial à mineração do ouro na Guatemala é uma es- tratégia de curto prazo para a exploração intensiva, que não apenas requer a manipulação direta do arcabouço jurídico do país, mas também o controle exten- sivo sobre as estruturas territoriais nos Altiplanos Ocidentais, para garantir extra- ção eficiente – se não predatória – de excedentes.

3.1. A reforma agrária na área de mineração: o povo, a zona rural, os projetos Controlar a terra, mão-de-obra e amenizar conflitos sociais, políticos e ambientais são condições essenciais para indústrias extrativas e, por conseqüên- cia, constituem um objetivo primordial da reestruturação territorial do BIRD. A influência territorial da indústria mineradora nos Altiplanos se estende sobre a área da extração (minérios e água), como também sobre uma área de influência (mercados de terra e mão-de-obra, estradas, madeira, etc.). Com efeito, a mani- pulação do espaço e do lugar, por meio da reestruturação territorial, tanto prepara como é moldada por atividades que acontecem nas áreas da mineração, que repre- sentam, ao mesmo tempo, o ponto de apoio socioeconômico e político da indús- tria e sua pegada ambiental. Nas áreas da mineração, a terra, o trabalho, o capital e os serviços ambientais fluem para, e são afetados por, atividades mineiras. A área de mineração não é distributiva; recursos que fluem para a mina não fluem de volta com a mesma riqueza para os Altiplanos. Privilegiar interesses de mineração “insere estrutural- mente” o acesso do setor a matérias-primas e “exclui estruturalmente” qualquer repatriação significativa ou distribuição dos lucros. Igualmente, exclui estrutural- mente qualquer alternativa séria ou estratégias de desenvolvimento sustentável que poderiam melhorar a vida rural. Desse modo, exacerbam a deterioração das con- dições socioeconômicas na zona rural dos Altiplanos. Assim, enquanto alguns recursos na área de mineração (como terra, água e eletricidade) fluem para a mina, outros (como a mão-de-obra rural) fluem integralmente para fora da área rural. Sem medidas atenuantes efetivas, a mineração drenará, direta e indiretamente, os recursos naturais e humanos dos Altiplanos.8 Em conseqüência, não é nenhuma coincidência que a área de mineração, no mapa dos Altiplanos Ocidentais, coincida totalmente com as áreas de influência dos projetos do BIRD para infra-estrutura, desenvolvimento econômico, serviços ambientais e reforma agrária. Coincide igualmente com a maioria da população do país, sobretudo rural, pobre e indígena, as mesmas comunidades devastadas pela guerra civil.

56 4. Das Estratégias de Assistência ao País à reestruturação territorial

Ao mesmo tempo, a Guatemala possui a maior economia da América Cen- tral, mas tem um dos graus mais extremos de desigualdade em toda a América Latina, com o segundo pior coeficiente de Gini (0,57) do continente. A pobreza se concentra nas áreas rurais do país e no seio de comunidades indígenas que res- pondem por mais da metade da população da área rural.9 Nos Altiplanos Ociden- tais densamente habitados, povos indígenas de vários grupos maias (Kiché, Kaq’chikel, Mam e Q’eqchi) representam entre 57% e 90% da população. Quase 70% dos habitantes dos Altiplanos são agricultores pobres ou extremamente po- bres. Mais da metade da população sobrevive com a agricultura de subsistência (Banco Mundial, 2005). A atual carteira do Banco Mundial na Guatemala, de US$ 255 milhões, é desembolsada por seu braço de investimento para o setor público “social” (BIRD) nas esferas da educação, nutrição e saúde materno-infantil; desenvolvimento lo- cal e rural (inclusive ambiental), administração agrícola e gestão do setor público. O braço para o setor privado (IFC e MIGA) “complementam os empréstimos do BIRD para mudanças políticas e institucionais… através de investimentos e aju- da técnica no setor de bancos e seguros, infra-estrutura, indústrias extrativas, manufaturas… e os setores de exportação de valor agregado” (Banco Mundial, 2005, p. 25). A IFC disponibiliza US$ 139 milhões em sua carteira guatemalteca. De acordo com o Banco Mundial, desde a assinatura dos Acordos de Paz, em 1996, o governo da Guatemala renovou seu enfoque acerca dos programas rurais. O BIRD apóia o plano de reativação econômica do presidente guatemalteco Os- car Berger, denominado “Vamos Guatemala!”, cujos três componentes (Guate Solidaria Rural, Guate-Invierte, Registro Infomación Catastral) são considerados capazes de causar um impacto na pobreza e fortalecer a Secretaria de Questões Fundiárias (ibid). “Vamos Guatemala!” e o pacote do Banco Mundial pretendem abrir a área rural para o recém-aprovado DR-CAFTA, visando “criar oportunidades para acelerar o desenvolvimento e o crescimento na Guatemala – inclusive pela atração de novos investimentos para o país…” Em uma comovente passagem de sua Estratégia de Ajuda ao País (CAS),10 o Banco Mundial afirma que os camponeses indígenas, de- pendentes de “commodities rurais sensíveis” (i.e., o cultivo de grãos básicos para a subsistência), precisarão de ajuda em “atualização tecnológica, substituição de cul- turas ou ajuda para sair da agricultura, complementadas por ações para estimular o desenvolvimento de mercados financeiros mais profundos… Deficiências na infra-

57 estrutura guatemalteca, como a rede viária… precisam ser enfrentadas para que se possam colher os ganhos potenciais do DR-CAFTA” (Banco Mundial, 2005, p. 26). Para apoiar a penetração do DR-CAFTA, o BIRD argumenta em favor de um crescente acesso a ativos produtivos e à infra-estrutura rural, acompanhado por atividades “geradoras de demanda” concentradas nos Altiplanos Ocidentais. Os- tensivamente, os Altiplanos são visados porque sua condição de elevadas taxas e alta densidade de pobreza oferece a melhor oportunidade para impactos positivos de desenvolvimento. Contudo, os Altiplanos são territorialmente estratégicos em termos de mercados de mão-de-obra, agroindústria, serviços ambientais e mine- rais. Entre outros focos, a estratégia do Banco identifica especificamente “gestão descentralizada com um foco territorial” (ênfase do autor). O BIRD recomenda combinar programas de infra-estrutura com a alocação de financiamento (microcrédito) e assistência técnica para desenvolver indústrias locais e microempresas, através de “propaganda” em nível territorial e também mediante in- tervenções de políticas identificadas, tais como a aprovação de um código das águas. Como documento de estratégia nacional, o CAS delineia o ambiente de polí- ticas em que os projetos específicos serão implementados pela afirmação das con- dições e objetivos gerais do desenvolvimento financiado pelo BIRD. Contudo, em e por si mesmo, o CAS não é suficiente para determinar o que de fato é feito na base. Apesar da retórica de mercado do Banco Mundial, projetos patrocinados pelo governo e financiados pelo BIRD (também uma instituição pública) se fa- zem necessários para favorecer os interesses do capital privado internacional. Por implicar em dívida interna, esses projetos freqüentemente são votados em con- gressos ou parlamentos nacionais. Os possíveis impactos ou conseqüências desses projetos muitas vezes conflitam com interesses de influentes setores privados e estatal do país que toma o empréstimo. Enquanto todos os projetos do BIRD para a reforma fiscal, reforma agrária ou serviços ambientais ajudam integralmente o capital financeiro internacional a “pene- trar” das alturas desregulamentadoras do DR-CAFTA em oportunidades específicas de investimento, a nível subnacional, às vezes, esses colidem com os interesses das eli- tes nacionais. Estas têm pouca disposição para assumir uma dívida interna de proje- tos que reduzem sua renda (como a reforma fiscal) ou solapam seu controle sobre ma- térias-primas (como a reforma agrária), que podem favorecer certos enclaves em detrimento de outros, ou simplesmente podem não oferecer oportunidades suficien- temente interessantes para uma atitude de quem busca rendimentos. Assim, as nego- ciações em torno de projetos freqüentemente refletem disputas nacional-internacio- nais e intranacionais sobre ganhos e matérias-primas em escala territorial.

58 A geografia do enfoque territorial do Banco é definida vagamente por uma área física extensa com camadas de projetos, circunscrita por acordos comerciais regionais e emoldurada por políticas nacionais. A convergência de políticas naci- onais, projetos do BIRD e acordos regionais, em uma escala subnacional, produz uma arena de desenvolvimento ou “hiperespaço” no qual capitais poderosos desa- lojam capitais mais fracos ou não-consolidados para acessar recursos e extrair ri- quezas. A criação institucional ou espacial desse hiperespaço, por seu turno, defi- ne o lugar da área geográfica em que se concretiza a reestruturação territorial, menos pelo traçado inteligente do BIRD que pela conformidade com a lógica do capital e do território, articulada pela mais proeminente instituição do mundo para o desenvolvimento capitalista internacional. Obviamente, qualquer reestruturação dentro de um território pobre, densamente povoado e predominantemente agrícola, forçosamente tratará de questões fundiárias, embora não necessariamente com o objetivo de redistribuir ativos, aliviar a pobreza, ou até mesmo intensificar a produção agrícola da pequena propriedade. Uma leitura do pacote específico de projetos – bem-sucedidos e fracassados – ajuda a depreender (por trás da retórica desenvolvimentista do BIRD e dos parâmetros do CAS) o significado dos programas de reforma agrária do Banco Mundial.

5. Rodovias, pavimentadas de boas intenções, até o ouro: o pacote do Banco Mundial para o Altiplano

Uma revisão da história de US$ 1,8 bilhão do BIRD na Guatemala revela uma tendência gradual de aumento nos desembolsos, graças a um pico de emprésti- mos após a assinatura dos Acordos de Paz, em 1996. Em 1997, o Banco introdu- ziu um projeto de US$ 13 milhões, projetado para preparar as condições da privatização da companhia telefônica, estradas e portos de propriedade do Esta- do.11 A isso se seguiram rapidamente três projetos que somam mais de US$ 133 milhões, todos no mesmo ano. No total, de 1997 a 2005, o BIRD introduziu vinte e quatro projetos distintos que somam US$ 859 milhões, emprestando mais à Guatemala em nove anos que nos quarenta anteriores. A série de projetos pós- Acordos incluía sete projetos de investimento da IFC que totalizam US$ 139 milhões, o maior dos quais era a mina de Marlin da companhia Glamis Gold Ltd., no valor de US$ 45 milhões, em 2004. A última década de empréstimos do Banco Mundial à Guatemala foi marcada por uma ênfase renovada no setor privado e por um esforço contínuo para trazer

59 as “oportunidades” da desregulamentação e privatização para a zona rural.12 Os Altiplanos Ocidentais recebem atenção especial. Quase um terço dos projetos de empréstimo do BIRD e IFC, depois dos Acordos de Paz, foram direta ou indire- tamente para os Altiplanos Ocidentais:13

- O Projeto de Reconstrução e Desenvolvimento (US$ 33,5 milhões), voltado a San Marcos e Huehuetenango para projetos de desenvolvimento comunitário em nível de aldeias; - O Projeto Fundo de Terra (US$ 23 milhões), introduzido em janeiro de 1999; - O Segundo Projeto de Estradas Rural e Principais (US$ 46,7 milhões), destina- do especificamente a San Marcos e Huehuetenango, nos Altiplanos Ocidentais, acrescentado em 2003; - O Projeto de Gestão de Recursos Naturais do Planalto Ocidental, formado de um projeto de US$ 8 milhões do Fundo para o Meio Ambiente Mundial (GEF) e um projeto de US$ 32,8 milhões do BIRD, aprovado em maio de 2003; - O Projeto de Apoio a um Programa de Desenvolvimento Econômico Rural (US$ 30 milhões), partilhado com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, foi aprovado em março de 2006; - O Projeto de Administração Fundiária II (US$ 50 milhões) é um esforço para aplicar aos Altiplanos Ocidentais as “lições aprendidas” do primeiro Projeto de Administração Fundiária no Petén (no encerramento deste escrito); - A mina de Marlin: empréstimo de US$ 45 milhões para a Glamis Gold Ltd. da IFC para reabrir a mina de ouro Marlin em San Marcos.

Respondendo às condições semifeudais que primordialmente incendiaram a guerra civil de 36 anos, depois dos Acordos de Paz o Banco Mundial introduziu a reforma agrária de mercado com o Projeto de Administração Fundiária (1998).14 De acordo com o Documento de Avaliação do Projeto, os objetivos do projeto (ainda em andamento) são: a) aumentar a segurança legal da propriedade da terra na Guatemala e b) fortalecer o marco legal e institucional para registro da terra e serviços de cadastro em âmbito nacional.15 Contudo, contrariando a vontade do BIRD, o governo da Guatemala não implementou o projeto nos Altiplanos Ocidentais:

O Planalto é a área mais densamente povoada e considera-se que contém a maioria dos conflitos de terra… [isso] representava uma área de alto risco, de alto-custo. [Mas] por causa da falta de experiência na regularização fundiária no país, o governo guatemalteco pediu que

60 essa opção seja descartada devido ao elevado efeito de demonstração de um primeiro piloto, em favor de uma área de risco menor (o Petén) (Banco Mundial, 1998, p. 8).

O Projeto de Fundo de Terras de âmbito nacional, porém, avançou sem protes- to inicial do governo da Guatemala. Com esse projeto, o BIRD tentou ajudar o FONTIERRAS a: a) estabelecer um programa para facilitar o acesso à terra para beneficiários; b) apoiar beneficiários a acessar a assistência técnica e financiar subprojetos produtivos e c) melhorar o arcabouço legal e institucional para que o mercado imobiliário funcione de forma mais eficiente. Em suma, porém, entre 1994-2000 o INTA/FONTIERRAS somente bene- ficiou cerca de 4 mil famílias com financiamento público para aquisição de terra, subsídios e assistência técnica (Saldivar & Wittman, 2005). O governo da Guatemala não foi capaz de estabelecer um mercado imobiliário funcional e privatizou, sobretudo, terras públicas ociosas. Em dado momento, o governo sim- plesmente cancelou o projeto, sem disposição de continuar contraindo dívidas para um projeto que tinha pouco apoio entre os políticos (Garoz et al., 2005).

6. Enclaves ambientais

Em 2003, o Banco Mundial tentou introduzir um enorme projeto ambiental de cinqüenta milhões de dólares nos Altiplanos Ocidentais. O Projeto de Gestão de Recursos Naturais do Planalto Ocidental (MIRNA) era um sonho de ecologistas do Norte. De acordo com o BIRD, o MIRNA tanto conservaria o ambiente como combateria a pobreza nos Altiplanos, como segue:

a) aumentando o capital social em torno da gestão de recursos naturais, pelo apoio a comunidades, organizações e autoridades locais (tradicionais e municipais) para definir e implementar conjuntamente uma visão de desenvolvimento local que leve em conta os objetivos da gestão de recursos naturais e a sustentabilidade; b) aumentando as oportunidades de melhorar, de forma sustentável, a produ- tividade e a diversificação da agricultura, bem como outros sistemas de subsis- tência (não-agrícolas); c) ampliando e fortalecendo esforços existentes de comunidades indígenas para estabelecer áreas de conservação permanente dentro de zonas mais amplas de biodiversidade de relevância global e conservar os habitat que sustentam essa diversidade;

61 d) estabelecendo e monitorando uma conjuntura para mercados de serviços ambientais, visando a assegurar incentivos locais à conservação.16

O BIRD considerou o MIRNA como um “projeto de desenvolvimento de povos maia”, proposto para assegurar sobrevivência sustentável e conservar a biodiversidade. É evidente que estabelecer reservas de biodiversidade em florestas densamente povoadas ou intensivamente exploradas exclui necessariamente esses recursos das estratégias de sustento das aldeias indígenas circunvizinhas. O proje- to propôs medidas para reduzir um “avanço” sobre recursos disponíveis pelo enfoque na conservação de florestas, terra e água em propriedades privadas, e pela intensificação da produção tanto agrícola como não-agrícola. Muitos aspectos da proposta tentaram solidificar o controle indígena comunal sobre os recursos na- turais envolvendo indígenas tradicionais na regulamentação da terra e de recursos naturais, bem como nas decisões relativas à conservação. Deixando de lado a viabilidade política e econômica de uma proposta que não tratou especificamente das causas da pobreza nos Altiplanos – e, sugestivamente, evi- tou qualquer menção ao ouro, o recurso natural mais comerciável da região –, porque quase 15% das florestas e pastagens dos Altiplanos são geridos de forma comunal, o MIRNA também redundou em um enclave ambiental de terras indígenas (Banco Mundial, 2003).17 Consistente com o CAS, o projeto presumia que criar mercados para a conservação seria a chave para a sobrevivência sustentável nos Altiplanos Oci- dentais. Isso demandava a privatização de serviços ambientais, dos recursos acima do solo, bem como da terra. A fim de criar reservas de biodiversidade e assegurar rendas no fluxo de serviços ambientais do Altiplano, era preciso garantir os direitos de proprie- dade e titular a terra (comunal e privada), tornando prioritária a regularização fundiária. Dessa forma, o MIRNA tentou alcançar, através do planejamento ambiental, o que o Projeto de Administração Fundiária não fora capaz de fazer através dos mercados imo- biliários: titular e privatizar a terra nos Altiplanos Ocidentais. No entanto, diante de seu potencial de redistribuição, o desmantelando de “ter- ras públicas” pela titulação privada desagrega relações sociais existentes e o mesmo ocorre na “criação” de terras públicas para serviços ambientais. Isso conduziu à resis- tência das elites latifundiárias da Guatemala. Não causou surpresa que o MIRNA fosse rejeitado pelo Congresso guatemalteco em 2004. Lamentando o que o BIRD chamava de momento errado, a Nota de Conclusão do Projeto afirma:

Os principais fatores que conduziram ao cancelamento do Projeto de Gestão de Recur- sos Naturais do Planalto Ocidental foram: 1) o fracasso do governo em atingir consen-

62 so e obter as aprovações legislativas necessárias para efetivar o projeto antes das elei- ções nacionais e troca da administração e 2) a realidade fiscal muito difícil herdada pelo novo governo, que demandou medidas de austeridade, obrigando os ministérios setoriais a reavaliar suas prioridades (Banco Mundial, 2005, p. 5).

Na essência, o Banco Mundial colidiu com a recusa das elites guatemaltecas em pagar impostos, o desinteresse da burguesia rural pela reforma agrária e a inca- pacidade das classes governantes de ver alguma vantagem em conferir às comuni- dades indígenas qualquer controle substantivo (ainda que limitado) sobre recur- sos naturais nos Altiplanos. A lição de casa do FONTIERRAS e do MIRNA é: os interesses dos capitais nacionais nem sempre estão em consonância com os dos capitais internacionais. Em 2005, o Banco observou:

[O] programa do CAS teve… dificuldades para atingir suas metas. Isso surgiu, em parte, da falta de compromisso governamental, durante os anos 2000-2003, com aspectos da agenda de reformas apresentadas em 1998. Também se deve a discordâncias no seio da sociedade guatemalteca sobre como prosseguir. Por exemplo, o projeto do Fontierras foi afetado pela incongruência do modelo adotado pelo governo; os com- ponentes do financiamento rural e dos recursos naturais do programa do CAS prati- camente evaporaram (Banco Mundial, 2005, p. 37).

7. “Escavando” para a reestruturação territorial

Não desencorajado por sua inépcia em obter o acordo da classe política guatemalteca acerca das condições ambientais de produção e extração nos Altiplanos Ocidentais, o BIRD se voltou para o comércio internacional, apresentando o Primeiro Empréstimo de Política de Desenvolvimento com Base em Crescimento Amplo (US$ 100 milhões) em junho de 2005. O empréstimo visa promover o comércio e investimentos orientados pelo DR-CAFTA. O BIRD reconheceu que o projeto não seria implementado facil- mente. Entre os riscos, estavam o “congestionamento político” do Congresso guatemalteco e “tensões sociais” relacionadas à realidade de pós-conflito do país, espe- cialmente em áreas controversas como a continuação da liberalização comercial, a pro- moção de maior participação privada na infra-estrutura e questões referentes a direitos de propriedade e à terra. Para lidar com os resultados “mais lentos que previstos” no crescimento econômico da Guatemala, entre outras coisas o Banco Mundial sugeriu o fortalecimento do clima tanto para investimento doméstico como estrangeiro, mo-

63 dernizando os direitos de propriedade e atacando gargalos de infra-estrutura para o crescimento (Banco Mundial, 2005, p. 8). Não foi surpresa que o BIRD considerasse como “fundamental para a agenda de crescimento da Guatemala – assim como para a obtenção de um aumento na solidariedade social e um melhor clima para negócios – a questão de assegurar direitos à terra” (ibid, p. 11). Contudo, direitos seguros à terra são primordialmente importantes em áreas com potencial para extração privada para mercados globais e do DR-CAFTA. Como parceiro territorial do empréstimo de ênfase nacional, em março de 2006 o BIRD introduziu também o Projeto de Apoio a um Programa de Desenvolvimento Econômico Rural (US$ 60 milhões), partilhado com o Banco Interamericano de Desenvolvimento. O projeto está centrado na infra-estrutura rural, em facilidades de Internet de banda larga, em planos de gestão territorial e investimentos estratégicos nos Altiplanos Ocidentais.18 Especificamente, introduz o Modelo de Gestão Territorial (TMM). Espera-se que o TMM “influencie a política nacional e políticas setoriais, bem como prioridades de investimento público… por meio de um sistema integrado e descen- tralizado de informação territorial estratégico…”. Também se espera que “tenha um impacto positivo no aumento da competitividade das atividades produtivas de base agropecuária que, por sua vez, causarão impacto na expansão empresarial e no cres- cimento das exportações, ajudando desse modo a explorar os benefícios potenciais para a Guatemala trazidos pelo Acordo de Livre Comércio da América Central, re- centemente ratificado (CAFTA)” (Banco Mundial, 2006, p. 4). O documento de Avaliação do Banco Mundial, referente ao projeto, soa um pouco como uma operação militar com “objetivos territoriais”, estradas e a pro- dução de “informação estratégica” no âmbito da campanha estrutural do DR- CAFTA. O BIRD não teve nenhum problema para obter a aprovação governa- mental para um empréstimo em que as oportunidades de mercado não implicavam em uma redistribuição de patrimônio. Não é difícil imaginar que setores na socie- dade guatemalteca estão mais bem posicionados para tirar vantagens do plano do projeto para a capitalização dos Altiplanos.

8. Golpe de ouro no hiperespaço

Enquanto isso, por trás das agendas sociais e ambientais de (des)regulamen- tação, ocultas aos olhos de militantes do desenvolvimento e defensores da refor-

64 ma agrária, a única coisa com que o BIRD e o governo de Berger podiam concor- dar cabalmente era abrir os Altiplanos à mineração. De acordo com Solano (2005), antes de 2005, o governo da Guatemala concedeu 115 novas licenças para com- panhias mineradoras estrangeiras, elevando o total a mais de 200 operações po- tenciais, nove décimos dos quais se situavam em territórios indígenas do Altiplano (veja mapa).19 Em junho de 2004, a IFC estendeu um empréstimo de US$ 45 milhões de custeio à Glamis Gold Ltd., de propriedade canadense – quarto maior produtor de ouro do Canadá – para começar as operações no Departamento de San Marcos na mina de Marlin. O projeto não significou nenhum endividamento para o go- verno e a IFC ofereceu à Glamis e ao governo as garantias de que, com o financia- mento e a assistência do BIRD, a Marlin evitaria o conflito social e a degradação ambiental freqüentemente associados à mineração. A IFC e a família de Berger estavam particularmente interessadas em abrir a indústria mineradora da Guatemala para novos investimentos.20 O Banco Mundial foi publicamente otimista sobre as virtudes de seu “Setor de Mineração Ambiental e Socialmente Responsável”:

O setor apresenta um grande potencial para beneficiar a Guatemala se o desenvolvi- mento for apoiado e implementado corretamente. Nesse contexto, a IFC esteve asses- sorando o projeto em várias frentes, inclusive nos aspectos ambientais e sociais, e no desenvolvimento das comunidades circunvizinhas (sic). Por exemplo, o Departamento de Cidadania Corporativa da IFC subsidiou uma iniciativa de ajuda técnica para pro- piciar treinamento a comunidades indígenas em redor da mina, visando criar e admi- nistrar viveiros florestais para o reflorestamento, bem como ajudando a identificar ou- tros mercados que esses viveiros possam abastecer (Banco Mundial, 2005, p. 38).

O Banco Mundial admite que reativar a mineração nos Altiplanos Ocidentais não era algo simples. Também viu uma clara ligação entre problemas fundiários e o desenvolvimento da mineração:

O desenvolvimento [da mineração] também foi um tema bastante controverso e deu origem a grandes manifestações de grupos indígenas e ONGs locais e estrangeiras contra a mineração, em particular, e o governo de modo geral. De certo modo, a mineração se tornou um ponto de afloramento de queixas há muito represadas con- tra o estado e o setor privado com respeito a abusos de direitos humanos, discrimina- ção e exploração econômica no passado. Isso também é flagrante em uma série de

65 conflitos pela terra entre camponeses e grupos latifundiários que, em alguns casos, se tornaram violentos (Banco Mundial, 2005, p. 57).

Abraçando zelosamente a sugestão do Banco Mundial de que o país “moder- nize” seu setor de mineração através de investimento estrangeiro, o governo da Guatemala já havia reduzido as exigências de royalties de 6% para 1% e impostos sobre os lucros de 58% para 31%. Justamente para a Glamis Gold Ltd., o gover- no de Berger ofereceu uma isenção fiscal especial de quatro anos, programada para coincidir com o período do pico de produção da mina (Solano, 2005).21 Poderosa capitânia do setor minerador da Guatemala, a mina de Marlin rapi- damente se tornou a operação mais lucrativa da Glamis. Espera-se que a mina produza 2,1 a 2,5 milhões de onças de ouro e 29,2 milhões de onças de prata durante um período de 11 anos.22 Com respeito à controvérsia internacional rela- tiva à mina, a IFC insiste em que “[esse] projeto… pode ser operado de modo responsável para ajudar a reduzir a pobreza na região e melhorar a vida das pessoas. Solicitaríamos a qualquer pessoa preocupada com as demandas do povo guatemalteco dessa região empobrecida que considere objetivamente os fatos e a realidade da situação.”23 Certa vez estive em uma reunião com a IFC e vários representantes de aldeias de San Marcos que tinham vindo a Washington D.C. para exigir que o Banco retirasse seu apoio à mina de Marlin. O gerente sênior da divisão de investimento em mineração da IFC enfrentou diretamente os aldeões: “Vocês querem uma mina, ou vocês querem permanecer pobres para o resto de suas vidas?” Essa importante pergunta revelou não somente a maneira muito limitada como a IFC encara sua missão de desenvolvimento,24 mas também desmascarou inad- vertidamente a conveniente ficção territorial usada pelo Banco Mundial, quando invoca o desenvolvimento local para justificar a extração maciça de riqueza de países pobres. Nos cálculos das próprias projeções da companhia, nos próximos 11 anos, a Glamis Gold Ltd. provavelmente sairá com mais de US$ 1 bilhão em lucros líquidos de apenas uma mina. O governo guatemalteco terá permissão para reter cerca de US$ 273 milhões, dos quais serão investidos US$ 6,6 milhões nas comu- nidades próximas ao local da mina.25 O Banco Mundial investiu cerca de US$ 228,2 milhões em fundos públicos para a reestruturação territorial dos Altiplanos Ocidentais. Se apenas metade dos ganhos com a mina de Marlin fosse aplicada em programas de desenvolvimento naquela mesma área geográfica, ainda assim totalizaria mais de duas vezes a quan- tia do investimento público do Banco Mundial. Considerando-se que, na realida-

66 de, os investimentos do BIRD são empréstimos, a taxas de mercado, ao governo da Guatemala, a nefasta ironia do cálculo de desenvolvimento é que os cidadãos da Guatemala estão pagando ao Banco Mundial pelo privilégio de tornar muito ricas companhias estrangeiras como a Glamis Gold Ltd. Esses níveis astronômicos de extração de riqueza seriam impossíveis sem elites nacionais cúmplices e as condições estruturais de viabilização providenciadas pelo Banco Mundial. Quando se extrapola o padrão extrativista da área de mineração da Glamis para a escala territorial das 200 ou mais concessões de mineração nos Altiplanos Ocidentais, fica clara a função do hiperespaço de desenvolvimento do Banco Mundial: a pilhagem dos recursos remanescentes em terras indígenas da Guatemala.26

Conclusão: reforma agrária e luta pelo território

O futuro dos povos – tanto indígenas quanto camponeses – da Guatemala está infalivelmente amarrado aos Altiplanos Ocidentais. A titulação da terra e o desenvolvimento de mercados imobiliários é apenas uma parte de um pacote de projetos empurrado pelo Banco Mundial para a reestruturação territorial regressi- va que favorece investimentos e indústrias extrativas estrangeiras, em detrimento da sobrevivência rural indígena. Demandas atuais pela reforma agrária redistributiva enfocam corretamente a importância da terra como fator de produção, recurso social e necessidade cultu- ral para comunidades camponesas indígenas. Essa abordagem reconhece que a posse da terra sempre fez parte de questões agrárias mais amplas que tratam da distri- buição de patrimônios e do controle sobre a produção e a acumulação/distribui- ção da riqueza. Em decorrência, o debate referente à importância da redistribuição da terra como fator de produção não pode ignorar as ameaças à condição da terra como propriedade. A falta de área suficiente de terra e de florestas realmente constitui um sério problema para o sustento de camponeses indígenas. Mas a colonização da terra indígena existente por indústrias extrativas ameaça, da mesma maneira, os camponeses com e sem-terra. Nesse sentido, na Guatemala, a mineração deve ser vista como uma ameaça agrária de base ampla, não apenas ao sustento dos campo- neses, mas à existência indígena nos Altiplanos. Essa ameaça não decorre simples- mente da área de mineração – a pegada de incidentes sociais e ambientais secun- dários associados ao ato físico da mineração –, ela é inerente à transformação política

67 e econômica do território rural, associada ao hiperespaço de desenvolvimento reestruturado criado pelo Banco Mundial. O verdadeiro hiperespaço que permite que, primeiramente, atividades como a mineração predatória de ouro deitem raízes. Não obstante seu discurso de desenvolvimento humanista, o Banco Mundial não trata a relação entre terra e recursos do ponto de vista da sobrevivência indí- gena, mas da lógica do capital e da lógica de território. Denunciando a reforma agrária de mercado do Banco, movimentos camponeses reconhecem corretamen- te a lógica do capital embutida nos projetos. No entanto, ao enfocar somente a reforma agrária e a agricultura, esses argumentos não atingem a lógica de territó- rio pela qual o Banco fundamenta seus projetos para o capital. Isso permite ao Banco Mundial reestruturar agressivamente o território, de um lado – até mesmo enquanto faz avançar projetos para a reforma agrária –, e a gestão ambiental ou o desenvolvimento agrícola, de outro. A realidade política da reestruturação territorial propõe a necessidade de fundamentar tanto as lutas pelo sustento como os movi- mentos pela reforma agrária redistributiva em estratégias de resistência territorial. Isso implica não apenas a resistência às formas pelas quais o capital, através do Banco Mundial, redesenha, reforma e reposiciona as comunidades e o sustento indígena, em função de suas próprias lógicas. Requer também que as comunida- des indígenas implementem suas próprias ações diretas e antecipem suas propos- tas para a reestruturação territorial “de baixo para cima”. Lutas por sustento que implementam estratégias de agricultura sustentável na mão dos camponeses terão pouca utilidade se a terra, a água e agricultores forem perdidos para interesses de mineração. Lutas pela reforma agrária poderão ter su- cesso se agregarem os camponeses sem-terra contra a reforma agrária de mercado, mas sem a participação de pequenos proprietários e as comunidades indígenas não é provável que façam pender a balança em favor de reformas redistributivas. Alicerçar a reforma agrária no seio da resistência territorial permite a camponeses sem e com terra convergir sobre plataformas comuns para o sustento e a sobrevi- vência. Também cria uma oportunidade de conectar lutas concretas por terra e sustento com lutas abstratas – como a resistência ao DR-CAFTA.27 Como em muitas áreas da América Latina, fundamentar lutas pela terra em lutas territoriais também conecta a terra, o sustento e a reestruturação político-econômica ao lugar. Para a maioria dos povos indígenas, o lugar é tão fundamental quanto o idioma. Como a defesa do lugar constitui, na quinta-essência, uma questão de território, o lugar nunca está longe da superfície das demandas indígenas e camponesas por terra. Pela recíproca, demandas por terra jamais deveriam estar longe da defesa do lugar.

68 Durante a próxima década, as lutas agrárias por terra nos Altiplanos Ocidentais da Guatemala podem muito bem ser eclipsadas por movimentos indígenas contra a extração mineral. Ambas são essencialmente lutas por sustento e sobrevivência cul- tural. A resistência indígena à reestruturação territorial não somente é crucial para enfrentar as ameaças do capital à sobrevivência indígena, é necessária para embarcar na ação pró-ativa da “reestruturação de baixo para cima” que reafirma o espaço e lugar indígenas, não obstante a reestruturação territorial “de cima para baixo”. Da mesma maneira, como uma compreensão da reestruturação territorial ins- trui a resistência territorial, atos de resistência territorial abrem espaços e lugares para a soberania territorial, a base da sobrevivência indígena e da melhoria do sustento camponês.

Notas

1 “Nossa Missão: Combater a pobreza com paixão e profissionalismo para resultados duradouros. Ajudar pessoas a ajudarem-se a si mesmas e a seu meio-ambiente, oferecendo recursos, compartilhando conheci- mento, capacitando e construindo parcerias nos setores público e privado.” http://web.worldbank.org 2 “O projeto é considerado, pela indústria de mineração, um teste para o ambiente de investimentos mineiros guatemalteco. Seu sucesso comercial deve encorajar novos investimentos no país e no setor” (IFC, 2004, p. 4). 3 Nesta análise, o “contexto estrutural” se refere às condições político-econômicas (instituições, leis, políti- cas, subvenções) que determinam natureza, ritmo, extensão e direção da produção e apropriação de exce- dentes da terra, bem como a alocação desses excedentes. 4 No caso da mina Marlin, por exemplo, os custos operacionais totais da Glamis são apenas US$ 121/onça (IFC, 2004). Com base nos preços médios do ouro atualmente vigentes no mundo (cerca de US$ 650/ onça), isso assegura à companhia uma taxa de retorno do investimento de 437% (!). 5 Diante da missão do Banco Mundial, poderíamos esperar que este ajudasse governos fracos a negociar contra- tos fortes e distributivos que contribuam para a reconstrução do estado e o alívio da pobreza. Isso raramente acontece, devido à circunstância de que, historicamente, a missão do BIRD é secundária em relação à sua função: após duas guerras mundiais (diante da industrialização meteórica da União Soviética), as potências Ocidentais criaram duas instituições financeiras globais multilaterais, a fim de reconstruir a Europa e adminis- trar as crises cíclicas do capital para a consolidação dos países capitalistas. O FMI foi encarregado de manter as moedas estáveis e o Banco Mundial de criar condições favoráveis para investimentos, mediante a reconstrução da infra-estrutura na Europa Ocidental (ambos consolidaram o poder dos Estados Unidos e do dólar norte- americano). O Banco Mundial, particularmente, se tornou um foro de negociação para as potências capitalis- tas predominantes. Nações-membro gozam de direitos de voto proporcionais à sua participação de capital real e “de convencimento”. Na diretoria, o Diretor para cada país é designado pelo ministro das Finanças ou do Tesouro de seu país. Embora a “missão” do BM seja aliviar a pobreza, sua “função” é administrar as tensões, crises e contradições do capital entre potências ocidentais, disponibilizando um foro de negociação para o G-8. Os diretores do Banco Mundial negociam projetos e políticas que facilitarão o respectivo investimento e as opor- tunidades de contratos no mundo em desenvolvimento. Isso também requer que sejam mitigados os inciden- tes secundários sociais e ambientais que resultam desses investimentos, a fim de assegurar condições estáveis

69 contínuas para o investimento e a acumulação de capital. O desenvolvimento – missão do BIRD – evoluiu com o passar do tempo. A missão original do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD) foi a reconstrução da Europa Ocidental. Ela foi substituída pelo Plano Marshall, obrigando o mesmo a dirigir o olhar para o Terceiro Mundo. Depois que várias décadas de desenvolvimento resultassem na intratável dívida do Terceiro Mundo, nos SAPs e no esvaziamento do Estado, o BIRD assumiu, cada vez mais funções de mitigação social, política e econômica em países que fracassaram em seu desenvolvimento. Uma das tarefas atuais é criar condições favoráveis para descarregar o que agora os banqueiros citam abertamente como “liquidez excessiva”. As contradições do capital obviamente produzem vencedores e perdedores, e os países do G-8 (do- nos de fato) usam o mesmo para assegurar que os riscos substanciais e custos da ampliação dos investimentos sejam suportados pelos tomadores de empréstimos e pagadores de impostos – não pelos emprestadores. A rei- terada ênfase do BIRD no setor privado, na infra-estrutura e nas indústrias extrativas reflete uma estratégia de acumulação pela expropriação projetada, abrindo novas áreas para o investimento privado, particularmente em investimentos de alto risco e de alto retorno (como a infra-estrutura), e em investimentos de retorno rápido (como indústrias extrativas). Ademais, os novos parâmetros globais do BIRD para a “integração regional”, nos quais pontos novos e antigos de produção e geração de energia são reinseridos em extensas redes de estradas, vias fluviais e portos marítimos, refletem a “lógica do capital” e a “lógica de território”, apresentadas por Harvey (2003) para explicar as estratégias do imperialismo para solucionar as crises cíclicas de produção e consumo. A estratégia do BIRD segue na esteira do enfraquecimento dos países e do desmantelamento do consenso keynesiano iniciado com os programas de ajuste estrutural dos anos oitenta. Os consensos de Washington e pós-Washing- ton, dos anos noventa até o presente, não apenas tiveram sucesso em expropriar as nações em desenvolvimento de suas indústrias e serviços públicos, mas também desnudaram o Estado de sua capacidade reguladora, abrin- do, pois, caminho para que o capital internacional privado (e predatório) comprasse recursos naturais por ata- cado. Depois da primeira investida sobre indústrias e serviços nacionais, o capital internacional se voltou para o setor primário e as indústrias extrativas como canais adicionais para o capital. 6 O PPP – Plan Puebla-Panamá – é uma iniciativa de integração regional entre os países da América Cen- tral e os nove estados a sudeste do México. O PPP foi lançado no México em 2001. O DR-CAFTA – Acordo de Livre Comércio entre América Central, República Dominicana e Estados Unidos – foi assina- do nos EUA no dia 5 de agosto de 2004. 7 De acordo como informações do Grupo Banco Mundial, a mina Marlin da Glamis consumirá 577 mil m3 de água por ano (IFC, 2004). 8 A Mina Marlin ocupa 7 km2 de terra, consome 15,3 MW de eletricidade e 577 mil m3/ano de água (IFC, 2004). 9 População rural: 61%; indígena: 39%; pobre: 74%; extremamente pobre: 24%; analfabeta: 43%; povos indígenas em áreas rurais: 80% (52% da população). 10 O CAS é um documento com a matriz geral para operações do BIRD em escala nacional. Às vezes, o CAS é discutido no parlamento ou congresso do país tomador do empréstimo. Ocasionalmente, são con- vidadas organizações da sociedade civil para que emitam parecer sobre o CAS. Porém, o importante é que o CAS é formulado tipicamente depois que já houve acordo sobre os “empréstimos condicionais” (em- préstimos condicionados a medidas de ajuste estrutural) entre o BIRD e o Executivo, isentando as inter- venções estruturais primárias do BIRD ao escrutínio no congresso ou da discussão pública. 11 “…preparar setores selecionados de infra-estrutura – portos, energia elétrica, telecomunicações, rodovias e o serviço postal – para criar concessões e privatizar...”. Documento de Avaliação de Projeto, Participa- ção Privada em Empréstimo de Ajuda Técnica para a Infra-estrutura, 2 de abril de 1997. 12 Embora o CAS e os Documentos de Avaliação de Projeto do BIRD derramem copiosas quantias de tinta acer- ca dos potenciais benefícios para os pobres nesse aspecto, raramente medem os impactos reais de suas interven- ções com projetos sobre a pobreza, evitando ter que informar se apresentam ou não os resultados planejados. Funcionários tentam ofuscar a crítica, referindo-se à impossibilidade de um “contraditório.” Em outras pala-

70 vras, uma vez que lá não existe nenhum “piloto para controle” do desenvolvimento, no qual todas as variáveis podem ser mantidas constantes, é impossível saber se a melhora (ou deterioração) econômica, em determinado país, se deve a projetos do BIRD ou a fatores exógenos. A menos que grandes protestos públicos ou eventos incontestáveis sugiram o contrário, o Banco simplesmente presume que seus projetos tiveram êxito. 13 Até mesmo o Projeto de Reforma do Judiciário nacional anunciou suas primeiras atividades nos Altiplanos: “Trabalho no piloto de justiça móvel do tribunal de paz está ocorrendo na Cidade de Guatemala e Quetzaltenango.... O centro judiciário de Quetzaltenango foi inaugurado em outubro de 2004.” (Banco Mundial, SOPE, p. 1182). O Projeto de Competitividade também informou apoiar “o IFC no setor da mineração…”, uma referência oblíqua à mina de Marlin, em San Marcos. 14 De acordo com o Ministério de Agricultura, na Guatemala, 0,15% dos agricultores ocupam 70% da terra agricultável, enquanto outros 96% ocupam apenas 20% da terra agricultável; 90% da população rural vive abaixo da linha de pobreza; 500 mil famílias vivem abaixo dos níveis de subsistência (Saldivar & Wittman, 2005). De 10,6 milhões de hectares na Guatemala, somente 2,8 milhões são cultivados e mais de 2,4 mi- lhões são subutilizados. Cerca de 5,4 milhões de hectares (mais da metade do país) precisam ser distribuídos para agricultores sem-terra e pequenos proprietários para que cada um tenha pelo menos 7 hectares para sua subsistência. No entanto, a reforma agrária foi bloqueada com sucesso pelas elites rurais guatemaltecas des- de que a reforma agrária do Presidente Jacobo Arbenz, de 1954, foi desfeita por um golpe militar apoiado pela CIA. Trinta anos depois, em face de uma crescente insurreição indígena e camponesa, a USAID com- prou 28 fazendas para formar um banco fundiário, distribuindo 1.400 propriedades durante um período de seis anos (Saldivar & Wittman, 2005). De acordo com o Banco Mundial, esforços antigos de reforma agrá- ria de mercado – conduzida pela INTA/FONTIERRAS (1994-1996) – foi relativamente malsucedida, de- vido à relutância por parte dos grandes proprietários de terras, à especulação fundiária, à falta de poupança por parte do campesinato e à ambigüidade dos direitos de propriedade. 15 “O projeto consiste de três componentes. Primeiro, o cadastro e a regularização fundiária apoiarão o mapeamento do cadastro de Petén, a adjudicação no campo, conforme a demanda e processamento de dados de áreas sujeitas à regularização. O resultado final é o estabelecimento de um cadastro das parcelas que pode ser integrado com o sistema de registro. Segundo, o componente de registro fundiário apoiará a abertura de um cartório de registro em Petén e a gestão de modernização dos registros.” Sumário do Projeto do Banco Mundial, http://web.worldbank.org 16 Sumário do Projeto, 7 de maio de 2003, http://web.worldbank.org 17 EIA MIRNA: Os dados do INAB indicam que, para o Planalto Ocidental, existem menos de 1.047,2 km2 de bosques comunais municipais, representando cerca de 50,9% do total das florestas nacionais comunais. Simultaneamente esses bosques, cujo número supera 90 florestas, representam 14,6% do total da cobertura florestal relatada pelo INAB (1999) para o Planalto Ocidental. A distribuição percentual por departamento do Planalto Ocidental é a seguinte: Totonicapán 7,3%; Sololá 9,6%; Quiche 29,9%; Chimaltenango 3,0%; Huehuetenango 32,2%; Quetzaltenango 17,0% e San Marcos 1,0%. Leiva (2000) analisou algumas características silviculturais de 115 bosques do Planalto Ocidental e constatou que 56 deles têm extensões que superam os 100 ha. Elias (1995) realizou um inventário de mais de 95 florestas comunais municipais e constatou que, pelo menos, 17 deles superam os 500 hectares. 18 San Marcos, Huehuetenango, Solalá, Quetzaltenango, Totonicapán, Chimaltenango, Sacatepequez e Alta Verapaz.

71 19

20 Veja Solano (2005) acerca das ligações da família de Berger com interesses de mineração na Guatemala. 21 Curvando-se à pressão internacional, em julho de 2006, a Glamis Gold Ltd. anunciou que renunciaria à isenção do imposto e começaria imediatamente a pagar impostos sobre seus super-lucros. 22 “As reservas totais de ouro, inclusive as reservas no plano de mineração, são de 5,6 milhões de onças. Recente- mente [a Glamis] descobriu outro depósito de alto grau na área circunvizinha da Marlin” (IFC, 2004, p. 8). 23 http://web.worldbank.org/ 24 “Nossa missão é promover o investimento sustentável do setor privado em países em desenvolvimento, ajudando a reduzir a pobreza e melhorar a vida das pessoas.” http://www.ifc.org/ifcext/about.nsf/Content/ Mission 25 A Glamis alega já ter investido US$ 1,3 milhões em assistência social em San Miguel Ixtahuacán, a co- munidade mais próxima do local da mina. Também prometeu pagar anualmente às municipalidades de San Miguel Ixtahuacán e Sipacapa cerca de US$ 350 mil em royalties. Essas verbas serão destinadas ao desenvolvimento municipal. Enquanto isso, a Glamis e a IFC contrataram o Citizens Development Corps (CDC), com sede em Washington, para estabelecer a Fundação Serra Madre (FSM), a fim de levar a cabo projetos de desenvolvimento comunitário. Os residentes de Sipacapa já têm um plano de desenvolvimen- to municipal integrado desenvolvido por suas próprias comunidades, que nunca foram consideradas. Além do mais, foi-lhes negado acesso ao plano de desenvolvimento e às informações financeiras da FSM. Estão preocupados de que verão pouco desenvolvimento real ou sustentável por parte de uma instituição basi- camente controlada pela companhia mineradora. A IFC alega que “a extração responsável de recursos minerais é uma das poucas maneira pelas quais povos indígenas locais podem esperar quebrar o ciclo da pobreza.” Em reuniões em Washington D.C., com representantes de aldeias, a IFC confrontou os aldeões com um cenário de “ou-ou”: ou aceitam a mina, ou continuarão vivendo na pobreza. O representante de Sipacapa respondeu que “há muitos caminhos para o desenvolvimento. Em qualquer empreendimento há vencedores e perdedores, custos e benefícios. Precisamos saber a história inteira para tomar boas deci-

72 sões.” Nem a IFC nem a Glamis Gold Ltd. jamais apresentaram aos aldeões uma prestação de contas dos custos sociais, econômicos ou ambientais da mina. http://www.bicusa.org/bicusa/issues/latin_america/ 2019.php. Para ilustrar as diferenças na distribuição de benefícios de empréstimos do Banco Mundial, é significativo que os cinco maiores executivos da Glamis receberam nada menos que US$ 19 milhões so- mente em salários durante esse período (não contando suas opções acionárias – agora em US$ 1,4 milhão – e os bônus ou aumentos). Isso é três vezes mais que a quantia que as comunidades locais obterão da Mina de Marlin, durante esse mesmo período. 26 Não é preciso ser um ecólogo do Banco Mundial para saber que os Altiplanos Ocidentais estão em sérias dificuldades. Basta um olhar do topo de um monte em San Marcos para constatar que os níveis de desmatamento, erosão do solo, densidade da população e subemprego alcançaram níveis críticos. Um novo grande furacão ou terremoto – ou uma crise da moeda nacional – poderia facilmente precipitar a região no colapso socioeconômico e ambiental. Uma abordagem séria do desenvolvimento teria realizado extensos estudos, diagnósticos e avaliações ambientais estratégicas (SEAs) nos Altiplanos a fim de deter- minar os níveis de ameaças socioeconômicas e ambientais, oportunidades, limitações, capacidades e re- cursos disponíveis (inclusive minerais); e se envolveria em uma profunda análise participativa e ampla para identificar problemas, causas e possíveis soluções. Então, seriam formulados planos de desenvolvi- mento municipais e territoriais, indicando como os recursos locais de terra, mão-de-obra e capital pode- riam ser organizados para eliminar pobreza e promover o desenvolvimento sustentável. Para tanto, não há necessidade de nenhuma grande ciência. Os métodos e ferramentas para esse trabalho são numerosos e experimentados, até mesmo no Banco Mundial. Com base nesse tipo de análise e planejamento, as comunidades, regiões e o governo nacional debateriam e determinariam que tipo de reforma agrária é apropriado, seu nível de redistribuição, e a planejariam e executariam dentro do contexto de reformas agrárias mais amplas e reestruturação territorial a partir de baixo. Não é irracional pensar que a minera- ção poderia desempenhar um papel na geração da riqueza necessária para financiar esse tipo de reestruturação distributiva. A mina de Marlin evidencia o fato de que há, nos Altiplanos Ocidentais, ri- queza mineral mais que suficiente para financiar o desenvolvimento de longo prazo e sustentável da re- gião, se for eqüitativamente distribuída. Isso demandaria um verdadeiro trabalho de desenvolvimento e uma instituição de desenvolvimento capaz de criar as condições estruturais para a implementação. Infe- lizmente, o Banco Mundial, a única instituição com os recursos humanos e financeiros necessários para essa exaustiva tarefa, carece de vontade política para levar a cabo esse tipo de reestruturação distributiva. 27 “A maioria dos camponeses não luta por direitos à água, à terra, ou por noções abstratas de sustentabilidade, justiça ou participação no desenvolvimento… lutam pela comida, água, terra, florestas, por um preço justo para seus produtos. Lutam por bom atendimento médico, por habitações decentes e por educação para os filhos. Em suma, lutam por seu sustento, não por causas” (Holt-Giménez, 2006, p. 182).

73 Bibliografia

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74 PARTE II

EXPERIÊNCIAS NA AMÉRICA LATINA, ÁFRICA E ÁSIA

75

APLICAÇÃO DAS POLÍTICAS AGRÁRIAS DO BANCO MUNDIAL NA GUATEMALA: 1996 - 20051

SUSANA GAUSTER

Guatemala é um dos países que enfrentam maior desigualdade na distribui- ção da terra no mundo. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), o coeficiente Gini na distribuição da terra é 0,84, muito próximo a 1 que, como sabemos, significa total iniqüidade. Segundo dados do Censo Agropecuário de 2003, esta iniqüidade se dá porque 92.06% das e dos pequenos produtores culti- vam apenas 21.86% da superfície, enquanto 1.86% dos produtores comerciais ocupam 56.59% da superfície.

Tabela 1 – Estrutura da propriedade da terra (2003) Número de produtores % de produtores Área(Mz) % da terra < 1 manzana (Mz)2 (abaixo da subsistência) 375.708 45,23% 172.412,75 3,24% 1-10 Mz (subsistência) 388.976 46,83% 989.790,71 18,62% 10-64 Mz (1 cab) (excedentários) 50.528 6,08% 1.145,318 21,55% 64 e maiores (comerciais) 15.472 1,86% 3.008.316,31 56,59% Total 830.684 100% 5.315.838,37 100% Fonte: elaboração própria, com base em dados do Censo Agropecuário.

Estes dados indicam que, depois da Revolução de Outubro (1944 – 1954), as políticas de acesso à terra na Guatemala feitas pelos diferentes governos – primei- ro com uma alta participação estatal e depois sob o marco do ajuste estrutural, com o mercado como regulador principal – não têm resultado em uma mudança da situação de acesso e distribuição da terra. Ao contrário, um coeficiente Gini que se aproxima cada vez mais da iniqüidade total demonstra que a exclusão está aumentando. A política de colonização dos anos de 1960 e 1970 se traduziu unicamente na outorga de terras para reproduzir o modelo latifúndio-minifúndio, sem afetar a estrutura agrária vigente. Não havia uma visão de reforma agrária integral; ao contrário, desnaturalizou-se o modelo devido à corrupção, ao roubo e ao mono- pólio de terras. As principais críticas ao modelo reformista são de que não provo- cou uma mudança substancial na estrutura agrária, mantendo os níveis de con- centração fundiária. Isso provocou um dualismo entre a produção agro-exporta- dora e a produção de consumo interno, reproduzindo um setor moderno e de alta produtividade para a exportação e outro setor tradicional camponês e pequeno produtor, marcado pela pobreza. Provocou também tensões e conflitos seculares, com altos níveis de instabilidade, violência e atraso social e político. Já na década de 1980, produziu-se uma mudança radical em função do ajuste estrutural e setorial, quando o mercado passou a ser a “solução” para a problemática agrária. Este novo modelo desmantelou o Setor Público Agropecuário (SPA), liberali- zou o comércio, reduzindo as tarifas de produtos alimentícios básicos, promoven- do um enfoque empresarial e a compra de terras via mercado. Para compensar os “perdedores” por essas políticas, foram implementados fundos sociais. Os Acordos de Paz que, em 1996, puseram fim a um conflito interno de 36 anos, assumiram o enfoque de acesso à terra do Banco Mundial (BIRD) – o mercado de terras e particularmente a “reforma agrária assistida pelo mercado” – como uma solu- ção para o problema agrário, uma das principais causas do conflito interno. Em outras palavras, a mesma política de terras implantada em outros países do mundo como novo paradigma do Banco Mundial, na Guatemala foi implantada em nome da paz. Os Acordos de Paz estabeleceram, então, que o mercado funciona como meca- nismo central para promover a transformação da propriedade e para incrementar a eficiência e a produtividade. Propostas para fomentar o mercado de terras incluíam o fortalecimento dos direitos de propriedade (via regularização/titulação de terras, cadastro, registro de propriedade), a implementação de imposto territorial, o me- lhoramento de mecanismos financeiros para facilitar o acesso à terra (compra de terras), assistência técnica e investimentos econômico e social complementares. Esta lógica está em total consonância com a política de terra do Banco Mun- dial daquele momento.3 Uma particularidade da Guatemala é o compromisso estabelecido nos Acordos de Paz de recuperar terras fraudulentamente cedidas a militares e políticos na Franja Transversal do Norte (FTN) 4 e Petén na época das ditaduras militares. Depois de nove anos da assinatura dos Acordos de Paz e de mais de 20 anos de políticas de ajuste estrutural, o acesso, o uso e a propriedade da terra, assim como a pobreza rural continuam iguais, ou ainda piores que antes do conflito armado. Em 2003, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) apre- senta dados de uma pobreza rural de 72.2% e uma pobreza extrema rural de 31.1% na Guatemala.

78 1. A relevância da terra nas estratégias de desenvolvimento rural do Banco Mundial

Entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial há um consenso (pelo menos nos discursos) de que o acesso à terra representa um instrumento estratégico de fomento ao desenvolvimento de luta contra a pobre- za, especialmente para agricultores não-proprietários, minifundistas e campone- ses sem terra. A importância da terra no meio rural abarca diversos aspectos socioeconômicos, culturais, ambientais etc. Basicamente é um veículo para gerar bem-estar e renda de atividades agrícolas e não agrícolas, mas também é patrimônio cultural e ambiental das zonas rurais. Por outro lado, em termos gerais, há um consenso de que “políticas claras” em relação à terra podem ajudar a melhorar não apenas a eqüidade, senão tam- bém a eficiência, no sentido de que, em contextos de alta concentração fundiária (como é o caso latino-americano e, em particular, o guatemalteco), uma redistribuição é desejável não apenas em termos de eqüidade e redução da po- breza, mas também em termos de produtividade. Muitos estudos têm demons- trado que na agricultura não-mecanizada, unidades pequenas são mais eficien- tes que as grandes unidades. As propriedades operadas pelos proprietários são muito mais eficientes, pois não têm a necessidade de supervisar estreitamente os trabalhadores contratados. Sem dúvida, chamam a atenção várias tendências. Em primeiro lugar, no marco das estratégias de desenvolvimento rural do BID e BIRD, não se está dando ênfa- se ao acesso à terra. Há, no entanto, enfoque forte nas políticas que refletem os programas de ajuste estrutural: liberalização do comércio agrícola, integração com- pleta da agricultura aos tratados bi e multilaterais de comércio; apoio à biotecnologia; diversificação da agricultura; mudança da concepção de soberania por segurança alimentar, etc. Neste sentido, destaca-se a estratégia de desenvolvi- mento rural do Banco Mundial de 2003 que, em todo o documento, desvia o tema do acesso à terra, ou seja, desenvolve uma estratégia rural na qual o acesso e a distribuição da terra já não existem. Segundo, quando aborda o tema do acesso à terra diretamente, as medidas propostas não refletem a análise e o diagnóstico realizados pelas mesmas Institui- ções Financeiras Internacionais (IFIs), como, por exemplo, a contradição (em ter- mos sociais e produtivos) da existência de uma concentração muito alta na pro- priedade da terra. As políticas propostas, descritas nas seções seguintes, não têm nenhum efeito redistributivo.

79 Terceiro, o último estudo do Banco Mundial deu uma guinada forte no tema. Pela primeira vez se reduziu quase completamente a importância da terra, tanto como fator de redução de pobreza como de crescimento econômico (Banco, 2005). Em relação a este último ponto, a questão é se hoje as pequenas unidades são realmente mais produtivas que as grandes. Isso se deve particularmente a uma agricultura mais mecanizada (que já não depende apenas da terra e trabalho, mas também de capital e tecnologia); maiores riscos de preços, como resultado da aber- tura comercial e a eliminação de intervenções no preço (preços de garantia etc.); e porque geralmente as políticas governamentais, comerciais e o mercado em si ten- dem a favorecer os grandes proprietários. Em relação à terra como fator de redução da pobreza, argumenta-se que a ren- da total de uma família é mais sensível ao capital humano e à migração de seus membros do que à terra ou a outros ativos agrícolas. Fala-se de rendas diversificadas, entre as quais está a migração, que joga um papel importante, e a formação – capacitação para ascender a outros mercados laborais. Chega-se a tal grau de ne- gação da terra como fator de redução da pobreza, afirmando que investimentos e políticas que apóiem aos pequenos produtores e aumentem suas rendas agrícolas são contra-producentes, pois podem resultar em uma busca menor de fontes de rendas diversificadas. Afirma-se também que as “reformas agrárias assistidas pelo mercado” basicamente têm sido implementadas para reduzir a conflitividade agrária e, assim, gerar governabilidade, mas não para redistribuir a terra. Ainda assim, alguns pesquisadores do BIRD seguem enfatizando a impor- tância do acesso à terra, inclusive – diante dos resultados negativos da reforma agrária assistida pelo mercado – propondo uma “nova heterodoxia” nas políti- cas de acesso, que inclui a desapropriação (com compensação) em paralelo às políticas convencionais do BIRD (de mercado) (Childress & Deininger, 2006). Não obstante, o descrito nos parágrafos anteriores permite supor que a tendên- cia será o abandono do tema do acesso e da redistribuição da terra como fator de maior eqüidade social e o abandono da terra como elemento cultural, pro- movendo um conceito meramente economicista, refletido pelo enfoque único da “competitividade” agrícola em um mundo supostamente livre de barreiras comerciais (ainda que, na realidade, cheio delas nos países do Norte), onde cabe unicamente a produção e os produtores que respondem às exigências de uma eficiência questionável – já que as políticas nacionais (subsídios, incentivos fis- cais, apoio institucional etc) e internacionais (no marco das negociações comer- ciais) fomentam a produtividade e uma suposta “eficiência” de alguns produto- res, os grandes, às custas dos pequenos.

80 Nos documentos específicos sobre políticas de terra, o Banco Mundial e o BID estabelecem basicamente três formas de acesso à terra: a) a “reforma agrária assis- tida pelo mercado”, ou seja, acesso à terra através de um mercado de terras via compra-venda; b) o acesso via arrendamento e c) o acesso via fortalecimento dos direitos de propriedade e segurança jurídica, ou seja, a titulação e regularização de terras na posse, com seu respectivo marco jurídico e institucional (registro, cadas- tro) em paralelo a mecanismos judiciais e administrativos que possibilitem a reso- lução de conflitos sobre a propriedade da terra.

2. A “reforma agrária assistida pelo mercado”

Há uns 10 anos, o BIRD começou a incentivar a “reforma agrária assistida pelo mercado” (RAAM), com a suposição de que os mercados funcionam melhor e destinam recursos de uma maneira mais eficiente. Esse modelo foi concebido sob a visão pragmática que era politicamente viável, já que se baseia em uma trans- ferência voluntária de terras. O bom funcionamento do mercado de terras requer um contexto que garanta direitos de propriedade claramente definidos e legalmente reconhecidos, um marco institucional para garantir a segurança desses direitos, melhorar a integração de mercados de terra e outros mercados (particularmente os financeiros), assistência técnica, eliminação de incentivos setoriais (vantagens de impostos, de créditos, subsídios, etc), impostos territoriais, estabilidade macroeconômica, garantia de que o volume de terra ofertada seja maior do que a demanda, sistemas de infor- mação de mercado, infra-estrutura rural e serviços básicos. É evidente que, na prática, o BIRD e o BID têm dado maior prioridade aos aspectos jurídicos para fortalecer o mercado de terras, como o fortalecimento dos direitos de propriedade e a certeza jurídica. Têm desatendido a parte econômica (como os impostos da terra e a garantia de certo equilíbrio entre oferta e deman- da) e social (assistência técnica, infra-estrutura produtiva e social). Por isto, em termos gerais, o modelo tem se tornado caro, mais benéfico aos grandes proprie- tários vendedores que para os camponeses compradores, e sem impacto real na redistribuição da terra. Pouco a pouco, as mesmas Instituições Financeiras Internacionais estão reco- nhecendo que este modelo falhou. Enquanto o BID propõe avaliações de custo e beneficio para determinar o êxito ou fracasso deste modelo (BID, 2002), Klaus Deininger, funcionário do Banco Mundial, afirma que “(...) o potencial para uma

81 redistribuição territorial (...) através dos mercados de venda tende a ser muito limi- tado” (Deininger, 2003, resumo executivo, p. 30). O estudo mais recente do Banco Mundial se refere ao seu modelo estrela de dez anos nos seguintes termos: “(...) em alguns países (...) programas mais modestos de redistribuição de terra estão sendo implementados, muitas vezes relacionados com conflitos sociais (...), sem objetivos de eficiência ou redução da pobreza. Provavelmente não afetarão significativamente o coeficiente Gini sobre a distribuição da terra” (Banco, 2005, p. 248). É estranho saber que o objetivo da “reforma agrária assistida pelo mercado” nunca foi a redução da pobreza, quando o próprio uso do termo “reforma agrária” eviden- cia uma proposta ambiciosa e, em um determinado momento, as grandes expecta- tivas sobre o impacto que esta estratégia teria sobre a realidade agrária.

3. Características gerais da “reforma agrária assistida pelo mercado” na Guatemala

O programa principal para dar solução à problemática da terra na Guatemala é o Programa de Acesso à Terra do Fundo de Terras (FONTIERRAS). O FONTIERRAS é um ente autônomo e descentralizado, criado em 1997 no con- texto dos Acordos de Paz; goza de autonomia funcional, com personalidade jurí- dica, patrimônio e recursos próprios. A criação do FONTIERRAS teve muito apoio do Banco Mundial, ainda que o empréstimo concedido à Guatemala para apoiar as operações do Fundo tenha sido aprovado para o ano 2000. O Banco Mundial garantiu que este projeto “aju- daria a iniciativa do governo de implementar uma reforma agrária assistida pelo mercado” (Guatemala – Projeto Fundo de Terras, 1997, p. 3). Um detalhe inte- ressante é que o atual governo recusou o segundo empréstimo que o BIRD havia destinado para a RAAM na Guatemala.5 O FONTIERRAS, entre 1997 e 2003, teve duas funções principais: regulari- zação de terras e concessão de créditos para a compra de terras. A partir de 2004, implementou também um programa de arrendamento. As idéias principais do eixo “acesso à terra” do FONTIERRAS são iguais às da RAAM do Banco Mundial: as transferências de terra são voluntárias; baseiam-se na identificação de terra atrativa por parte dos grupos “beneficiários”, que têm a res- ponsabilidade de selecionar a terra e negociar seu preço; a agência estatal (FONTIERRAS) unicamente facilita a negociação entre compradores (campone- ses) e vendedores (grandes proprietários). O papel do FONTIERRAS é a assistên-

82 cia em determinar o preço correto da terra e dar subsídios aos grupos camponeses (máximo de 26 salários mínimos por família para abono do crédito – algo em torno de 60% –, capital de trabalho – algo em torno de 30% – e segurança alimentar – algo em torno de 10%). Também facilita a assistência técnica (mediante sub- contratação de serviço privado) para que os grupos sejam “competitivos”, através da capacitação para o desenvolvimento dos projetos produtivos e para a comercialização. Igual ao modelo que o BIRD propõe, o papel do FONTIERRAS é reduzido à concessão de créditos e a estabelecer mercados mais dinâmicos de terra, não é administrar o processo. Com isto, supõe-se reduzir ou eliminar ineficiências, di- minuir custos administrativos e corrupção. Segundo a lei do FONTIERRAS, a população meta são camponeses sem ter- ra ou com terra insuficiente, em condições de pobreza ou pobreza extrema. Esta lei estabelece ainda que o Conselho Diretor é o órgão de decisão superior do Fun- do de Terras. Este Conselho é composto pelos seguintes membros: Ministro da Agricultura, Pecuária e Alimentação (MAGA), Ministro das Finanças (MINFIN); Conselho Nacional de Desenvolvimento Agropecuário (CONADEA), Câmara do Agro da Guatemala, Organizações Indígenas da Guatemala (CNP-Terra), Organizações Camponesas da Guatemala (CNOC) e cooperativas. Apesar da diversidade na representação no Conselho Diretor e da importân- cia da autonomia do FONTIERRAS para evitar que as transações de terras se politizem, existem sérias dúvidas sobre o grau de autonomia real de que goza o Fundo, especialmente quando são o MAGA e o MINFIN que definem a política pública agrária e de desenvolvimento rural e controlam o orçamento do FONTIERRAS. Por outro lado, existe uma estratégia de cooptação aberta versus acordos com as representações dos setores “não-alinhados” do Conselho Diretor (basicamente o setor indígena e o camponês), a qual tem impedido que estes seto- res realmente cumpram o seu papel de subsidiar e fortalecer a fiscalização social do FONTIERRAS (denunciar as anomalias, etc).

4. Resultados da RAAM na Guatemala

4.1. Terra redistribuída, preços e dívida Foram redistribuídos 87.215,21 hectares entre 1998 e agosto de 2006. Isto é um resultado bastante modesto, considerando que, de acordo com o Censo Agropecuário de 2003, existem 3.797,027 hectares de terra produtiva na Guatemala. A RAAM atingiu unicamente algo como 2,3% desta terra.6

83 Os vendedores têm sido grandes proprietários que, por diversas razões, têm interesse em se desfazer de suas propriedades (falta de estabilidade política, ocu- pação, crise do café, dívidas, falta de rentabilidade da terra etc). Os compradores são grupos camponeses já formados (entre 20 e 500 famílias) ou grupos que se formaram apenas para terem acesso à terra. O custo desta redistribuição são dívidas altas que os grupos camponeses ad- quirem. A maioria das propriedades é excessivamente cara e pouco produtiva: “(...) às vezes as e os companheiros se entristecem ao terem acesso à terra e tomarem consciência da dívida que devem pagar”.7 Os altos preços são produtos da corrupção e da oferta reduzida de terra: “A questão na Guatemala é que as melhores terras estão concentradas em poucas mãos, e quem as tem não está disposto a vendê-las”.8 Devido à falta de políticas fiscais efetivas, como impostos sobre a propriedade da terra ou impostos sobre terra improdutiva, não existe nenhum incentivo para a venda de terra a preços que re- flitam seu potencial produtivo. À realidade de um mercado nacional de terras em que os preços comerciais ex- cedem em muito seu valor real, somam-se falhas importantes de transmissão e aces- so à informação, pois uma das razões que explicam porque não se deu melhor nego- ciação nos preços de compra da terra é porque muitos beneficiários pensaram que este ia ser subsidiado pelo FONTIERRAS e/ou não trabalharam com clareza o tema da dívida – tanto em relação ao total por família, como às amortizações ou paga- mentos que devem efetuar (Garoz & Gauster, 2002, p. 74). Em outras palavras, não existe preocupação suficiente por parte do FONTIERRAS em repassar esta in- formação com clareza. Ademais, muitas propriedades adquiridas carecem de condições adequadas para a produção, como solos de baixa qualidade e/ou desgastados, vias de acesso difíceis, topografia acidentada, disponibilidade de recursos hídricos ou flores- tais escassos ou esgotados, etc. De acordo com o encarregado do projeto do Banco Mundial no FONTIERRAS: “9 de cada 10 propriedades que foram compradas estavam abandonadas e/ou hipotecadas. As abandonadas requerem o dobro de investimentos para colocá-las para produzir, necessitando de investimentos cujo risco é elevado”. Nesta linha, é necessário assinalar que existem poucas terras de qualidade disponíveis no mercado nacional – pelas razões já expostas –, levando a que, em determinadas ocasiões, apesar da comprovada inviabilidade produtiva de uma propriedade, dêem-se pressões por parte dos grupos camponeses para ad- quiri-la.

84 4.2. Beneficiários e beneficiárias do programa O FONTIERRAS “beneficiou” a 17.822 famílias entre 1997 e julho de 2005. Em relação à seleção das e dos beneficiários, o segmento priorizado não é majoritariamente a população em situação de extrema pobreza. Isso pode ser re- sultado, por um lado, do fato de que se selecionam indivíduos com maior capaci- dade de pagamento e devolução dos créditos concedidos pelo FONTIERRAS. Por outro lado, a Lei do Fundo de Terras estabelece que as pessoas beneficiárias não devem ter rendas familiares superiores a mais de quatro salários mínimos, quando o habitual na produção de subsistência é que não se chegue nem a um salário mínimo por família. Outro fator de exclusão dos camponeses mais pobres é um processo altamen- te burocrático na solicitação do crédito. São necessários não apenas recursos eco- nômicos para custear viagens, fotocópias, autenticações de documentos etc, mas também experiência em gestão junto às instituições estatais. A seleção dos grupos beneficiários não tem sido sempre a mais adequada, como demonstram os altos índices de desistência. Segundo um representante do Con- selho Diretor do FONTIERRAS:

Em 30% das propriedades compradas existe uma alta taxa de desistência, entre ou- tras causas porque se elegem diretorias sem capacidades dirigentes, organizativas nem administrativas; há grupos mal caracterizados, ou seja, com membros que não preen- chem as qualidades estabelecidas na lei e no Regulamento dos Beneficiários e que, portanto, não se interessam em participar nos processos de desenvolvimento produ- tivo das propriedades; e líderes de organizações que se apropriam ou fazem mau uso do capital de trabalho, tirando a motivação dos beneficiários.

Naqueles casos em que se constituem grupos com gente que não vem da agricul- tura e/ou grupos que migram para outra região com características climáticas e ambientais diferentes das suas (por exemplo, do altiplano para propriedades da costa), encontrando-se propriedades que não dispõem de serviços básicos vitais, têm-se dado os níveis mais altos de desistência. Algo similar tem ocorrido normalmente no caso de grupos multiétnicos e multiculturais, constituídos expressamente para acessar a terra. As mulheres que fazem parte dos grupos beneficiários não têm gozado da ação positiva explícita, estabelecida pela lei do FONTIERRAS. Em muitos casos, a lei está em descordo frontal com os direitos dos grupos ao determinar sua organização e formas de filiação. Também não tem funcionado o sistema de titulação conjunta de homens e mulheres, pois mesmo que a lei a exija,

85 a realidade dos grupos constituídos para acessar a terra (Empresas Camponesas Associadas – ECAs, cooperativas, associações) impossibilita a presença das mu- lheres. Em muitos casos, esses grupos são compostos quase exclusivamente por homens, sendo que as diretorias são exclusivamente de homens. Adicionalmente, há denúncias de que o enfoque de gênero, que está sendo incorporando às políticas públicas de acesso à terra, busca cumprir com requisitos de organismos financeiros e cooperantes, mas carece de convicção e vontade po- lítica. Isso fez com que fossem beneficiadas, no período 2003 a junho de 2005, somente 426 famílias lideradas por mulheres, de um total de 5.027 famílias bene- ficiadas, representando menos de 10% do total.

4.3. Desenvolvimento após a transferência da terra Um dos fatores determinantes para o alto grau de desistência é a falta de con- dições de habitação e disponibilidade de serviços sociais básicos: apenas 72% das novas comunidades têm centros de saúde, 61% escolas, 67% moradias, 68% acesso à água potável, 71% eletricidade e 31% estradas de acesso. Esta situação precária se deve à falta de coordenação e a diferentes concepções entre as entidades estatais encarregadas de promover o desenvolvimento rural. Tem sido feito pouco para garantir o acesso dos grupos “beneficiados” aos serviços básicos. Para esta preocupante situação de acesso à terra sem melhorias na qualidade de vida das famílias “beneficiadas” contribuem fortemente as escassas possibilida- des de êxito e sustentabilidade dos projetos produtivos nas propriedades adquiri- das com créditos do FONTIERRAS. De acordo com um integrante do Conselho Diretor do FONTIERRAS, existe um escasso desenvolvimento empresarial e efi- ciência produtiva, bem como pouca geração de empregos e renda que permita às famílias satisfazer suas necessidades básicas. Isso tudo é conseqüência de falhas graves na prestação dos serviços de assistência técnica (produtiva, organizativa, administrativa e de gênero). O FONTIERRAS aprovou três modelos e nenhum foi exitoso em alterar as condições estruturais da propriedade e do grupo de maneira que permitisse melhorar as condições de vida de forma sustentável e cancelar a dívida assumida. Os três modelos são:

1) Sistema de empresas e licitação, que falhou em conseqüência de monopólios na execução e pela falta de pertinência de sua intervenção comunitária (não foram consi- deradas as estruturas organizativas e de poder, as dinâmicas sociais próprias, etc); 2) Sistema de consultores individuais, que falhou porque não podia cobrir todas as áreas de expertise necessárias (produção, organização, administração, gênero, etc);

86 3) Sistema de equipes multidisciplinares móveis, que falhou por não dar um se- guimento adequado aos grupos.

Entre os principais gargalos apresentados nos serviços de assistência técnica oferecidos pelo FONTIERRAS, temos:

• Os convênios não são cumpridos em termos de tempo de assistência e qua- lidade profissional dos técnicos. • Não há possibilidades, por parte dos grupos, de assumir os custos parciais para a assistência técnica a partir do segundo ano (a regra é que os grupos devem assumir 33% no segundo, 66% no terceiro e 100% a partir do quarto ano); portanto, a presença da assistência técnica nas comunidades diminuiu ainda mais. • Não se reconhece nem se valoriza o conhecimento indígena e camponês; têm acontecido problemas de desconhecimento dos diferentes idiomas do país por parte dos prestadores de assistência técnica, especialmente graves nas áreas de população Q´eqchí dos departamentos de Alta Verapaz e Petén. • Não se promove ativamente a segurança alimentar familiar e quando cultivos ali- mentícios são considerados pelos prestadores de serviços de extensão, utilizam-se so- mente de sementes “melhoradas” de duvidosa procedência e composição genética. • Em algumas comunidades, a assistência técnica não realizou nenhum traba- lho de sensibilização sobre organização e participação das mulheres, e naque- las onde se trabalhou com mulheres, os esforços se dirigiram, na maioria dos casos, à legalização de um comitê de mulheres na comunidade. • Tem havido casos de corrupção e favorecimento de amigos, sobretudo nos modelos de licitação e contratação de empresas prestadoras de serviços. • Não se segue o processo de inovação tecnológica, implementando processos graduais de transferência tecnológica, para que as e os grupos possam apren- der fazendo, assimilando adequadamente o uso de novas tecnologias e dimi- nuindo os riscos, além de ter a oportunidade de ganhar experiência e autoconfiança. • Em termos gerais, é evidente que a empresa privada não pode assumir res- ponsabilidades sociais, já que seu objetivo principal – o lucro – não é compa- tível com as necessidades de serviço das novas comunidades em seu processo de desenvolvimento.

Em relação à geração de renda, a situação é alarmante. Em três das proprieda- des mais bem-sucedidas (segundo o próprio FONTIERRAS), as famílias têm uma

87 renda média de 400 Quetzales mensais (igual a US$ 50), o que representa menos de um terço do salário mínimo na Guatemala. Isto implica que a maioria das fa- mílias é obrigada a trabalhar fora da propriedade para obter os recursos que neces- sitam para sobreviver. Muitas delas dizem que sua situação econômica era melhor antes de serem proprietárias da terra. Esta situação dramática se deve aos altos níveis de endividamento, mas também ao fato de que os projetos produtivos não têm um êxito garantido (Garoz & Gauster, 2006).

4.4. Custos para o estado e para os “beneficiários” A RAAM na Guatemala tem sido extremamente cara, tanto para o Estado como para os grupos “beneficiários”, particularmente se considerarmos os poucos avan- ços nos processos de desenvolvimento dos grupos camponeses. A Tabela 2 mostra que, no transcurso da existência do FONTIERRAS, os investimentos médios por família foram de US$ 9,146.00.

Tabela 2 – Total de recursos aplicados no Programa de Acesso à Terra via compra do FONTIERRAS (desde o seu início) Conceito Total em Quetzales Total em US$ Investimentos (crédito + subsídio)* 976,018,114 130,135,749.0 Funcionamento 110,185,420 14,691,389.3 Assistência técnica 59,713,306 7,961,774.13 Subprojetos e infra-estrutura** 76,588,889 10,211,851.9 Investimento global 1,222,505,730 163,000,764.0 Investimento por família 68,595 9,146.0 Custo médio por hectare 7,509 1,001.2 * Crédito para a compra da terra mais os subsídios (máximo de 26 salários mínimos por família para amortização da dívida, capital de trabalho e segurança alimentar). ** Fundos cedidos basicamente no marco do empréstimo do Banco Mundial a alguns grupos “beneficiados” que solicitam com a finalidade de empreender um determinado projeto produtivo e/ou melhorar a infra-estrutura da comunidade.

O alto custo da dívida assumida pelos grupos, junto à incidência de outros fatores como as falhas da assistência técnica e na implementação dos projetos pro- dutivos, tem levado a que, na maioria dos casos, a dívida pela compra da terra seja impagável. Isto, além de colocar em uma situação de alta vulnerabilidade os gru- pos beneficiários, compromete seriamente a sustentabilidade financeira do FONTIERRAS que, a princípio, deixará de receber recursos orçamentários anuais do estado a partir de 2008. Das 214 propriedades compradas, 133 têm prestações da dívida vencendo já, por haver terminado o período de carência (geralmente de quatro anos). Destes 133,53 pagaram a prestação referente à terra (a maioria com os subsídios), 16 es- tão com os pagamentos em dia e 64 estão em atraso. Assim, quase a metade dos grupos tem sérias dificuldades com o pagamento do crédito.

