Cadernos de Estudos Africanos

31 | 2016 Movimentos Sociais, Estado e Sociedade Civil em África

Luca Bussotti e Remo Mutzenberg (dir.)

Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/cea/1994 DOI: 10.4000/cea.1994 ISSN: 2182-7400

Editora Centro de Estudos Internacionais

Edição impressa Data de publição: 1 Junho 2016 ISSN: 1645-3794

Refêrencia eletrónica Luca Bussotti e Remo Mutzenberg (dir.), Cadernos de Estudos Africanos, 31 | 2016, « Movimentos Sociais, Estado e Sociedade Civil em África » [Online], posto online no dia 29 setembro 2016, consultado o 02 maio 2019. URL : http://journals.openedition.org/cea/1994 ; DOI:10.4000/cea.1994

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EDITOR'S NOTE

Este número dos Cadernos de Estudos Africanos verte sobre os movimentos sociais em África. Se trata de um tema muito presente no debate contemporâneo, mas ao mesmo tempo ainda não conhecido profundamente, considerada a multiformidade e heterogeneidade com que os movimentos sociais se manifestam no continente africano. E considerados também os complexos relacionamentos que eles mantêm com o poder político, com que geralmente entram em choque, duma forma ou doutra. Mediante a contribuição de especialistas desses movimentos e dos vários países aqui apresentados, este número dos Cadernos de Estudos Africanos visa despertar a atenção sobre algumas questões fundamentais: o que é que esses novos movimentos sociais africanos pretendem? Quais os meios das suas demonstrações? Quais os relacionamentos com os movimentos sociais globais de protesto contra uma ordem económica injusta e desigual? Que tipo de relações mantêm com o poder político dos vários Estados africanos? Como é que inserem a sua ação no seio de instituições geralmente e formalmente democráticas, mas na maioria dos casos intolerantes para com as críticas que recebem? Essas e outras questões constituem o pano de fundo dos artigos que foram aqui selecionados e que representam uma tentativa de análise e reflexão em volta de questões extremamente atuais e de certa forma sensíveis dentro do panorama dos Estudos Africanos contemporâneos.

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TABLE OF CONTENTS

Movimentos sociais, Estado e Sociedade Civil em África. Considerações introdutórias Luca Bussotti and Remo Mutzenberg

Les “Guerriers” Taghridjant du Delta du Fleuve Sénégal : Identité et politiques de conservation dans le Parc National du Diawling (Mauritanie) Rachel Effantin-Touyer and Francisco Freire

Hip-hop em Angola: O rap de intervenção social Gilson Lázaro and Osvaldo Silva

Resistência Urbana e Ativismo Social na : O caso da “Korrenti di Ativiztas” Silvia Stefani

Ativismo LGBT num Campo Político Hostil – Uma leitura dos movimentos ativistas no Uganda Rui Garrido

Estado e Sociedade Civil em Cabo Verde e Guiné-Bissau: Djuntamon para novas relações Ricardino Jacinto Dumas Teixeira

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Movimentos sociais, Estado e Sociedade Civil em África. Considerações introdutórias

Luca Bussotti and Remo Mutzenberg

1 Nos últimos anos a África tem sido teatro de intensas manifestações públicas, em que a sociedade civil, juntamente com várias associações, tem desempenhado um papel relevante, com peculiaridades específicas ao nível local. Qual é a natureza e quais os objetivos de tais movimentos? Contra quem ou contra o quê eles manifestam?

2 Para responder a tais questões, patentes nos artigos deste número dos Cadernos de Estudos Africanos, traçaremos uma breve reflexão em volta dos movimentos sociais em África; feito isto, apresentaremos sucintamente os textos aqui publicados, como exemplos do dinamismo e da heterogénea situação que está decorrendo hoje no continente africano. A nossa análise centrar-se-á numa revisão da literatura acerca dos movimentos sociais em África. Procuraremos refletir sobre as mais relevantes interpretações de tais fenómenos, fornecendo uma leitura capaz de enquadrar as principais demonstrações de cunho sociopolítico, com base em algumas caraterísticas comuns.

3 A literatura científica sobre os movimentos sociais africanos continua bastante fraca, se comparada com o mesmo âmbito de estudos nos países ocidentais.

4 A análise levada a cabo em África durante o período das lutas pela independência e no imediato pós-independência, assim como o processo de transição democrática nas décadas de 1990 e 2000, têm destacado como questão chave a construção duma nação centrada no Estado. Este último tem sido concebido como sujeito de desenvolvimento, no interior de um processo em que a sociedade civil e, sobretudo, os movimentos sociais, têm tido pouca ou nenhuma visibilidade pública (Mamdani & Wamba-Dia-Wamba, 1995; Mutzenberg, 2015).

5 Ainda assim, os estudiosos têm mostrado um crescente interesse para com este assunto, especialmente a partir dos anos noventa. Esta década representa um ponto de viragem fundamental para a sociedade africana e, consequentemente, para os movimentos sociais.

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Uma tal circunstância deve-se à vaga de democratização e liberalização introduzida ou imposta a muitos países africanos nesta época, em estreito relacionamento com a queda do Muro de Berlim e o fim da experiência comunista na antiga União Soviética. Nossa ideia é que este acelerado processo de democratização tem sido interpretado pela maioria das classes dirigentes africanas como uma (necessária) ameaça à manutenção do seu poder político e económico, um preço que elas tiveram de pagar para solucionar gravíssimos problemas económicos e financeiros dos seus países. Estas classes têm sido forçadas, no plano formal, a aprovar constituições liberais, embasadas no respeito dos direitos humanos e da liberdade de expressão; porém, no plano substancial, enormes esforços têm sido enveredados para restringir a esfera pública e o debate político, tornando as reformas feitas o mais possível inefetivas (Bussotti, 2014). Esta ambiguidade tem produzido evidentes contradições: por um lado, a liberdade, por outro conceções políticas geralmente ainda autoritárias, em que os processos eleitorais só tinham a finalidade de confirmar um poder previamente legitimado com a comunidade internacional, muito mais do que com os eleitores. A aceleração destes dois processos paralelos, assim como a difusão de instituições de ensino superior e, portanto, de indivíduos com elevada formação académica, juntamente com o incremento das desigualdades económicas, pode constituir uma das principais razões para o desenvolvimento de protestos sociais por parte de movimentos localmente organizados.

6 Atualmente, África representa o continente em que o coeficiente de Gini é o mais alto do mundo, com as exceções de China e Índia. Sem considerar os países ocidentais, no mundo em via de desenvolvimento, a média e a mediana da desigualdade é respetivamente de 0,39 e 0,38; na África Subsaariana estes dois valores são de 0,43 e 0,41. Em África Oriental concentram-se os índices mais elevados de desigualdade, com países como , Zâmbia, Namíbia, África do Sul que lideram esta classificação. A tabela abaixo bem ilustra esta situação.

Tabela 1: Desigualdade em África em relação a outras economias em desenvolvimento

Gini África Outros países em desenvolvimento

Média

Mediana 0.43 0,39 Rácio de rendimento: 0,41 0,38 10,18 8,91 20% Mais ricos / 20% Mais pobres

Rendimento baixo 0,42 0,39

Rendimento médio inferior 0,44 0,40

Rendimento médio superior 0,46 0,40

Fonte: WIDER Inequality Database (2014); World Development Indicators (2014)

7 Mesmo assim, as oportunidades, sobretudo nos centros urbanos, multiplicaram-se ao longo dos últimos anos. Alguém, refletindo sobre a massiva difusão de instituições de ensino superior em África, tem falado de uma verdadeira “commercialization of higher

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education” (Mamdami, 2007). Se pode-se concordar com uma tal afirmação, isso significa que um número cada vez maior de africanos tem tido acesso a níveis académicos a que os seus próprios pais nem podiam aspirar. O índice GER (Gross Enrolment Ratio for Higher Education) na África Subsaariana tem registado um tremendo incremento entre 1980 e 2000, passando de 1,7 para 4,0. Apenas para dar alguns exemplos, Botswana passou de 1,2 para 5,0, os Camarões de 1,7 para 5,0, a Costa de Marfim de 2,8 para 7,0, as Maurícias de 1,0 para 11,0. O mais elevado score em termos de GER continua o da África do Sul, com 15,0 (Varghese, 2004).

8 Esta grande expansão tem sido possível graças à contribuição do setor privado. A mesma situação regista-se num outro, sensível âmbito, o do jornalismo e da comunicação. Um comentador escreveu que, no início dos anos noventa, “the independent media have grown like the savannah grass after prolific rainfalls following a long drought” (Karikari, 2010, p. 23). Em 2006 havia mais de 5.000 entre jornais, emissoras radiofónicas e televisivas em 15 países africanos (ibid.).

9 Apesar disso, nenhum país africano coloca-se nas primeiras 15 posições do ranking internacional sobre liberdade de imprensa do World Press Freedom Index, e apenas três no top-40. Um país africano, a Eritreia, detém o recorde do Estado menos livre do mundo (ver 2015 World Press Freedom Index, em https://index.rsf.org/#!/).