88 Os únicos ganhadores deste modelo são os proprietários de terra, que têm tido a oportunidade de vender suas terras a preços mais altos que os de mercado e re- ceber em dinheiro vivo. Para mencionar um exemplo, vejamos o caso da propriedade Pueblo Viejo, localizada em Panzós, Alta Verapaz. Esta propriedade foi comprada por um grupo de 434 famílias camponesas ao preço de 27 milhões de Quetzales (US$ 3,6 mi- lhões), dos quais 7,683,150 de Quetzales (em torno de US$ 1 milhão) foram amortizados com o subsídio de 17,664 de Quetzales por família (mais ou menos US$ 2.355), sobrando para capital de trabalho e compra de alimentos unicamen- te 3,786 de Quetzales (Fundo de Terras, Solicitação de Financiamiento, Expediente 695). Uma avaliadora independente constatou o valor real da propriedade em 12 milhões de Quetzales (US$ 1.6 milhões)!9

Gráfico 1 – Pagamento da dívida pelos grupos “beneficiários”

Fonte: FONTIERRAS e elaboração própria

5. O arrendamento de terras

Ao reconhecer que o modelo de acesso à terra via mercado, pelas diversas ra- zões mencionadas acima, não trouxe os resultados esperados, a aposta do Banco Mundial vai agora na direção do arrendamento de terras. Da mesma forma que na “reforma agrária assistida pelo mercado”, parte-se de que os mercados de arrendamento melhoram a eficiência e equidade. Da mesma forma que os mercados de venda de terras, os mercados de arrendamento requerem direitos de propriedade fortalecidos, criação ou fortalecimento de instituições, me- canismos de resolução de conflitos confiáveis e a eliminação de barreiras legais.

89 Como na RAAM, os participantes mais pobres devem receber “assistência” que inclua uma dotação mínima de ativos e diferentes formas de convênios, com op- ção de compra, por exemplo. A vantagem principal deste modelo, segundo o BIRD, é que o arrendamento é menos exigente politicamente que as reformas agrárias tradicionais, mais eco- nômico que as reformas agrárias pela via do mercado e mais eficiente que a explo- ração livre de mercados de compra e venda de terras. Outra vantagem é o pouco capital requerido, mesmo se considerarmos uma média mais flexível que as vendas que transferem terra de produtores menos pro- dutivos para outros mais produtivos. Ademais, pode constituir um ponto de par- tida para que os arrendatários acumulem experiência e, possivelmente, em uma etapa posterior, façam a transição para a condição de proprietários da terra. As desvantagens se limitam a menores incentivos para investimentos. No en- tanto, não está estabelecido prazo longo de duração do contrato e/ou a opção de compra. Outra desvantagem é um menor acesso ao crédito, instrumento funda- mental para potencializar a produção.

6. Características e resultados do programa de arrendamento

Desde 2004, quando o atual Governo da GANA10 assumiu o poder, coinci- dindo com os novos enfoques do Banco Mundial, existe uma visão diferente do papel do FONTIERRAS, implicando uma aposta no arrendamento como opção de acesso à terra. A partir de maio de 2004, o Ministério de Agricultura, Pecuária e Alimenta- ção (MAGA) e o Fundo de Terras implementam o “Programa Especial para a Pro- dução e Comercialização Agropecuária em Apoio à População Rural Vulnerável”. O mandato deste é aumentar a cobertura do programa de financiamento do Fun- do de Terras através de uma política de arrendamento ágil, transparente e hori- zontal que permita diversificar as opções do acesso à terra. Este deve também impulsionar – como parte da institucionalidade do Estado – o financiamento subsidiado e sustentável para o arrendamento de terras e a execução de projetos produtivos de curto prazo. Os componentes do programa mudaram do ano 2004 para 2005 e incluem uma parte de crédito para arrendamento de terras com juros de 0% por 9 meses. A outra parte é de apoio econômico reembolsável, ambas administradas pelo FONTIERRAS. Ademais, inclui um pequeno apoio em insumos agrícolas (2 sa-

90 cos de fertilizante químico, 25 libras de sementes melhoradas de milho e um kit de ferramentas) administrado pelo MAGA. O total de apoio diminuiu em 17% de 2004 para 2005, pois aumentou em 19% a proporção do crédito sobre o nú- mero de apoio total para cada família beneficiária. A população meta é composta de camponeses em condições de pobreza e em extrema pobreza. Devido a seus baixos custos, o Programa de Acesso à Terra via Arrendamento do FONTIERRAS/MAGA tem maior cobertura e visibilidade em relação ao Pro- grama de Acesso à Terra via compra. Por isto, vários analistas interpretam que o objetivo principal do programa é político-eleitoral, ou seja, “beneficiar” mais fa- mílias implica que, ao menos, estas mostrem sua “satisfação” através do voto nas próximas eleições. O fato de se tratar de um programa de arrendamento simples, mais marca- do pela estratégia de acesso a alimentos a curto prazo – e não pelo acesso à terra –, portanto sem opção de compra e renovável cada ano, implica que não pro- move um retorno seguro para o investimento produtivo a médio prazo. Desta forma, constitui-se em uma solução emergencial e meramente paliativa, com um impacto potencial nulo ou quase nulo na melhoria das capacidades produ- tivas. Não é, portanto, uma opção efetiva para transformar a estrutura concentradora da terra. Foram arrendadas 633.15 caballerías11 em dois anos. Obviamente não se pode falar de terra redistribuída, pois segue nas mãos dos mesmos proprietários, questão que não muda pelo mesmo fato de que o programa não contempla a opção de compra. O programa cobre terras de pequena escala, de pouco potencial produtivo, que geralmente permite unicamente a produção de grãos básicos como milho e feijão. O objetivo é contribuir com o acesso a alimentos, e não criar um proces- so de desenvolvimento integral. Isto fica evidente com o fato de que – ao con- trário do que argumenta o BIRD – não existe nenhum tipo de assistência técni- ca, construção de infra-estrutura básica ou serviços básicos no Programa de Arrendamento. Foram “beneficiadas” 30.814 famílias em dois anos, quase o dobro de famílias que na RAAM em oito anos. Isso demonstra bem que é um programa que politi- camente rende, mesmo que não altere as condições de vida de ninguém. A população meta são pequenas e pequenos produtores em condições de sub- sistência e com níveis abaixo desta. No primeiro ano de execução do programa se conseguiu chegar melhor à população meta, porque os responsáveis pela distri- buição dos formulários de solicitação foram as mesmas organizações camponesas.

91 No entanto, no segundo ano, devido à politização do processo, existe evidência de que muitos “beneficiários” são pessoas que se envolveram em um processo corrupto, pois compraram o formulário por Q 50 (em torno de US$ 7). Essas pessoas obviamente não são os camponeses mais marginalizados e, às vezes, nem sequer são produtores, mas pessoas aproveitando o subsídio dedicadas a ativida- des não-agrícolas.

Gráfico 2 – Famílias atendidas e caballerías (área) distribuídas pelos Programas de Acesso à Terra via compra (1997 – 2004) e via arrendamento (2004 – 2005)

Não há dados disponíveis sobre o número de mulheres “beneficiadas”. Os custos do programa são baixos, resultando em um número considerável de camponeses. Sem dúvida, devido à redução do montante total de apoio e do sub- sídio – que baixou de 2004 para 2005 por pressão da Câmara do Agro (setor pri- vado) sobre o Conselho Diretor do FONTIERRAS –, um dos problemas centrais do programa é a insuficiência de recursos financeiros disponíveis frente à magni- tude da demanda de solicitações de financiamento. Atualmente, este custo con- siste de um crédito de 1,300 Quetzales (US$ 173.3), que tem que ser devolvido nove meses depois (sem encargos financeiros), e um subsídio de 1,200 Quetzales (US$ 160.0) por família (recurso para capital de trabalho e insumos).

Tabela 3 – Total dos componentes do Programa Especial para a Produção e Comercialização Agropecuária em Apoio à População Rural Vulnerável (2004 – 2005) Ano Total em Quetzales Subsídio Crédito Capital de trabalho Insumos e ajuda alimentícia 2004 3.000 1.300 700 1.000 2005 2.500 700 500 1.300 Fonte: Garoz, Alonso e Gauster, 2005.

92 7. Direitos de propriedade e segurança na posse da terra

Fortalecer os direitos de propriedade tem sido – e segue sendo – o enfoque principal das IFIs quando falam do acesso à terra. Independentemente se está na moda o mercado de venda ou o arrendamento de terra, os direitos de propriedade sempre são considerados fundamentais, precisamente porque representam uma condição elementar para o desenvolvimento tanto do mercado de venda como o de arrendamento de terras. Vêem nos direitos de propriedade a chave para resolver o problema agrário, às vezes de uma maneira míope, ou bem com interesses distintos da melhoria do acesso à terra pelos camponeses sem-terra. Segundo o próprio Banco Mundial, “com direitos segu- ros, podem... vender sua terra e se mudarem para outras atividades (...) No Peru, a formalização de direitos à terra resultou em um incremento de mais de 50% da oferta de trabalho fora do agrário” (Banco, 2005, p. 245) e/ou na redução da pobreza. Argumentam que os direitos de propriedade incentivam às famílias a investir e, geralmente, também lhes proporciona melhor acesso ao crédito (que, em si, viabiliza aos investimentos); facilitam a transferência de terras a baixo custo me- diante arrendamento e venda e ainda melhoram a distribuição das terras. As reformas administrativas e institucionais necessárias para fortalecer os di- reitos de propriedade incluem o fortalecimento das instituições que respaldam esses direitos, os organismos responsáveis pelo processo de titulação, regularização, sa- neamento e da administração da terra (com ênfase no registro e cadastro) e aque- las instituições que assumem funções de tributação, além das de resolução de con- flitos. Ainda, dá-se ênfase à importância da implementação de um sistema judicial funcional e, finalmente, ao fortalecimento da governabilidade. Partem de três formas de incrementar a segurança da propriedade da terra (Deininger, 2003):

• Reconhecimento legal dos direitos consuetudinários: em sistemas consuetudinários, o reconhecimento de instituições existentes geralmente é mais efetivo que as intenções de estabelecer estruturas formalizadas e pode elevar muito a segurança de propriedade dos que detêm a posse. • Regularização das terras do estado: é importante regularizar a posse de terras do estado, já que, muitas vezes, mesmo com investimentos realizados, os pos- seiros permanecem vulneráveis às ameaças de despejos. • Titulação individual formal: quando a opção são os títulos formais e individuais de propriedade, é necessário fortalecer as instituições de administração de terras

93 (cadastro, registro, regularização, resolução de conflitos), pois, caso contrário, po- dem impedir que se realizem muitos dos benefícios da propriedade segura.

Não surpreende que a primeira opção (reconhecimento legal dos direitos con- suetudinários) na prática nunca tenha sido implementada nem promovida pelo Banco Mundial, particularmente na Guatemala, um país com uma população in- dígena majoritária, o que novamente evidencia as contradições na aplicação das políticas deste organismo.

8. Regularização na Guatemala: características e resultados12

A segunda função original do FONTIERRAS (ao lado da RAAM) é a regula- rização das terras que foram arrecadadas por instituições estatais em décadas ante- riores sem terem sido legalizadas. As funções, portanto, são a regularização de ter- ras do Estado e a recuperação (expropriação sem indenização) de terras fraudulentamente concedidas durante as ditaduras militares nos anos 80 na Fran- ja Transversal do Norte e Petén. O programa de regularização de terras não inclui nenhum subsídio, como capi- tal de trabalho ou assistência técnica aos novos proprietários. Isto, igual ao Progra- ma de Arrendamento, torna-o pouco custoso, tendo um número relativamente alto de “beneficiários”, mas pouca viabilidade produtiva e, conseqüentemente, pouca viabilidade de desenvolvimento integral para as famílias. Pela mesma falta de apoio aos camponeses, é fácil entender que o objetivo prioritário é promover um mercado de terras, e não buscar o acesso à terra para os grupos camponeses empobrecidos. A população meta deste programa são camponeses individuais ou grupos de camponeses, ou seja, pequenos produtores rurais. A politização do FONTIERRAS afeta a eficiência no desempenho do traba- lho. Um exemplo desta situação foi a demissão, em setembro de 2004, dos 40 membros da equipe de regularização que trabalhavam com a metodologia, com os casos, etc. Uma decisão do MAGA, apoiada por setores ligados ao Conselho Diretor do FONTIERRAS. O programa de regularização de terras não tem contribuído para uma redistribuição da terra, pois até agora tem se dedicado somente a legalizar terras que já estavam na posse dos produtores. Em casos muito excepcionais, regulari- zou terra estatal a favor dos camponeses usurpada por grandes proprietários, mas unicamente quando esta usurpação foi denunciada por organizações camponesas.

94 Não houve nenhum avanço na expropriação das propriedades apropriadas ile- galmente na Franja Transversal do Norte, nem outras estabelecidas na lei do FONTIERRAS e nos Acordos de Paz (Acordo sobre Aspectos Socioeconômicos e Situação Agrária). O resultado dessa política é que, no lugar de atacar a alta concentração da ter- ra, tem havido um processo de reconcentração da terra. Em Petén, Alta e Baixa Verapaz e nos departamentos circundantes a Quetzaltenango, registra-se uma venda imediata ou quase imediata de 20% das terras que foram regularizadas. Em al- guns casos, desmembram-se frações e as pessoas ficam somente com o que neces- sitam para a subsistência. Em outros, nos atos mesmo de entrega de escrituras, as mesmas são transferidas para terceiros, perdendo a oportunidade de utilizar a ter- ra como meio para um futuro desenvolvimento pessoal e social. Ademais, à falta de uma política estatal de apoio aos que regularizam sua pro- priedade, um conjunto de razões subjaz à venda imediata da terra, entre as quais:

• Ausência de um esforço concentrado de conscientização e de instrumentos le- gais que limitem as vendas a casos excepcionais. Naquelas comunidades onde o tecido social se encontra fortalecido (bases de organizações camponesas, desaloja- dos, etc), a venda tem sido menor, apesar da titulação individual. • Sobretudo na região das Verapaces e na área compreendida pela Franja Transver- sal do Norte, a venda após a legalização é conseqüência da estratégia de vários grandes proprietários (tanto pessoas físicas como jurídicas) que, através da com- pra das parcelas próximas àquela cujo proprietário não tem disposição voluntária para vendê-la, provocam a “asfixia” da propriedade, pressionando a seu proprietá- rio para que a coloque à venda. • Especificamente em Petén há denúncias da prática nociva, feitas por algumas pes- soas, de comprar, regularizar, vender e trocar por outra terra para repetir o processo, com graves implicações ao meio ambiente com o avanço da fronteira agrícola. • Necessidades urgentes de dinheiro por parte das famílias, resultado de diferen- tes causas derivadas de altos níveis de vulnerabilidade das famílias pobres rurais como, por exemplo, casos de enfermidade, migração etc.

O Programa de Regularização, como o de acesso e o de arrendamento, não tem capacidade para atender a demanda existente de legalização de terras no país. Por outro lado, se considerarmos as diversas ações técnicas e administrativas para regularizar cada expediente, a estrutura organizativa atual deste programa e a de- pendência de trâmites externos, não será possível finalizar o trâmite de tais expe-

95 dientes antes do ano 2008, prazo estabelecido na lei do FONTIERRAS para fina- lizar o processo de regularização. Há uma tabela de preços das terras adquiridas como resultado do processo de regularização. Isto tem permitido definir o custo desta regularização para as e os interessados, com base nos critérios comuns e nos objetivos. Assim, para que al- guém possa ter sua terra regularizada, deve pagar 10% sobre o valor de um hecta- re estabelecido na tabela oficial (atualmente Q.50 x hectare) e mais o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA). Se estes custos são muito mais aceitáveis para os “beneficiários” que na RAAM, na prática as famílias e comunidades rurais em si- tuação de pobreza e pobreza extrema têm enfrentado problemas para fazer fren- te à parte dos custos da regularização que lhes corresponde assumir.

Tabela 4 – Carteira do Programa de Regularização de Terras do FONTIERRAS Tipo de adjudicação Quantidade de adjudicações Valor total (Quetzales) Custo médio por adjudicação Pendente de pagamento (%) Individual 82.931 231.981.814 2.797 76,5% Coletiva 920 143.212.335 155.666 70,1% Total 83.851 375.194.149 4.475 74,1% Fonte: Garoz, Alonso, e Gauster, 2005.

Os custos do programa são relativamente baixos, devido a já mencionada falta de subsídios, capital de trabalho, assistência técnica e infra-estrutura social. O orçamento com o que conta o Programa de Regularização é bastante modesto, comparado com o de Acesso à Terra do FONTIERRAS.

Tabela 5 – Orçamento do FONTIERRAS (em quetzales) (2000 – 2004) Programa tipo/ano 2000 2001 2002 2003 2004 Acesso à terra 131.280.609 267.887.078 222.172.106 252.214.896 243.164.318 Regularização 728.441 9.978.078 10.462.282 22.573.278 17.731.914 Fonte: Garoz e Gauster, 2004.

Funcionários medianos da instituição, especialmente os de campo, têm sido submetidos a pressões e ameaças por parte de grandes proprietários para que o trabalho de regularização do FONTIERRAS não afete seus interesses. Esta é uma explicação mais sobre a pouca contribuição desta instituição no questionamento das atuais estruturas de poder. Assim, na prática, tudo indica que o objetivo de gerar certeza jurídica não tem sido fomentar a segurança da posse e controle da terra a partir da cosmovisão in- dígena e camponesa, nem implementar maiores capacidades produtivas de quem regularizou sua propriedade. De fato, existem sérias dúvidas se a regularização da propriedade da terra tem gerado maiores oportunidades de acesso a outros recur- sos produtivos, como o crédito agrícola privado. As evidências mostram que, nas

96 condições que se tem dado, a regularização tem gerado o aumento da oferta de crédito, principalmente para produtores excedentários (que possuem entre 10 e 64 manzanas) e comerciais, e este efeito tem estimulado a concentração da terra em poucas mãos.

Quadro 1 A proatividade camponesa na regularização das terras nacionais A União Verapacense de Organizações Camponesas (UVOC) aglutina campo- nesas e camponeses sem-terra ou com terra insuficiente para viver dignamente nos departamentos de Alta e Baixa Verapaz na Guatemala. O fato de ressaltar o caso da UVOC não se relaciona tanto com o tipo de reivindicação de direitos que promove, o que coincide com outras organizações camponesas do país, mas mais pelo método utilizado para tornar efetivos esses direitos. Na prática, a es- tratégia da UVOC tem consistido em levar a cabo análises de registros, assim como medições físicas reais, daquelas propriedades “suspeitas” de conformar, no todo ou em parte, em “improdutiva” nacional. Esta estratégia – junto com a decisão posterior de ocupar área identificada como terra pública, ocupada e/ou anexada às terras dos grandes proprietários – tem sido utilizada para pressionar o FONTIERRAS para que inicie as investigações e procedimentos pertinentes para a regularização e posterior colocação da referida área na oferta de terras nacionais disponíveis para sua concessão. Chama a atenção que este tipo de ação seja considerada mais um problema que um apoio por parte das instituições vinculadas ao processo de regularização de terras no país. Mas chama ainda mais a atenção o fato de que o argumento utilizado para explicar “o problema” esteja ligado ao incomodo – e, às vezes, ao perigo – de iniciar um processo de regula- rização de um terreno nacional, ocupado no todo ou em parte, por um ou vários grandes proprietários. Quais são então as possibilidades reais de cumprir a lei e desenvolver um processo de regularização de natureza pública e de interesse social que deve ser acatado, promovido e desenvolvido rigorosamente com a maior celeridade possível?

Pelo que se tem observado, por detrás da necessidade de gerar certeza jurídica sobre a posse da terra, encontra-se o objetivo de fortalecer e agilizar o mercado de terras, privilegiando o direito da propriedade privada da terra, em vez de outras formas possíveis de propriedade juridicamente seguras. Efetivamente, a terra le- galizada – sem recursos e capacidades para se fazer produtiva – se desnaturaliza como bem de produção e se converte em um bem de capital (passível de transação comercial e/ou de arrendamento), o que também tem contribuído fortemente para o fenômeno observado de reconcentração da terra por trás da regularização da propriedade.

97 Conclusões

Os Acordos de Paz geraram grandes expectativas imediatas de uma nova etapa de convivência democrática e bem-estar generalizado, gerando um clima político e social propício para o aprofundamento das políticas de Ajuste Estrutural e Setorial no país. Sob as premissas da desregulação, liberalização, privatização e retirada do estado como promotor e orientador do desenvolvimento nacional e com a pro- messa de que o “encolhimento” do setor público não afetaria sua força, os diver- sos setores da economia nacional foram atingidos negativamente (especialmente o agrícola). Estes foram submetidos às regras de competição, em muitos casos, desleais e quase sempre assimétricas (sempre com o Tratado de Livre Comércio entre República Dominicana, América Central e Estados Unidos – DR-CAFTA), que a denominada globalização financeira e produtiva da economia – junto com suas instituições de articulação e apoio13 – impõe. Assim, as políticas agrícolas e de desenvolvimento rural têm se baseado no mer- cado. Para a população rural excluída das oportunidades de negócio geradas no novo contexto competitivo14 e em transição incerta para outros setores de ativida- de econômica, tem-se fomentado medidas paliativas de “alívio” e “luta contra a pobreza”. A incapacidade que tem demonstrado o mercado para redistribuir recursos em contextos oligopolistas, junto com a falta de vontade política de apoio (finan- ceiro, legal etc), têm contribuído para que o modelo de “reforma agrária de mer- cado”, implementado na Guatemala desde 1997, não tenha sido capaz de resolver o problema da injusta distribuição da terra. Um exemplo da falta de vontade real para dinamizar ativamente os mercados de terra e contribuir para a auto- sustentabilidade do FONTIERRAS é que nunca se implantou um Imposto Territorial que taxasse progressivamente as terras ociosas ou subutilizadas, aumen- tando a oferta de terras e pressionando os preços para baixo. A ausência de mudanças substanciais na estrutura da propriedade da terra – mesmo causando impacto negativo sobre o grau de eqüidade da estrutura agrá- ria (com um índice de Gini sobre a concentração da terra com tendência cres- cente) – mantém um esquema produtivo agrícola absolutamente ineficiente no país, com 25% do solo sobre-utilizado e 28% subutilizado em seu potencial produtivo. Há evidências de que o resultado da RAAM na Guatemala é que o FONTIER- RAS vem subsidiando, por ação ou omissão, a transformação produtiva de pro- prietários de latifúndios ineficientes, dedicados à produção para exportação tradi-

98 cional, para outras atividades mais rentáveis, como podem ser a agroindústria in- tensiva em capital, vinculada a produtos de exportação não-tradicional e/ou a intermediação comercial importação-exportação. Entrementes, a dívida agrária as- sumida pelos grupos camponeses que acessaram a terra – geralmente em contex- tos de inviabilidade produtiva e, portanto, de impossibilidade de pagamento da mesma –, os têm colocado em situações de maior vulnerabilidade, o que pode ter uma influência negativa, a curto prazo, sobre os conflitos agrários no país. Ao contrário do que se poderia esperar, diante da ineficácia constatada dos mercados de terra como meio para melhorar a eficiência global da economia e aliviar a pobreza da população rural, as novas propostas de acesso à terra preten- dem aprofundar a ortodoxia do mercado como um ente redistributivo. O arren- damento, principalmente o simples, mas também com a opção de compra, é co- locado como a nova panacéia para o acesso à terra do campesinato pobre, em consonância com o paradigma da nova ruralidade das IFIs. Por um lado, o modelo de arrendamento simples e de curto prazo que vem sen- do implementando desde 2004 tem um caráter meramente paliativo, ao não gerar condições para investimentos e/ou o acesso ao crédito. Por outro lado, a viabilidade dos mercados de arrendamento, a longo prazo e com opção de compra, é altamente incerta em um contexto de conflitividade e iniqüidade agrária, como o que existe na Guatemala. Este mercado enfrentaria os mesmos problemas estruturais que o mercado de venda de terras: a falta de oferta de terras produtivas, a falta de incenti- vos para vender (ou dar em concessão) as terras, a falta de infra-estrutura social e produtiva e a falta de apoio à produção e comercialização dos pequenos produtores. A opção pelo arrendamento – junto com a negativa governamental de renovar as duas etapas pendentes do projeto de apoio ao FONTIERRAS do Banco Mundial – aponta para uma concepção de ruralidade em que (novamente em concordância com BID e o BIRD) o acesso à terra daquelas camponesas e camponeses sem-terra ou com terra insuficiente deixa de ser um fator crítico para a superação da pobreza. A política de administração de terras aplicada nos últimos anos não tem resul- tado em uma maior segurança na propriedade e posse da terra para a população indígena e camponesa empobrecida. Ao contrário, como já foi observado em outros países (FIAN & Via Campesina, 2004), em muitos casos essa política torna as populações mais vulneráveis e sujeitas a perder a terra. Isto acontece em um con- texto de Ajuste Estrutural no qual, junto com a titulação, liberaliza-se o comércio agrícola e se desmantelam os serviços estatais de apoio aos pequenos produtores. A conseqüente quebra de muitos agricultores – que agora contam com títulos alienáveis e passíveis de transações – leva a que os bancos fiquem com essas terras.

99 Leva também, diante de condições tão adversas para a pequena produção, a que muitos camponeses optem por vender sua terra a grandes empresários agroexportadores ou a investidores estrangeiros em troca de (pouco) dinheiro. O Banco Mundial denomina este fenômeno de “aumento da eficiência alocativa de produtores menos eficientes para os mais eficientes” (ALAI, 2004, pp. 5-6). Não surpreende que o processo de regularização (bem como o de levantamento cadastral) na Guatemala tem avançado principalmente nas zonas de importância estratégica em termos de sua atual ou potencial atração para investimentos de caráter extrativo, agroindustrial e megaprojetos de infra-estrutura. Isso tudo evidencia que o tema do acesso à terra não pode ser visto de forma isolada do contexto econômico global. Não há possibilidade de êxito na redistribuição de terras se, simultaneamente, inviabilizar-se a pequena economia camponesa pelo desmantelamento ou privatização dos serviços de extensão, fa- zendo-a enfrentar a uma competição desleal, produto da liberalização comercial imposta e pregada, mas não executada em seu próprio terreno, ou seja, pelos paí- ses do Norte. Uma redistribuição efetiva da terra, portanto, passa por uma mu- dança drástica na lógica da globalização atual, na direção de novas formas de po- líticas que tenham em seu centro a população global empobrecida, cuja maioria segue se dedicando à atividade agropecuária.

Notas 1 Este artigo foi elaborado tendo como base a publicação de Garoz, Alonso e Gauster, (2005). Todo o con- teúdo, a não ser nos casos de citações explícitas, se encontram nesta publicação, disponível em www.congcoop.org.gt 2 Manzana é a medida utilizada no Censo Agropecuário da Guatemala e uma (1) manzana corresponde a 6.988 metros quadrados ou a 0,7 hectares (nota do tradutor). 3 Mais adiante veremos que, nos últimos anos, a partir do reconhecimento de falhas do modelo, tem havi- do algumas mudanças nesta política. 4 A Franja Transversal do Norte é uma região localizada no norte da Guatemala que se estende do departa- mento de Huehuetenango até Izabal, passando por Quiché e Alta Verapaz. 5 Esta decisão é produto do discurso dual do governo guatemalteco que, de um lado, rechaça e critica aberta- mente a ingerência de organismos internacionais (financeiros e outros) na questão agrária e no desenvolvi- mento rural, mas, por outro, aplica as diretrizes do modelo neoliberal promovido por estes organismos indo, inclusive, mais longe na ortodoxia do mercado como fornecedor de recursos e regulador da economia. 6 Cálculo realizado com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), Censo Agropecuário de 2003. 7 Seminário realizado sob a coordenação do Comité Unidad Campesino (Comitê Unidade Camponesa – CUC) da Costa Sul da Guatemala. 8 Fonte anônima: afirmação de uma pessoa ligada a um organismo internacional. 9 Entre outras razões, este valor foi pago porque foram contabilizados equipamentos e máquinas que já não tiveram nenhuma utilidade.

100 10 A Gran Alianza Nacional (GANA) é o partido do atual presidente da Guatemala, um partido de direita que assumiu o poder em janeiro de 2004. 11 A medida de uma (1) caballeria corresponde a 64 manzanas – algo em torno de 45 hectares. Portanto, foram arrendados em torno de 28.500 hectares (nota do tradutor). 12 Trataremos somente da regularização de terras pois, apesar de tem sido iniciado com o levantamento cadastral, não há muita experiência sobre isto e a lei que dá suporte a este processo acaba de ser aprovada pelo Congres- so da República (em agosto de 2005). Da mesma maneira, a instituição a cargo da resolução de conflitos – o CONTIERRA – tem um papel tão marginal que não vale a pena aprofundar a análise sobre seu trabalho. 13 Apesar do novo papel que, a partir do final dos anos 1980, desempenham as instituições de Bretton Woods (Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, junto com suas expressões continentais como o Ban- co Interamericano de Desenvolvimento) no marco do “Consenso de Washington”, desde 1995 a Organi- zação Mundial de Comércio se consolida como um ator determinante das características e do rumo da globalização corporativa. 14 Nesta categoria estão incluídos, como vimos anteriormente, 92% de produtoras e produtores do país, ou seja, em torno de 764.684 famílias.

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EDWARD LAHIFF

O conceito de “reforma agrária de mercado” (RAM, também chamada refor- ma agrária apoiada pelo mercado ou conduzida pelo mercado) tem sido central para a “nova onda” de reforma agrária em evidência internacional desde o início dos anos 1990. Essa nova onda sucedeu a uma calmaria de reformas agrárias na maioria das regiões do mundo durante os anos de 1980, que marcou o fim de uma longa trajetória de reformas (capitalistas e socialistas) nas décadas posteriores à II Guerra Mundial. Essa história, e as posições teóricas desenvolvidas em torno dela, foram exaustivamente debatidas em outro lugar e não serão repetidas aqui.1 Ao contrário, a presente seção introdutória enfocará o surgimento relativamente recente da RAM em âmbito internacional e como o conceito foi interpretado e aplicado no contexto sul-africano. A seção subseqüente analisará em detalhes o caso da África do Sul, enquanto a conclusão tira lições fundamentais para a região e suas implicações para políticas de reforma agrária mais gerais.

1. Surgimento da reforma agrária de mercado (RAM)

Moyo e Yeros (2005) fazem uma distinção útil entre três modelos amplos de reforma agrária, denominados de “estatal”, “comercial” e “popular”. Embora pro- gramas correntes de RAM pareçam superficialmente pertencer ao modelo do “mercado”, a análise de Moyo e Yeros propõe que muitos deles podem se enqua- drar melhor no modelo estatal modificado (“reformista”), por meio do qual o Estado se engaja em transações voluntárias do mercado.

O Estado também pode adquirir a terra por mecanismos de mercado, o cenário refor- mista do “disposto a vender” e “disposto a comprar”. Nele, o mercado (i.e., os latifun- diários) seleciona a terra (se e quando os latifundiários quiserem), o Estado compra a terra e indeniza os latifundiários (freqüentemente com ajuda externa), o Estado selecio- na os beneficiários (a menos que exerçam o direito de precedência na compra) e lhes transfere o título (Moyo & Yeros 2005, p. 53).

Existe um consenso amplo entre estudiosos de que a RAM emergiu como uma reação às debilidades percebidas em formas anteriores de acesso à terra e à reforma agrária conduzidas pelo Estado (dos dois tipos, capitalista e socialista). Entre os argumentos mais comuns citados estão: a ineficiência do Estado e de fazendas coletivas na China e no bloco soviético, bem como de seus satélites na África, Ásia e América Latina; o fracasso (e reversão parcial) de esquemas de redistribuição em partes da América Latina e Ásia; e a distorção de vários mercados pelo protecio- nismo comercial, pela regulação de preços e por subsídios ao produtor. Os programas de ajuste estrutural econômico, em grande parte promovidos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional e que dominaram a política econômica no mundo em desenvolvimento nos anos oitenta, podem ser vistos como coveiros da “velha ordem” da reforma agrária conduzida pelo Estado e também como parteiras de novas abordagens amistosas ao mercado. Em reação às alastradas crises de endividamento e fiscais, os gastos estatais foram dramaticamente reduzidos (ou pelo menos redirecionados) em muitos países, os mercados foram liberalizados e as agências estatais responsáveis pela produção e distribuição agrícola foram ou fecha- das ou privatizadas. Em outras palavras, os pilares fundamentais do desenvolvimen- to conduzido pelo Estado e da regulação (“desenvolvimentismo”, na nomenclatura de Bernstein) foram sistematicamente retirados, não somente nas economias orien- tadas para o mercado (por exemplo, Brasil e Malaui), mas também nas que nomi- nalmente são de orientação socialista (por exemplo, Tanzânia e Zimbábue). Agre- gou-se a essa mudança nas políticas econômicas a crise ideológica criada pela queda do comunismo na União Soviética e em seus satélites, que minou a tradicional opo- sição da ala esquerda a reformas orientadas segundo o mercado. Diante desse pano de fundo econômico e ideológico inconstante, a reforma agrária mais uma vez encontrou seu caminho até o palco da política, mas de for- mas dramaticamente diferentes das que dominaram a era anterior. As discussões passaram a enfocar um espectro relativamente estreito de reformas, ao invés da reestruturação global das relações agrárias. Na prática, a nacionalização e a coletivização desapareceram da ordem do dia (com a possível exceção de Zimbábue); “terra para quem nela trabalha”, considerado amplamente como o modo mais bem-sucedido de reforma agrária ao longo dos séculos XIX e XX, já

104 não era uma opção, devido ao desaparecimento prático de grandes imóveis arren- dados na maioria dos países do mundo (com exceções dignas de nota como em partes do Sul da Ásia e Norte da África); o parcelamento de fazendas em favor de trabalhadores e camponeses caiu em descrédito geral, devido às dificuldades per- cebidas na troca da produção em grande escala para pequena escala – e do traba- lho assalariado para o familiar. O remanescente disso é somente a reforma de ter- ras de posse comunal (ou tradicional) e a modesta distribuição de terras de fazendas empresariais para beneficiários selecionados – em geral aqueles considerados ca- pazes de produção “empresarial”, seja individualmente, seja como partes de um grupo. É essa a forma de redistribuição mais associada à RAM. Contudo, como será demonstrado a seguir, o conceito foi usado de várias maneiras. A RAM se baseia na alegação de que o mercado é capaz de gerar benefícios tanto de eficiência como de lucratividade ao transferir terra de usuários menos para mais produtivos (tipicamente de grandes para pequenos – Deininger & Binswanger, 1999). Isso foi central no pensamento do Banco Mundial e de ou- tros organismos pelo menos desde os anos 1970s (razão pela qual é anterior ao que passou a ser conhecido como RAM). Porém, o que mudou foi um reconheci- mento maior por parte de economistas neoliberais de que é improvável que os mercados sozinhos provoquem a desejada reestruturação das relações de posse, devido a uma gama de imperfeições ou distorções, incluindo o acesso limitado ao crédito e à informação por parte dos compradores mais pobres, bem como a ten- dência de que os preços de terra excedam valores produtivos (ou agronômicos). Em decorrência, defende-se o uso de subsídios para permitir a pequenos agricul- tores (ou a supostos agricultores) com limitado capital ou acesso ao crédito que entram no mercado de terras, contudo de maneira a não “distorcer” o mercado no futuro (van Zyl & Binswanger, 1996, p. 419), dando origem ao que pode mais bem ser definido como esquemas de apoio para a compra. Embora a aquisição de terras através de transações espontâneas de mercado fos- se o carimbo oficial da RAM, uma gama de atributos adicionais também foi associada a esse enfoque, notavelmente a auto-seleção de beneficiários, o co-financiamento (“contribuição própria”) pelos beneficiários, uma ênfase em planejamento rural antes da aprovação de subsídios (e, por conseqüência, antes da aquisição da terra) e a con- fiança no setor privado e em organizações não-governamentais (ONGs, no lugar de agências estatais) para prover o apoio técnico e financeiro aos beneficiários (Deininger & Binswanger, 1999; Borras, 2003). Para seus defensores, a RAM, portanto, não recorre apenas à redistribuição de terra via mercado, mas a um conjunto mais amplo de reformas que buscam

105 simultaneamente: fomentar oportunidades de mercado existentes para redistribuir terra; liberalizar a terra e outros mercados (por exemplo, o crédito, insumos agrícolas, produtos da agricultura);2 atrair pequenos proprietários ou “agricultores emergentes” para uma forma de produção mais “empresarial”; e minimizar o papel do Estado na alocação da terra, na regulagem da economia agrícola e no desenvolvimento rural (inclusive no apoio a novos ou pequenos agricultores). Muitas das reformas acima, no setor rural, obviamente estão em andamento nos países em que a reforma agrária (em particular a reforma agrária redistributiva) não emergiu como prioridade. Nos casos em que se fomenta a reforma agrária de mer- cado, é possível identificar cinco características centrais que definem a proposta:

1) Veto dos proprietários de terras para participar da reforma agrária – o merca- do seleciona a terra; 2) Pagamento de “preços de mercado” pela terra (normalmente adiantado e em dinheiro) – o mercado estabelece o preço; 3) Auto-seleção de beneficiários (também chamada de “conduzida pela deman- da”) – o mercado seleciona os beneficiários; 4) Foco em “formas empresariais de produção” – o mercado determina o que é produzido; 5) Papel proeminente do setor privado no fornecimento de crédito, extensão e outros serviços aos beneficiários – o mercado provê a assistência.

A importância relativa destes elementos da RAM pode variar de país a país e com o passar do tempo – por exemplo, sob a constituição do Parlamento de Lancaster no Zimbábue, nos anos oitenta, os primeiros dois foram proeminentes, com menos ênfase nos outros três; no Brasil, houve menos ênfase na produção para o mercado, embora a dependência dos financiamentos sirva para empurrar os beneficiários nessa direção; na África do Sul, tiveram destaque todos os cinco elementos desde meados dos anos 90. A RAM foi alvo de muitas críticas e de oposição popular, tanto por alegações específicas sobre o que é como pelo que deixa de considerar. Entre as questões levantadas por analistas estavam a relutância de proprietários de terras em respon- der favoravelmente às induções de mercado; a tendência de elevar os preços da terra; a exclusão de beneficiários mais pobres; um planejamento agrícola impró- prio (que leva a erros de projeto) e o fracasso de agências do setor privado em substituir eficazmente serviços agrícolas estatais (Riedinger et al., 2000; El-

106 Ghonemy, 2001; Borras, 2003). No entanto, a crítica mais eloqüente foi o ritmo lento da transferência de terras em todos os países que realizam a RAM. Isso impõe perguntas de longo alcance acerca da própria proposta, bem como da habilidade de Estados implementarem esses programas dependentes do mer- cado. Por exemplo, será que os objetivos da RAM são tão modestos que partem fundamentalmente de entendimentos tradicionais da terra e da reforma agrária? Por acaso programas modestos de reforma, que não desafiam fundamentalmente o poder das classes latifundiárias atuais e que aceitam a estrutura herdada das eco- nomias rurais (ainda que agora a liberalizando), proporcionarão terra suficiente e oportunidades apropriadas para os pobres do campo (e da cidade) “acumularem de baixo para cima”, enfrentando assim problemas de pobreza e desigualdade crô- nicas? Respostas a essas perguntas e outras correlatas requerem nitidamente uma análise aprofundada dos casos de países específicos. Um debate significativo já aconteceu ao redor da RAM no Brasil e nas Filipinas, porém se sabe muito menos acerca da RAM em outros países. Na África meridional, o que pode ser conside- rado um precursor de políticas posteriores começou no Zimbábue, após a inde- pendência em 1980. Aqui foram adotados mecanismos baseados no mercado como parte de concessões políticas e econômicas mais amplas feitas a colonos brancos durante a transição, em particular a proteção de interesses dos brancos pela pro- priedade. Para usar retroativamente o linguajar dos anos noventa, isso poderia ser visto como forma de garantir a “cooperação” dos proprietários de terras e evitar que seja “distorcido” o mercado de terras. Contudo, é discutível se um pensamen- to desses gozava de qualquer popularidade na ocasião. Ao contrário, o conceito de “vendedor disposto, comprador disposto” foi con- siderado (por todas as partes do debate) como um constrangimento ao novo Es- tado para que concedesse um direito de veto aos proprietários de terras no proces- so da reforma e assegurasse a indenização paga à vista, a preços de mercado (as primeiras duas das cinco características arroladas acima – Moyo, 1995). A desa- propriação foi permitida para casos de subutilização da terra, mas isso também requeria pagamento à vista e em moeda forte. Em outras palavras, no caso do Zimbábue, a RAM tratou do processo de aquisição de terras, mas teve pouco ou nada a dizer sobre questões como seleção de beneficiários, formas de produção na terra recolonizada ou alocação de serviços de apoio. Tudo isso tendeu a seguir um enfoque mais antigo, dirigido pelo Estado (“desenvolvimentista”); o que Moyo (1995) rotulou de “enfoque de reforma de mercado centrada no Estado”. Em de- corrência, o Zimbábue pode ser considerado um caso de transição entre refor-

107 mas do período pós-guerra e pós-colonial conduzidas pelo Estado e as RAM ple- namente desenvolvidas dos anos 1990s. A África do Sul constitui em um caso bastante diferente. Em contraste com países como o Brasil e as Filipinas, em que a RAM evoluiu de (e não substituiu completamente) processos de reforma em curso há mais tempo (não conduzidas pelo mercado), o programa de reforma agrária da África do Sul caiu inteiramente na era e nos parâmetros da RAM, sendo visto de certa forma como um caso de manual . Os fatores que tornaram a África do Sul candidata a uma RAM, além da época de sua libertação, foram a extrema desigualdade na posse da terra (particu- larmente alinhada com categorias raciais), a natureza altamente empresarial da agri- cultura sul-africana, a existência de um mercado de terras bem desenvolvido e o compromisso do governo do Congresso Nacional Africano com políticas econô- micas neoliberais e com a reconciliação nacional. Ademais, a trajetória histórica do desenvolvimento rural na África do Sul – especificamente a destruição ou a extrema marginalização de pequenos proprietários e arrendatários e a consolida- ção da produção nas mãos de relativamente poucos produtores de grande escala – resultam que um enfoque do tipo “terra para quem nela trabalha” não era uma opção realista (Bernstein, 1996, p. 41). Para ser significativa, uma reforma agrária teria de ser fundamentalmente redistributiva, não beneficiando somente os que então estavam envolvidos na agricultura, mas também aqueles que há muito estavam excluídos do setor. Em- bora houvesse considerável apoio popular à redistribuição na época da libertação (ainda que com pouca clareza de como isso poderia ou deveria ser feito), as polí- ticas econômicas e ponderações da “realpolitik” do novo governo impediram o uso de praticamente todas as formas tradicionais de redistribuição como, por exem- plo, a desapropriação, a nacionalização ou a coletivização. A RAM, portanto, pro- piciou um enfoque oportuno, embora na ocasião ainda não testado, apresentan- do a promessa de uma rápida transferência de ativos a baixo risco para a estabilidade política ou a produção econômica.

2. A RAM na África do Sul

Na África do Sul, o debate em torno da reforma agrária esteve centrado, desde 1994, no conceito específico de “vendedor disposto, comprador disposto” (VDCD), e não na categoria mais ampla de RAM (Lahiff, 2005). O VDCD tem certa história de uso na África do Sul, particularmente em redor da prática (con-

108 tínua) da Lei de Desapropriação de 1975, sob a qual o preço pago por uma proprie- dade desapropriada (para obras públicas etc) é determinado pela referência com o preço que seria pago pela propriedade se fosse trocada entre um proprietário dis- posto a vender e um comprador. Nesse contexto de desapropriação, o VDCD se refere a um ideal imaginário, e não a uma prática atual. A expressão passou a ter mais atualidade no país com a extensa cobertura, pela mídia, da reforma agrária no Zimbábue durante os anos 1980s e início dos anos 1990s, e não pode haver muitas dúvidas de que isso contribuiu muito para seu destaque no seio da refor- ma agrária ao sul do Rio Limpopo (Lahiff & Cousins, 2001, p. 653). Esse empréstimo terminológico – ativamente promovido pelo governo, mas curiosamente não pelo Banco Mundial – serviu para obscurecer as principais di- ferenças entre a política de reforma agrária no Zimbábue (até mesmo em sua fase mais “moderada”, do Parlamento de Lancaster) e da África do Sul. Especificamente, encobriu o papel muito maior do Estado no Zimbábue, incluindo seu direito à primeira recusa na venda de terras, sua capacidade de iniciar transações e a efetiva nacionalização de terras adquiridas – em suma, desapropriação e compra negocia- da, com indenização paga pela equivalência de preços de mercado. Isso contrasta nitidamente com o enfoque reativo (“conduzido pela demanda”) praticado na África do Sul, com a confiança no “mercado livre” e com a liberdade dos proprie- tários de terras para vender ao comprador de sua escolha. O VDCD penetrou gradativamente no discurso sobre a reforma agrária na África do Sul durante o período de 1993-1996, um reflexo da rápida mudança no pensa- mento econômico do Congresso Nacional Africano (CNA) da esquerda nacionalista para neoliberal. Estivera completamente ausente da declaração política do CNA “Pronto para Governar”, de 1992, que em lugar dele defendia a desapropriação e outros meca- nismos de não-mercado. De forma análoga, esteve ausente do “Programa de Recons- trução e Desenvolvimento”, o manifesto em que o partido conquistou o poder em 1994. Entretanto, na época do “Documento sobre a Política sul-africana de Terras”, de 1997, uma abordagem orientada no mercado e particularmente o conceito de VDCD haviam se tornado a base da política de reforma agrária.3 Um enfoque desses não foi ditado pela Constituição sul-africana, que prevê explicitamente a desapropriação para fins de reforma agrária e a indenização a preços inferiores ao mercado, mas, ao contrá- rio, representou uma opção política alinhada com a estratégia macroeconômica neoliberal mais ampla (e em acordo com os investidores) adotada pelo CNA em 1996 (Banco, 1994; Hall, Jacobs & Lahiff, 2003). A reforma agrária na África do Sul ficou permanentemente aquém das me- tas fixadas pelo Estado e aquém das expectativas populares. Ao término do

109 apartheid,4 praticamente todas as áreas empresariais cultivadas no país (cerca de 86% de toda a terra agricultável e 68% da superfície total) estavam nas mãos da minoria branca e concentradas nas mãos de aproximadamente 60 mil proprie- tários (Bernstein, 1996, p. 27). Em 1994, o recém-empossado governo do CNA, fortemente influenciado por conselheiros do Banco Mundial, fixou como meta para todo o programa de reforma agrária (redistribuição, reforma da posse e restituição) redistribuir 30% da terra agrícola detida por brancos dentro de um período de cinco anos (Williams, 1996, p. 157). A data-limite foi subseqüente- mente estendida para vinte anos (i.e., para 2014). Porém segundo números atu- ais de transferência de terras, torna-se improvável atingir até mesmo esse obje- tivo. O programa de Redistribuição de Terra para o Desenvolvimento Agrícola (LRAD), principal instrumento de redistribuição com base no mercado, lança- do após uma revisão maior das políticas em 2001, até o momento alcançou apenas 40% de seu objetivo específico, como se sabe, devido aos altos preços da terra (Thomas, 2005). Em julho de 2005, um total de 3,1 milhões de hectares havia sido transferido pelos vários canais do programa de reforma agrária, dos quais o percentual maior (42.97%) aconteceu sob o programa de redistribuição (veja tabela adiante). Foram transferidas quantias menores pela Restituição, Alienação de Terras do Estado e pela Reforma de Posse.5 O total transferido é equivalente a 3,1% da terra agrícola em mãos de brancos em 1994, mas pelo fato de que grande parte da terra transferida como Restituição e Reforma de Posse, e toda a terra sob a Alienação de Terras Públi- cas, era de propriedade estatal, o impacto real sobre a terra nas mãos dos brancos é consideravelmente menor (Hall, 2004a, p. 27).6 Nessas estatísticas, falta a quantia de distribuições “puras” de mercado (i. e. vendas de terras não-ligadas a programas oficiais de reforma agrária) e, mais significativamente, o imenso número de habi- tantes rurais (trabalhadores, arrendatários e seus dependentes) que perderam o aces- so à terra em fazendas empresariais em mãos de brancos desde 1994. Um recente estudo de Wegerif, Russell e Grundling (2005) constatou que mais de dois milhões de habitantes do meio rural – muitos deles arrendatários que se dedicavam à produção independente – tinham sido deslocados entre 1994 e 2004, um número maior que na última década do apartheid (1984-1994) e muito maior que o número total de pessoas beneficiadas sob todos os aspectos do programa de reforma agrária oficial desde seu início.7 Cabe salientar que as conquistas exatas do programa de reforma agrária repre- sentam uma questão de intenso debate, em grande parte devido à informação precária por parte das agências estatais competentes.

110 Tabela 1 – Transferência de Terras pelos Programas de Reforma Agrária da África do Sul Programa Hectares distribuídos Parcela do total (%) Redistribuição 1.347.943 42,97 Restituição 916.470 29,21 Alienação de terras públicas 772.626 24,63 Reforma da posse 100.175 3,19 TOTAL 3.137.214 100,00 Fonte: Ministério de Agricultura e Questões Fundiárias (África do Sul, 2005).

As seções seguintes examinam o programa sul-africano de reforma agrária sob as cinco características esboçadas acima.

2.1. Veto dos proprietários de terras na participação da reforma agrária: o mercado seleciona a terra Na África do Sul, a deliberação absoluta do proprietário de terras quanto à participação se tornou uma característica definida do programa de reforma agrária do Estado. Essa discrição se aplica diretamente às áreas de distribuição de terra e à reforma da posse de terra de trabalhadores rurais, mas também influi pesadamente no processo de restituição com base em direitos que, na teoria e pela lei, fica fora do paradigma “vendedor disposto, comprador dis- posto”.8 Não satisfeito com a concessão desse poder de veto aos proprietários de terras, o Estado evitou assiduamente, por um período de onze anos, qual- quer medida que pudesse ser interpretada como influência sobre os proprie- tários de terras para vender, tais como uma negociação coletiva com organiza- ções de proprietários, afastando violentamente pessoas sem-terra que ocupavam áreas ilegalmente. Por ironia, tem sido uma queixa periodicamente recorrente de proprietários de terras dispostos a vender a terra ao Estado para fins de reforma que suas ofertas são ignoradas, visto que procedimentos oficiais somente são desencadeados para responder a potenciais compradores, não aos vendedores.9 O Diretor Geral do Departamento de Questões Fundiárias (DLA) relatou recentemente a uma co- missão parlamentar que o seu departamento deixa de lado ofertas não-solicitadas de proprietários de terras, devido à falta de capacidade operativa e porque os pos- síveis beneficiários não foram previamente identificados:

Em muitos casos eles [os proprietários de terras] não dizem quem são as pessoas a ser beneficiadas... Não se trata de um sistema orientado pela oferta… O Departamento não se dispõe a adquirir terras sem um beneficiário imediato em vista, por causa de problemas de capacidade dentro de suas próprias fileiras (Thomas, 2005).

111 Embora haja um mercado imobiliário ativo na África do Sul, existem razões para acreditar que boa parte da terra negociada não está acessível a beneficiários da reforma agrária.10 Houve denúncias de conluio entre proprietários de terra, contrários à reforma agrária, freqüentemente com base em racismo explícito, mas a comprovação do alcance dessa ação é limitada (Aliber & Mokoena, 2002; Tilly, 2004). Terra de boa qualidade que chega ao mercado livre tende a ser vendida por leilão público ou contrato privado e a transferência da propriedade acontece tipi- camente dentro de aproximadamente três meses a partir da proposta inicial de venda. A provisão de financiamento para futuros beneficiários da reforma agrária em geral leva significativamente mais tempo ainda para ser processada, devendo ser vinculada a uma propriedade específica. O processo de aprovação requer, entre outras coisas, um acordo de venda por escrito por parte do proprietário da terra, um preço acordado que seja confirmado como “adequado ao mercado” por um avaliador independente e um plano agrícola detalhado. Para reunir tudo isso, a demora pode ser de um período entre três meses e dois anos. Logo, futuros beneficiários não podem participar de leilões, nem “sair às compras”, nem confirmar uma compra dentro do prazo habitual, de modo que são excluídos da grande maioria das vendas, em um mercado de terras que continua sendo altamente competitivo.11 Na prática, os “vendedores dispostos” são obrigados a esperar por um período extenso até a confirmação da venda, correndo o risco de que a solicitação seja descartada por motivos técnicos ou pela falta de fundos disponíveis.12 Embora sobre esse ponto pouca comprovação sólida tenha sido produzida até o presente, parece plausível presumir que somente um proprietário de terras excepcionalmente compromissado com a causa da reforma agrária, ou que não consegue alienar a terra por outros meios (por exemplo, devido à localização ou à qualidade precária da terra), tenderá a entrar em uma transação de reforma agrária (Aliber & Mokoena, 2002). A alternativa óbvia do próprio Estado comprar a terra em nome de beneficiários aprovados foi rejeitada pelo Departamento de Questões Fundiárias com os questionáveis argumentos de que isso constituiria um enfoque orientado pela “oferta” e de que haveria o risco do Estado ficar com terra que não poderia conservar nem se desfazer. Em uma série de aspectos importantes, as políticas implementadas pelo go- verno sul-africano divergem do modelo de RAM, em formas que tendem a inibir a disponibilidade de terra. Primeiro, por muito tempo foi alegada a necessidade de um imposto territorial como meio de encorajar a venda de terra subutilizada e limitar a especulação, mas isso tem sido evitado pelo governo sul-africano como

112 parte de sua política geral de reduzir a tributação e encorajar o investimento do setor privado, e devido à oposição de proprietários de terras. Em segundo lugar, a subdivisão de propriedades grandes é geralmente considerada como elemento fundamental da promoção do acesso à terra, especialmente em países com lati- fúndios altamente concentrados. O parcelamento de propriedades rurais era proibido por lei no regime do apartheid. Embora essa lei tenha sido revogada pelo Parlamento, aguarda, há mais de três anos, a assinatura presidencial necessária para tornar efetivo o ato, e não parece desfrutar de respaldo político. Além disso, a subdivisão da terra é conside- rada um processo caro e administrativamente incômodo, sendo improvável que seja feita por proprietários de terras, ainda que legalmente permitida (Aliber & Mokoena 2002, p. 30). A conseqüência é que a terra continua chegando ao mer- cado em lotes relativamente grandes, e grupos de possíveis beneficiários são obri- gados a agrupar seus subsídios para adquiri-los.13 Não há provisão de qualquer ajuda para beneficiários que desejam subdividir propriedades depois da aquisi- ção, um processo ativamente desencorajado por gestores da reforma agrária. Em decorrência, financiamentos restritos, orçamentos limitados, processos de aprovação longos e restritivos e o preconceito dos proprietários de terras conver- gem para assegurar que possíveis beneficiários da reforma agrária fiquem limita- dos a uma pequena porção da terra que entra anualmente no mercado. Com fre- qüência, acabam obtendo terra de qualidade relativamente pobre e mais extensa do que desejariam. Candidatos à reforma agrária relativamente pobres, sem expe- riência e mal-informados consideram praticamente impossível competir no “mer- cado livre” com compradores mais experientes e com maiores recursos. Uma par- cela considerável de “redistribuição” de terras, na verdade, envolve terras públicas, não carecendo de uma transação de mercado e, mais importante, em termos po- líticos, deixa predominantemente intactas propriedades em mãos de brancos.14

2.2. Pagamento de “preços de mercado” pela terra (normalmente adiantado e em dinheiro): o mercado estabelece o preço O pagamento de preços de mercado (ou pela equivalência de mercado) tem sido central para a RAM na África do Sul, estando intimamente conectado ao direito de veto dos proprietários de terras. Diferente do caso do Zimbábue dos anos de 1980, os proprietários de terras não somente têm a opção de vender ou não a terra, como também podem escolher a quem vender e a que preço. O pagamento a preços de mercado sofreu insistente oposição por parte de organizações representativas dos sem-terra, como foi demonstrado na Cúpula Nacional da Terra, em julho de 2005,

113 sendo declarado “inegociável” pelos proprietários de terras. De fato, recentes pro- nunciamentos de proprietários de terras sugerem que poderia haver alguma aceita- ção de medidas de não-mercado, até mesmo a desapropriação, para a obtenção de terra, porém não de pagamento a preços inferiores ao mercado (Crosby, 2005). Na prática, os preços pagos para fins de reforma agrária são fixados por avalia- dores imobiliários profissionais15 e mantidos pelo DLA, que gera sua própria esti- mativa de preços de mercado baseada em fatores como vendas recentes de proprie- dades comparáveis na região. Quando uma estimativa dessas fica abaixo do preço solicitado pelo proprietário, acontece uma negociação limitada entre o DLA e o proprietário (normalmente pelo correio). Os proprietários são livres para aceitar ou rejeitar a oferta feita pelo DLA. Os possíveis beneficiários não exercem nenhu- ma função direta sobre esse processo, motivo pelo qual não têm nenhum poder para influenciar o preço pago ou o desfecho das negociações. Houve notícias de casos de transações que fracassam devido a diferenças mínimas entre o preço soli- citado e a quantia oferecida pelo DLA, dando a entender que habilidades na ne- gociação não são comuns entre os funcionários governamentais (Tilly, 2004). Há amplas acusações de que as transações da reforma agrária pagam mais pela terra que os preços praticados no mercado, devido a altos preços demandados pelos proprietários e ao possível conluio entre os donos, avaliadores e funcionários, em- bora exista pouca evidência sólida para corroborá-las. Em março de 2005, o Parla- mento ouviu falar de um caso na Província de Mpumalanga, envolvendo o conluio entre um chefe do DLA, avaliadores e proprietários, onde foram adquiridas fazen- das por dez vezes o preço pelo qual haviam sido negociadas há poucos anos.

Na fraude, os fazendeiros inflaram o valor de suas fazendas, e os avaliadores confir- maram essas estimativas falsas, que depois foram apresentadas a funcionários corrup- tos do governo que então emitiram os pagamentos. Em seguida os fazendeiros paga- ram propinas ao funcionário e ao avaliador.16

Aliber e Mokoena (2002, p. 27) argumentam que, na África do Sul, a RAM coloca os proprietários de terras em uma posição de negociação robusta por causa do número limitado de propriedades oferecidas para fins de reforma agrária. Isso acontece porque, freqüentemente, os candidatos têm forte preferência por uma propriedade específica (devido à proximidade de sua moradia atual ou por laços ancestrais), por causa do custo adicional que significaria (para governo e candida- tos) se as negociações fracassassem e o longo processo de planejamento tivesse de recomeçar em relação a outra propriedade.

114 Em um estudo sobre a Província Setentrional do Cabo, Tilly (2004) identifi- cou entre proprietários a noção de que candidatos à reforma agrária e o DLA não eram parceiros “confiáveis” de negociação; os candidatos porque não têm autono- mia para cuidar das negociações em seu próprio interesse, permanecendo depen- dentes de que funcionários públicos determinem o valor final do subsídio e con- cluam a transação; o DLA por causa de “seus procedimentos protelatórios, estilo de negociação e fases cíclicas de projetos” (Tilly, 2004, p. 38). Um agente imobi- liário com experiência no processo de reforma agrária descreveu a visão dos pro- prietários de terra nos seguintes termos:

O processo do DLA é muito lento. O Departamento não parece ser capaz de manter o ritmo das transações de terra e os vendedores se frustram. Os vendedores chegaram agora ao ponto em que preferem evitar negociar com o DLA ou simplesmente disponibilizar a terra para a reforma agrária por causa do processo burocrático e do longo período de espera entre cada fase da transação (citado por Tilly, 2004, p. 39).

A fixação do preço, portanto, acontece por meio de processos altamente bu- rocráticos, que mantêm apenas uma relação distante com o funcionamento do mercado “real” de terras. Os “vendedores dispostos” e os “compradores dispos- tos”, muitas vezes, encontram-se cativos de um processo protelado e incerto, con- trolado por funcionários, que tentam aplicar “princípios” de mercado, uma resso- nância remota do encontro independente de “compradores e vendedores dispostos no mercado” idealizado por seus proponentes (Deininger, 1999). Uma alegação específica da RAM é que, se forem pagos preços à vista aos pro- prietários de terras no ato da venda, isso a tornará atraente aos proprietários de terras, mantendo baixos os preços. O oposto parece ocorrer na África do Sul. Os proprietários de terras e seus representantes não somente reclamam dos procedi- mentos burocráticos prolongados e complicados em torno dos acordos de venda, mas também das demoras no pagamento uma vez atingido um acordo.

Em alguns casos os proprietários venderam as fazendas há quatro anos e ainda estão esperando pelo dinheiro do governo e para que a transação seja consolidada. Conti- nuam nas fazendas, esperando que algum dia possam se mudar (Raal, 2005).

Podemos concluir que, enquanto os preços de mercado servirem como guia para os valores pagos em transações da reforma agrária, o processo é passível de manipulação e que tanto o processo de negociação quanto o tempo envolvido

115 apresentam pouca semelhança com negociações mercantis convencionais. Os fu- turos beneficiários da reforma agrária são incapazes de competir no mercado livre imobiliário, sendo compelidos a se conformar com vendas “fechadas”, negociadas entre proprietários de terras e funcionários públicos. A complexidade burocrática do processo não o torna atraente para proprietários de terras e é provável que, no mínimo, alguns proprietários de terras entram nas transações de reforma agrária para livrar-se de propriedades que, de outro modo, não conseguiriam vender, ou porque acreditam que podem obter um preço mais favorável do que no mercado livre.

2.3. Auto-seleção de beneficiários (“conduzida pela demanda”): o mercado seleciona os beneficiários A RAM é baseada no princípio de que os beneficiários se “auto-selecionarão”, ao invés de serem escolhidos por funcionários do governo. Na prática, a auto-se- leção pode assegurar que sejam excluídas pessoas que não têm nenhum interesse na reforma agrária, mas ela não garante que aqueles que se inscrevem no progra- ma consigam a terra que desejam. Isso se deve a uma combinação de fatores de mercado (como descritos acima) e não-mercadológicos, especificamente o pro- cesso de candidatura, aprovação e financiamento administrado por funcionários públicos. Pouco se sabe acerca do tipo de pessoas beneficiadas com a reforma agrária, dos que se inscrevem e são rejeitados, e dos que nem sequer são alcançados pelo progra- ma. Desde o início, o programa de reforma agrária sul-africano é acometido de uma falta de informação básica, resultante de um processo inadequado (e freqüentemente inexistente) de monitoramento e avaliação.17 O resultado é uma falta de dados se- guros acerca das características socioeconômicas dos beneficiários que ingressam no programa (por exemplo, seu grau de formação, situação de emprego, propriedades, renda, aptidão agrícola), bem como acerca do impacto da reforma agrária no sus- tento familiar e na economia rural. Cumpre salientar que, embora uma parcela dis- so possa ser atribuída à precariedade do sistema de gerenciamento de dados do DLA, e aos relatórios esparsos, grande parte do problema – particularmente no que tange ao perfil socioeconômico dos beneficiários – deve-se ao fato de que dados relevantes simplesmente deixam de ser coletados. Em decorrência, tem havido uma considerá- vel especulação a respeito de quem exatamente está se beneficiando com o progra- ma e como isso poderia mudar com o tempo. Os poucos estudos disponíveis indicam que somente uma pequena parte dos sem-terra e os com pouca terra vem obtendo acesso ao programa. São predomi-

116 nantemente homens alfabetizados acima dos quarenta anos de idade e, cada vez mais, se trata de pessoas com salários (inclusive pensões), em lugar de desempre- gados, gozando de acesso relativamente bom à informação (Lahiff, 2000; Wegerif, 2004; Jacobs, Lahiff & Hall, 2003; Hall, 2004b). Um estudo do Conselho de Pesquisa de Ciências Humanas (HSRC) constatou que o programa de LRAD es- tava alcançando uma gama de interessados, contudo não conseguiu confirmar a inclusão dos extremamente pobres: “Embora seja claro que a LRAD cuida mais de candidatos bem-situados (…), ainda é acessado amplamente por lares pobres. É incerto se ‘os mais pobres dos pobres’ estão acessando ou não a LRAD em nú- meros significativos” (HSRC, 2003). Isso é reflexo tanto da diferença na capaci- dade de indivíduos para acessar o programa estatal, como de opções deliberadas feitas pelos políticos e gestores. Embora oficialmente a política de reforma agrária vise alcançar uma gama de beneficiários – incluindo mulheres, pessoas jovens, desempregados, trabalhado- res rurais e aspirantes a empresários rurais –, houve nos anos recentes uma notável mudança na política em favor dos últimos (Jacobs, Lahiff & Hall, 2003, p. 11). Isso se manifesta de duas maneiras principais: o montante de subsídios (e emprés- timos) individuais concedidos e os critérios de avaliação dos “planos de negócio” (ou seja, planos de uso da terra e prospecções econômicas). Desde 2001, o montante de subsídios concedidos a candidatos da reforma agrária bem-sucedidos é determinado pela quantia da “contribuição própria” feita pelo candidato. A contrapartida pode ser em dinheiro ou em produtos e equipa- mentos (por exemplo, implementos agrícolas ou gado).18 Os subsídios também podem ser usados para melhorar empréstimos no Banco Agrícola estatal (e vive- versa, ou seja, empréstimos podem ser usados como “contribuição própria” para aumentar os subsídios), favorecendo ainda mais quem consegue comprovar ati- vos. As contribuições próprias não fluem necessariamente para a aquisição da ter- ra, especialmente quando a contribuição é em produtos ou máquinas, e não em dinheiro. Isso significa que, na maioria dos casos, a terra é adquirida completa- mente com o subsídio da reforma agrária (ou, algo menos comum, por uma com- binação de subsídio e empréstimo – Hall, 2004b). Longe de ser uma “contribuição” para o empreendimento agrícola, asseguran- do assim o comprometimento (ou “inserção econômica”), como alegariam os defensores da RAM, a “contribuição própria”, no caso sul-africano, simplesmente qualifica o candidato a um grau maior ou menor de apoio financeiro, já que as estimativas de valor dos ativos são usadas para “recompensar” os candidatos com níveis variáveis de subsídios e empréstimos. Isso parece ser uma prática tosca de

117 “apoiar o vencedor” (ou, pelo menos, o mais bem situado), que pode muito bem render projetos mais “viáveis” ou “bem-sucedidos” para os poucos afortunados, porém não pelas razões geralmente apresentadas. Enquanto a tabela da “contri- buição própria” determina o montante do subsídio, a aprovação do financiamen- to depende da elaboração de um plano de negócios aceitável que demonstre “via- bilidade econômica”. Isso será debatido abaixo. No início do programa sul-africano de reforma agrária, Zimmerman (2000) identificou uma série de barreiras geradas pelo conceito de “racionamento orien- tado pela demanda”, ou auto-seleção, que provavelmente excluirão grupos mais pobres. Zimmerman realça a falta de clareza na política acerca dos beneficiários previstos da reforma agrária, argumentando que sem uma ênfase clara na redução de pobreza, um programa orientado pela demanda provavelmente será conduzi- do em grande parte por considerações de eqüidade racial que pressupõem uma população negra homogênea:

Um nítido perigo no esquema de distribuição orientado segundo a demanda é que os segmentos mais ricos da população rural provarão que são mais capazes de participar, perfazendo por isso os beneficiários principais, ao passo que os segmentos mais po- bres serão deixados predominantemente sem os benefícios do programa (Zimmerman, 2000, p. 1441).

O constante fracasso em definir com clareza os beneficiários previstos pela reforma agrária, a falta de uma estratégia específica de mitigação da pobreza, a ênfase na viabilidade econômica e as falhas crônicas em monitorar o programa sugerem que a exclusão dos grupos pobres e marginalizados deverá continuar.

2.4. Foco nas “formas empresariais de produção”: o mercado determina o que é produzido Conforme argumentado acima, a atual política de reforma agrária da África do Sul faz uso extenso da linguagem da “viabilidade” comercial e econômica. Essa ên- fase aumentou consideravelmente desde o início do programa, em particular desde a introdução do programa de LRAD, em 2001. Com o LRAD visava-se cuidar de um hiato percebido no programa anterior (SLAG)19, que concedia subsídios relati- vamente pequenos a famílias de baixa renda, porém não satisfazia as necessidades de agricultores “emergentes” (i. e., mais bem situados e mais voltados ao mercado). Poucos meses depois de ser lançado como um “subprograma” de redistribuição, a LRAD na prática havia substituído totalmente o SLAG, que agora é usado apenas para projetos pequenos, não-agrícolas (por exemplo, habitação e desenvolvimento

118 da pequena empresa). Em conseqüência, a lógica “empresarial” da LRAD é aplicada a todos os candidatos à reforma agrária, independente de seus recursos, capacidades ou objetivos declarados (Lahiff, 2001; Lahiff & Cousins, 2005). Essa lógica “empresarial” é imposta pelos onipresentes planos produtivos, ela- borados por funcionários de assistência rural ou consultores privados designados pelo DLA, que podem estabelecer mero contato superficial com os futuros beneficiários (HSRC, 2003; Hall, 2004b; Wegerif, 2004). É típico que esses pla- nos prevejam projeções ultra-otimistas de produção e lucros, com base em mode- los de manuais obtidos do setor agrícola empresarial e, além disso, influenciados pelo uso passado da terra em questão (Jacobs, Lahiff & Hall, 2003, p. 25). Em geral, planos produtivos presumem grandes quantias de capital de giro, que tipi- camente não está disponível nos subsídios de reforma agrária nem pode ser aportado pelos próprios beneficiários. A negativa de concessão de empréstimos, como acon- tece com freqüência, torna inexeqüível o plano produtivo. Contudo, os funcioná- rios públicos via de regra insistem em que os beneficiários obedeçam a esses pla- nos, fazendo disso uma condição para a liberação de subsídios discricionários a que os beneficiários poderiam fazer jus. Nos casos em que foi tomado crédito para implementar o plano produtivo, houve amplos informes (mas nenhum dado ofi- cial) de inadimplência, conduzindo a algumas ameaças de recuperação das pro- priedades pelos bancos. O Estado interveio em vários casos, no esforço de preve- nir a retomada, aportando financiamento adicional. Uma debilidade central da maioria dos planos produtivos é que presumem que a fazenda será operada como uma só unidade (i. e., da forma como foi usada pelo dono anterior), independente do tamanho do grupo beneficiário (HSRC, 2003, p. 71). Conforme exposto acima, devido à falta de apoio para o parcelamento da terra, freqüentemente os beneficiários são obrigados a comprar propriedades muito maiores do que necessitam e a ampliar o tamanho dos grupos para agregar subsídios suficientes para atingir o preço de compra. Isso faz com que muitos pro- jetos assumam empreendimentos maiores do que o previsto e surjam numerosos problemas de dinâmica grupal quando fazendas de um único dono são transfor- madas em coletivos agrícolas. A forte ênfase na produção coletiva se origina diretamente da necessidade de formar grupos para adquirir grandes propriedades de terra, bem como da recusa dos funcionários em considerar a subdivisão ou outras alterações na prática agrí- cola tradicional. Documentos oficiais são notoriamente omissos quanto às for- mas preferidas do uso de terra, e em nenhuma parte do discurso oficial se usa o termo “coletivo” ou “agricultura grupal”. Apesar disso, tentativas de agricultura

119 coletiva se tornaram marca oficial de projetos de reforma agrária na África do Sul, sendo indubitavelmente uma das principais razões para a elevada taxa de insucesso dos projetos.20 Bradstock descreve assim a situação na Província Setentrional do Cabo:

O DLA é responsável para elaborar planos [produtivos], mas normalmente são elabo- rados de forma isolada e escritos principalmente para satisfazer objetivos administrati- vos e não de desenvolvimento. Sem planejamento para orientar os grupos, muitos deles administram suas propriedades de uma maneira improvisada. Isso freqüentemente leva a uma falta de dinheiro em momentos-chave do calendário agrícola, como o pagamen- to do plantio ou da colheita de uma lavoura. Além disso, por causa das dificuldades de acesso ao crédito, o grupo muitas vezes passa por “crises de caixa” que são solucionadas pela venda dos ativos mais líquidos da fazenda, como gado (…) o que pode pôr em risco a futura sustentabilidade financeira do projeto (2005, p. 16).

Em suas tentativas constantes de imitar grandes fazendeiros empresariais, mediante um discurso político que privilegia o mercado acima de tudo, os funcio- nários estatais tiveram êxito em criar uma paródia de iniciativa privada: grupos de agricultores negros (predominantemente) pobres, lutando (e muitas vezes fracas- sando) no único programa de coletivização do mundo atual patrocinado pelo Estado. A intensa ênfase na “agricultura empresarial” também levou a um grande número de empreendimentos conjuntos com empresas agrícolas estabelecidas, notavelmente segundo “esquemas de participação no patrimônio líquido”, por meio dos quais os trabalhadores rurais usam seus subsídios da reforma agrária para comprar ações em empresas existentes. Preços elevados da terra, altos cus- tos iniciais e mercados extremamente competitivos em setores como horticultura e vitivinicultura significam que os esquemas de participação no patrimônio lí- quido têm sido a principal forma de “redistribuição” de terras em regiões como a Província Ocidental do Cabo. Estudando uma série de empreendimentos con- juntos, Mayson (2003) constatou que poucos haviam chegado a uma transfe- rência significativa de poder ou benefícios para trabalhadores, particularmente quando os trabalhadores obtiveram somente uma participação minoritária na empresa, e conclui que muitos deles são estimulados pela necessidade do pro- prietário por capital adicional. A exigência para que planos produtivos evidenciem “viabilidade econômi- ca” e a proibição efetiva da subdivisão significam que a maioria dos projetos de

120 reforma agrária é criada à imagem (distorcida) de propriedades empresariais de grande escala. Encontra pouco espaço no programa de reforma agrária oficial a difundida demanda de pequenas parcelas de terra para sustento familiar e em- pregos de tempo parcial, verbalizada em numerosos ensaios (Marcus, Eales & Wildschut, 1996; Levin & Weiner, 1997; Lahiff, 2000) e por meio de organiza- ções dos pobres do campo, como o Landless People Movement (LPM – Movi- mento do Povo Sem-Terra).

2.5. Papel preponderante do setor privado no fornecimento de crédito, extensão e outros serviços aos beneficiários: o mercado provê a assistência Assim como muitos outros aspectos da reforma agrária de mercado na África do Sul, o papel anunciado do setor privado não se materializou na extensão pre- sumida por seus proponentes. As últimas duas décadas presenciaram uma sensí- vel redução nos serviços governamentais disponíveis para agricultores. Enquanto o grande agronegócio conseguiu superar isso pelo acesso a uma gama de serviços empresariais e cooperativos, os beneficiários da reforma agrária e outros agricul- tores de pequena escala são geralmente obrigados a se virar sozinhos (Vink & Kirsten, 2003). Estudos recentes demonstram que os beneficiários da reforma agrária passam por numerosos problemas em acessar serviços, tais como crédito, capacitação, assistência técnica, serviços de transporte e aração, atendimento ve- terinário e acesso aos mercados de insumos e produtos (HSRC, 2003; Hall, 2004b; Wegerif, 2004; Bradstock, 2005). Serviços disponíveis a beneficiários da reforma agrária tendem a ser oferecidos por departamentos de agricultura das províncias e por um pequeno número de organizações não-governamentais, porém evidências apontam que servem apenas a uma minoria de projetos. Em um estudo dos projetos de LRAD em três provín- cias, o HSRC constatou que “em muitos casos ainda não há nenhuma alternativa institucionalizada para carregar todo o fardo do treinamento, monitoramento e capacitação geral nos departamentos agrícolas das províncias” (HSRC, 2003, p. 72). Uma análise de nove projetos de LRAD na Província Oriental do Cabo, Hall (2004b) constatou que nenhum deles havia recebido apoio do setor privado, e a maioria não teve qualquer contato com o DLA ou com o Departamento de Agri- cultura depois da obtenção da terra. Em novembro de 2005, a ministra da Agricultura e Questões Fundiárias in- formou ao Parlamento que 70% dos projetos de reforma agrária na Província de Limpopo não eram funcionais, o que ela atribuiu à precariedade do projeto, à dinâmica negativa dentro dos grupos e à falta de apoio após o assentamento.21

121 Para Jacobs (2003), a falta de sucesso geral de apoio pós-assentamento (ou pós-transferência) se origina de uma falha em conceituar a reforma agrária além da fase da transferência de terra, e da comunicação precária entre o DLA nacional (responsável pela reforma agrária) e os nove Departamentos de Agricultura das províncias (responsáveis pelos serviços governamentais aos agricultores). Segun- do ele,

A distinção rígida na política fundiária da África do Sul entre a entrega da terra e o desenvolvimento agrícola fez com que o apoio pós-transferência fosse largamente negligenciado. Não há nenhuma política abrangente de apoio ao desenvolvimento rural depois da transferência da terra, e as agências encarregadas dessa função avan- çam pouco nesse aspecto. A assistência rural a projetos de reforma agrária específicos acontece pela improvisação… (Jacobs, 2003, p. 7).

Essa falta de coordenação entre os departamentos, voltados para a agricultura e questões fundiárias, se soma à comunicação precária com outras instituições essenciais, como o Departamento Habitacional e o Departamento de Questões de Água e Florestas, bem como as estruturas governamentais locais (Hall et al., 2004). A necessidade de apoio adicional a beneficiários da reforma agrária foi re- centemente admitida pelo Ministério da Agricultura e Questões Fundiárias, le- vando à introdução, no orçamento nacional de 2004/05, de um novo Programa de Apoio Agrícola Abrangente (CASP), com um total de $ 750 milhões de rands (em torno de US$ 125 milhões) alocados para um período de cinco anos. Além dessa facilidade de subsídios, estão sendo elaborados planos para reintroduzir o esquema de crédito rural, desativados no passado, e igualmente direcionado para camponeses e agricultores “emergentes” (porém, não exclusivamente para beneficiários de reforma agrária – Hall & Lahiff, 2004). O bem-desenvolvido setor do agronegócio (privado) que atende à agricultura empresarial de grande escala não demonstrou mais que um interesse simbólico em estender suas operações a novos agricultores, cuja maioria de qualquer modo seria in- capaz de pagar por esses serviços. A suposição de que o setor privado “responderia” de alguma maneira à demanda de beneficiários de reforma agrária com necessidades muito diferentes das dos fazendeiros empresariais estabelecidos não tem sido comprovada pela experiência recente. A explicação principal disso é que os beneficiários de reforma agrária, em geral, estão amarrados financeiramente e não se encontram em condições de evidenciar qualquer demanda efetiva dos serviços em oferta, ainda que esses servi- ços fossem reciclados segundo suas necessidades específicas.

122 Conclusão

A reforma agrária de mercado estabelece exigências tanto de patrimônio líquido como de eficiência, mas foram levantadas graves preocupações em torno das duas dimensões no caso da África do Sul, como eco à experiência do Zimbábue nos anos oitenta. O ritmo extremamente lento da reforma (muito aquém das metas oficiais) constitui a limitação mais evidente aos ganhos patrimoniais. Porém, a isso se agrega uma ênfase na alienação de terras estatais e alteração dos regimes de posse, que deixa intacta a ampla maioria dos proprietários brancos. A alienação de terras já cedidas para o uso de negros, junto com a remoção em massa de posseiros, somente serve para completar processos iniciados sob o apartheid, resultando em pequena redistribuição líquida de estoques. Além disso, uma gama de barreiras imposta pelo funcionamento do mercado e por processos burocráticos, aliada à falta de uma es- tratégia digna de crédito para diminuir a pobreza, torna provável que os principais ganhos patrimoniais se circunscrevam às categorias de raça, com benefícios limita- dos fluindo para os mais pobres. Conclusões mais definitivas requererão dados bem melhores que os atualmente disponíveis. De fato, é sintomático da natureza não- estratégica (ou liberal) do programa operar sem uma retro-alimentação efetiva com dados de qualidade para dentro do processo de planejamento e implementação. Quanto à eficiência, a informação limitada que emerge do programa indica que o quadro é predominantemente negativo, pelo menos no curto prazo. Os projetos levam tempo excessivo para começar a operar – demoras de dois ou três anos após a data da transferência do título são comuns – devido a uma combinação de planos produtivos superambiciosos (e impróprios), escassez de capital de giro e liberação lenta de subsídios adicionais pelos departamentos governamentais responsáveis. Aqueles projetos que alcançam a fase de produção geralmente o conseguem a um nível muito baixo, utilizando apenas uma pequena parte da terra adquirida, e com baixos níveis de intensidade, tanto na agricultura como na pecuária.22 Embora isso possa representar certa melhoria na produção agropecuária para os indivíduos en- volvidos (em geral vindos de um patamar muito baixo) e até mesmo para a proprie- dade específica (evidências sugerem que algumas fazendas estavam ociosas nos anos imediatamente anteriores à redistribuição), constitui um retorno precário dos re- cursos públicos investidos e solapa o argumento político em favor da reforma.23 A RAM na África do Sul conseguiu transferir montantes relativamente peque- nos de terra, uma média aproximada de 0,3% da terra agrícola prevista por ano, e apenas cerca de 5% do total de imóveis rurais negociados. As transações de reforma agrária se distanciam consideravelmente das negociações comerciais “normais”, pa-

123 recendo estar concentradas em terras menos procuradas, adquiridas por mais do que obteriam no mercado livre. A complexidade burocrática do processo de candidatu- ra e aprovação assegura que os beneficiários previstos não consigam competir no mercado “real”, mas operem em um mercado paralelo controlado por burocratas, tendo pouca influência sobre as negociações finais de compra ou de preços pagos. Modelos de planos produtivos baseados em premissas questionáveis acerca da “viabilidade econômica”, aliados à ausência de qualquer estratégia de combate à pobreza, servem de discriminação contra os muito pobres, porém não asseguram necessariamente projetos mais “bem-sucedidos”. Uma predisposição oficial forte em favor da continuidade da produção e contra o parcelamento fundiário contribui para o baixo desempenho de muitos projetos e efetivamente exclui a maioria dos que buscam terra e requerem pequenos lotes de terra com a principal finalidade do con- sumo doméstico. Os anunciados serviços de apoio do setor privado a novos agricul- tores e produtores emergentes não se concretizaram, em grande parte devido à baixa produtividade e disponibilidade limitada de capital de giro entre os beneficiários previstos. Isso demandou a reintrodução de serviços de apoio governamental que, no entanto, continuam mal coordenados e precariamente direcionados. Uma questão central que se impõe é se o fraco desempenho da RAM na Áfri- ca do Sul pode ser atribuído ao próprio modelo, ou à forma parcial com que o modelo foi aplicado. Não pode haver dúvidas de que um mercado fundiário ativo apresenta oportunidades de redistribuição, mas essas oportunidades estão sendo desperdiçadas em grande parte devido à incapacidade das instituições governa- mentais (ou dos próprios beneficiários previstos) para se engajar efetivamente nes- se mercado.24 Além disso, a não introdução de um imposto territorial, ou de encorajamento à subdivisão, milita contra a redistribuição via mercado, criando uma nova demanda sem atender diretamente à questão da oferta. A única contri- buição positiva que o Estado talvez possa dar nos contornos de uma abordagem “baseada no mercado”, para fazer uso da experiência do Zimbábue, seria adquirir pró-ativamente terras (para beneficiários pré-identificados) à medida que são trazidas ao mercado, através de aquisições convencionais ou com base em uma prerrogativa de primeira recusa, sem ter de infligir processos incômodos de plane- jamento e seleção de projetos tanto a futuros beneficiários como a vendedores. Entretanto, isso foi rejeitado repetidamente pelo Estado, com o questionável embasamento de que representaria um enfoque “conduzido pela oferta” e que dilapidaria o conceito da “auto-seleção”. Em decorrência, pode ser argumentado, por um lado, que o fraco desempenho do programa de reforma agrária sul-africa- no pode ser atribuído, pelo menos em parte, à maneira ineficiente com que está

124 sendo aplicado o modelo baseado no mercado. No entanto, por outro lado, evi- dências sugerem que uma aplicação mais vigorosa da RAM continuaria encon- trando problemas estruturais e administrativos maiores, tanto nos objetivos patrimoniais como de eficiência. Sem apoio apropriado de um aparato estatal eficaz, é improvável que pessoas relativamente pobres obtenham terra no mercado livre ou sejam capazes de fazer uso dela de uma forma que tenha um impacto significativo em seu próprio sustento ou na economia mais ampla. Se tiverem a opção, os proprietários de terras continuarão favorecendo canais convencionais (tanto do tipo “aberto” como “fechado”) para se desfazer de terras e evitarão as “não-confiáveis” transações de reforma agrária. Ainda que o mercado fosse capaz de propiciar a terra necessária aos que dela precisam, as evidências indicam que a maioria dos beneficiários continuaria dependendo do Estado para ter apoio no futuro próximo e que dificilmente se adaptaria ao modelo “empresarial” dominante que vem sendo promovido atualmente. Existe nitidamente pouco entusiasmo no seio das forças sociais e políticas pre- dominantes na África do Sul em prol de uma reforma agrária radical, e a RAM forneceu a justificativa para que se evitem os tradicionais enfoques conduzidos pelo Estado e populares. A retórica populista sobre a necessidade de olhar “além do mercado” continua sendo usada pelos velhos políticos para aplacar os movi- mentos sociais rurais em ocasiões como a Cúpula Nacional da Terra, mas isso contrasta vigorosamente com as repetidas garantias dadas a grandes fazendeiros empresariais em fóruns como o Grupo de Trabalho Presidencial sobre a Agricul- tura, e a interesses empresariais negros que espreitam oportunidades sob o novo programa AgriBEE (Empoderamento Econômico Rural Negro). Do lado dos proprietários de terras – muitos deles abertamente hostis à nova ordem democrá- tica e aos processos de reforma agrária –, a RAM criou oportunidades para que vendam terras das quais talvez não conseguiriam se desfazer de outra forma, e a preços mais altos que aqueles que o mercado ofereceria. Propiciou injeções de dinheiro vivo com pequenas mudanças no poder ou no fluxo de benefícios no caso dos esquemas de participação patrimonial, permitindo aos proprietários de terras como um todo alegar que estão “fazendo algo” pela reforma agrária. Na África do Sul, a RAM concentrou o foco no sentido mais estrito de refor- ma agrária (transferência de terras) e não apenas deixou intacta, mas primordial- mente também não-questionada a estrutura da propriedade da terra e a economia agrícola. Ao se recusar a intervir decisivamente em favor dos sem-terra (seja pelo mercado, seja de outro modo) ou a questionar os interesses de proprietários esta- belecidos e o capital agropecuário, a RAM demonstrou ser incapaz de uma mu-

125 dança fundamental nas condições que reproduzem a pobreza, a situação dos sem- terra e a desigualdade. A evidência que emerge da África do Sul (e da recente ex- periência no Zimbábue) indica que a RAM não oferece uma solução política ou economicamente sustentável para a reforma agrária em sociedades de imigração pós-coloniais. Resta verificar se a oposição às políticas atuais por parte dos sem- terra e dos com pouca terra na África do Sul levará a um enfoque mais intervencionista por parte do Estado ou ao surgimento de formas mais “popula- res” de redistribuição.

Notas

1 Veja Bernstein (2002), Borras (2003), e Deininger & Binswanger (1999). 2 A introdução de um imposto territorial (particularmente sobre a terra ociosa ou sub-utilizada) foi pro- movida como parte da RAM, como meio de restringir a especulação e acumulação fundiárias, aumentan- do assim a disponibilidade (e reduzindo o custo) das terras que vêm para o mercado (Banco, 2003). Na prática, tais medidas do lado da “oferta” raramente foram implementadas, de modo que as RAM enfocaram preponderantemente o lado da demanda. 3 “A reforma agrária redistributiva será, em grande parte, baseada em arranjos de vendedor disposto e com- prador disposto. O governo ajudará na compra de terras, mas em geral não será nem comprador nem dono. Ao contrário, disponibilizará verbas para aquisição de terra e apoiará e financiará o processo de planejamento. Em muitos casos, espera-se que as comunidades reúnam seus recursos para negociar, com- prar e possuir conjuntamente a terra sob um ato de titulação formal.” (Departamento, 1997: 4.3). 4 O regime de segregação racial – denominado apartheid, foi legalmente adotado na África do Sul em 1948 – dava total poder aos brancos, a partir de regras que colocavam os negros como cidadãos de segunda categoria, forçando a maioria a viver em guetos. Este regime foi abolido em 1990 e, em 1994, foram realizadas eleições livres, quando Nelson Mandela, líder do Congresso Nacional Africano, foi eleito pre- sidente (nota do revisor). 5 Grande parte da terra transferida (ou “entregue” para usar o termo oficial) sob o programa de restituição somente foi transferido à propriedade nominal, uma vez que a terra permanece incorporada a reservas naturais e florestas estatais e, nos termos dos acordos de restituição, não está acessível para uso direto pelos proprietários reemitidos na posse (Hall, 2003, p. 27). 6 O Programa de Redistribuição é o mais discricionário dos programas de reforma agrária na África do Sul (ao contrário da restituição e da reforma de posse, que são fortemente embasadas nos direitos), motivo pelo qual constitui o foco principal da RAM. O objetivo explícito desse programa é cuidar do desequilíbrio racial na propriedade da terra. Entretanto, em um estudo da Província de Limpopo, Wegerif (2004) cons- tatou que das primeiras 20 fazendas alocadas sob o LRAD, apenas uma atingiu terra em mãos de brancos (o restante era terra estatal ou, em um caso, terra de propriedade de uma igreja). 7 De uma estimativa de 2.351.086 pessoas expulsas de fazendas desde 1994, constatou-se que 942.303 (40%) foram despejadas e outras saíram por uma diversidade de motivos sociais e econômicos (Wegerif et al., 2005, p. 7). 8 No processo de restituição constitucional, pessoas que perderam o direito à terra sob as políticas de discri- minação racial, entre 1913 e 1994, estão autorizadas a reivindicar a restituição. Das 78 mil reivindicações

126 de propriedades individuais e comunitárias apresentadas, a vasta maioria foi resolvida por meio de com- pensação monetária, evitando-se a restituição da terra. Na menor parte dos casos em que pretendentes reclamaram a restituição da terra, somente aqueles envolvendo um “vendedor disposto” foram soluciona- dos até hoje (Ministry, 2004). Recentemente, o Estado ameaçou usar seus poderes legais de desapropria- ção contra proprietários remanescentes que não “cooperam”, mas ainda terá que fazê-lo na prática. 9 “O governo destrói ofertas baratas de terra”. In: Farmers Weekly, 29 de abril de 2005. 10 Aliber & Mokoena (2002) relatam que uma média de 6,3% da terra rural foi negociada anualmente no período de 1995 a 2000, mas isso incluiu uma proporção elevada de transferências dentro das famílias (he- ranças) e aquilo a que Lebert (2004, p. 10) se refere como vendas “fechadas” entre vizinhos ou conhecidos. 11 Cada oferta de compra requer aprovação separada e um plano agrícola específico. Foram rejeitadas pelo DLA propostas de que futuros beneficiários fossem ”pré-aprovados” para o financiamento com base em atributos pessoais e esboços de planos de negócio, permitindo-lhes entrar no mercado como comprado- res efetivos. 12 Orçamentos insuficientes para financiar projetos aprovados têm sido um problema periodicamente re- corrente desde de 2003, levando a demoras adicionais (pós-aprovação) nas transações (Hall & Lahiff 2004, p. 2). 13 Nos anos iniciais do programa de reforma agrária eram comuns grupos com mais de 100 famílias. Hoje, na esteira do aumento no montante dos subsídios e de critérios de qualificação mais restritivos, os grupos do programa de redistribuição estão tipicamente na faixa de 5 a 20 famílias. Tamanhos grandes de grupos e produção coletiva continuam caracterizando as reivindicações de restituição “baseadas em comunida- des” (Hall, 2004, p. 52). 14 O estudo de Wegerif (2004) sobre o Limpopo conclui que muitas transações não envolvem redistribuição de nenhum tipo, visto que os beneficiários usam os financiamentos para adquirir terra que já ocupavam (livre de arrendamento e sem contestação) durante décadas. A questão-chave não é ser contrário a disponibilização de terra estatal ou a transferência de títulos aos que antes estavam em desvantagem, mas que os fundos estatais reservados para aquisições de terras (privadas, em mãos de brancos) via mercado sejam usados para esse fim, e catalogados como “redistribuição”. 15 Na África do Sul, os avaliadores de terra constituem uma profissão regulamentada por lei. 16 “Milhões malbaratados em ladroagem da Reforma Agrária”. In: Business Day, 11 de março de 2005. 17 Veja DLA (1988), Naidoo (1999), May e Roberts (2000) e Ahmed et al. (2003) sobre exemplos de monitoramento e avaliação, bem como debates acerca de suas limitações. 18 Para candidatos sem ativos materiais, uma quantia nominal de $ 5.000,00 rands (mais ou menos US$ 834.00) é arbitrada como contribuição em forma de mão de obra (“ativos de suor”), o que credencia o candidato a um subsídio de $ 20.000 rands (aproximadamente US $ 3,300.00). 19 Conforme já mencionado, o programa Land Redistribuition for Agricultural Development (LRAD) signi- fica “Distribuição de Terra para o Desenvolvimento Rural” e o Settlement/Land Aquisition Grant (SLAG) era um programa de “Subsídio para assentamentos e aquisição de terras”. 20 Enquanto a política oficial (ao contrário da prática oficial) se cala em questões como uso da terra, forma de produção e trabalho individual versus grupal, ela é notavelmente clara em relação à posse de terra: todos os projetos da reforma agrária são transferidos desde o princípio com título de propriedade, o que significa que podem, na teoria, ser hipotecados e retomados por inadimplência. Persiste, no entanto, uma considerável incerteza quanto aos direitos de posse de indivíduos dentro de projetos grupais em que o título único está em mãos de uma entidade legal, como uma cooperativa ou associação de propriedade comunal (CSIR, 2005). 21 “Didiza fornece motivos do insucesso no Limpopo”, em Farmers Weekly, 18 de novembro de 2005.

127 22 Bradstock traz exemplos reveladores de estudos de caso na Província Setentrional do Cabo: “Os resulta- dos da pesquisa demonstraram que poucas famílias se dedicaram a atividades agrícolas, apesar do fato de agora terem acesso à terra. As que tiveram acesso produziram pequenas quantias, predominantemente para o consumo doméstico...” (2005, p. 19). 23 Veja du Toit (2004) quanto a uma avaliação extremamente negativa dos projetos de reforma agrária sob uma perspectiva de direita. 24 Realmente, há indicações de que mais terra está sendo transferida de proprietários brancos para negros pelo mercado livre que sob o programa de reforma agrária (Lyne & Darroch, 2001) mas, como argumen- tou Borras (2005, p. 92), essas transferências somente representam a troca de uma categoria de ativos (dinheiro) para outra (terra) entre os relativamente bem-aquinhoados, razão pela qual não podem ser consideradas reforma agrária (ou redistribuição) no sentido convencional.

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131

É POSSÍVEL IMPLEMENTAR A REFORMA REDISTRIBUTIVA ATRAVÉS DE ESQUEMAS DE TRANSFERÊNCIA VOLUNTÁRIA DE TERRA COM BASE NO MERCADO? EVIDÊNCIAS E LIÇÕES DAS FILIPINAS*

SATURNINO M. BORRAS JR.

Depois da popularidade que desfrutou nos primeiros três quartos do século passa- do, a reforma agrária redistributiva foi descartada das agendas políticas de instituições internacionais de desenvolvimento e dos Estados nacionais. Esse desfavor aconteceu apesar de persistirem monopólios de terra e a reforma agrária continuar nas agendas políticas de movimentos camponeses e seus aliados na maioria dos países em desen- volvimento (Herring, 2003; Baranyi, Deere & Morais, 2004). Uma confluência de fatores, inclusive a crise da dívida, é responsável por esse abandono político (Kay, 1998; Bernstein, 2002; veja também Byres, 2004). Contudo, em anos recentes, a reforma agrária foi, até certo ponto, ressuscitada. Embora conflitos políticos em torno da terra no Brasil, Zimbábue e Chiapas contribuíssem em parte para essa revitalização políti- ca, pode-se argüir que outro empurrão significativo veio do Banco Mundial (BIRD), com seu pleito em prol do uso economicamente eficiente dos recursos fundiários. Ao invés de usar o enfoque tradicional da reforma agrária redistributiva para chegar a essa meta, o BIRD protagonizou a “reforma agrária de mercado” (RAM), um enfoque de reforma agrária voluntária. A RAM é um modelo de política fundamentado no prin- cípio do “vendedor disposto – comprador disposto”, por meio do qual os latifundiá- rios obtêm 100% em dinheiro vivo a 100% do valor de mercado da terra e os campo- neses beneficiários assumem 100% do custo da terra. Quase sempre, e formalmente, o BIRD declara que a RAM é uma política com- plementar de outros tipos de reforma agrária, singularmente os mecanismos con- vencionais conduzidos pelo Estado. Há uma década, e em várias dimensões, a RAM foi implementada em diversos países. Até hoje, porém, poucos estudos sistemáticos foram realizados sobre o modelo de RAM. A maioria das análises existentes é alta-

* Uma versão ampliada deste foi publicado no Journal of Development Studies (vol. 41, nº 1, pp. 90-134), ao qual agradeço pela permissão de traduzir este artigo para o português e publicá-lo no presente volume. mente especulativa, em parte devido à indisponibilidade de dados empíricos. O maior argumento contra a RAM é que ela não pode servir para redistribuir terras em gran- de escala devido ao enorme montante de verbas que demandaria. No entanto, al- guns críticos reivindicam experimentação adicional de RAM.1 O presente trabalho examina questões de conteúdo e processo relacionadas à RAM e sua implementação, contribuindo, assim, para uma análise mais sistemá- tica da RAM de duas maneiras distintas, porém relacionadas. Principalmente, e como crítica ao modelo de RAM, o trabalho argumenta que, na essência, a RAM não constitui uma reforma redistributiva; em termos de processo, ela solapa, ao invés de complementar, a reforma agrária potencialmente redistributiva conduzida pelo estado. Secundariamente, analisando a posição de críticos da RAM que soli- citam experimentação adicional do modelo, o presente trabalho afirma que essa experimentação adicional de fato endossaria a política pró-mercado, ao invés de se opor a ela. Em termos de processo, a experimentação adicional contribuiria involuntariamente para minar reformas agrárias redistributivas. Essa tarefa é executada através do exame de variantes de RAM, na forma de es- quemas de Transferência Voluntária de Terra (VLT), dentro do arcabouço institucional do Programa Abrangente de Reforma Agrária das Filipinas (CARP), pretensamente conduzido pelo estado. Na seqüência, o trabalho passa a examinar o estudo de viabilidade de RAM feito naquele país. O caso filipino de VLT propicia um excelente material de estudo, porque se trata de uma experiência da vida real mais prolongada e extensa que os testes-piloto de RAM em outros países. Assim, esse caso proporciona uma extensa previsão do que provavelmente aconteceria se a RAM fosse implementada de forma plena em contextos rurais como as Filipinas. Este ensaio não aspira fazer “generalizações estatísticas”, mas apenas estabelecer “ge- neralizações analíticas” (veja Yin, 1984, p. 36-42; Hammersley, 1992, p. 188s) so- bre a natureza e a implicação de esquemas de transferência de terra pela RAM e similares. Conseqüentemente, o trabalho é organizado como segue: a seção 1 discu- te as questões teóricas subjacentes à problemática em pauta; a seção 2 examina es- quemas atuais de VLT nas Filipinas, inclusive a reforma agrária de mercado do BIRD, oferecendo discussão adicional e conclusões.

1. Discussão teórica

Griffin et al. explicam que reforma agrária significa redistribuir a “proprieda- de da terra de grandes latifundiários privados para pequenos agricultores e traba-

134 lhadores rurais sem-terra”, salientando que ela “se empenha na redistribuição da riqueza” (2002, p. 279-280). De forma análoga, Fox explica a reforma redistributiva como uma política pública que “transforma as cotas-parte dos respectivos gru- pos” na sociedade (1993, p. 10). Concordando com Griffin et al. e Fox, o presen- te ensaio entende que, para ser de fato redistributiva, uma reforma agrária tem de causar, em uma estrutura agrária existente, uma mudança na propriedade da terra e/ou no controle sobre os recursos fundiários. Essa mudança deve transferir estri- tamente a terra dos proprietários para as classes sem-terra e com pouca terra, ou de proprietários ricos para camponeses pobres. Aqui, “propriedade” e/ou “contro- le sobre recursos fundiários” significam o controle efetivo sobre a natureza, o rit- mo, a extensão e direção da produção excedente e a extração, bem como a destinação desse excedente agrícola. Em outras palavras, de acordo com Tuma (1965, p. 251), tem por objetivo criar uma “mudança proposital” que possa resul- tar na melhoria da condição dos pobres sem-terra do campo. É inerente a uma “mudança” ou “reforma proposital” que seja relacional: tem de resultar em um aumento líquido do poder de camponeses pobres no controle sobre os recursos fundiários, com uma diminuição correspondente na parcela de poder daqueles que costumavam ter poder sobre os mesmos recursos e os proces- sos de produção. Na realidade, redistribuição da terra é essencialmente redistribuição de poder. Isso pode suceder pela transferência plena dos direitos de propriedade, inclusive o “direito de alienar”, mas também pode ser alcançado sem incluir a propriedade fundiária plena e formal, por exemplo, através de uma re- forma de posse (veja Putzel, 1992, p. 3; Herring, 1983, p. 13). Logo, o que se quer essencialmente dizer aqui com “reforma” não é uma sim- ples “mudança” nas relações sociais e de produção em determinada estrutura agrária de uma sociedade específica. Essa “mudança” pode ocorrer sem se considerar em que direção ela acontece, seja dentro de, seja entre classes sociais, já que pode in- cluir transferências de elite para elite e de pobres para a elite no controle efetivo dos recursos fundiários. Uma “reforma” é limitada a uma direção de mudança que transfere poder entre classes sociais, especificamente das classes proprietárias para as sem-terra e carentes de terra, ou de ricos para pobres. Conforme Tai, essa “re- forma” pode ser alcançada através de “programas públicos que visam reestruturar de forma eqüitativa e racional um sistema defeituoso de posse fundiária através de meios compulsórios, drásticos e rápidos. Os objetivos da reforma são atingir a ‘re- lação justa’ entre a população rural e melhorar o uso da terra” (1974, p. 11s).2 Além disso, a reforma agrária redistributiva é inerentemente uma questão de grau. Raramente são 100% redistributiva ou 100% não-redistributiva. Tradicional-

135 mente, dois elementos interligados definiam o caráter redistributivo de uma políti- ca de reforma agrária, a saber, a indenização para os latifundiários e o pagamento pelos camponeses. De um lado, a indenização para o proprietário pode estar em algum ponto entre zero e menos que o “preço de mercado” da terra; a diferença entre o “preço de mercado” e a indenização real define, em parte, o grau de redistribuição. Do outro lado, o pagamento pelos camponeses pela terra pode estar em algum pon- to entre zero e menos que o custo de aquisição; a diferença entre pagamento real dos camponeses e a aquisição também define, em parte, o grau de redistribuição. Aceitar que a reforma agrária redistributiva é inerentemente uma questão de grau nos proporciona uma ferramenta analítica para entender e comparar refor- mas agrárias entre e dentro de países. Por exemplo, uma reforma agrária que con- fisca terras sem indenizar latifundiários e distribui gratuitamente essas terras aos camponeses constitui uma reforma redistributiva. De forma análoga, uma refor- ma agrária que desapropria terras com indenização aos latifundiários a preços in- feriores ao mercado e distribui essas terras a camponeses a custos reduzidos/subsi- diados também é redistributiva. Contudo, o grau de reforma redistributiva é maior na primeira que na segunda modalidade (veja também Tuma, 1965, p. 159). É o que acontece na comparação entre as reformas agrárias da China e de Formosa, à época imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial (veja Griffin et al., 2002), e entre as administrações, nos anos 60 e 70, de Allende e Frei, no Chile (veja Thome, 1989, p. 196; Kay e Silva, 1992). Seguindo essas coordenadas, o presente estudo defende que um esquema de transferência de terras não constitui reforma agrária redistributiva quando o proprietário recebe 100% em dinheiro vivo, a 100% (ou mais) do “valor de mercado” da terra, e quando o comprador assume 100% do custo da terra, inclusive as despesas da transação. Essa é uma simples transação imobiliária capitalista, sendo altamente improvável que, como tal, venha favorecer o pobre sem-terra (veja também Flores, 1970, p. 149; Levin e Weiner, 1997, p. 258). As duas condições mínimas da reforma agrária redistributiva, a saber, a inde- nização dos latifundiários a preços inferiores ao “preço de mercado” e o pagamen- to pelos camponeses a preços inferiores ao preço real da aquisição devem, por sua vez, ser conectados ao princípio de que terra não é mero fator econômico de pro- dução. Ao contrário, a terra tem uma função e um caráter multidimensional (i.e., com dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais). Na realidade, o “valor” da terra não pode ser reduzido a cifras estritamente monetárias, pois o “preço de mercado” de um pedaço de terra representa de fato uma noção questionada, en- volvendo fatores político-econômicos e socioculturais que dependem de quem fixa

136 o valor da terra. A noção de que a terra tem um caráter multidimensional: 1) cons- titui a base para a introdução de aspectos imbuídos de um julgamento de valor, tais como “justiça social”, “função social da terra”, “mudança proposital” e “empoderamento”, que não podem ser entendidos em termos puramente mone- tários, e 2) por natureza requer a intervenção do Estado para atingir as desejadas metas múltiplas da política de reforma agrária. Logo, mecanismos ligados à compensação para latifundiários, que variam desde confisco de terras sem indenização até a desapropriação com indenização a preços inferiores ao mercado, também são primordialmente determinados por fatores não- econômicos, como as circunstâncias sociohistóricas e as políticas anteriores de mo- nopólio e reforma agrária. A mesma consideração se aplica na definição do nível de pagamento pelos camponeses. Em conseqüência, o caráter multidimensional da terra faz do método de avaliação, em termos monetários, uma forma impor- tante, porém incompleta de aferição do valor atual e pleno da terra. O não reco- nhecimento por parte dos defensores do mercado da natureza multidimensional, político-econômica, do monopólio da terra é responsável por muitas das deficiên- cias fundamentais da RAM. Como explica Harriss, “a economia agrícola conven- cional tende a concentrar o foco na análise da eficiência do uso de recursos na produção e comercialização, e a tratar os fatores sociais e políticos, de relevância axial na atividade prática do ‘desenvolvimento rural’, simplesmente como condi- ções ceteris paribus3 (ou, em outras palavras, presume-se que sejam constantes)” (1982, p. 16). Ainda em relação à clarificação conceitual sobre a reforma agrária redistributiva, é crucial entender a natureza e as implicações da política da RAM e suas variantes, pois pode surgir confusão entre os estudiosos e políticos quanto aos dados empíricos com que trabalham. Especificamente, podem ser registradas mudanças em regis- tros formais, oficiais, acerca de quem supostamente controla a terra, quando essas mudanças não acontecem na realidade (veja Herring, 1983, p. 269). Entretanto, o modelo de RAM surgiu da crítica pró-mercado feita ao modelo de reforma agrária conduzida pelo Estado. Essa crítica se resume a três esferas de políticas: obter acesso à terra, desenvolvimento rural posterior à transferência da terra e estratégia de fi- nanciamento. Os defensores explicam a RAM como um mecanismo para “propi- ciar eficiência – e eqüidade – pelo fomento à redistribuição de ativos” (Deininger, 1999, p. 651), e que ela visa superar o problema, há muito existente, da “exclusão social” dos pobres do campo (Deininger & Binswanger, 1999, p. 249).4 A RAM é uma reforma agrária voluntária em que os latifundiários recebem o pagamento de 100% à vista e 100% pelo “valor de mercado” da terra (Deininger,

137 1999, p. 663). Adota um enfoque “orientado pela demanda”: somente famílias pobres que explicitamente demandam terra e somente as terras que são reivin- dicadas para o programa são negociadas. Para encontrar os beneficiários “mais aptos” (i.e., produtores economicamente eficientes), desencadeia-se um processo de “auto-seleção” entre os compradores em potencial para evitar o ingresso de beneficiários “não-aptos” (i.e., os economicamente ineficientes). O modelo adota um método descentralizado de implementação para transações rápidas, transpa- rência e confiabilidade. “Privatiza e, desse modo, descentraliza o processo essencial (da reforma agrária)”, explica Binswanger (1996, p. 155). Isso evita a procura por renda, que prevalece em reformas agrárias conduzidas pelo Estado. Além disso, os defensores afirmam que a política da RAM estimulará, ao in- vés de minar, os mercados de terras (Deininger & Binswanger, 1999, p. 267). Igual- mente explicam que “fechar o hiato entre valores da terra e valores de mercado de terras torna mais acessíveis os preços, melhorando a capacidade de amortização, porque os compradores terão agora mais facilidade de devolver um empréstimo a partir da própria capacidade produtiva da terra” (van Schalkwyk & van Zyl, 1996, p. 333). Espera-se que essa medida de reforma pelo mercado resulte em aumento da quantia de terra disponível para compra por distintos tipos de produtores. Isso pode ser feito em parte pela retirada de subsídios (de grandes fazendeiros), pela tributação progressiva da terra, titulação sistemática da terra (Bryant, 1996), liberalização de vendas e arrendamentos de terras (Banerjee, 1999) e por melho- res sistemas de informação de mercado. Além do mais, o modelo de RAM obedece ao processo de planejamento agrí- cola anterior à compra de terra. Como tal, alega-se que o desenvolvimento rural é assegurado porque não será adquirida nenhuma terra sem planos viáveis que enfatizem a agricultura empresarial diversificada, inclusive arranjos de empreen- dimento conjunto com investidores externos. E pelo fato de que os beneficiários recebem um subsídio em dinheiro para o desenvolvimento da propriedade, espe- ra-se que este seja rápido (Deininger, 1999, p. 666). Os beneficiários têm de gas- tar uma parcela do subsídio em um serviço de extensão privado e descentralizado que, como se alega, é eficiente, porque as responsabilidades são mais claras entre beneficiários e os prestadores do serviço. Ademais, espera-se que se tornem am- plamente acessíveis o crédito e os investimentos, porque o título de terra gerado por uma venda direta será honrado como garantia para empréstimos bancários (Deininger & Binswanger, 1999, p. 265). O modelo de RAM adota um esquema flexível de financiamento de em- préstimo e subsídio. Cada beneficiário recebe um montante fixo para gastar como

138 segue: a parcela usada para comprar terra é considerada um empréstimo e tem de ser integralmente reembolsada (inclusive juros a taxas comerciais) pelo beneficiário; o restante é dado ao beneficiário como um subsídio a ser usado para desenvolver projetos depois da transferência da terra. Imagina-se que esse mecanismo seja essencial para reduzir o custo da terra, porque se espera que os camponeses busquem a melhor barganha para seu dinheiro, a fim de aumentar a porção do subsídio (Deininger, 1999). Monetariamente, pensa-se que o mo- delo de RAM é muito mais barato que as reformas agrárias do Estado, princi- palmente porque não carece de uma enorme e dispendiosa burocracia governa- mental, os preços da terra são mais baixos, e os beneficiários assumem 100% do custo da terra. O modelo requer que os governos nacionais financiem a fase inicial do programa, mas no longo prazo os bancos privados deveriam assumir o fi- nanciamento primário do programa (veja tabela 1, quanto às características fun- damentais da RAM).

Tabela 1: Características fundamentais previstas no modelo de Reforma Agrária de Mercado Obtenção do acesso à terra Método de aquisição voluntário; 100% de pagamento à vista por 100% do valor de mercado da terra Beneficiários orientados pela demanda; auto-selecionados Método de implementação privatizado-descentralizado; alto grau de transparência e confiabilidade Ritmo e natureza rápido; política e legalmente não-conflitante Preços da terra Baixos Mercados imobiliários estimulação do mercado de terras; necessário imposto territorial progressivo e programa de titulação Desenvolvimento da terra e do Beneficiário após a transferência Seqüência do programa planos de desenvolvimento rural prévios à distribuição de terra Ritmo do desenvolvimento rápido e seguro Serviço de extensão privatizado e descentralizado = eficiente Crédito e investimentos ampliado Financiamento Mecanismo mecanismo flexível de empréstimo e subsídios; partilha de riscos; os beneficiários assumem o custo total da terra; custos do desenvolvimento rural concedidos como subsídios Custo da reforma baixo Fonte: Borras (2003a).

O modelo da RAM foi testado como piloto no Brasil, desde 1998, e imple- mentado em escala nacional na Colômbia (desde 1994) e na África do Sul (desde 1995). No entanto, seus proponentes apresentam alegações contraditórias quanto aos resultados iniciais da implementação da política de RAM. Por um lado, e de forma mais geral, alegam que a implementação inicial nesses países foi bem-sucedi- da e impressionante (Deininger & Binswanger, 1999, p. 268; Deininger, 1999; BIRD, 2003, s/data). Por outro, balanços preliminares lançam dúvidas sobre essas alegações otimistas. As visões distintas se classificam em três grupos principais: 1)

139 referências diretas, por defensores da RAM, a diferentes graus de problemas e insucessos, embora sejam ágeis para demonstrar que esses problemas são de nature- za operacional e administrativa (veja, por exemplo, Deininger, 1999; Buainain et al., 1999; também Gershman, 1999); 2) visões e memorandos críticos de estudio- sos que, em geral, defendem o modelo e o experimento de RAM (veja, por exem- plo, Carter & Salgado, 2001; Banerjee, 1999; De Janvry et al., 2001; Lipton, 1993); 3) alguns ensaios críticos que argumentam que os problemas na implementação da RAM no Brasil, na Colômbia e África do Sul são da natureza ou essência do modelo (veja, por exemplo, Barros, Sauer & Schwartzman, 2003; Lahiff & Cousins, 2001; Lahiff, 2003; Levin & Weiner, 1997; Borras, 2003a, 2002, 2003c), sendo que o presente trabalho se identifica com o terceiro grupo crítico.

2. O Programa Abrangente de Reforma Agrária, o esquema de transferência voluntária de terras e a RAM nas Filipinas

O setor agropecuário das Filipinas continua sendo importante para a economia nacional. Em 2000, empregou diretamente cerca da metade de toda a mão-de-obra ativa do país, e a zona rural continua hospedando cerca de 60% da população filipina. Contudo, de modo geral, o desenvolvimento rural foi menos que dinâmico e a pobreza rural predominou (antes de 2000, os pobres do campo perfaziam dois ter- ços dos pobres no país). Aproximadamente um terço da área rural do país de 30 milhões de hectares é terra agricultável, e a propriedade e/ou o controle dessas terras foi amplamente monopolizada pelas classes proprietárias. O coeficiente de Gini para a distribuição de terra era 0,64 em 1988, ano em que teve início o Programa Abrangente de Reforma Agrária (CARP – Putzel, 1992, p. 30). A natureza da economia teve um impacto profundo sobre a estrutura das re- lações de poder e instituições políticas do país. A política rural é dominada por chefes políticos locais (os caciques), que dominam a zona rural através de uma rede complexa de clientelismo, combinando benefícios socioeconômicos para os po- bres com a ameaça ou uso real da violência (Anderson, 1988; Kerkvliet, 1990). Contra esse fundo político, violentas e cíclicas rebeliões camponesas obtiveram apenas concessões intermitentes do Estado (Kerkvliet, 1977; Putzel, 1995; Rutten, 2000). A resposta da elite aos distúrbios camponeses foi tradicionalmente uma combinação de repressão, reassentamento e reforma limitada (Wurfel, 1988; Abinales, 2000; Angeles, 1999). O Estado filipino, fortemente influenciado pe- los interesses dos latifundiários, considerou a reforma agrária e da posse da terra

140 como uma estratégia para “administrar” a inquietação no campo, ao invés de efe- tuar reformas redistributivas reais em favor da classe sem-terra (Putzel, 1992). Por conseqüência, de modo geral, a maioria das reformas instituídas durante o último século foram não-redistributivas. Uma vez que nenhum dos programas pré-CARP de reforma agrária e da posse da terra enfrentou seriamente as causas subjacentes à inquietação rural (a saber, o persistente monopólio da terra), a in- quietação camponesa continuou sendo parte relevante nas políticas rurais ao lon- go do século XX. Tampouco a transição de um regime autoritário para um “regi- me nacional eleitoral clientelista”, em 1986, levou à democratização plena do campo; até mesmo agora, arraigadas elites políticas continuam dominando a po- lítica rural (Franco, 2001; Putzel, 1999; Anderson, 1988). No entanto, como explica Franco (2001, 1998), os anos recentes presenciaram certa erosão desses enclaves rurais autoritários em um processo político que pode ser atribuído prin- cipalmente a dois fatores: 1) as várias eleições, realizadas mediante muita pressão durante o período de regime autoritário e imediatamente após, e 2) a mobilização social contínua de baixo para cima. O período de transição (1986-1988) abriu novas oportunidades políticas para a democratização parcial, levando a um acalo- rado debate político sobre a reforma agrária. Depois de protelar a questão, a ges- tão de Corazón Aquino foi forçada a agir, após o incidente quando o exército abriu fogo contra uma marcha de 20 mil camponeses perto do Palácio Presidencial, matando treze agricultores. O processo subseqüente de formulação de políticas de reforma agrária, entre 1986 e 1988, foi marcado por intensas forças a favor e contra a reforma no Estado e na sociedade, oscilando em geral entre as correntes políticas dos grupos de reforma agrária “conservadora voluntária-não-redistributiva” versus a “liberal desapropriatória-redistributiva” (Putzel, 1992; Hayami et al., 1990). Em dado momento, as ações subseqüentes do governo levaram à legisla- ção de uma nova política de reforma agrária ou CARP (Lara e Morales, 1990; Riedinger, 1995; Putzel, 1992). O CARP é uma política pública que não se enquadra em nenhum dos tipos ideais de reforma voluntária-não-redistributiva ou desapropriatória-redistributiva. Embora possua certo grau de poder de desapropriação, incorpora elementos que são voluntários e não-redistributivos. A lei do CARP estabelece que todas as áreas agrícolas, privadas e públicas, independente das condições de posse e produtivi- dade, são sujeitas à reforma agrária (com relativamente poucas exceções como reservas militares e religiosas e espaços educacionais). Há três tipos genéricos de reforma: 1) redistribuição fundiária de terras privadas e públicas, 2) arrendamen- to, inclusive arrendamento em terras legalmente retidas por proprietários, e con-

141 tratos de administração de algumas terras públicas, e 3) em pequena escala e limi- tada aos primeiros anos de implementação do CARP, uma opção de distribuição acionária para algumas grandes fazendas empresariais. A cobertura formal de le- que amplo da lei do CARP faz com que ela seja mais progressista que qualquer outra lei de reforma agrária liberal pós-1980. Essas leis, em outros lugares, como no Brasil (Hall, 1990) e Zimbábue (Bratton, 1990), não atingem terras agricultáveis e produtivas. Em conseqüência, com base na abrangência original de 1988, o CARP pre- tende reformar relações de posse em 10,3 milhões de hectares da terra agricultável do país pela redistribuição da terra (e, em proporção limitada, pela distribuição acionária). O número estimado de beneficiários poderia chegar a cerca de 4 mi- lhões de agricultores sem-terra e com pouca terra, abrangendo perto de 80% da população rural.5 Adicionalmente, em torno de 2 milhões de hectares de proprie- dades menores de 5 hectares (terras em mãos de latifundiários) ficaram sujeitas à reforma de arrendamento que beneficiaria um número calculado em 1 milhão de arrendatários pobres. Cabe notar que o tamanho médio da propriedade rural no país é de 2 hectares, sendo o teto de obtenção pela reforma agrária fixado em 3 hectares. Para terras privadas redistribuídas, emite-se aos beneficiários um Certi- ficado de Concessão de Propriedade da Terra (CLOA). O CARP está sendo implementado dentro das limitações estruturais e institucionais do contexto político filipino – na realidade, dentro do mesmo con- texto que ele pretende mudar. Durante a implementação, o CARP foi lançado em um momento crucial das relações Estado-sociedade, em que vários fatores di- nâmicos influenciam processos e resultados políticos. O processo de implementação foi uma epopéia de luta entre forças pró e contra a reforma den- tro do Estado e da sociedade, ora empurrando o CARP na direção da corrente política voluntária-não-distributiva, ora da desapropriatória-redistributiva. O conflito pró e contra a reforma, interiorizado no CARP, se reflete parcial- mente nos vários modelos de aquisição do CARP para terras privadas. O primei- ro é a Operação de Transferência de Terra (OLT), mecanismo usado no programa de reforma agrária da era Marcos em áreas arrendadas de arroz e milho e posterior- mente integrado ao CARP. O segundo – projetado para reduzir a resistência dos proprietários à reforma – é a Oferta Voluntária para Venda (VOS), que aumenta em 5% a parcela em dinheiro vivo na indenização dos proprietários mediante uma diminuição correspondente de 5% na parcela de papéis. A terceira modalidade é a Transferência Voluntária de Terra (VLT), que visa atrair a cooperação dos pro- prietários no programa. A VLT providencia a transferência direta de terra a cam-

142 poneses sob condições mutuamente acordadas entre estes e proprietários, limi- tando o papel do governo ao fornecimento de informações e à legalização de con- tratos. Espera-se que um proprietário interessado em se adequar à lei do CARP, através da VLT, negocie e acerte com os potenciais beneficiários as condições da transação: preço da terra, forma de pagamento e conjunto de beneficiários. Após o acordo, as partes submetem a proposta de VLT ao Departamento de Reforma Agrária (DAR), que aprova ou rejeita o plano. Quando a proposta é rejeitada, re- começa o processo do CARP, podendo ou não usar o caminho da VLT. Sendo aceita, a transação é considerada um processo bem-sucedido de redistribuição de terra via CARP, sendo oficialmente divulgada como tal. A diferença entre VOS e VLT é que, na primeira, o latifundiário vende a terra ao Estado, enquanto na segunda, o proprietário vende diretamente aos campone- ses. É uma diferença significativa que acarreta implicações estratégicas sobre o potencial desse esquema em uma reforma redistributiva ou de sua ausência (ver Gutierrez & Borras, 2004, quanto à VOS). Tanto a VOS como a VLT operam no contexto de desapropriação, ou seja, se os proprietários se negarem a entrar na VOS ou VLT, suas áreas podem mesmo assim ser adquiridas pelo Estado. Por fim, o último modo de aquisição do CARP é a Aquisição Compulsória (CA), pela qual a terra é desapropriada com ou sem a cooperação do proprietário, sendo que a OLT é da mesma natureza da CA. O esquema da VLT, conforme será demonstrado neste texto, representa o ideal no eixo voluntário-não-redistributivo, em contraposição à modalidade da Aquisi- ção Compulsória, embora os outros esquemas possam ser igualmente interpretados e implementados segundo uma idéia não-redistributiva, como é o caso da opção de distribuição acionária usado pela enorme fazenda de cana-de-açúcar em mãos da ex-presidente Aquino (Putzel, 1992, p. 332-38), ou da VOS usada em algumas negociações de terra totalmente anômalas dentro do CARP (ibid., p. 312-319). Os grandes proprietários não perderam tempo se aproveitando dos esquemas voluntá- rios disponibilizados pela lei do CARP. O agronegócio multinacional realmente não viu esse programa de forma negativa já que a maioria, de qualquer modo, arrendava terras do governo. A questão crítica era, no entanto, saber se os beneficiários da re- forma agrária aumentariam as taxas de arrendamento (ibid, p. 242). Não obstante, depois de mais de uma década, e contrariando previsões pessi- mistas anteriores, o CARP logrou uma redistribuição modesta, mas significativa de terras. Relatórios oficiais estimam que mais de 5 milhões de hectares de terras privadas e públicas, representando cerca de dois quintos da área agricultável do país, foram redistribuídos a camponeses pobres sem-terra até o final de 2001. Essas

143 terras chegaram às mãos de mais de 2 milhões de famílias rurais pobres, perfazen- do cerca de dois quintos da população camponesa das Filipinas. Se esse dado fosse digno de crédito, o nível alcançado de distribuição de terras é comparável ao al- cançado em reformas agrárias historicamente importantes em outros países. No entanto, as interpretações do montante real de redistribuição variam desde a con- cordância acrítica com os números oficiais até a rejeição total. O presente traba- lho argumenta que, provavelmente, a verdade se situa em algum ponto interme- diário entre a propaganda otimista do Estado e os prenúncios pessimistas dos primeiros críticos do CARP. Essa visão é apoiada por Putzel, que admite que as previsões pessimistas iniciais estavam parcialmente erradas, porque “o programa certamente atingiu uma proporção muito maior de terra da população rural do país do que predisseram seus críticos iniciais” (2002, p. 219). Esclarecimentos se e por que a distribuição de terras através de esquemas baseados no mercado deve- ria ser considerada uma reforma redistributiva constitui um passo importante para uma melhor avaliação da reforma agrária, seja nas Filipinas, seja em outro lugar. Por fim, em anos recentes, forças anti-reforma no governo e na sociedade inten- sificaram seus esforços para frustrar as iniciativas reformistas dentro do CARP, cujo pico aconteceu nos anos 1992-1998 (ver Borras, 2001a, 1999). O Congresso fez constantes cortes nas provisões orçamentárias anuais para o item de aquisição de terras do CARP, e esse acelerado declínio no orçamento solapou o objetivo ostensi- vo do CARP em desapropriar terras privadas mais produtivas economicamente e controvertidas politicamente. Usando como desculpa a questão da insuficiência de verbas, as forças conservadoras passaram a usar, cada vez mais, o esquema da VLT como uma maneira de contornar a reforma agrária redistributiva. Para o Estado filipino, uma estratégia de implementação do CARP, com base na VLT, parece ter se tornado um meio, politicamente conveniente, para retirar efetivamente a reforma agrária redistributiva da ordem do dia da política governamental. Embora o gover- no não tenha admitido isso em declarações oficiais, tampouco prosseguiu desapro- priando extensões significativas de latifúndios privados de proprietários e agriculto- res ricos. Essa fórmula, portanto, é um “ganha-ganha” em sentido conservador. Ademais, nos anos recentes, o governo parece cada vez mais disposto a manter com- ponentes desapropriatórios no CARP somente na proporção necessária para “admi- nistrar politicamente” as redes de ONGs e organizações camponesas do país, man- tendo-as ocupadas com complicados casos fundiários de alcance relativamente circunscrito. De certa maneira, isso fez com que muitas ONGs e organizações cam- ponesas perdessem o foco na perspectiva estratégica da reforma redistributiva e se distanciassem de formas radicais de ação coletiva (ver, por exemplo, Franco, prelo).

144 2.1. O esquema da VLT Desde 1988, a VLT foi empregada de forma crescente para transferir terra, embora as administrações passadas preferissem não ressaltar essas transações no discurso político formal. Uma mudança política aconteceu no início de 2002, quando o governo anunciou que adotou a VLT como estratégia principal para “redistribuir” terra. Fontes oficiais apresentam dados quantitativos sobre transações de VLT de 1988 a 2001 (DAR, 2001a). Entre outros, dois aspectos são dignos de nota: 1) uma parte significativa dos dados oficiais do Departamento de Reforma Agrária sobre redistribuição de terra é composta de resultados agregados de VLT, de 435.019 hectares, representando 25% da redistribuição total atingida em terras privadas, afetando cerca de 200 mil famílias camponesas; 2) os resultados da VLT são altamente desiguais em relação a locais geográficos, regiões e províncias. Um pouco mais da metade (55%) dos resultados da VLT vem de cinco (Regiões 1, 9, 10, 4 e 12) dentre 14 regiões pesquisadas. Oficialmente, os resultados da VLT são considerados êxitos da reforma agrá- ria distributiva. Infelizmente, os círculos acadêmico, administrativo e político evi- denciaram pouco interesse em examinar criticamente a VLT. Na realidade, alguns aceitaram acriticamente a linha governamental. Um exemplo constitui a declara- ção de Riedinger et al.:

Até 1997, o CARP havia redistribuído mais de 1,03 milhão de hectares de terra agrí- cola privada. A metade dessa área foi completamente redistribuída através dos pro- gramas de VOS (265.744 hectares) e VLT (276.307 hectares), o que sugere que o CARP – baseado na aquisição compulsória – gerou um incentivo poderoso para que os proprietários de terras entrassem em transações voluntárias “de mercado” para trans- ferir suas terras à agência de reforma agrária ou a antigos arrendatários e trabalhado- res rurais (2001, p. 373).

Um exame mais detido das transações de VLT revela sua natureza não- redistributiva. Isso ocorre pela análise da evidência empírica da auditoria anual interna do CARP e de outros casos. Contudo, primeiramente é importante apre- sentar o sistema de auditoria interna do CARP. Uma das reformas realizadas pelo Secretário do DAR, Ernesto Garilao (1992-98), foi a criação, no início de 1994, do Comitê de Controle da Auditoria e de Investigação (AMIC), subordinado ao Conselho Presidencial Interagências da Reforma Agrária (PARC). Essa foi a res- posta de Garilao ao clamor público por maior transparência e confiabilidade na

145 implementação do CARP. O AMIC é composto por representantes do Serviço de Auditoria Interna do DAR, da Secretaria do PARC e de setores de camponeses e latifundiários representados no PARC. Entre as principais atribuições do AMIC estão: a validação de relatórios oficiais de redistribuição de terra pela confirmação dos beneficiários; a inspeção, verificação e aprovação de pesquisas; a validação do processo de avaliação de terras, a verificação da indenização paga ao proprietário de terras, registro do título e distribuição de certificados de concessão de terra. O AMIC trabalha por amostragem, examinando duas províncias de cada região e três municipalidades de cada província pré-selecionada:

(…) As primeiras duas províncias na região em termos de resultados (na aquisição e distribuição de terra) serão selecionadas para a auditoria. Caso as primeiras duas pro- víncias já tenham sido cobertas por atividades prévias de auditoria do CARP, esco- lhem-se, pela ordem, as próximas duas províncias; e (…) na escolha dos três municí- pios a serem examinados na província selecionada, a seleção será aleatória dentre 50% dos municípios com maiores resultados (em termos de aquisição e distribuição de terra) dentro da província (PARC, 2001, p. 3).

Além disso, em cada município são examinados detidamente cerca de 10% da aquisição e distribuição de terra. As auditorias sistemáticas e exaustivas do AMIC, de 1994 a 2001, cobriram todas as províncias do país qualitativa e quantita- tivamente, sendo assim uma fonte segura de ricos dados empíricos sobre o funcio- namento interno da implementação do CARP. Sua base ampla de amostragem fornece uma evidência da provável extensão de problemas na VLT. O presente ensaio se baseia em estudos de caso desses relatórios, a fim de fornecer uma idéia melhor sobre a natureza da VLT. Para aprofundar nossa compreensão das transa- ções de VLT, foram examinados estudos de caso adicionais pesquisados em pri- meira mão pelo autor. Este estudo identificou quatro tipos “ideais” de VLT: 1) evasão direta da reforma agrária; 2) procura secundária, porém freqüente de ga- nhos; 3) esquema de arrendamento para ser proprietário; e 4) esquemas de VLT que combinam venda e arrendamento da área ao próprio vendedor.

2.1.1. Evasão direta da reforma agrária As evasões diretas à desapropriação, via VLT, são constatadas em três categorias amplas. Primeiro, uma tática bastante comum de evasão é declarar filhos, parentes e outros “laranjas” como beneficiários. A lei do CARP permite que crianças e outros parentes se tornem beneficiários “preferenciais” somente se tiverem pelo menos 15

146 anos de idade, a partir de 1988, e de fato cultivem ou pretendam cultivar a terra. Nos procedimentos administrativos normais essas transações são relacionadas como reivindicações de retenção da propriedade pelos proprietários – de modo que são excluídas dos relatórios dos resultados de aquisição e distribuição de terra (situan- do-se no “setor da não-reforma”). Contudo, ao reportar tais transferências como transações de VLT, esses casos podem ser catalogados como realizações da reforma agrária (“setor da reforma”). A evidência é de que muitas das “transferências” de VLT listadas por amostragem nos relatórios de auditoria do AMIC foram feitas em favor de membros da família, mas de membros da família que não se enquadram legal- mente para se tornar beneficiários porque eram menores e/ou não trabalham na fazenda. Por exemplo:

Nos municípios selecionados de Masbate e Sorsogon, a maioria dos receptores nos termos da VLT era de membros da família e parentes dos proprietários de terras. Por conseqüência, a divisão das propriedades do latifundiário entre… herdeiros foi ape- nas facilitada, e todas as custas de documentação, taxas de transferência, pesquisas, e titulação foram debitadas aos fundos do CARP (PARC, 1997, p. 48).

Em outro caso, em Iligan, Lanao del Norte, dentre os 26 agricultores beneficiários entrevistados durante a auditoria, alguns não estavam realmente cultivando as terras recebidas: um era gerente de uma farmácia, dois haviam mi- grado aos EUA antes da suposta distribuição da terra, nove eram estudantes de tempo integral e ainda menores, e um era gerente de uma gráfica (PARC, 1997, p. 10).6 O segundo tipo de evasão é a prática de declarar como beneficiárias pessoas completamente desavisadas da transação. Embora, provavelmente, não seja tão difundido como o primeiro, o segundo tipo é indicativo da criatividade e ousadia de alguns latifundiários, em conivência com funcionários públicos locais corrup- tos, para contornar uma política de reforma agrária potencialmente redistributiva. A lei do CARP impõe uma proibição de dez anos para arrendar ou vender a terra. Depois desse período, prevê que a terra será formalmente “revendida” ao dono “anterior” ou a membros de sua família, completando, assim, um ciclo de transfe- rência de terra no papel, sem qualquer mudança nos direitos reais de controle sobre a propriedade e nas relações fundiárias. Um caso documentado pelo AMIC apon- ta para essa prática: “Em Tandag, Surigao del Sur, foram concedidos CLOAs (…) a três agricultores beneficiários (…) que não sabiam do fato, desconheciam o dono e o local da fazenda, e não desejavam cultivar a terra.”7

147 O terceiro tipo ocorre quando camponeses são coagidos a concordar em se tornar “beneficiários no papel”. Nesse caso, declara-se que o proprietário se en- quadrou na lei da reforma agrária, embora continue o antigo acordo de arrenda- mento entre proprietário e arrendatários e trabalhadores rurais, a despeito das formalidades de transferência de terra nos documentos oficiais. Novamente, o proprietário prevê uma recompra, no papel, depois do prazo de dez anos que proíbe arrendamentos e vendas. Esse tipo de evasão talvez seja o mais difícil de docu- mentar, porque, quando ocorre, envolve um latifundiário política e economica- mente poderoso e despótico. É o caso de uma grande fazenda em Luzon Central, mas os “beneficiários” se recusaram a falar abertamente sobre o fato, por medo de represálias da parte de seu fazendeiro protetor.8

2.1.2. Procura secundária mas freqüente de ganhos O esquema de VLT também é usado por alguns funcionários locais do DAR como empreendimento para fazer dinheiro. Embora similar aos casos supracitados, a diferença dessa segunda categoria é que se trata mais da iniciativa de funcioná- rios locais do DAR que de proprietários. Parece ocorrer de duas formas amplas. Primeiro, é “segredo público” nos círculos internos das agências ligadas à reforma agrária que alguns funcionários do governo treinam os proprietários em como escapar da reforma agrária pela VLT. Isso acontece mediante a condição de que um conjunto de beneficiários trazidos pelo funcionário público, além dos “beneficiários no papel” preferidos pelo proprietário, seja incluído no rol final de beneficiários. Por exemplo:

Foram beneficiadas quatro (4) crianças com idade de 9, 11, 13 e 15 anos pelo titular de Pangasinan (Oficial Provincial de Reforma Agrária ou PARO) (PARC, 1995, p. 11).9 DARMO-Matalam (Cotabato Norte) entregou CLOAs a quatro lavradores ausen- tes. (…) O mesmo vale para a fazenda de Brigida Cubita, cujas propriedades foram passadas para seus 12 filhos que em grande parte não ocupam as referidas proprieda- des. O remanescente de seu latifúndio foi subdividido aos filhos de seus irmãos Do- mingo Cubita e Victor Cubita, que foi o PARO anterior da província de Cotabato do Norte (PARC, 1997, p. 9). Em Pigcawayan, Cotabato do Norte, o registro do MARO, de 1993, evidenciou que de fato houve 64 CLOAs recebidos por agricultores beneficiários, envolvendo 80 hectares, predominantemente sob o esquema da VLT. Cinco (5) beneficiários esco- lhidos aleatoriamente foram confirmados, mas dois (…) eram empregados profissio- nais do governo (PARC, 1994, p.7).

148 Em segundo lugar, os funcionários do DAR informam vendas comuns de ter- ra que acontecem na localidade, ou no município, como êxito da redistribuição de terras sob o esquema da VLT. Agindo assim, os funcionários locais do DAR, de fato, proporcionam às partes da transação imobiliária atraentes incentivos para cometer fraude: pesquisa e emissão de título grátis, bem como isenção de taxas de transferência. Por exemplo: “Em Esperanza, Agusan del Sur, uma operação de venda de um imóvel rural no barangay Dacutan, propriedade de Carmen Sire, vendida a Antônio Polizon (…) e que cobre uma área de 5 hectares, foi processada como VLT” (PARC, 1996, p. 17). Além disso, um ex-funcionário provincial do DAR revela:

Até mesmo descobri que, por meio da VLT, o comprador em uma transação comum de venda de terras é declarado beneficiário, e o processo de venda de terra, uma tran- sação do CARP. Conheci pessoalmente uma transação de VLT em Camarines Sur, na qual o comprador, que não sabia que o vendedor fez a transação de venda dentro da VLT, veio a meu escritório para cancelar o CLOA porque disse que não era um beneficiário da reforma agrária, e sim um comprador legítimo de terra (…) A maio- ria dos relatórios da VLT serve para preenchimento de metas por funcionários muni- cipais do DAR; você pode notar isso porque essas áreas nem sequer faziam parte do foco de trabalho do CARP, e repentinamente são informadas como execução.10

Os dados oficiais (DAR, 2001a) sobre resultados da transferência de terras pela VLT incluem a categoria do tamanho de estabelecimentos de “5 hectares e abai- xo”, os quais se supõe que estejam excluídos de redistribuição de terras, porque fazem parte do direito de retenção do proprietário. Pretende-se que o arrenda- mento se dê em estabelecimento dessa categoria de tamanho. No entanto, como evidenciado em relatórios oficiais do DAR (2001a), uma parte significativa do total da distribuição de terras com base na VLT vem da categoria de áreas de 5 hectares.11

2.1.3. O tipo “arrende para ser proprietário” Recentemente, o tipo de evasão “arrende para ser proprietário” parece ter se tornado popular entre latifundiários, corporações multinacionais e funcionários do DAR em algumas partes de Mindanao, sul das Filipinas (ver DAR, 2001a). São as regiões em que gigantes globais de frutas, como a Dole, estão ampliando vertiginosamente sua produção de frutas como banana e abacaxi. Essa expansão da produção é de um tipo relativamente mais recente, visto que já não se baseia na

149 produção de fazendas, nas quais vastas terras contíguas são diretamente controla- das e administradas por uma grande companhia multinacional ou elite latifundiária local. Ao invés, a expansão atual se alicerça sobre áreas menores e as relações de produção e troca giram em torno de vários tipos de produção por contrato ou acordos de arrendamento (ver Vellema, 2002). Um arranjo desse tipo de arrendamento funciona assim: o proprietário e o beneficiário entram em um acordo de VLT; desse modo, o proprietário é classifi- cado como tendo obedecido à lei da reforma agrária. Um aspecto fundamental do arranjo é que o conjunto de beneficiários precisa ser totalmente aceitável e apro- vado pelo proprietário, caso contrário não transferirá voluntariamente a terra. Naturalmente, os beneficiários prioritários – os mais aceitáveis para o latifundiá- rio – são os filhos do proprietário, seus parentes e outros “laranjas”. Contudo, em muitas ocasiões, arrendatários legítimos e trabalhadores rurais igualmente se tor- nam beneficiários. Na seqüência, submetem-se os termos do contrato ao DAR local que, segundo parece, automaticamente aprova esses contratos e depressa informa a transação como feito de distribuição de terras. Então, o latifundiário e os beneficiários, junto com os funcionários locais do DAR, submetem o mesmo latifúndio a uma companhia multinacional – a Dole no caso da província de Cotabato do Norte – para um acordo especial de arrendamento. As condições padronizadas da Dole para um contrato desses são as seguintes: 1) a renda pela terra é PhP$ 12.000/ha/ano (US$ 240); 2) o contrato é de dez anos, renováveis por mais dez anos, por opção exclusiva da Dole; 3) durante os primeiros sete anos, toda a renda mensal é paga pela Dole ao proprietário;12 4) depois de sete anos de pagamento regular pela Dole ao proprietário, considera-se que o beneficiário pagou completamente pela terra, portanto, é considerado pro- prietário pleno; 5) a partir do oitavo ano, o beneficiário começará a receber a ren- da anual de PhP$ 12.000/ha até o fim do contrato no décimo (ou vigésimo) ano; 6) enquanto isso, a partir do primeiro ano até o fim do contrato, o beneficiário será empregado como um funcionário da fazenda operada pela Dole – a um salá- rio mínimo que era de PhP$ 160/dia (US$ 3,20) no início de 2002; 7) a Dole patrocina todo o processo da VLT, pagando uma “taxa de descobridor” de PhP$ 1.000/ha a quem trouxer um proprietário com um conjunto de beneficiários para o esquema (segundo notícias, muitos funcionários locais do DAR e do governo acabaram sendo generosamente pagos com as taxas de descobridor). A Dole tam- bém paga uma “gratificação de assinatura” aos camponeses contratados e assume despesas de cartório e documentação. No entanto, a Dole retém todos os docu- mentos, inclusive os CLOAs.

150 Depois de apenas dois anos de rápida expansão (de 2000 a 2002), este esque- ma de transferência de terra baseado na VLT, conduzido por uma multinacional, cobre agora, segundo notícias, cerca de 20 mil hectares de excelente terra agricultável em Cotabato e nas províncias de Bukidnon, envolvendo cerca de 20 mil famílias.13 É interessante que, em Cotabato, uma quantidade total ridicula- mente baixa de terra – somente 67 hectares – foi desapropriada sob o esquema de Aquisição Compulsória (CA), entre 1988 e 2001, em contraposição ao total de 20 mil hectares “distribuídos” sob a forma de VLT (ver DAR, 2001a).

2.1.4. Esquemas combinados com base na VLT Também há arranjos entrelaçados à VLT, sendo que três destes casos serão examinados abaixo: 1) a “joint venture” de Danding Cojuangco, 2) o “arrenda- mento de ex-propriedade” de Floirendo e 3) o esquema Marsman de partilha de lucros. Somados, os casos examinados abaixo afetam diretamente, no mínimo, 10 mil trabalhadores rurais. Entretanto, não existe nenhum dado oficial disponí- vel nacionalmente sobre a proporção em que foram implementados esquemas integrados baseados na VLT. Talvez seja mais importante, em termos gerais, o im- pacto profundo de casos como esses sobre as políticas de reforma agrária, pois envolvem grandes famílias latifundiárias do país, sendo presumível que suas ações influenciem o curso da implementação da reforma por toda a nação. a – O esquema joint venture de Danding Cojuangco A propriedade envolvida é o pomar de mais de 4 mil hectares, onde trabalham mais de mil trabalhadores rurais na província de Negros Ocidental (região cen- tro-ocidental das Filipinas).14 Esse pomar moderno, de categoria internacional, outrora um canavial, é propriedade de um dos empresários latifundiários mais poderosos do país, Eduardo “Danding” Cojuangco Jr.. Companheiro do ex-pre- sidente Ferdinand Marcos, Danding foi acusado de acumular dezenas de milha- res de hectares de terra sob circunstâncias duvidosas. Mas Danding é um político flexível e sobreviveu à transição de regime, de 1986 a 1988, alcançando influência nas administrações subseqüentes de Joseph Estrada e Gloria Macapagal-Arroyo. Em meados dos anos 90, Danding começou a negociar com o DAR (administra- ção de Ramos, 1992 a 1998) para implementar o CARP em seu pomar. A proposta era usar a VLT para permitir aos trabalhadores de sua fazenda comprar diretamente a terra, com a condição de que fosse colocada, automaticamente, sob um acordo de joint venture entre sua companhia e a cooperativa dos trabalhadores beneficiários. O pagamento pela terra viria dos dividendos a ser obtidos pelos beneficiários.

151 As condições da proposta de empreendimento conjunto eram: 1) o governo não gastaria dinheiro na aquisição de terras, porque seria uma transação direta entre Danding e seus trabalhadores, via VLT; 2) Danding manteria a propriedade sobre a infra-estrutura da recém-instalada plantação moderna, como os tubos de irrigação e o maquinário agrícola; 3) Danding investiria na instalação de indústrias de processamento e em um moderno sistema de gerenciamento; 4) o preço de terra seria fixado em PhP$ 350.000/ha (US$ 8.500); 5) os trabalhadores seriam empregados na companhia da joint venture; 6) a propriedade da terra seria coleti- va, em nome da cooperativa dos trabalhadores rurais beneficiários; 7) as ações do empreendimento conjunto seriam divididas na proporção de 30%-70% em favor de Danding; 8) o acordo de joint venture vigoraria durante 25 anos, renováveis por outros 25 anos, condicionados à opção exclusiva de Danding; 9) a cooperati- va dos beneficiários colocaria seu CLOA como patrimônio conjunto na compa- nhia. No entanto, não foi concluída a negociação, à época, como uma transação especial de reforma agrária especial, porque o mandato de Ramos terminou (em meados de 1998), embora o CLOA tivesse sido gerado na transação. Uma nova rodada de negociações iniciou quando a administração de Estrada assumiu o mandato, em meados de 1998. A oferta de Danding permaneceu basi- camente igual à da administração anterior, com duas exceções importantes. Pri- meiro, Danding retirou de “sua” lista de beneficiários várias dúzias de trabalhado- res críticos ao esquema dele. Na prática, Danding foi o único a decidir quem seria incluído e excluído da lista de beneficiários.15 Além do mais, isso acontecia no contexto do assédio sistemático de Danding a iniciativas de organização autôno- ma dos trabalhadores rurais, de modo que eles perderam espaços significativos. Em segundo lugar, embora originalmente Danding tivesse negociado um preço de compra de PhP$ 350.000 por hectare, durante a visita do Presidente Estrada ao pomar, no início de 1998, fez o surpreendente anúncio de que daria sua terra gratuitamente aos trabalhadores. Contudo, ainda sob a condição de que a terra fosse colocada na joint venture. Isso levou Estrada a declarar Danding como “pa- drinho da reforma agrária”, um pronunciamento que foi recebido com protestos populares por parte de ativistas da reforma agrária. Reagindo a várias críticas públicas, o DAR fez uma contraproposta, com as seguintes características: o patrimônio que os trabalhadores beneficiários coloca- riam na joint venture seria o “uso da terra” e não o título da terra (ou o CLOA), assim, o direito dos trabalhadores à terra ficaria protegido em caso de falência do empreendimento.16 Como segundo ponto, o governo, representado pelo DAR, teria permissão de participar da joint venture mediante o seguinte arranjo: partici-

152 pação de 30% para os beneficiários, 65% para Danding e 5% para o governo. Pretensamente, esse arranjo era para impedir que Danding tivesse voto majoritá- rio de dois terços na companhia e para que o governo pudesse fornecer assistência e proteção aos beneficiários. Por fim, a duração do empreendimento conjunto seria reduzida para dez anos, renovável em acordo mútuo de todas as partes envolvidas. Não foi surpresa que Danding rejeitasse a proposta do DAR, o que levou o caso a um longo impasse (até a época do presente escrito, em fins de 2003). b – O esquema de arrendamento da antiga propriedade de Floirendo A família Floirendo foi parte da elite político-econômica das Filipinas mais influente desde os anos de 1960. Como Danding, a família sobreviveu à transição do regime, de 1986 a 1988, e às subseqüentes rodadas de administrações nacio- nais. Uma das mais poderosas do setor bananeiro e entre a elite doméstica, a famí- lia tem ligações com companhias multinacionais como Del Monte e controla milhares de hectares de terra, tanto de propriedade particular como arrendados do governo. Nas plantações de sua propriedade particular, tentou inicialmente frustrar a reforma agrária, fixando um pedido de preço elevado para suas terras: PhP$ 750.000/ha (US$ 15.000) em 1997. Contudo, em 1998, o Banco Agríco- la, de propriedade do governo, determinou o valor em apenas US$ 5.500/ha.17 Enquanto isso, em 2001, um tribunal local declarou que uma plantação de bana- nas como a dos Floirendos valia US$ 26.000/ha. Em decorrência, muitos ficaram surpresos quando os Floirendo venderam sua plantação, em 2002, por apenas PhP$ 92.000/ha (US$ 1.900). Mas a venda foi feita como VLT, vinculada a um contrato de arrendamento da antiga proprieda- de. O contrato tinha cinco características principais: 1) a terra seria comprada da família Floirendo diretamente pelos trabalhadores rurais; 2) os trabalhadores beneficiários arrendariam a terra de volta para a família Floirendo durante 30 anos, renováveis para outros 30 anos por opção exclusiva dos Floirendo; 3) o pagamen- to pela terra seria amortizado em 30 anos e seria deduzido, automaticamente, da renda devida aos trabalhadores beneficiários; 3) a renda a ser paga era fixa, de PhP$ 5.000/ha por ano (US$ 100); 4) os trabalhadores beneficiários permaneceriam empregados como operários da fazenda e 5) a família Floirendo teria o direito exclusivo de comprar de volta a terra de todo beneficiário que deixasse a terra ou fosse desqualificado, mais tarde, como beneficiário. As condições desses contratos integrados revelam as tentativas de latifundiários para transformar o esquema de arrendamento de antiga propriedade, via VLT, em uma poderosa fórmula anti-reforma. A decisão da família Floirendo de baixar ra-

153 dicalmente o preço solicitado pela terra foi amarrada ao arranjo de arrendamento da antiga propriedade: quanto mais baixo o preço da terra, tanto mais baixa seria a renda.18 O contrato de arrendamento de 60 anos é praticamente a duração de uma vida; antes dos 60, a maioria dos beneficiários teria morrido sem jamais pos- suir a terra que supostamente obtiveram da reforma agrária. A família Floirendo ofereceu dinheiro adiantado pela renda aos futuros beneficiários e realizou vigo- rosos esforços para “desalistar” do rol de beneficiário trabalhadores rurais perten- centes a organizações autônomas que exigiam a desapropriação das plantações. Houve divisões nas fileiras dos trabalhadores rurais quando os Floirendo agiram para consumar os contratos, com apoio da liderança do DAR, motivada pela VLT (Franco, 2004). c – O esquema Marsman de partilha de lucros Roberto Sebastian, ex-secretário do Departamento de Agricultura (1992-1995), presidente e executivo-mor da companhia bananeira Marsman, propôs um arran- jo modificado para a plantação da Marsman, uma fazenda que fica geografica- mente próxima da dos Floirendo e para a qual Marsman fixou originalmente um preço de PhP$ 1,2 milhões/ha em 1997.19 A terra seria doada, não vendida, a tra- balhadores rurais beneficiários (transação classificada como VLT), mas com qua- tro condições: 1) os trabalhadores beneficiários permitiriam à Marsman usar a terra gratuitamente durante 30 anos, renováveis para outros 30 anos, por opção exclu- siva da Marsman; 2) os trabalhadores beneficiários seriam contratados como mão- de-obra da fazenda; 3) ao contrário do arrendamento direto da antiga proprieda- de pela família Floirendo, a fórmula da Marsman era propiciar a partilha anual da produção e do lucro aos beneficiários, alegando ser melhor que o arranjo de ar- rendamento, porque lucros e participação nos lucros poderiam subir, ao contrá- rio de uma renda fixa pela terra; 4) a Marsman teria o direito exclusivo de com- prar de volta a terra de todo beneficiário que deixasse sua terra ou fosse desqualificado como beneficiário (Marsman, 2002). O governo se mobilizou para aprovar essa proposta de contrato, sendo que a própria presidente Gloria Macapagal-Arroyo ordenou sua aprovação. Durante a 31ª reunião do Conselho Presidencial de Reforma Agrária (PARC), em que a Marsman foi solicitada a apresentar sua proposta, a Presidente Arroyo declarou confiantemente: “A fórmula da reforma agrária é aquisição e redistribuição. [Nes- sa fórmula da Marsman] economizamos a aquisição. Vamos diretamente à distri- buição. Louvado seja Deus!” Ao que o Secretário do DAR, Hernani Braganza, respondeu: “No longo prazo, Senhora Presidente, isso poderia servir como mode-

154 lo para toda a indústria. Não se perde a produtividade. Não se perde o valor da terra.” O Secretário Camacho, do Departamento de Finanças, concluiu: “Senho- ra Presidente, gostamos muito de sua fórmula. Com sua fórmula, expressamos completo apoio. Pensamos que é excelente.” Roberto Sebastian estava exultante. Os trabalhadores rurais da Marsman diretamente afetados pela proposta nem se- quer foram convidados para participar nessa reunião que decidiria seu destino (PARC, 2002).

2.2. A extensão nacional das transações de VLT Dados oficiais mostram a extensão das transações de VLT, em âmbito nacio- nal, entre 1972 e 2001 (DAR, 2001a). Porém, como outros dados quantitativos oficiais agregados, deixam de mostrar a extensão total das relações dinâmicas de poder que determinam a redistribuição de terra em determinada propriedade. Por duas razões principais é difícil, se não impossível, determinar a dimensão exata de transferências de terra não-redistributivas e não-reformistas com base na VLT. Primeiro, como discutido anteriormente neste ensaio, redistribuição de terra é redistribuição de poder. Faz-se necessária, portanto, uma avaliação caso a caso, para aferir se, e até que ponto, houve uma redistribuição em um latifúndio espe- cífico, disputado por vários atores. Isso vale para todas as modalidades de redistribuição de terra do CARP, inclusive a VLT. Em segundo lugar, como reve- lado nos casos supracitados, quando a VLT é usada por proprietários para se en- quadrar na lei da reforma agrária, ela geralmente vem acompanhada de processos de transação que também são controlados pelos latifundiários, o que torna inviável determinar a quantidade exata de VLTs fraudulentas. No entanto, informantes confiáveis fornecem estimativas melhores do alcan- ce da VLT não-redistributiva. Três subsecretários do DAR para operações de cam- po e serviços de apoio (USEC-FOSSO), funcionários máximos que supervisio- nam a implementação do CARP em âmbito nacional, são unânimes em sua visão negativa da VLT. Ding Navarro disse: “Não sei a porcentagem exata, mas a maio- ria [de transferências de terra com base na VLT], talvez algo como 70%, foi usada pelos proprietários de terras (…) para se evadirem do enquadramento”.20 De acordo com Gerry Bulatao, muitas vezes a VLT é uma transação entre parentes (malimit na transakyon ng magkakamag-anak).21 Hector Soliman propôs que todos os re- sultados de transferência de terra pela VLT fossem separados e revistos.22 A posi- ção de Soliman é apoiada pelo presidente do Serviço de Auditoria Interna do DAR, Ding San Andrés, que também é o presidente do AMIC. Ele vem insistindo com a liderança principal do DAR, demandando uma revisão de toda a VLT.23 Além

155 disso, na maioria dos casos de VLT discutidos acima, as transações foram registradas como vendas de terra baseadas em dinheiro vivo 100% à vista. Isso levou Lorenz Reyes, um membro emérito do Comitê Nacional de Licitação do DAR, a comen- tar: “Você terá sérias dúvidas, porque esses esquemas de VLT são principalmente à base de dinheiro. Como um arrendatário pobre tem condições de pagar pela terra 100% à vista? É muito provável que esses sejam meros jogos de cena, especial- mente onde os proprietários de terras têm suficiente força política para controlar seus arrendatários.24 Os dados oficiais sobre aquisição e distribuição de terras (DAR, 2001a) escon- dem mais do que revelam acerca da realidade da VLT. No entanto, exame prelimi- nar dos dados tabulados revela um padrão amplo de VLT não-redistributiva, que provavelmente foi praticado de forma mais sistemática do que se presumia anterior- mente. Em áreas geográficas onde a presença de movimentos camponeses autôno- mos e seus aliados é esparsa e frágil, os casos de VLT têm incidência mais alta. Exem- plos disso são a região do CAR (as regiões 1, 9, 10, 12 e 13), a província de Cotabato Norte e Quezon II (ver também Borras, prelo e 2001b). Além disso, quatro das cin- co regiões que apresentaram a maior redistribuição geral de terras também são as principais “produtoras” de VLT. Isso indica que a VLT é usada como veículo de “redistribuição” nessas regiões, em proporção maior que em outros lugares do país. Em termos gerais, esse é o mesmo padrão registrado no nível provincial, especial- mente em províncias isoladas e menores, como Catanduanes, Batanes e Camiguin, onde geralmente estão ausentes organizações autônomas de camponeses. Contudo, até mesmo em províncias nas quais os trabalhadores rurais autônomos e organiza- ções camponesas têm presença relativamente mais forte, a VLT não-redistributiva consegue ganhar terreno, como nas províncias de Davao del Norte e Negros Oci- dental. Nessas, latifundiários particularmente poderosos confinaram os movimen- tos favoráveis à reforma em imóveis específicos para obter consentimento para acor- dos de VLT não-redistributiva (como nos casos de Floirendo e Marsman, em Davao, e de Cojuangco, em Negros).