10 Este mix composto por uma liberdade formalmente reconhecida em termos políticos, académicos e de pensamento e expressão, uma elevada desigualdade económica e a constante tentativa, por parte de muitos governos africanos, de limitar a esfera pública e as críticas de natureza política, levou, como sua lógica consequência, a demonstrações e “desordens” sociais.

11 Se a “época de ouro” dos movimentos sociais na Europa deve ser colocada na década de sessenta (Van Stekelenburg & Klandermans, 2009), em África esta tendência começou nos anos noventa. Mas os anos noventa foram decisivos mesmo para os movimentos sociais no mundo ocidental. Com efeito, as manifestações de Seattle e Génova contra as cimeiras do G8 ou do G20 representam um importante marco para os movimentos de protesto em todo o mundo (Bussotti, 2000; Ellis & Van Kessel, 2009). Entretanto, esta nova vaga de manifestações regista um brusco entrave com os factos do dia 11 de setembro de 2001. Os protestos sociais sofreram uma drástica redução; um novo inimigo global, o terrorismo islamita, substituiu as reivindicações coletivas para um mundo mais justo. A palavra de ordem mudou de justiça para segurança: a agenda política global desenhou uma nova hierarquia.

12 Os movimentos sociais e políticos africanos têm tido geralmente uma estreita relação com os ocidentais, embora mantendo diferentes caraterísticas e objetivos (Ellis & Van Kessel, 2009). Eminentes estudiosos procuraram delinear uma breve história dos movimentos sociais e políticos em África. Larmer, por exemplo, propôs quatro períodos para caraterizar os movimentos sociais africanos: as lutas nacionalistas e independentistas (1950-1960); a formação dos novos Estados africanos, com a incorporação dos movimentos sociais no seio das estruturas institucionais (1960-1975); o ajustamento económico e estrutural (1975-1989); finalmente, os movimentos em prol da democracia (1990-2010) (Larmer, 2010). Brandes e Engels propuseram uma periodização diferente: colonização e descolonização, poder do Estado, transformações políticas nos anos noventa, com a abertura democrática, finalmente a cooptação da sociedade civil por parte das agências

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internacionais e o Banco Mundial, sob o lema da luta contra a pobreza (Brandes & Engels, 2011).

13 Em termos tipológicos, pesquisas anteriores levadas a cabo por conceituados investigadores tinham realçado a presença dos movimentos sociais nos Estados pós- coloniais: Bayart apresentou, ainda na década de oitenta, evidências de manifestações protagonizadas por camponeses contra os “novos” Estados africanos (Bayart, 1986), ao passo que Mamdami e Wamba-dia-Wamba, dez anos depois, procuraram relacionar movimentos sociais com democracia e o restringimento da esfera pública (Mamdami & Wamba-Dia-Wamba, 1995). É dúbio formular a hipótese de que movimentos militares que travaram a luta pela independência nacional, tais como a RENAMO em Moçambique ou a UNITA em Angola possam ser classificados de movimentos sociais, mas é altamente provável que eles tivessem uma consistente base social, como as eleições livres depois da afirmação do multipartidarismo têm claramente demonstrado.

14 Em suma, os movimentos sociais em África não são novos, mas é evidente que, a partir dos finais da década de 2000, eles assumiram uma diferente configuração se comparados com as agitações e demonstrações ocorridas antes do início do novo século.

15 Diferentemente daquilo que provavelmente aconteceu nas sociedades ocidentais, em África não parece correto falar duma mudança dos protagonistas dos movimentos sociais, da classe dos trabalhadores às classes médias (Della Porta & Diani, 1999). A mudança na natureza dos movimentos sociais em África tem sido mais complexa e heterogénea. Segundo Habib e Opoku-Mensah, a caraterística comum dos recentes movimentos sociais africanos deve ser procurada no “product of, and the response to, a concrete context of deprivation, rights denial and injustice”. Assim, e apesar da sua notável heterogeneidade, os movimentos sociais africanos podem ser categorizados através do lema da justiça económica. Um tal lema engloba a luta contra as multinacionais, em prol da democracia e transparência, do meio ambiente, dos direitos das minorias, a começar pelos direitos das mulheres (Habib & Opoku-Mensah, 2009, p. 55). A tese central destes dois autores é que a África do Sul representa o fulcro dos movimentos sociais africanos: acima de tudo, do ponto de vista histórico (a luta contra o apartheid), em segundo lugar em termos de qualidade e nível de organização e consciência: organizações como o Anti-Privatization Forum, o Concerned Citizens Forum, o Landless People’s Movement, a Western Cape Anti-Eviction Campaign e muitos outros encontram os seus correspetivos em outros países africanos. Por exemplo, em Botswana a população San tem manifestado para ver reconhecidos os seus direitos sobre as terras do Deserto do Kalahari, ao passo que em Gana, Zâmbia e o Anti-Privatization Forum tem lançado importantes campanhas; no Quénia o Kenya’s Green Belt Movement permitiu a Wangari Maathai ganhar o Prémio Nobel da Paz em 2004, enquanto movimentos ambientalistas levaram a cabo ações significativas com vista à proteção do Delta do Níger. Ngoma-Leslie chega a conclusões similares, afirmando que o ativismo em prol dos direitos humanos é “viewed with suspicion by political leaders and sometimes outrightly oppressed” (Ngoma-Leslie, 2012, p. 17).

16 Qual é a nossa ideia acerca dos movimentos sociais em África hoje?

17 Do nosso ponto de vista, pelo menos três fatores caraterizam os novos movimentos sociais em África a partir dos anos noventa:

18 O processo de democratização originou, na maioria dos casos, uma situação em que os Estados africanos procuraram controlar e limitar a opinião pública, em detrimento da promessa de mais liberdade, sobretudo de expressão;

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19 Em paralelo, a adoção dum modelo liberal patente em muitas constituições africanas tem introduzido o paradigma dos direitos humanos como base para uma nova coabitação social e política. Geralmente financiados por ONGs internacionais, os movimentos locais começaram a lutar pelo respeito dos princípios constitucionais, enraizados na justiça económica e na liberdade política;

20 A vaga de liberalização que tem atravessado muitos países africanos teve, como consequência, a exacerbação da situação socioeconómica de um grande número de cidadãos, de maneira que estes recorreram a protestos e demonstrações para atenuar as crescentes diferenças entre eles e as novas classes privilegiadas.

21 Devido a este conjunto de motivos resolvemos lançar a ideia de dedicar um número especial dos Cadernos de Estudos Africanos ao papel e às caraterísticas destes protestos públicos em África, analisando a sua natureza e a maneira com que os vários governos têm lidado com eles. Tais demonstrações têm sido chamadas de “African awakening” (Honwana, 2013).

22 Um papel relevante tem sido desempenhado pelos jovens e pelas redes sociais, com impacto sobretudo nos contextos urbanos. Uma nova dimensão de tipo cultural, como a música, tem-se tornado referência central para difundir as ideias de tolerância, democratização e críticas contra a corrupção e outras práticas detestáveis por parte das classes dirigentes africanas. Honwana acredita que o rap é hoje um dos meios mais importantes para implementar processos de formação política nas jovens classes urbanizadas africanas. Este fenómeno poderia ser a consequência dos limitados espaços de participação política que as classes dirigentes africanas têm reservado aos jovens (Honwana, 2012).

23 A partir dessas considerações, a ideia central que está na base deste número dos Cadernos de Estudos Africanos é a de analisar a natureza dos movimentos sociais, especialmente os relacionados com jovens e dimensão urbana. Os cinco artigos aqui apresentados dão uma ideia geral da heterogeneidade, complexidade e inovação dos movimentos sociais em diferentes países africanos.

24 Rachel Effantin-Touyer e Francisco Freire estudam os “guerreiros” Taghridjant do delta do rio . Eles procuram mostrar como este movimento social tem sido capaz de recuperar identidade e conhecimentos locais mediante a reabilitação da barragem de Diama, no interior do Parque Nacional de Diawling.

25 A uma dimensão mais urbana são dedicados os artigos de Gilson Lázaro e Osvaldo Lima e o de Silvia Stefani. No primeiro caso, os autores apresentam a relevância social e política do rap em Angola, como um importante meio para atualizar a cultura nacional no seio do difícil processo de democratização deste país.

26 Silvia Stefani considera como a “rua” em Cabo Verde passou por uma mudança significativa a respeito da sua ocupação por parte dos movimentos sociais. Com efeito, depois da estação dos primeiros gangues urbanos (“thugs”), hoje outras organizações, como Korrenti di Activiztas, ganharam espaço, procurando conjugar reivindicações sociais com assuntos relacionados com género e igualdade.

27 O texto de Rui André Lima Gonçalves da Silva Garrido, sobre o movimento LGBT em Uganda, desenvolve uma reflexão sobre o assunto mais sensível em África relativamente às minorias sexuais. O movimento gay em Uganda está desempenhando um papel de resistência contra as medidas homofóbicas do governo local, um dos mais intolerantes do mundo neste âmbito.

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28 Finalmente, Ricardino Jacinto Dumas Teixeira apresenta um estudo comparativo sobre as relações entre sociedade civil e Estado em Cabo Verde e Guiné-Bissau, analisando paralelismos e diferenciações entre estes dois países, que até 1980 constituíam uma entidade política única.