2.3. A Reforma Agrária de Mercado do Banco Mundial É citado freqüentemente na literatura, tanto pelo BIRD como por seus críti- cos (ver, por exemplo, Deininger & Binswanger, 1999; El-Ghonemy, 2001) que, a partir de 1998, a RAM foi implementada amplamente nas Filipinas. Não é esse o caso, como concluíram alguns pesquisadores (por exemplo, Franco, 1999a, 1999b; Reyes, 1999) e como será demonstrado a seguir, e isso é importante para esclarecer a questão.

156 Desde o início dos anos 1970, o BIRD exerceu uma função importante na con- figuração dos rumos das políticas de desenvolvimento rural nas Filipinas. O BIRD, ao lado de algumas organizações fundamentais no âmbito da política externa dos EUA, como a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID), de forma geral, sustentaram uma posição política contrária à reforma agrária redistributiva no país, embora essa posição tenha sido, às vezes, questionada inter- namente. Historicamente, o BIRD trabalhou em prol de um enfoque de desenvol- vimento agrícola e rural no país baseado mais no crescimento econômico que na eqüidade (veja Putzel, 1992). Assim, embora o BIRD algumas vezes apoiasse o CARP, sua ajuda foi limitada à construção da infra-estrutura (por exemplo, estradas e pon- tes) em comunidades nas quais houve êxito na redistribuição de terras, ao invés de se estender à redistribuição como tal (veja Fox & Gershman, 2000). O BIRD e a USAID trabalharam juntos em um teste ou piloto do conceito de esquemas de transferência voluntária de terras, comandados pelo mercado, na América Latina, nos 1970 e 1980 (Dorner, 1992, p. 86-91). Uma argumentação similar das duas agências esteve presente nas Filipinas durante o processo de defi- nição política do CARP (Putzel, 1992). Mas, enquanto a USAID era mais elo- qüente na defesa de esquemas de transferência voluntária de terra, durante o pro- cesso de definição política do CARP (ibid., p. 293-295), foi o BIRD que insistiu sistematicamente com o governo filipino para que se desviasse da desapropriação e adotasse formas voluntárias não-desapropriatórias de “reforma agrária.” A primeira tentativa do BIRD em recrutar funcionários governamentais para que adotassem sua RAM foi em 1996, quando insinuou, em seus documentos de políticas para o país, que o governo filipino teria de parar com a implementação da distribuição de terra do CARP, especialmente na categoria de estabelecimentos entre 5 a 24 hectares, porque supostamente “distorcia” o mercado de terras e era financeiramente dispendioso (BIRD, 1996, 1997a, 1997b). No mandato de Garilao, o DAR rejeitou a proposta do BIRD. O ruidoso protesto público subse- qüente de círculos ativistas pela reforma agrária obrigou os funcionários do BIRD a se distanciar rapidamente do CARP filipino. Retornaram três anos depois, com vigor e persistência renovados, fazendo algumas incursões políticas modestas (Fran- co, 1999b). No começo de 1999, os funcionários do BIRD retornaram às Filipinas para convencer a então nova liderança do DAR a apoiar, pelo menos, um pequeno projeto-piloto de RAM no contexto de experimentar outros “enfoques comple- mentares” na implementação da reforma agrária. Por diferentes razões, inclusive a esperança de receber novos empréstimos do BIRD em meio a uma crescente es-

157 cassez de recursos públicos, a liderança do DAR manifestou interesse em experi- mentar as possibilidades da RAM.25 No início de 2000, depois de um longo e complexo processo de negociação, houve um acordo de que seria realizado um projeto muito menor, um estudo de viabilidade.26 O estudo de viabilidade da RAM envolveu amplos estudos de gabinete de macro-políticas, produzindo documentos favoráveis ao modelo de políticas pró- mercado. Por exemplo, Esguerra (2001) prenunciou a viabilidade econômica da RAM, embora advertisse sobre fatores institucionais, organizacionais e financei- ros menos controláveis que poderiam impedir um processo conduzido pela de- manda, entre outros. Edillion (2001) apresentou dados comparativos detalhados entre diferentes esquemas de aquisição de terra em plantações diversas, anuncian- do igualmente a viabilidade financeira da RAM, embora, como Esguerra, adver- tiu sobre a imprevisibilidade de outros fatores no campo. Mamon (2001) endos- sou a continuação do estudo de viabilidade e do projeto-piloto, mas sublinhou o papel crucial da preparação social autônoma nas comunidades envolvidas. Final- mente, foi produzido um manual operacional (DAR, 2001b) que delineou as formas e os meios pelos quais a RAM poderia ser implementada no país. O projeto de viabilidade também incluiu dois casos de teste localizados em comunidades, dos quais foram produzidos relatórios. Contudo, os conteúdos desses documentos são avaliações rotineiras de pré-projeto sobre procedimentos operacionais padrão: perfis de possíveis compradores e vendedores, características das terras à venda e assim por diante. Entretanto, uma passagem pelos documen- tos e entrevistas com alguns dos diretamente envolvidos no estudo de viabilidade, ao nível comunitário, renderam dados e percepções adicionais. A primeira localidade do projeto situa-se no barangay Sibula, Lopez Jaena, no Misamis Ocidental, envolvendo uma área arrendada de 178 hectares de proprie- dade do governo provincial (48 hectares estavam ociosos e 130 hectares eram cultivados com coco e outras culturas de subsistência). Há 178 potenciais com- pradores beneficiários. Os compradores foram escolhidos pelo processo habitual do DAR/CARP, ou seja, principalmente pelo DAR, mas com a participação de todos os potenciais beneficiários e ajuda de uma ONG. No início, o governo fi- xou o preço da terra em PhP$ 31.000/ha, mas foi rejeitado pelos beneficiários e outras partes no acordo. A oferta final do governo foi de PhP$ 16.000/ha, pagá- veis em dez anos (UPSARDFI, 2001, p. 94-95) e os compradores assumiriam o custo total da terra (MUCEP, 2001). O segundo projeto está no barangay Hagonghong, Buenavista, Península de Bondoc Quezon, e envolve uma área agricultável marginal privada de 48 hectares,

158 arrendada para plantio de coco e outras culturas de subsistência. A terra estivera à venda desde 1989 e estava sendo vendida ao DAR quando começaram as discussões sobre a viabilidade do projeto da RAM. O proprietário fixara originalmente o preço da terra em PhP$ 35.000/ha com uma entrada de 25% e o restante a ser saldado em prestações de dez anos. Foram escolhidas dezenove potenciais famílias beneficiárias pelo processo normal do DAR/CARP (novamente de forma predominante pelo DAR, mas com participação ativa dos potenciais beneficiários e ajuda de uma ONG). As potenciais beneficiárias, relativamente organizadas, rejeitaram o preço pedido pelo proprietário e barganharam um preço muito mais baixo. O preço final foi estabele- cido em PhP$ 6.000/ha. Os compradores assumiram o custo total da terra, a ser pago em dinheiro, através de um empréstimo do Banco Agrícola, a taxas de juros comerciais (UPSARDFI, 2001, p. 94). Poucas lições podem ser extraídas desse estudo de viabilidade, exceto talvez as seguintes: do primeiro caso, a lição fundamental parece ser que até mesmo um órgão governamental pode ser tentado a supervalorizar a terra a ser vendida a camponeses, no processo de venda direta. O segundo caso, à primeira vista, parece interessante, especialmente como o preço de terra foi reduzido pela bar- ganha. No entanto, não podemos tomar esse caso como representativo, porque o equilíbrio de forças era avassaladoramente a favor dos camponeses, devido à ajuda direta dos governos nacional, provincial e local, bem como de atores não- governamentais, no sentido de pressionar o proprietário a cumprir os níveis de preços de terra de uma aldeia isolada. É improvável que uma intervenção arti- culada dessas, de grupos altamente independentes e militantes, seja reproduzida em grande escala. Apesar das percepções limitadas, ou por causa delas, que podem ser derivadas do estudo de viabilidade, o BIRD decidiu continuar e ampliá-lo para um peque- no programa-piloto. Previsto para iniciar em meados de 2003, o piloto visa faci- litar a venda de mil hectares a mil famílias rurais pobres. O custo calculado desse projeto é US$ 5,24 milhões ou US$ 5.240 (PhP$ 262.000) por família beneficiária.

Conclusão

É a redistribuição de riqueza e poder da elite latifundiária para os camponeses pobres sem-terra que constitui a essência da reforma agrária. Como debatido aci- ma, o esquema de transferência de terras pela RAM requer pagamento 100% à vista, em dinheiro vivo, ao proprietário a 100% (ou mais) do valor da terra, e

159 100% desse custo (mais os custos da transação) devem ser assumidos integral- mente pelo comprador. Os proponentes da RAM alegam uma inclinação favorá- vel ao pobre, mas as premissas teóricas e operacionais do modelo de política ten- dem a contradizer isso. Logo, pode-se argüir que até mesmo dentro da perspectiva estritamente monetarista acerca da terra, a redistribuição da riqueza está ausente na RAM. A “troca” de bens no mercado entre vendedores e compradores não é igual a, ou necessariamente não constitui, redistribuição de riqueza. Além disso, o presente estudo mostrou casos de VLT em que a redistribuição de poder perma- nece ausente, apesar das formalidades quanto à redistribuição da terra (riqueza). Significa que não houve nenhuma transferência de poder a favor do pobre para o controle efetivo dos recursos fundiários. A falha principal desses esquemas de trans- ferência de terra baseadas no mercado reside em conceitos fundamentais sobre a reforma redistributiva, bem como sobre mecanismos operacionais. As evidências das Filipinas tendem a contradizer prenúncios da RAM, com resultados amplamente similares às experiências do Brasil, Colômbia e África do Sul (Barros, Sauer & Schwartzman, 2003; Borras, 2003a). No Brasil e na Colôm- bia, pensou-se que a RAM facilitaria transferências de terra que não constituem reforma redistributiva e, agindo assim, solaparia procedimentos prévios, potenci- almente distributivos, de uma reforma agrária conduzida pelo estado (Sauer, 2003; Mondragon, 2003; Borras, 2002). Na África do Sul, a RAM bloqueou as chances de uma reforma agrária mais radical desapropriatória e redistributiva, consolida- da em lei (Levin & Weiner, 1997; Bernstein, 1998). Alicerçada sobre as evidências disponíveis, a conclusão preliminar deste estu- do é que esquemas de transferência de terra baseados no mercado – a RAM e sua variante VLT – não promovem uma reforma redistributiva. Politicamente, e em termos de gestão da política, esses esquemas fornecem aos proprietários meios melhores e mais amplos através dos quais conseguem concretizar rapidamente a evasão da reforma agrária redistributiva, especialmente em contextos como o das Filipinas, onde as classes latifundiárias permanecem entrincheiradas no seio do estado e da sociedade. Assim, a RAM e esquemas similares de VLT arruínam, ao invés de complementar, reformas agrárias potencialmente redistributivas conduzidas pelo estado. Implicitamente, críticos da RAM que se concentram em questões de “viabilidade de implementação” (financeira e administrativa) do modelo de política a favor do mercado, e não na substância e no processo, podem, na prática, apoiar a RAM. No entanto, a mazela fundamental da RAM, e de esquemas similares à RAM, reside, em grande parte, na ênfase excessiva de seus proponentes em doutrinas puramente mone-

160 tário-econômicas, e não na natureza multidimensional e político-econômica dos di- reitos de propriedade e de uso da terra, bem como da reforma redistributiva.

Notas

1 Veja, por exemplo, Riedinger et al. (2001), El-Ghonemy (2001) e Ghimire (2001). Além disso, estudio- sos, amplamente pró-mercado, também criticaram, em certa medida, a RAM, argumentando que é cara. Contudo, demandam experimentação adicional de RAM (veja, por exemplo, Carter, 2000; Sadoulet, Murgai & De Janvry, 1998; Banerjee, 1999; de Janvry et al., 2001). As duas “consultas eletrônicas” franqueadas pelo BIRD, em janeiro de 2003 e março de 2001, também permitem uma avaliação das diversas visões sobre a RAM, vindas de diferentes políticas, de agrupamentos políticos e de acadêmicos (veja a página do BIRD na web sobre política fundiária). 2 Essa explicação conceitual é consistente com a discussão detalhada dos conceitos de “dotação” e “intitulação” por Lixivie, Mearns & Scoones (1999). 3 A expressão latina “ceteris paribus” significa “em circunstâncias idênticas” (nota do tradutor). 4 A privatização de fazendas estatais em antigos países socialistas também é uma parte integrante da RAM, mas não é analisada neste ensaio. Para estudos críticos, veja, por exemplo, Spoor (1997). 5 Contudo, isso foi revisto e reduzido, no início de 1996, para 8,064 milhões de hectares (ver Borras, 2003b). 6 A preponderância deste tipo de VLT foi confirmada por diversos altos funcionários do DAR entrevista- dos para o presente estudo. Entrevista com Gerry Bulatao, 21 de janeiro 2002, na Cidade de Quezon. Em entrevistas pessoais ao autor, dois ex-secretários do DAR (Ernesto Garilao e Horácio Morales) e dois outros subsecretários para operações (Ding Navarro e Hector Soliman) também concordaram com os pensamentos de Bulatao sobre a VLT, enquanto quase todos os diretores entrevistados das agências nacional e regionais do DAR compartilharam dessa visão de VLT. 7 PARO, Jose Grageda (Camarines Sur); Entrevista, 14 de janeiro de 2002, Cidade de Mandaluyong; veja também AMIC-PARC, Relatório para 1998, seção no DAR. 8 Entrevista com Soltero Coronel (pseudônimo), irmão de quatro “beneficiários no papel” desse caso. 9 A sigla DARMO significa “Escritório Municipal do DAR” e o MARO é o “Oficial Municipal da Refor- ma Agrária”. 10 PARO Jose Grageda (Camarines Sur), entrevista realizada em 14 de janeiro de 2002, Cidade de Mandaluyong; ver também AMIC-PARC, Relatório para 1998, seção no DAR. 11 Enquanto isso, a mesma categoria de área de 5 hectares com base na VLT obteve as menores deduções em comparação com outras categorias de tamanho de estabelecimento e modalidades de aquisição ao longo do tempo (Borras, 2003b), fornecendo evidência adicional da probabilidade de um processo institucional, sistematicamente maquiado, de implementação da VLT. 12 Ademais, a plantação existente constitui a única propriedade do fazendeiro. 13 Estimativas de funcionários locais do DAR, líderes de ONGs e representantes da indústria bananeira. 14 Cultivada com variedades para exportação, de alto valor comercial, como manga e durião. 15 A mesma estratégia foi empregada por Cojuangco em sua área rural em Davao del Sur, de acordo com o diretor do DAR, que cuidou dos casos de lá (entrevista com o diretor regional do DAR, Davao, 11 de fevereiro de 2002). 16 Existe aqui uma tensão legal, pois os CLOAs não podem ser revendidos, no prazo de dez anos, após a concessão.

161 17 Entrevista com Romeo Fernando Cabanial, Oficial de Avaliação de Terras (LBP-XI), em 5 de fevereiro de 2002, cidade de Davao. 18 Cabanial (da LBP-XI) disse que, com base no estudo do Banco Agrícola das Filipinas, se o preço de terra é PhP$ 350.000, a renda/ha/ano pelo arrendamento seria de PhP$ 45.000, baseada nos padrões indus- triais vigentes. 19 Em 1999, Klaus Deininger, do BIRD, falou com o dono da Marsman sobre como ele via a possibilidade de que sua terra fosse submetida ao modelo da RAM. Segundo notícias, o dono da Marsman endossou o conceito de RAM, oferecendo sua plantação como projeto-piloto, mas pelo elevadíssimo preço de PhP 1,2 milhões/ha (à vista). Depois deste episódio, não aconteceu mais nenhuma negociação com Marsman quanto à RAM. 20 Entrevista, 16 de janeiro de 2002, Cidade de Quezon. 21 Entrevista, 21 de janeiro de 2002, Cidade de Quezon. 22 Entrevista, 18 de janeiro de 2002, Cidade de Quezon. 23 Entrevista, 1º de março de 2002, Cidade de Quezon. 24 Entrevista, 29 de janeiro de 2002, Cidade de Quezon. 25 Essas afirmações são baseadas em várias discussões entre o autor e o Secretário do DAR, Horácio Morales, em 1999. 26 O estudo de viabilidade começou em outubro de 2000 (BIRD, 2000a, p. 3) com verbas de US$ 398 mil (carta do Secretário Assistente do DAR, Toinette Raquiza, ao Secretário Horácio Morales Jr, datada de 27 de fevereiro de 2001). Isso é diferente – embora diretamente relacionado – do projeto DENR sobre ges- tão e administração fundiária com verba de US$ 5,4 milhões do BIRD e AusAid (BIRD, 2000b). Duran- te o ano de 1999 e depois, organizações não-governamentais e movimentos camponeses, de amplo espec- tro político, rejeitaram a RAM ou qualquer programa-piloto (ver Franco, 1999a; 1999b; Reyes, 1999; UNORKA, 2000), forçando o BIRD a dar novo rótulo à RAM nas Filipinas: Programa de Reforma Agrária Gerido pela Comunidade ou CMARP.

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169

PARTE III

EXPERIÊNCIAS NO BRASIL

HISTÓRIA E LEGADO DA REFORMA AGRÁRIA DE MERCADO NO BRASIL

JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA SÉRGIO SAUER

O modelo de “reforma agrária de mercado” do Banco Mundial (BIRD) en- controu, no Brasil, a partir de 1996, as condições ideais para a sua implementação, as quais abarcavam desde a orientação de uma coalizão de poder interessada em promover uma contra-reforma radical do Estado (diminuindo gastos com políti- cas sociais e descentralizando responsabilidades), até a necessidade de criar políti- cas governamentais capazes de conter a pressão social advinda das lutas históricas por acesso à terra. Esse modelo de mercado teve início com a execução de dois empréstimos, sen- do um restrito ao estado do Ceará (denominado “Reforma Agrária Solidária”) e ou- tro – oficialmente reconhecido como o projeto-piloto – implantado em cinco esta- dos do Nordeste, incluindo o próprio Ceará. O “Projeto Piloto de Reforma Agrária e Alívio da Pobreza” – mais conhecido como Cédula da Terra – foi executado entre 1997 e 2002 e recebeu fortes críticas de todos os movimentos sociais agrários e en- tidades sindicais de representação de trabalhadores rurais. Apesar disso, o BIRD ale- ga que o Cédula constituiu uma experiência bem sucedida e exemplar, passível de ser replicada em maior escala como modelo preferencial de acesso à terra pelo campesinato pobre. No entanto, várias pesquisas realizadas – inclusive as financia- das pelo próprio BIRD – evidenciam os resultados sofríveis desse projeto. O objetivo deste trabalho é, a partir da avaliação do processo de implantação do Cédula, mostrar que o desempenho do modelo proposto pelo BIRD contrasta com a sua racionalidade técnica e com o discurso utilizado para legitimá-lo. A primeira parte resgata a gênese e o contexto político-ideológico em que se deu sustentação a implantação dos programas de reforma agrária de mercado. A segunda parte siste- matiza dados sobre o desempenho e os problemas na implantação do Cédula da Terra, inclusive as dificuldades de sobrevivência das famílias nas terras adquiridas e de geração de renda para pagamento das dívidas contraídas. A última parte faz um rápido balanço das mudanças no modelo de mercado e da situação atual do Progra- ma Nacional de Crédito Fundiário, criado e executado pelo governo Lula.

1. Gênese: contexto e intencionalidade política da “reforma agrária de mercado”

Para a coalizão de poder que levou Fernando Henrique Cardoso à presidência da República, interessada em implementar um projeto radical de liberalização da economia brasileira (Fiori, 2001), o tema “reforma agrária” era algo absolutamen- te anacrônico. Segundo a leitura dominante, falar desse tema no início dos anos 1990 significava, no máximo, a defesa de ações pontuais de alívio da pobreza ru- ral, sem qualquer intencionalidade redistributiva. Exemplo maior dessa visão foi a sua vinculação, no início do governo FHC, ao programa Comunidade Solidá- ria, de caráter nitidamente assistencialista. Igualmente, não havia espaço para uma política agrícola favorável aos peque- nos agricultores. Embora respondesse à reivindicação das organizações sindicais de representação de trabalhadores rurais, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), criado em 1995, na prática foi restringido a uma linha de crédito para financiamento de custeio, com baixo grau de cobertura e pouquíssimos recursos para créditos de investimento. Ademais, como instru- mento de política agrícola, era um programa marginal, incapaz de proteger a massa de agricultores familiares e camponeses da pressão concentradora e excludente provocada pelo padrão de desenvolvimento agropecuário dominante, cujos efei- tos deletérios eram ainda mais agravados pelo Plano Real e pela abertura comercial indiscriminada. Entretanto, o aumento das ocupações de terra em praticamente todos os esta- dos, conjugado à forte repercussão nacional e internacional dos massacres de Corumbiara (RO) e Eldorado dos Carajás (PA), impuseram ao governo federal o reconhecimento da existência de uma problemática agrária grave no país, trazen- do de volta o tema da “reforma agrária”. A necessidade de dar resposta à opinião pública forçou o governo a criar, em 1996, o Gabinete do Ministro Extraordiná- rio de Política Fundiária (MEPF). Isto, porém, não foi suficiente para aplacar a pressão social. Um ano depois, o MST promoveu a Marcha Nacional por Refor- ma Agrária, Emprego e Justiça, catalisando a insatisfação popular contra a políti- ca econômica e as reformas neoliberais. Naquele momento, ficou claro que o go- verno federal não tinha a capacidade política necessária para calibrar e enquadrar a pressão social por acesso à terra e à reforma agrária.

174 Para reverter a posição desfavorável na qual havia sido colocado, o governo federal adotou o discurso aparentemente inovador de que era preciso “reformar a reforma agrária” (Cardoso, 1997, p. 25). O MEPF, então, iniciou um conjunto relativamente articulado de ações em cinco direções. Em primeiro lugar, editou um pacote de medidas com o objetivo de reduzir parcialmente o preço final pago pelo Estado às desapropriações, acelerar o tempo de imissão na posse da terra desapropriada pelo INCRA e dificultar a evasão do ato desapropriatório pelos proprietários de terra (Medeiros, 2002). Em segundo lugar, aumentou a criminalização das ocupações de terra, proi- bindo a realização de vistorias do INCRA em áreas ocupadas (o que inviabilizava a sua desapropriação), suspendendo negociações em casos de ocupação de órgão público, penalizando funcionários do INCRA que negociassem com os ocupantes e vetando o acesso a recursos públicos por entidades que fossem consideradas sus- peitas de serem participantes, co-participantes ou incentivadoras de ocupações de terra (Medeiros, 2002). Ao mesmo tempo, acionou a Polícia Federal para monitorar a ação dos movimentos sociais. O resultado foi o aumento da violência contra os trabalhadores rurais, praticada impunemente tanto pelo Estado (sob a forma de prisões seletivas, despejos violentos e arbitrários, etc.), como pelo poder “priva- do”, freqüentemente com o auxílio de policiais civis e militares. Em terceiro lugar, por meio dos grandes meios de comunicação, promoveu uma campanha sistemática no sentido de construir uma imagem positiva do go- verno FHC em relação à reforma agrária e, ao mesmo tempo, uma imagem nega- tiva das ocupações de terra e dos movimentos sociais, num período em que cres- cia o apoio social ao MST (Carvalho Fº., 2001). Em quarto lugar, contra a posição de todas as entidades reunidas no Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo1, tomou iniciativas no senti- do de desfederalizar a política de reforma agrária, transferindo para a esfera esta- dual a competência para a condução de todo o processo de obtenção de terras e assentamento. Entendida pelo governo como parte do processo mais amplo de “reforma do Estado” então em curso, a descentralização da política agrária serviria para desonerar a esfera federal, cujas receitas eram cada vez mais comprometidas com o ajuste fiscal e o serviço da dívida pública externa e interna. Além disso, fragmentaria ainda mais a política fundiária, convertendo a “reforma agrária” em um caso-a-caso negociado localmente. Em quinto lugar, o governo FHC deu início a uma política agrária “amiga do mercado”, em cujo topo estava a aplicação do modelo de reforma agrária de mer- cado do BIRD.

175 Já em 1995, à luz das experiências colombiana e sul-africana, o BIRD preco- nizava ao governo brasileiro a transação mercantil entre trabalhadores e proprie- tários como mecanismo mais eficiente para distribuir terra, aliviar a pobreza rural e dinamizar os mercados fundiários (Banco, 1995). Nessa lógica, o governo deve- ria criar imediatamente uma “rede de proteção” que aliviasse, de maneira focaliza- da nos segmentos mais pobres, o impacto do Plano Real e das políticas de ajuste estrutural no campo (van Zyl et al., 1995). O acesso à terra seria um dos compo- nentes desse “colchão amortecedor” necessário para dar “funcionalidade” à implementação do ajuste. A novidade era que tal acesso deveria se dar, agora, pela via da negociação mercantil. A situação brasileira em meados da década de 1990 era ideal para o BIRD testar o seu novo modelo de “reforma agrária de mercado”, pois havia aqui uma enorme “demanda” por terra, uma tendência de queda relativa do preço dos imó- veis rurais em algumas regiões e, sobretudo, um governo estreitamente alinhado à plataforma neoliberal. Por outro lado, o governo brasileiro precisava responder ao aumento da pressão social por terra e, mais que isso, deter o protagonismo na condução da maneira pela qual a problemática agrária deveria ser tratada. Foi essa convergência de interesses que possibilitou a formulação e a implementação no Brasil de projetos e programas orientados pelo modelo de “reforma agrária de mercado”. Repetindo as mesmas justificativas do Banco Mundial (1997b), o discurso do governo brasileiro em favor do modelo de mercado sustentou três argumentos centrais. Em primeiro lugar, afirmou que a desapropriação para fins de reforma agrária havia se tornado um instrumento inadequado, posto que intrinsecamente vinculado a um “modelo” de ação fundiária centralizador, arbitrário, propenso à corrupção e lento que teria se tornado anacrônico. Nessa lógica, seria preciso subs- tituir esse instrumental por mecanismos mais eficientes, baseados na “livre tran- sação” de mercado entre agentes privados (Teófilo, 2000). Em segundo lugar, argumentou que o orçamento da União não tinha condi- ções de financiar programas como a reforma agrária, dadas as indenizações eleva- das arbitradas pelo Judiciário (Teófilo, 2000). Ou seja, além de ineficaz e anacrô- nico, o modelo “desapropriacionista” também seria caro demais. Nessa perspectiva, a “oferta” do BIRD permitiria ao governo promover uma “inovação” no rol de políticas públicas dirigidas ao agro, testando um modelo supostamente “mais efi- ciente” de “reforma agrária”. Em terceiro lugar, afirmou que as ações do governo federal estavam “a rebo- que” dos movimentos sociais – especialmente do MST –, uma vez que os assenta-

176 mentos rurais eram resultado, predominantemente, de ocupações e acampamen- tos. Era preciso, na ótica do governo federal e do BIRD, diminuir a pressão provocada pelas ocupações de terra e reverter a ascensão das lutas populares no campo, introduzindo um mecanismo de mercado que pudesse disputar, pela base, a adesão de trabalhadores sem-terra (Carvalho Fº., 2001). Alguns anos depois, o próprio Banco explicitaria essa intenção com muita clareza:

O modelo governamental de reforma agrária através da distribuição de terras é um círculo vicioso: a terra é redistribuída onde há conflitos sociais e os conflitos sociais pressionam o programa de redistribuição de terras do governo (...). À medida em que novas alternativas começam a fazer efeito, o governo poderá reduzir a ênfase nas desa- propriações e, conseqüentemente, quebrar a ligação entre sua política de reforma agrária e os conflitos rurais (2003, p. 127, grifos nossos).

O modelo de reforma agrária de mercado foi implementado no Brasil com uma velocidade impressionante. O primeiro projeto nele inspirado chamou-se “Reforma Agrária Solidária”, uma experiência pequena no estado do Ceará. Sua implantação se deu pela introdução de um componente fundiário no Projeto São José, o que, até aquele momento, representava uma “novidade”.2 Criado em agos- to de 1996, o primeiro financiamento para compra de terras foi liberado em feve- reiro de 1997.3 Foi dessa experiência que nasceu, poucos meses depois, o “Projeto-Piloto de Reforma Agrária e Alívio da Pobreza” (ou “Cédula da Terra”), a partir da proposta do BIRD ao governo brasileiro (MEPF, 1999). Assim, a experiência iniciada no Ceará foi estendida também para Pernambuco, Bahia, Maranhão e norte de Minas Ge- rais. O acordo de empréstimo para a criação do Cédula foi aprovado pelo BIRD em abril de 1997, com início efetivo no mês de julho do mesmo ano, sem qualquer avaliação sobre o desempenho do Reforma Agrária Solidária, recém iniciado. Repetindo o mesmo procedimento usado em outros países, o BIRD propôs a implementação de um projeto-piloto com metas relativamente modestas: finan- ciar a compra de terras por quinze mil famílias em quatro anos. Assim, esperava contornar eventuais resistências e, por “efeitos de demonstração”, criar as condi- ções políticas para a extensão do modelo de mercado a todo país. Como afirmam Deininger e Binswanger: “Este esquema (apoiado por um empréstimo de US$ 90 milhões) tem como objetivo acelerar o processo de reforma agrária, reduzir os custos a menos da metade e fornecer as bases para um modelo que poderá, eventualmen- te, ser adotado nacionalmente” (1998, p. 14). Em outro documento do BIRD,

177 fica ainda mais clara a intenção de substituir de vez a desapropriação pelo finan- ciamento à compra de terras: “Se o projeto-piloto demonstrar a viabilidade da reforma agrária assistida pelo mercado e as estimativas de custos para este piloto forem representativas do país (...), tal programa poderia atender um milhão de famílias em menos de seis anos” (Banco, 1997b, p. 7). A região escolhida para iniciar o novo modelo foi o meio rural nordestino, onde se concentra o maior contingente de população em condições de pobreza do país e onde o BIRD opera desde os anos 1970. Desse modo, contando com uma logística já existente e frente a uma elevada “demanda” por terra, estimava-se que a implementação do projeto-piloto ocorreria de maneira acelerada, dando resul- tados em curtíssimo prazo (Banco, 1997a). Enquanto os dois projetos-piloto eram implementados no Nordeste, tramita- va no Senado o Projeto de Lei nº 25, que previa a criação de um fundo público para o financiamento de compra e venda de terras para camponeses, agricultores familiares e trabalhadores rurais. Sem qualquer tipo de avaliação sobre as experiên- cias anteriores e contra a posição do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Jus- tiça no Campo, o Executivo mobilizou a sua base parlamentar e conseguiu apro- var, em tempo recorde, a criação do chamado Fundo de Terras/Banco da Terra pelo Congresso Nacional, em fevereiro de 1998. O encadeamento entre as ações do governo federal em favor do modelo de mercado foi resumida da seguinte maneira:

Ceará, Bahia, Maranhão, Pernambuco e o Norte de Minas Gerais foram escolhidos para abrigar o programa Cédula da Terra – projeto piloto de combate à pobreza no meio rural que deu origem ao Banco da Terra. O Banco da Terra é a expansão, para todo o país, dessa experiência pioneira e bem sucedida de reforma agrária, desenvol- vida pelo governo brasileiro em parceria com o Banco Mundial. Tudo começou em 1997 no Ceará, com o nome de “Projeto São José” (MEPF, 1999, p. 14).

Uma das linhas de argumentação usadas pelos parlamentares do bloco governis- ta durante a única sessão na Câmara dos Deputados sobre o Banco da Terra foi o sinal de que o BIRD aportaria recursos no novo instrumento (Pereira, 2004). É interessante notar como o próprio BIRD, num primeiro momento, tentou assumir a “paternidade” do Banco da Terra, ao relacioná-lo diretamente com o Cédula:

O projeto piloto para a reforma agrária com base no mercado [o Cédula da Terra] (...) teve sucesso em termos de baixos custos, implementação rápida e um impacto

178 positivo na redução da pobreza, como era esperado. O projeto piloto demonstrou como o Banco pode facilitar inovações de política social e serviu de modelo para um novo programa complementar de reforma agrária por parte do Governo (Banco da Terra) (Banco, 2000, § 122, item d).

Todavia, diante da resistência dos movimentos sociais agrários, a diretoria do BIRD levou mais de dois anos para aprovar e liberar o empréstimo prometido. Quando isto aconteceu (final de 2000), os recursos não foram direcionados ao Banco da Terra, mas a um quarto programa de financiamento à compra de terras: o Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural, negociado com uma das enti- dades que participam do Fórum, a CONTAG. Malgrado algumas diferenças, são estas quatro experiências (Reforma Agrária Solidária, Cédula da Terra, Banco da Terra e Crédito Fundiário) que constituem a materialização da “reforma agrária de mercado” do BIRD no Brasil implantada pelo governo FHC.

2. Avaliação do Cédula da Terra

2.1. Implantação inicial, metas, recursos e gestão Apesar das críticas e da oposição dos movimentos sociais, o projeto-piloto Cédula da Terra foi implantado e obteve certa adesão social. Esta, porém, esteve longe do en- contro amistoso e voluntário no mercado entre compradores e vendedores, como pro- põem os teóricos do BIRD. Na verdade, é possível identificar quatro fatores principais que condicionaram fortemente a entrada dos trabalhadores rurais no projeto. Em primeiro lugar, o Cédula foi implementado em um período de seca e em um ano agrícola péssimo, em uma região sem perspectivas de trabalho e com uma população rural imensa e empobrecida. Como destacou a avaliação preliminar,4 em um contexto com tais características, a possibilidade de acesso à terra imedia- to foi encarada como um meio emergencial de sobrevivência, o que conferiu ao projeto um caráter assistencial (Buainain et al., 1999, p. 30). Em segundo lugar, houve intensa propaganda enaltecendo a possibilidade de acesso à terra “rápido” e “sem conflitos”, por meio da compra e venda, dirigida a uma população rural que, tradicionalmente, alimenta o “sonho” da posse da terra (Victor & Sauer, 2002). Em uma conjuntura de criminalização das ocupações e forte campanha nos meios de comunicação contra a forma de ação dos movimen- tos sociais, seria difícil imaginar que o Cédula não fosse encarado como uma al- ternativa, talvez a única.

179 Em terceiro lugar, houve a convergência de interesses políticos entre os pro- motores do Cédula, o que imprimiu à sua implantação uma velocidade singular em relação a outros projetos de “alívio da pobreza” em curso no meio rural. Os governos estaduais almejavam capitalizar eleitoralmente a sua participação no projeto nas eleições de 1998. O governo federal, por sua vez, travava a disputa político-ideológica com os movimentos sociais, numa conjuntura eleitoral em que era obrigado a dar resposta ao aumento da pressão social no campo, materializada no aumento das ocupações de terra e em saques por alimento no Nordeste. Por fim, o BIRD tinha total interesse em rapidamente implantar e legitimar o seu modelo de mercado, inclusive para melhor exportá-lo para outros países. A “pres- sa” dos gestores do Cédula em implementá-lo foi assim retratada:

A conjuntura política também contribuiu para aumentar a adesão e acelerar a im- plantação do Programa. Dois fatos merecem destaque: as eleições e a aparente “ansie- dade” do governo federal em viabilizar o programa como instrumento de ação fundiária (...). Os projetos foram implantados sob pressão do governo federal e do Banco Mundial, dificultando as tarefas de planejamento e acompanhamento (Buainain et al., 1999, p. 272).

A partir desse trabalho intensivo, acelerou-se enormemente a aprovação dos projetos do Cédula, de tal maneira que mais da metade dos 223 projetos contabilizados em janeiro de 1999 havia sido implementada no segundo semestre de 1998 (Buainain et al, 1999, p. 15). O significado e a intencionalidade política do Cédula naquela conjuntura foram diagnosticados com precisão:

Essa concepção de acesso à terra, fruto de uma “negociação entre as partes, solidária e sem conflitos” parece ser eficaz em atrair uma camada do público potencial da reforma agrária (...). Na atual conjuntura de mobilização, ao colocar nova opção de acesso à terra, o Cé- dula da Terra introduz uma disputa política e ideológica com outros movimentos sociais e seus mediadores (...), os quais detém, hoje, a iniciativa política neste campo e defendem o acesso à terra via instituto da desapropriação (Buainain et al., 1999, pp. 280-1).

Em outras palavras, a “demanda” pelo Cédula esteve diretamente ligada a uma situação de extrema pobreza, inexistência de oportunidades de trabalho, ação de políticos locais e repressão às ocupações de terra. Naquelas condições socioeconômicas e conjuntura política, era virtualmente o único meio de acesso à terra disponível ou possível para uma faixa considerável da população rural.

180 Os objetivos oficiais do Cédula da Terra eram: a) reduzir a pobreza rural, por meio do aumento da renda familiar; b) elevar o rendimento agrícola; c) testar o modelo de mercado como alternativa ao modelo “tradicional” de reforma agrária (Buainain et al., 1999). Na base de todo constructo estava a busca por um mode- lo de política fundiária mais barato, a fim de reduzir o gasto público para a área social exigido pelo ajuste fiscal. Tinha como público-meta trabalhadores sem-terra (assalariados, parceiros, arrendatários) e produtores rurais (proprietários ou não) com terra insuficiente para o auto-sustento. O acesso ao projeto só podia ser feito através de associações comunitárias legalmente constituídas, preexistentes ou criadas para esse fim. Com implementação esperada para quatro anos, o financiamento do Cédula teve quatro fontes, conforme a tabela 1. Os recursos do BIRD deveriam ser utili- zados para investimentos complementares, enquanto os recursos para a compra de terras viriam do governo federal.

Tabela 1 – Financiamento e desembolsos do Cédula da Terra (1997-2002) Fontes de financiamento Desembolso previsto (US$ milhões) Desembolso executado (US$ milhões) Banco Mundial 90 68,5 Governo federal 45 45 Governos estaduais 6,6 1,9 Associações comunitárias 8,4 5,9 Total 150 121,3 Fonte: Banco Mundial (1997b e 2003a).

Previsto para começar em maio, iniciou apenas em julho de 1997 e foi encer- rado em 31 de dezembro de 2002 (e não em junho de 2001, como era a proposta original). Segundo o Banco (2003a), o projeto foi parcialmente paralisado no fi- nal de 1999 e parte de 2000 devido à falta de aporte de recursos pelo governo federal durante a crise financeira e às duas solicitações ao Painel de Inspeção.5 Com a desvalorização do Real pós-1999, houve uma redução do custo final do Cédula em moeda estrangeira. Os itens financiados pelo projeto são indicados na tabela 2.

Tabela 2 – Itens financiados pelo Cédula da Terra Itens financiados Gasto previsto (US$ milhões) Gasto efetivo (US$ milhões) Compra de terras 45 45 Investimentos complementares 84,3 66,4 Assistência técnica e capacitação 3,9 2,6 Monitoramento, supervisão e administração 10,1 2,1 Avaliação e propaganda 6,7 5,2 Total 150 121,3 Fonte: Banco Mundial (1997b e 2003a).

181 Até 2000, os recursos para a compra de terras via Cédula vieram do orçamen- to do INCRA, constituindo uma evidente concorrência com a reforma agrária. A partir de 2000, tais recursos passaram a ter como fonte o orçamento público do Fundo de Terras/Banco da Terra. Seguindo a mesma lógica do projeto Reforma Agrária Solidária, o Cédula foi dividido em dois subcomponentes, um voltado para a aquisição de terra (SAT) e outro para investimentos complementares (SIC). O SAT financiava a aquisição de imóveis rurais com prazo de amortização de 10 anos, sendo três anos de carên- cia e correção monetária pela Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP). Em 1999, o governo modificou as condições de financiamento do programa, ajustando-as às condições então oferecidas pelo Banco da Terra (MEPF, 1999). O prazo de amor- tização foi estendido para 20 anos e foram estabelecidos juros fixos de 4% ao ano mais correção monetária pelo Índice Geral de Preços da Fundação Getúlio Vargas. Em fevereiro de 2002, a taxa de juros foi elevada para 6% ao ano. Em tese, a operação de compra de imóveis rurais deveria seguir como critérios principais: a) a procura por propriedades que apresentassem potencialidade para exploração dos recursos naturais com baixo nível de investimento adicional; b) a compatibilidade do preço negociado com os parâmetros de mercado, levando em conta a localização, a fertilidade natural e o potencial econômico da terra; c) o cumprimento de todos requisitos legais que regem o registro e a transferência de imóveis rurais; d) apresentar boas condições de acesso, de fornecimento de água e razoável infra-estrutura; e) dispor de área suficiente, como regra geral igual ou superior ao módulo mínimo de parcelamento da região (Buainain et al., 1999). Já o SIC provia recursos a fundo perdido para investimentos comunitários após a compra da terra em três áreas básicas: infra-estrutura (eletrificação, melhoramento de estradas, fornecimento de água, etc.), social (melhoria de escola ou posto de saúde, centro comunitário, etc.) e produtiva (irrigação, agroprocessamento em pequena escala, tratores, etc.). O limite de crédito para cada família era de US$ 11.200, incluídos os gastos com a compra da terra, registro, medição, impostos e investimentos comunitários. Cada família podia receber US$ 1.300 a fundo perdido como ajuda para instala- ção. Havia um limite máximo de subsídio de US$ 6.900 por família, no qual es- tavam incluídos a ajuda de instalação, o subsídio de 50% embutido no crédito fundiário e os demais subsídios sobre o valor do SIC. A lógica desse esquema de financiamento era que quanto menor fosse o gasto com a compra da terra (considerada empréstimo, portanto reembolsável), maior seria o volume de recursos para investimentos complementares (não-reembolsáveis).

182 O financiamento era tomado em caráter solidário, de modo que as associações eram responsáveis legais pelo pagamento das prestações. Amortizado o emprésti- mo, cada família receberia o título de propriedade correspondente. Oficialmente, as associações comunitárias selecionariam o imóvel e negociariam o preço diretamente com o proprietário. Depois, apresentariam a proposta de aquisição do imóvel e a lista de subprojetos comunitários ao órgão responsável pela gestão do Cédula. Este órgão analisaria a proposta quanto à elegibilidade dos beneficiários e do imóvel (i.e., sua situação legal, as condições de transação e a adequação do preço negociado aos parâmetros de mercado), elaborando laudo técnico de avaliação do imóvel. Aprovada a proposta, o órgão orientaria a elabo- ração de projeto detalhado para aquisição de terras, emitindo parecer técnico. Os projetos para investimentos comunitários (SIC) seriam elaborados por terceiros ou instituições governamentais que participassem do Cédula. Caso a proposta para aquisição da terra fosse recusada, o órgão orientaria a associação a dar continuidade ao processo de negociação. Se fosse aprovada, o agente financeiro (no caso, o Banco do Nordeste) estava autorizado a contratar financia- mento com a associação e a efetuar o pagamento ao proprietário e aos prestadores dos serviços de transferência de titularidade, bem como cobrar e receber os paga- mentos do financiamento de cada beneficiário. O agente financeiro também de- veria repassar diretamente às associações os recursos para investimentos comuni- tários. Seguindo os parâmetros do modelo de reforma agrária de mercado, o Cédula teve gestão descentralizada, de tal maneira que em cada um dos cinco estados constituiu-se um arranjo institucional específico. A estrutura do BIRD montada para executar os Programas de Combate à Pobreza Rural (PCPRs) foi extensa- mente utilizada (Steil, 2000). Os conselhos municipais – em geral, criados para gerir os PCPRs – também figuravam como instâncias de implementação e parti- cipação social no Cédula, embora coubesse às associações comunitárias o papel principal na gestão dos projetos. O grau de cobertura espacial do Cédula foi amplo, exceto em Minas Gerais, onde se restringiu às regiões Noroeste, Norte e Nordeste, abrangendo cinqüenta municípios. No Ceará e no Maranhão, praticamente todos os municípios foram cobertos, alcançando grande amplitude nos outros dois estados. De acordo com Buainain et al. (1999), a seleção dos municípios seguiu critérios como a existência de conflitos agrários latentes ou explícitos, situação de pobreza mais acentuada, existência de sindicatos de trabalhadores rurais favoráveis ao projeto, capacidade operacional da unidade técnica e apoio de prefeituras e lideranças políticas locais.

183 O Cédula foi implementado para atingir o maior número possível de municí- pios, sem qualquer ligação prévia com a política oficial de reforma agrária, nem tampouco com uma estratégia de desenvolvimento rural. O grau de cobertura alcançado explicita a intenção de espalhar ao máximo a incidência do projeto. Isto derruba o argumento de que o Cédula era uma iniciativa complementar às desa- propriações – cujo número, aliás, sofreu forte desaceleração em todos os estados onde o Cédula foi implantado (Victor & Sauer, 2002) –, ainda mais se se tem em conta que, nesse período, podiam ser adquiridas pelo projeto áreas passíveis de desapropriação. A explicitação dos critérios que orientaram as agências estaduais na implanta- ção do Cédula sugere que houve a intencionalidade política de utilizá-lo como instrumento de concorrência com os movimentos sociais. Isso aconteceu na me- dida em que se priorizou áreas conflituosas e segmentos extremamente pobres (em um período de seca e de perdas agrícolas), tendo por base, ao que parece, arranjos clientelistas com agentes políticos locais. Outra pesquisa financiada pelo BIRD6 mostra que a execução do Cédula não foi objeto de controle social, pois os conselhos ligados aos PCPRs tiveram, na prática, uma presença inexpressiva na gestão do projeto (Steil, 2000). Como regra geral, as propostas de compra das áreas e os subprojetos de investimentos comu- nitários foram apresentados diretamente aos órgãos gestores e às unidades técni- cas estaduais, esvaziando o papel dos conselhos municipais, único espaço institucional previsto para algum tipo de participação social na gestão do Cédula. Em outras palavras, diferentemente do que prevê o modelo de reforma agrária de mercado, não houve controle social algum sobre o projeto, integralmente mane- jado de uma maneira infensa à prestação de contas à sociedade. Seguindo o modelo de reforma agrária de mercado, o Cédula da Terra ancora- se no princípio da transação voluntária entre compradores e vendedores interessa- dos. Nenhuma pesquisa chegou a traçar o perfil socioeconômico dos vendedores, mas os dados indicam que os imóveis rurais adquiridos estavam, na maioria dos casos, subutilizados ou abandonados, em razão da seca e da crise da pecuária e das culturas tradicionais (algodão, cacau e cana de açúcar) (Buainain et al., 1999, p. 31). Entre mal utilizadas e abandonadas foram consideradas 76% das proprieda- des na Bahia, 81,3 % no Ceará, 81,3 % no Maranhão, 91,7% em MG e 83,3% em Pernambuco (Id., 2003, p. 105). Em relação ao tamanho, a área média dos imóveis adquiridos foi de 815,3 hectares. Há poucos projetos acima de dois mil hectares, assim como são raros os projetos com área muito reduzida (o menor tem 68 hectares). 31,86% dos proje-

184 tos têm até quinhentos hectares e 71,7% dos projetos têm até mil hectares. Exis- tem apenas vinte projetos com área acima de mil e duzentos hectares (Id., 1999, p. 131). A avaliação preliminar não verificou se os imóveis adquiridos de maior tamanho eram ou não passíveis de desapropriação. Porém, a pesquisa realizada por entidades que compõem o Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo7 (Victor & Sauer, 2002) detectou a ocorrência de compra de áreas passí- veis de desapropriação pelo Cédula em todos os estados. Sobre o perfil dos compradores, de modo geral, trata-se de um segmento com baixíssimo grau de escolarização (37,7% eram analfabetos e 47,1% estudaram entre a 1ª e a 4ª séries) e muito pobre. A renda monetária anual total antes de entrar no Cédula foi estimada em R$ 2.057 para uma família cujo tamanho médio era de 5,2 membros (algo em torno de R$ 32,90 por pessoa por mês, inferior a um terço do salário mínimo da época) (Buainain et al., 1999, p. 273). Estimou-se que a imensa maioria era formada de assalariados rurais e agricultores não-proprietários (parcei- ros, arrendatários), normalmente com ocupações complementares. A quase totali- dade dos beneficiários morava no local há muitos anos, sendo que um número sig- nificativo nasceu na própria região ou no entorno próximo, e aproximadamente 90% tinham como local de trabalho a zona rural (ibid, pp. 63-9 e 104). Outra pesquisa encontrou um perfil socioeconômico dos “beneficiários” rela- tivamente parecido, reforçando a percepção de que a falta de alternativas foi um dos mais poderosos condicionantes da “demanda” pelo Cédula:

A maior parte dos entrevistados tinha condições anteriores instáveis de trabalho (...) e moradia (...), resultando em situações de extrema pobreza. Esta realidade está expressa, por exemplo, no nível educacional, pois quase todos os chefes de família são analfa- betos. (...) As dificuldades (...) [também] estavam presentes nas relações de trabalho. A esmagadora maioria era desempregada ou tinha situações de subempregos, exer- cendo atividades temporárias no meio rural (...) ou no urbano (...). Esse tipo de situa- ção (...) acaba transformando o Cédula em uma “tábua de salvação” (Victor & Sauer, 2002, pp. 34-5 – grifos nossos).

A situação de pobreza e a falta de alternativas pressionaram para a entrada no Cédula fazendo com que, de modo geral, os “beneficiários” aceitassem preços mais elevados. Conseqüentemente, aceitavam níveis superiores de endividamento para terem acesso imediato à terra, introduzindo um elemento de tensão em toda a racionalidade do Cédula. Dois exemplos emblemáticos disso: 52% das associa- ções adquiriram a primeira propriedade ofertada sem procurar outra e, mais gra-

185 ve, apenas 13,5% consideraram o preço do imóvel como um dado relevante na fase de negociação imobiliária (Buainain et al., 1999, p. 120). Não é difícil perceber que o princípio da transação voluntária entre “compra- dores e vendedores interessados”, na verdade, põe de lado qualquer referência ao contexto existente, como se as relações mercantis operassem em um vazio social onde predominaria a livre vontade de agentes econômicos orientados por uma racionalidade utilitária e maximizadora. Os diversos fatores de ordem socioeco- nômica, política e cultural que pressionaram a “demanda” pelo Cédula questio- nam essa situação ideal – típica do raciocínio neoclássico pelo qual os economis- tas do BIRD são conhecidos –, que não encontra correspondência na prosaica realidade rural do Nordeste brasileiro. Pode-se afirmar, portanto, que a principal categoria de sustentação do modelo de reforma agrária de mercado carece de con- sistência teórica e empírica. Seu uso só encontra inteligibilidade no âmbito do discurso político-ideológico de que procura legitimar o modelo de mercado como alternativa à reforma agrária constitucional.

2.2. Assistência técnica e produção agrícola Ao contrário do que estabelece o modelo de mercado, a elaboração dos proje- tos produtivos não se deu antes da compra dos imóveis rurais, mas sim depois, inclusive em função da pressa dos órgãos governamentais em implementar o Cé- dula. Também contribuiu para o atraso dos projetos produtivos a dificuldade das associações em obterem uma assistência técnica regular – cuja remuneração, ini- cialmente, não havida sido prevista pelo Cédula – que permitisse formular pro- postas adequadas (Buainain et al., 1999, p. 195). Portanto, a aquisição dos imó- veis acabou não sendo antecedida por qualquer avaliação técnica significativa a respeito das potencialidades agrícolas – e, eventualmente, não-agrícolas – do em- preendimento a ser desenvolvido.8 Tanto a avaliação preliminar como a pesquisa coordenada por Victor e Sauer re- gistraram atrasos sistemáticos na liberação dos recursos para investimentos comple- mentares (SIC), o que prejudicou bastante os beneficiários do Cédula. Porém, em ne- nhuma das duas pesquisas consta que atrasos semelhantes tenham ocorrido no pagamento àqueles que venderam propriedades. Não se pode afirmar, portanto, que o arranjo descentralizado tenha sido imune a falhas operacionais graves, como pretende fazer crer o discurso que associa a descentralização à eficácia administrativa. Em relação à questão do desenvolvimento produtivo, a avaliação preliminar não investigou a qualidade das terras compradas através do Cédula, razão pela qual não oferece qualquer conclusão a respeito da sustentabilidade econômica dos

186 projetos. Por outro lado, embora o Cédula tivesse menos de dois anos de existên- cia quando a pesquisa foi concluída, pôde-se constatar algumas evidências a res- peito da dificuldade econômica dos projetos. Um dado relevante diz respeito à maneira como foram usados os recursos do SIC, em tese destinados a investimentos comunitários em infra-estrutura produ- tiva necessários à futura geração de renda. Na verdade, metade desses recursos foi gasta com custeio diário das famílias (Buainain et al., 1999, pp. 196-8 e 290), o que evidencia, mais uma vez, a extrema pobreza dos “demandantes” e ressalta o caráter emergencial e assistencialista que o Cédula assumiu. Outro dado bastante significativo é que a metade das aquisições de terra teve valores abaixo de 75% do valor médio do total dos contratos, o que permitiria que sobrasse para a maioria das famílias um montante em torno de cinco mil reais para investimentos comunitários (ibid, p. 138). Na prática, porém, esses recursos foram gastos de modo pulverizado em custeio e construção de infra-estrutura básica (como estradas, água, luz e moradia). O resultado é que tais recursos não foram “(...) suficientes para complementar/adaptar as benfeitorias existentes às novas condições de utilização da propriedade nem para estabelecer uma base produtiva sólida a partir da qual os beneficiários poderão gerar renda suficiente para melho- rar de vida e pagar a dívida contraída” (ibid, p. 290). Segundo a avaliação prelimi- nar, a maioria dos projetos com menor número de famílias teria a necessidade de créditos complementares para assegurar a sua viabilidade, criando uma nova fon- te de endividamento e de diferenciação entre os projetos. Outro problema identificado foi a precariedade dos serviços de assistência téc- nica oferecidos aos beneficiários. Além de desinformados sobre as condições ge- rais e o modo de funcionamento do Cédula, os técnicos restringiram a sua atua- ção a momentos pontuais, sem a necessária continuidade exigida a um trabalho dessa natureza. O problema foi assim resumido:

A desinformação sobre o Programa não se restringe aos associados. (...) Exceto os bancos – com regras próprias e relativamente inflexíveis diante das especificidades e necessidades dos produtores rurais mais pobres –, nos demais órgãos governamentais (...) é grande o desconhecimento das normas legais e dos possíveis desdobramentos. Face a algum impasse, os técnicos têm dificuldade para decidir qual o melhor enca- minhamento. Normalmente o conhecimento mais aprofundado fica sob a responsa- bilidade de uma só pessoa. O restante apenas “cumpre as tarefas”. Além do mais, são poucos os que conseguem perceber quem são os associados e qual o perfil das associa- ções. O contato entre técnicos e associados é restrito ao presidente e quando muito,

187 à diretoria (...). Há um acompanhamento mais direto e intenso no momento da cria- ção das associações e da adesão ao Programa. A partir daí a presença dos técnicos é irregular e se restringe a questões pontuais (Buainain et al., 1999, p. 109).

A pesquisa coordenada por Victor e Sauer também detectou a debilidade, o equívoco e, em diversas situações, a completa inexistência de assistência técnica nos projetos do Cédula:

De uma maneira geral, na avaliação das pessoas entrevistadas, a assistência técnica (...) é ruim, precária e, via de regra, impositiva em relação ao tipo e a forma de orga- nização da produção. A precariedade dos serviços se traduz pela baixa freqüência e pela falta de regularidade dos trabalhos dos técnicos nos projetos (...). Em vários pro- jetos, não há nenhum tipo de assistência técnica (como, por exemplo, no estado de Pernambuco) e os técnicos dos órgãos responsáveis estiveram presentes apenas no processo inicial de implantação, deixando as famílias sem qualquer tipo de acompa- nhamento (Victor & Sauer, 2002, pp. 49-50).

Além de detectarem a má qualidade e a baixa freqüência do serviço prestado, Victor e Sauer constataram a ocorrência de práticas autoritárias por parte dos téc- nicos responsáveis pela implantação do Cédula, gerando uma série de problemas e provocando a resistência das famílias. Verificaram, em especial, a imposição de áreas para produção comunitária com base na monocultura, colocando em segundo plano os lotes familiares, com o objetivo de produzir excedentes comercializáveis que viabilizassem o pagamento do empréstimo. Tal prática não só impunha um elemento estranho à cultura do trabalho familiar e camponês, como também re- produzia a lógica da monocultura. Essa prática, segundo os pesquisadores, recriou a remuneração em diárias den- tro dos próprios projetos, na tentativa de garantir o fluxo de mão-de-obra necessá- rio para tocar a produção comunitária. Ou seja, em vez de contribuir para superar essa forma de exploração do trabalho, a implementação do Cédula estava exigindo a sua recriação dentro dos projetos financiados, transformando os beneficiários em “empregados” de associações criadas, em tese, para representar os seus interesses. Além dos problemas anteriores, a assistência técnica prevista no Cédula da Terra padecia de dois problemas estruturais (Victor & Sauer, 2002). Em primeiro lu- gar, esse tipo de serviço era privatizado e pago com recursos do SIC, financiado pelo BIRD. Na prática, essa situação subordinava o gasto com a assistência técni- ca à administração daquela verba, suscetível a cortes ou remanejamentos de últi-

188 ma hora. Em segundo lugar, a prestação desse serviço tinha previsão de um ano, renovável por mais um dependendo da disponibilidade de recursos. É um tempo insuficiente para capacitar as famílias, inclusive devido, na grande maioria dos casos, à baixa periodicidade e à péssima qualidade com que o serviço era realizado. Considerando a “excelência” da assistência técnica prestada, não surpreende que Victor e Sauer (2002, pp. 40-4) tenham encontrado um quadro de grande dificuldade para a produção agrícola. A infra-estrutura social – fornecimento de energia elétrica e água, estradas e vias de acesso, escolas e postos de saúde – foi avaliada como bastante precária na maioria dos projetos visitados, embora muitos deles já tivessem, à época da pesquisa de campo, mais de três anos de existência. Ainda que muitos projetos estivessem no período de carência, constatou-se eleva- do grau de desistência e saída de famílias: em média, superior a 50% nos projetos pesquisados. Também a necessidade de assalariamento precário (venda ou aluguel de dias de serviço) não havia sido superada, na medida em que a maioria dos en- trevistados relatou que, em virtude das dificuldades de produção e comercialização, a venda da mão-de-obra permanecia um imperativo. A produção agrícola foi considerada de subsistência na maioria dos projetos. Apenas dois (entre os dezesseis projetos pesquisados) indicaram a existência de pro- dução de excedentes comercializáveis. Ao contrário do que advoga o discurso em favor do Cédula, tal situação não possibilitava a uma inserção mercantil efetiva:

As famílias entrevistadas revelaram várias estratégias de sobrevivência como, por exem- plo, a venda de dias de serviço e a obtenção de empregos fora dos projetos (trabalhos domésticos, comércio, etc.), cultivo de outras áreas (parceria, arrendamento, etc.). A criação de animais e o comércio de alguma produção também se traduzem em op- ções para o sustento familiar. A estratégia mais utilizada para obter renda, no entan- to, é a venda de dias (trabalho assalariado temporário), executando tarefas diversas nas fazendas da região (Victor & Sauer, 2002, p. 54).

As terras compradas por meio do Cédula eram de baixa qualidade e estavam concentradas em regiões menos dinâmicas e mais empobrecidas, o que repre- sentou mais um fator de dificuldade ao desenvolvimento produtivo dos proje- tos. Na opinião dos autores, isso faria parte da própria lógica do Cédula, uma vez que “o limite de recursos para a aquisição das áreas, em geral, leva a implan- tação dos projetos em regiões menos dinâmicas, comprando terras menos valo- rizadas; portanto, fracas e com sérias limitações de produção” (Victor & Sauer, 2002, pp. 55-6).

189 Isso remete a um problema insolúvel de projetos como o Cédula: se com- pram imóveis baratos, cai a qualidade da terra e das benfeitorias e a quantia necessária para a construção de infra-estrutura e investimentos produtivos tem de aumentar; se adquirem imóveis mais caros, o empréstimo se eleva acima da capacidade de endividamento das famílias, gerando um quadro de inadimplência generalizada. A mesma pesquisa também compilou diversos indícios e denúncias de desvio de finalidade, favorecimento e corrupção em inúmeros projetos do Cédula, como a elaboração de laudos técnicos fraudulentos, o superfaturamento de imóveis ru- rais, a compra de várias áreas de uma mesma empresa ou proprietário, a aquisição de imóveis localizados em regiões de Mata Atlântica, a imposição de procedimen- tos por políticos locais, o conluio entre prefeituras e proprietários de terras vendi- das e a compra de áreas passíveis de desapropriação. A leitura desse material, por si só, é suficiente para situar em outro patamar o debate sobre a implantação do Cédula da Terra. Mais uma vez, o “empírico” des- velou a falácia do discurso do BIRD sobre a “transparência” e a “responsabilização social” supostamente inerentes ao seu modelo de mercado.

2.3. Evasão, investimentos e projeções de renda Após a conclusão da pesquisa promovida por entidades que compõem o Fórum de Reforma Agrária, o BIRD financiou mais dois relatórios de avaliação do Cé- dula, com o objetivo de traçar o perfil socioeconômico dos beneficiários (Buainain et al., 2002) e avaliar o impacto socioeconômico do projeto (Buainain et al., 2003).9 Mais uma vez, há indicações que desautorizam o discurso sobre o suposto êxito do projeto-piloto. No biênio 2000-2001, por exemplo, houve alta evasão em todos os estados – processo que já havia sido notado por Victor e Sauer (2002) – e substituição de “beneficiários” em 2002. De acordo com Buainain et al. (2003, pp. 17-9), três razões explicariam essa descontinuidade na trajetória do projeto. A primeira seria o “desalento das famílias” provocado pela paralisação parcial do Cédula, final de 1999 e parte de 2000, devido à falta de aporte de recursos pelo governo brasileiro, como também ao relativo abandono de muitos projetos pelas instituições estaduais responsáveis pela sua implantação e acompanhamento – curiosamente, após o processo eleitoral. A segunda seria a sucessão de erros de seleção praticados pelos órgãos governamentais em 1998, que haviam priorizado famílias mais pobres atin- gidas pela seca. A terceira razão remeteria às discordâncias entre “beneficiários”, ou entre eles e as associações. Segundo a pesquisa, tais divergências seriam resul-

190 tado do “caráter artificial de muitas das associações criadas em 1998 para poder participar do programa” (Buainain et al., 2003, p. 18). Os dados sobre a saída de famílias podem ser conferidos na tabela abaixo. Embora afirme que o grau de evasão foi elevado, não há informações sobre quantas famílias saíram e foram substituídas, o que permitiria avaliar com maior precisão a intensidade da evasão.

Tabela 3. Saída e substituição de famílias de projetos do Cédula da Terra – biênio 2000-2001 Nº de famílias Projetos Estado Início do projeto Em 2003 Saíram e não % Nº total Visitados Apresentaram % foram substituídas saída de famílias Maranhão 622 552 70 11,2 50 19 6 31,5 Ceará 607 501 106 17,4 92 33 27 81,8 Pernambuco 703 675 28 3,9 20 19 18 94,7 Bahia 1241 1161 80 6,4 41 25 8 32,0 Minas Gerais 508 472 36 7,0 17 12 6 50,0 Elaboração: Buainain et al., 2003, p. 19.

Outro dado relevante é que mais da metade dos projetos foi criada a partir de janeiro de 2002 (Buainain et al., 2003, p. 13), indicando uma aceleração na im- plantação do Cédula semelhante àquela observada no segundo semestre de 1998. Houve, portanto, dois momentos em que os órgãos técnicos imprimiram veloci- dade ao processo: ambos períodos de disputa eleitoral para a presidência da repú- blica, governos estaduais e legislativos federal e estaduais. Até 1999, o maior rit- mo de expansão do Cédula ocorreu no Ceará e, a partir de então, em Pernambuco e no Maranhão. Nessa segunda fase de maior aceleração, já estava em curso a expansão dos projetos para áreas novas, iniciada a partir de 1999, elevando o grau de capilarização do Cédula. Assim, tornou-se “muito pequena a proporção de microrregiões em cada estado que não tem assentamentos do Cédula da Terra” (Buainain et al., 2002, p. 87). O fato de ter havido um aumento do grau de cobertura e capilarização dos projetos não invalida o argumento de que o Cédula se concentrou nas áreas mais pobres e sem infra-estrutura dos estados. Ao que tudo indica, justamente por te- rem se concentrado em áreas pobres e inadequadas em um primeiro momento – o que ganha densidade com a informação de que houve um intenso processo de evasão das famílias –, os projetos foram posteriormente expandidos para áreas novas.10 Além disso, mesmo que alguns projetos tenham sido estabelecidos em regiões mais dinâmicas, não significa que as áreas compradas sejam de boa quali- dade em termos de solo, benfeitorias, infra-estrutura, etc.

191 Os órgãos responsáveis pela implantação do Cédula da Terra fizeram um ajus- te no programa após 1999, reduzindo de trinta para vinte e dois o número “ideal” de famílias por projeto, com o objetivo de expandi-lo para o maior número pos- sível de microrregiões (Buainain et al., 2002, p. 94). Isso reduziu o volume de recursos disponíveis para investimentos complementares, contrariando a filosofia do projeto e tornando as famílias fortemente dependentes de recursos públicos extraordinários. Em relação à renda anual auferida, Buainain et al. (2003, pp. 63-8) avaliaram uma amostra de 313 beneficiários entre agosto de 2002 e julho de 2003, chegan- do a uma renda bruta média de aproximadamente R$ 5.777,05, o que dava uma renda mensal por família de R$ 483,64, equivalente a 2,1 salários-mínimos de R$ 240,00 (valor vigente de maio de 2003 a maio de 2004). Quando essa amostra foi distribuída por estratos, percebeu-se que: a) 25% das famílias continuavam auferindo renda bruta mensal equivalente a um salário-mínimo; b) outros 25% das famílias obtinham renda bruta mensal de 1 a 1,4 salários; c) o restante das famílias teve renda superior a 1,4 salários mensais, variando entre a larga faixa de R$ 4.253,00 a R$ 19.894,00 por ano. Tudo indicava que um pequeno grupo de beneficiários (cerca de 10%) obteve renda bem superior aos demais, de modo que a média geral de renda por família foi puxada para cima. Já a renda monetária média atual das famílias foi calculada em R$ 3.947,00 por ano, ou 1,37 salários- mínimos mensais (pouco acima da linha de pobreza, fixada em R$ 70,00 por pessoa ao mês). Quanto à composição da renda, o relatório (Buainain et al., 2003, p. 177) indicou que o peso da renda não-monetária permanecia elevado, correspondendo a aproximadamente 32% da renda bruta total e equivalente a 46% da renda mo- netária. Por outro lado, assinalou que o peso da atividade agropecuária na com- posição da renda havia aumentado significativamente, diminuindo a importân- cia relativa do assalariamento temporário, embora persistisse a dependência em relação a renda proveniente de aposentadorias e pensões. Se os resultados indica- vam uma elevação da renda em relação à situação anterior à entrada no programa, o quadro apresentado estava longe dos prognósticos de excelência tecidos sobre o Cédula:

Os assentamentos visitados, implementados entre 1997 e 1999, têm hoje entre 4 e 6 anos. As famílias (...) conseguem hoje em geral retirar da produção agropecuária uma renda superior à que tinham antes do projeto, mas que nem sempre é suficiente para sua subsistência. Muitos assentados complementam sua renda agropecuária com a

192 venda de sua força de trabalho e com diversas transferências governamentais (...). Alguns assentamentos visitados encontravam-se em situação muito difícil, com pou- cas famílias estabelecidas e com níveis de renda agropecuária baixíssimos (Buainain et al., 2003, p. 172).

A precariedade do serviço de assistência técnica e do acesso ao crédito foi identificada como principal fator de restrição ao desenvolvimento produtivo dos projetos (ibid, p. 151). Em relação à prestação de assistência técnica durante o ano 2002-2003, 65,8% dos entrevistados declararam nunca, ou apenas espora- dicamente, ter recebido esse tipo de serviço. Somente 22% declararam que o serviço havia sido prestado mensalmente (ibid, p. 135). Não consta, porém, qualquer indicação sobre a avaliação dos entrevistados sobre a qualidade do ser- viço prestado. Constatou-se novamente que os recursos do SIC haviam sido aplicados basi- camente em infra-estrutura (construção de casas, rede elétrica e abastecimento de água), esgotando a quantia a fundo perdido sem que fosse coberto o pacote míni- mo de investimentos produtivos (ibid, pp. 100-1 e 150). Tais recursos não foram apenas insuficientes, mas também mal aplicados, em grande medida por causa da “falta de controle social existente nas associações sobre a atuação de sua diretoria e a falta de compromisso das unidades gestoras (...). Nos assentamentos que estão em situação mais grave (alguns não têm nem casas construídas), esse fator está sempre presente e chega a inviabilizar o desenvolvimento do assentamento” (ibid, p. 174). Como os recursos do SIC não se traduziram em investimentos produtivos, o acesso ao PRONAF acabou assumindo uma importância vital para os projetos do Cédula. Porém, o acesso a essa linha de crédito se mostrou extremamente difícil e, em alguns casos, a demora na liberação dos recursos tendia a prolongar uma situação de precariedade que, provavelmente, segundo o relatório, inviabilizaria o paga- mento das dívidas e estimularia a evasão (ibid, pp. 174-5). Quanto ao perfil da produção agropecuária, identificou-se uma melhora em relação à situação anterior. Todavia, isto não quer dizer muito, pois, de acordo com a mesma fonte, “em todos os estados a maioria dos imóveis adquiridos en- contravam-se abandonados ou eram pouco utilizados pelos proprietários anterio- res” (ibid, p. 105). De modo geral, o padrão produtivo implementado permanecia concentrado na produção vegetal (basicamente de lavouras temporárias), com um baixíssimo grau de incorporação tecnológica, e realizado de modo individual, contrariando

193 as expectativas iniciais de que a pauta de produção agrícola mudaria, a dimensão associativa ganharia impulso e o nível tecnológico sofreria um salto de qualidade (ibid, p. 104). Segundo o relatório, o desenvolvimento produtivo da grande maioria dos projetos sofria fortes restrições:

Os dados da produção, se por um lado são consistentes e indicam uma variedade de produtos e diferentes estratégias produtivas, por outro apontam para as sérias dificul- dades enfrentadas pela grande maioria dos beneficiários, que mais uma vez sofrem de uma combinação difícil de limitações de recursos – de acesso a serviços públicos e ao capital e, principalmente, pela falta de apoio técnico para a implantação de projetos (ibid, p. 138).

As dificuldades encontradas na aplicação dos recursos destinados à infra-es- trutura produtiva, a falta de acesso à assistência técnica e outros problemas mos- tram que, em 2002 – ano em que o Cédula foi concluído –, parte significativa dos “beneficiários” enfrentava dificuldades sérias para gerar renda suficiente nas terras adquiridas, seja para efetivamente melhorar a sua condição de vida, seja para amortizar as prestações da dívida contraída.

2.4. Capacidade e possibilidade de pagamento da dívida Realizada ainda no período de carência de muitos projetos, a pesquisa coorde- nada por Victor e Sauer não conseguiu obter informações oficiais sobre o paga- mento da dívida imobiliária. Porém, pôde constatar que a esmagadora maioria antecipava uma situação de inadimplência:

Apesar das particularidades encontradas em cada projeto pesquisado, perguntadas sobre as condições financeiras, as pessoas entrevistadas foram praticamente unâni- mes em afirmar que não há condições para efetuar o pagamento da primeira parcela do financiamento (...). Mais significativo, no entanto, é o fato de que as pessoas que dizem ter condições de pagar só poderão fazê-lo mediante um processo de descapitalização. Literalmente, as pessoas terão que se desfazer de seus pertences (al- guns adquiridos antes da entrada no projeto) para pagar a primeira prestação (2002, p. 63).

Durante o trabalho de campo, o governo baiano abriu um processo de “repactuação” de contratos vencidos ou próximos do vencimento, de modo que o pagamento das prestações nos dois primeiros anos pudesse ser efetuado de manei-

194 ra pouco mais suave. É seguro supor que a ação do governo estadual tenha sido motivada pela inadimplência iminente dos mutuários. Com base no trabalho de campo realizado em 2001, a pesquisa concluiu que a grande maioria dos mutuários estava enfrentando – ou enfrentaria em breve, quando terminasse o prazo de carência – dificuldades sérias para quitar o financia- mento:

De uma maneira geral, os projetos não possuem viabilidade econômica em conseqüên- cia de uma série de fatores como, por exemplo, a compra de terras fracas, regiões áridas (falta de água ou necessidade de altos investimentos para obter água), falta de assistência técnica, falta de recursos para investimento, distantes de mercados consu- midores, etc. Estes fatores inviabilizam completamente a sustentabilidade dos proje- tos, tornando os empréstimos impagáveis (ibid, p. 67).

Embora seja o relatório final da consultoria externa financiada pelo BIRD e muitos projetos já tivessem mais de quatro anos de existência quando a pesquisa de campo foi realizada (agosto de 2002 a julho de 2003), o trabalho de Buainain et al., (2003) também não traz informações sobre o pagamento da dívida contraí- da com a compra da terra. Há apenas projeções sobre a evolução da renda agropecuária familiar anual nos seis principais sistemas agrícolas desenvolvidos nos projetos. Assim, nas lavouras de subsistência e cultivo de babaçu do centro maranhense, a pesquisa estimou que a renda gerada estivesse em R$ 4.300,00 por família, quan- tia pouco superior à linha de pobreza, o que, na visão dos pesquisadores, seria suficien- te para permitir o pagamento do empréstimo. Na modelização feita, a renda familiar anual gerada por esse sistema de produção poderia chegar a R$ 7.400,00. Porém, essa evolução dependia da superação das restrições mais gerais de crédito e assistên- cia técnica, como também das precárias condições da infra-estrutura viária que dão acesso aos centros consumidores. Tais restrições obstaculizavam o acesso aos merca- dos regionais e reforçavam o caráter de subsistência dos projetos (ibid, p. 157). No Norte do Ceará, os sistemas produtivos principais estavam baseados na produção de caju e na criação de bovinos e ovinos. Constatou-se que as áreas plan- tadas com caju eram velhas, de sorte que a renda gerada por família era muito baixa, estimada em três mil reais, abaixo da linha de pobreza. Sem capacidade de investimento, o aumento da renda dependia, necessariamente, de investimentos na criação de animais e na melhoria do cajueiral, os quais só poderiam ser realiza- dos pelo acesso ao Pronaf-A (ibid, p. 159). Segundo este relatório, se a situação

195 não se modificasse rapidamente, o pagamento da dívida seria impraticável. Mes- mo na hipótese de elevação da renda por meio do acesso ao crédito suplementar, o pagamento das prestações exigiria forte descapitalização. No sistema de cultivo baseado no binômio inhame-batata do Agreste pernambucano, a renda familiar foi estimada em R$ 8.300,00 ao ano, devido a uma situação excepcional de acesso a grandes mercados consumidores (Recife, em especial) e boas condições climáticas. De acordo com as projeções, a renda pode- ria chegar a R$ 14.700,00, mesmo com o pagamento da dívida. O problema des- se sistema agrícola, segundo o relatório, era a forte dependência da cultura do inhame, que respondia praticamente pela totalidade da renda obtida (ibid, p. 163). À época da pesquisa, a renda obtida pelo sistema centrado no cultivo da laran- ja e do coco no litoral Norte da Bahia foi estimada em três mil reais por família ao ano, abaixo da linha de pobreza. Porém, as projeções indicavam que a renda anual por família poderia chegar a onze mil reais, graças à proximidade com o pólo de fruticultura de Sergipe. No entanto, o problema da dependência frente a uma só cultura (no caso, a laranja) também se repetia nessa região (ibid, pp. 164-5), com- prometendo a sustentabilidade econômica das famílias. Os sistemas baseados no café e no cacau na região Sul da Bahia também foram modelizados. No caso dos projetos que estavam produzindo café e cacau, a renda familiar foi calculada em quatro mil reais por ano, pouco acima da linha de po- breza, ao passo que os projetos que ainda não produziam cacau teriam renda de dois mil e quinhentos reais por ano. A renda projetada em ambos os casos ficou acima do nível de pobreza, o que permitiria alguma capacidade de investimento, mas a possibilidade ou não de pagamento da dívida não foi discutida. Já nas áreas que não produziam cacau, a situação era bastante precária, com baixa produtivi- dade e renda insuficiente (ibid, p. 169). Por fim, os sistemas de subsistência e criação animal do Semi-Árido encontra- vam-se em situação crítica, a julgar pela leitura do relatório. Os projetos dependiam necessariamente do Pronaf para fazer investimentos, de modo que a dívida com a compra da terra se somaria à dívida com o crédito. De acordo com as estimativas, “nos anos regulares, fica difícil pagar as dívidas [Cédula e Pronaf]; nos anos ruins, a renda agropecuária é claramente insuficiente” (ibid, p. 170). Apesar deste interessante exercício de projeção sobre possíveis rendas, não há qualquer dado real sobre o pagamento das prestações do financiamento. Ao que parece, a informação mais clara a esse respeito divulgada até hoje – quase quatro anos após o fim do Cédula – consta do relatório final do BIRD, conforme a tabe- la abaixo.

196 Tabela 4. Pagamento das primeiras prestações do Cédula da Terra no final de 2002 Estado Nº de associações Nº de associações que efetuaram pagamento % das associações que efetuaram pagamento Maranhão 51 42 82,3 Ceará 131 119 90,8 Pernambuco 19 10 52,6 Bahia 42 32 76,1 Minas Gerais Nada consta Nada consta Nada consta TOTAL 243 203 83,5 Fonte: Banco Mundial (2003a, p. 16).

Infelizmente, além de pouco transparentes, os dados apresentados pelo BIRD carecem da devida análise qualitativa e são incompletos. Primeiro, a julgar pela data dos primeiros pagamentos, os contratos mais antigos do Cédula tiveram pra- zo de carência prolongado, pois, do contrário, as prestações teriam vencido no final de 2000. Segundo, ao final de 2003, constavam 609 associações, mais do que o dobro das associações consideradas em dívida pelo BIRD. Se não houve clareza dos gestores públicos sobre o pagamento das prestações do Cédula, menos ainda houve em relação ao Banco da Terra. Todavia, um indicativo da “existência de um quadro de irregularidades e desestruturação de muitos projetos” (MDA, 2004, p. 1) foi a elaboração de um plano de “recupera- ção e regularização dos projetos financiados pelo Fundo de Terra”, regulamentado em 2006 (MDA, 2004). Reconhecendo uma série de problemas e fragilidades dos “programas de crédito fundiário” devido às “condições de financiamento e itens financiados” (ibid, p. 1), o objetivo deste documento é retirar os projetos financia- dos pelo Banco da Terra e Cédula “da situação de passivo” (ibid, p. 1). A resolução correspondente a este plano não trata diretamente, mas pressu- põe o “reescalonamento de dívida” sob responsabilidade das associações e coope- rativas (MDA, 2006, art. 25), abrindo a possibilidade de individualização nos casos em que essas entidades “não conseguirem arcar com a dívida decorrente do finan- ciamento” (ibid, art. 33). Não resta dúvida de que a publicação desta resolução foi motivada pela existência de problemas sérios de sustentabilidade dos projetos.