BIBLIOGRAPHY

Bayart, J.-F. (1986). Civil society in . In P. Chabal (Ed.), Political domination in Africa. Reflections on the limits of power (pp. 109-125). Cambridge University Press.

Brandes, N., & Engels, B. (Eds.) (2011). Social movements in Africa. Stichproben - Wiener Zeitschrift für kritische Afrikastudien, 20, pp. 1-15.

Bussotti, L. (2000). I dilemmi dopo Genova. Gli Argomenti Umani, 8, pp. 141-146.

Bussotti, L. (2014). The risk of current political risk management. Problems of Management in the 21st Century, 9(3), 170-172.

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Della Porta, D., & Diani, M. (Eds.) (1999). Social movements: An introduction. Oxford: Basil Blackwell.

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Honwana, A. (2013). Youth and revolution in Tunisia. Londres & Nova Iorque: Zed Books.

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Larmer, M. (2010). Social movement struggle in Africa. Review of African Political Economy, 37(125), 251-262. doi:10.1080/03056244.2010.510623

Mamdami, M. (2007). Scholars in the market place: The dilemmas of neo-liberal reform at Makerere University, 1989-2005. Dakar: CODESRIA.

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Mutzenberg, R. (2015). Conhecimento sobre ação coletiva e movimentos sociais: Pontos para uma análise dos protestos sociais em África. Revista Sociedade e Estado, 30(2), 415-447. doi: 10.1590/ S0102-699220150002000008

Ngoma-Leslie, A. (2012). Social movements and democracy in Africa. Oxford: Routledge.

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Varghese, N. V. (2004). Private higher education in Africa. IIEP, ADEA, AAU, UNESCO.

AUTHORS

LUCA BUSSOTTI Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL), Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Avenida das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal [email protected]

REMO MUTZENBERG Universidade Federal de Pernambuco, Cidade Universitária, Av. Professor Moraes Rego, 1235, Recife - PE, 50670-901, Brasil [email protected]

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Les “Guerriers” Taghridjant du Delta du Fleuve Sénégal : Identité et politiques de conservation dans le Parc National du Diawling ( Mauritanie) Os “guerreiros” Taghridjant do delta do rio Senegal: Identidade e políticas de conservação da natureza no Parque Nacional de Diawling (Mauritânia)

Rachel Effantin-Touyer et Francisco Freire

NOTE DE L’ÉDITEUR

Recebido: 11 de fevereiro de 2015 Aceite: 9 de março de 2016

1 Si les Taghridjant sont aujourd’hui érigés comme communauté emblématique du Parc National du Diawling (PND), en réalité ils ne représentent que 5% des habitants du bas delta du Sénégal (sur la rive mauritanienne), et seulement 11% de la population directement riveraine du PND1. Interlocuteurs privilégiés des experts internationaux visitant ou travaillant dans le PNB (écologues, hydrologues, consultants de la coopération technique), ils montrent une habileté particulière dans la relation avec les acteurs de la coopération au développement et la conservation de la biodiversité. Dans cet article, on s’interroge sur la position de résistance de cette population tout en étant l’interlocuteur privilégié de l’État et des ONG dans le cadre des politiques de conservation de la nature entamées dans le PND.

2 Dans un premier temps, nous montrons que l’identité ḥassân (“guerrière”) des Taghridjant souligne le fait que le modèle statutaire maure repose sur la conjugaison de

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différentes structures, plutôt que sur une simple lecture des partitions rigides qui servaient traditionnellement à l’expliquer2. Même si marqués par l’ordre statutaire ḥassân , les Taghridjant se qualifient sur le terrain par leurs liens approfondis avec des activités – surtout la pêche – qui ne sont pas habituellement associées au statut ḥassân. Le propos de notre contribution est aussi de voir comment une qabîla (généralement traduit par “tribu”) au statut ḥassân se repositionne face à de nouvelles structures (politiques, écologiques et sociales) qui s’imposent dans le territoire traditionnel des Taghridjant, et avec lesquelles ils négocient une participation.

3 Les données ont été collectées entre 2007 et 2012, au cours d’enquêtes sur la dimension d’anthropologie historique, et d’un séjour de trois ans d’immersion dans l’action de développement, entre 2010 et 2012. Elles relèvent d’une enquête fondée sur l’histoire et la théorie anthropologique, et d’une démarche de terrain plutôt ethnométhodologique : l’analyse suit une approche compréhensive de l’intérêt des pratiques spécifiques du groupe étudié dans la situation contemporaine de coexistence entre leurs activités productives et symboliques et l’intervention allochtone sur leur territoire de vie, au nom de la conservation de milieux déclarés d’importance écologique.

4 Nos résultats forment un recueil des discours qui traduisent le point de vue des Taghridjant (recueilli auprès d’une dizaine de membres du groupe – pratiquant tous la pêche, la cueillette de végétaux utiles – dont la plupart sont des hommes et des femmes leaders de la communauté, des membres de la confédération tribale Tendgha, de statut maraboutique, et des agents de la conservation, employés ou collaborateurs du PNB), relatifs à leur identité et leur territorialité3, afin de légitimer leur résistance au cours de l’installation du PND et de la mise en œuvre d’un projet de coopération4. Suite au cadrage historique et identitaire de la qabîla Taghridjant (fondamentale pour l’analyse effective de leur rôle et de leur discours performatifs contemporains), nous nous proposons de décrire l’évolution de sa maitrise des ressources naturelles et des pratiques productives, et en particulier de la pêche, activité qui est dorénavant associée au nom de la tribu par les intervenants dans la conservation et le développement.

L’exception Taghridjant : des “guerriers” - producteurs ancrés dans un territoire

5 Les Taghridjant déclarent un positionnement statutaire d’une grande simplicité, comme étant “une qabîla ḥassân de la région du Trârza”. Nonobstant, les Taghridjant opèrent dans l’extrême sud-ouest mauritanien comme une chefferie ḥassân, certes, mais qui se dédie à des activités qui ne sont pas traditionnellement consacrées à cet ordre statutaire (surtout la pêche, ou l’agriculture), identifié tout en particulier avec le nomadisme et l’élevage. Avant d’avancer dans l’exploration des aspects plus contemporains des Taghridjant, nous proposons d’apporter une remarque concernant la définition généalogique de cette qabîla , qui s’avère décisive dans les positionnements contemporains du groupe.

6 Contredisant une grande partie des récits d’origine qui traitent du labyrinthe social “maure”, les Taghridjant déclarent un projet identitaire, fondé sur la généalogie, qui incorpore comme ancêtres apicaux deux personnages qui jouent des rôles distincts dans l’histoire de la région : des “frères” Nyarzîg et Rizg. Les deux marquent des moments particulièrement importants : le premier, comme éponyme d’une ancienne population – d’origine Sanhâja (Berbère) – reconnue sur toute la côte atlantique sud-ouest saharien

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(entre le cap Blanc, au nord, et l’embouchure du fleuve Sénégal, au sud) jusqu’au XVIe siècle (Freire, 2011b, pp. 55-56) ; le deuxième, identifié avec la première population d’origine arabe qui se serait établie dans l’extrémité sud-ouest de l’actuel Mauritanie, dans une période antérieur au XVIIe siècle (Norris, 1986).

7 Le fait que le groupe s’identifie, jusqu’à présent, auprès d’une population sans une ascendance arabe reconnue – les Nyarzîg –, constitue un aspect singulier dans le panorama socioculturel maure. En effet, dans la plupart des cas, cette sorte de filiation est à tout prix occultée, et on essaye de renaitre généalogiquement suite aux campagnes arabes (surtout Banî Ḥassân) de la fin du XVIe siècle. Ce raccourci de l’historicité facilite la définition des liens avec des groupes dominants et concrétise une présentation des emblèmes islamiques de ces populations, alors supportés par des généalogies qui rapidement atteignent la péninsule arabique. Les actuels Taghridjant, par contre, ne se permettent pas ce genre de discours, et préservent leur filiation bipartie entre le “vainqueur” Nyarzîg et le “vaincu” Rizg : Dans cette région il y avait deux frères, Nyarzîg et Rizg. Quand les deux sont arrivés, il n’y avait que des noirs ici. Après avoir libéré la région des “noirs” et après l’installation de Nyarzîg et Rizg dans le territoire, il y a eu une grave querelle entre leurs descendants. Dans un premier temps la victoire dans ces combats revint aux Rizg, et ils ont gardé longtemps le contrôle du territoire. Dans un deuxième temps les Nyarzîg ont pris le pouvoir, repoussant les Rizg vers l’Est (les Rizg sont maintenant les Awlâd Bouh ‘Ali et les Awlâd Khalifa). Les Nyarzîg sont alors devenus les maîtres de la région (Sîdi al-Ḥamdi, Bneïnadji, novembre 2005, citado em Freire, 2013, pp. 67-68)5.

8 Définissant leur récit fondateur dans la rencontre entre Nyarzîg et Rizg, les Taghridjant donnent la preuve d’un complexe travail de redéfinition identitaire qui est structuré autour de deux cadres sociaux formellement divergents (Arabe et Berbère). Comme réponse au paradoxe (ethnique, en dernière analyse) concernant l’union entre des univers sociaux distincts, les Taghridjant surpassent un problème complexe avec une structure généalogiquement harmonieuse, que rend compréhensible et acceptable la rencontre entre Nyarzîg et Rizg. Cette opération atteste le lien ancestral des Taghridjant avec la région et assure leur intégration auprès des deux groupes peut-être les plus importants de l’histoire régionale. L’ancienneté des Taghridjant dans le territoire est reconnue par la majorité des différentes populations de la région, et elle explique la genèse de leur relation privilégiée avec le PND6. Elle traduit aussi une vision conciliatrice de l’histoire sociale de la région, version sublimée de la rencontre entre des populations locales et des qabâ’ail (pl. tribus) d’origine arabe qui se sont plus tard installées sur le territoire.

9 Si en Mauritanie l’expression visible des récits d’origine se manifeste, dans la plupart des cas, par l’effacement des lignages plus anciens (Bonte, 1998, pp. 219-220, 228), ou bien les incluant dans un processus graduel d’arabisation (voire d’“agnatisation”), les Taghridjant s’en distinguent. Même s’ils acceptent la présence précoce de Rizg dans la structure fondatrice du groupe, ils maintiennent une franche résistance au modèle presque hégémonique qui vise à l’arabisation des lignages. C’est peut-être aussi pour cette raison que les Taghridjant sont aujourd’hui un groupe marginal, exclu des grands récits tribaux qui les considèrent largement comme de simples “vestiges” d’une ancienne population (Nyarzîg). Peut être que l’hétérodoxie généalogique des Taghridjant pourrait se répliquer dans sa posture statutaire hors du commun. En tant que très anciens habitants de la région, les Taghridjant continuent d’attribuer, contrairement à presque tous les récits

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d’origine qu’on peut identifier, un rôle privilégié à leur ancêtre Nyarzîg. Ce personnage, même s’il ne confère pas de liens nobiliaires (généralement associés à une généalogie arabe), autorise en tout cas l’affirmation d’un statut guerrier, ce qui n’est pas, jusqu’à présent, mis en doute. Nous cherchons à montrer que cette relation multiséculaire avec le territoire et les modes de production locale permet aux Taghridjant de pleinement s’intégrer – en tant que protagonistes actuels – dans les activités agricoles, dans la pêche7, aussi bien que dans les activités et politiques de conservation de la biodiversité.

10 Un autre élément fondamental dans le dessein actuel de la qabîla Taghridjant, qui compte à peine quelques deux cents individus, concerne le poids démographique de ses communautés ḥrâtîn8 (les statistiques officiels ne sont pas disponibles, mais on peut affirmer que les ḥrâtîn composent certainement une majorité de la population Taghridjant). Celles-ci jouent sans doute un rôle décisif dans le développement des activités productives (pêche, agriculture, cueillette des végétaux), mais aussi dans le positionnement politique du groupe face aux nouvelles structures qui s’imposent aujourd’hui dans la région. De plus, il confirme la pleine intégration des ḥrâtîn dans l’architecture formelle de la qabîla (qui valorise leur rôle, et leur succès dans l’adoption de compétences professionnels contemporaines). Outre leur spécificité généalogique, la valorisation démographique des communautés ḥrâtîn – en parallèle à la dégradation démographique des familles bidhân (un pluriel de “blanc”, dénommant les communautés de statut libre) –, peut justifier la proéminence des fonctions productives de cette qabîla au statut ḥassân. Les résultats obtenus avec ce positionnement singulier consolident, à présent, un projet de résistance et une capacité d’adaptation à des changements profonds qui touchent le sud-ouest mauritanien.

11 Ainsi, l’incorporation des Taghridjant dans un espace idéologiquement arabe ne s’accomplit pas – dans l’histoire – par l’alliance matrimoniale, mais par le recours à un récit d’origine qui associe deux frères. Néanmoins, nous avons pu identifier leur recours à l’alliance matrimoniale, et, en particulier, avec l’émirat du Trârza9. Depuis le milieu du XVIIe siècle, ce dernier a joué un rôle décisif dans l’organisation politique de la région. Cela nous permet de repenser la structure identitaire de la qabîla, si l’on considère que le mariage exogame transforme l’ennemi en allié. Et on peut alors émettre l’hypothèse que ce moment scelle la “sujétion” des Taghridjant aux Trârza. Est-ce l’élément décisif dans l’illustration du déclin des Taghridjant, qui peut confirmer son “occupation identitaire” par une idéologie (et, dans ce cas, aussi par une généalogie) ḥassân ? Comment les Taghridjant ont-ils (re)construit leur rôle de leaders régionaux après ce mariage ? Et, par cette voie, ont-ils réussi à conserver leurs caractéristiques originales : capacité militaire, autonomie politique et contrôle d’un territoire propre ?

La tradition Taghridjant de mise en valeur du bas delta

12 Le bas delta du fleuve Sénégal est un réseau de marigots qui se rejoignent pour former un seul lit à l’embouchure. Ce réseau hydrique déborde en période de crue pour ne laisser émerger que trois massifs dunaires désormais reliés par des digues : le cordon littoral, la dune de Ziré au centre et la dune de Birette au sud-est (Hamerlinck & Duvail, 2003 ; Taïbi et al., 2006) (Fig. 1). Zone de contact depuis le Néolithique entre cultivateurs africains sédentaires et peuples sahariens proto-berbères nomades (Vernet, 1993), puis porte d’entrée en Afrique pour les Européens depuis le XVe siècle, le bas delta est le terrain de multiples batailles territoriales autour du contrôle des routes commerciales, des

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pêcheries et des pâturages, dont la mémoire collective actuelle relate systématiquement le climat d’insécurité (Duvail, 2001 ; Ould al-Barra & Ould Cheikh, 1996). À la période contemporaine, il demeure un carrefour entre communautés maures, peuls et wolofs.

13 Avant l’endiguement du fleuve, le bas delta fut le support de l’enchevêtrement spatio- temporel d’activités qui sont rythmées par le régime des crues d’un fleuve qui alimente une région sahélienne caractérisée par l’incertitude pluviométrique (Hamerlynck & Duvail, 2003). L’exploitation des ressources naturelles est diversifiée : pêche en eau douce, cueillette de techanet (Sporobolus robustus) pour la confection de nattes, de gousses (selaha ) d’Acacia nilotica (al-âmûr) pour le tannage des peaux, et de nénuphar (Nymphea lotus, djaqar), agriculture pluviale sur les dunes, élevage de caprins, de bovins et de camelins, commerce du sel, etc. Elle s’organise dans le cadre de chaque communauté ethnolinguistique, qui a une spécialité mais jamais l’exclusivité d’une activité (Duvail, 2001) : les Wolofs vivent essentiellement de la pêche en mer et l’associent à la pêche dans le fleuve, aux cultures pluviales et au petit élevage villageois ; les Maures (majoritairement du groupement Tendgha) pratiquent le commerce, l’élevage de bovins et de camelins et cohabitent avec les éleveurs peuls (de la famille Abass). Les pêcheurs du fleuve font partie des communautés ḥrâtîn issues de différentes tribus : parmi eux, les Taghridjant sont considérés comme les plus anciens résidents et la pêche est aujourd’hui au cœur de leur identité.

14 L’espace de nomadisation de la tribu Taghridjant, avant l’endiguement du fleuve, s’organisait sur environ 2000 km2, dans un périmètre compris entre Simsyât (120 km au sud de l’actuel Nouakchott) et Khcheime Larda au nord, Gwâreb sur le littoral (30 km à l’ouest de Keur Macène) et le N’thiallakh au sud. Le système productif Taghridjant associait l’élevage, la pêche et le commerce, comme la plupart des communautés du littoral nord-ouest africain.

15 En hivernage, alors que les troupeaux se dispersaient au nord-est dans la dune de Tamzaqt, la communauté se rassemblait sur la dune de Ziré pendant la haute saison de pêche, lors de la crue dans les bassins du delta (Bell, Diawling, etc.) qui atteignait la dune. Cette pêche était individuelle, chacun préparait des longues palangres (dailonk) qu’il fixait au sol avec des pierres, juste avant qu’elles soient couvertes par l’eau de la crue. Cette pêche permettait de capturer les poissons venus frayer dans les eaux peu profondes et nutritives. Dans cette saison, on pratiquait également l’exploitation des salines (sebkhas) pour exporter le sel vers l’est en amont du fleuve, ainsi que des cultures pluviales sur les sols dunaires.

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Fig. 1 : Peuplement et aménagements hydrauliques du bas delta du fleuve Sénégal

16 En saison sèche froide, les troupeaux descendaient au sud sur le littoral. La pêche se poursuivait au niveau des marigots situés autour de la moitié sud de Ziré, jusqu’au confluent du N’thiallakh. Elle se pratiquait selon un système de piégeage collectif (tantkin) fait de palmes, qui consiste à devancer la migration des poissons de retour vers le fleuve. Ce travail extrêmement physique nécessitait vingt hommes pour soulever la nasse ( tabdiaghlit) faite d’une sorte de jonc, le Sporobolus robustus (techanet). Ce système de pêche à pied, désormais révolu, est devenu emblématique du patrimoine culturel du bas delta “restauré”. Le produit de cette pêche l’est également, comme une sorte de produit du terroir avant le label : le poisson transformé (guedj) par les Taghridjant conserve jusqu’à nos jours sa spécificité très appréciée au Sénégal, du fait de l’eau saumâtre du delta, du choix de l’espèce ciblée et du mode particulier de transformation10.