3. A “reforma agrária de mercado” no governo Lula (2003-2006)

Inevitavelmente, o governo Lula precisaria se manifestar sobre a “reforma agrária de mercado” deixada como legado pelo governo FHC. Das quatro experiências, as duas primeiras (projeto Reforma Agrária Solidária e Cédula da Terra) haviam sido encerradas em 1998 e em 2002, respectivamente. Porém, as outras duas (Banco da Terra e Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural) demandavam uma

197 posição concreta do governo, por duas razões fundamentais: em primeiro lugar, porque o Banco da Terra não era apenas um programa, mas um fundo de financia- mento à compra de terras criado pelo Congresso Nacional, razão pela qual cons- titui um instrumento de caráter permanente, estatal. Em segundo lugar, o Crédi- to Fundiário de Combate à Pobreza Rural tinha sido criado a partir de um acordo de empréstimo com o BIRD, mal havia começado a ser implementado e fazia parte da “cota” da CONTAG no governo Lula. Diante disto, existiam três opções para o novo governo: a) limitar-se a lidar com o “passivo”, sem aportar novos recursos para a expansão do modelo de mer- cado; b) continuar a implementação do modelo, de forma limitada; c) radicalizar a expansão do modelo, tal como seu antecessor, em detrimento da política de re- forma agrária. A solução foi um híbrido das três opções: passou a lidar com o passivo existente, mas ampliou a implementação do modelo em um patamar superior àquele realiza- do pelo governo FHC. Ao mesmo tempo, comprometeu-se publicamente que a prioridade seria a política de reforma agrária, por meio das desapropriações. Essa estranha combinação aparece nas metas do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA): financiar a compra de terra por parte de 130 mil famílias em quatro anos, enquanto a reforma agrária deveria abarcar 400 mil famílias (MDA, 2003). Em ter- mos absolutos, os programas de financiamento à compra de terras representam bem mais do que o governo anterior conseguiu pôr em prática. Em termos relativos, re- presentam mais de 30% da meta da “reforma agrária”, o que compromete o discur- so oficial sobre o seu caráter “complementar”. Em outras palavras, sem criminalizar a luta por terra e contando com o apoio de todos os movimentos sociais agrários e entidades sindicais de representação de trabalhadores rurais, o governo Lula conse- guiu operar uma espécie de “acomodação” entre a reforma agrária constitucional e os programas de financiamento para a compra de terras propostos pelo BIRD. Concretamente, o novo governo agiu da seguinte maneira: a) manteve o pro- grama Banco da Terra, com um novo nome (Consolidação da Agricultura Familiar) e com algumas reformulações; b) implementou, de fato, o projeto Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural; c) criou uma linha de financiamento para jovens agricultores comprarem terra; d) reformulou o Fundo de Terras, a fim de fortalecê-lo como instrumento de longo prazo para financiamento de compra de terras; e) criou o Programa Nacional de Crédito Fundiário, responsável pela ges- tão do Fundo de Terras e de todos os programas e projetos nessa área. A primeira destas ações diz respeito à forma pela qual o governo Lula lidou com o Banco da Terra. No início de 2003, o Ministério do Desenvolvimento

198 Agrário (MDA) realizou uma auditoria interna nesse programa, como uma res- posta aos inúmeros indícios de irregularidades e aos questionamentos dos movi- mentos sociais. Embora os resultados da auditoria não tenham sido abertos à con- sulta pública, o MDA anunciou a sua suspensão, alegando a existência de problemas sérios em sua gestão.11 Divulgou-se que o programa havia financiado 34.759 fa- mílias, em 18.294 operações, totalizando 2.537.621 hectares, ao custo de R$ 744.216.746 (MDA, 2004, p. 1). Corroborando as denúncias feitas pelo Fórum de Reforma Agrária, o MDA assinalou que os mecanismos de gestão do Banco da Terra, sob o governo FHC, eram “frágeis” e haviam permitido “o surgimento de uma série de irregularidades, entre as quais, por exemplo, o financiamento da compra de áreas de proteção ambiental ou de terras com títulos de propriedade duvidosos, que não podem ser exploradas pelos beneficiários” (MDA, 2005, p. 2). Naquele momento, segundo o MDA, havia “mais de 82 sindicâncias ou processos administrativos abertos, além de várias irregularidades em exame nas instâncias de controle interno e externo do governo (CGU/SFC e TCU)” (ibid). Sem surpresa, mas sem maiores detalhes, afirmou que o programa tinha levado vários empreendimentos financiados ao “sobre-endividamento” (ibid). Apesar das irregularidades, o MDA não abriu os dados relativos ao Banco da Terra à consulta pública, tão criticado durante o governo FHC pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e por todas as entidades que compõem o Fórum. A falta de transparência do MDA em relação à gestão e aos resultados do programa encon- tra uma explicação: o fato de o governo Lula ter mantido o programa, apenas mudando o seu nome para “Consolidação da Agricultura Familiar” (MDA, 2005a). Foram feitas algumas reformulações nos itens financiáveis e nas condições de fi- nanciamento oferecidas, aumentando um pouco o subsídio embutido no crédito (BACEN, 2003). A lógica, porém, é basicamente a mesma: financiar a compra de “ativos fundiários” por trabalhadores rurais sem-terra e pequenos agricultores, preferencialmente nos estados que não foram incluídos no empréstimo do BIRD para o Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural (MDA, 2005a, p. 4). A diferença básica – nada desprezível – em relação ao governo FHC é que o Banco da Terra deixou de figurar como o instrumento preferencial de política agrária. A fim de implantar o programa “Consolidação da Agricultura Familiar” no maior número possível de estados, o MDA passou a firmar termos de cooperação com governos estaduais a partir do final de 2003 (MDA, 2005a, p. 8). Por enquanto, sua fonte de financiamento é exclusivamente nacional, ou seja, recursos orçamentários do Fundo de Terras, sem o aporte de recursos do BIRD (MDA, 2004a).

199 A segunda ação do governo Lula foi em relação ao Crédito Fundiário de Com- bate à Pobreza Rural, apoiado pela CONTAG. Criado a partir de um emprésti- mo do BIRD autorizado em 2001, este novo projeto deu seqüência ao Cédula da Terra, mas com a participação dos sindicatos e a proibição de compra de áre- as passíveis de desapropriação (embora “exceções” sejam admitidas). Começou a operar de maneira tímida em 2002 e, no ano seguinte, ficou meio à deriva em função da mudança de governo e das disputas políticas pela composição do MDA. De fato, iniciou apenas a partir de 2004, razão pela qual sua conclusão foi adiada para 2006 (MDA, 2005, p. 4). Com essa prorrogação, sua implanta- ção e desempenho inicial devem ser creditados inteiramente ao governo Lula. A diretoria do BIRD já aprovou mais duas outras fases, as quais, se executadas, prolongariam o projeto até 2012, financiando a compra de terras por cerca de 190 mil famílias (MDA, 2003, p. 15). Renomeado de “Combate à Pobreza Rural”, abrange quatorze estados, mas pode ser estendido para outros, caso te- nha continuidade. A terceira ação do governo Lula foi a criação de uma linha de financiamento para compra de terra dirigida a jovens agricultores. Chamada “Nossa Primeira Terra”, tem como público-alvo a população rural pobre entre 18 e 24 anos dos três estados da região Sul. Conta com o apoio das federações sindicais de traba- lhadores rurais ligados à CONTAG e à CUT. Em quarto lugar houve a reestruturação do Fundo de Terras/Banco da Ter- ra. Sob uma nova regulamentação,12 foi oficializado como a fonte financiadora de todos os programas de “crédito fundiário” em curso, viabilizando a contrapartida nacional aos empréstimos do BIRD. Na lógica do atual governo, o Fundo deveria ser reorganizado para ter sustentabilidade financeira suficiente para operar durante um longo período: as projeções iniciais estimavam trinta anos de ação ininterrupta. Nesse esquema, até 2010 o Fundo receberia anual- mente cerca de R$ 330 milhões do Tesouro Nacional e, a partir de 2012, já capitalizado pela aplicação no mercado financeiro e pelo pagamento das presta- ções dos mutuários, poderia devolver ao Tesouro Nacional parte dos recursos aportados (MDA, 2003). Desse modo, poderia funcionar como uma grande imobiliária pública subsidiada. A existência desse instrumento mostra que os programas governamentais de financiamento à compra de terras rurais por agen- tes privados passaram a assumir a lógica e o status de política de Estado, com um caráter permanente. Em quinto lugar, o governo Lula criou o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF). Na prática, esse programa apenas unifica a gestão das três

200 linhas de financiamento citadas e do Fundo de Terras por um único órgão: a Secretaria de Reordenamento Agrário (SRA) do MDA, hegemonizada pela CONTAG. Infelizmente, o MDA não tem disponibilizado informações claras e atualizadas sobre a execução do PNCF. Entretanto, há sinais de que o mesmo tem ficado muito abaixo das expectativas do governo federal e do Banco Mundial. No exercício de 2003-2004, previu-se o financiamento de 37.500 famílias pelas três linhas do PNCF, distribuídas da seguinte maneira: 12.800 famílias pela linha “Combate à Pobreza Rural”, 8 mil jovens pela “Nossa Primeira Terra” e 16.700 famílias pela “Consolidação da Agricultura Familiar” (MDA, 2003). Segundo dados oficiais, nesse período foram financiadas apenas 15.707 famí- lias, ou seja, menos de 42% da meta prevista. Desse total, 10.880 famílias foram financiadas pelo “Combate à Pobreza Rural” e 4.905 pela linha “Consolidação da Agricultura Familiar” (MDA, 2005). É importante observar que o índice mais alto de execução – algo em torno de 85% da meta do projeto, ou quase 70% do total dos financiamentos concedidos no período – ocorreu justamente na linha que recebe recursos do BIRD. Este fato – que se repete desde o governo FHC – revela que o simples aporte de recursos externos estimula a execução desse tipo de programa, em detrimento de outras modalidades de ação fundiária. Por outro lado, coloca em xeque a ver- são oficial de que os recursos aportados pelo BIRD destinam-se, única e exclusi- vamente, ao financiamento de infra-estrutura nos projetos implantados, pois o primeiro item pago é a terra. Também não procede o discurso que o PNCF não concorre com os recursos públicos destinados aos programas agrários constitucionais. É verdade que a sua fonte financeira nacional (o Fundo de Terras) constitui uma fonte distinta dos recursos destinados ao INCRA, mas também são recursos públicos advindos do Orçamento Geral da União. Em segundo lugar, as famílias financiadas têm acesso a outros programas, concorrendo com os parcos recursos destinados ao apoio aos beneficiários da “reforma agrária” (MDA, 2004, p. 9). Por fim, vale registrar que, no último ano do governo Lula, foi criado o proje- to “Terra Negra”, que financia a compra de terra para negros não quilombolas, de acordo com uma das três linhas de financiamento que compõem o PNCF. Essa “novidade” mostra o ímpeto em estender para diferentes grupos sociais esquemas de compra e venda entre agentes privados financiados pelo Estado, em detrimen- to de políticas redistributivas de caráter estrutural.

201 Considerações finais

Em curso há quase dez anos, a experiência brasileira com os programas orien- tados pelo modelo de reforma agrária de mercado do BIRD é a mais importante no plano internacional. Em nenhum outro país se gastou tanto ou se contratou tal volume de empréstimos para financiar a compra de terras como no Brasil, cons- tituindo, de fato, um caso exemplar de implementação desse modelo. Iniciado, não por acaso, em um contexto de intensa polarização política, o projeto-piloto Cédula da Terra e, sobretudo, o Banco da Terra, angariaram a ade- são imediata de entidades de representação do patronato rural, a exemplo da Confederação Nacional da Agricultura (CNA). Apenas nesse ponto o modelo de reforma agrária de mercado encontrou correspondência com o universo empírico, pois desde cedo o Cédula recebeu o apoio ostensivo do “setor privado”, por tra- tar-se de um instrumento que não só remunera o proprietário à vista, a preço de mercado, como compete com a mobilização popular por reforma agrária. Embora o Cédula tenha sido encerrado em dezembro de 2002, até hoje não houve a devida transparência quanto a informações básicas do projeto. As lacunas em termos de conhecimento sobre o mesmo são um reflexo da inexistência de ins- tâncias de controle social, da falta de pesquisas empíricas independentes atualizadas e, principalmente, do veto do BIRD e do governo federal (Cardoso e Lula) em dar a devida transparência a informações que, por natureza, são públicas. Em que pese toda a retórica sobre o suposto “sucesso” da experiência brasilei- ra, o fato é que até hoje pouco se sabe sobre os impactos reais desses projetos e programas. O caso do Banco da Terra, em especial, chega a ser escandaloso. Não há informações claras e atualizadas sobre o número de famílias adimplentes e inadimplentes, nem tampouco um levantamento mínimo sobre as condições de vida dos “beneficiários”. Sem dúvida é curiosa a experiência brasileira, em que tais programas são alardeados como altamente exitosos, mas as devidas informações são negadas ou divulgadas com grande defasagem. Apesar do discurso atual de maior transparência e participação, esta situação evidencia a existência de um monopólio de informações por parte do BIRD e do MDA. É inegável que as pesquisas empíricas mais abrangentes até o momento foram realizadas por consultorias encomendas e pagas pelo BIRD. Conseqüente- mente, o BIRD concentra informações e a própria “produção de conhecimento” sobre o seu modelo de “reforma agrária”. A rigor, isto não ocorre apenas no Brasil. O fato, porém, é que a assimetria de recursos faz com que, para os movimen- tos populares, seja impossível realizar avaliações empíricas com o mesmo grau de

202 cobertura e acompanhamento alcançados por pesquisas financiadas pelo BIRD. O caso do Cédula da Terra foi exemplar nesse sentido, pois enquanto a pesquisa das entidades do Fórum Nacional pela Reforma Agrária foi feita com cerca de R$ 10 mil, o BIRD gastou, entre “avaliação” e “propaganda”, US$ 5,2 milhões. Esta situação só poderia ser revertida ou, pelo menos, minimizada, se as insti- tuições públicas de pesquisa – as únicas que têm condições de fazer um trabalho independente e construir uma visão de conjunto sobre essa experiência – partici- passem dessa discussão. Até o momento, as poucas pesquisas acadêmicas sobre o tema são de iniciativa exclusivamente individual, como dissertações de mestrado e teses de doutorado. Por outro lado, mesmo com todas as limitações, é inegável que já existe um acúmulo significativo de pesquisas empíricas sobre a implantação e o desenvolvi- mento de, pelo menos, uma dessas experiências: o Cédula da Terra. A leitura que aqui se fez sobre esses trabalhos pretendeu mostrar que é nula a validade conceitual do modelo de reforma agrária de mercado e de todo o discurso que procura legi- timar programas nele inspirados. Os pressupostos básicos do referido modelo não funcionaram na prática, assim não se concretizaram as expectativas de que este projeto pudesse servir como uma referência viável a ser replicável em maior escala no Brasil. Todavia, o apoio do governo Lula e de uma entidade nacional de repre- sentação de trabalhadores rurais (a CONTAG) tem ajudado o BIRD a legitimar na arena nacional e internacional o seu modelo de acesso à terra pela via da com- pra e venda.

Notas

1 O Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo surgiu em meados dos anos 1990 (substi- tuindo a Campanha Nacional pela Reforma Agrária) como um espaço de articulação e ação conjunta de mais de 40 entidades agrárias e sindicais, entre outras, reunindo organizações como o MST, CONTAG, FETRAF, CPT, MPA, MAB. 2 O Projeto São José é, na verdade, o Programa de Combate à Pobreza Rural (PCPR), sucedâneo do antigo Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (PAPP) e de vários projetos financiados pelo BIRD no Nordeste desde 1975. Concebidos como ação compensatória às políticas de ajuste estrutural, os PCPRs foram inseridos no programa Comunidade Solidária em 1995, com o objetivo de financiar projetos de infra-estrutura social e produtiva (Pereira, 2004). 3 O governo do Ceará criou, em 1996, um fundo estadual e aportou pouco mais de R$ 4 milhões, complementados por um empréstimo do BIRD de R$ 6 milhões. O objetivo era financiar a compra de 40 mil hectares por 800 famílias durante um ano. Na prática, financiou a compra de 44 imóveis por 694 famílias, totalizando 23.622 hectares. Uma das constatações é de que o projeto estimulou a elevação do preço da terra onde foi implementado (Pereira, 2004).

203 4 Em junho de 1999 foi concluída a avaliação preliminar (Buainain et al., 1999), prevista no acordo de empréstimo como “Avaliação de Meio Termo”. Esse documento trouxe evidências que corroboraram em grande medida as críticas que vinham sendo feitas ao Cédula desde 1997. O trabalho de campo foi rea- lizado em fevereiro de 1999, com a aplicação de extenso questionário a 232 famílias. A amostra realizada abrangeu 116 projetos, em um total de 223 projetos existentes na época envolvendo 6.642 pessoas. 5 O Painel de Inspeção foi criado em 1994 para proporcionar um fórum “independente” aos agentes sociais que se sentirem prejudicados direta ou indiretamente pela realização de projetos financiados pelo BIRD. A reclamação deve demonstrar que os efeitos negativos decorrem da não-observância das normas e pro- cedimentos do BIRD na elaboração, execução e avaliação dos projetos financiados (Fox, 2001). 6 Em março de 2000 foi concluída a avaliação de Steil (2000), parte de uma consultoria mais ampla con- tratada pelo BIRD sobre o desempenho dos fundos sociais e ambientais existentes no Brasil financiados ou apoiados por ele. Além da análise documental, teve como base entrevistas com técnicos do Banco, equipes estaduais responsáveis pela implantação do Cédula, representantes da CONTAG e do governo brasileiro. 7 Em outubro de 2002, um conjunto de entidades que compõem esse Fórum concluiu uma pesquisa sobre o desempenho do Cédula (Victor & Sauer, 2002). Entre setembro e novembro de 2001, equipes visita- ram 16 projetos – de um total de 384 projetos à época – e entrevistaram 80 famílias nos cinco estados. 8 No caso de Minas Gerais, não só os projetos produtivos, mas também os laudos técnicos que atestavam qualidade do solo, capacidade de suporte da área (número de famílias em relação ao tamanho da área), viabilidade econômica do empreendimento, entre outras, haviam sido elaborados após as transações de compra (Fórum, 1999). 9 Essas pesquisas praticamente não foram objeto de discussão fora dos círculos oficiais. Somente em mea- dos de 2006 o relatório de 2002 foi disponibilizado na página eletrônica do Programa Nacional de Cré- dito Fundiário. 10 É importante observar que os novos relatórios não apresentam qualquer relação entre a taxa de evasão e a criação de novos projetos e, surpreendentemente, também não analisam a qualidade agronômica das terras adquiridas. 11 De acordo com o MDA (2005, p. 1), a auditoria resultou “na abertura de processos administrativos, que por sua vez se desdobraram em inquéritos policiais, comissões de sindicância e outros instrumentos de apuração de responsabilidades administrativa, civil e criminal”. 12 Embora o decreto nº 4.892 de novembro de 2003 que regulamentou o Fundo tenha aberto a possibilida- de de que os recursos nele aportados fossem também utilizados para a construção de infra-estrutura nos projetos criados pelo programa de reforma agrária, nenhum percentual foi estabelecido.

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FRANCISCO AMARO GOMES DE ALENCAR

A proposta deste texto é refletir sobre a questão agrária no Ceará, tendo como objeto de análise as intervenções fundiárias implementadas em conjunto pelos governos federal e estadual que usaram o mecanismo da compra e venda de terra como se fosse uma política de reforma agrária. Este instrumento, desde o início da sua implantação, foi objeto de algumas pesquisas, em virtude de competir com a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Portanto, foi criado um cenário de disputa política e econômica entre dois mecanismos de in- tervenções fundiárias que não se complementam, e até se opõem. Neste contexto, este artigo procura analisar a implementação, entre 1997 e 2003, dos quatro programas de compra e venda: Reforma Agrária Solidária do Projeto São José, Cédula da Terra, Banco da Terra e Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural. Destaco que estas formas de intervenção fundiária por meio da compra e ven- da de terra, não são restritas ao Ceará, porquanto, de forma geral, ocorreram em quase todo o território brasileiro, contando com o apoio do Banco Mundial. Exis- tem, portanto, muitas situações semelhantes, embora determinados casos sejam específicos de cada estado.

1. Antecedentes

No Ceará, os programas de intervenções fundiárias que utilizam a compra e venda de terra como um dos instrumentos de política pública para implementação de reformas agrárias remontam à década de 1970.1 O primeiro destes foi o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste (Proterra), que teve como subprograma espe- cial para compra e venda de terra o Fundo de Redistribuição de Terras (Funterra). Este programa ficou conhecido como Proterra/Funterra e vigorou de 1973 a 1984. Nesse período foram negociados 265 imóveis, distribuídos por 235.060 hectares, e atendidas 2.183 famílias. O segundo programa foi o Projeto de Desenvolvimento Rural Integrado do Ceará (PDRI do Ceará), também conhecido como Projeto Ceará ou Programa de Desenvolvimento das Áreas Integradas do Nordeste (Polonordeste). De 1980 a 1985, o subprograma “Organização Fundiária” do Projeto Ceará, além dos traba- lhos de arrecadação desapropriação por interesse social, comprou 23 imóveis, que abrangem uma área de 35.999 ha, distribuídos para 654 famílias. Entretanto, os imóveis não foram vendidos, e sim entregues sem previsão de reembolso do valor de compra às famílias beneficiadas. O terceiro foi o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (PAPP), ou Projeto Nordeste. O componente fundiário do PAPP foi o Programa de Desen- volvimento do Sistema Fundiário Nacional (PDSFN). Para operacionalizá-lo fo- ram utilizados os seguintes instrumentos: desapropriação por interesse social, de- sapropriação negociada, compra e venda de terra e cadastro/regularização fundiária. Quanto à viabilização do financiamento da redistribuição de terra, foi propiciada mediante a criação do Fundo Estadual de Terras (Funest). No período de 1987 a 1994, além de executar as atividades de cadastro, iden- tificação, discriminação/regularização e desapropriação, o PDSFN, por meio do instrumento de compra e venda, promoveu a aquisição de cinco imóveis rurais, no total de aproximadamente 5.505 ha, e beneficiou 166 famílias. Não foi previs- ta nenhuma forma de ressarcimento, por parte das famílias, beneficiadas do valor pago pelo Estado. Estes três programas são oriundos de acordos entre os governos federal e esta- dual e o Banco Mundial e foram executados por meio de parcerias. Tinham como objetivos principais desconcentrar a posse da terra, reduzir a pobreza no campo e melhorar a distribuição de renda. Estas políticas começaram a ser implementados desde a década de 1970. No entanto, a partir de meados dos anos de 1990, os governos federal e estadual, com a parceria do Banco Mundial, revigoraram os programas de intervenção fundiária sob a denominação de política “complementar” da reforma agrária, ou “reforma agrária de mercado”.

208 2. Programas de compra e venda de terras2

A idéia do governo estadual executar uma reforma agrária, usando como prin- cipal procedimento o estímulo à compra e venda, ressurgiu em 1995 com um estudo do Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) sobre a situa- ção do mercado de terras no estado e da desapropriação como mecanismo histó- rico empregado na reforma agrária (Brandão Jr, 2000). Com base neste trabalho, aconteceram encontros com a missão do Banco Mun- dial e técnicos do governo do Ceará em 1995. Nestes encontros ficou acertada a implementação de um programa de financiamento a compra e venda de terras, denominado Reforma Agrária Amiga do Mercado, nos moldes de programas seme- lhantes desenvolvidos na África do Sul e Colômbia, com o apoio do Banco Mun- dial. Para tal, criou-se um componente fundiário no já em curso Projeto São José3, a fim de evitar novas negociações com o Banco Mundial, para a criação de um novo programa, sendo necessário apenas alterar algumas cláusulas no contrato de empréstimo existente entre o Banco e os governos federal e estadual. Esta ação foi chamada de “Reforma Agrária Solidária”. Seu objetivo era financiar a aquisição de terras diretamente às comunidades que quisessem comprá-las dos proprietários, sem limite de tamanho. Suas carac- terísticas principais eram: a) uso de metodologia participativa, posto que o com- prador da terra é a comunidade, e não o estado; b) um projeto-piloto com dura- ção de um ano (1997), que deveria acumular experiência para subsidiar um programa de abrangência regional; c) desburocratização, ação direta entre com- prador e vendedor de terras, transferindo para o comprador as responsabilidades das negociação e do desenvolvimento do projeto. Ao Idace cabia a elaboração do componente fundiário, a demarcação das terras, a análise da viabilidade da com- pra e a reformulação da sua estrutura administrativa para implementar um pro- grama de reforma agrária mediante compra e venda de terra. Ao governo do Cea- rá competia a responsabilidade de encaminhar ao Poder Legislativo do estado uma proposta de política agrária e atualizar a Lei de Terras estadual. Em cumprimento ao acordado e para viabilizá-lo, o governo estadual criou o Fundo Rotativo de Terras (FRT) em 7 de agosto de 1996, administrado pela Se- cretaria de Agricultura e Reforma Agrária (Seara) via Idace. E firmou com o Ban- co Mundial o acordo de empréstimo 3918–BR para implementar o “Projeto de Reforma Agrária Solidária – São José”. O projeto abrangia o território do Ceará, excluído o município de Fortaleza. A meta estabelecida foi atender no ano de 1997 cerca de 800 famílias, distribuí-

209 das em aproximadamente 40 mil hectares, orçados em US$ 10 milhões. Destes recursos, 60% eram provenientes do Banco Mundial e 40% do governo cearense através do FRT. Foram atendidas 694 famílias (o equivalente a 86,75% da meta estabelecida) distribuídas em 44 imóveis, numa área de 23.624,30 hectares (o que corresponde a 59% da proposta), ao custo de R$ 3.997.701,44. O custo médio por hectare foi de R$ 169,22 e, por família, R$ 5.760,38 (ver quadro 1).

Quadro 1. Programas de compra e venda de terra – Ceará, 1997 a 2004 Programas Nº de imóveis Nº de famílias Custo médio por família (R$ 1,00) Área (ha) Custo médio por ha (R$ 1,00) São José 44 694 5.760,38 23.624 169,22 Cédula da Terra 114 2.000 5.275,18 72.536 145,55 Banco da Terra 104 1.464 6.126,41 66.503 138,97 Crédito Fundiário 27 381 6.199,39 15.170 155,70 Fonte: Alencar, 2005.

A partir da experiência do Projeto São José (“Reforma Agrária Solidária”) foi criado o Projeto de Reforma Agrária e Alívio da Pobreza Rural, mais conhecido como Cédula da Terra. No Ceará, o Cédula foi operacionalizado com base num manual de operações aprovado pelo Gabinete do Ministério Extraordinário de Política Fundiária (MEPF), de pleno acordo com o Plano de Desenvolvimento Sustentável estadual. O manual citado (Ceará, 1997, p. 2) afirma que o Cédula da Terra é simples, sem burocracia, e cede para a associação atendida “a responsabilidade de identifi- car, planejar e executar os seus próprios ‘projetos’ de desenvolvimento, incluindo a terra e demais investimentos de infra-estrutura produtiva e social”. Para o go- verno estadual, o sucesso do projeto depende da compreensão do modelo e da estratégia adotada pelos técnicos, associações e organizações não-governamentais (ONGs). Este mecanismo significa para o Estado brasileiro “uma forma de agilizar o processo de redistribuição de terra financiando a compra de imóveis rurais” (ibid, p. 3). Nesse cenário, excluído o município de Fortaleza, os demais foram conside- rados como áreas de atuação do projeto. A meta era atender três mil famílias de 1997 a 2000, adquirindo uma área de 120 mil hectares a um custo aproximado de US$ 30 milhões. Foram atendidas duas mil famílias (66,6% do previsto) e comprados 114 imóveis, abarcando uma área de 72.536 hectares, o equivalente a 60,4% da meta. Os 114 imóveis rurais custaram em torno de R$ 10,5 millhões. O gasto médio por família foi de R$ 5.275,18 e cada hectare cus- tou em média R$ 145,55. As duas mil famílias receberam R$ 8.091.620,00 para in- vestimentos comunitários e R$ 3.029.718,44 como ajuda de custo inicial. Na média, cada família recebeu dessas duas rubricas a quantia de R$ 10.835,85 (ver quadro 1).

210 O terceiro programa foi o Fundo de Terras e da Reforma Agrária – Banco da Terra, instituído pela Lei Complementar nº 93, de 4 de fevereiro de 1998, e regu- lamentado pelo Decreto nº 3.027, de 13 de abril de 1999. Segundo o governo federal, este programa surgiu como expansão dos projetos São José e Cédula da Terra (MEPF, 1999, p. 14). No Ceará, entre 2000 e 2002, foram comprados 104 imóveis, atendendo a 1.464 famílias numa área total de 66.503 hectares. O gasto com a compra de terras foi de aproximadamente R$ 9,7 milhões, o que dá uma média de R$ 6.126,41 por famí- lia e R$ 138,97 por hectare. Já com infra-estrutura o gasto total foi de R$ 6.726.044,33, e a ajuda de custo de R$ 2.687.100,00 (aproximadamente R$ 12.069,27 por família). A quarta iniciativa foi o Projeto Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Ru- ral, criado pelo governo federal a partir do acordo de empréstimo 7037–BR fir- mado com o Banco Mundial. Seu objetivo era melhorar os programas anteriores, favorecendo a descentralização das ações, a atribuição de maior poder aos Conse- lhos de Desenvolvimento Rural Sustentável (CDRS) e a participação mais ampla dos movimentos sociais na sua execução (MDA, 2002, p. 7). Segundo o governo federal, trata-se de um projeto complementar à reforma agrária, e seus beneficiários têm direito aos financiamentos previstos para os demais programas do Ministério do Desenvolvimento Agrário. No Ceará, durante os anos de 2002 a 2004, foram comprados por este projeto 27 imóveis, que abrangem uma área de 15.170 hectares e atendem a 381 famílias. Com a compra de terras foram gastos R$ 2.226.9998,36, aproximadamente R$ 6.199,39 por família e R$ 155,70 por hectare. Com investimentos comunitários foram dispendidos R$ 1.861.191,64 e, com ajuda de custo inicial, cerca de R$ 589.810,00. A soma das duas liberações equivale em média a R$ 6.433,07 por família.

3. Resultados da implantação dos quatro programas no estado

No Ceará, de 1997 a 2004, foram adquiridos pelos quatro projetos 289 imó- veis, que correspondem a 0,2% dos imóveis rurais do estado (134.782). Ocupam 180.714,46 hectares, ou seja, 1,9% do território rural (9.351.858 ha) e atendem 4.538 famílias. Os imóveis localizam-se em 113 municípios (61,4% dos municí- pios cearenses), o que confere grande capilaridade a tais programas. Há, entretan- to, algumas áreas de concentração, como as regiões nordeste, centro, litoral oeste e noroeste do estado, como mostra a figura 1.

211 212 Desta concentração sobressaem quatro municípios: Quixadá, com dezoito imóveis, numa área de 13.271 hectares e atendimento a 314 famílias; Acaraú, com quatorze imóveis, os quais ocupam 4.083,13 hectares, para 205 famílias; Crateús, onde se localizam onze imóveis, distribuídos por 9.321 hectares, e 203 famílias beneficiadas; e Canindé, que possui onze imóveis, abrange 7.061 hectares e aten- de 158 famílias. Deve-se notar também que os municípios de Quixadá, Quixeramobim, Crateús e Acopiara conheceram os quatro programas direcionados à compra e venda de terras. A figura 1 revela que os municípios que concentram tais programas são justa- mente aqueles historicamente conhecidos pela concentração de latifúndios e minifúndios; portanto, que possuem uma geografia inadequada da posse e uso da terra e das relações sociais de produção. Em tais municípios, o Estado deveria ter usado o instrumento da desapropriação por interesse social, e não programas de compra e venda de terras. Ademais, os imóveis adquiridos pelos quatro programas situam-se em depres- sões sertanejas e tabuleiros costeiros. Na primeira situação, os solos são pouco profundos e há pedregosidade, susceptibilidade à erosão, deficiência de água, cli- ma semi-árido e regime pluviométrico irregular. Na segunda situação, os solos predominantes têm boas condições físicas, pois são profundos e suavemente on- dulados, embora algumas condições químicas sejam desfavoráveis, como a baixa fertilidade natural e a deficiência de água. Na primeira situação, os programas poderiam atuar somente quando o imóvel apresentasse boas condições em termos de solos, recursos hídricos e relevo, enquanto na segunda deveriam ter sido mais comedidos. Desta maneira, não teria havido concentração desses programas em nenhuma das duas unidades geoambientais. Sobre a concentração desses programas nas depressões sertanejas do estado, regiões nas quais prevalece a concentração de latifúndios, foi expressa assim:

No nosso caso do Ceará, as aquisições desses programas de reforma agrária consentida, quando você pega o mapa [do Ceará] e olha... Aqui em cima [litoral], está todo cheio de pontinhos; aqui em baixo Cariri e Iguatu não têm nada. Aqui no litoral é um semi-árido, um carrasco duro (...), difícil. E aqui no Cariri e Iguatu, ninguém quis. Por que não compraram aqui nessas regiões, e criavam projetos pi- lotos? [Teria sido] uma experiência maravilhosa. Mas não, fizeram foi disputar car- rasco com o INCRA, comprando [terra]. Prejudicaram as duas coisas. A eles, do Idace, que estavam comprando, e a nós, do INCRA, que estávamos desapropriando. E isso sem querer aumentou o preço da terra. Isso para mim foi uma disputa, sem inten-

213 ção. E eles achavam que era mais fácil assim, comprando (ex-dirigente do INCRA- CE e da Seagri, 2003).

Quando questionada sobre a concentração da atuação desses programas em alguns municípios, uma liderança do Movimento Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (MSTTR) explicou que, na região do litoral, ela se deve à pouca atuação dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs), pois existe um hiato político ocupado pelos políticos locais:

Geralmente [foi onde] os três maiores movimentos sociais – nós [Fetraece e STR], CPT e MST – não trabalhamos esta questão. Nas regiões onde atuamos menos foi onde cresceu o programa. (...) Onde o pessoal participa menos dos movimentos so- ciais é onde os políticos têm mais influência e os projetos interesseiros são maiores (Diretor da Fetraece, 2003).

A fala deste interlocutor é ratificada por outras de diretores de órgãos públicos estaduais e federais, ao afirmarem que os movimentos sociais rurais atuam mais nos sertões. Além deste fato, segundo estes entrevistados, devem ser considerados a divulgação dos programas e os recursos naturais dos tabuleiros costeiros ou dos litorais. Existem várias explicações que se complementam e, ao mesmo tempo, são contraditórias para justificar o destaque de alguns municípios em termos quanti- tativos na execução desses programas. Quanto à concentração da atuação dos pro- jetos no litoral, é uma premissa aparente, pois apenas o município de Acaraú, re- gião do litoral, apresenta maior número de imóveis adquiridos; e somente pelo Projeto Cédula da Terra, porque nos demais programas este município é inferior a Quixadá e se equivale a Crateús e Quixeramobim. Afora isto, não possui ne- nhum imóvel comprado pelo Projeto de Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural. Neste contexto, além da explicação da concentração dos quatro programas ocorrerem nas áreas com concentração de latifúndio, de posseiros, de parceiros/ arrendatários e na disputa entre os dois órgãos (Idace e INCRA-CE) pelos sertões, existem outras razões, como por exemplo: a) a angústia da família camponesa para conquistar um pedaço de terra a “qualquer preço”; b) o Estado aproveita-se dessa situação e “deixar-se levar” pela solicitação das famílias camponesas, sem realizar um estudo detalhado do imóvel como unidade ambiental, com vistas a capacida- de de produção agrícola e pecuária; c) a oferta dos imóveis por parte dos seus pro-

214 prietários; d) os sertões são marcados pelos conflitos agrários na história do Cea- rá; e) a região menos privilegiada do estado em termos de recursos naturais (solo, água, clima); queda no preço da terra, entre outros. As justificativas do Estado para operacionalização dos programas, quando com- parados com a desapropriação por interesse social, são: a) menor custo do imóvel; b) desburocratização; c) participação do público potencial por meio das associa- ções, desde a escolha da terra até o preço da compra desta; d) por ser uma negoci- ação, não existe conflito pela posse da terra; e) no ato do pagamento da terra e da transferência aos camponeses compradores, estes automaticamente são emanci- pados administrativa e juridicamente. Sobre a desburocratização e a agilidade dos processos efetuados por intermé- dio dos projetos São José, Cédula da Terra e Banco da Terra, o tempo de duração da tramitação do processo aumentou muito, pois no primeiro, o mais demorado, foram 341 dias, enquanto no último foram 1.317 dias (ou seja, quadruplicou o tempo de tramitação). Por outro lado, os mais rápidos foram 35 e 77 dias, respec- tivamente, o que significa que o tempo de tramitação duplicou (Brandão Jr, 2000). Teoricamente, com o aperfeiçoamento da gestão dos projetos deveria ter ocor- rido o contrário. A hipótese é que isto aconteceu porque, no início desses proje- tos, o mercado de terra encontrava-se em queda, com pouca demanda. Com a implantação do instrumento de compra e venda de terra, verificou-se aumento no preço das terras, impasse nas negociações e maior procura por terra do que oferta. A continuar assim, a operacionalização do Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural não será rápida, nem seu custo será mais baixo que o das desapro- priações. Quanto ao preço da terra, na opinião de Pereira (2000, p. 30), tal preço é in- fluenciado por muitas variáveis, como:

Urbanização, fluxo migratório, crescimento demográfico, disponibilidade de infra- estrutura, as cotações dos principais produtos agropecuários, as distâncias dos mer- cados consumidores, as relações de troca entre agricultura e indústria, os incentivos fiscais para penetração de capital financeiro no campo, o grau de ocupação do terri- tório as flutuações em mercado de outros ativos e a política econômica.

Ainda conforme Pereira (2000), a baixa de aproximadamente 40% no preço da terra verificada entre 1980 e 1999 evidencia que ela estava perdendo o poder como ativo financeiro ou especulativo. Para o autor, a terra não estava caindo de preço, mas retornando ao preço normal. O principal componente desta que-

215 da foram os planos econômicos, e não os programas implantados a partir de 1997. Na opinião de uma liderança do MSTTR estadual, após 1997, com a operacionalização desses programas, ocorreu um aumento no preço das proprie- dades rurais, porquanto antes não havia dinheiro ou financiamento para compra de terra. Na sua fala o entrevistado destaca que:

Facilitou muito para o aumento do preço. O que entrava ainda neste mercado era porque a sociedade não estava interessada em comprar terra em virtude do poder de compra. Agora, o Estado, ao fazer isso com estes programas, poderá elevar bastante (...). Com isso a terra volta a ser valorizada, o que é bom para o campo. Porém, ao mesmo tempo, é um complicador, porque à medida que aumenta o preço, você vai sacrificar a pessoa que amanhã pode ter a terra. E para comprar mais caro a terra pode beneficiar quem tem a terra. (...). Se não tivesse acontecido isso, a terra na área do sertão seria uma coisa que não tinha valor (liderança do MSTTR, 2003).

Sobre as vantagens ou diferenças atribuídas pelo Estado aos programas de com- pra e venda de terra, em comparação com a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, principalmente no tocante ao preço pago em virtude dos recursos jurídicos, assim se expressou um dos dirigentes do Idace:

O grande problema entre um modelo e o outro são as ingerências que há dentro dos programas. Tanto na desapropriação quanto na compra e venda existe ingerência política, corrupção, manipulação. Porém, com a compra e venda, a gente pensou que a organização dos trabalhadores “peitaria” estes problemas. Mas não peitou. Hoje, no processo de Reforma Agrária Solidária, a gente vê pessoas agenciando proprietários rurais, formando associações para comprar terra, associações brigando para pagar um valor mais alto do que aquela terra vale. Na realidade, quando a gente pensou em um modelo complementar, não pensou nas deturpações que existem dentro de um e de outro (dirigente do Idace, 2003).

O depoimento citado desfaz o argumento, usado pelos defensores dos quatro programas, de que as associações, ao negociarem o preço, evitariam manipulações como a elevação de preço. O mais grave é que este problema é reconhecido por um dos dirigentes responsáveis pela execução destes programas no Ceará. Ademais, o ato da transformação da terra em mercadoria – portanto, da nego- ciação, do endividamento de quem compra terra – remete a uma pergunta: os

216 trabalhadores têm ou terão condições de honrar os compromissos financeiros perante as instituições financeiras? Conforme os depoimentos dos diretores do Banco do Nordeste das agências de Canindé e Quixeramobim, até outubro de 2003 encontravam-se inadimplentes, no primeiro município, com duas parcelas atrasadas, os imóveis Campos do Jordão/ Salão, Santa Rita, Cacimba Nova, Boa Vista; e com uma parcela atrasada, Santa Clara e Nova Olinda. No segundo município, Pedra Alta e Poço Cercado, ambos com duas parcelas. Segundo esses diretores, nem todos estão inadimplentes por causa do processo de repactuação do financiamento, isto é, maior (ou novo) pra- zo de carência e mudança da taxa de juro. A pesquisa Avaliação do Projeto Cédula da Terra destaca que o preço não foi dis- cutido pelos compradores, deixando a negociação com o Idace. Dessa forma, o “Idace emerge como negociador direto com os vendedores contradizendo seu papel privi- legiado de árbitro ou mediador no processo de compra e venda” (FAO-INCRA, 1998, p. 11-12). Esta constatação foi verificada por Alencar (2002 e 2005) e Navarro (1998). Nos três estudos, porém, não foi constatada nenhuma forma de corrupção por par- te dos técnicos do Idace. Segundo todos os depoimentos, o preço da compra foi inferior ao proposto pelo vendedor. Entretanto, isto não significa obrigatoriamente que o preço da terra foi baixo. Além disso, alguns compradores afirmam que o pro- prietário ou vendedor solicitava por fora uma complementação, sem o conhecimento do Idace. O aumento de preço ocorria de várias formas. Cito como exemplo o caso de um imóvel de determinado município cujo preço foi acertado em R$ 54 mil entre o Idace, o comprador e o vendedor, mas, por fora, o proprietário tentou nego- ciar por R$ 69 mil. A diferença seria paga da seguinte forma:

Dando mais R$ 15 mil por fora, nós estamos desmanchando o orçamento dos ho- mens [técnicos do Idace]. (...). [O proprietário] disse: “eu me responsabilizo por isso, vocês nos dão todo mês quando receberem a ajuda do fomento (...) uma parte até inteirar os R$ 15 mil (liderança mutuária). Tem alguns lugares em que o Idace calculou corretamente, e nós temos que dar a mão a palmatória. E as pessoas se propuseram por fora e à revelia do sindicato a dar um preço a mais, a exemplo do Escondido [município de Novo Oriente], que tem denúncia até na Polícia Federal (liderança do MSTR do Ceará e da CUT – Rural Nacional, 2003).

Os argumentos em favor dos quatros programas – negociação direta entre comprador e vendedor sem intermediário, desburocratização, rapidez no proces-

217 so, maior participação das associações, menor preço da terra – precisam ser relativizados, posto que foram aqui empiricamente contestados.

4. As transações de terra: encontros e desencontros

As situações de inadimplência perante a instituição financiadora têm provo- cado nos mutuários angústias, noites mal dormidas e dias enfadonhos, mas, por outro lado, também têm propiciado o reencontro entre a população camponesa endividada com o movimento sindical rural, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Um reencontro marcado pela dor de não honrar o compromisso. Para a fração da classe subalter- na do campo, antes ser morador do que ser desonrado por não pagar o que se deve. Esta angústia e dor da reaproximação é assim expressa:

Essa distância, hoje, eles percebem o problema que tem lá. Em alguns municípios o movimento sindical ainda abraça, mas a grande maioria ainda está isolada no lugar deles. Porém, hoje eles já estão procurando o movimento sindical, e quando nos pro- curam dizem: e aí, o que vai ser de nós? O que vamos fazer? (diretor da Fetraece, 2003).

Alguns técnicos e intelectuais imaginavam que, com estes programas, ocorre- ria o enfraquecimento do MST, da CPT e de setores do MSTTR, ou aumentariam as fissuras entre estes e os camponeses-mutuários. Eles cometeram um equívoco teórico. A dor da subtração da terra e a vergonha da inadimplência dos campone- ses-mutuários estão construindo os caminhos do (re)encontro do que antes havia sido um desencontro:

Acho que o movimento sindical cometeu um grave erro, e disse isso desde 1997 (...). Está melhorando agora, porque a peia veio pra todo mundo. Mas eu disse sempre que nós éramos responsáveis por aquela propriedade que estava sendo comprada (li- derança do MSTR do CE e da CUT-Rural, 2003). O que vai nos unificar é chamar os mutuários das reformas agrárias de mercado para travar uma luta pedindo a anistia desses pagamentos. Que é uma forma de você dar credibilidade a estes trabalhadores, que estão desesperados nessas áreas. A discussão que nós temos feito não é de renegociação, é do não pagamento. Então eu vejo que será uma grande luta (dirigente estadual do MST-CE e assentado).

218 A dor e o distanciamento que os dois lados, mutuários e mediadores, carre- gam já faz algum tempo. Tempo anterior aos projetos São José, Cédula da Terra, Banco da Terra e Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural. Sofrimentos e desencontros sublinhados nas falas:

Alguns, inclusive, no momento em que estavam se organizando para fazer a compra, se filiaram. Mas não retornaram ao sindicato (...). Por outro lado, nem o sindicato nem o MST procuram o pessoal para vir para o quadro social. O MST visita essas áreas para convidá-los para as mobilizações. Depois da mobilização eles retornam e ficam lá jogados. Não há um acompanhamento ou direção política do MST e do sindicato. Eles também não vêm às organizações e nem elas vão lá, o que é um erro. Acho que as organizações devem ir lá (dirigente sindical e vereador, Canindé, 2003). As famílias beneficiadas eram trazidas por pessoas adversárias do movimento sindi- cal. Num município chegava um vereador que tinha interesse, juntava um grupo de pessoas, falava com o proprietário de terras e fazia o negócio. Mas esse pessoal tam- bém não se aproximava da gente. Eles diziam: “o movimento sindical é contra nós”. Isso causou uma distância entre esses grupos e os movimentos sociais. Para eles, o governo é Deus. O governo é quem dá a terra, é quem faz não sei o quê. Por isso, hoje, nem o MST nem a CPT os acompanham. O STR acompanha alguns, mas de longe. Porém, não tem essa relação com eles. Por isso eles estão abandonados (Dire- tor da Fetraece, 2003).

Embora o Cédula da Terra tenha sido implantado a despeito da oposição de alguns setores dos movimentos sociais e do movimento sindical rural, ele atingiu as metas antes do tempo previsto, superando as expectativas dos governos federal e estadual, na medida em que, em um ano e meio de atividades, atingiu o que estava programado para ser executado em três anos (Navarro, 1998). Já o Projeto São José alcançou aproximadamente 90% da meta. Os 10% restantes não foram executados em decorrência do preço do hectare ter ficado bem acima do preço médio planejado (Brandão Jr, 2000). Com a implantação do Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural, a Con- federação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), as Federações Estaduais dos Trabalhadores na Agricultura (Fetags) e os STRs – que desde mea- dos dos anos de 1980 defendiam uma linha de crédito para compra e venda de terra para seus filiados – entenderam que uma das suas reivindicações históricas estava sendo contemplada. Para o segmento hegemônico da Contag, das Fetags e dos STRs, este projeto é diferente dos três programas anteriores.

219 O Crédito Fundiário é diferente dos outros programas [de compra e venda de terra]. Nós tivemos uma discussão na Contag com a CPT e o MST. Nesta reunião, eles dis- seram que não adotariam o Crédito Fundiário. Mas a Contag, baseada na demanda dos pequenos agricultores, solicitou um programa complementar. A diferença [em relação aos] programas anteriores era que o governo dizia que era complementar, mas era compra de terra, que dava terra e dinheiro para as pessoas. No Crédito Fundiário, a gente faz reuniões com os pequenos produtores, coloca a realidade do programa (diretor da Fetraece, 2003).

Entretanto, para um dos dirigentes do Idace que participou da elaboração dos programas dos governos estaduais desde meados dos anos de 1980, “a primeira questão é política, principalmente o MST. Não colocaria o movimento sindical, muito ao contrário. A Fetraece nunca se contrapôs a esses programas [referindo- se aos Projetos São José, Cédula da Terra e Banco da Terra]”. Ainda de acordo com esse interlocutor:

Eles [Fetraece] participavam da câmara velha, e na nova eles apontam melhorias, so- luções e não são taxativos, e nem dizem que esses programas têm que acabar. Isso não é posição da Fetraece, nem do movimento sindical. (...) O MST e a CPT têm uma posição clara como mecanismo, que é uma posição muito política. Agora, o MST existe por causa das ocupações. Um modelo deste de compra e venda de terra é a morte do MST (dirigente do Idace, 2003).

A questão, portanto, está na concepção de reforma agrária. Além disso, pensar que programas de compra e venda extinguiriam movimentos do porte do MST demonstraria a fragilidade deste, bem como dos movimentos sociais do campo de maneira geral. Consoante as falas dos diretores da Contag e da Fetraece ao expli- carem as diferenças, existe contradição quando, a partir de 2002, todos os mutuá- rios dos outros projetos passaram a contar com as condições de pagamento iguais às do Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural. Ademais, o fato do Crédito Fundiário ter sua implementação após o Cédula da Terra e o Banco da Terra foi algo complicado para o movimento sindical rural, pois os defeitos na operacionalização destes projetos foram transferidos para aquele. Segundo as falas aqui citadas quanto à diferenciação entre os três primeiros projetos (São José, Cédula da Terra e Banco da Terra) e o Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural, com a unificação das condições de pagamentos e dos problemas entre os programas, a diferença entre estes projetos decorre do nome

220 de batismo, do tempo em que foi executado e, principalmente, do autor da idéia. Além disso, não se deve esquecer que a denominação “Combate à Pobreza Rural” refere-se ao programa de acordo de empréstimo do governo brasileiro com o Ban- co Mundial. O mesmo empréstimo que apoiou os outros três projetos. Conforme Sauer (2003), todos têm a mesma lógica, a mesma fonte de recursos, as mesmas taxas de juro e prazos de pagamento. E o tamanho da propriedade para ser com- prada só posteriormente foi estabelecido. Nesse contexto permeado de contradições – posto que ocorre a negação e a afirmação dos programas de compra e venda de terra por setores das organizações sindicais e movimentos sociais, bem como sua aceitação por uma parcela dos cam- poneses –, uma outra explicação está no desencontro, no distanciamento do cam- ponês e da camponesa das três grandes entidades mediadoras e articuladoras. (Contag/Fetags, MST e CPT). Presentes em todo o território nacional. Esses desencontros e distanciamentos entre setores das entidades mediadoras e as famí- lias camponesas, aliada a propaganda massiva dos programas, viabilizaram a supe- ração das expectativas das metas planejadas pelos governos federal e estaduais, que são explicitados nas seguintes falas:

Os trabalhadores não tinham conhecimento de como rezava o programa. E como os tra- balhadores tinham necessidade de terra, foram iludidos pelo programa do governo feito através dos técnicos, de reuniões, encontros nos assentamentos, nas comunidades (diri- gente STR e mutuário do Projeto Cédula da Terra, município de Tamboril, 2002). A palavra proprietário é muito diferente da palavra “nós vamos lutar por um assenta- mento”. Outra palavrinha: “juntem-se numa associação que vai ser comprada terra e vocês vão ser os proprietários, essa reforma agrária está garantindo a terra e o recurso sai na hora” (dirigente do MST-CE, regional de Canindé, 2002).

Outra variável a ser incorporada para a compreensão dos desencontros-encon- tros é o sonho do camponês de ter um pedaço de terra de trabalho:

Em todos os momentos que nós passávamos nas comunidades discutindo e lutando pelas desapropriações, encontramos muita gente dizendo, propondo e reivindicando um tipo de financiamento para comprar a [sua própria] propriedade (...). Quando chegávamos nos sindicatos, nas delegacias sindicais, as pessoas reivindicavam ou pe- diam esclarecimento [sobre] se não havia dinheiro no banco para comprar proprie- dade. Eu acho que nesse caso o governo soube aproveitar bem as demandas que nas- ceram das pessoas. E isso não foi a mesma coisa com as direções do movimento sindical,

221 nem do movimento social, do MST. Trabalhamos mais a questão da desapropriação, mas a população levantava a demanda da compra de terra. Tem dia que eu ficava assim meio tonto (liderança sindical CE, 2003).

Esse desejo da terra de trabalho, algumas vezes, gera contradição com as ocu- pações, em virtude da heterogeneidade da população camponesa. Por exemplo, alguns evangélicos explicam a aceitação desses projetos porque não aceitam o con- flito. Eles afirmam:

Eu acho que a ocupação da terra tem gerado conflitos. Eu não sou a favor, porque nós já vivemos num mundo tão ensangüentado e a gente ainda ir criar mais confli- to... Ali podem morrer vários pais de família, mãe de família, criança, ou então se tirar vida a de um fazendeiro também. Por que não procurar se entender? (...). Você é dono da sua propriedade e eu chego com um monte de gente invadindo, destruin- do até as coisas que você construiu com vários trabalhos (...), cortando as cercas de arame. Tudo custou suor seu. Você não vai achar bom. Mas, se o governo botasse uma equipe e fosse até sua residência, conversasse com você e negociasse de qualquer jeito, acho que seria melhor. O governo tinha tudo para chegar a esse ponto sem pre- cisar de conflito (dirigente e mutuário do Cédula da Terra, Canindé, 2003).

Outro problema está no processo de seleção, fato que precede o ato da com- pra da terra. Primeiro, a rigor não há uma seleção dos futuros mutuários. O que ocorre são critérios estabelecidos que, na prática, não selecionam. Nesse cenário de seleção e criação de associação, algumas falas são reveladoras:

Eu estava numa reunião em Santa Quitéria e quem estava articulando a compra da terra era a associação dos moto-taxistas. Quando fizemos no STR a discussão de que o moto-taxista não poderia ser beneficiário da reforma agrária, criou um clima ruim (liderança sindical do CE e da CUT-Rural nacional, 2003).

Outro depoimento ressalta: “A gente morava tudo espatifado. Até 20 quilô- metros de distância daqui” (Dirigente e mutuário do Projeto São José). Ainda conforme este dirigente e mutuário, nenhuma das sete famílias que moravam nesse imóvel permanecem na área. Todas optaram para serem assentadas no imóvel Maraquetá, desapropriado pelo INCRA em 1997. Nesse cenário, não passar pela experiência dos acampamentos e das ocupações aumenta muito a probabilidade da pessoa selecionada não se adaptar às condições

222 de assentado e do assentamento. A pré-seleção verificada nos acampamentos, nas ocupações, entre outras formas de mobilização/organização, redireciona para a cooperação, para a solidariedade, para o trabalho coletivo. Esta etapa é o início de um processo de aprendizagem de dissocialização/ressocialização, de inclusão social, que tem os assentamentos como ponto de chegada e partida simultaneamente (Martins, 2003; Fernandes, 2000; Caldart, 2000). A pré-seleção serve também como período de preparação do camponês para a vida nova, diferentemente do ocorrido com a forma de aquisição via mecanismo de compra e venda de terra, pois a maioria das associações são formadas para atender a uma das exigências dos programas (FAO-INCRA, 1998). Em muitos casos, inclu- sive, os mutuários não foram selecionados, mas sim escolhidos (Victor & Sauer, 2002; Buainain, 1999). Quando a associação já existia e serviu de “aluguel” para comprar a terra, a seleção, além de não ocorrer, trouxe outros problemas, como a desistência dos mu- tuários. Conforme este relato: “Nós pegamos a associação da fazenda Jitirana que o rapaz doou para comprarem esse terreno” (Mutuário e liderança do Banco da Terra, Quixeramobim, 2003). Quando questionados acerca destes programas de compra e venda de terra como sendo “reforma agrária”, os mutuários, além de não considerarem os programas de compra e venda de terra como reforma agrária, não aconselham a nenhum cam- ponês entrar num programa desse tipo. Ao contrário, aconselham até a participa- ram das ocupações organizadas pelo MST, posto que somente após tornarem-se mutuários é que tomaram conhecimento da importância da ocupação e da desa- propriação para fins de reforma agrária. Mais uma vez o Estado, por caminhos tortuosos, colocou algumas famílias camponesas para seguir em direção ao MST, ou a setores do movimento sindical rural que fazem oposição a este mecanismo como sendo “reforma agrária”. Os manuais dos quatro programas argumentam que a compra e venda, em vir- tude da negociação entre vendedor e comprador, torna o preço do imóvel menor, quando comparada à desapropriação. Para verificação das hipóteses de negocia- ção, do preço de mercado e do menor custo, foram escolhidos os municípios de Canindé e Quixeramobim4, os imóveis desapropriados a partir de 1997 com áreas menores, enquanto os imóveis dos programas compra e venda de terra foram aque- les de maior área.5 Em Canindé, o valor do hectare desapropriado fica em torno de R$ 60,00, en- quanto pela compra e venda oscila entre R$ 38,9 e R$ 86,6. Para Quixeramobim, o hectare desapropriado varia de R$ 29,9 a 69,7, enquanto pela compra e venda de

223 terra oscila de R$ 59,6 a R$ 85,3. Logo, não há nenhum indício no preço do hec- tare que permita afirmar que um ou outro beneficia a população camponesa. Quanto ao preço total do imóvel [terra nua + benfeitoria] por família no município de Canindé, o valor pago pela desapropriação é superior àquele pago pela compra e venda de mercado. Este fato decorra, talvez, dos imóveis desapropriados possuírem maior número de benfeitorias. No município de Quixeramobim, por exemplo, não se verifica esta diferença, exceto no imóvel Alegre (ver quadro 2). Ainda de acordo com o quadro 2, na relação família/hectare nos dois instru- mentos, existem áreas inferiores a um módulo fiscal, haja vista que, para o muni- cípio de Canindé, equivale a 50 ha e em Quixeramobim a 40 ha. Nesse contexto, somente os imóveis Rocilândia [Canindé] e Maraquetá, Pedras Altas e Condado [Quixeramobim] possuem área superior a um módulo fiscal. Os demais, portan- to, são classificados como minifúndios. Com este tipo de política fundiária, o Estado brasileiro continua implementando política pública de geração de minifúndios e latifúndios. A afirmação de que os camponeses-compradores e os proprietários-vendedo- res acertam o preço precisa ser relativizada. Se, por meio do mecanismo da desa- propriação, o preço é estabelecido pelo INCRA, na compra e venda de terra é pelo Idace. Se, no primeiro, a justiça ordena ao INCRA pagar um valor maior, no segun- do alguns proprietários ou vendedores por fora também aumentam o preço do imóvel. Nos dois casos, porém, quando ocorre este aumento no preço da terra, quem paga é a população camponesa (assentada ou mutuária).

Conclusão

Os resultados da implantação dos programas de compra e venda de terra no Ceará agravam a situação do território agrário, tornando este mais intricado e desafiador. Intricado porque a mudança da malha fundiária ou da política de re- forma agrária está ocorrendo, principalmente por meio do uso do instrumento de compra e venda de terra, ao invés da utilização do mecanismo da desapropriação por interesse social. Desafiador porque os resultados empíricos constatados até então “demonstram que é nula a validade conceitual do modelo de reforma agrá- ria de mercado e de todo o discurso que procura legitimar programas nele inspi- rados” (Pereira, 2005, p. 29). Nesse caso, há, pois, uma opção política por parte dos governos federal e esta- dual pelo mecanismo da compra e venda, em detrimento do outro. Este fato agra-

224 va-se, e muito, quando os camponeses compradores de terra afirmam que não terão condições de pagar os débitos assumidos perante a instituição financiadora. Não honrar ou cumprir seus compromissos significa a perda da sua história de honra- dez e altivez. Como o banco financiador não vendeu terras, mas emprestou dinheiro, espe- ra e quer receber os recursos emprestados com as taxas de juro, conforme previsto em contrato. Este é um dos problemas das famílias camponesas que compraram terras. Com o passar dos anos, caso não ocorram mudanças radicais nesses con- tratos, a situação tende para a tensão entre o camponês-mutuário e o banco. Outro fato da multidimensão do camponês-comprador de terra deve-se à dis- tinção, à especificidade jurídica e sociológica deste em relação ao camponês-as- sentado, beneficiado por meio do instrumento da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Segundo previsto, ambos deverão pagar pela terra. Entretanto, o camponês-comprador de terra mantém uma relação com o banco regida por um contrato jurídico de financiamento, segundo o qual o imó- vel financiado fica hipotecado em primeiro grau, até a quitação plena da dívida. Neste caso, os tomadores do empréstimo são denominados juridicamente de mutuários. Além disso, após firmado o contrato, feito o pagamento ao proprietá- rio-vendedor e realizado a transferência do imóvel, o camponês-mutuário torna- se automaticamente emancipado. Quanto à especificidade sociológica, decorre das formas de lutas encetadas. O camponês-mutuário adquiriu o direito de uso e posse da terra de trabalho por meio do instrumento compra e venda, mas não passou pelas peneiras pedagógicas das ocupações e dos acampamentos (Caldart, 2000; Fernandes, 2000), nem pelos processos de dissocialização-ressocialização (Martins, 2003). Já o camponês-as- sentado passou pela pedagogia das ocupações e dos acampamentos, assim como pelo processo da dissocialização-ressocialização, o que lhe permite identificar-se como classe social, ver-se no outro camponês e se irmanar. Desse modo, somente na criação da associação e na negociação da compra e venda do imóvel é que a maioria dos camponeses-mutuários inicia o conhecimento pessoal. Neste caso, todas as diferenças e desavenças irão aflorar com força e vigor somente após estarem no imóvel. Neste cenário de disputa político-econômica entre os dois mecanismos, gera- se uma situação paradoxal. O camponês-mutuário, ao enfrentar todos os proble- mas como “novo” sujeito social do campo ou “nova” categoria social camponesa, tem encontrado uma aproximação com os movimentos sindicais dos trabalhado- res rurais, com os movimentos sociais do campo. Nesse embate político, começa

225 a ver as ocupações e os acampamentos como a forma correta para adquirir terra. Os enfrentamentos políticos permitem-lhe ver e se perceber como uma classe cam- ponesa, semelhante aos camponeses-assentados, que carregam os mesmos proble- mas, sem contar com as dívidas que o banco começa a cobrar após o período de carência. Neste contexto, os programas de compra e venda de terra revelam o território rural do Ceará como intrincado e desafiador. Nele, a maioria dos mutuários ainda não encontrou o sonhado território da “nova terra prometida”, bem como não se concretizaram os objetivos dos programas.

Notas

1 Para maior detalhamento dos programas de compra e venda de terra nas décadas de 1970 e 1980 no Ceará, ver Alencar (2005, cap. 3). 2 Para maiores detalhes sobre os programas de compra e venda de terra no período de 1995 a 2005 no Ceará, ver Alencar (2005, cap. 5). 3 Sobre o Projeto de Combate à Pobreza Rural no Ceará, ver Araújo (2003). 4 Escolhi os municípios de Canindé e Quixeramobim porque são os mais representativos em termos de intervenção fundiária no Ceará. 5 A opção entre os critérios tempo, a partir de 1997, e menor área para os imóveis desapropriados e maior área para os de compra e venda, foi uma forma de aproximar estes tipos de intervenção, para poder “fazer comparações”.

226 amília 773,01 49.939,20 64,60 56.715,00 4.362,00 48,31 Data (ha) Área terra Valor por Valor total R$ Valor por Valor F era 04/11/1998 952,43 53.892,00 56,58 152.101,00 6.337,54 39,66 imóvel nua (ha) R$R$ ha família R$ por ha Nome do Quadro 2. Valor das aquisições dos imóveis por tipo de instrumento – Ceará, 1997 a 2003 por tipo de instrumento – Ceará, das aquisições dos imóveis Valor 2. Quadro Alencar, F. A. G. A. de. F. Alencar, PBTDesapropriaçãoDesapropriação MaraquetáDesapropriação Alegre P./Jitirana 26/03/1997PSJ Alegre V. PCTPBT 22/08/2000 2.465,00 19/09/1998 09/09/1999 1.249,31 73.810,00 431,11 Altas 788,61 P. Condado Fofo do B. 54.722,00 29,94 28.920,00 55.000,00 20/10/1998 23/06/1997 07/08/2000 43,81 67,08 321.714,00 69,79 2.056,00 1.076,00 469,90 5.452,00 351.517,00 175.567,00 68.900,00 103.755,00 10.338,00 41,77 28.028,00 85,39 5.741,67 4.323,00 36,73 59,64 35,91 32,83 213.641,00 119.017,00 4.450,85 7.934,47 42,83 82.680,00 31,32 4.351,00 56,63 DesapropriaçãoDesapropriação RocilândiaDesapropriação Primav R. Desapropriação 09/09/1997 ImburanaPCT FrazãoPCT 09/09/1997 1.372,8PBT 02/02/2000 1.194,35 82.437,00 Salão Alegre R. 720,00 69.369,00 60,05 Furada P. 20/05/1998 04/02/1998 58,08 49.533,00 18/05/2000 228.841,00 985,13 10.401,86 68,79 331,05 253.897,00 79,27 9.765,26 38.325,00 28.682,00 106.651,00 44,38 5.332,55 38,90 86,69 37,50 74.788,00 79.349,00 3.739,00 5.289,93 49,25 22,06 São José. -CE e Idace. Org. -CE e Idace. NCRA PCT = Projeto de Cédula da Terra. de Cédula da PCT = Projeto Terra. Banco da PBT = Programa PSJ = Projeto Quixeramobim MunicípioCanindé Instrumento I Fonte:

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GUIOMAR GERMANI ALICIA RUIZ OLALDE GILCA GARCIA DE OLIVEIRA EDMILSON CARVALHO

Este artigo tem como objetivo trazer algumas reflexões sobre a implantação dos programas orientados pelo modelo de reforma agrária de mercado no estado da Bahia, em especial do Projeto Cédula da Terra (PCT) – que vigorou de 1997 a 2002 – e de seu sucessor, o Projeto Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural (PCF), iniciado em 2002. As informações referentes ao PCT estão fundamentadas, basicamente, nos resultados de uma pesquisa realizada para o Fórum Nacional de Reforma Agrária e Justiça no Campo no final de 2001.1 A partir de então, os assentamentos reali- zados pelo PCT e pelo PCF vêm sendo acompanhados por pesquisadores do Pro- jeto GeografAR.2 Este acompanhamento e a realização da recente “Pesquisa Po- pular no Meio Rural sobre o Programa Crédito Fundiário”, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, permitiram atualizar os dados e a análise sobre a im- plantação da política do Banco Mundial na Bahia. Permitiram, também, consta- tar que, além da troca do nome, houve reconhecidos esforços das instituições en- volvidas no sentido de superar alguns obstáculos e limitações. Contudo, ainda persistem problemas e contradições de conteúdo estrutural identificados na pri- meira pesquisa. Independentemente das limitações destas pesquisas, no sentido de não con- templar a totalidade de situações existentes no estado, as informações obtidas são significativas para suscitar a seguinte indagação: se aconteceu, e acontece, dessa maneira nos casos estudados, como tais programas estarão operando nos demais casos? É interessante observar que a pesquisa referente à “Avaliação Preliminar do Programa Cédula da Terra”, realizada na época pelo NEAD/UNICAMP, teve uma amostra mais abrangente e, embora tenha tido outro objetivo e metodologia, em muitos aspectos conflui na mesma direção, confirmando vários resultados.3 Antes de apresentar estes resultados é interessante situar o contexto intitucional em que foram implantados os dois programas, recuperando o seu desenvolvimento e destacando e alguns aspectos da situação atual.

1. Implantação e estrutura do Projeto Cédula da Terra no estado da Bahia

A implantação do PCT na Bahia ocorreu na esteira de outros programas do Banco Mundial voltados para a área rural no Nordeste brasileiro. Em especial, de acordo com informações de diversos técnicos do estado envolvidos na implanta- ção do PCT, devido às experiências “bem sucedidas” no Ceará. O Banco Mundial (BIRD) deu início, naquele estado, a uma experiência-piloto com o Projeto São José, expandindo-o, posteriormente, ainda como projeto-piloto, para outros esta- dos nordestinos, com a denominação de Projeto Cédula da Terra. As primeiras notícias sobre o projeto apareceram, em nível nacional, em ja- neiro de 1997. A cobertura na imprensa destacava que o novo programa iria “municipalizar” a reforma agrária. Na Bahia, o PCT foi lançado em novembro de 1997, no município de Esplanada, Litoral Norte, com a presença do então Mi- nistro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann. Na ocasião, implantou-se o assentamento do PCT chamado Antônio Conselheiro. No plano nacional, existia uma estrutura mínima que financiava, acompanhava e controlava o PCT, com a participação articulada do BIRD, do governo federal e dos bancos públicos. Completando-a, em cada estado havia uma estrutura local que dava continuidade às mesmas funções de repasse de verbas, acompanhamen- to e controle. Na Bahia, esta estrutura local foi composta pela Coordenação de Ação Regional (CAR), empresa vinculada à Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia (SEPLANTEC), oficialmente responsável pelo projeto, e pela Coor- denação de Desenvolvimento Agrário (CDA4), órgão vinculado à Secretaria da Agricultura, responsável pela execução do PCT estadual. Supunha-se que a estrutura gerencial deveria ser mínima, porque o projeto operaria de modo descentralizado e orientado por mecanismos de mercado basea- dos na livre negociação entre as partes, em concordância com a crítica feita à re- forma agrária tradicional de excessiva centralização e burocratização. Partindo deste pressuposto, o governo estadual não montou uma estrutura para acompanhar o projeto, fato que só aconteceu posteriormente, quando verificou que os mecanis- mos de mercado eram insuficientes e surgiram dificuldades e denúncias. Estas diziam respeito, principalmente, à qualidade das terras adquiridas e à manipula-

230 ção de interesses e recursos de forma muito explícita. As rotinas utilizadas tinham como referência ações que já eram implementadas em projetos estaduais anterio- res. À medida que o PCT se firmava, passou a haver uma disputa pelo seu contro- le político. Para a divulgação do projeto foram (e continuam sendo) usados diversos meios, como publicação de cartilhas, distribuição de folders e cartazes. Houve também divulgação por meio de palestras realizadas em alguns locais pelos órgãos estaduais. Porém, o mecanismo mais atuante foi a comunicação informal entre os agriculto- res. Além disso, algumas lideranças comunitárias e técnicos da área rural vincula- dos a escritórios de assistência técnica, contribuíram para a divulgação do projeto. Em alguns casos, outros agentes influenciaram na formação das associações, res- pondendo a interesses diversos, como políticos locais e até mesmo alguns proprie- tários de terras interessados em vendê-las. A Pesquisa Popular constatou que 20% dos entrevistados haviam tomado conhecimento do projeto através da associação; 3,3% pelo sindicato; 13,3% por meio de parentes e 45% através de vizinhos e amigos. Esta divulgação gerou uma grande expectativa nos agricultores, até dezembro de 2001, quando terminou a fase piloto, já tinham se inscrito 609 associações para pleitear o acesso à terra. Isto representava mais de 20 mil famílias. Houve problemas operacionais para atender a esse elevado número de propostas apenas com aquela estrutura mínima montada. Na fase posterior, de implementação do Projeto Crédito Fundiário (PCF), a organização das associações passou a contar com o apoio e a atuação efetiva dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e da Federação dos Trabalhadores na Agri- cultura (FETAG) e, depois, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Fami- liar (FETRAF). O processo formalmente instituído pelo PCT iniciava-se com a constituição de uma associação de pessoas interessadas em adquirir terra. Como muitas não possuíam experiência associativista, contavam com um modelo padronizado de associação, inclusive de estatuto. Em seguida, identificava-se a área para a compra e o proprietário fornecia uma carta de compromisso de venda. Assim, entrava-se com a solicitação na CDA para análise jurídica da documentação. Em princípio, o tamanho da área não era um fator restritivo para a seleção das propriedades. No entanto, como decorrência da vinda do Painel de Inspeção do Banco Mundial, no ano 2000, para averiguar denúncias de irregularidades, pas- sou a haver uma definição de limite máximo de área em 15 módulos fiscais5. Isto atendia à demanda dos movimentos sociais sobre o caráter de complementaridade

231 ao programa de reforma agrária, posto que as áreas passíveis de desapropriação não poderiam mais ser adquiridas pelo PCT. Ainda quanto ao aspecto jurídico, seria analisada a documentação referente à área pretendida, exigindo-se a apresentação da certidão vintenária, isto é, a com- provação de origem da propriedade. Esta exigência tornou-se outro critério da eliminação de vários processos, principalmente na região oeste do estado, demons- trando a ilegalidade na aquisição de muitas delas. Após o atendimento das exigências jurídicas, era realizada a vistoria da área pretendida para a avaliação das condições agronômicas (viabilidade técnica) e do preço da terra. No momento da implantação do PCT, devido à falta de estrutura da CAR para acompanhar a execução, e mesmo pelas próprias dificuldades da CDA para montar sua equipe de trabalho, o parecer técnico era emitido por profissionais não diretamente vinculados ao projeto, sendo que muitos foram elaborados por técnicos da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA) ou da Comis- são Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC). Isto permitiu que ocor- ressem casos com desdobramentos trágicos, como a aquisição de áreas impróprias e a interferência de técnicos na definição de áreas. A superficialidade e a pouca confiabilidade de alguns laudos trouxeram muitas dificuldades na implementação dos projetos, demonstrando que a qualidade dos mesmos era uma peça funda- mental para o seu sucesso. As questões relatadas levaram a CDA a assumir as vistorias e a CAR a acompanhar e vistoriar todas as áreas indicadas, como uma maneira de referendar a indicação. Isto significou, para o Estado, uma duplicação de funções e, portanto, de custos. Atual- mente, este procedimento não vem sendo mais adotado, sendo a responsabilidade da vistoria técnica atribuída somente à CDA, cabendo à CAR a assinatura do parecer final que antecede o envio do Subprojeto de Aquisição de Terras (SAT) ao banco. Atualmente, o SAT vem sendo elaborado pelo técnico indicado pela associa- ção e credenciado pela CDA, após avaliação jurídica e vistoria da área e aprovação pelo Comitê de Avaliação (CAT), composto pela CAR e pela CDA. Também é necessária a aprovação do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural ou do Conselho do FUMAC (Fundo Municipal de Apoio Comunitário) do município, além do aval do Sindicato de Trabalhadores Rurais. Estas entidades observam a conveniência da aquisição da área a partir da qualidade, localização e infra-estru- tura disponível, avaliando a adequação do preço pretendido. O SAT é então submetido ao Conselho Estadual de Desenvolvimento Regio- nal Sustentável (CEDRS), do qual participam Secretaria da Agricultura e a deno-

232 minada “rede de apoio” composta pela FETAG, FETRAF e pelo Movimento de Organização Comunitária (MOC). Essas entidades participam e monitoram o cadastramento das famílias no PCT. Isso demonstra que o projeto vem operando com uma maior intervenção institucional, e não apenas pela simples atuação das forças de mercado. Se algumas das propostas apresentadas no início não foram adiante por apre- sentarem problemas jurídicos e técnicos, outras passaram ao largo do rigor destas vistorias e constituem, hoje, problemas para o estado e prejuízo para as famílias adquirentes. Devido às características do PCT, o dono da terra está isento de qual- quer sanção, haja vista que a negociação foi realizada dentro de um processo de compra e venda que pressupõe a liberdade de ambas as partes para este ato. Um dos principais problemas em relação ao comprometimento de áreas ad- quiridas diz respeito às questões ambientais, em especial à implantação de proje- tos em áreas com grande proporção de Mata Atlântica e em Áreas de Preservação Permanente (APP) com sérias limitações para o uso produtivo. Como se pode observar na Figura 1, que indica a localização dos PCT/PCF, existe uma concen- tração espacial na faixa litorânea, onde predominam remanescentes desse ecossistema. Apesar das conhecidas limitações, muitas são as áreas que foram adquiridas e, hoje, encontram-se com a produção comprometida, como é o caso de Nova Es- perança, no município do Prado. Neste projeto a área adquirida foi de 978 hecta- res, dos quais 435 hectares são de Mata Atlântica. Com a área destinada à produ- ção comprometida, a “esperança” ficou restrita ao nome da associação. Na Fazenda Buris, da Associação Comunitária Sem-Terra Entre Rios, no município de Entre Rios, foi adquirida uma área de 800 hectares, mas apenas pode ser utilizada 10% da área total. Casos semelhantes de restrições são registrados em Novo Paraíso (município de Alagoinhas), Timbó e Altamira do Conde (município do Conde), Irmãos Unidos (município de Canavieiras) e outros mais. Após a vistoria da CDA e comprovação da CAR, é elaborado o Subprojeto de Aquisição de Terra (SAT) a partir do qual é analisada a relação econômica das cultu- ras, capacidade de pagamento e custo por família. Em seguida o processo é encami- nhado ao Banco do Nordeste que, após levantamento cadastral, libera os recursos para o proprietário. A associação assume a propriedade com o aval dos sócios. É elaborado o Subprojeto de Investimentos Comunitário (SIC) e começa a contagem regressiva de um processo no qual os assentados assumem o papel de “beneficiários”. O estado vem tentando resolver questões como a aquisição de áreas imprópri- as e assumindo sua responsabilidade, buscando, inclusive, adquirir outra área,

233 solução esta que, na maioria dos casos, ainda continua como intenção. Ao assu- mir sua responsabilidade e buscar meios de sanar os problemas, isto acarreta, como conseqüência, custos que não são repassados para os responsáveis envolvidos no processo de negociação – em especial, os donos da terra, técnicos e profissionais –, mas sim para toda a sociedade, principalmente os beneficiários, os mas prejudica- dos, que acreditaram em um projeto legitimado pelo Estado.