17 Enfin, en saison sèche chaude, les troupeaux transhumaient au Sénégal, les familles se dispersaient entre Nouakchott, Keur Macène et le Sénégal, pour s’adonner au commerce.

18 Pendant que les hommes migrent temporairement, les témoins actuels insistent sur le rôle pilier des femmes pour entretenir les campements à partir de leur cueillette de végétaux des zones humides pour la confection d’aliments et d’outils quotidiens de l’habitat nomade (couscous, nattes, peaux, tentes en poil et tissu, selles et bâts de dromadaires, sacs de bât, couvertures de cuir, outres à baratter, etc.). Ils démontrent ainsi leur capacité historique d’autosuffisance vivrière, liée à une connaissance fine du bas delta et de la valorisation productive de sa biodiversité.

19 Le mode d’appropriation des terres chez les Maures relève traditionnellement du droit islamique malikite (Ould al-Barra & Ould Cheikh, 1996). Comme nous avons indiqué en début de l’article, les Taghridjant ont une présence dans la région antérieure à la “conquête” Banî Ḥassân (fath) (voir Norris, 1986). Ainsi, l’ouverture de “leur” terre au dar

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al-islam est due seulement à leur conversion à l’islam. Ils conservèrent la capacité de l’auto-protéger, tout en passant alliance avec les arrivants Banî Ḥassân, et notamment avec l’émirat du Trârza. Néanmoins, la colonisation française a supplanté l’autorité des émirats, minimisant le pouvoir des autorités émirales par leur politique militaire de pacification du territoire mauritanien (fin du XIXe-début du XXe siècle) (Taylor, 1995). Il semble que dans ce contexte, les Taghridjant aient choisi de faire une démarche de validation de leur appropriation territoriale ancestrale : ils disposent aujourd’hui d’un document délivré en 1957 par l’autorité coloniale installée à Saint-Louis, reconnaissant leur maitrise collective du territoire (Freire, 2011a, pp. 290-291). Cette précaution peut se justifier notamment par le caractère singulier de cette appropriation foncière par une tribu guerrière, d’origine Sanhâja assumée, préexistante à la conquête Banî Ḥassân.

20 Les Taghridjant justifient également leur maitrise foncière dans le bas delta par le principe de “vivification” (ihyâ), c’est-à-dire, de mise en valeur d’une terre par des aménagements et des activités de collecte ou de production. D’une part, ils témoignent avec fierté la qualité du sol de Ziré. D’autre part, ils précisent spontanément l’effort d’aménagement que leurs ancêtres ont consenti pour pouvoir circuler entre terres et eaux et les rendre hospitaliers et productifs. Ceci suppose une connaissance du milieu, un savoir-faire et un effort physique exceptionnel : “Ziré a été façonnée par la main de l’homme” nous précise une femme Taghridjant (Enquête de terrain, 2012). Tout autour de la dune, des layons forestiers ont été défrichés pour ouvrir des accès au fleuve en saison sèche. De même, les marigots sont curés et désherbés pour libérer des espaces de pêche de décrue. Ces deux types d’aménagement (chenal entretenu et layon forestier) ont en commun la désignation de machra et celui qui l’aménage se l’approprie : il en gère l’usage, peut le transmettre mais ne peut pas le vendre car c’est toujours le territoire de la qabîla. Il existait ainsi plusieurs machara en tant que voie d’accès au fleuve : la famille du propriétaire assurait la traversée du bétail, des marchandises et des personnes vers le Sénégal. Quant aux machara de pêche, ils correspondaient à des segments de marigots sur lesquelles on posait les pièges collectifs (tantkin) pendant la décrue, sous la gestion de l’aménageur de chaque machra. Cette pratique se combinait avec, en période de crue, une pêche massive mais individuelle dans un espace ouvert non aménagé.

21 Ainsi les Taghridjant ont développé un système de pêche qui combine appropriations individuelles et collectives. Il permettait d’affronter le travail de collecte et d’en organiser le partage des produits, sur un territoire commun à la qabîla, selon la répartition et la migration des ressources halieutiques et l’évolution de la morphologie des sites de pêche au fil des saisons.

Au cœur des bouleversements écologiques et politiques

22 En conséquence des sécheresses qui ont sévi dans le sud-ouest saharien dans les années 1970, le bas delta a été transformé depuis 1985 par l’édification de la retenue anti-sel de Diama, dans le but d’ouvrir des périmètres rizicoles dans la vallée et d’assurer une production alimentaire. En aval de cette retenue, un grand désert salé résulta de la rupture du fonctionnement estuarien. La pêche fluviale, le pastoralisme et la cueillette ont pâti d’une érosion drastique des ressources. Chez les Taghridjant, comme d’autres communautés maures, cela a provoqué une vague d’émigration massive dans la sous- région. En même temps, les populations se sont sédentarisées dans le bas delta, en

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villages essentiellement entretenus par les femmes : les communautés ḥrâtin Taghridjant se sont rassemblées à Ziré Taghridjant et à Débi, de part et d’autre du fleuve, tandis que les quelques familles bidhân se trouvent à Bneïnadji, près de Keur Macène. Sur la dune de Ziré, il faut aussi signaler la création du village de Bounayatt (ou Ziré Moussafirine), fondé par les réfugiés Taghridjant après les graves événements transfrontaliers de 1989 (voir Baduel, 1989), fuyant le Sénégal où ils pratiquaient le commerce et l’élevage depuis les années 1970.

23 Ainsi, exclu de l’espace fluvial aménagé, le bas delta fit l’objet d’une politique de restauration écologique des États mauritaniens et sénégalais, impulsée par l’UICN puis l’UNESCO11. Dans ce cadre, le PND est créé en 1991 avec une mission pionnière de conservation au profit du développement des populations locales et draine de nombreux partenaires de coopération internationale à cette fin12. Cette mission repose sur la création artificielle de crues visant la restauration de l’écosystème estuarien, par la vidange des eaux du fleuve via deux ouvrages installés sur la digue de la retenue d’eau, dans les bras du delta, compartimentés par un réseau de digues équipées d’ouvrages. Dès 1994, des scénarios de gestion consensuelle furent élaborés, avec les différents groupes d’usagers, résidents au cœur du Parc, sur la dune de Ziré, dont le groupe Taghridjant a été le principal protagoniste, au côté des autres groupes Tandgha13. Quinze ans plus tard, les activités locales liées aux ressources des milieux humides ont repris.

24 Cependant, face aux modifications écologiques, les populations font preuve d’une remarquable capacité d’adaptation dans leurs modes de production. Nous avons connu la dernière crue en 1988. Avant, la régulation était naturelle, il y avait toujours de l’eau, salée en saison sèche et douce en hivernage. Mais l’homme a stoppé l’eau et la sécheresse a continué artificiellement. (Entretien avec un pêcheur Taghridjant, Ziré, juin 2012)

25 Selon les Taghridjant, la sécheresse puis les aménagements du fleuve ont empêché définitivement les crues qui atteignaient autrefois la dune de Ziré, entrainant le comblement des marigots. Par conséquent, le système de pêche a été modifié et essentiellement concentré autour des deux ouvrages de vidange. Le piège traditionnel est remplacé par des filets dormants individuels, alignés depuis les ouvrages, vers l’intérieur du marigot ; la place des filets fait l’objet d’un tirage au sort le jour d’ouverture officiel de la saison de pêche, à la décrue. Environ 75 pêcheurs occupent ces sites au plus fort de la saison qui s’étale sur trois mois et le guedj produit est exporté au Sénégal via la digue et le barrage. Pendant la crue, qui n’est plus la haute saison de pêche, les pêcheurs continuent de poser leur palangre dans les bassins, pendant que les deux ouvrages de vidange sont ouverts, mais désormais, ils ne les posent plus au sol mais les montent en suspension dans l’eau sur des flotteurs.

26 Sur les ouvrages, les pêcheurs sont organisés en sein d’abdal pour transformer le poisson et préparer leur repas : ce sont des collectifs d’une dizaine d’hommes où toutes les hiérarchies sociales sont abolies au nom de la productivité du travail, valeur et fierté des Taghridjant : “Dans l’abdal, [Ahmed] n’est plus mon ainé, on est dans le travail !” (Entretien avec un pêcheur Taghridjant à Ziré, décembre 2010).

27 Ensuite une pêche d’appoint est pratiquée dans le delta, au niveau des ouvrages de régulation installés par le Parc (Bell) (cf. Fig. 1). Sur l’initiative de plusieurs projets d’appui à la population résidente du Parc (UICN, IPADE/AECID), on assiste également à l’introduction de petites pirogues à fond plat. Ces pirogues servent de moyens de stockage du poisson levé sur les filets dormants, et ont permis l’apparition d’une nouvelle pêche au

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mulet frais (originaire des lacs de Chott Boul) sur l’initiative d’un mareyeur externe14. De même, la pêche à la crevette en saison froide a été lancée dans les lacs salés du delta (Nter) depuis 1998, à laquelle participent les Taghridjant aux côtés d’autres habitants de Ziré et du littoral.

28 En somme, les pratiques de pêche Taghridjant se sont adaptées à différents facteurs exogènes (aménagement, entreprises privées, et intervention de développement). Les Taghridjant en tirent un bilan mitigé mettant en balance d’un côté le gain en pénibilité du travail et une meilleure valorisation économique de la pêche, et de l’autre, une perte en ressource halieutique, du fait des effets limités de la crue artificielle et de la courte durée de la saison de pêche. C’est une façon pour eux de justifier l’adoption du maraichage depuis 1997-1998, grâce à la recharge des nappes en eaux douces et l’appui en microcrédit de projets associés au Parc15.

29 Les Taghridjant expliquent également cet intérêt pour le maraichage par le fait que cette activité peut se gérer de façon autonome : “La pêche est sous le contrôle de l’OMVS16 et du PND, alors que pour l’agriculture, nous savons quand on veut cultiver”. Ils se revendiquent depuis peu comme les “grands maraichers” du bas delta (35% de la superficie maraichère de la commune de Ndiago17) ; ils souhaitent ainsi corriger leur renommée réductrice de “pêcheurs du Diawling”, notamment auprès des acteurs de développement intervenant dans le domaine agricole.

De l’opposition à la préservation du rôle d’interlocuteurs privilégiés du Parc

30 Les premières visites de terrain par des consultants internationaux accompagnés d’agents étatiques, chargés du diagnostic préalable à la création d’un Parc, ont suscité un accueil hostile de la part des Taghridjant. Ils refusaient l’idée de la création d’un “autre Djoudj”18 de ce côté du fleuve, c’est-à-dire l’usurpation de leur territoire et le risque d’expulsion ultérieure. Cependant, ces intervenants ont progressivement gagné le dialogue en déployant un plaidoyer sur la restauration écologique en faveur des populations, et sur l’alliance nécessaire entre pêcheurs du delta et conservationnistes contre la progression de la riziculture, contrôlée par des hommes d’affaires proches du pouvoir19. Des offres d’emploi dans les travaux du Parc et des programmes de microcrédit constituent des arguments économiques classiques pour obtenir le soutien de la population local.

31 Mais, en réalité, c’est le processus de consultation des populations locales sur le fonctionnement hydrologique et la connaissance de l’écosystème du bas delta qui a scellé le début de la collaboration. Les Taghridjant avaient ainsi la satisfaction de prouver leur savoir, et par là, leur légitime maitrise du territoire. Dès lors, ils se sont imposés comme experts empiriques du bas delta et reconnaissent avoir été associés à la décision d’aménagement à l’intérieur du delta, c’est-à-dire le tracé des digues intérieures et des ouvrages de régulation (cf. Fig. 1).

32 Cependant, les Taghridjant ont fait maintes fois preuve de vigilance dans l’avancement des travaux du Parc : ils ont manifesté leur résistance en sabotant des aménagements liés à la gestion de l’eau, chaque fois que les agents du Parc agissaient sans les informer, ou que des actions observées contredisaient les promesses émanant des agents du Parc. Ce fut le cas de l’incident lors de l’implantation des échelles limnimétriques, et de façon

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beaucoup plus ferme, de l’affaire de l’ouvrage de Berber installé sur la digue de Ziré en 199620.

33 Dès 1995, le Parc consolide une collaboration privilégiée avec les Taghridjant, et en particulier dans le domaine de la pêche21. Le Parc cherche ainsi à atténuer leur méfiance, mais aussi à accéder à leur expertise sur l’expérimentation du système de gestion artificielle des crues, initié en 1997. Cette relation permet également de mesurer l’impact de la restauration écologique sur la production halieutique et le niveau de vie des pêcheurs, l’un des rares indicateurs facilement vérifiable, en plus du rituel dénombrement annuel des oiseaux. Ils démontrent en échange une certaine franchise dans l’analyse d’impact et une capacité de proposition pour ajuster les choix de gestion, à partir de la pratique quotidienne du milieu.

34 Les Taghridjant firent ainsi aligner la côte maximum du bassin de Bell à 1,4 m, pour correspondre au niveau des crues observées avant l’aménagement. Voici comment l’hydrologue qui suit la gestion de l’eau du Parc rend compte de la proposition qui a contribué à ajuster le calendrier actuel de gestion des ouvrages : Les pêcheurs Taghrédients ont insisté sur la nécessité d’inonder les bassins à des cotes élevées. Ils sont par ailleurs favorables à une inondation précoce des bassins, dès le mois de juillet, lorsque les poissons sont prêts à frayer. Ils préfèrent que les ouvrages soient ouverts très tôt et à de forts débits. […] Selon eux, la vidange des bassins ne doit pas être trop rapide. Une lente décrue permet de prolonger la campagne de pêche jusqu’au mois de février22.

35 Jusqu’à aujourd’hui, les pêcheurs Taghridjant sont les seuls à participer aux journées annuelles de concertation sur la gestion de l’eau du Parc et à entretenir un contact informel avec le conservateur : Nous sommes exclus des rouages de l’État même au niveau de la commune mais celui qui vient faire une étude sans nous associer n’a aucune chance de voir les fruits de son projet. (Entretien avec une femme leader Taghridjant à Ziré, juin 2012)

36 Cette exclusivité résulte de l’historique particulier de résistance de cette communauté, qui a imposé au Parc de maintenir une approche concertée du terrain. Cependant que les autres habitants ne présenteraient pas de danger et seraient d’ailleurs moins directement exposés aux effets de la gestion de l’eau du Parc.

37 Des changements interviennent cependant depuis 2010 avec des projets de coopération qui promeuvent un développement local plus participatif à l’échelle de l’ensemble du bas delta. Ainsi, un projet d’écodéveloppement coexécuté dans la période 2008-2013 entre une ONG nationale (ASSPCI) et une ONG espagnole (IPADE) a identifié plusieurs groupes de pêcheurs dans le delta, et l’enjeu de revaloriser les pêcheries vivrières minoritaires pratiquées dans les marigots de N’thiallakh et N’dereye. Les Taghridjant réagirent : “Nous sommes les seuls vrais pêcheurs de la zone […] Ne nous mélangez pas avec les gens du N’thiallakh”.

38 Cela les a poussés à redoubler d’arguments pour prouver leur hégémonie locale dans ce secteur et leur habileté en matière de négociation avec des agents de développement. Ils ont dans ce cadre participé à la conception des actions, en faisant preuve de mesure dans l’identification de leurs besoins, et de leur capacité d’organisation pour la gestion durable des investissements offerts par le projet23.

39 De l’échelle du Parc constitué par ses trois bassins, périmètre d’action pratiquement réservé aux Taghridjant, on passe à celle de la Réserve de Biosphère Transfrontalière du Delta du Sénégal créée en 2005 (RBT). Cette nouvelle entité vise à répondre davantage aux

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exigences écologiques et sociales ; néanmoins, à l’instar d’autres expériences similaires dans la sous-région, les fondements institutionnels et conceptuels sont encore en gestation (Cormier-Salem, 2006). Sur proposition de l’UICN, la RBT véhicule le nouveau concept de “gouvernance partagée”, repris en 2012 par la Coopération Allemande, alors chargée de réactualiser le plan d’aménagement du PND, caduque depuis 200024. En élargissant le cercle de concertation et de bénéficiaires, à l’ensemble des usagers et habitants du bas delta transfrontière, ces interventions remettent en cause le dialogue informel, vieux de deux décennies, entre le Parc et les Taghridjant. Elles promeuvent également l’aménagement durable des zones périphériques du Parc, c’est-à-dire les dunes, et les marigots situés à l’ouest entre le Parc et le cordon littoral (de Chott Boul au N’thiallakh), puis le fleuve en aval du barrage de Diama. Dans ce contexte, les Taghridjant s’évertuent à cultiver leur réputation d’experts locaux, capables de propositions collectives fondées sur des valeurs culturelles qui les distinguent des autres habitants du bas delta, tout en affirmant auprès d’eux un leadership dans la gestion des relations extérieures25.

La distinction identitaire Taghridjant dans le nouveau monde de la conservation de la nature

La légende de leur origine est celle de l’union d’un guerrier Taghridjant et d’une “femme lamantin”. (Duvail, 2001)

40 Malgré la coexistence avec d’autres groupes anciens dans le delta, les Taghridjant sont reconnus par les organisations environnementalistes et l’État mauritanien comme la communauté emblématique du bas delta restauré. Comme nous l’avons vu plus haut, les Taghridjant savent justifier leur appropriation ancestrale du territoire. L’autochtonisation (le fait de définir l’antériorité d’installation à certains groupes dans un territoire, qui leur donne des droits particuliers sur celui-ci) des groupes dans les aires protégées est fréquemment associée au processus de patrimonialisation de la nature (comme processus d’institution d’un espace ou d’un élément naturel comme un bien commun hérité à transmettre aux générations futures) (Dahou & Ould Cheikh, 2007 ; Weigel, Feral & Cazalet, 2007), qui implique la fixation de limites spatiales nouvelles et de droits exclusifs sur le territoire à conserver. Ce paragraphe présente la façon dont les Taghridjant se positionnent en tant qu’autochtones, en démontrant leur connaissance du milieu et leur appropriation ancestrale des terres, afin de justifier les conditions de leur collaboration aux projets environnementalistes sur leur lieu de vie.