2. A localização geográfica dos projetos

A distribuição espacial dos assentamentos implantados na Bahia pelos proje- tos denominados reforma agrária de mercado do Banco Mundial pode ser visualizada na figura 1. Nesta está registrada a localização dos 111 projetos do PCT, implantados entre 1997 e 2002, e os 88 projetos do PCF, implantados entre 2002 e 2005, totalizando 199 projetos, em um período de 8 anos.6 A estratégia de localização dos projetos de compra de terras segue uma lógica e se insere em um processo distinto da estratégia de localização dos assentamentos de reforma agrária. Estes surgem a partir da pressão dos movimentos sociais, sen- do antecedidos por conflitos e ocupações. Na grande maioria dos casos, são cons- tituídos onde a valorização e a pressão sobre a terra são mais intensas, concentran- do-se em determinadas regiões que acabam conformando algo próximo a “áreas reformadas”. Já a estratégia de localização do PCT/CF obedece, principalmente, às forças locais do “mercado” de terras, resultando numa distribuição dispersa de assentamentos, com exceção de alguns casos em que as oportunidades locais leva- ram à concentração, como ocorreu no Litoral Norte, com a saída das companhias reflorestadoras, e no Litoral Sul, com a crise cacaueira, que favoreceram o cresci- mento da oferta de terras. Com tal estratégia de localização dispersa – não importa se implantada de forma planejada ou espontânea –, crescem as dificuldades de produção e venda dos as- sentamentos PCT/PCF. Mesmo nos casos em que os projetos estão localizados próximos a rodovias ou centros urbanos, carecem de todo tipo de assistência. As dificuldades crescem ainda mais quando ocorre o isolamento das áreas. A tabela 1 mostra os PCT implantados segundo as regiões econômicas da Bahia, o número de famílias envolvidas e a área adquirida. Estes dados podem ser me- lhor analisados na figura 2, que indica o número de PCT/PCF e também o de acampamentos e assentamentos de reforma agrária por região econômica.

234 Figura 1 Estado da Bahia Programas Cédula da Terra e Crédito Fundiário por região econômica 2005

235 Tabela 1 – Bahia. Projetos Cédula da Terra por Região Econômica, 1997-2002 Região Econômica Projeto Nº Famílias Área Total (ha) Baixo Médio São Francisco 0 0 0,00 Chapada 6 309 7.250,10 Extremo Sul 17 846 9.548,80 Irecê 5 160 4.401,50 Litoral Norte 12 463 11.441,00 Litoral Sul 10 277 3.107,90 Médio São Francisco 9 290 7.878,00 Metropolitana SSA 0 0 0,00 Nordeste 12 468 9.600,90 Oeste 12 468 12.187,70 Paraguaçu 6 180 3.211,10 Piemonte da Chapada 8 271 6.384,60 Recôncavo 2 65 1.234,10 Serra Geral 5 200 4.896,00 Sudoeste 7 266 3.115,80 TOTAL 111 4263 84.257,50 Fonte: BNB/MDACAR Elaboração: Projeto GeografAR, 2006.

Os PCTs na Bahia foram implantados em maior número na região do Extre- mo Sul, com 17 assentamentos, tendo sido “beneficiadas” 846 famílias com uma área total de 9.548,80 hectares. Em termos de superfície, as maiores áreas foram destinadas na região Oeste, com 12.187,70 hectares, distribuídos em 12 projetos envolvendo 468 famílias. Foram comercializados 11.441,00 hectares no Litoral Norte, também em 12 projetos, com 463 famílias envolvidas no processo e, na região Nordeste, 9.600 ha, distribuídos em 12 projetos, com 468 famílias. As demais regiões participantes do processo negociaram áreas menores e, conseqüen- temente, apresentam um número reduzido de projetos e famílias. O desenho dos PCTs na Bahia revela arranjos espaciais que refletem a respos- ta a fatores externos e internos relacionados aos encaminhamentos necessários para a solicitação do crédito. No primeiro caso – Extremo Sul –, a região é “área de domínio” do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). A implementação do PCT nessa região atende a dois objetivos: de um lado, fazer frente a este Movimento; de outro, aproveitar o clima favorável de expectativa gerada nos trabalhadores sem-terra que não se alistam nas fileiras do MST, mas que ficam na “expectativa” ao verem seus iguais conseguindo terra. Aliado à extre- ma pobreza e à presença de uma grande massa de trabalhadores rurais excluídos – principalmente como resultado da crise cacaueira, que também gerou a oferta de terras –, este é o contexto que favoreceu a implantação do Projeto. Soma-se a isto o fato de o MST, apoiado pelos trabalhadores rurais, ter conse- guido eleger o prefeito do município de Itamarajú. Esta conjuntura gerou maior

236 expectativa de embate daqueles políticos que anteriormente não levavam em con- sideração o imenso contingente de trabalhadores prontos a ocupar terras e, inclu- sive, com potencial para eleger forças políticas alinhadas com seus interesses. Este seria um motivo plausível para uma maior atenção dada aos PCTs como instru- mento para angariar o voto dos novos assentados. No caso do Litoral Norte, outros fatores promoveram a concentração de pro- jetos, como a disponibilidade de terras advindas do abandono das áreas de reflo- restamento pelos antigos proprietários. Somou-se a isto, a ação da Central das As- sociações do Litoral Norte (CEALNOR), criada em 1997, cuja finalidade era fortalecer a organização comunitária para melhorar aspectos como comercialização, infra-estrutura e acesso à terra e à assistência técnica. A CEALNOR teve um pa- pel fundamental para articular os “beneficiários” nas negociações no mercado de terras geradas pelo PCT. Assim, ao lado de uma oferta de terras, havia não só uma demanda, mas uma demanda organizada. Devido a essas condições especialmen- te favoráveis, os primeiros assentamentos do PCT na Bahia foram criados no Li- toral Norte, atingindo o total de 12 áreas adquiridas.

Tabela 2 - Estado da Bahia. Projetos Crédito Fundiário por Região Econômica, 2002-2005 Região Econômica Projeto Nº Famílias Área Total (ha) Baixo Médio São Francisco 13 445 4.058,00 Chapada 1 35 752,00 Extremo Sul 0 0 0,00 Irecê 17 579 10.847,60 Litoral Norte 3 74 1.275,00 Litoral Sul 2 44 418,00 Médio São Francisco 7 231 6.395,10 Metropolitana SSA 0 0 0,00 Nordeste 11 343 7.436,76 Oeste 15 598 14.539,70 Paraguaçu 1 25 418,20 Piemonte da Chapada 7 250 5.483,72 Recôncavo 1 35 366,00 Serra Geral 2 70 1.707,00 Sudoeste 8 270 3.605,70 TOTAL 88 2999 57.302,78 Fonte: BNB/MDA/CAR ( dados dezembro/2005) Elaboração: Projeto GeografAR, 2006.

Onde o agronegócio era bastante desenvolvido, como nas regiões irrigadas do Baixo Médio São Francisco e na agricultura capitalizada de Irecê, não foi observa- do um elevado número de projetos do PCT. Esta situação se modificou depois, com a implantaçäo do Crédito Fundiário. Também não se observa muitos projetos em regiões com estrutura agrária frag- mentada e de elevado custo de terra, como o Recôncavo e na Região Metropolita-

237 na de Salvador. Isto está de acordo com limites orçamentários estabelecidos para a aquisição de terras. No total, o PCT “beneficiou” 4.263 famílias, em 111 projetos que abrangem uma área de 84.257,50 hectares, durante seus cinco anos de vigência na Bahia. No período seguinte (2002 a 2005), a continuidade se deu através do Projeto de Crédito Fundiário (PCF), cuja atuação pode ser visualizada na tabela 2, complementada com as figuras 1 e 2. No total, este projeto “beneficiou” 2.999 famílias em 88 projetos, numa área total de 57.302,78 hectares Nesta nova etapa da reforma agrária de mercado, obteve-se outro desenho re- gional quanto à distribuição dos projetos. Os PCFs concentraram-se, especialmen- te, na região de Irecê, região que apresentava apenas 5 PCTs e passou a ter 17 PCFs. Isto aumentou o número de famílias envolvidas de 160 para 579 famílias, numa área de 10.847,60 hectares. A região Oeste também se destaca com um número elevado de 15 áreas adquiridas, com 589 famílias beneficiadas com 14.539,70 hectares7. Continua em destaque a região Nordeste, com mais 11 pro- jetos implantados em 7.436,76 hectares, envolvendo 343 famílias. A região Ex- tremo Sul, pioneira e com destaque no período anterior, não participou das ações desta fase, bem como a região Metropolitana de Salvador. Chama atenção a alteração na distribuição espacial dos projetos implantados neste período, observando-se um aumento significativo de áreas adquiridas nas regiões de grande incidência da agricultura capitalizada, em especial de áreas irrigadas e de culturas voltadas para o agronegócio, a exemplo das regiões de Irecê e do Baixo Médio São Francisco, além da região Oeste. Contudo, isto não significa que as terras ocu- padas pelo PCF sejam aquelas mais aptas para a agricultura moderna. Ao mesmo tempo, existe grande dispersão dos projetos, de acordo com a es- tratégia seguida pelas associações e orientada pelas entidades de apoio de procurar terras próximas ao local anterior de moradia, geralmente no próprio município ou, no máximo, no município vizinho. No Extremo-Sul, o mercado de terras aquecido pela ação das empresas de silvicultura, em especial da VERACEL, tornou o preço da terra proibitivo. O mesmo ocorreu no Litoral Norte, com a valorização da celulose e da produ- ção do carvão, que fez com que empresas – em especial a FERBASA e COOPENER, antes ofertantes de terras para o PCT e o PCF – voltassem a se interessar pela silvicultura e oferecessem o plantio de eucalipto nas áreas ad- quiridas pelo PCT. No Litoral Sul, a recuperação da lavoura cacaueira tam- bém tem diminuído a oferta mercantil de terras, cujo preço elevado não per- mite a aquisição pelo PCF.

238 Tanto no PCT quanto no PCF, os recursos disponibilizados para a negociação são escassos, levando à aquisição de propriedades de menor qualidade e em localização pouco favorável. Com isso, a maior parte das terras tende a não ter grande potencial econômico e nem cumprir com um dos pressupostos do PCF: a aquisição de terras produtivas com infra-estrutura e localização adequada.

Figura 2 - Estado da Bahia. Acampamentos, projetosde Reforma Agrária, Cédula da Terra e Crédito Fundiário por região econômica - 2005

239 Em um modelo de concorrência perfeita, pressupõe-se que oferta e demanda ten- dem a buscar um preço de equilíbrio. No entanto, no caso em questão, os comprado- res não têm informações por não realizarem uma ampla pesquisa de mercado, ou a mesma se limita às localidades vizinhas e, muitas vezes, à própria fazenda em que tra- balhavam. A negociação que se espera de um programa de crédito fundiário não en- volveria as forças de mercado, mas sim ocorreria num contexto de apoio governamen- tal para a geração de oportunidades para os agricultores familiares carentes. O que se constata, muitas vezes, é a aquisição de terras induzida pela oferta, pouco viável à pro- dução agrícola e, conseqüentemente, ao pagamento da terra, o que compromete a própria continuidade do Programa Nacional de Crédito Fundiário.

3. O ritmo da implantação dos projetos

Desde o início, a reforma agrária de mercado do Banco Mundial vem sendo apresentada como uma política complementar à reforma agrária realizada por desapropriação. Inclusive, foi incorporada no modelo de política agrária proposto no documento “Novo Mundo Rural”, enquanto caminho para a “paz no campo”. Para perceber como se efetiva esta “complementaridade” na Bahia, é interessante observar o ritmo de implantação das duas políticas agrárias (tabela 3 e figura 3). A visualização da representação gráfica permite observar a instabilidade quanto ao número de projetos implantados no decorrer da atuação destes programas. A tendência de crescimento observada no período de 1999 a 2003 não se manteve, tendo decrescido e voltando a crescer em 2004, contudo não o suficiente para aten- der às metas estabelecidas pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA).

Figura 3 - Projetos de Reforma Agrária, Cédula da Terra e Crédito Fundiário na Bahia 1984-2005

Fonte: INCRA e CAR (dados dezembro/2005) Elaboração: Projeto Gráfico AR, 2006

Convém lembrar que a implantação dos programas de reforma agrária ocorre num contexto em que existe uma demanda explícita por terra, expressa, hoje, nos

240 272 acampamentos de trabalhadores sem-terra, com 19.616 famílias, distribuí- das nas diversas regiões do estado. Nos 20 anos de reforma agrária, foram implantados 422 assentamentos no estado, reunindo 37.023 famílias e alcançando uma área total de 1.262.054,03 hectares reformados. Já o número de projetos implantados pela política do Banco Mundial, nestes últimos oito anos, soma 199 áreas adquiri- das, com 7.284 famílias associadas e 141.641,78 hectares negociados. Obser- va-se que, a partir da pressão dos movimentos sociais, houve o crescimento do ritmo dos projetos de reforma agrária e o início da implantação dos proje- tos de crédito fundiário.

Tabela 3 - Cédula da Terra e Crédito Fundiário na Bahia, 1984-2005 Projetos de Reforma Agrária Ano PRA´s PCT´s + PCF´s 1984 1 1986 8 1987 26 1988 2 1989 1 - 1990 3 - 1992 8 - 1993 1 - 1995 16 - 1996 23 - 1997 41 4 1998 60 38 1999 14 9 2000 39 20 2001 17 23 2002 27 38 2003 22 21 2004 67 16 2005 46 30 Total 422 199 Fonte: INCRA e BNB/MDA/CAR (dados dezembro/2005) Elaboração: Projeto GeografAR, 2006.

Constata-se um ritmo bastante semelhante na implantação dos dois progra- mas: enquanto a reforma agrária alcançou uma média de 21 projetos por ano, os programas PCT/PCF alcançaram uma média de 24 projetos por ano. Permane- cendo este ritmo (figura 2), percebe-se que a “reforma agrária de mercado” não é, como se preconiza, um programa complementar. Considerando-se a demanda explícita por terra, refletida nos acampamentos espalhados em todo estado, fica demonstrada a necessidade mais que significativa de se incrementar o acesso à terra através da reforma agrária.

241 Contudo, nos últimos anos, o ritmo de aquisição de terras via PCF tem sofri- do retração, devido principalmente a travas burocráticas, indicando que o mesmo não está tendo o mesmo nível de prioridade política, em nível estadual, que se observou no início do Projeto. Esta afirmação se fundamenta no ritmo diferenciado do assentamento de famílias observado entre os estados. Como a demanda fundiária continua elevada, muitas associações devem esperar um período relativamente longo, de mais de dois anos, para ter acesso à terra. Atualmente, há 73.623 famílias cadastradas para ter acesso ao PCF. Das mes- mas, 9.202 correspondem a 294 propostas na Bahia, estado que apresenta o maior número de famílias cadastradas. Contudo, até maio de 2006, enquanto no Maranhão 461 tiveram acesso ao Crédito Fundiário e 760 no Piauí, na Bahia ape- nas 85 famílias foram contratadas através de 3 projetos. Isto apesar de a Bahia ser o estado que conta este ano com mais recursos disponíveis para o Projeto.

4. Tendências recentes na gestão do crédito fundiário: da repactuação à regularização

No decorrer deste artigo foram apresentadas informações gerais sobre a im- plantação dos Projetos Cédula da Terra e de Crédito Fundiário na Bahia, cabendo aqui destacar modificações mais recentes sobre a sua operacionalização. Em pri- meiro lugar, a grande diferença que marca a passagem de um projeto a outro é o apoio recebido da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Com isto, pressupunha-se superada uma das principais críticas e fragilidades, que diz respeito à organização dos demandantes de terra. Assim, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAG), na escala estadual, e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, na escala municipal, passaram a arregimentar e organizar os demandantes de terra, participando ativamente da escolha das áreas e da implantação dos projetos. A novidade neste aspecto é que, se antes a FETAG atuava praticamente sozi- nha, desde 2004 conta com a participação da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF). Esta inserção é recente, pelo que ainda não per- mite uma avaliação de resultados, mas seguramente merece ser acompanhada, pois vai significar a adesão de um segmento organizado e politizado de trabalhadores. No entanto, a maior preocupação, de acordo com depoimentos de técnicos e dirigentes, consiste em viabilizar o pagamento das terras. Ainda eles, alguns agri- cultores conseguirão pagar com relativa tranqüilidade, mas muitos outros não, o

242 que justificou o esforço legal para não torná-los automaticamente inadimplentes. Esta avaliação esteve na base do que foi denominado de “repactuação”, que con- sistiu na alteração de cláusulas do contrato original. Houve a dilatação do prazo de pagamento de 10 para 20 anos e um novo cálculo para o pagamento das pres- tações, não só adequando-as ao novo prazo, mas estabelecendo prestações escalonadas, com valor praticamente simbólico, para os três primeiros anos. As prestações tornam-se mais elevadas a partir do quarto ano, de acordo com o retor- no econômico esperado do projeto. Entretanto, mesmo com todo o esforço da “operação de repactuação”, além da ocorrência de não pagamentos, há um grande número de desistências, repasses ou simples abandono dos lotes nos assentamentos. Isto gera, sem dúvida, uma situação de irregularidade, em especial frente ao compromisso assumido pelo ti- tular do lote com a associação e o banco financiador. No “Relatório Preliminar dos Impactos Socioeconômicos e Socioambientais do Programa Cédula da Terra” (COSTA et al., 2002), já se constatava uma elevada rotatividade dos “beneficiários”. A proporção de desistências dos titulares, nos 26 projetos do PCT analisados para a pesquisa na Bahia em 2001, ficou em média em 36%, com um mínimo de 10% e máximo de 80%. Em certos casos, as famílias não chegaram sequer a se instalar na área ou desis- tiram logo no início, devido à demora em concluir o processo de aquisição da terra. Segundo o referido relatório, a escassa consolidação das associações e certa precipitação na escolha dos beneficiários contribuem para explicar muitas destas desistências. Em alguns casos, houve dificuldades para iniciar o projeto, pois as fazendas adquiridas, de modo geral, estavam abandonadas ou exigiam a prepara- ção de áreas para a lavoura que nunca tinham sido utilizadas antes para agricultu- ra. Isso exigiu grande esforço e um longo período de trabalho para obter resulta- dos, contrariando a hipótese de que através do Crédito Fundiário, de modo diferente ao que ocorre na reforma agrária via desapropriação, seriam adquiridas terras produtivas, com infra-estrutura, permitindo retorno rápido para os agricul- tores e viabilizando o pagamento da terra. Outro motivo freqüente de desentendimento e saída de sócios está relaciona- do à gestão dos recursos. Vários membros das diretorias das associações abando- naram os projetos ou foram expulsos por irregularidades na prestação de contas. A alta freqüência com que ocorreram estes problemas talvez seja o indicador mais evidente da fragilidade organizacional dessas associações. Com o intuito de fazer frente a esta situação, o MDA começou a implementar um “subprograma de regularização fundiária e revitalização nos assentamentos”,

243 realizando um balanço da situação, legalizando os contratos com os novos adquirentes, em especial as questões cartoriais, buscando interessados para ocu- par os lotes vazios e assumir o compromisso pela dívida contraída. Esperava-se que a operação fosse realizada em todos os assentamentos, mas o apoio limitado do MDA, por enquanto, não tem permitido ampliar esta intervenção. No entan- to, os órgãos estaduais responsáveis pelo Projeto assumiram, em caráter piloto, a regularização fundiária dos projetos na região do Extremo Sul do estado. Cabe observar que, nesta região, só foram implantados projetos do Cédula da Terra, isto é, ainda sem o apoio das federações sindicais. Em alguns aspectos, a experiência do corpo técnico das instituições envolvi- das tem permitido ações particulares do PCF na Bahia. Um destes aspectos diz respeito à resistência à aceitação de pessoas solteiras, uma vez que há outra linha de crédito (“Nossa Primeira Terra”) destinada aos jovens. Outro diz respeito à re- sidência no local. Enquanto o MDA não faz exigência para que o assentado resida no assentamento, a orientação e exigência da CAR/CDA são da obrigatoriedade dessa residência. Defende-se esse critério para propiciar um direcionamento às atividades agrícolas e um maior envolvimento dos agricultores com seus compa- nheiros na associação. Na Bahia houve forte intervenção dos órgãos estaduais na seleção das associa- ções beneficiárias. Conforme o Relatório de Avaliação Preliminar: “em Minas Gerais e na Bahia, por exemplo, os órgãos responsáveis parecem ter optado por um maior grau de interferência no processo de seleção, arbitrando, quando ne- cessário, em favor das famílias mais pobres e necessitadas” (BUAINAIN et al. 2000: p.11). No entanto, na medida em que o Projeto não é capaz de modificar o estado de pobreza destas famílias, os ditos beneficiários reconhecem uma situação onde “a única coisa que se tem é a casa e a dívida no banco”. Continuam pobres e com uma dívida impagável no banco.

5. Pesquisas e estudos na Bahia

Segundo a metodologia que orientou a pesquisa “Política do Banco Mundial para o meio rural com base no Projeto Cédula da Terra”,8 foram selecionados três projetos do PCT para receber o tratamento de estudo de caso: a) o projeto Anto- nio Conselheiro, localizado no município de Esplanada, na Região Litoral Norte, implantado em novembro de 1997, foi o primeiro assentamento deste Programa no estado da Bahia; b) o assentamento São Geraldo, no município de Itanhém,

244 na Região Extremo Sul, implantado em outubro de 1998; c) o assentamento Vale do Paraguaçu, no município de Boa Vista do Tupim, na Região do Paraguaçu, implantado em janeiro de 1999. Tanto a seleção das áreas, como a dos sócios ou “beneficiários” entrevistados, obedeceu a uma metodologia previamente estabelecida, procedimento necessário para que os resultados de cada estado pudessem ser comparados. A pesquisa de campo foi complementada por entrevistas com técnicos e dirigentes do Projeto no estado. Isto permitiu entender mais profundamente os mecanismos de implan- tação do PCT na Bahia e os casos selecionados. Nestes foi possível recompor todo o processo de aquisição da terra, a origem dos beneficiários, sua organização para adquirir, trabalhar e viver na terra e, finalmente, suas perspectivas. Os resultados desta pesquisa foram apresentados no seminário “Questão da Terra na Bahia” (Germani & Carvalho, 2001). Destes, foram selecionados alguns aspectos gerais que permitem visualizar tanto os mecanismos como as limitações do Projeto. Convém observar que estes dados são registros de um momento pre- térito, não sendo considerados neste relato a atualização das informações nem o seu desdobramento ou superação. Também tomou-se como subsídio a pesquisa “Avaliação Preliminar do Pro- grama Cédula da Terra”, realizada na Bahia pela Escola de Agronomia da UFBA em 2001. Nesta, foram entrevistados beneficiários de 26 projetos em cinco re- giões: Litoral Norte (município de Esplanada), Sul e Extremo Sul (Canavieiras, Jussarí, Guaratinga, Potiraguá, Itanhém, Itamarajú e Prado), Chapada Diamantina (Bonito e Piatá), Sudoeste (Poções), bem como projetos localizados em várias re- giões com predomínio do semi-árido (Euclides da Cunha, Senhor do Bonfim, Bom Jesus da Lapa, Mairi, Tucano e Sebastião Laranjeiras). A realidade dos projetos foi comparada com assentamentos de reforma agrária e com áreas de agricultura fa- miliar. Somam-se a estes casos os projetos visitados para realização da “Pesquisa Popu- lar no Meio Rural sobre o Programa Crédito Fundiário”, promovida em 2005 pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos em todos os estados de atuação da “re- forma agrária de mercado”. Na Bahia, foram visitados seis projetos, três do PCT e três do PCF, onde foram entrevistadas 60 pessoas.9 Participar deste estudo permitiu constatar a permanência e/ou alteração de certas características identificadas nas pesquisas anteriores. Os resultados deste estudo, ainda inéditos, dão uma ordem de grandeza de algumas questões abordadas (Germani & Freitas, 2006). As informações obtidas permitem pontuar algumas questões gerais que desve- lam o desenvolvimento da política do Banco Mundial na Bahia. Embora algumas

245 delas possam já ter sido superadas, outras permanecem e se repetem nos novos projetos. As principais serão descritas a seguir.

5.1. Relação entre tamanho da área, número de sócios e montante de recursos A relação entre o tamanho da área, o número de sócios e o montante de recursos disponível por família interfere tanto nas estratégias e nas condições que os pretensos compradores terão para enfrentar o mercado, como nas condições posteriores para fazer frente aos compromissos assumidos com o sistema financeiro. Neste aspecto, observou-se que, em muitos casos, aumenta-se o número de famílias nas associações para se atingir o teto financeiro que possibilite a im- plantação de projetos com recursos não reembolsáveis (SIC). Isto traz uma série de conseqüências: (a) se todos os inscritos permanecerem no projeto, a área por família se torna pequena, comprometendo o nível da produção e materializan- do a “minifundização programada” realizada pelo próprio Estado; (b) quando nem todos os inscritos passam a ocupar os lotes, aumenta o ônus por família, pois as mesmas têm que assumir as parcelas correspondentes àquelas abandona- das; (c) em alguns casos, observa-se que, mesmo tendo assumido uma dívida maior, os agricultores que restaram rejeitam a entrada de outras famílias para ocuparem os lotes abandonados, possivelmente para ficar com uma área maior. Isto nega a concepção do Projeto de atender o maior número de famílias possí- vel, desde que possam pagar e ser eficientes. As famílias que entram em substi- tuição a outras são prejudicadas no acesso aos recursos do SIC (investimentos socioprodutivos), calculado com base no número inicial de adquirentes, levan- do a uma destinação desigual dos recursos que privilegia algumas famílias, em detrimento de outras. No caso de PCT São Geraldo, por exemplo, inicialmente havia 130 inscritos, mas, segundo depoimentos, nunca houve este número de beneficiários. O maior número de famílias foi 96, sendo que, pela demora da chegada dos recursos, 41 delas desistiram. Quando da realização da pesquisa havia 55 famílias e, segundo informações posteriores, outras seis saíram. A indicação técnica recomendava um número de 70 beneficiários. Outros casos ocorreram de forma semelhante, como no PCT Antônio Con- selheiro, onde dos 66 “beneficiários” que participaram inicialmente, 18 desisti- ram. No Vale do Paraguaçu havia 35 famílias, das quais 7 desistiram. No PCT Marcação (Ribeira do Pombal) houve uma evasão quase total das primeiras famí- lias. Nos 26 casos estudados por Costa et al. (2002), verificou-se um percentual mínimo de 10% e um máximo de 80% de desistência nas áreas do PCT.

246 Em quase todos os casos, as áreas individuais sempre são de tamanho inferior ao módulo rural, ao fiscal e mesmo à fração mínima da propriedade. O referido relatório verificou que o número de módulo/família variou entre 0,18 a 1,04, com uma média de 0,51 e coeficiente de variação de 52,94%, indicando grande varia- bilidade e insuficiência na área destinada a cada família (Costa et al. 2002). Con- siderando que o conceito de módulo fiscal procura levar em conta a capacidade de reprodução social da propriedade familiar, o próprio Estado desrespeita suas regras e contribui para a minifundização. A maior relação módulo/família está no Litoral Norte, onde a média se apro- xima de 1,0. Possivelmente isto decorre do fato de que tais áreas tenham sido ofertadas em grande quantidade pelas empresas de reflorestamento, e também porque estão entre as primeiras áreas adquiridas pelo Projeto na Bahia.

5.2. Formação das associações e participação dos trabalhadores. A formação da associação é um requisito obrigatório para a implementação do PCT. Tanto a formação das associações como seu funcionamento estão direta- mente vinculadas à origem, ao perfil e à experiência organizativa de seus integran- tes, o que reflete no processo desenvolvido nas áreas adquiridas. É interessante apresentar o que foi visto sobre este tema. A associação do PCT Antônio Conselheiro se distingue pois a grande maioria dos hoje “beneficiários” já pertencia a uma associação em seu local de origem (La- goa Seca, no município de Rio Real). Essa associação estava vinculada à Central de Associações do Litoral Norte (CEALNOR), não sendo, portanto, uma associa- ção isolada, mas articulada regionalmente. No entanto, a associação formada com o intuito de adquirir terras pelo PCT tem outro caráter e outro nível de responsa- bilidade. Não deve se preocupar apenas em congregar e organizar, mas também em administrar e controlar os recursos que recebe, prestando contas aos beneficiários e às instituições financeiras. No caso do PCT São Geraldo, apesar de a maioria dos sócios vir da mesma região, essas pessoas não se conheciam, o que dificultou, no geral, a sociabilidade na área adquirida. Os associados selecionados foram, em sua grande maioria, in- dicados por políticos regionais, e nem todos têm o perfil exigido pelo Programa. A formação da associação – requisito fundamental para “entrar no Cédula” – deu- se, posteriormente à compra do imóvel. Como se não bastasse, a primeira direto- ria já estava definida. Segundo depoimentos: “O primeiro presidente não foi elei- to, ele já foi associado como presidente (…). Assim que a gente soube que a terra havia sido comprada e a Associação criada, já chegou presidente, já chegou tesou-

247 reiro (...) tudo pronto”. Laços de identidade coletiva se constroem com convivên- cia, trabalho e luta por objetivos comuns, nascidos de necessidades internas ao grupo, e não, como ocorreu ali, impostos de fora para dentro. Numa associação formada desta maneira era de se esperar que sua atuação tampouco seria demo- crática. A solicitação dos recursos não passou por uma discussão entre os sócios, muito menos as definições quanto à sua aplicação. O afastamento do presidente, após um ano de mandato e de declarada situa- ção de desvio de recursos, não implicou, contudo, uma abertura de inquérito ou sindicância para responsabilizá-lo. A nova associação eleita – e, portanto, todos os sócios –, além de assumir o desvio dos recursos, “herdou” uma dívida no comér- cio local, correspondendo a uma porcentagem significativa do SIC a receber. As- sim, embora os associados tenham conseguido afastar a diretoria anterior e legiti- mado outra escolhida por eles, os mesmos teriam que enfrentar, entre outros desafios, as dívidas feitas sem o seu aval. Outro caso é o da formação da Associação do Vale do Paraguaçu que precedeu a compra da terra. Participaram desta associação moradores do município de Marcionílio de Souza, que já se conheciam, inclusive com relações de parentesco. Este fato facilitou a sociabilidade entre eles. Isto não quer dizer, porém, que a for- mação da associação não tenha sido induzida. Seu fundador foi o divulgador do PCT e atuou como corretor na compra da terra. Este, após implantar o PCT, desvinculou-se para assumir um cargo na prefeitura de Marcionílio de Souza. Segundo Costa et al.(2002), a maioria das associações beneficiárias foi criada com a finalidade exclusiva de aderir ao PCT. Chama atenção a coincidência entre o nome da associação e o nome da fazenda adquirida, além da proximidade da data criação da associação com o efetivo início do projeto. De um modo geral, o nível organizativo anterior era relativamente frágil, o que irá se refletir em dificuldades para a auto-seleção dos beneficiários e a própria gestão das associações e dos projetos. A grande maioria das associações originou-se de reu- niões de grupos interessados, sem grandes vínculos entre si e com frágil proposta associativista, em geral gerada por estímulo externo. Quanto à atuação de mediado- res que atuaram induzindo a formação de associações, observou-se a presença de políticos, proprietários de terras e lideranças religiosas (Costa et al., 2002). Dos entrevistados pela Pesquisa Popular, 58,3% afirmaram que nunca parti- ciparam de nenhum movimento ou associação, enquanto 15% disseram já ter participado. Algumas lideranças dos assentamentos do Litoral Norte já haviam participado de movimentos sociais, mas haviam rompido ou sido expulsos. Inte- ressante registrar o caso do PCT Sempre Vida, no município do Conde. Apesar

248 de fazerem parte de uma associação vinculada ao Movimento de Luta pela Terra (MLT) e reivindicarem terra pela reforma agrária, os agricultores foram encami- nhados pela CDA para aderirem ao PCT. Já na fase do Crédito Fundiário, muitas associações foram formadas por população excedente de acampamentos (que não foi assentada pela reforma agrária) e grupos originários de movimentos sociais.

5.3. O perfil dos “beneficiários” Na caracterização do perfil das famílias do PCT (Costa et al. 2002), obser- vou-se que o nível de escolaridade dos “beneficiários” do PCT na Bahia era, em geral, baixo: 34,1% eram analfabetos. Somando àquelas pessoas que apenas sa- bem ler e escrever, chega a 43,9%. Com relação à ocupação anterior, constatou-se que 84,4% dos beneficiários do PCT já se ocupavam em atividades agrícolas, so- bretudo como trabalhadores temporários. A renda anterior das famílias ligadas ao PCT era baixa, com uma média mensal de R$ 134,53 em 2001. Essa pesquisa tomou como referência assentamentos do INCRA, concluindo que, na Bahia, não há diferença significativa no perfil das famílias beneficiárias de ambos programas. Assim, embora o PCT se diga complementar à reforma agrária, ambos disputam o mesmo público.

5.4. A organização espacial, o papel do SIC e o lote coletivo O modelo de organização espacial adotado pelo PCT/PCF na Bahia divide a área adquirida em quatro: agrovila, área coletiva, lotes individuais e reserva legal. A esta divisão corresponde, também, uma estratégia da organização da produção que evidencia algumas contradições entre as atividades do lote coletivo e do indi- vidual relativas à própria natureza do lote coletivo. Nos assentamentos de reforma agrária, as atividades em lotes coletivos são entendidas como um meio de socialização econômica e política mais avançada. No caso do PCT, o lote coletivo foi sugerido como um meio para garantir o paga- mento da prestação da terra ao banco. Esta estratégia de utilização obrigatória dos recursos do SIC na área coletiva foi definida na Bahia pela coordenação estadual, diferindo do ocorrido em outros estados, o que corrobora a hipótese de forte interfe- rência dos órgãos estaduais na implantação do Projeto. Na Bahia, os agricultores receberam diárias a partir da participação nas tarefas coletivas na execução dos projetos viabilizados com recursos do SIC. Este meca- nismo ganha um contorno sui generis no sentido de que esta diária funciona como “falso salário” (faux salaire), pois não é produzida pelo próprio trabalhador, vem para ele de fora do ato da produção. Paradoxalmente, esta diária vai garantir, como

249 se fosse um verdadeiro salário, a reprodução do portador da força de trabalho e de sua família no período inicial. Na pesquisa de campo da “Avaliação do Programa Cédula da Terra” (Costa et al., 2002), constatou-se que alguns agricultores assumiam comportamento simi- lar ao de assalariados, considerando como “patrão” o órgão estadual encarregado da fiscalização do Projeto. Este “falso salário” não é pago por acaso. Na verdade, é a garantia de que o mutuário produza, no lote coletivo, não um excedente, mas todo um valor adicio- nado que deve ser destinado ao pagamento da terra. Assim, por meio deste meca- nismo engenhoso – mas arriscado para o Estado –, espera-se que o trabalhador do lote coletivo transfira todo o valor da produção para o pagamento ao banco. Se o trabalhador, mediante as circunstâncias favoráveis, produzir um valor exce- dente, poderá reunir alguma poupança, mas nada confere que esta seja uma realida- de generalizada. Ao contrário, nos três estudos de caso realizados para a pesquisa “Política do Banco Mundial para o meio rural com base no Projeto Cédula da Ter- ra”, este esquema não funcionou. A produção do lote coletivo foi um fracasso, não por falta do recurso para pagamento da diária ou de trabalho, mas por falta de orien- tação ou pelas limitações técnicas e de qualidade da terra. No PCT São Geraldo, todo o café plantado na área coletiva foi perdido. No Vale do Paraguaçu, localizado no semi-árido e às margens do rio Paraguaçu, a viabilidade econômica da área esta- va assentada no projeto de irrigação que nunca chegou. No PCT Antonio Conse- lheiro, contrariando as recomendações, os recursos do SIC foram destinados à plan- tação de maracujá no lote individual, que sofreu sérias perdas. Para os investimentos nos lotes individuais, deveriam ser mobilizados recur- sos de outras fontes, como os do Pronaf-A. Na prática, estes empréstimos demo- ram e a diária é percebida como um salário que, quando acaba – sem que se te- nham garantido as condições de reprodução –, obriga muitos a buscar. A gestão do trabalho coletivo é problemática na maioria dos projetos e os problemas se acentuaram no momento em que acabam os recursos do SIC e, conseqüentemente, o pagamento de diárias (Costa et al, 2002). Algumas áreas coletivas foram divididas em pequenas parcelas, sob a responsabilidade de cada família. Outros projetos estabeleceram a sistemática de dedicar um ou dois dias por semana para a área coletiva. Caso o “beneficiário” não compareça ao traba- lho coletivo ele leva “falta”, sendo essa situação resolvida de modo diferenciado por cada associação. É revelador que, em pelo menos dois assentamentos, os agricultores se referi- ram à área coletiva como “área do governo”, vista apenas com a finalidade de pa-

250 gar o empréstimo. Isto dá a idéia de que, além das dificuldades inerentes à organi- zação de qualquer trabalho coletivo, no caso do PCT, alguns agricultores perce- bem a área coletiva como alheia a eles. A concentração das atividades no lote co- letivo acaba conflitando com a do lote individual. Com o fracasso do primeiro e a não preparação do segundo, cria-se uma resistência a qualquer atividade coleti- va ou a uma socialização maior na área adquirida.

5.4. Assistência técnica A assistência técnica nesta estrutura tem também uma função de controle, uma vez que o técnico deve garantir a execução do projeto previsto para o SIC (cons- trução das casas, plantios ou criações na área coletiva, prestação de contas, dentre outros). Este técnico, cuja remuneração é extraída dos recursos do SIC é terceirizado e serve de nexo entre a associação e os órgãos estaduais. As fragilidades da assistência técnica podem ser analisadas sob três aspectos: o perfil da equipe, a carência e a atuação equivocada. A assistência técnica limita-se a uma equipe formada principalmente por agrônomos, pontuada por alguns téc- nicos, definidos vagamente como sendo “do social”. Um projeto de tal enverga- dura e grau de complexidade exige o desenvolvimento de propostas que busquem a viabilidade da reprodução social dos beneficiários, e não a reprodução de mode- los como aqueles implantados no Sul, onde plantaram somente pimenta e café, no Oeste (concentrado no caju e capim) e no Litoral Norte (monocultura do coco). Tomando como exemplo o PCT São Geraldo, pode-se imaginar o ônus que significou para esta comunidade não só a ausência de um técnico, mas, antes, sua atuação. Teve início com o próprio parecer agronômico que deu sustentação ao processo de aquisição da área, que é questionado pelos “beneficiários”.10 Conti- nuou com a plantação de mamão e de maracujá – que os visitantes do Painel do Banco Mundial viram e avaliaram como positiva –, que nem chegou a ser colhi- da. A primeira morreu infestada por podridão de raiz e a segunda por ácaro bran- co e mosaico. Por fim, foram erradicadas. Como se não bastasse, tiveram orienta- ção para plantar 18 mil mudas de café em terreno impróprio. Segundo depoimento de um agricultor, “foi plantado num lajedo e o café chochou”. Outros depoimentos revelam que o técnico se dedicava mais ao trabalho bu- rocrático: “Ele vinha para fazer uma prestação de contas, vinha pra fazer um pro- jeto, fazer um SIC. Então não tinha tempo para ir no meu lote (...) ou até mesmo na área coletiva. (...) Na assistência técnica, nós sempre ficou pendente disso”. A CDA reconhece as dificuldades e a importância na seleção do profissional de agronomia e tem realizado esforços para capacitação e treinamento dos técni-

251 cos contratados. Mas, ao mesmo tempo em que terceiriza, mantém o controle e acompanha a atuação do profissional, não estabelecendo nenhum mecanismo ou informação aos assentados sobre a sua responsabilidade no exercício profissional11. A associação que contratou e destinou recursos do SIC para remunerar o profissio- nal vai arcar com os prejuízos causados por ele. Por outro lado, não obstante a responsabilidade pelo pagamento ser da associa- ção, esta não tem autonomia na escolha dos técnicos. Há casos em que técnicos respeitados são desligados de suas atividades pela CDA, principalmente quando percebem a fragilidade do projeto e estabelecem vínculos de responsabilidade com o grupo social que os contrata para a superação dos problemas. Os técnicos com mais sensibilidade e compromisso fazem todo tipo de traba- lho, desde encaminhar os beneficiários para fazer sua documentação pessoal até, principalmente, organizar e controlar as contas da associação, conseguindo, com isso, imprimir um diferencial e uma perspectiva para os beneficiários. Assim como em outras experiências de “terceirização”, o técnico ou empresa contratada para prestar assistência técnica assume um “contrato de risco”. Elabora os projetos, submete à apreciação competente, mas só é remunerado quando é libe- rado o recurso do projeto. Muitas vezes estes recursos não atingem o nível do salário mínimo profissional. Porém, não basta apenas elaborar bons projetos. Os recursos têm que chegar no tempo certo para viabilizá-los. Portanto, o profissional assume também um “contrato de risco” não só financeiro, mas também profissional. Foi possível perceber que 74,6% dos agricultores tinham recebido algum tipo de assistência técnica (Costa et al., 2002). Contudo, ela estava atrelada aos proje- tos do SIC. Esse fato é uma grande falha pois quando os recursos do SIC se esgo- tam, não há qualquer tipo de assistência técnica prevista.

5.5. Nível da produção e nível de vida As evidentes limitações do PCT até aqui apontadas demonstram que este está assentado sobre limites bastante estreitos para uma reprodução ampliada da capaci- dade de produção não só de valores de uso – produtos que deverão ir diretamente para o consumo dos assentados –, mas também de excedentes intercambiáveis. A ampliação do nível de vida daquelas populações não pode ficar restrita aos limites de uma produção agrícola ou artesanal, tal como uma atividade agrícola de subsistência. Isto equivale a decretar, no curto prazo, a falência das associações e, no médio prazo, a falência do Projeto. A Pesquisa Popular verificou que, para 53,3% dos entrevistados, a produção no assentamento não é suficiente para o sustento da família; 46,7% recebem uma

252 complementação do Bolsa Família e 40% têm trabalho fora do assentamento, normalmente com a venda do dia nas fazendas vizinhas. Em algumas áreas adqui- ridas na Chapada, como no Vale do Paraguaçu, os beneficiários estão se deslocan- do para São Paulo para o corte da cana-de-açúcar. Ao mesmo tempo, 100% dos entrevistados têm habitação, 81,7% têm luz elétrica, 88,3% têm água para o consumo, mas só 13,3% têm água para a produ- ção. Convém lembrar que parte dos recursos para abastecimento de água e luz elétrica vem do governo federal, a exemplo do “Luz no Campo”. Apesar de serem indicadores importantes sobre a qualidade de vida, apenas 26,7% afirmaram ter melhorado muito, 46,7% afirmaram ter melhorado um pouco, para 13% está igual e para 5% afirmaram que as condições de vida pioraram. Das melhorias apontadas, 30% referem-se ao acesso à terra própria e 15% à casa própria. Esta avaliação deve levar em consideração o patamar em que essas pessoas estavam antes de ingressar no PCT. Para alguns, ter uma terra e uma casa já representa muito. Mas, no caso, ter terra própria e não conseguir torná-la pro- dutiva e viver dela, significa também a perspectiva de não poder vir a pagá-la.

5.6. Condições de pagamento Sem dúvida, com a situação traçada anteriormente, as condições de pagamen- to da terra ficam bastante comprometidas. A preocupação dos dirigentes diante deste quadro justificou alterações contratuais numa operação denominada de “repactuação”. Com isto, muitos beneficiários conseguiram pagar as três primei- ras prestações, embora estime-se que, mantidas as condições atuais, muitos não conseguirão pagar a quarta parcela, confirmando que, em muitos casos, a situa- ção de inadimplência foi somente postergada, o que evidencia a fragilidade do Programa. Tem-se como exemplo, no PCT, a Associação Mocó, em Andaraí, que conse- guiu quitar algumas parcelas, não como resultado da rentabilidade produtiva do lote, mas por meio da venda de bens que possuíam. O mesmo não aconteceu com a Associação Lagoa Nova Arcolan, em Wagner; a Associação Trabalhadores Rurais Fazenda Padre Cícero, em Lençóis; a Associação Fazenda Gamelas, em Andaraí; a Associação Vale do Paraguaçu, em Boa Vista do Tupim; a Associação Pequenos Agricultores do Distrito João Amaro (Fazenda Santo Antônio de Pádua), em Iaçu. Todas tiveram a dívida repactuada, as famílias não conseguiram pagar as presta- ções e agora estão resistentes a uma nova proposta de repactuação. As condições de repactuação, em especial com relação às taxas de juros e mon- tantes devidos, não têm sido devidamente esclarecidas, gerando mais insegurança

253 entre os “beneficiários” e resistência a este procedimento. Há de se considerar, também, que muitos beneficiários contrataram os créditos do PRONAF junto ao Banco do Brasil, cujo pagamento pesará ainda mais em seus compromissos finan- ceiros. Dos entrevistados pela Pesquisa Popular, quando perguntados se a produção seria suficiente para pagamento das prestações ao banco, 41,7% responderam que não, o mesmo número respondeu que sim, 15% estavam em carência e 1,7% não sabiam. Os sócios da Associação Marcação, por exemplo, estão garantindo o pa- gamento das prestações com as atividades nos lotes individuais e com a venda do dia nas fazendas vizinhas. Nesta mesma pesquisa, observou-se que, de modo geral, há bastante desinformação entre os agricultores assentados quanto a normas e condições fi- nanceiras do crédito: 61,7% dos entrevistados não souberam identificar em que programa haviam comprado a terra. Embora 66,7% dos entrevistados afirmas- sem ter assinado o contrato (13,3% foi assinado pela esposa), apenas 20% disse- ram ter recebido cópia do mesmo. 3,3% não sabiam e 76,7% afirmaram não te- rem recebido. Questionados sobre as penalidades que sofreriam caso não conseguissem pa- gar a dívida com o banco,12 somente 26,7% apontaram a perda da terra; o mesmo número afirmou ter o nome incluído no SPC e 1,7% no SERASA; 3,3% disse- ram que não teriam direito a empréstimo para plantação, cultivo ou criação e 33,3% afirmaram não saber quais seriam as penalidades. Ao não pagar a terra, o “beneficiário” pode ser executado judicialmente e ficar impedido de ter acesso a qualquer outro programa governamental, mesmo ao cré- dito em geral, situação que o aprisiona à condição de um excluído absoluto da sociedade. O Projeto se converte, a partir de sua própria concepção, em sua antí- tese. De sem-terra o beneficiário passa a “estar” na terra, mas continua um “sem- terra” legalmente e, também legalmente sem condição de explorá-la. Situação mais complexa enfrenta os que entraram no Projeto e repassaram o lote para outro, ou simplesmente o abandonaram. Ignorando sua situação de inadimplente junto ao sistema financeiro, continua sem-terra e devedor, sem poder entrar em outro programa. Quem, por ventura, entrou em seu lugar, comprando ou não, também está numa situação ilegal e tem de se submeter às condições do Projeto.13

254 Considerações finais

São inúmeros os traços de improvisação e precariedade presentes não só na efetiva implementação do Projeto, mas, especialmente, na sua concepção origi- nal. Um deles é que, todos os depoimentos indicam que o “mercado de terras” do PCT/PCF é artificialmente construído. Um mercado em que comprador e ven- dedor não se encontram livremente um diante do outro, mas através de uma in- tervenção, por parte do Estado, se faz sem que haja fluência de informação entre as partes, portanto, fora da lógica do mercado. A intervenção governamental e a importância estratégica dos laudos técnicos na definição do preço da terra derivam da falácia representada pelo argumento dos “mecanismos de mercado” e da possibilidade de uma livre negociação entre proprietários de terra e associações de sem-terra. Isto se deve às fortes assimetrias entre as partes, à desinformação dos sem-terra, à pressão para entrar na terra (qual- quer terra) o mais rápido possível para garantir o acesso ao projeto e à subsistên- cia, além da evidente capacidade de manipulação de diversos intermediários, in- teressados em extrair lucros financeiros e/ou dividendos políticos com os projetos. Assim, em vários casos foi possível constatar que a “demanda” foi induzida pela “oferta” de determinadas propriedades por proprietários e/ou intermediários in- teressados no negócio. Outro traço, um dos mais fortes, é a desinformação sistemática dos adquirentes sobre as regras tornando-os incapazes de levar um Projeto desse tipo a qualquer nível de decisão consciente e resultado positivo. Não se pode pretender êxito num Projeto no qual a tônica é a desinformação e a ignorância, claramente toleradas ou manipuladas. Dessa desinformação e desse alheamento resulta a falta de uma efetiva partici- pação e um efetivo poder de decisão, do que também resulta tornarem-se, as asso- ciações, um agrupamento de pessoas postas à mercê de interesses particulares de corretores, proprietários, políticos do próprio estado. Na esteira desses traços também se depara com uma assistência técnica unila- teral, incompleta, irregular e insuficiente, incapaz de qualificar associações, beneficiários – e, portanto, projetos – para a elevação dos níveis de produção, produtividade, circulação, mercado e competição. Situação totalmente inviável a de manter uma produção apenas para a subsistência, principalmente num Projeto que pretende ser regido pela lógica do mercado, no estágio em que se encontra a produção capitalista. Tudo, irônica e paradoxalmente, em nome da “autonomia”,

255 do “não paternalismo”, da “liberdade de mercado” e da “participação” como me- canismos para “aliviar a pobreza”. Quando a comunidade não é levada a internalizar, no plano de sua consciência coletiva, a proposta que lhe é oferecida, o perigo da manipulação se torna visível. A atuação do estado continua ambígua. Terceiriza, faz “reforma agrária de mercado”, mas continua com as mesmas práticas intervencionistas. Uma prática que não é equivocada apenas em uma etapa do processo, mas que vem com a marca de sua concepção. Se, na origem, é uma operação de compra e venda, o papel e a atuação do estado têm que definir os termos da sua relação com uma comunida- de, que tem de assumir os riscos do Projeto. Ao invés de dar condições – no tem- po e em quantidade necessárias – para esta comunidade construir sua autonomia, o estado se limita a mantê-la sobre controle, contrariando o discurso oficial que enfatiza o “princípio da responsabilidade”. É evidente a inexistência de uma base física e técnica que garanta níveis compa- tíveis de produção e produtividade capazes de garantir a infra-estrutura social de todos os projetos visitados. De todos os aspectos, é a habitação o item reconhecido como positivo – mesmo que nem sempre venha acompanhado de saneamento bá- sico –, o que seria aceitável se se tratasse de um programa habitacional no campo. Examinadas pelos mais diversos ângulos, as disposições estratégicas, conceituais, instrumentais, técnicas, políticas e sociais dos programas de reforma agrária de mercado, constata-se que as condições mínimas para que eles “decolem”, no sen- tido entendido e afirmado pelo discurso oficial, não estão dadas. Assim, alguns projetos que reunam certas condições poderão lograr um nível de produção e tro- ca aceitável, mas não muito além de precárias melhorias no nível de vida. Uma outra faixa desses projetos poderá perdurar por anos a fio graças a pro- gramas assistencialistas, mantidos e monitorados pelo Estado, por algumas ONGs e pelas mesmas instituições internacionais, protelando a reação que no interior deles se engendra. Uma outra parcela, certamente a maior, poderá abrir falência pelo fracasso, pela inadimplência, pelo abandono, pela falta de assistência técnica, pela desqualificação, pela pressão do mercado, pela execução judiciária e, com tudo isso, ter em seus beneficiários possíveis candidatos ao engrossamento do atual contingente dos trabalhadores insatisfeitos que lutam, por conta própria, pelo direito à terra para nela trabalharem. A título de exemplo, deve-se lembrar que aqueles que não conseguirem pagar a terra, mesmo que não expulsos nem executados judicialmente, não poderão mais ter acesso a outros programas e nem ao crédito em geral. Desta forma, o Projeto

256 deixará a família na terra, mas, muito pior, como “prisioneira da terra”. Um pro- grama de “combate à pobreza” que pode converter seres humanos em excluídos totalmente à margem da sociedade.

Notas

1 Resultados disponíveis no Relatório Preliminar do estado da Bahia, de dezembro de 2001. (Germani & Carvalho, 2001) 2 O Grupo de Pesquisa Geografia dos Assentamentos na Área Rural (GeografAR) é vinculado à Universi- dade Federal da Bahia e vem realizando estudos sobre a questão agrária no estado desde 1996. 3 Os dados desta pesquisa para o estado da Bahia constam no “Relatório Preliminar dos Impactos Socioeconômicos e Socioambientais do Programa Cédula da Terra” e foram apresentados e disponibilizados durante o Seminário Questão da Terra na Bahia, (Costa et al. 2002) em “Avaliação Preliminar do Projeto Cédula da Terra”, http//www.nead.org.br/index.php, acesso em 15/06/2005. 4 Até 1999, as atribuições da CDA eram de responsabilidade da Coordenação de Reforma Agrária e Associativismo (CORA). 5 Dois dos assentamentos selecionados para estudo – Antônio Conselheiro e São Geraldo – enquadram-se nos casos de áreas superiores a 15 módulos fiscais. 6 Embora conste um total de 88 PCFs, oito destes referem-se a propostas que foram enviadas ao banco, mas não estavam efetivadas na época da pesquisa. Em janeiro de 2006, foram enviadas mais duas propos- tas para o banco, também não efetivadas. 7 Nesta região cabe destacar o município de Sobradinho, que teve 12 projetos do PCT implantados neste período. Trata-se de um caso localizado, onde a concentração pode ser explicada pela atuação de um de- putado federal, um deputado estadual e o prefeito, que promoveram esses projetos. 8 Esta pesquisa foi realizada em 2001, simultaneamente e com a mesma metodologia, nos cinco estados onde foi implantado o PCT, por grupos de pesquisadores vinculados a universidades públicas, como uma demanda do Fórum Nacional de Reforma Agrária e Justiça no Campo. O relatório da Bahia consta em Germani & Carvalho (2001) e a síntese dos resultados foi apresentada em Schwartman Barros & Sauer (2003). 9 Foram pesquisados os seguintes projetos do PCT: Associação dos Pequenos Produtores de Alto Paraíso (Faz. Santa Mônica) e Associação dos Pequenos Produtores Vila de Canaã (Faz. Santa Mônica), em Euclides da Cunha; Associação Comunitária Sem-terra Entre Rios (Faz. Buris), em Entre Rios; Associação Marca- ção (Faz. Diamante), em Ribeira do Pombal. Do PCF foram pesquisadas: a Associação dos Pequenos Produtores Rurais Sempre Vida (Faz. Reunidas), no Conde, e a Associação dos Produtores Rurais do Barrocão (faz. Baixa da Jurema), em Ribeira do Amparo. 10 Conforme depoimento de um assentado: “Nossa terra não é apropriada para assentamento. Você vê que tem 55 alqueirões e, desse total, não tem 5 alqueireões que realmente servem para a lavoura. O mais é alto é pedra”. 11 Não se tem notícias de nenhum processo encaminhado aos conselhos regionais de controle do exercício profissional (sistema CONFEA/CREA) neste sentido. 12 Vale ressaltar que resposta à pergunta foi espontânea, e não estimulada. 13 Estas questões estão sendo objeto da operação de “Regularização Fundiária” já referida.

257 Bibliografia

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258 A IMPLEMENTAÇÃO DO BANCO DA TERRA NO RIO GRANDE DO SUL: UMA LEITURA POLÍTICA1

CÉSAR AUGUSTO DA ROS

O objetivo deste trabalho é analisar a especificidade do processo político de implementação do programa o Banco da Terra no Rio Grande do Sul, à luz da expansão do modelo de reforma agrária de mercado no Brasil. Identificamos as principais razões que permitiram esse programa ter se convertido na principal modalidade de política agrária acionada pelo governo federal no estado, entre os anos de 1999 a 2002. Argumentamos que a tese da complementaridade entre o Banco da Terra e o chamado “modelo tradicional” de reforma agrária baseado nas desapropriações – defendida pelos gestores e pelos agentes sociais favoráveis ao programa – não se sustenta. Nossa hipótese é a de que tal programa tinha como objetivo político principal a quebra da conexão existente entre os processos de ocupações de terra protagonizados pelo MST – em ascensão a partir da segunda metade da década de 1990 – e as desapropriações realizadas pelo INCRA. Desse modo, o Banco da Terra acabou operando como um instrumento que visava, por um lado, esvaziar e deslegitimar o instrumento da desapropriação e, por outro, disputar pela base a demanda por terra com os movimentos sociais do campo. Neste caso, o oferecimento de uma alternativa de acesso à terra que não passava pela mediação política do MST possibilitou ao governo federal e aos agentes po- líticos locais um maior nível de controle sobre o processo, em particular no que tange à seleção dos beneficiários. Foram utilizadas como fontes principais as entrevistas realizadas pelo autor com os porta-vozes dos movimentos sociais do campo e com gestores públicos2. Como fontes secundárias utilizamos as poucas pesquisas realizadas sobre o pro- grama no estado. O trabalho está organizado em três partes. A primeira pontua os principais acontecimentos que marcaram a luta política em torno da questão agrária gaúcha entre os anos de 1999 a 2002, bem como as razões que fizeram com que o Banco da Terra se convertesse na principal modalidade de política agrária do go-

259 verno federal no estado. A segunda parte pontua as principais razões que expli- cam a abrangência assumida pelo Banco da Terra no RS. A terceira apresenta uma síntese da discussão realizada ao longo deste trabalho.

1. O contexto político de implementação do Banco da Terra no Rio Grande do Sul

A implementação do Banco da Terra no RS pode ser explicada pela confluên- cia de fatores que marcaram a luta política no meio rural gaúcho entre os anos de 1999 a 2002, entre os quais destacam-se: 1) a crise do setor agropecuário; 2) o aumento das ocupações de terra e da pressão política do MST para que a Superin- tendência Regional do INCRA acelerasse a criação de assentamentos; 3) a paralisa- ção quase completa das vistorias de terra pelo INCRA por força do movimento “vis- toria zero” realizado pelo patronato rural gaúcho; 4) a mudança ocorrida na correlação de forças políticas no campo com a vitória da Frente Popular nas elei- ções para o governo estadual3. Em primeiro lugar, é preciso levar em conta que o setor agropecuário gaúcho foi duramente afetado pela política macroeconômica em curso desde a adoção do Plano Real. Tal política causou uma queda na rentabilidade da produção agropecuária, provocando um aumento do grau de endividamento dos produto- res rurais, além de ter contribuído para reduzir o preço das terras (Benetti, 1997). Nesse contexto de crise, a alternativa mais viável para muitos dos grandes proprie- tários fundiários endividados era ofertar os seus imóveis à Superintendência Regio- nal do INCRA, ou negociar a realização de uma “desapropriação amigável”. Tal fato permitiu ao INCRA manter certa continuidade na aquisição de terra para os seus programas de assentamentos, notadamente durante os anos de 1995 a 19984. A maior parte dessas aquisições ocorreu na metade sul do estado, basicamente em função de quatro razões. A primeira era o baixo preço das terras existente, decorrente da pior qualidade agronômica dos solos (algumas áreas, inclusive, apre- sentam sérias limitações à prática de uma agricultura de grãos nos moldes daquela existente na região norte do estado) 5. A segunda era o aumento da oferta de terras ao INCRA em razão da indisposição dos grandes proprietários fundiários em pos- suírem terras limítrofes aos assentamentos de reforma agrária6. A terceira era uma maior identificação de áreas improdutivas, pelo fato da matriz produtiva se basear na pecuária extensiva, o que é mais difícil na região norte do estado, onde existem estabelecimentos com um bom nível de aproveitamento das terras7. A quarta era

260 o deslocamento a pressão social do MST para a metade sul, em razão desta região apresentar maior concentração fundiária e da dificuldade de desapropriar terras na metade norte. Em segundo lugar, é necessário considerar que a pressão do MST em nível estadual acompanhou a tendência observada no restante do país de aumento das ocupações de terra com o objetivo de acelerar e dar escala à criação de novos pro- jetos de assentamentos. A tabela abaixo indica a magnitude dessas ações durante os governos Antônio Brito e Olívio Dutra.

Tabela 1 – Número de ocupações de terras promovidas pelo MST, acampamentos e famílias acampadas no Rio Grande do Sul entre janeiro de 1995 e junho de 2002 Ano Número de ocupações Número de acampamentos Número de famílias acampadas 1995 2 2 787 1996 5 6 1.581 1997 4 6 695 1998 11 7 1.298 Subtotal do quadriênio 22 21 4.361 1999 12 12 1.700 2000 7 15 750 2001 12 19 875 2002 2 8 2.400 Subtotal do quadriênio 33 54 5.725 Fonte: MST/RS e GRA/RS

A resposta governamental à pressão do MST resultou na constituição de inú- meros assentamentos no estado durante o primeiro mandato de FHC. Este qua- dro se modificou significativamente no segundo governo, devido à reação do patronato rural e às mudanças na política agrária federal, que passou a privilegiar os mecanismos de obtenção de terras baseados no mercado. A tabela a seguir mostra a magnitude dessa redução.

Tabela 2 – Projetos de assentamentos implantados pelo INCRA no Rio Grande do Sul entre 1995 e 2002 Período Número de assentamentos Área total em hectares Número de famílias Primeiro governo FHC 1995-1998 73 85.505,303 3.476 Segundo governo FHC 1999-2002 27 23.347,00 995 Total geral 100 108.852.303 4.471 Fonte: INCRA (posição: 6/10/2003)

Em terceiro lugar, é preciso levar em consideração a reação do patronato rural do município de Bagé contra a realização de vistorias de terra pelo INCRA. Tal movimento foi desencadeado no mês de abril de 1998, impedindo que técnicos da autarquia entrassem nas propriedades para efetuarem o recadastramento de imóveis rurais, a partir do qual 370 estabelecimentos com área superior a 420

261 hectares seriam vistoriados. Na ocasião, os proprietários montaram barreiras nas entradas das propriedades, bloqueando a entrada dos técnicos do INCRA, a tal ponto deste movimento ter sido denominado de “vistoria zero” 8. As ações de bloqueio ocorreram entre 8 de março e 28 de agosto de 1998 e reivindicavam, principal- mente a suspensão das vistorias e a revisão dos índices de lotação pecuária (Zero Hora e Correio do Povo, 9/4/98). O impasse entre o INCRA e o patronato rural gaú- cho somente foi solucionado quando o governo estadual, o INCRA e o Ministério da Agricultura chegaram a um acordo que estabeleceu a suspensão imediata das vistorias no estado, o anúncio de que as novas aquisições ocorreriam mediante a realização de leilões de terras e a criação de uma comissão especial para reavaliar os índices de lotação pecuária (Zero Hora, 28/8/98). Com essa ação ilegal, o patronato rural gaúcho conseguiu impedir o INCRA de fiscalizar o cumprimento da função social da terra, obstaculizando a realização de novas desapropriações no estado durante os anos subseqüentes. Essa reação criou um “precedente” político que passou a ser acionado todas as vezes que as ocupa- ções de terra e as ações do INCRA extrapolassem os limites “aceitáveis”. O governo federal não deu apoio político aos superintendentes regionais do INCRA para que as vistorias prosseguissem9. Ademais, tal movimento passou a ser utilizado pelo MDA para reforçar o discurso de que no RS a obtenção de terras para a reforma agrária deveria privilegiar a “negociação”, tais como leilões de terras, “desapropria- ções amigáveis”, compras pelo decreto 433/92 e, finalmente, o Banco da Terra.10 Por fim, em quarto lugar, ocorreu a eleição da Frente Popular para o governo estadual, tendo como marcas a oposição ao governo federal e a forte sintonia com as reivindicações dos movimentos sindicais e sociais do campo. Essa sintonia foi determinante na elaboração de um programa agrícola e agrário que estabelecia como metas o fortalecimento da agricultura familiar e o assentamento de dez mil famílias de agricultores sem-terra. Propunha-se também a tratar os conflitos fundiários por meio da negociação política, a fim de evitar as ações de despejo mediante o uso da força policial (Frente Popular, 1998). Para efetivar suas propostas, o governo criou o Departamento de Desenvolvimento Rural e Reforma Agrária, posteriormente trans- formado em Secretaria Extraordinária da Reforma Agrária. Como resultado da po- lítica agrária estadual, foram implantados 66 projetos de assentamentos, que bene- ficiaram um total de 2.289 famílias em 48.339,55 hectares. Além disso, mais 27 projetos de assentamentos foram implantados em convênio com o governo federal, beneficiando 910 famílias em 20.417,32 hectares (GRA, 2002). Outra marca do governo estadual foi a presença de representantes dos movi- mentos sociais e sindicais na Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento,

262 facultando aos mesmos a possibilidade de influenciarem nos rumos tomados pe- las políticas agrícola e agrária estaduais11. Esse vínculo do governo estadual com os movimentos sociais influenciou na relação deste com governo federal em dois níveis importantes. Um primeiro ex- presso na oposição ao modelo de reforma agrária de mercado, em particular ao Banco da terra. Isso dificultou a viabilização do programa nos moldes pelos quais ele estava sendo concebido, pois a negativa do governo Olívio em assinar o termo de cooperação impediu a criação de uma agência estadual para geri-lo, obrigando o governo federal a realizar convênios com as associações de municípios12. O segundo nível está relacionado com as expectativas criadas em torno dos compromissos assumidos pelo governo com o MST, as quais contribuíram para aumentar o número de famílias acampadas à espera de serem assentadas, confor- me indicam os números apresentados na tabela 1. Apesar da meta do governo estadual ser elevada e de haver uma série de limitações de ordem constitucional, financeiras, institucionais e políticas para a sua efetivação, havia o reconhecimen- to, tanto por parte de seus integrantes, quanto por parte dos movimentos sociais e sindicais do campo, de que a política agrária estadual tinha um caráter comple- mentar às ações do governo federal, cabendo a este a maior responsabilidade no processo (Da Ros, 2006). Por essa razão, as pressões desencadeadas pelo MST ao longo do quadriênio de 1999 a 2002 recaíram com maior força sobre o INCRA e o governo federal, reivindicando a retomada das vistorias obstaculizadas pelo patronato rural gaúcho. Assim, ao questionar as premissas da reforma agrária de mercado do governo federal e proporcionar as condições para que o MST aumen- tasse o seu potencial de pressão, mediante a não repressão às ocupações de terras, o governo estadual não só reconhecia a legitimidade das reivindicações dos sem- terra, como também mitigava as tentativas do governo federal e do patronato ru- ral gaúcho em deslegitimar o instrumento das desapropriações. Apesar das tentativas do MST e do governo Olívio de se contraporem às dire- trizes da política agrária federal, o que ocorreu de fato no estado foi a redução drástica dos projetos de assentamentos implementados pelo INCRA (conforme mostra a tabela 2), o recuo no suporte político às vistorias de terras e o reforço à adoção de mecanismos de obtenção de terra via negociação. Entre estes, o Banco da Terra teve destaque absoluto. Considerando a magnitude do volume de recur- sos investidos e o número de famílias financiadas, foi o principal programa execu- tado pelo governo federal no RS. O seu lançamento oficial ocorreu em 23 de agosto de 1999, data em que fo- ram assinados os três primeiros convênios de cooperação técnica com associações

263 de municípios gaúchos (Correio do Povo, 24/8/99). Entretanto, o programa so- mente ganhou impulso a partir de janeiro de 2000, quando o governo federal anunciou a instalação do Gabinete Regional da Reforma Agrária para a região Sul, viabilizando as primeiras liberações de recursos (Correio do Povo, 7/1/2000). Na sua primeira fase, o programa foi coordenado por Ezídio Pinheiro (PSDB/RS), que permaneceu no cargo até o dia 2 de janeiro de 2001, quando essa função foi repassada para Vulmar Leite (PSDB/RS), que conduziria o trabalho até o final de 2002 (Correio do Povo, 14/2/2001). A tabela a seguir mostra o volume de gastos e famílias financiadas pelo Banco da Terra no RS.

Tabela 3 – Volume de gasto com compra de terra e infra-estrutura e famílias financiadas pelo Banco da Terra no Brasil e no Rio Grande do Sul entre 1999 e 2002 Ano Brasil (17 estados) Rio Grande do Sul Nº Famílias Gasto (R$) Nº Famílias Gasto (R$) 1999 1 38.000 –- –- 2000 2.833 61.221.510,00 784 14.692.949 2001 13.198 297.553.471,00 4.275 88.746.559,00 2002 13.683 277.754.483,00 3.425 70.389.759,00 Total 29.715 636.567.464,00 8.484 173.829.267,00 Fonte: Unidade Técnica Nacional do Programa Nacional de Crédito Fundiário (apud Pereira, 2004: pp. 229-230).

De acordo com os dados, acima, entre 2000 e 2002 o Banco da Terra finan- ciou 8.484 famílias a um custo total de R$ 173.829.267,00, o que representou 28,5% do total das famílias beneficiadas e 27,3% do total dos recursos investidos pelo programa em todo o país. Já na pesquisa realizada pelo DESER (2005, p. 5), consta que entre de 2000 e 2003 o Banco da Terra financiou 10.136 contratos, totalizando R$ 209,7 milhões. Apesar das divergências, ambas as fontes atestam a importância assumida pelo programa no estado, cuja superioridade em relação ao programa oficial de reforma agrária é espantosa, uma vez que, entre 1999 a 2002, o INCRA assentou apenas 995 famílias. O mesmo ocorre quando somamos os re- sultados obtidos individualmente pelo INCRA àqueles do convênio de aquisição compartilhada com o governo estadual, os quais perfazem um total de 1.905 fa- mílias assentadas em 43.764,32 hectares. Ou seja, dependendo da base de dados que utilizamos para a comparação, os resultados atingidos pelo INCRA chegam a aproximadamente 1/4 ou 1/5 dos alcançados pelo Banco da Terra. Tendo em vis- ta que o RS foi o estado onde o Banco da Terra obteve a maior abrangência, deve- mos indagar quais razões explicam tal desempenho.

264 2. Principais razões da magnitude assumida pelo Banco da Terra no RS

Cinco razões principais explicam a abrangência assumida pelo Banco da Terra no RS: a) a demanda por terra; b) a montagem de uma estrutura descentralizada de gestão do programa; c) a existência de uma conjuntura de baixa nos preços das terras; d) a predominância dos contratos de financiamento individuais; e) o uso do programa como um instrumento de combate político ao MST. Em primeiro lugar, é preciso ter presente que existe uma grande demanda por terra no RS que se concentra principalmente nas regiões onde predominam a pequena propriedade familiar oriunda dos processos de colonização por imigran- tes europeus, notadamente no norte e no nordeste do estado. Nessas regiões, a sucessão hereditária continua gerando um processo de fragmentação das proprie- dades rurais que, somado às dificuldades de inserção econômica da pequena pro- dução familiar nos mercados agrícolas crescentemente oligopolizados da atuali- dade, vêm limitando seriamente as condições de reprodução social das famílias de agricultores. Com isso, muitas dessas famílias, ou uma parte dos seus integrantes, acabam sendo obrigadas a migrarem para os centros urbanos em busca de trabalho, o que tem resultado num esvaziamento demográfico de algumas regiões rurais do esta- do, principalmente em função da saída dos mais jovens. A conseqüência imediata desse processo é o aumento da população de idosos nas comunidades rurais, muitos dos quais assim que atingem a idade de aposentadoria, também optam por mi- grar para as cidades, abandonando ou arrendando suas propriedades (Camarano & Abramovay, 1999; Anjos & Caldas, 2005). Além disso, a fragmentação das pequenas propriedades rurais tem acentuado a multiplicação de sítios de lazer, cujos novos proprietários freqüentemente são profissionais liberais oriundos dos centros urbanos. Como agravante, no momen- to em que os herdeiros dão entrada no inventário de uma propriedade, muitos advogados têm cobrado seus honorários em terra, convertendo-se automaticamente em proprietários13. Nessas regiões, tal situação tem colocado em evidência dois tipos de proble- mas agrários: de um lado, a existência de uma demanda pelo acesso à terra, prin- cipalmente por parte das populações mais jovens e, de outro lado, a existência de propriedades abandonadas. Neste contexto, as atuais políticas fundiárias preci- sam ampliar o acesso a terra e promover algum tipo de reordenamento fundiário que recomponha as propriedades a um módulo mínimo, a fim de permitir me- lhores condições para a reprodução social dos seus titulares. Tais medidas necessi-

265 tariam ser acompanhadas de políticas públicas para o fortalecimento e a viabilização socioeconômica das formas familiares de produção agrícola. Entretanto, convém ressaltar que os problemas agrários do RS não se resu- mem apenas às situações descritas acima, uma vez que é possível constatar a exis- tência de um elevado grau de concentração da propriedade fundiária em diversas regiões do estado, notadamente na região sul, onde predominam as atividades li- gadas às modernas lavouras de arroz irrigado e à pecuária extensiva de corte. É precisamente nessas regiões que o INCRA tem conseguido obter terras para a im- plantação dos assentamentos e, certamente, será nelas que os governos interessa- dos em conduzir políticas de reforma agrária continuarão concentrando os seus esforços. Em linhas gerais, o diagnóstico desses problemas é compartilhado pelas orga- nizações de representação dos trabalhadores rurais, porém as soluções propostas são divergentes. Os movimentos que integram a Via Campesina – dos quais o MST é a sua maior expressão – partem do entendimento de que os problemas agrários encontrados nas regiões norte e nordeste do estado somente serão soluci- onados no âmbito de um programa massivo de reforma agrária que incida sobre as regiões de maior concentração fundiária, no qual já estaria incluído o reordenamento fundiário. A FETAG e a FETRAF-Sul, por sua vez, apresentam uma posição diferente, reivindicando a necessidade de programas de crédito fundiário, pois entendem que num contexto de limitações políticas e institucionais impostas à reforma agrária, estes seriam a via mais adequada para garantir a repro- dução social das formas familiares de produção. Além disso, existem diferenças nas formas de ação adotadas por esses movi- mentos sociais e sindicais. O MST, ao longo da sua trajetória, tem optado pela organização de acampamentos e ocupações de terras como as suas principais for- mas de luta social. A pressão dessas ações levou os governos federais e estaduais a implantarem assentamentos rurais, conferindo ao MST um alto grau de legitimi- dade política na luta pelo acesso à terra. Entretanto, pelo tipo de enfrentamento que essas ações ensejam, pelo sacrifício das famílias em permanecerem acampadas por tempo indeterminado e pela estigmatização social impingida aos sem-terra – inclusive entre o universo de pequenos agricultores –, uma parcela significativa dos agricultores que reivindicam terra acabam optando por não ingressar nas fi- leiras do MST. Ademais, o próprio Movimento admite que não tem condições de organizar todas as pessoas que demandam terra no RS14. No que diz respeito à FETAG, observamos que desde a retomada das ocupa- ções de terras nos anos 80, sua opção política sempre foi manter uma relação de

266 apoio pontual ao MST e à luta por reforma agrária, sem dela participar direta- mente, posicionando-se preferencialmente por políticas de crédito fundiário. É o que indica o depoimento de Ezídio Pinheiro, presidente da entidade:

Aqui no RS, quando surgiram os movimentos de luta por terra, houve em 1983 uma discussão com eles sobre o papel de cada um, e se entendeu que a FETAG seria mais uma entidade de apoio. (...) Em 2003, num grande congresso, deliberou-se que os sindicatos de trabalhadores rurais, com o apoio da FETAG, deveriam trabalhar para a realização de ocupações, mas não houve ainda iniciativas. O público da FETAG é o da agricultura familiar, que prefere comprar terras (...) Não vejo prejuízo na exis- tência de mais de um movimento com esse caráter. O problema é que isso não se sustenta no RS (...) A FETAG representa as milhares de pessoas que querem comprar terra, que querem pagar (entrevista ao autor).

Neste depoimento, há uma naturalização da idéia de que a base social da FETAG “prefere comprar terras”, o que em certa medida acaba servindo de justi- ficativa para que a entidade não assuma posições que impliquem um maior questionamento da estrutura fundiária e, conseqüentemente, a realização de ações mais contundentes, como as ocupações de terras, praticadas por muitos sindica- tos e federações ligados à CONTAG em outros estados. Além disso, é preciso ter presente que as organizações políticas de representação de trabalhadores, na maior parte das vezes, não funcionam como mero reflexo da vontade das suas bases. Ao contrário, o papel das lideranças é de suma importância na construção daquelas que são consideradas as “questões políticas” relevantes. Como vimos, a implantação do Banco da Terra encontrou terreno fértil para se viabilizar no estado, pois além da existência de uma elevada demanda por terra, contou com o apoio ativo da FETAG em favor de mecanismos de compra e ven- da, identificados como “crédito fundiário”.15 A segunda principal razão que explica a magnitude da adesão ao Banco da Terra está relacionada diretamente à montagem de uma estrutura descentrali- zada de gestão do programa no estado. Isto porque, no plano nacional, os mo- vimentos sociais e sindicais do campo, desde o início, posicionaram-se contra a implantação do Banco da Terra, enquanto que as organizações do patronato rural prontamente o apoiaram (Medeiros, 2002). No RS esse cenário se repe- tiu, uma vez que o MST e as demais organizações que integram a Via Campesina foram radicalmente contra a implantação do programa. Segundo Mário Lill:

267 Somos contra a mercantilização da terra. O crédito fundiário só ajuda a elevar o pre- ço da terra e a dificultar a sua redistribuição. Não pode existir crédito fundiário. É função do Estado reorganizar a propriedade da terra. As pessoas que não têm terra não resolvem a questão fundiária comprando terra de outro pequeno, o irmão com- prando de outro irmão, o filho comprando do pai. Isso não muda a relação. É preciso descentralizar a propriedade da terra, e o crédito fundiário não permite essa descentralização, ele não reformula a posse da terra. Por isso o MST é contra o crédi- to fundiário. Trata-se de um princípio filosófico (entrevista ao autor).

A FETRAF-Sul, por sua vez, concentrou suas críticas na forma de condução do programa, uma vez que também considera o crédito fundiário uma política importante para a sua base social. De acordo com Eloir Griseli:

Não concordamos com a forma de implementação do Banco da Terra, com os crité- rios utilizados e com a sua prefeiturização, por uma questão político-partidária. Ago- ra, o crédito fundiário é importante para um setor da agricultura familiar (principal- mente para filhos de agricultores), mas ele precisa melhorar muito. Com R$ 40 mil se compra muito pouca terra em alguns lugares. Na minha avaliação o crédito fundiário é importante, se pensado na lógica do desenvolvimento, e não na lógica da comercialização da terra e na politicagem que ocorreu. O grande problema do Banco da Terra foi que a maioria das operações foi terra-papel, sem fiscalização, benefician- do prefeitos e seus parentes, funcionários públicos e outros, principalmente no RS. Não mudou nada a estrutura de produção. A análise do próprio governo detectou muitos roubos através do Banco da Terra no Brasil inteiro. Mas aqui no RS achamos que o programa é bom e precisa ser melhorado (entrevista ao autor).