41 En montrant leur connaissance fine du delta et un savoir vivre ancestral dépendant de ses ressources naturelles, les Taghridjant ont acquis le rôle d’écologues locaux, et sont régulièrement consultés par les agents du PND et par tout expert venant évaluer le système de gestion des eaux du Parc. Ce savoir correspond à la fonction productive de la tribu, liée, en particulier, à la cueillette et à la pêche, et qui est généralement assurée par les classes tributaires de la qabîla. Ainsi les ḥrâtin Taghridjant se sont trouvés valorisés comme des collaborateurs incontournables de la conservation de la nature.

42 Les ḥrâtin Taghridjant portent aujourd’hui la responsabilité de représentants de la qabîla dans le bas delta ; un rôle, comme nous l’avons vu, justifié par le récit historico- identitaire du groupe, et par sa démographie contemporaine26. Pour entretenir l’identité

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guerrière Taghridjant, ceux-ci évoquent l’attitude de leurs ancêtres aux combats : “ceux qui ne reculaient pas devant la difficulté, et qui combattaient jusqu’à la mort” (Entretien, femme Taghridjant sous anonymat, juin 2012). Mais surtout, ils affirment leur légitimité sur un territoire qu’ils ont acquis au prix de difficiles batailles27 et qui ne serait facilement occupé : “après avoir arraché cette terre par les armes, ce n’est pas un Parc qui va nous déloger”. De même, ils rappellent spontanément à chaque nouvel intervenant d’aide au développement une autorité historique qui sera même reconnue au sein de l’émirat du Trârza28. Ils développent notamment un discours sur leur capacité toujours vive d’autodéfense par simple dissuasion verbale, en cas d’atteinte de leurs biens et de leur terre29.

43 Cette fonction “guerrière” a été bien intégrée dans les discours des experts30, qui, sous une version moderne, la considère comme un élément efficace de protection de la nature. Le code des valeurs distinctives de leur statut – honneur, intégrité, témérité, générosité (Ould al-Barra & Ould Cheikh, 1996) – duquel émanait de l’autorité en milieu insécurisé, demeure apprécié. En retour, les Taghridjant revendiquent cette capacité de protection de “leur” territoire, sur laquelle le Parc devrait s’appuyer, au nom de la restauration de la biodiversité.

44 Cependant les Taghridjant font une nuance très claire entre le mode d’appropriation de leur territoire traditionnel et les changements en cours depuis la déclaration d’utilité publique des zones humides qu’ils utilisent, dans le cadre du PND. Maintenant que nous ne sommes plus les gendarmes de notre zone, le Parc doit nous donner des cartes de pêche et assurer que les bassins de Bell et Diawling sont pour nous. Car il est difficile pour nous d’empêcher à nos parents de Keur Macène ou du Sénégal de pêcher sur les ouvrages. (Entretien avec un pêcheur Taghridjant à Ziré, 2011)

45 Les Taghridjant considèrent certes avoir conservé le droit d’usage des eaux où ils pêchaient traditionnellement, mais aussi avoir perdu au profit du Parc le droit de gestion et d’exclusion qui est juridiquement plus fort (Le Roy, Karseny & Bertrand, 1996) : ils n’ont plus l’autorité d’octroi d’accès et de défense du territoire. C’est précisément cette revalorisation de leurs droits, dans le cadre d’un partenariat formel avec le Parc concernant la surveillance écologique, qui permettrait d’améliorer l’efficacité de la protection de la nature. Dans ce sens, les Taghridjant de Ziré ont demandé au Parc de formaliser leurs droits d’usage exclusif, par des cartes de pêche pour les “résidents du Parc”, y compris pour la nouvelle pêche à la crevette31. Cela ne devrait pas affecter les autres groupes voisins qui se sont historiquement appropriés des espaces d’usages voisins, et non superposés aux leurs ; à notre connaissance, ces voisins ne montrent pas d’opposition à la légitimité des Taghridjant dans leur rôle leader d’environnementalistes locaux, du fait de leur savoir et de la situation de leur zone d’usage clairement au cœur du Parc. Cependant, parmi les Taghridjant, certains d’entre eux s’inquiètent de ce type d’exclusivité d’accès à un site de pêche qui suscite des divisions internes dans la qabîla. En pratique, cela a favorisé un groupe villageois, voire des individus, selon leur présence lors de l’enregistrement auprès du Parc. L’octroi de l’exclusivité aux pêcheurs résidents, les distinguant de leurs frères “saisonniers” non résidents, va à l’encontre du traditionnel rassemblement saisonnier à Ziré. L’autochtonisation due à la patrimonialisation de la nature, viendrait ainsi ébranler l’organisation sociale interne du groupe tribal visé, en contredisant le principe de mobilité des hommes et des groupes, au fondement des sociétés nomades mauritaniennes.

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46 Cette dégradation de leurs responsabilités juridiques, associée à celle du milieu naturel, justifient selon les Taghridjant que l’État leur consente des compensations. Comme ils l’ont eux-mêmes assumé par le passé, l’État en tant que nouveau maitre des lieux ne peut prétendre à ce titre que s’il en assure la vivification. Cela explique la détermination continue à demander des aménagements qui pallient aux méfaits de la retenue d’eau du fleuve (curage des marigots) et favorisent le développement d’activités génératrices de revenus (aménagement de désenclavement, d’irrigation).

47 Les Taghridjant exigent également des compensations comme conditions à leur bonne coopération aux projets exogènes. Selon eux, ceux-ci leur doivent l’emploi rémunéré de main d’œuvre, mais également la rémunération de leur participation aux réunions : leur présence devient un service rendu à l’État, en tant qu’acte de légitimation des actions censées être participatives. Ils cèdent cependant à ce principe pécuniaire lorsqu’un intervenant propose un partenariat pour lequel ils estiment disposer d’une marge de manœuvre suffisante pour satisfaire leurs intérêts.

48 Nous avons vu que le passage des interventions à l’échelle de la RBT remet en question leur position d’interlocuteurs privilégiés du Parc qu’ils s’efforcent à défendre. Ils justifient alors leur privilège, en tant que premiers affectés par la gestion des crues artificielles32, ce que le Parc veille à respecter. Leur préoccupation est perceptible dans leur positionnement au sein des organisations locales émergeantes, notamment dans le cadre de l’action du projet d’écodéveloppement IPADE/ASSPCI, qui a impulsé la création d’un comité intervillageois de la commune de Ndiago, d’un groupement d’auxiliaires d’élevage et d’une association d’écogardes civils locaux. Tout d’abord, ils ont veillé à être bien représentés dans chacune d’elles. Ensuite ils se positionnent comme gardiens de l’intérêt collectif, contre les comportements d’opportunisme individuel : ne cherchant pas nécessairement une position de dirigeant, les leaders Taghridjant préfèrent conserver un rôle de contrôle sur les personnes mandatées pour représenter la population devant les institutions extérieures.

49 En somme, les Taghridjant considèrent que l’État, et tout le système d’intervention associé, ont réussi à ébranler les solidarités tribales et ont créé de nouvelles formes d’exclusion internes : d’une part, par le biais de l’aménagement du fleuve, différencié entre le moyen delta “utile” (aménagé pour la riziculture en amont du barrage), et le bas delta “restauré”, qui marque une distinction de l’accès au développement ; et d’autre part, par le mode de représentation dans les nouvelles instances de consultation élargies.

Conclusion

50 L’expérience acquise avec le Parc National du Djoudj, créé en 1971, aurait servi de leçon pour la création du Parc National du Diawling, sur la rive droite du fleuve, en 1991. Les modalités de gestion prévues pour ces deux aires protégées reflètent assez fidèlement l’évolution de la pensée mondiale de protection de la nature – d’une “mise sous cloche” excluant les populations, à l’intégration du développement local au cœur du principe de conservation environnementale. Cependant, le positionnement de certains groupes locaux joue également un rôle déterminant, lorsqu’ils s’inscrivent dans un rapport de résistance déterminée et organisée. Il semble que ce soit le rôle qu’ait tenu la communauté Taghridjant au fil de la mise en œuvre du PND, qui lui a valu une position privilégiée dans la gestion de l’eau notamment.

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51 De ce processus de positionnement des Taghridjant vis-à-vis du Parc et de ses partenaires, nous avons observé la façon dont ils réinventent leur identité. Dans l’histoire statutaire et l’identité territoriale, ils justifient leurs revendications actuelles : l’antériorité d’installation, le savoir sur le delta et, enfin, les valeurs guerrières. Concernant ces dernières, cela s’est manifesté par une attitude collectivement organisée de fermeté dans la défense des intérêts de la communauté, une franchise avérée dans les moments de négociation et l’inscription de plusieurs actes symboliques de défense sur le terrain dans le processus de collaboration avec le Parc.