Este depoimento revela que não há, por parte da FETRAF-Sul, nenhuma crítica ao instrumento do crédito fundiário como uma modalidade de acesso à terra, e sim à forma como foi conduzido o Banco da Terra. Diferentemente da Via Campesina, que critica a mercantilização da terra e aponta a reforma agrária ampla e massiva como uma medida fundamental para a transformação do campo, a FETRAF-Sul (2003) aposta no crédito fundiário como uma alternativa para garantir a permanência dos jovens no campo. Essa opção se deve, em parte, ao rebaixamento político conferido à reforma agrária como estratégia de transformação do campo brasileiro e à adoção de uma postura mais “pragmática” e “propositiva”, segundo a qual o desenvolvimento rural consistiria na busca de alternativas que fortalecessem a agricultura familiar, po- rém sem rupturas políticas de fundo (Favareto & Bitencourt, 2001, p. 387).

268 Das entidades de representação dos trabalhadores rurais, a única exceção à regra foi a FETAG. Pressionada pelos seus sindicatos, passou a defender a implantação do Banco da Terra no RS, contrariando, inclusive, a posição da CONTAG, que se opunha ao programa em nível nacional16. Segundo Heitor Schuch:

Houve um congresso da CONTAG em que esse assunto estava muito quente, e nós fomos lá com 242 delegados defendendo o Banco da Terra. O Brasil inteiro contra nós. Só Santa Catarina e o Paraná nos apoiaram. Aqui existia uma demanda muito grande de agricultores querendo comprar terra. Outra questão relevante é que os valores do Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural eram menores que os do Banco da Terra, e não possibilitavam comprar terra aqui no RS. Então a polêmica girou muito mais em torno dos valores de um programa para o outro (entrevista ao autor).

O fato dos movimentos sociais da Via Campesina que integravam o governo estadual serem contra a implantação do Banco da Terra levou o mesmo a não as- sinar o termo de cooperação com o governo federal, a exemplo dos demais esta- dos governados por partidos de oposição. Esse posicionamento foi expresso pelo secretário estadual da agricultura, no Fórum de Agricultura, realizado no dia 10 de junho em Brasília: “Não aceitamos o Banco da Terra. Esvazia os movimentos sociais e privilegia a reforma agrária de mercado”. Além disso, o governo estadual destacava que as condições oferecidas pelo programa o tornavam impagável (Zero Hora, 11/06/1999). Todavia, a negativa do governo estadual em assinar o convênio do Banco da Terra não impediu que este fosse implantado no estado. O Ministério do Desen- volvimento Agrário (MDA), numa ação inédita, realizou convênios diretamente com as associações de municípios que integravam a Federação dos Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS), contando, ainda, com o apoio de professores de três universidades: a Universidade Regional Integrada (URI), a Universidade Fe- deral de Santa Maria (UFSM) e a Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).17 A oposição do governo estadual ao Banco da Terra obrigou os seus defensores a cria- rem uma estrutura descentralizada que viabilizou a implantação do programa, conforme explicita o depoimento de Heitor Álvaro Petry:

Embora a decisão do governo tenha sido motivo de críticas de vários setores, ela merecia um elogio, porque criou a oportunidade para se estabelecer uma relação direta com os municípios, e foi isso que constituiu a base para o programa ter um bom desenvol- vimento. Se fosse via governo estadual, o resultado teria sido outro, porque a máqui-

269 na é mais pesada, mais concentrada, não tem capilaridade. O gesto do governo Olívio, embora do ponto de vista político merecesse uma repreensão, do ponto de vista prá- tico foi positivo, pois ficou de fora e isso permitiu que os municípios abraçassem o Banco da Terra (entrevista ao autor).

Desse modo, não foi preciso constituir oficialmente uma Agência Estadual do Banco da Terra. Em vez disso, vinte e três agências regionais foram criadas, funcio- nando nas associações de municípios com o suporte das universidades citadas. O fato de não ter sido criada uma agência estadual não significa que o programa não tivesse uma coordenação estadual, a qual era integrada por um coordenador geral, um coordenador técnico e um secretário. Além disso, havia um conselho estadual de caráter “oficioso” integrado pelas seguintes organizações: FETAG, FAMURS, FECOAGRO, UFSM e URI, no qual eram discutidas algumas regras de funciona- mento do programa no estado18 (Antonello, 2003, p. 3). Tal processo dotou o pro- grama de um elevado grau de capilaridade, pois as inscrições eram feitas somente nos STRs e a seleção dos beneficiários era realizada pelos Conselhos Agropecuários, estimulando a sua criação naqueles municípios em que não existiam. A oposição do governo estadual ao programa implicou a retirada da assistência técnica oferecida pela EMATER na elaboração dos projetos, que passou a ser feita pelas prefeituras19. A constituição dessa estrutura descentralizada é apontada pelos representan- tes da FETAG e da FAMURS como um dos principais fatores que permitiram ao programa ganhar maior velocidade e escala20. No entanto, as entrevistas com os gestores do Banco da Terra indicam também que essa mesma estrutura foi res- ponsável por um descontrole dos financiamentos concedidos, devido à ausência de critérios válidos para todo o estado.21 Os depoimentos de um dos gestores do Banco da Terra e dos dirigentes da FETAG não negam a existência de irregularidades e favorecimentos na condução do programa, severamente criticadas pelo MST, pela FETRAF-Sul e por alguns deputados estaduais do PT22. Entretanto, a falta de publicização de informações detalhadas sobre os resultados do programa pelo governo federal (FHC e Lula), bem como a ausência de trabalhos empíricos nos municípios onde o programa atuou, impossibilita-nos de tecer considerações conclusivas sobre esse assunto23. Ademais, até o momento, não foram divulgados os resultados da suposta audito- ria interna realizada pelo governo Lula sobre as irregularidades ocorridas na implementação do Banco Terra. A terceira principal razão que favoreceu a implementação do programa foi a existência de uma conjuntura de baixa no preço da terra, uma vez que as transações

270 de compra e venda de imóveis rurais são indexadas ao preço da soja, naquele perío- do em baixa no mercado internacional. Nesse contexto, os governos federal e esta- dual atuaram praticamente sozinhos no mercado de terras. Segundo Ezídio Pinhei- ro: “As terras, inclusive, eram muito baratas. Nos dois primeiros anos em que eu coordenei a implantação do Banco da Terra, a média das propriedades adquiridas era de R$ 17.500, enquanto que o teto de financiamento era de R$ 30 mil” (entre- vista ao autor). No entanto, o baixo preço dos lotes adquiridos através do Banco da Terra também está relacionado ao fato de que a maioria desses imóveis possuía uma área média inferior ao módulo rural regional (DESER, 2005, p. 18). Nas regiões, onde as terras eram mais caras, o teto de financiamento não era suficiente para ad- quirir um módulo rural, sendo necessário que os agricultores complementassem com recursos próprios. Ademais, pouco se sabe sobre a qualidade das terras compradas, já que não havia a definição de um critério de classificação de acordo com a capaci- dade agronômica de uso, a exemplo do que ocorria nas aquisições do governo esta- dual e do INCRA. Por isso, a compra de áreas de baixa qualidade pode também ter influenciado no baixo preço das terras adquiridas pelo programa24. Mesmo que as terras tenham sido adquiridas a preços baixos, ainda assim não é possível avaliar com exatidão qual será o percentual dos beneficiários do Banco da Terra que terão ou não condições de pagar as prestações do financiamento. Os próprios gestores do programa e os agentes sociais a ele favoráveis admitem que, em algumas regiões, haverá problemas de inadimplência. Entretanto, na sua opi- nião, o programa seria viável na maioria dos casos, embora não apresentem ne- nhum tipo de informação que confirme tal assertiva. Segundo Heitor Álvaro Petry:

Quando o Banco da Terra foi lançado, havia índices de correção bastante elevados (o IGP-DI, por exemplo). Na época, nós sabíamos que aqueles índices eram impraticá- veis, mas sempre estimulamos os agricultores a entrarem no programa, porque tínha- mos a convicção de que, se o governo quisesse que o Banco da Terra desse certo, ha- veria mais cedo ou mais tarde uma adequação dos índices, o que efetivamente aconteceu. (...) Mas, em várias situações, o crédito se tornava impagável. Na região do Vale do Rio Pardo, de produção fumícola, há inúmeros exemplos de arrendatários que pagavam mais pelo arrendamento do que eles pagariam pela prestação do Banco da Terra. Entre 70 e 80% dos casos eram dessa natureza: comprovadamente, o que os arrendatários pagavam anualmente a título de porcentagem no arrendamento, na meação, era bem superior do que as prestações do Banco da Terra. Então pode haver situações de dificuldade de pagamento, mas creio que foi uma experiência viável (en- trevista ao autor).

271 A falta de transparência e de informações oficiais sobre a situação das famílias financiadas pelo Banco da Terra constitui uma das mais flagrantes contradições do discurso apologético dos seus defensores, que enaltecem as virtudes do progra- ma sem apresentar evidências que as comprovem. Tal fato é extremamente preocupante, tendo em vista que o programa possuía um prazo de carência de três anos e os primeiros contratos foram assinados no ano de 2000. O mínimo que se poderia esperar era a divulgação de um quadro mais sistematizado por parte do MDA, que possibilitasse avaliar o real impacto desse programa na viabilização do acesso à terra no país. Um levantamento recente feito pelo DESER sobre a capacidade de pagamen- to do programa na região Sul analisou apenas três municípios no RS. Constatou- se que em Pelotas e Encantado/Teotônia, mais de 50% dos beneficiários declara- ram ter pago ao menos uma parcela. O nível de inadimplência foi estimado em 13,3% e 9,4%, respectivamente. Em Tenente Portela, 20% dos entrevistados afir- maram ter pago pelo menos uma parcela e ninguém afirmou estar inadimplente. Porém, em virtude da estiagem ocorrida na safra de 2004/05, o estudo apontou a probabilidade de um alto nível de inadimplência (DESER, 2005, pp. 25-27). Como conclusão geral, o trabalho destacou que em torno de 60% dos beneficiários teriam condições de pagar as parcelas do financiamento para o ano de 2004-05, além dos créditos do Pronaf-A. Por outro lado, o estudo adverte que a análise pode carecer de consistência face à inexatidão das informações prestadas pelos beneficiários e a possíveis osci- lações climáticas que costumam afetar a região, principalmente as estiagens (ibid, pp. 62-64). Ou seja, apesar da pouca representatividade dos municípios pesquisados e da possível imprecisão dos dados coletados, os autores ainda deixam em aberto a hipótese de que o nível de inadimplência poderá se tornar um grave problema. Isto confirmaria as críticas de que o programa é impagável25. A quarta razão principal que permitiu ao Banco da Terra atingir resultados tão expressivos diz respeito ao fato de que a imensa maioria dos projetos financiados terem sido individuais. Segundo Ezídio Pinheiro:

Os contratos individuais não eram permitidos, mas nós dissemos que íamos fazer. A agricultura familiar, os filhos de pequenos agricultores, não comprariam áreas via associações, além do que as áreas eram pequenas. Isso foi um problema seríssimo. O ministro Jungmann não permitia, mas nós fazíamos e ele não nos contrariava. Dos 11 mil beneficiários do Banco da Terra no Rio Grande do Sul, me parece que apenas um grupo comprou uma área (maior) via associação (entrevista ao autor).

272 Em razão dos contratos individuais terem sido predominantes, o Banco da Terra teve uma maior atuação nas regiões de minifúndio, envolvendo a transação de pequenas áreas, como indica o depoimento de Vulmar Leite:

Havia uma grande quantidade de propriedades ociosas no estado e essas proprieda- des foram comercializadas em todos os municípios. Se tu pegares a distribuição dos financiamentos vai verificar que ele ocorreu de forma homogênea no estado, em to- das as regiões. E as regiões que mais acessaram financiamento são aquelas onde há uma maior concentração de minifúndios. Na região de Frederico Vestphalen, lá no Alto Uruguai, foram realizados em torno de 600 a 900 contratos e é uma região que não tem latifúndio. Era um irmão que comprava cinco partes de outros irmãos, até onze partes para recompor a completa, com casa e instalações abandonadas. Enfim, eram essas áreas que foram comercializadas (entrevistas ao autor).

O fato dos financiamentos terem sido individuais e incidido majoritariamen- te sobre regiões de minifúndio se encaixou muito bem na argumentação defendi- da pelo governo federal, pela FETAG e pela FAMURS de que o Banco da Terra possuía um caráter complementar, já que, em tese, as áreas financiadas teriam cumprido o papel de aglutinar propriedades fracionadas. O Banco da Terra seria, assim, um programa de “reordenamento fundiário”. 26 Uma das principais contradições do Banco da Terra no RS reside no fato desse programa ter se baseado, majoritariamente, em transações mercantis entre peque- nos proprietários, sem promover alterações na estrutura concentrada da proprie- dade fundiária. A aglutinação de frações de imóveis rurais para recompô-las a um módulo mínimo (ou mais) resolve apenas o problema dos agricultores que estão sendo financiados pelo programa. No entanto, não oferece alternativas para aqueles que estão deixando o campo por falta de condições para se viabilizarem. Assim, observa-se que o tão propalado “reordenamento fundiário” precisa ser pensado em uma perspectiva mais ampla, na qual a recomposição das propriedades esteja acoplada a um programa de reforma agrária que democratize a estrutura fundiária, possibilitando a absorção da maior parte da demanda por terra existente nas regiões onde predominam os minifúndios, que jamais será suprida integralmente por programas de crédito fundiário. Apesar das tentativas dos gestores do Banco da Terra e dos representantes da FETAG de legitimá-lo como um programa complementar à reforma agrária, pre- cisamos analisá-lo à luz da luta política mais ampla ocorrida no campo. Neste caso, não podemos reduzir o debate a uma oposição estanque entre “crédito fundiário”

273 e “desapropriação”, como se fosse apenas um problema de definição do melhor instrumento, omitindo a discussão sobre os objetivos e as forças sociais subjacentes às políticas agrárias em disputa. Até porque a maioria dos entrevistados – inclusi- ve alguns integrantes da Via Campesina – não se opõe unilateralmente ao crédito fundiário. O que questionavam naquela época, e ainda hoje questionam, é a uti- lização do crédito fundiário como parte de uma estratégia mais geral do governo federal para reforçar o modelo de reforma agrária de mercado, em detrimento das desapropriações baseadas no cumprimento da função social da propriedade. Se- gundo Frei Sérgio Görgen:

O crédito fundiário hoje é uma política anti-reforma agrária. Uma política construída pelo Banco Mundial para fortalecer o agronegócio em grandes áreas. É esse o objeti- vo do crédito fundiário. Outra coisa é pensar um programa de crédito fundiário como um programa complementar a um projeto de reforma agrária massiva. Nesse caso, eu defendo. Isso, aliás, está previsto no Estatuto da Terra como medida para a reaglutinação de minifúndios, para combater o fracionamento excessivo da proprie- dade (entrevista ao autor).

Desse modo, ao analisarmos a questão sob uma perspectiva política mais ampla, percebemos que o argumento da “complementaridade” não se sustenta, pois os dados apresentados no início deste trabalho demonstram que a prioridade abso- luta do governo federal, durante os anos de 1999 a 2002, recaiu sobre o Banco da Terra. Além disso, não podemos esquecer que, durante esses quatro anos, o MDA não deu o respaldo político necessário aos superintendentes regionais do INCRA para a realização das vistorias, que estavam sendo impedidas pelo patronato rural gaúcho. Ao aceitar o veto imposto pelos sindicatos ligados à FARSUL à continui- dade das vistorias, o governo federal deu mostras de que a sua prioridade não era a reforma agrária via desapropriações litigiosas, mas sim o fortalecimento do modelo de reforma agrária de mercado. Por fim, a quinta razão principal da centralidade do Banco da Terra no RS foi a sua utilização, pelo governo federal, no combate político e ideológico ao MST, que, naquele momento, contava com o apoio do governo Olívio Dutra. Tal intencionalidade não foi admitida nas entrevistas com os gestores do programa, conforme indica Vulmar Leite:

Havia uma convergência de vários fatores: oferta de terra, existência de propriedades ociosas, um público que não acampava no estado, uma demanda por terra de filhos de

274 agricultores, de agricultores que não acampavam e estavam na atividade produtiva. Então, a visão do governo federal aplicar mais aqui foi a demanda, houve muita pressão, nós tivemos que inclusive segurar essa pressão para evitar que houvesse uma inflação no preço da terra, se estabeleceu alguns mecanismos de controle via conselho municipal. Não foi nenhuma razão, a não ser a razão da demanda (entrevista ao autor).

O reconhecimento de que a demanda foi o motivo principal da maior aplica- ção de recursos no RS não exclui a existência de intencionalidade política, uma vez que a implantação do Banco da Terra permitia ao governo federal disputar com o MST o controle sobre a demanda por terra. Essa disputa ocorreu pela base, já que, ao financiar a compra de terras no estado, abriu-se uma nova possibilidade de acesso, na qual os agricultores não precisavam sofrer as agruras de permanece- rem acampados por tempo indeterminado para conseguirem um lote de terra. Com isso, o governo federal esperava quebrar a conexão existente entre a pressão exercida pelas ocupações e a necessidade de implantar novos assentamentos, deixando de atuar “a reboque” da ação do MST, incidindo justamente nas regiões do RS em que a demanda por terra poderia ser canalizada para novos acampamentos. A pos- sibilidade de acesso à terra sem ingressar no MST foi explorada politicamente pelo governo federal, pelo patronato rural e pelos setores de oposição ao governo esta- dual, com um discurso que polarizava “a reforma agrária da paz” versus “a reforma agrária da invasão, da violência e da lona preta”27. Embora não seja possível quantificar o impacto produzido sobre a capacidade de convocação do MST, há fortes indícios de que o Banco da Terra contribuiu para diminuir o número agricultores dispostos a acampar, influenciando em al- gum grau a mudança no perfil dos novos acampados, os quais passaram a ser con- vocados nas periferias dos centros urbanos, especialmente na região metropolita- na de Porto Alegre28. Essa constatação é compartilhada inclusive pelos próprios gestores do programa, como mostra o depoimento de Vulmar Leite:

Acho que o movimento social perde força, da forma que ele [Banco da Terra] foi pulverizado. O programa atendeu uns 450 municípios. O agricultor sem terra dos municípios ia até a prefeitura, se cadastrava e tinha a possibilidade de comprar a sua área onde queria. Ele próprio escolhia. (...) Quer dizer, era um potencial acampado. Na verdade, eu acho que a reação [do MST] é porque historicamente a via de acesso à terra era através do acampamento, não tinha uma outra alternativa. E eu acho que foi correta, o assentamento não pode ser monopólio do Movimento (...). Não se pode querer que o governo seja permanentemente refém disso (entrevista ao autor).

275 Coincidentemente, esse esvaziamento da capacidade de convocação de novos acampados pelo MST ocorria num momento em que o governo Olívio Dutra se propugna a assentar dez mil famílias, conferindo um tratamento negociado aos conflitos fundiários. Conforme já destacamos, essa sinalização do governo esta- dual por si só contribuiu para elevar o número de pessoas acampadas no RS. Nes- se cenário, é bastante provável que o Banco da Terra tenha funcionado como um colchão amortecedor da pressão social por reforma agrária, num estado conheci- do como o berço do MST no Brasil. Ao minar pela base a possibilidade da ampli- ação da pressão social do MST sobre o INCRA, o governo federal livrou-se da ne- cessidade de adotar uma postura de maior enfrentamento com o patronato rural gaúcho para viabilizar vistorias e desapropriações litigiosas. Um outro indicativo de que a disputa política se concentrou sobre a demanda é evidenciado pela alta receptividade obtida pelo Banco da Terra junto a prefeitu- ras e sindicatos ligados à FARSUL, uma vez que o programa oportunizou um maior controle dos agentes locais sobre o perfil dos futuros beneficiários, selecionando preferencialmente aqueles que possuíam a tão propalada “vocação agrícola”, freqüentemente imputada como um critério ausente no público beneficiário dos programas de assentamentos. Segundo Heitor Petry: “Tudo tem que ter critério. O programa deve estar voltado para quem tem vocação e se enquadra em requisi- tos mínimos. Entendo que não se deve priorizar pessoas para assentamentos ru- rais que não tenham vocação nem relação com o meio. O primeiro público-alvo deve ser aquele que está identificado com o setor” (entrevista ao autor). Uma li- nha de argumentação similar é apresentada por Nestor Hein: “É preciso ter voca- ção agrícola, a atividade agrícola é absolutamente incompatível com determina- das pessoas. Para as pessoas que vêm morar nas grandes cidades por um tempo, a volta para o campo é muito traumática. O campo brasileiro – não o norte-ameri- cano – ainda não é dotado de uma infra-estrutura capaz de acolher um homem que tenha vivido no meio urbano” (entrevista ao autor). Essa linha de interpretação entende a “vocação agrícola” como a capacidade que os indivíduos têm para gerir negócios dentro de uma lógica capitalista de produção. Neste caso, considera-se que as pessoas que não possuem um vínculo direto com o meio rural não estão capacitadas a se viabilizarem como pequenos produtores rurais. Entretanto, a transformação da “vocação agrícola” como crité- rio de seleção não é neutra politicamente. No caso em questão, observamos que tal exigência atende aos objetivos dos agentes políticos interessados em restringir o público das políticas agrárias, que utilizam esse expediente para desqualificar a ação dos movimentos sociais do campo.

276 A adesão dos municípios ao Banco da Terra era justificada também pela pos- sibilidade de beneficiar agricultores locais, evitando-se a sua transferência para outras regiões, como freqüentemente ocorre nos programas de assentamentos29. Segundo Heitor Álvaro Petry:

Na lógica da reforma agrária tradicional, a solução seria, então, reunir os pequenos agricultores de uma determinada região, comprar uma área em outra região e trans- feri-los para lá. Porém, isso os retiraria do meio onde eles estavam habituados a pro- duzir, e onde eles viviam havia disponibilidade de terras. Então, o Banco da Terra veio para aquele público-alvo que, no nosso entendimento, pelas suas características logísticas e de inserção social e regional, não se enquadravam na reforma agrária tra- dicional. O Banco da Terra criou a oportunidade de fixar as famílias na região em que elas estivessem acostumadas a viver (entrevista ao autor).

A fixação das famílias na região era encarada como uma das principais virtudes do programa, a qual também era utilizada como argumento para justificar a complemen- taridade do Banco da Terra à reforma agrária baseada nas desapropriações. No entan- to, tal “virtude” constitui hoje um dos principais limites para a expansão do crédito fundiário nas regiões onde o Banco da Terra teve uma atuação expressiva. As áreas disponíveis para venda escassearam, o que contribuiu para um aumento no preço das terras, em contraste com a persistência da demanda. Quanto à escassez de proprie- dades à venda, o depoimento de Heitor Álvaro Petry é bastante esclarecedor:

A demanda é grande. O que já existe em alguns municípios é falta de áreas disponí- veis. A maior parte das propriedades que estavam disponíveis já foi absorvida pelo Banco da Terra. Sobraram muito poucas áreas disponíveis para o programa. Essa é uma preocupação que temos: começa a se esgotar antes do público as propriedades disponíveis. Precisamos pensar em alternativas, talvez formas coletivas de compra de terras maiores para tentar criar lotes e assentar (entrevista ao autor).

O depoimento acima reconhece que o crédito fundiário apresenta limites objetivos, pois a demanda por terra nas regiões de minifúndio tende a ser maior do que a oferta. Tal constatação demonstra que não é possível equacionar os pro- blemas agrários dessas regiões valendo-se apenas do crédito fundiário, seja qual for o seu formato. Se, por hipótese, admitíssemos que todas as terras ofertadas fossem compradas mediante financiamentos, ainda sim haveria uma demanda a ser suprida, o que fatalmente obrigaria a busca de novas áreas em outras regiões,

277 contrariando a tese que defende a permanência dos agricultores nos municípios de origem. Ademais, a alternativa proposta para solucionar tal impasse – a com- pra coletiva de áreas maiores – colocará definitivamente em xeque um dos argu- mentos sobre o caráter supostamente complementar do Banco da Terra. Por outro lado, desde 2000 vem ocorrendo no Rio Grande do Sul um aumento significativo do preço das terras, que chegou a triplicar, em decorrência da sucessão de boas safras e da alta do preço da soja, usada como indexador nas transações de compra e venda de terras. Outros fatores também contribuíram para a elevação no preço das terras, como o aumento da área e do número de produtores de fumo, a aquisição de áreas por parte de empresas para o reflorestamento com pinus e eucalipto e a própria atuação do Banco da Terra (DESER, 2005, pp. 17-18). Neste contexto, os tetos previstos pelos programas de crédito fundiário em curso não permitem a aquisição de áreas com um módulo suficiente para a repro- dução social dos agricultores, apresentando-se como mais um limite objetivo para a continuidade da política fundiária que privilegiam a compra de terras.

Considerações finais

Do que foi exposto ao longo deste trabalho, é possível reter as seguintes con- siderações: • No RS, o Banco da Terra foi a principal política fundiária do governo FHC, cujo grau de prioridade é atestado pelo volume de recursos investidos e pelo número de famílias financiadas, o que fez com que o programa obti- vesse um maior alcance e abrangência territorial em comparação aos de- mais estados do país, sendo favorecido por um conjunto de razões aqui destacadas. • Os depoimentos citados indicam que no Rio Grande do Sul ainda existe espaço para uma política de crédito fundiário, principalmente nas regiões de minifúndio, onde uma parte significativa da população rural jovem ainda deseja permanecer na terra, corroborada pela existência de situações de abandono das propriedades rurais em face das migrações e do envelhe- cimento dos seus titulares. Entretanto, este espaço não pode ser entendi- do como exclusivo ao crédito fundiário, já que essa mesma demanda po- deria ser canalizada para uma política de reforma agrária, desde haja uma sinalização por parte dos governos de que esta política será considerada prioritária.

278 • A demanda por terra nas regiões de minifúndio, expressa pela intenção de aderir aos programas de crédito fundiário, precisa ser confrontada com as possibilidades objetivas destes se converterem em pequenos proprietários. Ou seja, não basta apenas dimensionar a procura por terra, mas é preciso também dimensionar a sua oferta. Nesse sentido, as entrevistas demons- traram que a continuidade dos programas de crédito fundiário no Rio Grande do Sul está sendo confrontada por limites objetivos, tais como a limitação da oferta de terras e o aumento dos seus preços. • No âmbito político, é preciso analisar qual é o grau de prioridade conferi- do ao crédito fundiário e às desapropriações litigiosas, dentro de uma pers- pectiva mais ampla. Se a prioridade de um governo federal for pelo forta- lecimento da estratégia da reforma agrária via desapropriações, nos parece óbvio que o espaço destinado ao crédito fundiário tende a ser menor, já que a maior parte da demanda por terra tende a ser canalizada para os acampamentos e ocupações de terras. Conforme demonstramos, não foi isso o que ocorreu durante o segundo governo FHC, pois o crédito fundiário foi utilizado como um mecanismo de fortalecimento e expan- são da reforma agrária de mercado e, também, como uma estratégia de disputa pelo controle da demanda por terra com os movimentos sociais, esvaziando o potencial de convocação de novos acampados. Com isso, o governo federal atuou em dois flancos: a) no esvaziamento e na deslegitimação do instrumento da desapropriação; b) na tentativa de que- brar a conexão existente entre as ocupações e a necessidade do Estado rea- lizar novos assentamentos para atender as pressões dos movimentos sociais do campo. Tais evidências colocam em xeque a argumentação de que o Banco da Terra teve no Rio Grande do Sul um caráter complementar ao modelo tradicional de reforma agrária.

Notas

1 Este artigo tem por base uma pesquisa mais ampla sobre as políticas agrárias implementadas no Rio Grande do Sul durante o governo Olívio Dutra (Da Ros, 2006). Agradeço imensamente os comentários e suges- tões feitos por Sérgio Sauer e João Márcio M. Pereira, que contribuíram para sanar uma parte das lacunas existentes na primeira versão apresentada para esta publicação. 2 Por razões de espaço, os entrevistados e as suas respectivas posições ocupadas nas entidades, movimentos sociais e órgãos governamentais são apresentadas no final do texto. 3 A Frente Popular abarcava o PT, o PCB, o PSB e o PC do B). No segundo turno das eleições, contou com

279 o apoio da Frente Trabalhista (composta pelo PDT, PST e PMN) e do PPS e do PV, que no primeiro turno haviam concorrido com candidaturas avulsas. A chapa vencedora tinha como candidato a governa- dor o ex-bancário Olívio Dutra e, como vice-governador, o deputado federal pelo PT Miguel Rosseto, que no governo Lula viriam a responder, respectivamente, pelo Ministério das Cidades e o Ministério do Desenvolvimento Agrário. 4 Depoimento de Jânio Guedes da Silveira. 5 Depoimento de Paulo Schneider. 6 Depoimentos de Flávio Santana Xavier e Nestor Hein. 7 Depoimento de Carlos Antônio Dai Prá. 8 Depoimento de Gedeão Pereira Silveira. 9 Depoimentos de Flávio Santana Xavier e José Hermetto Hoffmann. 10 Depoimento de Jânio Guedes da Silveira. 11 Depoimentos de Isaías Vedodatto, Frei Sérgio Görgen e Antonio Marangon. 12 Depoimentos de José Hermetto Hoffmann e Frei Sérgio Görgen. 13 Depoimento de Ezídio Pinheiro. 14 Depoimento de Mário Lill. 15 Segundo E. Pinheiro, presidente da Fetag: “A demanda para o Banco da Terra no RS era de 113 mil famílias inscritas nos sindicatos. Para fazer o levantamento, nós abrimos inscrições e cada um inscrevia um número de pessoas interessadas” (entrevista ao autor). Apesar desse número ser impressionante, ad- vertimos que não se trata de uma informação pública passível de ser comprovada através do confronto dos cadastros dos sindicatos com o número oficial de inscritos no programa, a exemplo do que ocorre com as famílias cadastradas no INCRA. 16 Segundo E. Pinheiro: “A Fetag custou a entrar no programa. Os sindicatos entraram rápido, porque aí o processo foi de baixo para cima. A Fetag de fato assumiu o Banco da Terra um pouco antes da minha saída do programa [ocorrida em 2/01/2001], porque a demanda estourou, houve mais de 100 mil inscri- ções. Na verdade, a Fetag nunca foi contra, ela ficou esperando o que ia acontecer, até porque a Contag era contra, então a Fetag não ia se rebelar” (entrevista ao autor). 17 Conforme o depoimento de E. Pinheiro. 18 Segundo o depoimento de Heitor Schuch: “Criou-se um conselho estadual que definia algumas regras. O conselho estadual era oficioso, ele não havia sido instituído por lei. Qualquer coisa que aparecia, o conselho municipal de agricultura definia. Por exemplo, se houvesse 80 inscritos, sorteavam ou escolhiam 30. Claro, pelo que ouvimos teve sacanagem também, do tipo: sorteava-se o cunhado do prefeito ou o parente do secretário. Esse tipo de coisa suscitou, inclusive, a interferência do conselho estadual. A estru- tura básica foi essa” (entrevista ao autor). 19 Entrevista concedida ao autor por E. Pinheiro. 20 Essa tese é reforçada por Heitor A. Petry: “Acredito que esse sistema descentralizado de gestão micro- regional, com um envolvimento direto dos municípios, e não do governo estadual, foi o grande respon- sável pelo desempenho do programa no Rio Grande do Sul” (entrevista ao autor). 21 Conforme aponta o depoimento de E. Pinheiro: “Nós procurávamos ser rigorosos, mas não tinha auto- nomia para julgar, devido à descentralização. Tivemos um caso em que um agricultor adquiriu uma terra, e no dia seguinte ela era um sítio de um advogado. Foi devolvido o dinheiro. Houve certamente alguns desvios, não diria ilegais, mas porque não havia critérios” (entrevista ao autor). 22 Depoimentos de Frei Sérgio Görgen, Dionilso Marcom e Elvino Bon Gass. 23 Nas ocasiões em que solicitamos aos gestores do Banco da Terra informações contendo os resultados glo- bais do programa no estado, obtivemos como resposta que estas deveriam ser encaminhadas ao Ministé- rio do Desenvolvimento Agrário. No entanto, nem mesmo os seus novos ocupantes nos forneceram in-

280 formações sobre o programa, o que nos levou a desistir de fazer novos pleitos. Lamentavelmente, os da- dos sobre a atuação do Banco da Terra continuam sob sigilo, quando deveriam ser de livre acesso e de conhecimento do público interessado, principalmente por ter se tratado de uma política que ocupou centralidade no governo anterior e que prossegue no atual governo com algumas reformulações. 24 Segundo E. Pinheiro: “O Banco da Terra tinha uma vantagem, porque foram compradas terras perto de onde as pessoas moravam. Se um jovem comprava, comprava do pai; se um o arrendatário comprava, já se sabia que aquela área era produtiva. As compras, então, eram feitas no olho” (entrevista ao autor). 25 Depoimentos de Aurio Scherer, Frei Sérgio Görgen e Mário Lill. 26 Segundo E. Pinheiro: “Aqui [o Banco da Terra] foi mais um programa de reordenamento fundiário, por- que os financiamentos foram individuais. Não tinha como fazer financiamentos grupais, pois foram com- pradas áreas que estavam sobrando, que estavam ou iam ficar ociosas. Por exemplo, de aposentados que iam sair da atividade agrícola” (entrevista ao autor). 27 Depoimentos de Elvino Bohn Gass e Dionilso Marcom. 28 Depoimento de Mário Lill. 29 Conforme depoimento de Heitor A. Petry.

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281 MEDEIROS, Leonilde (2002) Movimentos sociais, disputas políticas e reforma agrária de mercado no Brasil. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ e UNRISD. PEREIRA, João Márcio M. (2004) O modelo de reforma agrária do Banco Mundial em questão: o debate internacional e o caso brasileiro. Teoria, luta política e balanço de resultados. Rio de Janei- ro: CPDA/UFRRJ, Dissertação de Mestrado. _____ (2005) A disputa política no Brasil em torno da implementação do modelo de reforma agrá- ria de mercado do Banco Mundial (1997-2005), Revista NERA, nº 6, jan./jun., pp. 92-117. REYDON, Bastiaan (2000) Intervenção no mercado de terras: uma proposta para a redução do uso especulativo da terra, in Pedro Sisnando Leite (org.) Reforma agrária e desenvolvimento sustentável. Brasília: Paralelo 15/NEAD/MDA, 2000, p. 175-193.

Matérias de jornais consultadas 1. Zero Hora. Produtores bloqueiam estrada. Porto Alegre, 09/04/1998. 2. Correio do Povo. Ruralistas param técnicos do INCRA. Porto Alegre, 09/04/1998. 3. Zero Hora. Acordo prevê a suspensão das vistorias. Governo federal confirma a aquisição de 30 mil hectares no Estado para conter os ânimos dos fazendeiros. Porto Alegre, 28/08/1998. 4. Correio do Povo. Jungmann assina três convênios. Porto Alegre, 24/08/1999. 5. Correio do Povo. Estado tem primeiro gabinete regional para reforma agrária. Porto Alegre, 07/ 01/2000. 6. Correio do Povo. Secretário do Pronaf no RS irá dirigir o Banco da Terra. Porto Alegre, 14/02/2001. 7. Zero Hora. Estado rejeita Banco da Terra – Governos de oposição se recusam a assinar convênio com a União. Porto Alegre, 11/06/1999.

Entrevistas realizadas pelo autor 1. Antonio Marangon – ex-secretário extraordinário da reforma agrária (governo Olívio Dutra), em 13/11/2004. 2. Aurio Scherer – membro da coordenação nacional do MPA, em 27/9/2004. 3. Carlos Antônio Daí Pra – engenheiro agrônomo, ex-coordenador da Divisão de Aquisição de Terras da Superintendência Regional do INCRA/RS, em 1/4/2005. 4. Dionilso Marcom – ex-dirigente estadual do MST, deputado estadual pelo PT, em 8/11/2004. 5. Eloir Griseli – presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar de Erechim, dirigente da Fetraf-Sul, em 16/9/2004. 6. Elvino Bohn Gass – ex-dirigente sindical da CUT Missões, deputado estadual pelo PT, em 15/ 9/2004. 7. Ezídio Pinheiro – presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag/RS), em 9/9/2004. 8. Flávio Santana Xavier – Procurador do INCRA, ex-assessor de assuntos jurídicos do Departa- mento de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (governo Olívio Dutra), em 30/8/2004. 9. Frei Sérgio Antonio Görgen – deputado estadual pelo PT, ex-coordenador do Departamento de Desenvolvimento Rural e Reforma Agrária (governo Olívio Dutra), em 16/11/2004. 10. Gedeão Pereira Silveira – presidente da Comissão de Assuntos Fundiários da Farsul, em 17/9/ 2004.

282 11. Heitor Álvaro Petry – prefeito de Vera Cruz pelo PP e presidente da FAMURS, em 10/9/ 2004. 12. Heitor Schuch – ex-presidente da Fetag-RS, atualmente deputado estadual pelo PSB, em 1/9/ 2004. 13. Isaías Vedodatto – assentado, ex-secretário adjunto da reforma agrária (governo Olívio Dutra), em 12/12/2002. 14. Jânio Guedes da Silveira – ex-superintendente estadual do INCRA (segundo governo FHC), em 9/9/2004. 15. José Hermetto Hoffmann – ex-secretário da agricultura (governo Olívio Dutra), em 5/2/2004. 16. Mário Lill – membro da direção estadual do MST, concedida em 4/9/2004. 17. Nestor Hein –presidente da Comissão de Assuntos Jurídicos da Farsul, em 8/9/2004. 18. Paulo Schneider – engenheiro agrônomo, professor aposentado da UFRGS, integrante do Setor de Divisão Racional de Terras do Gabinete de Reforma Agrária e Cooperativismo (governo Rigotto), em 3/2/2004. 19. Vulmar Leite – secretário estadual da Reforma Agrária e do Cooperativismo (GRAC) do go- verno Rigotto, em 9/9/2003.

283

ESTADO, BANCO MUNDIAL E PROTAGONISMO POPULAR: O CASO DA REFORMA AGRÁRIA DE MERCADO NO BRASIL

SÉRGIO SAUER

No Brasil, são recorrentes as afirmações e reconhecimentos de que as mobili- zações e lutas dos movimentos agrários são as principais impulsionadoras das políticas governamentais na implementação de ações destinadas a redemocratizar a propriedade fundiária no país. Esse processo histórico de lutas, no entanto, é permeado por disputas e conflitos, tanto com o Estado como com setores oligár- quicos que ainda baseiam seu domínio político na propriedade da terra, sendo que, constantemente, as “respostas” são permeadas pelo uso da violência contra os camponeses e suas lideranças. O objetivo deste artigo é explicitar como os recursos e apoio do Banco Mun- dial (BIRD) se encaixaram perfeitamente no embate entre os movimentos agrá- rios e o governo FHC, quando este usou de todos os meios legais e repressivos para retomar as “rédeas” da política agrária e controlar as pressões sociais pelo acesso à terra. Em um contexto de política neoliberal, este governo transfor- mou o Estado brasileiro em “um comitê para gerenciar os negócios da burgue- sia”, como afirmou o velho Marx. Por outro lado, longe da tão propalada “isen- ção política” de seus técnicos, os recursos do BIRD deram uma nova perspectiva e reforçaram a retórica governamental de que era preciso “reinventar a reforma agrária” no Brasil. Este artigo procura resgatar os embates políticos que permearam (e ainda permeiam) a implantação do modelo de “reforma agrária de mercado” do BIRD no Brasil, suas implicações e o conseqüente respaldo à “política agrária” do gover- no FHC. Situa a implantação do Cédula da Terra e Banco da Terra – e, mais re- centemente, a continuidade destes via o Programa Nacional de Crédito Fundiário – no contexto da luta pela terra, contrastando a retórica sobre a importância da participação com uma prática que nega explicitamente o ideário do BIRD, impe- dindo qualquer protagonismo das famílias “beneficiadas”. A atualidade deste debate não se resume ao fato do governo Lula não apenas man- ter, mas ampliar as metas deste modelo de mercado e redirecionar os recursos orça- mentários do antigo Fundo de Terras/Banco da Terra para o Programa Nacional de Crédito Fundiário. Sua importância está também no fato de que famílias diretamente afetadas começam a se organizar – não mais em conseqüência de mecanismos artificiais de participação impostos pelo modelo, mas como resultado de processos sociais e lu- tas pela sobrevivência, criando inclusive o Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado, em Minas Gerais –, exigindo desde auditorias nos projetos até o seu enquadramento como beneficiários do programa constitucional de reforma agrá- ria, gerido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

1. Discurso do Banco Mundial: participação como protagonismo?

Historicamente, os empréstimos e investimentos do Banco Mundial geraram muitas oposições e críticas de setores organizados da sociedade civil a nível inter- nacional, especialmente por seu apoio incondicional aos programas de ajuste es- trutural do Fundo Monetário Internacional (FMI) nos países em desenvolvimen- to. Influenciado pela onda democratizante dos anos 1980/1990 e procurando amenizar oposições e críticas, o BIRD ampliou o seu portfólio de apoio aos paí- ses, incluindo temas e projetos como, por exemplo, alívio da pobreza, participa- ção das mulheres e preservação ambiental.1 A administração Wolfensohn (1995-2005) foi marcada por uma tentativa de melhorar a imagem do BIRD, fazendo da “eliminação da pobreza a sua missão central” (Bello & Guttal, 2006, p. 69). Passou a adotar também uma série de pro- cedimentos internos buscando privilegiar uma “maior participação” de atores não- governamentais – setores organizados da sociedade civil, em especial as Organiza- ções Não-Governamentais (ONGs) – e a disseminação de informações dos projetos que contam com o seu apoio.2 A participação da sociedade civil, segundo normas internas e orientações do Banco Mundial, não é uma condição sine qua non para a aprovação dos projetos de investimentos e empréstimos aos países membros. Essa participação, no en- tanto, passou a fazer parte das políticas do BIRD em conseqüência das pressões e demandas pela democratização de suas ações por muitas organizações não-gover- namentais (ONGs) e setores da sociedade civil. Diante dessa demanda, o Banco Mundial definiu a sua concepção de partici- pação, a qual deve fazer parte da formulação e implementação de todos os seus

286 empréstimos e investimentos. Utilizou estudos de casos e sistematização de expe- riências de financiamentos e empréstimos para formular o seu “participation sourcebook” (Banco, 1996). Segundo esse texto, a participação foi definida como “um processo através do qual as partes interessadas influenciam e compartilham o controle sobre as iniciativas de desenvolvimento e sobre as decisões e recursos que as afetam” (Banco, 1996, cap. 1 – grifos meus). De acordo com um dos itens do Manual de Operações do Banco Mundial – denominado “Boas práticas: envolvendo organizações não-governamentais nas atividades apoiadas pelo Banco”, ou simplesmente GP 14.70 (Banco, 2000d) –, os projetos de financiamento devem ter a participação ativa da sociedade civil. Afirmando que as ONGs e outras entidades da sociedade civil são importantes atores do desenvolvimento,

O Banco, portanto, encoraja tomadores e o corpo de funcionários a consultar as ONGs e as envolver, de forma apropriada, nas atividades apoiadas pelo Banco, incluindo trabalho econômico e setorial e em todos os estágios de concepção do projeto – identificação, formulação, implementação, monitoramento e avaliação (Banco, 2000d, §1).

É importante observar que a formulação e adoção destas diretrizes sobre par- ticipação refletem uma postura essencialmente pragmática, ou seja, além de me- lhorar a imagem do BIRD, a experiência histórica demonstrou uma série de van- tagens na participação da sociedade civil. Na formulação dos projetos, por exemplo, “ONGs – familiares com a área do projeto e que possuem laços com a população local – podem dar ao governo e ao Banco informações valiosas sobre circunstân- cias e prioridades locais da comunidade” (Banco, 2000d, §18). Apesar da noção de participação ter a democracia como justificativa, as for- mulações não são apenas pragmáticas, mas são essencialmente instrumentais, enfatizando vantagens de contar com o apoio da sociedade civil organizada. Além de fornecer informações (Banco, 2000d, §8), a contribuição das ONGs pode baixar custos (§24), oferecer experiência prática relevante (§7) e, talvez a vanta- gem mais importante, apoiar – conseqüentemente legitimar – as atividades do BIRD (§13). Além de enfatizar a importância da participação, as normas internas do BIRD estabelecem que os técnicos devem dar oportunidade para que as críticas da socie- dade civil sejam explicitadas antes de aprovar qualquer projeto. De acordo com o referido Manual de Operações (GP 14.70):

287 Quando os funcionários do Banco souberem de questionamentos de ONGs sobre projetos financiados pelo Banco, eles devem relatar esses questionamentos aos seus superiores, aos técnicos que trabalham no projeto, e a especialistas envolvidos dentro da rede. Quando projetos propostos são potencialmente controversos, a experiência tem mostrado que é, normalmente, produtivo assegurar que a opinião pública seja bem informada sobre o projeto em questão e seja dada oportunidade para explicitar os questionamentos, os quais deveriam ser considerados na formulação do projeto (Banco, 2000d, §19).

Essa participação – como qualquer relação social que envolve interesses difusos ou mesmo contraditórios – não tem sido tranqüila. Apesar das orientações para uma maior democratização, muitas entidades e movimentos sociais têm feito se- veras críticas aos mecanismos de participação, de consultas, ao Painel de Inspeção e às próprias atividades e projetos do Banco Mundial. Uma das críticas freqüentes é a falta de consideração às entidades e movimentos nacionais, pois o Banco Mundial tende sempre a privilegiar os interesses e relações com os governos em detrimento das demandas da sociedade civil (Bello & Guttal, 2006).3 Mesmo que haja uma genuína intencionalidade de democratizar suas ações e intervenções nos países, as experiências do Banco Mundial no Brasil são muito diferentes.4 O embate político em torno da implementação de seu modelo de re- forma agrária de mercado tem demonstrado, na prática, uma “participação” mui- to diversa da retórica ou das orientações dos manuais. Por exemplo, o BIRD apro- vou em 2000 a então nova solicitação de empréstimo (Pedido de empréstimo nº 7037-BR, de 30 de novembro), sem reconhecer a legitimidade das denúncias apresentadas pelo Fórum Nacional de Reforma Agrária e Justiça no Campo (Sauer & Wolf, 2001).5 Já em 1996 e início de 1997, a CONTAG, através da sua Secretaria de Refor- ma Agrária e Meio Ambiente, fazia duras críticas e oposição à implantação do projeto piloto da reforma agrária de mercado. Segundo termos do dossiê do Grito da Terra de 1997:

Esta alternativa do governo vem, portanto, mais uma vez beneficiar os grandes pro- prietários com a abertura de mercados para as terras que foram mantidas improduti- vas e como reserva de valor. O termo utilizado no programa do Ceará caracteriza a intencionalidade da proposta “reforma agrária solidária, amiga do mercado”. O Fun- do de Terras, na verdade, simplesmente mercantiliza o processo, beneficia o latifún- dio improdutivo e desqualifica as desapropriações, transformando-as em meras me-

288 didas acessórias na obtenção de terras para a reforma agrária (CONTAG, 1997, pp. 28-29).

Apesar desta crítica radical, a CONTAG reivindicava apenas uma “revisão no programa fundo de terras”, afirmando que deveriam ser considerados aspectos como a implantação em “regiões onde o número de imóveis susceptíveis de desa- propriação” fosse insuficiente e “excluir do programa áreas passíveis de desapro- priações” (1997, p. 3).6 Essa pauta levou a CONTAG a reunir-se com represen- tantes do BIRD em Brasília e com autoridades governamentais responsáveis, demandando mudanças no projeto piloto. Havia, no entanto, um “jogo de em- purra-empurra” entre o Banco Mundial e o Executivo Federal, em que um passa- va para o outro a responsabilidade de promover mudanças no projeto.7 Por outro lado, tanto o Governo FHC como o BIRD argumentavam em de- fesa do projeto – inclusive contra a acusação de que este estaria sendo colocado no lugar das desapropriações –, afirmando que o Cédula da Terra se constituía ape- nas em um projeto experimental e limitado. Rapidamente este argumento foi es- vaziado com a criação, em 1998, do Fundo de Terras/Banco da Terra (Lei Com- plementar 93, de 1998), o qual estendeu o mesmo mecanismo de financiamento para compra de terras em todo o país e passou a contar com a oposição sistemáti- ca de todas as entidades do Fórum Nacional de Reforma Agrária.8 De acordo com Steil e Soares,9 essas manifestações de oposição ao modelo de reforma agrária de mercado demonstram que a sua concepção e implantação “introduz[em] uma disputa política e ideológica com os movimentos sociais e seus mediadores” (2000, p. 12). No mesmo relatório, os consultores concluem que:

O Cédula da Terra se associa a uma tendência mais geral na sociedade de hegemonia do mercado. Os trabalhadores rurais que aderiram ao Cédula da Terra acabam reproduzindo o discurso oficial da reforma agrária de mercado, sem conflitos e em parcerias. Neste sen- tido, acaba não apenas se apresentando como uma alternativa às ocupações, mas como um instrumento de desmobilização dos movimentos sociais no campo (2000, p. 31 – grifos meus).

Esta disputa nunca foi admitida pelo Banco Mundial, que assume, de um lado, um discurso de isenção política-ideológica de seus técnicos, argumentando que os aportes de recursos são puramente técnicos e econômicos. De outro, o BIRD transformou as oposições e críticas ao seu modelo de mercado em simples “questionamentos” (Banco, 2000, p. 109) ou “discórdias” (Banco, 2000, p. 48) por parte de entidades da sociedade civil.

289 Essa “postura condescendente” do BIRD, ou mesmo a negação de conflitos de interesses e disputas políticas, deslegitimou a representatividade dos movimentos sociais agrários. Ao contrário da afirmação de Giddens de que “os movimentos sociais proporcionam vislumbres de futuros possíveis e são em parte veículos para sua realização” (1991, p. 161), a postura do Banco Mundial sempre foi de deslegitimar as ações e lutas sociais no meio rural. O BIRD simplesmente atribuiu todo o protagonismo às associações locais, supostos responsáveis pela concepção e implantação dos projetos (mobilização das famílias, negociação da terra, organização interna etc), retirando qualquer representatividade política dos atores nacionais. Essa postura política ficou evi- dente na resposta da diretoria do Banco Mundial ao Painel, por ocasião do pri- meiro pedido de Inspeção, feita pelo Fórum Nacional pela Reforma Agrária, em 1999. O relatório do Painel afirma que a diretoria do BIRD questionou “a legitimi- dade dos solicitantes” nos seguintes termos: “nenhum dos signatários identificáveis da Solicitação é beneficiário do projeto e não há evidências de que os solicitantes tenham sido designados para representá-los na Solicitação” (Ministério, 1999, p. 5). Como a diretoria do BIRD “quis restringir a legitimidade aos beneficiários, que seriam as associações civis que já participam do Projeto” (Ministério, 1999, p. 8), o Painel não considerou essa alegação correta, pois, conforme termos do próprio relatório (reproduzindo as normas e procedimentos para pedidos de ins- peção), “qualquer parte que sinta seus direitos ou interesses afetados direta ou indiretamente pela ação ou omissão do Banco” (idem, p. 8) pode solicitar uma inspeção. Mais do que questionar uma possível delegação explícita para representar as famílias envolvidas nos projetos, a postura do BIRD questiona a própria legitimi- dade das entidades como movimentos sociais. De acordo com Touraine, “movi- mento social é o esforço de um ator coletivo para se apossar de ‘valores’ das orien- tações culturais de uma sociedade, opondo-se à ação de um adversário ao qual está ligado por relações de poder” (1995, p. 253). A lógica do BIRD é negar a legitimidade desse ator coletivo, negando a relação de poder e a própria disputa política, esvaziando o sentido e a ação dos movimentos sociais agrários. Conseqüentemente, diferente da “postura técnica” de seus funcionários, as críticas e oposições dos movimentos sociais foram sempre desqualificadas por se- rem essencialmente ideológicas e tendenciosas ou por terem um “caráter filosófi- co” (Medeiros, 2001, p. 101). Este argumento foi amplamente utilizado na reu- nião da diretoria do BIRD que aprovou novo pedido de empréstimo (de US$ 202

290 milhões) em novembro de 2000. Questionados por membros da diretoria sobre a não participação de outros movimentos sociais, além da CONTAG, na implanta- ção do Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural, a ata desta reunião regis- trou uma resposta essencialmente política-ideológica dos técnicos do BIRD:

O técnico explicou que o projeto tem sido bem aceito a nível provincial [sic] e local, mas alguns dos comentários negativos sobre o mesmo, a nível nacional, têm haver com as agendas políticas de algumas organizações e não estavam relacionadas ao projeto em si (Banco, 2000b, § 161 – grifos meus).

Os documentos do Banco Mundial como, por exemplo, a Estratégia de Assis- tência ao Brasil (CAS), de 2000, revelam o pleno conhecimento das denúncias e oposições ao programa. No item dedicado às parcerias do BIRD no Brasil, a CAS faz uma referência a essas oposições ao Cédula da Terra, mas apenas como um desentendimento com organizações sociais. Segundo a CAS:

Existem ainda áreas de discórdia com as OSC’s [Organizações da Sociedade Civil], sen- do uma delas a reforma agrária, sobre a qual várias OSC’s fizeram duas solicitações de painéis de inspeção em relação ao projeto piloto de reforma agrária apoiado pelo Banco e que é implementado por associações comunitárias. Tanto nessa área, como em ou- tras, o Banco assumiu o compromisso de um diálogo aberto e mais intenso com as OSC’s (Banco, 2000, p. 48, § 113, item d – grifos meus).

No anexo 6 da CAS, relacionado com as contribuições recebidas durante o processo de consultas,10 o Banco Mundial transformou a oposição e as denúncias relacionadas à implantação do Cédula da Terra a apenas “alguns questionamentos”. Afirma que “há um forte apoio à reforma agrária e alguns questionamentos sobre o projeto piloto de reforma agrária de mercado, financiado pelo Banco” (Banco, 2000, Anexo VI, p. 109 – grifos meus). Desconhecendo esses questionamentos e seguindo as diretrizes gerais sobre a importância da participação, a nota à imprensa do Banco Mundial de 30 de no- vembro de 2000 – anunciando a aprovação da solicitação de empréstimo para o financiamento do Crédito Fundiário – enfatizou o caráter “altamente participativo” do projeto. Segundo essa nota:

O projeto aprovado hoje será altamente participativo, com o envolvimento de grupos comunitários, dos governos estaduais e municipais e com a participação da Confede-

291 ração Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) nos níveis municipal, estadual e nacional (Banco, 2000 – grifos meus).

Conforme já mencionado, a reunião da diretoria do BIRD que aprovou o pedido de empréstimo não foi marcada por esse tom otimista da participação da sociedade civil. Na verdade, segundo a ata da reunião do dia 30 de novembro de 2000 (Banco, 2000b, §§ 154 à 175), houve questionamentos dos próprios dire- tores do Banco Mundial sobre a exclusividade da participação da CONTAG no processo de implantação do projeto (pp. 16ss). A solicitação de empréstimo foi apresentada na reunião da diretoria do Banco Mundial como sendo um projeto “inovador, bem desenhado, consistente com as prioridades do Governo” (Banco, 2000b, §157), sendo que os projetos “pilotos prévios, os quais testaram um enfoque direcionado pela demanda, comunitário, provendo acesso à terra, foram um sucesso” (Banco, 2000b, §155). Alguns dire- tores do BIRD levantaram questionamentos sobre a exclusividade da CONTAG e a ausência de outras entidades da sociedade civil ou mesmo dos Conselhos Con- sultivos Estaduais na concepção e implementação do projeto. Segundo essa ata,

Alguns oradores perguntaram sobre os riscos potenciais originários da exclusividade da parceria estabelecida com a CONTAG para a concepção e implementação do projeto. Um deles perguntou porque outras organizações da sociedade civil não aceitaram o convite do Banco para participar. Ela questionou a pertinência de permitir que um projeto seja usado por uma organização para fazer avançar sua agenda política e per- guntou como os técnicos planejaram mitigar esse risco. Outro orador perguntou por- que a participação do conselho consultivo estadual tem sido abaixo das expectativas e quais as medidas que foram adotadas para resolver essa questão (Banco, 2000b, § 160).

Respondendo a esses questionamentos, os técnicos responsáveis pela execu- ção do referido projeto afirmaram que “o projeto foi bem aceito” em nível local e que “alguns comentários negativos” sobre o projeto são resultado apenas da “agenda política de algumas organizações” (Banco, 2000b, §161). Em outras palavras, os questionamentos e denúncias não passam de “tendências filosóficas” e de proble- mas políticos internos das próprias entidades e movimentos, como já era afirma- do no CAS. Mesmo dando uma explicação distorcida, os técnicos admitiram a existência de uma preocupação em relação à participação da sociedade civil. O Banco Mun- dial no Brasil, segundo esses técnicos, mantém uma porta aberta ao diálogo, pois

292 “... o processo de implementação e avaliação permanece aberto para quaisquer novos participantes que desejarem participar. O Banco está mantendo diálogo com igrejas no Nordeste do Brasil sobre o seu apoio ao projeto” (Banco, 2000b, §162). Mesmo diante dessas explicações, houve ainda outras perguntas sobre a au- sência de importantes movimentos agrários e entidades representativas com lon- ga história de luta pela terra. Segundo a ata:

Uma oradora observou que muitas organizações têm atuado na reforma agrária no Brasil, inclusive o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Algumas têm sido mui- to críticas ao enfoque do projeto. Perguntou se estudos independentes de diferentes enfoques da reforma agrária foram feitos e comparados para ver se eles são comple- mentares. Enfatizou a necessidade de aumentar a colaboração com uma gama de organizações da sociedade civil (Banco, 2000b, §163).

A ata não registrou, nesse momento, qualquer explicação aos questionamentos sobre a participação de outras entidades e movimentos sociais. Em resposta aos questionamentos sobre os estudos comparativos, os técnicos afirmaram que o pro- jeto de Crédito Fundiário inclui recursos para avaliar não apenas o projeto em apre- ço, mas também o modelo tradicional de reforma agrária (Banco, 2000b, §164). De acordo com a ata da reunião, houve ainda outras questões relacionados com a solicitação de empréstimo. Uma pessoa solicitou aos técnicos uma explica- ção sobre o sentido da expressão “associações comunitárias auto-seletivas” (“self- selected community associations”) e como as informações do projeto serão dissemi- nadas no meio da população rural (Banco, 2000b, §165). Enfatizando “a centralidade da auto-seleção e da disseminação de informações” na implementação do novo projeto, a explicação dos técnicos responsáveis reforçou a importância do apoio e contribuição da CONTAG, incluindo também o apoio de entidades locais e seus representantes nesse processo (Banco, 2000b, §166). A referida ata não traz todos os detalhes da discussão e aprovação do emprés- timo. Fica claro, no entanto, que o nome da CONTAG foi amplamente utilizado pelos técnicos do Banco Mundial para justificar o apoio, a participação e o monitoramento da sociedade civil brasileira ao novo empréstimo e a continuida- de da reforma agrária de mercado através do Crédito Fundiário. Segundo esses técnicos “a participação da CONTAG, e de outras ONGs que queiram partici- par, irá aumentar a transparência do processo” (Banco, 2000b, § 174). Este processo é um bom exemplo da distância entre a retórica sobre a importân- cia da participação e da transparência e a prática que impede qualquer protagonismo

293 popular. O problema, no entanto, não se restringe à negação de um conflito por parte do Banco Mundial, mas ao fato de que os seus recursos reforçaram as políticas gover- namentais direcionadas à implementação de um “acesso à terra não conflitivo”. Em outras palavras, as ações do BIRD estavam em perfeita harmonia com a lógica do Governo FHC que, entre outros objetivos, procurava neutralizar as pressões sociais pela reforma agrária no Brasil, criminalizando as ocupações, como veremos a seguir.

2. Estado e movimentos sociais: embates na implantação do modelo de mercado

A orientação política do governo FHC (1995-2002) em relação à questão agrária se tornou mais explícita e se consolidou no segundo mandato, especial- mente com o lançamento do programa “Novo Mundo Rural”, em 1999. Os parâmetros dessa política, no entanto, já estavam colocados desde o princípio, especialmente a lógica assistencial – aliviar a pobreza rural – de uma política de distribuição de terras para amenizar conflitos ou responder pontualmente às de- mandas e pressões dos movimentos sociais agrários. Já em 1995, cumprindo uma promessa de campanha, o então recém-eleito presidente lançou o seu programa de reforma agrária. Em artigo publicado à épo- ca, Cardoso afirmou: “a reforma agrária, desapropriando terras ociosas para destiná- las aos pobres, é um imperativo para enfrentar a extrema desigualdade ainda exis- tente no agro brasileiro” (1995, p. 1-6 – grifos meus). Ao longo dos dois mandatos, a luta contra a desigualdade deu lugar à construção de uma política agrária basea- da na necessidade de aliviar a pobreza rural, profundamente influenciada pela retórica e apoio financeiro do Banco Mundial. Logo no início do primeiro mandato, no entanto, vários acontecimentos11 forçaram o governo FHC a transpor a simples retórica e tomar medidas para atender as demandas sociais históricas por terra – especialmente o crescimento das ocupa- ções – e coibir a violência no campo (Medeiros, 2002, pp. 59s). A declaração do então recém-empossado Ministro Extraordinário de Política Fundiária, Raul Jungmann, de que “a reforma agrária readquiriu projeção situando-se no primei- ro plano da atividade política e no cenário econômico-social do Brasil” (1996, p. 1-3), foi reflexo claro das pressões sociais, em especial das ocupações de terras e do apoio popular a uma política de reforma agrária. Utilizando uma retórica baseada na necessidade de “reinventar a reforma agrá- ria” (Jungmann, 1996, p. 1-3), o Governo FHC adotou uma série de medidas

294 que deveriam baixar custos e agilizar os processos de aquisição de terras para fins de reforma agrária. Essas mudanças foram introduzidas pela edição da Medida Provisória (MP) 1.577, em 11 de junho de 1997, e devem ser interpretadas em uma perspectiva mais ampla de reforma do Estado, baseada nas concepções neoliberais do Estado mínimo.12 Além de acelerar os processos administrativos para aquisição de terras, todas essas mudanças visavam também readquirir o controle sobre as demandas sociais e ame- nizar as pressões dos movimentos agrários sobre a administração federal. De acordo com Medeiros, a própria criação do Ministério Extraordinário visava “retomar a iniciativa política e deixar de ‘estar a reboque dos movimentos’, no que diz respeito à política fundiária” (2002, p. 60). Esta iniciativa estava em franca oposição ao dis- curso da necessidade de “enxugar a máquina administrativa” (Bresser Pereira, 1997) e à necessidade de romper com as antigas ações governamentais, “marcadas por for- te dirigismo, centralismo e paternalismo técnico-burocrático” (Teófilo, 2000, p.14). Neste embate político com os movimentos sociais agrários, entre todas as ações governamentais, merece destaque a edição da MP 2.027-38 em 4 de maio de 200013, a chamada “MP das ocupações”. Segundo o texto desta MP: “O imóvel rural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado nos dois anos seguintes à desocu- pação do imóvel” (§6º do art. 4º). O texto da MP 2.183-56 de 2001, além de impedir a vistoria e a desapropria- ção de imóveis rurais ocupados, excluiu do programa de reforma agrária todas aquelas pessoas identificadas “como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural de domínio público ou privado” e também “quem for identificado como participante de inva- são de prédio público” (§7º do art. 4º). As penalidades não ficaram restritas aos mecanismos para coibir as ações indi- viduais, pois o texto da MP estabeleceu ainda pena para os movimentos sociais que organizarem as ocupações. De acordo com o §8º (art. 4º), qualquer movi- mento ou entidade que “auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou partici- par” de ocupações ou “em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo” fica impedido de receber “a qualquer título, recursos públicos”. Sem sombra de dúvidas, o principal objetivo dessas medidas governamentais – especialmente das MPs – era coibir as ocupações de terra no país, principal ins- trumento de mobilização popular e expressão da demanda por terra. De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (2004, p. 111), estas ocupações salta- ram de 197 em 1994, para 592 em 1998, mantendo um número expressivo de

295 502 ocupações no ano seguinte. A edição da MP 2.027-38, em 2000, foi extre- mamente eficaz na desmobilização popular, pois as ocupações caíram para apenas 195 em 2001 e 183 em 2002 (CPT, 2004, p. 111). O discurso e as ações governamentais para bloquear as mobilizações populares eram baseados em uma lógica que, de um lado, responsabilizava os movimentos sociais pelos conflitos agrários e, conseqüentemente, pela própria violência no cam- po14 e, de outro, atribuía um caráter paternalista às políticas agrárias governamen- tais, resultando na passividade dos camponeses que conquistaram o sonhado acesso à terra. Negando a legitimidade das ocupações de terras como expressão de deman- das sociais históricas e instrumento de luta, o então ministro Jungmann afirmou:

As invasões, por sua vez, são a força e a fraqueza do MST. Força, por lhe propiciar, via conflitos, uma ampla cobertura de mídia e uma posição nacional de interlocução política; fraqueza porque, sem invasões, ele reduz sua capacidade de mobilização (1997, pp. 1-3 – grifos meus).

Além de contraditório – afinal os promotores do conflito agem como “quase tutelados” diante do paternalismo do Estado –, o objetivo era retirar dos parcos processos de redemocratização da propriedade fundiária qualquer conteúdo de conquista social e/ou protagonismo popular. De forma complementar, a retórica do governo FHC – seguindo o discurso do BIRD (Deininger, 1998) – vendia suas propostas e programas, em especial a “reforma agrária de mercado”, como inovadores, pacíficos, democráticos e promotores de desenvolvimento e cidada- nia no meio rural.15

As ações de reforma agrária do governo direcionam-se, portanto, para modificar o caráter paternalista que o Estado sempre tratou a questão rural. Isso está muito claro também na concepção do Banco da Terra. O beneficiário do Banco da Terra não é um agente passivo, quase tutelado, que não participa dos processos administrativos (MEPF, 1999a, p. 26 – grifos meus).

Se, por um lado, a “MP das ocupações” constituiu um importante instrumento de criminalização e, conseqüentemente, de desmobilização social, os recursos do BIRD, por outro criaram as condições para disputar o protagonismo político com os movimentos sociais agrários no Brasil. A criação de uma linha de crédito para a compra de terra deslocou parcelas significativas de camponeses das lutas e ocu- pações, que passaram a sonhar com acesso à terra via compra.

296 As tentativas governamentais para reassumir o protagonismo na distribui- ção de terras introduziram, ainda, mecanismos que promoviam disputas entre os movimentos sociais. Apesar das várias referências à CONTAG por parte dos técnicos do Banco Mundial no processo de discussão e aprovação do novo em- préstimo, em 2000, o Ministro Raul Jungmann formalizou a participação da Força Sindical – entidade que tinha pouca ou nenhuma inserção no meio rural – e da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) – uma entidade patronal totalmente avessa a qualquer política de reforma agrária – no Conselho Curador do Banco da Terra “como representantes dos beneficiários desse projeto” (MDA, 2001a, art. 1º).16 A disputa com os movimentos sociais produziu uma retórica que vendia o novo modelo como eficiente, barato e inovador (Deininger, 1998; Teófilo, 2000). Nes- se sentido, o BIRD e o governo FHC produziram uma “mudança” significativa no caráter dos projetos e programas, ou seja, a proposta de “reforma agrária de mercado” se transformou, magicamente, em um “programa de reforma agrária baseada na comunidade” (program of community-based land reform).17 Apesar da retórica de que o programa é basicamente operado a partir da mediação de asso- ciações locais, estas não tiveram – e não têm – um desempenho importante no processo de implantação dos projetos, especialmente na negociação da terra, con- forme veremos adiante. A essência da proposta é baseada na lei da oferta e da procura, portanto, todas as medidas, encaminhamentos e propostas estão assentadas na lógica de mercado. A ênfase no aspecto “comunitário” não passa de um desvio semântico como ten- tativa de amenizar críticas ao modelo, utilizando um conceito caro às lutas, mobi- lizações e movimentos populares. O aspecto comunitário não é o que distingue as diferentes propostas de reforma agrária. O chamado “modelo tradicional” – ou simplesmente “liderado pelo Esta- do” – da desapropriação está fundamentalmente baseado em ações comunitárias ou coletivas de organização, mobilização, ocupação, negociação, essência do conceito de “movimento social”. Definir essa “nova” modalidade (baseada na lógica da oferta e da procura) como uma reforma agrária comunitária se transforma em uma tenta- tiva de deslegitimar as ações históricas dos diversos movimentos sociais, representa- tivos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais no campo brasileiro. Outro aspecto que merece atenção é o uso do conceito ou denominação de “tradicional” para definir a reforma agrária constitucional. Em primeiro lugar, é um equívoco de leitura da história, pois o Brasil não contou com qualquer tipo genuíno de reforma agrária. Em segundo lugar, é um uso semântico que se con-

297 trapõe à “novidade” da proposta de mercado. Em outros termos, o modelo do BIRD é “moderno” – conseqüentemente, um modelo eficiente, ágil, prático etc – e não “arcaico” e “ultrapassado”, como são implicitamente definidos os processos desapropriatórios “tradicionais”. Este caráter supostamente inovador aparece em diversos documentos, venden- do o modelo de mercado como algo moderno, barato e não-conflitivo.18 Segundo o “Sumário Mensal de Operações” (MOS), de março de 2001, a aprovação do recur- so de US$ 200 milhões referente ao empréstimo nº 7037-BR tinha como objetivo financiar uma “abordagem inovadora baseada no mercado” (Banco, 2001). Ainda mais importante do que esta “inovação”, a atuação e o apoio do Banco Mundial, na implementação do projeto piloto Cédula da Terra são colocados, inclusive, como um dos sinais visíveis do apoio a inovações nas políticas públicas brasileiras. O Banco Mundial avalia que tem contribuído – com recursos financeiros e não-financeiros – para importantes inovações nas políticas sociais brasileiras. Esse tipo de avaliação está explícito na CAS de 2000, quando afirma que, “em outras áreas, tais como a reforma agrária, o Banco tem dado o seu apoio a importantes inovações de políticas” (2000, § 84), e que “o projeto piloto tem demonstrado como o Banco pode facilitar inovações em políticas sociais e tem servido como o modelo para um novo programa complementar de reforma agrária do Governo (Banco da Terra)” (2000, § 122, item d).19 Os argumentos teóricos de sustentação desta “inovação” foram baseados em uma crítica genérica ao “modelo tradicional” como uma ação governamental burocráti- ca, cara e ineficiente, pois “a ação paternalista reduz a alocação de esforços por parte dos beneficiários e não os qualifica para participar plenamente das instituições do mercado” (Buainain, Silveira & Magalhães, s/d, p. 5). Além disso, a reforma agrária desapropriatória é vista como um processo coercitivo e pautado pela lógica do con- flito (Teófilo, 2000, p. 8), o que se torna negociado no modelo de mercado. É pre- ciso, portanto, buscar uma política agrária “menos nociva”, ou seja, “num claro aban- dono da abordagem tradicional, o novo modelo estimularia, em vez de minar, o mercado de terras” (Deininger & Binswanger, 1999, p. 267). Aqui está a chave ou premissa básica do modelo proposto pelo BIRD, pois o conflito é “bad for business” (ruim para os negócios). O BIRD e seus técnicos não conseguem admitir que o conflito é parte fundante de qualquer democracia. Esta não apenas o admite como o pressupõe, pois a simples noção de direitos sociais, políticos e econômicos – portanto, noções de soberania, igualdade e participação – resulta em conflitos que são constituintes da democracia, e não um perigo à mesma.

298 Na verdade, justificativas e argumentos teóricos para a implantação do mode- lo de “reforma agrária de mercado” foram baseados em críticas genéricas às ações governamentais e às políticas agrárias conduzidas pelo estado. Argumentos gené- ricos condenaram a reforma agrária “tradicional” como ações politicamente conflituosas e economicamente caras, portanto insustentáveis e inviáveis em qual- quer país, independentemente do processo histórico que resultou em profundas injustiças como é o caso da distribuição da propriedade da terra no Brasil. A proposta de mercado do BIRD, enfatizando a necessidade de aliviar a po- breza, retirou completamente o conteúdo e o potencial de desenvolvimento de uma redistribuição da propriedade fundiária (Pereira, 2004)20 e deslegitimou o papel do Estado como sendo um instrumento caro e ineficiente (Deininger, 1998).21 De acordo com Pereira, o Banco Mundial:

de um lado, procedeu a uma crítica radical ao que ele mesmo denominou de reforma agrária ‘conduzida pelo Estado’, baseada no instrumento da desapropriação; de ou- tro, trabalhou para que o MRAM [modelo de reforma agrária de mercado] fosse aceito, política e conceitualmente, como uma modalidade específica de reforma agrária redistributiva (2005, p. 1).

Conseqüentemente, o BIRD e o governo FHC produziram um “desvio se- mântico” rebaixando politicamente a definição de reforma agrária como “uma mera transferência de terra” (Deininger & Binswanger, 1998, p. 24), sendo necessários mecanismos complementares. O objetivo foi, então, alargar este conceito, permi- tindo que até mesmo programas de compra e venda de terras entre agentes priva- dos sejam considerados “instrumentos” de reforma agrária. Essa redefinição do sentido e significado da redemocratização da propriedade fundiária estava em franca disputa com a luta histórica e a plataforma política dos movimentos sociais agrá- rios (Sauer & Pereira, 2005).

3. Descentralização, democratização e protagonismo popular

Seguindo as diretrizes da reforma e modernização (enxugamento) do Estado (Bresser Pereira, 1997), entre as mudanças adotadas com a edição da Medida Pro- visória (MP) 1.577, de 11 de junho de 1997, estava a possibilidade de descentra- lizar “atribuições relativas à execução do Programa Nacional de Reforma Agrá- ria”, delegando-as a estados e municípios mediante convênio (art. 2º). O argumento

299 básico para essa descentralização foi de que a “experiência com reforma agrária centralizada tem se revelado como uma alternativa vagarosa – e mais custosa – em relação à negociação descentralizada” (Deininger, 1998, p. 19). Dentro dessa lógica de enxugamento do Estado, a defesa da descentralização foi recorrente durante todo o governo FHC, colocada sempre como sinônimo de democratização ou como um argumento de uma maior eficiência administrativa (Buainain, Silveira & Magalhães, s/d, p.4). Isso não foi diferente em relação às políticas agrárias, pois, de acordo com o então ministro Jungmann:

Assim, a descentralização vai possibilitar, em primeiro lugar, maior participação, em segundo, menor custo; e, em terceiro, elevar as metas de assentamentos. (...) A descentralização é o caminho mais rápido e seguro para a democratização das ações e dos mecanismos da reforma agrária (1996, pp. 1-3).

Esse processo de descentralização – além de ser fundamental na “reconstrução do Estado” como um agente “regulador e facilitador ou financiador” do desenvol- vimento (Bresser Pereira, 1997, p. 6) – tinha como objetivos oficiais redirecionar as políticas públicas, desburocratizar as ações governamentais e facilitar a partici- pação popular (essa via os famosos conselhos municipais ou mesmo organizações locais tipo associações), promovendo a democracia. Além de envolver os demais entes federados (estados e municípios), a descentralização deveria representar tam- bém uma aproximação com as necessidades imediatas da população – e, conse- qüentemente, uma “transferência de responsabilidade aos próprios beneficiários” (Buainain, Silveira & Magalhães, s/d, p. 2) – ou, traduzindo em termos mercado- lógicos, com a demanda. Um princípio fundamental do modelo de reforma agrária de mercado é o enfoque “dirigido pela demanda” (demand-driven approach) ou, como já vimos, também chamado de abordagem “dirigida pela comunidade” (community-driven approach) (Teófilo, 2000). Segundo esse princípio, o acesso à terra deve se dar de acordo com a demanda manifesta dos indivíduos diretamente interessados, de tal maneira que somente as terras explicitamente demandadas devem ser objeto de transação comerciais de compra e venda. No processo de implementação do Cédula da Terra – e, agora, nos outros subprogramas do Programa Nacional de Crédito Fundiário –, essa demanda deve- ria estar organizada em associações comunitárias, as quais foram eleitas “como prin- cipais protagonistas de um novo modelo de política fundiária” (Buainain et al., 1999, p. 220). O modelo prega que essas “associações têm total autonomia para tomar as

300 decisões”, resultando em “melhorias do bem-estar e da produtividade associada prin- cipalmente à ausência de tutela do setor público” (Teófilo, 2000, pp. 15 e 14). Conseqüentemente, as associações comunitárias deveriam funcionar como as células-base de todo projeto (Teófilo, 2000), pois, entre outros benefícios, a for- ma associativa deve reduzir erros de avaliação individual e facilitar a seleção de terras de melhor qualidade e mais adequadas às necessidades dos demandantes. Essa transação mercantil supõe a negociação entre as partes interessadas, de modo que todo o processo de aquisição de terra deve ser realizado com o mínimo de ingerência do estado e o máximo de protagonismo dos vendedores e compradores (Teófilo, 2000, p. 17), gerando o famoso “empowerment” (empoderamento) dos pobres do campo.22 Apesar de reconhecer a importância das “entidades coletivas de representação”, Navarro já apontava, em 1998, sérios problemas nas associações do Cédula da Terra. Diferente da teoria que sustenta o protagonismo de um comprador livre e autônomo, o autor constatou que “as associações, no geral, não representam os interesses dos associados que a ela se integram” (1998, p. 12 – grifos no original) e concluiu que:

A formação de associações de pequenos agricultores, por exemplo, da forma como está sendo implementada pelo PCT, nos três estados visitados, acarretará em uma alta proba- bilidade de fracasso, pois não garante nenhuma sustentabilidade da organização constituí- da, tanto para garantir o pagamento do empréstimo como, também, para garantir a via- bilidade produtiva e econômica do empreendimento (Navarro, 1998, p. 14 – grifos meus).

Assim como suas entidades de representação, os camponeses e trabalhadores rurais não agiram ou agem de acordo com os pressupostos e ideário do modelo de reforma agrária de mercado. Por força da trama de relações sociais e processos históricos de dominação existentes no meio rural, a seleção dos imóveis adquiri- dos através do Cédula passou longe do protagonismo dos “demandantes”, como constataram Sauer e Victor:

Os trabalhadores e trabalhadoras, assim como na definição dos preços, não tomaram parte das negociações, pois a maioria delas foi feita à revelia das famílias beneficiárias (...). As famílias tiveram pouco, se algum, poder nas decisões sobre as áreas adquiri- das. Todas as pessoas entrevistadas de três estados (Minas Gerais, Bahia e Maranhão) – incluindo os presidentes das associações –, afirmaram que não participaram direta- mente nem da escolha nem da compra da terra (2002, p. 109).

301 Essa situação de fragilidade institucional, incapacidade de representação e fal- ta de protagonismo das associações foram constatadas pela equipe de Buainain. O protagonismo não se deu, por exemplo, em um dos momentos mais importan- tes do modelo de mercado, ou seja, na negociação e compra dos imóveis. De acordo com a avaliação preliminar, a “grande maioria das associações, mesmo entre as que declararam ter negociado diretamente com o proprietário, desempenhou um papel secundário no processo, limitando-se a colher a oferta, levá-la ao órgão res- ponsável, voltar com contraproposta e assim por diante” (Buainain et al., 1999, pp. 120-1). As evidências sobre a fragilidade das associações no processo de negociação imobiliária são numerosas e revelam que não existiu nenhum protagonismo atri- buído a elas pelo modelo de reforma agrária de mercado. Apesar da retórica neoliberal contra o Estado e a ênfase na autonomia dos beneficiários, na prática foram os órgãos governamentais que conduziram o processo de negociação das áreas e implantação dos projetos:

Em todas as situações arroladas, a negociação é desigual. Os interessados encontram- se divididos em direitos desiguais face ao mercado de terras, e a suposta informação plena é uma ficção. Mesmo nas situações em que a negociação se dá (...) entre proprie- tários e associados sem a participação direta do governo, o que ocorre, na maioria dos casos, [é] uma negociação entre os órgãos governamentais com os proprietários das terras. Para estes, o comprador potencial é o estado e não lhes interessa se os associa- dos terão ou não condições de pagar. (...) Enfim, quem fecha o negócio é o governo e não a associação (Buainain et al., 1999, p. 121 – grifos meus).

Além de explicitar fragilidades e problemas das entidades dos beneficiários, essa constatação destrói um dos principais pilares do modelo de mercado, mesmo que esse passe a ser denominado de “modelo negociado”. O ideal liberal de nego- ciação entre um vendedor e um comprador “iguais e livres” é, na verdade, deter- minado pelo protagonismo de órgãos governamentais, destruindo o discurso de que essa proposta rompe com a tutela do Estado.23 Essa condição de não-protagonismo e de fragilidade sociopolítica das associa- ções contrasta frontalmente com os esquemas idealizados de participação e de “empoderamento” apregoados pelo Banco Mundial. Na verdade, o problema não está na “política de participação” do BIRD, mas, primeiro, na noção de que essa se dá de forma automática, independentemente do contexto histórico e de pro- cessos sociais profundamente marcados pelo autoritarismo. Em segundo lugar, a

302 negação explícita ou implícita do protagonismo dos movimentos sociais nacio- nais reforça uma visão míope da realidade, fazendo com que “o mundo ideal de participação” desenhado nos documentos e projetos do BIRD colida “com o mundo real das relações sociais, marcado por práticas paternalistas e clientelistas” (Soares, 2001, p. 55). Diferente do discurso, a experiência concreta do Cédula não foi capaz de rom- per o “forte dirigismo, centralismo e paternalismo técnico-burocrático” do Estado. Esse discurso de que a implantação do modelo de mercado “deixa aos próprios beneficiários a decisão de escolher e negociar a terra” (Buainain, Silveira & Maga- lhães, s/d, p. 5) resultou, na prática, que “os órgãos estaduais de coordenação do projeto” assumiram “a condução do processo de negociação” (Steil, 2000, p. 26), tornando-se os verdadeiros protagonistas da reforma agrária “de mercado”. Os problemas não se resumem à fragilidade institucional e incapacidade das associações para exercer o papel atribuído pelo modelo de mercado, nem à desigual- dade de poder na negociação entre compradores e vendedores, ou mesmo à tutela dos órgãos governamentais.24 Diferente do alerta de Navarro de que “o sucesso do projeto” dependia “fortemente da estratégia de formação das associações” (1998, p. 14 – grifos no original), estas entidades foram artificialmente constituídas como um passo meramente formal para cumprir uma exigência do programa. De acordo com Buainain e outros, a metade das associações foi criada exclu- sivamente para participar do Cédula (1999, p. 223), revelando um procedimento meramente burocrático, sem qualquer acúmulo organizativo. A baixa organicidade e a falta de representatividade dessas associações, formadas apenas para garantir o acesso imediato à terra, as tornam vulneráveis e com mínimas condições de sustentabilidade (Navarro, 1998). Mais significativa que a artificialidade – motivada por uma decisão burocráti- ca do modelo proposto –, no entanto, foi a constatação de que muitas associações se constituíram, e sofrem, fortes influências de agentes externos, e não como uma simples iniciativa das famílias “demandantes” de terra:

É expressiva a participação de agentes externos e de outras instituições no processo de formação e na própria condução das associações. A proposta oficial caracteriza a adesão dos pequenos produtores rurais ao PCT como um processo cuja iniciativa partiria dos próprios interessados. No entanto, os depoimentos mostram que a cria- ção de associações não é tão “natural” como se espera. Em todos os estados, e particu- larmente na BA e em MG, há uma clara intervenção de atores e instituições externas ao grupo, tais como prefeituras, políticos locais, pessoas “bem intencionadas”, pro-

303 prietários de terra, técnicos ligados às instituições governamentais, etc (Buainain et al., 1999, p. 279).

Segundo Buainain et al.,(1999, p. 233), esta ingerência de forças externas no processo de constituição das associações ocorreu de modo “informal e oficioso”, sendo que os órgãos estaduais, responsáveis pela implantação do Cédula, e de- mais instituições governamentais foram os agentes externos na criação de quase 40% das associações então existentes.25 As associações criadas apenas para ter acesso ao Cédula tiveram em comum o fato de terem sido predominantemente consti- tuídas a partir da iniciativa de órgãos governamentais direta ou indiretamente li- gados ao projeto, como também de prefeituras, políticos locais e proprietários (Buainain et al., 1999, p. 223).26 A maioria dos casos envolvendo a ação dos órgãos governamentais foi enqua- drada pela equipe de pesquisa como uma ingerência externa através de orientação e organização. Os casos de organização e controle direto foram observados mais em relação à ação de políticos locais, prefeituras e ex-proprietários (Buainain et al., 1999, p. 234). É evidente, no entanto, o alto grau de protagonismo de agentes (funcioná- rios e órgãos) governamentais na constituição e “funcionamento” das associações representativas das famílias “beneficiadas”, colocando em cheque tanto a propalada participação social como a noção de um programa sem a tutela do estado. Além da falta de experiência organizativa e da artificialidade na construção das organizações comunitárias, bases da proposta, outro fator que reforçou a fra- gilidade das associações foi o baixíssimo grau de socialização de informações a respeito do projeto. Essa falta limitou estruturalmente a capacidade de participa- ção autônoma dos “beneficiários” do Cédula. A equipe responsável pela avaliação preliminar constatou essa falta de informações e a conseqüente dificuldade em participar nas negociações ou mesmo na formulação dos subprojetos produtivos ou comunitários:

Outro traço extremamente relevante é o desconhecimento quase total das condições de funcio- namento do próprio Cédula da Terra. Quando indagados se haviam tomado crédito no último ano, a resposta espontânea da grande maioria foi “não”. Lembrados do emprés- timo para comprar a terra, e perguntados sobre a fonte, montante, taxa de juros e tipo de garantia dada, praticamente a totalidade não soube responder. Alguns poucos indica- ram partes do que poderia ser a condição de pagamento do Cédula da Terra (tipo “eu sei que tenho 7 anos para pagar, mas não sei quanto”), mas praticamente ninguém sabia as condições precisas do empréstimo (Buainain, 1999, p. 106 – grifos meus).

304 Conforme alerta Pereira (2004), não se trata de pressupor que o acesso às in- formações seria suficiente para produzir sujeitos históricos e protagonistas de pro- cessos até então estranhos ao cotidiano de lutas pela sobrevivência. A difusão de informações, por si só, não é suficiente para gerar novas atitudes e comportamen- tos, muito menos um protagonismo social em condições bastante dispares. Além de desmentir a política do BIRD de pleno acesso à informação relacionada a seus projetos, conhecer regras e limites é uma condição fundamental para qualquer participação. Conseqüentemente, o não domínio das “regras do jogo” – como, por exemplo, negociar se não se tem conhecimento da disponibilidade de recur- sos – simplesmente revela o não protagonismo das pessoas envolvidas nos proje- tos, favorecendo a proliferação das históricas práticas de tutela. Apesar de todos estes problemas, amplamente explicitadas nas avaliações ofi- ciais do Cédula da Terra, o BIRD concluiu como uma das importantes lições na implantação do Cédula da Terra que “a implantação através das associações co- munitárias” foi “um sucesso”. Isso aconteceu porque “as associações mostraram uma impressionante capacidade para mobilizar seus membros, selecionar e nego- ciar a compra da terra, preparar os investimentos produtivos e os executar” (Ban- co, 2003, p. 32). Esses desencontros e descompassos entre o ideário e a experiência concreta da “reforma agrária negociada” não se restringem ao processo de implantação dos projetos e à interferência externa na criação das associações. Esses desencontros têm comprometido não só a proposta mas a própria sobrevivência das famílias envolvidas, sendo que a busca pela sobrevivência nos projetos levou as associações do Banco e do Cédula da Terra, localizadas no Triângulo Mineiro e no Alto Paranaíba, a criar, no início de 2006, o Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado (Movimento, 2006). Os documentos deste movimento revelam que, desde 2003, vêm sendo feitas muitas denúncias relacionadas à implantação do Banco e Cédula da Terra em Minas Gerais. Essas denúncias vão da compra de “áreas que não são aptas à agricultura, muitas vezes superfaturadas” (Movimento, 2006a, p. 1), há casos onde o “núme- ro de famílias supera a capacidade das áreas” (Movimento, 2006, p. 1), resultando na exigência de uma auditoria no Banco da Terra no estado. É significativo que, já em 2003, essas organizações levantassem a questão so- bre “com quem as Associações do Banco da Terra devem negociar” (Movimento, 2003, p. 1), buscando uma interlocução com os órgãos oficiais. Em outras pala- vras, não há protagonismo social quando não há interlocução ou canais de nego- ciação entre os diferentes grupos de interesses (aqui os órgãos governamentais). A

305 Carta de Uberlândia é mais explícita na demanda de protagonismo, quando exige que “o governo deve respeitar a autonomia e representatividade das Associações e de sua articulação enquanto movimento” (Movimento, 2006a, p. 1). Se havia críticas a este mecanismo como um meio incapaz de redemocratizar a estrutura fundiária, é muito difícil, diante das avaliações e das mobilizações so- ciais recentes, afirmar que a “reforma agrária de mercado” é um sucesso em ter- mos de participação e “empoderamento” do povo do campo. No final, a insistên- cia nesse tipo de programa acaba penalizando as pessoas que sonham com o acesso à terra como um meio de vida, inclusive competindo com os parcos recursos des- tinados à reforma agrária constitucional.

Conclusão

Apesar de todo o ideário supostamente democrático e participativo, as experiên- cias concretas demonstram que o modelo de reforma agrária de mercado é uma grande falácia. Mesmo que o invólucro ou marketing sejam atraentes, os resulta- dos têm sido desastrosos, o que, infelizmente, nada mudou – a não ser o nome da fonte de financiamento nacional – na implantação da proposta no Brasil, através da execução do Programa Nacional de Crédito Fundiário pelo atual governo. Diante do volume de recursos emprestados e do número de famílias envolvi- das, os desdobramentos da experiência brasileira têm um papel importante no futuro da proposta de “reforma agrária de mercado” do Banco Mundial. Por ou- tro lado, independentemente se os programas serão plenamente executados ou mesmo implantados com algum sucesso no Brasil, o BIRD continuará anuncian- do-o como um sucesso e passível de reprodução em outros países, influenciando outros organismos multilaterais. Essa insistência recoloca a proposta na agenda política dos governos e setores organizados da sociedade civil. O mais importante, no entanto, são as conseqüên- cias para as famílias diretamente “beneficiadas”. Estas não participaram, muito menos foram protagonistas, nos processos de decisão na fase inicial, mas come- çam a se articular, buscando uma revisão total do programa ou, como no caso de Minas Gerais, uma reclassificação como assentados dos programas constitucio- nais de reforma agrária, executados pelo INCRA. Certamente nessa nova etapa de luta as famílias serão sujeitos do processo. Resta saber se os governos estaduais e federal e o próprio Banco Mundial irão reconhecer tal protagonismo social e po- lítico.

306 Notas

1 A adoção destes temas é um reflexo direto das críticas crescentes à noção de desenvolvimento centrada no crescimento econômico – noção dominante até meados dos anos 1980 – e das várias cúpulas e conferências sobre pobreza (desenvolvimento social), desigualdades sociais, de gênero e meio ambiente, organizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), em meados dos anos 1990s. 2 Mesmo reconhecendo uma série de problemas, Fox afirma que a criação do Painel de Inspeção – como um organismo autônomo e fiscalizadas – foi uma experiência inédita e a explicitação de um processo de abertura ou de transparência do BIRD, pois “cidadãos de países em desenvolvimento podem agora fazer reclamações a respeito dos custos sociais e ambientais de projetos do Banco Mundial” (2001, p. 37). Para maiores detalhes, ver os artigos publicados em Barros (2001). 3 De acordo com Fox, os procedimentos do Painel de Inspeção acabaram provocando reações dos governos tomadores de empréstimos que os interpretaram como uma ameaça à soberania. Segundo ele, “os governos do Brasil e da Índia lideraram uma contra ofensiva para limitar a abrangência da atuação do Painel. Por exemplo, suas propostas retiravam do Painel a possibilidade de examinar problemas socioambientais que fossem causa- dos conjuntamente por governos e pelo Banco...” (2001, p. 61). 4 O artigo de Bello & Guttal avalia os percalços e conflitos em três experiências concretas de participação, sendo uma a Iniciativa de Revisão Participativa do Ajuste Estrutural (SAPRI) e conclui que “agora o Banco está desa- creditado não apenas por não cumprir o seu próprio objetivo de ‘criar um mundo livre da pobreza’, mas tam- bém por sua falta de habilidade e vontade para manter a palavra e cumprir compromissos que fez publicamente em vários ‘diálogos com partes interessadas’” (2006, p. 80). 5 Para maiores detalhes sobre os pedidos de inspeção do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, ver Sauer & Wolf, (2001), e a atuação das entidades agrárias, ver Medeiros, (2002). 6 Medeiros (2002, p. 84) lembra que este tema e a demanda por uma linha de crédito destinada à compra de terras, com condições favoráveis, já haviam aparecido na pauta do Grito da Terra-Brasil de 1996. 7 Em 2000, a CONTAG incluiu novamente em sua pauta de mobilização (Grito da Terra-Brasil) a reivindicação de um programa de crédito fundiário. Este foi o caminho aberto para que o BIRD, tendo um sinal positivo do governo FHC e a tão desejada “participação” da sociedade civil, aprovasse novo aporte financeiro, colocando recursos no Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural. 8 O Cédula da Terra não havia sido avaliado – os projetos financiados pelo Banco Mundial sofrem uma Avalia- ção de Meio Termo (middle term evaluation) ou avaliação preliminar – ou mesmo começado a ser implantado no estado do Bahia e os processos de compra de terra já estavam autorizadas para todo o território nacional por meio do Banco da Terra. 9 O Banco Mundial contratou estes consultores externos para realizar um estudo sobre os fundos sociais finan- ciados ou administrados por esse organismo multilateral no Brasil, os quais incluíram um capítulo sobre o Cédula da Terra. 10 O Banco Mundial, no anexo 6 do CAS, afirma que houve consultas a entidades da sociedade civil, parlamen- tares, empresas, governos estaduais, BNDES, CNBB, pesquisadores e professores (Banco, 2000, p. XXXIV, item 1) no processo de elaboração da Estratégia de Assistência ao Brasil (CAS) de 2000 a 2004. 11 Além dos massacres de Corumbiara (RO), ocorrido em agosto de 1995, e de Eldorado dos Carajás, em abril de 1996, resultando em pressão internacional sobre o novo governo, a marcha do MST, realizada em 1997, recolocou o tema na opinião pública nacional e “capitalizou insatisfações diversas e se constituiu na primeira manifesta- ção popular contra o governo que, até então parecia gozar de unanimidade absoluta, em função do impacto econômico do Plano Real e queda da inflação” (Medeiros, 2002, p. 61). 12 Como bem observou Medeiros, essas mudanças e a própria criação do Ministério Extraordinário de Política Fundiária eram parte de “marcos mais amplos do que a questão agrária propriamente dita, na medida em que

307 se regia[m] pelos parâmetros de uma reforma do Estado, cujas diretrizes centrais eram a descentralização de ações, o enxugamento da máquina administrativa e a privatização” (2002, p. 62). 13 A MP 2.027-38 revogou e substituiu a MP 1.577, de 1997, e suas dezenas de reedições, que também foi revogada e substituída, em 24 de agosto de 2001, pela MP 2.183-56, sendo que esta não apenas manteve a proibição de vistoriar áreas ocupadas como ampliou a restrição para 4 anos nos casos de reincidência (§... do art. 4º). 14 Para maior discussão sobre a importância da mobilização social na luta pela terra e o significado dos conflitos agrários, distintos de violência no campo, ver Sauer (prelo). 15 De acordo com as críticas do BIRD, “em vez de buscar o aumento da produtividade e sustentavelmente reduzir a pobreza, muitas das antigas reformas agrárias foram direcionadas a acalmar a agitação social e amenizar as pressões políticas das organizações camponesas” (Deininger, 1998, p. 3). 16 Medeiros cita ainda outros mecanismos que visavam estimular essas disputas como, por exemplo, a permissão para que as entidades estaduais sindicais indicassem áreas para desapropriação, mostrando que a intenção era “legitimar as demandas de uns, ignorando as de outros” (2002, p. 65). 17 Essa terminologia “comunitária” passou a ser utilizada em documentos como, por exemplo, na CAS de 2000 e no documento (Project Appraisal Document – PAD) que formalizou a solicitação de empréstimo junto ao Banco Mundial, aprovado em 2002 (Banco, 2000b). 18 De acordo com o PID, um dos objetivos do empréstimo era implantar “um piloto como teste do mecanismo baseado no mercado para a reforma agrária no Sul do Brasil, permitindo ao Governo acelerar enormemente o processo e diminuir os custos de seu programa de reforma agrária” (Banco, 1998, item iii, § 9). 19 É importante observar que o BIRD tem gastado somas consideráveis em estudos e eventos relacionados aos projetos. De acordo com uma versão preliminar do Manual de Operações do Crédito Fundiário, “1,9% do custo total do Projeto pode ser destinada à divulgação, à disseminação e à avaliação (2001, p. 11), ou seja, algo em torno de US$ 7,6 milhões, e outros “3% do custo total à difusão do Projeto, assistência técnica e capacitação dos beneficiários” (2001, p. 10), algo em torno de US$ 12 milhões. 20 Todos os documentos do BIRD estabelecem apenas uma relação entre reforma agrária e alívio ou combate à pobreza, mas nunca com o combate à desigualdade ou com mecanismos de desenvolvimento econômico, político ou social. De acordo com o texto do pedido de empréstimo (PAD), “o empréstimo proposto irá apoiar o Brasil no enfrentamento de um dos principais fatores geradores da pobreza no meio rural: o acesso inadequado à terra pelos pobres rurais” (Banco, 2000b, item A, ponto 1). 21 Reforçando o discurso de que “a grande tarefa política dos anos 90 é a reforma ou a reconstrução do estado” (Bresser Pereira, 1997, p. 1), o BIRD construiu uma caricatura neoliberal para disputar a concepção de Estado, afirmando que o desenvolvimento exige “uma forte reorientação das políticas públicas no sentido de superar o quadro de interferência burocrática, ineficiência técnica e operacional característica de políticas centralizadas, baseadas em forte dirigismo e controle por parte do Estado” (Buainain, Silveira & Magalhães, s/d, p. 2). 22 Segundo o BIRD, este é o grande objetivo, pois se “o processo de reforma agrária negociada contribuir para mudar a atitude dos beneficiários e conseguir transformá-los de objetos passivos, que esperam o governo dar as soluções, para sujeitos do processo capazes de converter um subsídio em um melhoramento permanente de suas condições de vida, o modelo negociado de reforma agrária terá atingido mais do que o seu objetivo” (Deininger, 1998, p. 20 – grifos meus). 23 Outro estudo, fruto de um convênio FAO/INCRA, diagnosticou que o IDACE, órgão governamental encarre- gado de coordenar a implantação do Cédula da Terra no Ceará “... tem participação significativa no preço e na modalidade de pagamento da terra em questão principalmente devido à falta de iniciativa ou desconhecimen- to dos preços de mercado por parte dos beneficiários. (...) O IDACE emerge como negociador direto com os ven- dedores, contradizendo seu papel de árbitro ou mediador no processo (Groppo et al., 1998, pp. 3-4 – grifos meus). 24 “As propostas de participação e ‘empoderamento’ comunitários ficam completamente comprometidas pois, na realidade, o Cédula é um programa totalmente protagonizado pelo próprio Estado (...). A pesquisa de campo

308 confirmou também o total desequilíbrio nos processos de negociação, constatando a ausência ou submissão dos compradores aos processos conduzidos por proprietários, órgãos governamentais ou outras ‘forças’ alheias aos interesses das famílias” (Sauer & Victor, 2002, pp. 80 e 87). 25 A pesquisa do Fórum de Reforma Agrária constatou inclusive que houve casos em que a formação da associa- ção foi posterior à compra do imóvel e a primeira diretoria veio definida de fora (Sauer & Victor, 2002, p. 69), rompendo qualquer possibilidade de protagonismo social por parte das famílias envolvidas no projeto. 26 Este relatório aponta também a participação de ex-proprietários de terras na formação das associações. Essa influência, no entanto, foi mediada “por políticos, prefeitos, técnicos de instituições governamentais, associa- dos, lideranças comunitárias, cabos eleitorais, administradores das fazendas e até mesmo as federações das asso- ciações comunitárias” (Buainain et al., 1999, p. 233).

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311

PARTE IV

REFORMA AGRÁRIA, LUTA SOCIAL E SOBERANIA ALIMENTAR

ALTERNATIVA À POLÍTICA FUNDIÁRIA DE MERCADO: REFORMA AGRÁRIA E SOBERANIA ALIMENTAR

PETER ROSSET

A soberania alimentar envolve a implementação de processos radicais de reforma agrária massiva, adaptada primordialmente às condições de cada país e região e que propicie ao camponês e sitiante – com oportunidades iguais para indígenas e mulhe- res – acesso eqüitativo a recursos produtivos, primordialmente a terra, água e flores- tas, bem como aos meios de produção, financiamento, treinamento e capacitação para administração e negociação. A reforma agrária, acima de tudo, deveria ser reconhecida como uma obrigação de governos nacionais... sob o arcabouço dos direitos humanos e como uma política pública eficiente de combate à pobreza. Os processos de reforma agrária devem ser controlados por organizações camponesas... e têm de garantir direitos individuais e coletivos de agricultores em terras compartilhadas, sendo integrada em uma política agrícola e comercial coerente. Opomo-nos às políticas e aos programas de comercialização de terra promovidos pelo Banco Mundial em lugar de verdadeiras reformas agrárias pelos governos. Declaração final do Fórum Mundial de Soberania Alimentar (reunião preparatória da sociedade civil para a Cúpula Alimentar Mundial + 5)

O direito à alimentação é um direito humano protegido pela legislação internacio- nal. É o direito ao acesso regular, permanente e desimpedido, de forma direta ou através de aquisições em dinheiro, ao alimento quantitativa e qualitativamente adequado e suficiente, que corresponda às tradições culturais dos povos de que faz parte o consu- midor, e assegurando uma vida plena e digna em termos físicos e mentais, individu- ais e coletivos, livre de ansiedade. Os governos têm uma obrigação legal de respeitar, proteger e cumprir o direito à alimentação (…) Embora o Relator Especial acredite que a cooperação internacional seja fundamental, a obrigação primeira de atender ao direito à alimentação repousa sobre governos nacionais. Nesse nível, é fundamental o acesso à terra, e a reforma agrária precisa ser um aspecto-chave nas estratégias gover- namentais visando à redução da fome. Em muitas partes do mundo, as pessoas lutam para sobreviver porque estão sem terra ou porque suas propriedades são tão pequenas que não conseguem sobreviver decentemente. A reforma agrária tem de ser justa, leal e transparente… [e] deveria ser dada mais atenção aos modelos alternativos propos- tos pela sociedade civil, em particular o conceito de soberania alimentar. Especial- mente o acesso à terra e a reforma agrária devem ser elementos fundamentais do di- reito à alimentação. Jean Ziegler – relator especial da Comissão de Direitos Humanos para o Direito à Alimentação.

Introdução: um mundo rural em crise

No começo do novo milênio constatamos que, em todos, os lugares o mundo rural está em crise. As origens históricas dessa crise podem ser encontradas, nas nações do Sul, em açambarcamentos de terras coloniais e na expulsão de povos que cultivavam terras férteis com chuva adequada para terrenos íngremes, rocho- sos, margens de desertos e solos inférteis de florestas tropicais, bem como a pro- gressiva incorporação dessas pessoas deslocadas à mão-de-obra sazonal, com re- muneração precária, pela agricultura de exportação. Em decorrência desse legado, modificado apenas ligeiramente no período pós-colonial, os sem-terra e quase- sem-terra por muito tempo foram contados como os mais pobres entre os pobres. Em décadas recentes, políticas econômicas neoliberais normalmente tornaram ainda piores as condições nas áreas rurais, quando governos nacionais, muitas vezes por pressão de instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial de Comércio (OMC), agiram como segue:

• Comandaram um conjunto de políticas comerciais, macroeconômicas e setoriais que conspiraram para solapar a viabilidade econômica da agricul- tura camponesa, de pequenos agricultores, de agricultores familiares e da agricultura cooperativa ou coletiva. Essas políticas incluíram a liberalização do comércio e a subseqüente inundação de mercados locais com importa- ções de alimentos baratos subfaturados, com os quais os agricultores locais dificilmente conseguem competir; o corte da sustentação de preços e dos subsídios para produtores de alimentos; a privatização do crédito, da

316 comercialização e da assistência técnica; a promoção excessiva da exporta- ção; patenteamento de recursos genéticos de cultivares; e um favorecimento da pesquisa agrícola em prol de tecnologias caras como a engenharia gené- tica. Cada vez mais, pequenos agricultores e pobres descobrem que o crédi- to é inadequado ou muito caro para cobrir os crescentes custos de produ- ção; os compradores são cada vez mais raros e monopolizados, e os preços estão muito baixos para cobrir os custos do crédito e da produção (Hellinger et al., 2001; Lappé et al., 1998). O resultado líquido foi uma significativa e contínua deterioração no acesso à terra pelos pobres, os que possuem são forçados a vender a terra, não conseguem assumir arrendamentos ou arran- jos semelhantes, ou perdem a terra por não quitar empréstimos (Comissão Européia, 1999; Rosset, 2001b; Ziegler, 2002). • Protelaram a implementação de uma reforma agrária já existente e de políticas de redistribuição de terra. Geralmente resistiram – às vezes pelo uso da força – a esforços por parte de organizações da sociedade civil, como os movimentos dos sem-terra, para retardar a implementação dessas polí- ticas (Langevin & Rosset, 1997; Agência EFE, 2000; Rosset, 2001b; Ziegler, 2002). • Ficaram omissos diante do processo de transformação crescente da terra em mercadoria, assistindo passivamente a como interesses – tanto empresariais agrícolas (p. ex., lavouras) e não-agrícolas (p. ex., petróleo e mineração) – e grandes projetos de infra-estrutura (p. ex., barragens hidroelétricas) avança- ram sobre terras comunais e públicas, e sobre territórios de povos indígenas (Bryant, 1998; Comissão Européia, 1999; Rosset, 2001b). • Não fizeram nada quando cadeias de commodities agrícolas – tanto na ponta dos insumos (p. ex., sementes) como na dos produtos (p. ex., comércio de grãos) – foram se concentrando nas mãos de poucas corporações transnacionais que, em vista da condição de quase-monopólio, fixam, de modo crescente, custos e preços desfavoráveis a agricultores, colocando todos, especialmente os mais pobres, em um arrocho insustentável de custos e preços, a ponto de incentivar ainda mais o abandono da agricultura (ETC, 2001; Heffernan, 1999; Rosset, 2001b; Ziegler, 2004).

Na realidade, os governos e instituições multilaterais adotaram basicamente apenas uma iniciativa política, em escala mais ou menos global, apresentando-a como passo “positivo” para retificar as questões de acesso à terra. Essa iniciativa, ou série de iniciativas, consiste em acelerar, desenvolver e “estrear” políticas

317 projetadas e apoiadas pelo Banco Mundial, de titulação de terras, abertura de mer- cados de terra e, de forma crescente, promoção de crédito do tipo “Banco da Terra” para aquisições de terra pelos pobres. Essa é a chamada reforma agrária “impulsio- nada pelo mercado” ou “negociada” (Deininger, 2001 e 2003). Infelizmente existe uma forte evidência de que é muito improvável que essas políticas melhorem signi- ficativamente o acesso dos pobres à terra, ou de que lhes propiciem uma posse mais segura. Na realidade, há boas razões para acreditarmos que de fato tornarão a situa- ção ainda pior em muitos lugares (Borras, 2003a e 2005, prelo). Portanto, não nos deveria surpreender o fato de que é em áreas rurais que ain- da se podem encontrar a pior miséria e fome. A expansão da produção agrícola para exportação, controlada por agricultores mais ricos, detentores das melhores terras, desloca continuamente os pobres para áreas marginais de cultivo. São for- çados a derrubar florestas localizadas em solos pobres, a cultivar terras magras, de fácil erosão, em terrenos íngremes, e a tentar conquistar o sustento em margens de desertos e em florestas tropicais (Lappé et al.,1998). Contudo, muitas vezes, a situação é pior nas terras mais férteis. Na maioria dos países, os melhores solos foram concentrados em grandes propriedades usa- das na produção de monoculturas mecanizadas para exportação, com uso intensi- vo de pesticidas e fertilizantes químicos. Muitos dos melhores solos de nosso pla- neta – no passado, administrados de forma sustentável durante milênios pelos agricultores pré-coloniais – estão atualmente sendo degradados com rapidez, e em alguns casos abandonados completamente, no afã imediatista de lucros com a exportação e a competição. A capacidade produtiva dessas terras está em rápido declínio devido à compactação do solo, erosão, saturação da água e perda de fer- tilidade, além da crescente resistência das pragas aos pesticidas e da perda da biodiversidade (Lappé et al., 1998; Pingali et al.,1997). Os produtos colhidos dessas terras mais férteis fluem majoritariamente para consumidores em países ricos. A maioria local empobrecida não tem condições de comprar o que é produzido, e por não formarem um mercado significativo, as elites nacionais vêem a população local essencialmente como fonte de mão-de- obra – um custo de produção a ser minimizado mantendo os salários baixos e quebrando sindicatos. O resultado geral é uma espiral descendente de degradação da terra e aprofundamento da pobreza nas áreas rurais. Até mesmo problemas urbanos têm origem rural, visto que o pobre tem de abandonar a zona rural em contingentes numerosos, migrando para as cidades, onde somente alguns poucos afortunados obtêm um salário para sobreviver, ao passo que a maioria adoece em favelas e barracos (Lappé et al., 1998).

318 Se continuarem sem desaceleração as atuais tendências de maior concentra- ção de terras e da concomitante industrialização da agricultura, será impossível alcançar a sustentabilidade social ou ecológica. No entanto, pesquisas mostram o potencial que poderia ser atingido pela redistribuição da terra. Agricultores de pequena escala, por exemplo os camponeses, são mais produtivos, mais eficientes e contribuem mais para o desenvolvimento regional amplo que os grandes agri- cultores empresariais que possuem as melhores terras (Rosset, 1999). Os campo- neses com posse pacífica também conseguem ser melhores zeladores dos recursos naturais, protegendo a produtividade de longo prazo de suas terras e conservando a biodiversidade funcional de suas propriedades e arredores (Altieri et al., 1998).

1. Um choque de modelos no mundo rural

Grande número e organizações de pequenos agricultores, camponeses, sem- terra, trabalhadores rurais, povos indígenas, juventude rural e mulheres campo- nesas do mundo se uniram em uma aliança global, a Via Campesina. De acordo com a Via Campesina, estamos enfrentando um choque histórico entre dois mo- delos de desenvolvimento econômico, social e cultural para o contexto rural. O modelo dominante e seus impactos negativos foram descritos acima, e a Via Campesina contrapõe o paradigma alternativo chamado soberania alimentar. A soberania alimentar começa pelo conceito de direitos humanos econômicos e so- ciais que incluem a alimentação adequada (Via Campesina, 2002; Via Campesina et al., s/da; s/db; 2005), mas é mais amplo, pois como afirma o Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, há um decorrente direito à terra e até mesmo o “direito de produzir” das populações rurais (Ziegler, 2002 e 2004). A noção de soberania alimentar argumenta que alimentar o povo de uma na- ção é uma questão de segurança nacional – de soberania, se quisermos. Se, para a próxima refeição, a população de um país depender dos caprichos da economia global, da boa vontade de uma superpotência de não usar o alimento como arma, da imprevisibilidade e do alto custo de transportes a longas distâncias, então esse país não está seguro, nem no sentido de segurança nacional nem de segurança alimentar. A soberania alimentar, portanto, vai além do conceito de segurança alimentar, que foi destituído de significado real (Rosset, 2003). Segurança alimentar significa que toda criança, mulher e homem precisam estar certos de ter o suficiente para comer todos os dias, mas o conceito não diz nada

319 sobre de onde esse alimento vem ou como é produzido. Logo, Washington pode alegar que importar comida barata dos EUA é uma maneira melhor de países po- bres alcançarem a segurança alimentar que produzindo comida eles próprios. Im- portações volumosas de alimento barato e subsidiado, no entanto, arruinaram agri- cultores locais, expulsando-os da terra. Incham as fileiras dos famintos, e sua segurança alimentar é colocada nas mãos da economia monetária, na medida em que migram para favelas urbanas onde não conseguem encontrar empregos com salários para garantir a vida. Para atingir uma segurança alimentar genuína, as pessoas em áreas rurais precisam ter acesso à terra produtiva e obter preços para suas colheitas garan- tindo uma vida digna (Rosset, 2003; Via Campesina et al., s/da; s/db; 2005). Isso significa também que não basta ter acesso à terra e a recursos produtivos. A ênfase atual nas negociações comerciais acerca do acesso ao mercado exporta- dor, em detrimento da proteção de mercados domésticos para produtores inter- nos, representa um problema crucial. De acordo com a Via Campesina, “a sobe- rania alimentar prioriza o acesso ao mercado para agricultores locais. O comércio agrícola liberalizado, que dá acesso a mercados com base no poder de mercado e a preços baixos, freqüentemente subsidiados, nega o acesso de agricultores locais a seus próprios mercados” (2002) e, assim, viola o direito de produzir, minando o desenvolvimento econômico local e regional. Uma forma de promover o desen- volvimento econômico local em áreas rurais é criar circuitos locais de produção e consumo em que os pequenos agricultores vendem seu produto em cidades e vilas próximas, adquirindo outros produtos que necessitam dos fabricantes e comércios dessas localidades. Como foi demonstrado nitidamente em recente estudo de cam- po no Brasil, a presença de assentamentos da reforma agrária aquece economias locais, ainda que um país careça de uma “verdadeira” política de reforma agrária (Leite et al. 2004). Desse modo, o dinheiro circula diversas vezes na economia local, gerando empre- gos na cidade e possibilitando que os agricultores se sustentem. Se, ao invés disso, tudo o que os agricultores produzirem for exportado para países distantes que pagam pre- ços de mercado internacional (= baixos), e tudo o que comprarem também for impor- tado, todos os lucros serão extraídos do sistema econômico local e tão-somente contri- buirão para o desenvolvimento econômico de locais remotos como Wall Street. A soberania alimentar coloca a ênfase em mercados locais e economias locais como con- dição básica sine qua non para o combate à fome e à miséria (Rosset, 2003). Somente mudando os rumos do desenvolvimento voltado para a exportação, do modelo agrícola baseado no livre-comércio e na indústria, da concentração da terra em grandes fazendas e da expulsão das pessoas é que a espiral descendente de

320 miséria, baixos salários, migração campo-cidade e degradação ambiental serão interrompidas. A reforma agrária redistributiva e a reversão da política comercial dominante trazem em seu bojo a promessa de mudança para um modelo agrícola familiar ou cooperativo baseado em áreas menores, com o potencial de alimentar o pobre, conduzir a um desenvolvimento econômico de base ampla e conservar a biodiversidade e os recursos produtivos (Rosset, 1999 e 2001a). Isso nos traz de volta ao argumento da Via Campesina de que estamos enfren- tando um choque de modelos para o mundo rural, um choque de modelos de desenvolvimento econômico. Não poderia ser mais gritante o contraste entre o modelo dominante, agro-exportador, baseado em políticas econômicas neoliberais e no livre-comércio, e o modelo baseado na soberania alimentar (veja tabela 1). Em praticamente todos os itens relacionados a alimento, agricultura e vida rural as posições são contrárias. Onde um modelo considera os pequenos agricul- tores como um anacronismo pitoresco e ineficientes que deveriam desaparecer com o desenvolvimento (a menos que alguns agricultores fiquem como atrações do tipo Disneylândia para um turismo rural bucólico), o outro os vê como a base de economias locais, como o mercado interno que permitiu às potências econômicas industriais de hoje como os EUA, Japão, China e Coréia do Sul alçarem vôo em tempos passados (Rosset, 1999 e 2003). No que tange à fome, um modelo considera o impulso às exportações das plan- tações gigantescas dos ricos como maneira de gerar as divisas necessárias para importar alimento barato para os famintos; enquanto o outro vê a conversão de glebas que, no passado, pertenceram a pequenos agricultores, camponeses e po- vos indígenas em culturas de exportação precisamente como força motora funda- mental do crescimento da fome e do empobrecimento nas áreas rurais. Por fim, enquanto o modelo dominante está baseado na monocultura de uso intensivo de substâncias químicas e de escala, com sementes geneticamente modifi- cadas (OGMs), o modelo da soberania alimentar considera essas práticas da agri- cultura industrial como possíveis destruidoras da terra para gerações futuras, con- trapondo-se a uma mescla de práticas de conhecimento tradicional e agricultura sustentável, de base agroecológica (Rosset, 2003; Via Campesina et al., s/da; s/db; 2005). De modo geral, é por isso que o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) do Brasil, um membro da Via Campesina, diz que “o inimigo é o modelo” e que o alvo da luta é a “mudança do modelo”, ou uma transição de modelos. Argu- menta que, embora o mundo rural seja uma peça central nessa transição, ele não é suficiente. Para ter êxito, este precisa estar inserido em uma ênfase política mais ampla na soberania alimentar (João Pedro Stédile, comunicação pessoal).

321 Tabela 1 - Modelo dominante versus modelo da soberania alimentar Item Modelo dominante Soberania alimentar Comércio • Livre-comércio em tudo • Alimento e agricultura fora de acordos comerciais Prioridade da produção • Agro-exportação • Alimento para mercados locais Preços de colheita • “Os que o mercado dita” (deixar intactos os • Preços justos que cubram custos de produção e mecanismos que comandam preços baixos) permitam aos agricultores e trabalhadores rurais uma vida digna Acesso ao mercado • Acesso a mercados estrangeiros • Acesso a mercados locais; fim do deslocamento de agricultores de seus mercados pela agroindústria Subsídios • Proibidos no Terceiro Mundo, são permitidos • Aceitáveis subsídios que não prejudiquem outros muitos subsídios nos EUA e na Europa, mas países pelo dumping (i. é., subsídios concedidos somente pagos aos agricultores maiores somente para pequenos agricultores, para comerciali- zação direta, garantia de preços, conservação de terra, conversão para agricultura sustentável, pesquisa, etc.) Alimento • Predominantemente um só produto; na prática • Um direito humano: especificamente deveria ser isso significa alimento processado, contaminado, saudável, nutritivo, acessível, culturalmente apropriado repleto de gordura, açúcar, xarope de milho, e produzido localmente frutose alta e resíduos tóxicos Aptidão para produzir • Uma opção para os economicamente eficientes • Um direito de populações rurais Fome • Devido à baixa produtividade • Problema de acesso e distribuição, devido à pobreza e desigualdade Segurança alimentar • Alcançada pela importação de alimentos de onde • Maior quando a produção do alimento está nas mãos são mais baratos do faminto, ou quando é produzido localmente Controle dos recursos • Privatizado • Local, a comunidade controla de produção (terra, água,florestas) Terra • Um fator de produção, uma mercadoria • Um direito da população rural Acesso à terra • Pelo mercado • Pela reforma agrária autêntica Sementes • Mercadoria patenteável • Herança comum da humanidade, conservada fiduciariamente pelas comunidades e culturas rurais; “não ao patenteamento da vida” Crédito e investimento • De bancos privados e corporações • Do setor público, desenhado para apoiar a rural agricultura familiar Dumping • Não é problema • Precisa ser proibido Monopólio • Não é problema • A raiz da maioria dos problemas Superprodução • Por definição, não existe isso • Leva à queda dos preços e agricultores à pobreza; necessidade de políticas de abastecimento nos EUA e na EU Tecnologia rural • Industrial, monocultura, uso intensivo de substâncias • Agroecológica, métodos agrícolas sustentáveis, nenhum químicas; OGMs Organismo Geneticamente modificado (OGM) Agricultores • Anacronismo; os incompetentes desaparecerão • Guardiões da cultura e do germoplasma das sementes; ecônomos dos recursos produtivos; acumuladores de conhecimento; mercado interno de base e construção amplas; desenvolvimento econômico inclusivo Consumidores urbanos • Trabalhadores com o menor salário possível • Necessitam de salários justos para viver Organismos geneticamente • A onda do futuro • Maléficos para a saúde e o meio-ambiente; uma Modificados (OGMs) tecnologia desnecessária Outro mundo (alternativas) • Não é possível; não interessa • Possível e amplamente comprovado Fonte: Rosset, 2003.

322 2. Reformas agrárias em andamento

2.1. As reformas “oficiais” O Banco Mundial está liderando a promoção e, em alguns casos, o financia- mento de reformas amplas de posse da terra, incluindo a titulação, os cadastros e registros de terra, aquecimento do mercado de terras, reformas redistributivas as- sistidas pelo mercado ou negociadas, bem como o apoio ao crédito, à ajuda técni- ca e à comercialização (Rosset, 2004; Deininger & Binswanger, 2001; Deininger, 2001 e 2003; Bond, 2000). Nesse aspecto, o BIRD seguiu a orientação de seus economistas de desenvolvimento que constataram que a desigualdade severa na posse da terra retarda o crescimento econômico, o lenimento da pobreza e os es- forços para uso sustentável dos solos (Deininger, 2003; Deininger & Binswanger, 2001). Nesse contexto político, outras instituições, inclusive governos, agências de cooperação e outros bancos de desenvolvimento estão seguindo a liderança do Banco Mundial e implementando agressivamente algumas ou, em alguns casos, todas essas reformas (De Janvry et al., 2001; Burns et al., 1996). Enquanto se poderia aplaudir o fato de que, graças ao Banco Mundial, já não é tabu propor a reforma agrária como um elemento fundamental do desenvolvimento sustentável (De Janvry et al., 2001; Rosset, 2002), boa parte das políticas fundiárias do BIRD deixa de tratar causas subjacentes da pobreza e exclusão (Borras, 2003a e 2005; prelo). Programas de titulação de terras podem levar a nova perda de terra, como na Tailândia (Leonard & Ayutthaya, prelo), a conflitos como no México (De Ita, pre- lo) e o custo de bancos da terra lamentavelmente torna sua extensão potencial inade- quada, quando comparada à magnitude do fenômeno dos sem-terra, como na Guatemala (Garoz & Gauster, 2005), ao passo que os beneficiários estão amarrados a pesadas dívidas por terras caras de qualidade duvidosa como na Guatemala e no Brasil (Garoz & Gauster, 2005; Sauer, prelo). Além disso, soluções com base no mercado tendem a despolitizar o problema do fenômeno dos sem-terra que, por natureza, so- mente pode ser solucionado mediante mudanças estruturais de um tipo que apenas pode ser tratado na esfera política, e não na do mercado (Rosset, 2002 e 2004). Por fim, essas “reformas” são realizadas deixando intactos o contexto de políticas neoliberais, tão hostil à agricultura familiar, e o “modelo”. Logo, pode-se esperar poucas mudanças positivas desses esforços (Barraclough, 1999; Borras, prelo).

2.2. Reformas agrárias conduzidas pelo Estado “Em todos os casos latino-americanos em que ocorreu uma redistribuição sig- nificativa de terras em benefício dos pobres do campo, o Estado teve um papel

323 decisivo,” escreveu o falecido Solon Barraclough (1999, p. 33). Infelizmente ele também escreveu que, em todos os casos em que a reforma foi negada ou deturpa- da, o Estado também exerceu um papel decisivo. De fato, se pode dizer que somente dois governos contemporâneos, na Amé- rica Latina ou fora dela, têm um compromisso sério com a reforma agrária autên- tica, incluindo uma transição de modelos voltada a tornar mais viável a agricultu- ra familiar e cooperativa. Esses países são Cuba e Venezuela (Rosset et al., prelo). Enquanto a reforma agrária revolucionária inicial de Cuba aconteceu nos anos 1960, Funes et al. (2001) demonstram como uma segunda “reforma dentro da re- forma” permitiu que Cuba escapasse de uma crise de alimentos nos anos de1990, no que poderia ser o exemplo mais próximo de uma verdadeira transição de um modelo agroexportador para um de maior soberania alimentar, de acordo com o que defende a Via Campesina. A figura 1 condensa os elementos fundamentais que tornaram possível essa transição. Um dos fatores imprescindíveis foi, acima de tudo, o acesso à terra pela maioria camponesa (mostrado no lado interno do modelo esquemático). A segunda reforma agrária de Cuba, dividindo fazendas estatais em unidades de produção menores, tanto cooperativas como individuais, foi possível porque já havia ocorrido anteriormente a expropriação dos latifundiários. Em segundo lugar, a proteção real de dumping, causado pelo embargo comer- cial, propiciou uma condição positiva (ainda que devido a um motivo muito ne- gativo), em que preços mais altos pagos aos agricultores propiciaram a viabilidade econômica e os incentivos de que a agricultura precisava para sobreviver à crise. Os demais fatores-chave foram o apoio estatal à transição (mudança no crédito, na pesquisa, na educação e extensão etc, apoiando o novo modelo), um setor ru- ral altamente organizado que viabilizou a disseminação rápida da mudança, bem como a existência de uma tecnologia agroecológica autóctone (seja do conheci- mento acumulado do camponês, seja de instituições científicas) que ajudou a rom- per com a dependência de importações não mais disponíveis (Funes et al., 2001). O caso da Venezuela ainda é bastante indefinido. Embora o governo do presi- dente Chávez tenha explicitado seu compromisso com uma reforma agrária autên- tica, vários fatores, inclusive a resistência de latifundiários e burocratas, o fracasso (por ora) em tratar dos efeitos do dumping nas volumosas importações de alimentos e a relativa falta de organização dos camponeses para serem protagonistas, ou ao menos, sujeitos ativos para impulsionar a reforma agrária, conspiraram até o mo- mento, mantendo quando muito um avanço desigual (Wilpert, a ser publicado).

324 Figura 1 Elementos-chave da transição cubana para um modelo mais condizente com a soberania alimentar durante os anos noventa.

Proteção contra o dumping (preços justos)

Tecnologia agroecológica

Apoio estatal (crédito, educação, Acesso à terra pesquisa, extensão, (reforma agrária) infra-estrutura, Organização marketing, etc).

2.3. Reforma agrária de baixo para cima Barraclough notou que “em todos os casos em que aconteceram reformas agrá- rias significativas, protestos e demandas dos agricultores e trabalhadores rurais or- ganizados deram contribuições cruciais à sua realização” (1999, p. 36). Hoje há movimentos em todo o mundo que se engajam em uma onda de ocupações de terra que vêm forçando os governos a responder. A segunda metade dos anos de 1980 e os anos de 1990 testemunharam o surgimento e, em alguns casos, a matu- ridade de uma geração de novos movimentos bem organizados de camponeses sem-terra e de trabalhadores rurais. Enquanto os sem-terra sempre estiveram vol- tados às ocupações ou “recuperação” de terras ociosas, ocorreu uma mudança qua- litativa na organização e perspicácia política de grupos contemporâneos. Movi- mentos de sem-terra estão inserindo a reforma agrária na discussão política nacional e internacional – até mesmo quando se apossam, ocupam e cultivam terras ocio- sas –, muitas vezes sob o risco de um tremendo custo com vidas perdidas e prisões arbitrárias. Esses movimentos vêm crescendo rapidamente em todo o mundo, como no Brasil, Paraguai, Bolívia, Honduras e Nicarágua até a África do Sul, Zimbábue, Indonésia, Tailândia, Índia e em incontáveis países. De fato, na maior parte do Terceiro Mundo, estamos presenciando o surgimento de uma nova fonte de espe- rança e dinamismo, vinda desses movimentos de pessoas pobres, predominante-

325 mente não-violentos, que contornam a inação governamental e tomam firmemente as rédeas nas próprias mãos (Rosset, 2001a). Um caso de destaque é o Brasil, com o bem sucedido Movimento dos Traba- lhadores Rurais Sem Terra (MST). Enquanto os grandes proprietários, em geral, deixam ociosa mais da metade de suas terras, 25 milhões de camponeses lutam para sobreviver em trabalhos agrícolas temporários. Fundado em 1985, o MST organiza os trabalhadores sem-terra para ocupar terras ociosas, usando a cláusula da “função social da terra” na Constituição do Brasil para legitimar suas reivindi- cações. Contudo, precisam se defender contra as milícias privadas contratadas pelos grandes proprietários e contras as forças públicas de segurança. Hoje, mais de 300 mil famílias – que representam mais de um milhão de pessoas – conquistaram o direito de acesso a mais de 8 milhões de hectares de terra através de ações lidera- das principalmente pelo MST, uma verdadeira reforma de debaixo para cima (Langevin & Rosset, 1997; Mançano Fernandes, 2001; Wolford, 2001; Wright & Wolford, 2003).

3. O caso da reforma agrária redistributiva

A redistribuição de terras pode cumprir várias funções em um desenvolvimento mais sustentável (Barraclough, 1999; Ziegler, 2002; Rosset, 1999). Dúzias de programas de reforma agrária foram executadas depois da II Guerra Mundial. Em uma retrospectiva sobre sucessos e fracassos, podemos distinguir entre reformas agrárias que poderiam ser chamadas “autênticas” e as que foram mais “cosméti- cas” ou até mesmo “falsas” (Lappé et al., 1998; Sobhan, 1993). Quando de fato se distribuiu uma parcela significativa de terra de qualidade para uma maioria de agricultores pobres (ou quando a posse foi modificada de tal forma que aboliu as relações de empobrecimento entre proprietário e arrendatário), com políticas comerciais, macroeconômicas e setoriais favoráveis à agricultura familiar, e quando se rompeu o poder de distorcer e “capturar” as políticas das elites rurais, os resultados invariavelmente foram uma redução real e mensurável da pobreza e a melhoria do bem-estar humano (Sobhan, 1993). Os sucessos econômicos do Ja- pão, Coréia do Sul, Formosa, China e Cuba foram resultados de uma reforma des- sas (Sachs, 1987; Ziegler, 2002; Boyce et al., 2005). Em contraposição, quando as “reformas” deram apenas terra de baixa qualidade a famílias pobres e não as apoia- ram com políticas favoráveis como créditos, preços e acesso a mercados, ou quando fracassaram em alterar as estruturas de poder rural que funcionam contra o pobre, a

326 reforma agrária deixou de efetuar mudanças de base ampla (Sobhan, 1993; Lappé et al., 1998; Thiesenhusen, 1995; Barraclough, 1999). As reformas mais bem-sucedidas desencadearam um desenvolvimento econô- mico de base relativamente ampla. Ao inserir os pobres no desenvolvimento eco- nômico, construíram mercados internos para apoiar a atividade econômica nacional (Sachs, 1987). O resultado, muitas vezes trágico, de reformas falhas era condenar os “beneficiários” à marginalização da vida econômica nacional, já que assumiam dívidas pesadas para pagar terras de má qualidade recebidas em locais remotos, sem crédito ou acesso a mercados, e em ambientes políticos hostis a pequenos agricultores (Sobhan, 1993; Thiesenhusen, 1995). Hoje temos uma oportunidade nova para aprender as lições de reformas pas- sadas e aplicá-las às metas práticas do desenvolvimento. A reforma agrária já não é questão de tabu no discurso sobre desenvolvimento, graças em parte às iniciati- vas infelizes do Banco Mundial. Estamos testemunhando uma mobilização mun- dial de povos que tomam os problemas em suas próprias mãos através de ocupa- ções de terra, espontâneas e organizadas, tanto em proporções pequenas como grandes. Da crise de terras no Zimbábue (Moyo & Yeros, 2005), às volumosas aquisições de terra em Chiapas após a rebelião Zapatista (Rosset, 1995) e o MST no Brasil (Langevin & Rosset, 1999; Wolford, 2001), a “reforma agrária debaixo para cima” é cada vez mais uma realidade, fazendo até mesmo políticos estreme- cerem. Esses movimentos de base, junto com um amplo leque de organizações da sociedade civil, desafiam governos nacionais e políticas de reforma agrária do Banco Mundial, apresentando alternativas. Vamos olhar para a importante função da reforma agrária redistributiva em prol de um desenvolvimento mais sustentável.

3.1. Reforma agrária e pobreza A história mostra que a distribuição de terras para famílias rurais pobres e sem- terra pode ser uma maneira muito efetiva de melhorar o bem-estar rural (Ziegler, 2002). Sobhan (1993) examinou o resultado de praticamente todos os programas de reforma agrária levados a cabo no Terceiro Mundo desde a II Guerra Mundial. Teve o cuidado de distinguir entre o que ele chama de redistribuição “radical” (que Lappé e outros chamam de “reforma agrária autêntica”) e reformas “não-igua- litárias” (ou reformas agrárias “falsas”, na terminologia de Lappé e outros). Quan- do terras de qualidade realmente foram distribuídas aos pobres, e destruído o poder da oligarquia rural de distorcer e “capturar” políticas de redução da pobreza, o resultado foi invariavelmente uma melhora real e mensurável do bem-estar hu-

327 mano. Japão, Coréia do Sul, Formosa, Cuba e China são todos os exemplos posi- tivos. Em contraposição, países com reformas que entregaram somente terra de má qualidade aos beneficiários e/ou não alteraram as estruturas de poder rural que trabalham contra os pobres, não conseguiram fazer um corte significativo na pobreza rural (Sobhan, 1993; Lappé et al., 1998). Enquanto Sobhan analisou estatísticas a nível nacional para chegar às suas conclusões, Besley e Burgess (2002) olharam recentemente para a história da re- forma agrária, de 1958 a 1992, em 16 estados indianos. Embora essas geralmente não fossem reformas radicais (no sentido de Sobhan), muitas aboliram o arrenda- mento e reduziram a influência de intermediários. Os autores constataram uma relação forte entre a reforma agrária e a redução de pobreza. Leite et al.,(2004) verificaram que os colonos em assentamentos de reforma agrária no Brasil ganham mais que antes e mais que as próprias famílias sem-terra. Comem melhor, têm maior poder aquisitivo, têm melhor acesso a oportunidades educacionais e maior probabilidade de reunir a família em um só lugar (ao invés de “perder” membros da família para a migração). Na realidade, a reforma agrária contém a promessa de ser um meio de estagnar a migração campo-cidade, que vem fazendo crescer as cidades do Terceiro Mundo além da capacidade das economias urbanas de prover empregos suficientes. Até mesmo no Zimbábue, onde a reforma agrária foi encer- rada prematuramente e ficou incompleta, a evidência mostra que os beneficiários estão em condições substancialmente melhores que outros (Deininger et al., 2000). Outro enfoque é quanto aos custos de se criar um novo posto de trabalho. Estimativas do custo da criação de um emprego no setor comercial do Brasil se situam entre 2 a 20 vezes acima do custo de estabelecer um chefe de família de- sempregado em terra agricultável por meio da reforma agrária. Os beneficiários da reforma agrária têm uma renda anual equivalente a 3,7 salários mínimos, en- quanto os trabalhadores sem-terra auferem, em média, apenas 0,7 do mínimo. A mortalidade infantil entre famílias dos beneficiários caiu para a metade da média nacional (Stédile, 1998). Isso representa um poderoso argumento a favor de que, para criar uma econo- mia rural camponesa, a reforma agrária não é apenas boa para o desenvolvimento econômico local, mas também constitui uma política social mais efetiva do que permitir ao “mercado” continuar expulsando os pobres de áreas rurais para cida- des superpopulosas. Sobhan (1993) argumenta que somente a reforma agrária possui o potencial de resolver o subemprego crônico na maioria dos países do Terceiro Mundo. Es- tabelecimentos pequenos, com freqüência, usam mais mão-de-obra – e menos

328 capital – para cultivar determinada parcela de terra. Um modelo de pequenas pro- priedades consegue absorver mais pessoas em ocupações mais rentáveis, podendo inverter o fluxo migratório do êxodo rural. Além disso, se nos movermos para o terreno da ética, a injustiça na distribui- ção da terra e no acesso à terra é moralmente errada. Constitui um pecado a ser corrigido que muitos tenham de sofrer, ou até mesmo passar fome, porque pou- cos têm muito mais do que precisam.

3.2. Reforma agrária e produtividade No passado, houve um intenso debate relacionado aos possíveis impactos da redistribuição da terra agrícola aos pobres que, quase inevitavelmente, resulta em pequenas unidades de produção. Uma preocupação era de que, liberto da condi- ção explorada de meeiro, arrendatário ou assalariado, o pobre reteria uma maior proporção da própria produção para o seu consumo (não necessariamente uma coisa má), conduzindo, assim, a uma diminuição na disponibilidade líquida de alimento para outros consumidores. Porém, esse argumento foi soterado pelas evi- dências (Sobhan, 1993) e pelos ganhos de produtividade que podem ser obtidos na transição para estilos de produção em pequena escala e mais intensivos. No Brasil, a agricultura camponesa e familiar produz 24% do valor total da produção nacional de carne de boi, 24% do leite, 58% da carne de porco e 40% da produção avícola e ovos. Também gera 33% do algodão, 31% do arroz, 72% da cebola, 67% da vagem, 97% do tabaco, 84% da mandioca, 49% do milho, 32% da soja, 46% do trigo, 58% da banana, 27% da laranja, 47% da uva, 25% do café e 10% do açúcar. No total, a agricultura familiar responde por 40% do valor bruto da produção nacional, ocupando apenas 30,5% das áreas cultivadas. Gera um total de 76,9% dos empregos nacionais na agricultura, recebendo ape- nas 25,3% do crédito rural (Pengue, 2005). Esses dados, na verdade, demonstram que propriedades pequenas quase sem- pre geram mais produtos agrícolas por estabelecimento que fazendas maiores, fazendo-o com mais eficácia (Rosset, 1999). Isso se sustenta quando falamos de países industrializados ou de qualquer país rural no Terceiro Mundo. Esse fato é amplamente reconhecido por economistas rurais como a relação inversa “en- tre tamanho da propriedade e produção” (Tomich et al., 1995; Rosset, 1999). Um recente relatório (Rosset, 1999) analisou a relação entre tamanho de esta- belecimento e produção total em quinze países do Terceiro Mundo. Em todos os exemplos, propriedades de tamanho relativamente menor eram muito mais produtivas por área – de 2 a 10 vezes mais produtivas – que as maiores. Assim,

329 não é provável que a reforma agrária redistributiva ande na contramão das ques- tões de produtividade.

3.3. Reforma agrária e desenvolvimento econômico

Uma reforma agrária verdadeiramente transformadora e redistributiva foi comprova- da como fundamental na redução da pobreza e da fome em muitos países, podendo ser uma chave para engendrar crescimento econômico que beneficie os mais pobres (Ziegler, 2002).

Seguramente, mais toneladas de grãos não são o único objetivo da produção agrícola. Os recursos agrícolas também têm de gerar riqueza para a melhoria geral da vida, inclusive melhores condições de habitação, educação, serviços de saúde, transporte, diversificação econômica local e mais oportunidades recreativas e cul- turais. Nos Estados Unidos, há mais de meio século, foi feita a pergunta: que signifi- ca o crescimento da agricultura de escala, industrial, para cidades e comunidades rurais? O estudo clássico de Walter Goldschmidt, nos anos 1940, sobre o Vale San Joaquin na Califórnia, comparou áreas dominadas por grandes fazendas em- presariais com outras ainda caracterizadas por propriedades menores, familiares (veja Goldschmidt, 1978). Em comunidades rurais dominadas por grandes fazendas empresariais as ci- dades próximas se extinguiram. A mecanização significou que menos pessoas do lugar eram empregadas e a propriedade em mãos de ausentes significou que já não se podiam encontrar famílias rurais. Nesses municípios de agricultura empre- sarial, a renda obtida na agricultura era escoada para cidades maiores para apoiar empreendimentos distantes; ao passo que em cidades cercadas por propriedades familiares, a renda circulava em estabelecimentos comerciais do lugar, gerando trabalho e prosperidade na comunidade. Onde predominavam as propriedades familiares havia mais negócios locais, ruas pavimentadas e calçadas, escolas, par- ques, igrejas, clubes e jornais, melhores serviços, maior número de empregos e mais participação cívica. Estudos feitos desde o trabalho original de Goldschmidt confirmam que os resultados dele permanecem verdadeiros até hoje (Fujimoto, 1977; MacCannell, 1988; Durrenberger & Thu, 1996). As comunidades amish e menonitas,1 situadas no Leste dos Estados Unidos, fornecem um vivo contraste com a devastação geral descrita por Goldschmidt em cidades com fazendas empresariais. O município de Lancaster, na Pensilvânia,

330 dominado por esses pequenos agricultores que evitam muita tecnologia moderna e freqüentemente até mesmo o crédito bancário, é o município agrícola mais pro- dutivo ao leste do Rio Mississipi. Apresenta vendas totais anuais de produtos agrí- colas de U$ 700 milhões, recebendo um adicional de U$ 250 milhões da parte de turistas que apreciam a beleza das paisagens de pequenas propriedades rurais tra- dicionais (D’Souza & Ikerd, 1996). Quando nos voltamos ao Terceiro Mundo, encontramos uma situação seme- lhante. De um lado, há a devastação causada pela concentração da terra e pela industrialização da agricultura, enquanto de outro constatamos que benefícios locais são derivados de uma economia de pequenos estabelecimentos rurais – em um caso, criada por uma “reforma agrária de baixo para cima”. Leite et al. (2004) descrevem como a cidade local é beneficiada pelo comércio gerado quando latifúndios pertencentes a proprietários ausentes são transforma- dos em empreendimentos familiares e cooperativos através de uma reforma agrá- ria obtida por pressão de baixo. Um estudo sobre um desses municípios, Julho de Castilhos (RS), constatou que enquanto o assentamento do MST possuiu apenas 0,7% da terra, seus integrantes pagavam 5% dos impostos, fazendo do assenta- mento o segundo maior contribuinte de impostos rurais no município (MST, 2001). É evidente que tanto o desenvolvimento econômico local e regional, como a vida e prosperidade de cidades em contexto rural, podem se beneficiar com uma economia de pequenas propriedades agrícolas. Mas que dizer do desenvolvimen- to econômico nacional? A história nos mostrou que uma economia agrícola rela- tivamente eqüitativa, baseada na pequena propriedade rural, propicia a base de um desenvolvimento econômico nacional pujante. Essa “via rural para o desen- volvimento” é parte da razão pela qual, por exemplo, os Estados Unidos, no início de sua história, se desenvolveram mais rápida e uniformemente que a América Latina, com sua injusta distribuição de terra caracterizada por enormes haciendas e plantações entremeadas de indigentes rurícolas de subsistência (De Janvry, 1981). Nas décadas iniciais dos Estados Unidos, agricultores independentes “yeoman” formaram um vigoroso mercado doméstico para produtos manufaturados em áreas urbanas, inclusive implementos agrícolas, vestuário e outros suprimentos. Essa demanda interna oxigenou o crescimento econômico nas áreas urbanas e a com- binação deu origem a um crescimento de base ampla (Sachs, 1987). As experiências do pós-guerra do Japão, Coréia do Sul e Formosa (no mundo capitalista) e da China, de Cuba e, mais recentemente, do Vietnã (no mundo socia- lista), também demonstram como a distribuição eqüitativa de terras impulsiona

331 o desenvolvimento econômico. Ao término da II Guerra Mundial, as circunstân- cias, inclusive a devastação e ocupação estrangeira, conspiraram para criar as con- dições para reformas agrárias “radicais” nos primeiros países – enquanto as revo- luções fizeram o mesmo nos últimos – rompendo as garras econômicas da classe latifundiária sobre a atividade econômica rural. Pela combinação com a proteção comercial para manter elevados os preços agrícolas e com investimentos direcionados para áreas rurais, as famílias rurais rapidamente alcançaram um alto poder aquisitivo, que assegurou mercados internos para indústrias incipientes (Rosset, 1999; Lappé et al., 1998; Sachs, 1987; IFAD, 2001). Os “milagres” econômicos do pós-guerra nos três países capitalistas foram to- dos oxigenados, no início, por mercados internos centrados em áreas rurais, mui- to antes do advento das tão propaladas políticas “voltadas à exportação” que, bem mais tarde, impeliram essas indústrias a competir na economia global. Isso cons- tituiu um real triunfo para economias efervescentes, em que a distribuição de ati- vos produtivos para camadas mais pobres da sociedade criou a base econômica para um desenvolvimento rápido e relativamente inclusivo. Embora a presente análise de forma alguma visa sugerir que todas as políticas seguidas por esses paí- ses foram positivas, ou que deveriam ser reproduzidas cegamente, suas experiên- cias contrastam cabalmente com o fracasso de economias de “transferência des- cendente” ao atingirem praticamente nada, no mesmo período, em áreas de domínio norte-americano, como grandes extensões da América Latina (Sachs, 1987). De forma mais geral, existe atualmente um consenso crescente entre os principais economistas do desenvolvimento, há tempo reclamado por muitos da sociedade civil, de que a desigualdade na distribuição de recursos naturais cerceia o crescimento econômico (Solimano, 2000). Uma distinção fundamental feita por Sobhan (1993) é entre reformas agrá- rias “transformadoras” e outras. Na maioria das reformas redistributivas, aque- les que recebem terra, pelo menos nominalmente, estão em melhores condições que aqueles que permanecem sem-terra (a menos que e até que políticas hostis à agricultura familiar os levem a perder novamente a terra). Contudo, certas reformas agrárias representaram um passo fundamental, possibilitando a nações inteiras mudar os rumos do desenvolvimento. Nesses casos, os países “saltaram” fora da espiral excludente rumo à miséria e à degradação ambiental para a espi- ral ascendente de melhorias abrangentes nos padrões de vida, produzindo mer- cados internos vigorosos que levam a um desenvolvimento econômico mais di- nâmico e inclusivo como foram os casos do Japão, Coréia do Sul, China, Formosa e outros.

332 Por meio de uma análise comparativa, Sobhan mostra o que as reformas transformadoras – as que levaram a transições sociais reais – tinham em comum. Em síntese, a maioria dos sem-terra e dos pobres da terra foi beneficiada, a maior parte da terra agricultável foi afetada, foram quebradas as garras da estrutura de poder em relação à vida e economia rural e, em seu lugar, entraram políticas eco- nômicas favoráveis, fomentadoras. Uma característica básica das reformas mais bem sucedidas é que as famílias agricultoras foram vistas como atores fundamen- tais a ser mobilizados para o desenvolvimento econômico nacional, enquanto nas reformas fracassadas essas famílias têm sido vistas tipicamente como indigentes carentes de ajuda caritativa.

4. Reforma agrária e meio-ambiente

Os benefícios de economias de agricultura familiar se estendem para além da esfera meramente econômica. Considerando que fazendas grandes de cunho in- dustrial impõem uma mentalidade de terra arrasada na gestão dos recursos natu- rais – sem árvores, sem vida selvagem, monoculturas sem fim –, os camponeses podem ser muito efetivos na preservação de recursos naturais e do solo. Para co- meçar, agricultores camponeses utilizam uma ampla gama de recursos naturais e têm interesse declarado em sua sustentabilidade. Ao mesmo tempo, seus sistemas de cultivo da terra são diversos, incorporando e preservando uma significativa biodiversidade funcional dentro da propriedade. Ao preservar a biodiversidade, espaços livres e árvores, e ao reduzir a degradação de terra, a pequena agricultura melhora o meio-ambiente para a sociedade em geral. Nos Estados Unidos, os pequenos agricultores destinam 17% da área para bosques, comparados a meros 5% nas fazendas grandes. Propriedades peque- nas mantêm quase o dobro da terra em “práticas de melhora do solo”, inclu- sive plantios de cobertura e adubos verdes (D’Souza & Ikerd, 1996). No Ter- ceiro Mundo, agricultores camponeses mostram uma tremenda habilidade para prevenir e até mesmo reverter a degradação da terra, inclusive a erosão dos solos (Templeton & Scherr, 1999). Sabem propiciar, e/ou de fato propiciam, importantes serviços à sociedade em geral, incluindo a gestão sustentável de bacias críticas, preservando, assim, recursos hídricos, bem como a conserva- ção local, o desenvolvimento e a gestão dinâmicos de recursos genéticos bási- cos de sementes e animais, dos quais depende a segurança alimentar futura da humanidade.

333 Comparada ao deserto ecológico de uma moderna plantação agroexportadora, a paisagem da pequena propriedade rural contém uma miríade de biodiversidade. As áreas arborizadas permitem extrair alimentos silvestres e resíduos orgânicos; o lote produz lenha; a plantação com plantio alternado e agroflorestais convivem com animais grandes e pequenos; o viveiro de peixes e o jardim no quintal permi- tem a preservação de centenas, senão de milhares de espécies selvagens e aculturadas. Ao mesmo tempo, o compromisso dos membros da família em manter a fertilida- de da terra na propriedade significa um interesse ativo na sustentabilidade de lon- go prazo, não encontrada em fazendas grandes em mãos de investidores ausentes. Se estivermos verdadeiramente preocupados com ecossistemas rurais, então a pre- servação e a promoção da agricultura camponesa e familiar constituem um passo crucial a ser dado.

Avançando: diretrizes para o futuro

Ao invés de seguir o enfoque de mercado do Banco Mundial, gestores políti- cos e movimentos sociais deveriam aprender com os sucessos e os fracassos do período posterior à II Guerra Mundial e com as reformas em andamento. Um conjunto de diretrizes úteis deveria incluir as seguintes:

• A desigualdade extrema na propriedade da terra – como o padrão de lati- fúndios e minifúndios em muitas partes da América Latina – é ineficiente, ambiental e socialmente destrutiva, imoral e impede o desenvolvimento de base ampla. Uma gama de perspectivas e preocupações – da justiça social e dos direitos humanos ao crescimento econômico – leva à conclusão de que temos de eliminar os latifúndios de uma vez por todas (Rosset, 2001a; Repartir, 2001; Ziegler, 2002). • Quando famílias recebem terra, elas não devem ser assentadas com o far- do de pesadas dívidas. Isso pode ser alcançado pela expropriação governa- mental de terras improdutivas, com ou sem indenização aos donos anterio- res (Sobhan, 1993; Borras, 2003b). • A posse segura e/ou o acesso garantido à propriedade são essenciais para garantir segurança alimentar de longo prazo às famílias e comunidades. Sem essa segurança e/ou direitos também é difícil que as famílias e comu- nidades invistam na melhoria da terra, nos meios de produção e/ou em medidas de conservação (Lastarria-Cornhiel et al., 1998).

334 • As mulheres precisam ter pelo menos os mesmos direitos à terra dos ho- mens. Quando títulos são exclusivamente cedidos a chefes masculinos de família, disputas domésticas ou a morte prematura de um cônjuge levam inevitavelmente à privação das mulheres e crianças (Deere & Léon, 2001; Monsalve, prelo). • A terra distribuída deve ser de boa qualidade, e não de solo ecologicamen- te frágil, que nunca deveria ser cultivado. Também deve ser livre de de- mandas levantadas por outras pessoas pobres (Rosset, 2001a). • Devem ser garantidos e protegidos os direitos dos povos indígenas e outros à terra, às florestas, à água e a outros recursos comuns da propriedade rural; assim como deve ser assegurado seu direito de administrá-los mediante sua lei habitual e tradição. É preciso prever direitos individuais e/ou coletivos, dependendo de cada situação sociocultural. Nenhuma receita única pode ser aplicada em todos os lugares (Hall, 1998; Stavenhagen, 2004). • Para serem bem-sucedidas, as pessoas necessitam mais que terra. Deve ha- ver também um ambiente político estimulador e serviços essenciais como crédito em condições razoáveis, infra-estrutura, apoio para tecnologias eco- logicamente saudáveis, bem como acesso a mercados e preços justos (Sobhan, 1993; Sachs, 1987; Adams, 2000; IFAD, 2001). Talvez seja mais crucial evitar políticas de livre-comércio prejudiciais e dumping – que fazem cair os pre- ços da agricultura e minam a viabilidade econômica rural – e substituí-las por uma perspectiva de soberania alimentar que coloque a prioridade maior na produção nacional para mercados internos (Fórum, 2001; Rosset, 2003). • Reformas verdadeiramente transformadoras também requererão investi- mentos em áreas rurais para assegurar serviços básicos como escolas, clíni- cas de saúde, água potável e infra-estrutura básica (Sobhan, 1993). • As reformas precisam efetivamente quebrar o poder de distorcer e captu- rar políticas, subsídios e ganhos inesperados por parte das elites rurais em seu próprio favor (Sobhan, 1993). • A vasta maioria dos pobres do campo deve ser a beneficiária do processo de reforma (Sobhan, 1993). • Reformas bem-sucedidas se distinguem das fracassadas por uma motiva- ção e percepção de que as novas propriedades camponesas criadas devem ser a peça central do desenvolvimento econômico, como foi o caso do Japão, Formosa, China e Cuba. Quando se considerou a reforma agrária como “assistência social” ou como política caritativa para indigentes, o resulta- do inevitável foi o fracasso (Sobhan, 1993; Sachs, 1987; Rosset, 2001a).

335 • No ambiente político conservador e neoliberal de hoje, movimentos de populações pobres são cruciais para impulsionar o processo de reforma, parar com as protelações do governo e, quando necessário, tomar o processo em suas próprias mãos. Ocupações de terra estão entre os métodos mais efica- zes comprovados para pressionar os governos a agirem (Wolford, 2001; Langevin & Rosset, 1997; Barraclough, 1999; Wright & Wolford, 2003).

Por fim, podemos afirmar que a soberania alimentar é um substituto abrangente para o modelo neoliberal dominante baseado em mecanismos de livre-comércio, de mercado e na privatização. Embora a soberania alimentar cubra um terreno amplo, incluindo a tecnologia de produção e política de comercialização, uma verdadeira reforma agrária constitui um de seus principais sustentáculos. Quando situamos a reforma agrária no contexto maior da troca de modelos, fica mais fácil argumentar perante a sociedade em geral que a reforma agrária faz parte das mu- danças que beneficiam todo o mundo, não apenas os pobres do campo.

Notas

1 Essencialmente agrícolas, essas comunidades amish e menonitas foram constituídas a partir das idéias do reformador protestante Menno Simonsz (que viveu no século 16 na Holanda). São pacifistas e, por mo- tivações religiosas, vivem bastante isoladas, mantendo tradições e modos de vida que reportam a meados do século XVIII, quando se formaram nos Estados Unidos e Canadá (nota do revisor).

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SOBRE OS AUTORES

Alícia Ruiz Olalde Doutora em Teoria Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professora do Centro de Ciências Agrárias e Ambientais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), pesquisadora do GeografAR. Contato: [email protected]

César Augusto Da Ros Engenheiro Agrônomo formado pela Universidade Federal de Santa Maria, fez mestrado e doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade no Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Univer- sidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Contato: [email protected]

Edmilson Carvalho Arquiteto, professor da Universidade Católica de Salvador (UCSAL) e membro do Instituto de Pesquisa (InP).

Edward Lahiff Professor titular de estudos sobre terra e reforma agrária na University of the Western Cape, África do Sul. Formado pelas National University of Ireland e University of Manchester, é doutor em Estudos sobre Desenvolvimento pela School of Oriental and African Studies (SOAS) da University of London. Participa dos debates acadêmicos e populares sobre reforma agrária na África do Sul. Contato: [email protected]

Eric Holt-Giménez Doutor pela UC Santa Cruz em Estudos Ambientais e mestre em Desenvolvimento Agrícola Internacional pela UC Davis. É diretor executivo do Food First (Institute for Food and Development Policy), de Oakland, California (USA) e professor visitante do Department of Environmental Science, Policy & Research da University of California, Berkeley (Estados Unidos). Contato: [email protected]

Francisco Amaro Gomes de Alencar Geógrafo, mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor do Departamento de Geografia da UFC e membro do Laboratório de Estudos Agrários e Territoriais (Leat). Assessor da CPT, colaborador do MST do Ceará e coordenador do Núcleo de Apoio a Reforma Agrária e Agricultura Familiar da UFC (NARA-UFC). Contato: [email protected]

Guiomar Germani Doutora em Geografia pela Universidad de Barcelona (Espanha), professora do Pro- grama de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências, da Universida- de Federal da Bahia (IGEO/UFBA), pesquisadora do CNPq e coordenadora do gru- po de pesquisa GeografAR. Contato: [email protected]

Gilca Garcia de Oliveira Doutora em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), profes- sora da Faculdade de Ciências Econômicas (FCE) e do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisadora do GeografAR. Contato: [email protected]

João Márcio Mendes Pereira Historiador, graduado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Ciên- cias Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pelo CPDA-UFRRJ, dou- torando em História pela UFF. Contato: [email protected]

Peter Rosset Ph.D pela Universidade de Michigan (Estados Unidos), é co-coordenador da Land Research Action Network (LRAN – www.acaoterra.org), pesquisador do Centro de Estudios para el Cambio en el Campo Mexicano (CECCAM), membro do Center for the Study of the Americas (CENSA) e professor visitante do Department of Environmental Science, Policy & Research da University of California, Berkeley. Contato: [email protected]

Saturnino M. Borras Jr. Ativista envolvido com os movimentos sociais agrários das Filipinas e internacionais, é professor associado e chefe de pesquisa em International Development Studies da St.

344 Mary’s University, em Halifax (Canadá). Fez doutorado e lecionou no Institute of So- cial Studies, sediado em Haia (Holanda).

Sérgio Sauer Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Filosofia da Religião pela Universidade de Bergen (Noruega). Foi assessor da CPT e da CONTAG e professor da Universidade Católica de Goiás (UCG). É assessor da senadora Heloí- sa Helena (PSOL/AL), professor da Universidade Católica de Brasília (UCB) e atua junto ao Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. Contato: [email protected]

Susana Gauster Formada em Sociologia pela Universidade de Viena (Áustria), é pesquisadora do Pro- grama de Estudios para el Desarrollo Rural da Coordinación de ONG y Cooperativas (CONGCOOP) da Guatemala. Contato: [email protected]

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