52 Ainsi, l’identité historique des Taghridjant est fondée sur l’articulation entre une autonomie de défense et une autonomie productive sur un territoire approprié.

53 Cette identité est réinventée à l’heure de la conservation de la nature, objet d’une initiative de l’État mauritanien, impulsée par de multiples partenaires internationaux animés par une idéologie écologique occidentale. Les “guerriers pêcheurs”, si l’on peut qualifier ainsi les Taghridjant, seraient devenus les conservateurs locaux du patrimoine naturel et culturel du bas delta. Cependant, cette institutionnalisation de leur nouveau rôle dans la société locale s’accompagne d’un constat de dépossession de leurs territoires : ainsi de leur point de vue, leur identité de conservateur apparait davantage instrumentale, et vise à régler leur relation avec l’administration étatique afin d’assurer leur subsistance dans leur lieu de vie. Et cette raison est précisément conditionnée par la restauration du milieu humide : on assiste donc à la convergence d’intérêts très commune, entre subsistance de l’homme et une gestion durable du milieu naturel et ses ressources33.

54 Notre discussion souligne donc le fait que les valeurs ancestrales liées au caractère “guerrier” de cette qabîla sont aujourd’hui convoquées comme fondement de l’attitude du groupe actuel des pêcheurs. En même temps, son association avec les institutions environnementalistes de l’État pourrait contribuer à restaurer le statut privilégié que les Taghridjant ont historiquement revêtu dans la région. Dans ce sens, leur statut ḥassân prouve sa flexibilité face à un paysage sociopolitique tout nouveau, et dans lequel ils essayent de perpétuer leur influence. Le caractère hétérodoxe de l’identité Taghridjant – son inscription généalogique et son comportement statutaire –, n’empêche pas que le groupe s’affirme comme leader local et comme participant actif dans les projets qui, plus récemment, visent le développement intégré et la gouvernance partagée du territoire. La marginalité du bas delta dans l’aménagement productif du fleuve, puis son importance en matière de restauration écologique ont scellé son destin singulier en matière d’application du droit foncier national. En créant le Parc National du Diawling, l’État ne vise pas l’application de la privatisation de cette terre selon la loi foncière de 1983, mais il la déclare d’utilité publique, dans la lignée du droit importé lors de la colonisation française. Ce contexte rend particulièrement facile la coexistence entre le Parc étatique et des institutions tribales d’appropriation territoriale établies selon le droit islamique34, étant donné que l’usufruit des terres et la valorisation des ressources naturelles par les populations locales constituent un objectif majeur pour le Parc.

55 Prendre en compte de façon formelle les modes préexistants d’appropriation des ressources naturelles et leurs adaptations aux changements permet de renforcer la responsabilisation des populations qui vivent a priori la création d’une aire protégée comme une dépossession. Dans le cas des Taghridjant, il y a lieu de valoriser ce “syncrétisme juridique”, à l’œuvre dans l’ensemble de l’espace rural africain (Le Roy et al.,

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1996) et en particulier dans les aires protégées : la conservation de la nature est-elle l’ultime option pour protéger un territoire d’usage ?

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NOTES

1. Cf. recensement projet IPADE/ASSPCI 2009 : Population Taghridjant (Ziré Taghridjant et Bounayatt) de 170 personnes ; population du bas delta mauritanien de 3148 habitants ; population riveraine du PND (dune Birette et Ziré) de 1509 personnes. 2. Le modèle statutaire maure est basé sur une séparation entre populations de statut libre/“noble” (ḥassân ou zawâyâ) et populations de statut tributaire. Ces dernières étaient liées aux premières de plusieurs façons, mais traditionnellement les groupes de statut ḥ assân/“guerrier” supportaient l’ordre matériel et des groupes au statut zawâyâ /“religieux”, la “gestion du sacré”, dans un modèle amplement répandu dans la région Sahara/Sahel. Soulignant une vision plutôt flexible des rapports inter-statutaires, l’expression “clients”, ou “clientèles”, est aussi utilisée, et servira à mieux comprendre les indiscutables connections entre “maitres” et groupes de statut servile. Voir, entre autres, Bonte (1990, 2008) ; Boubrik (1998) ; Hall (2011) ; Hamès (1969) ; Norris (1986) ; Ould Cheikh (1991) ; Stewart (1973) ; Webb (1995). 3. Selon le sens donné par C. Raffestin (1987), l’ensemble des relations qu’une société entretient non seulement avec elle-même, mais encore avec l’extériorité et l’altérité, à l’aide de médiateurs, pour satisfaire ses besoins dans la perspective d’acquérir la plus grande autonomie possible, compte tenu des ressources du système. 4. Francisco Freire est anthropologue, travaillant en Mauritanie depuis 2002. Il a développé des recherches centrées dans la chefferie Taghridjant entre 2007 et 2011. Rachel Touyer est docteure de l’Agro-Paris Tech, et travaille sur la relation entre activités productives et gestion des ressources naturelles et sur la question de l’appropriation locale de l’intervention de développement. Vivant en Mauritanie depuis 2007, elle poursuit ses travaux entre recherche et action, notamment durant trois années, en tant que coordinatrice d’un projet d’écodéveloppement au profit des populations du delta du fleuve Sénégal. 5. A propos de récits d’origine, fondé sur le rôle des frères et, notamment, celui des “jumeaux inégaux” : “La sentence fatidique, d’où cette discussion est partie, se ramène en fin de compte à l’affirmation implicite que toute unité renferme une dualité, et que, quand celle-ci s’actualise, quoi qu’on désire et quoi qu’on fasse, il ne peut y avoir d’égalité véritable entre les deux moitiés” (Lévi-Strauss, 2008, p. 1324). Sur le modèle de fondation

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tribale duelle en Mauritanie, voir Bonte (1997). Pour un contexte géographique élargi, voir Bourdieu (2000) ; Lefébure (1979) ; Peters (1960). 6. Dans la région, il faut aussi mentionner l’ancienneté des populations Tandgha (de statut maraboutique). Si dans le rapport régional ḥassân-zawâyâ, les Ahl Bouhubbayni (appartenant à l’union Tandgha) sont supplantés par la tribu Ikumlaylin (autre tribu maraboutique du sud-ouest mauritanien) en tant qu’officiants privilégiés des Taghridjant, les Tandgha revendiquent une très ancienne présence dans le territoire du bas delta du Sénégal, en même temps qu’ils forment la majorité de la population actuelle de la région. 7. Dans la suite de l’article nous verrons comment le PND enferme les Taghridjant dans leur identité de “pêcheurs”, en même temps qui ne leur reconnait une activité d’élevage et d’agriculture que très récemment. Il est en effet probable que ce ne soit que récemment que les ḥrâtin Taghridjant pratiquent l’élevage et commercialisent leurs produits agricoles ; l’élevage est cependant une pratique séculaire au sein du groupe, mais autrefois contrôlée par les bidhân de la tribu, avant d’être décimés. 8. Le terme ḥrâtîn désigne les populations arabophones d’origine esclave, généralement sédentaires, qui exercent des activités productives et qui entretiennent des relations de subordination avec les familles de statut libre. Aujourd’hui les ḥrâtîn sont formellement affranchis mais entretiennent néanmoins avec leurs maitres une relation de dépendance (Botte, 2007). 9. Au début du xxe siècle, notons le cas du mariage d’une femme Taghridjant avec un homme Trârza : Soukeina mint al-Jayrib, la mère de l’émir Habib Ould Ahmad Salam (père de l’actuel émir). 10. Le procédé de transformation prend sept jours : fermentation, retrait de la tête, ouverture en filet en conservant la colonne, alternance de séchage et de piétinement jusqu’à obtenir un filet très mince (Enquêtes de terrain, 2010, 2011). 11. UICN : Union Internationale de Conservation de la Nature ; UNESCO : United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. 12. Coopérations bilatérales (néerlandaise, espagnoles, française, allemande, japonaise, américaines, etc.), les ONG qu’elles financent, et divers universités et centres de recherches occidentaux associés à celles de la sous-région. 13. Ibid. ; Hamerlynck et al., 2005. 14. Entretien de terrain, étude d’identification de l’appui au secteur de la pêche locale, Projet d’écodéveloppement AECID/IPADE-ASSPCI, 2010-2011. 15. Lors de la saison 97-98, les Taghridjant ont créé 42 ha de périmètre maraicher, qui s’étend à 74 ha en 2012 (Recensement des périmètres maraichers, commune de Ndiago, projet d’écodéveloppement AECID/IPADE-ASSPCI, juillet 2012). 16. Office de Mise en Valeur du fleuve Sénégal. 17. Entretien de terrain, étude d’identification de l’appui au secteur de la pêche locale, Projet d’écodéveloppement AECID/IPADE-ASSPCI, 2010-2011. 18. Parc National des Oiseaux du Djoudj, créé en 1971 sur la rive gauche du fleuve, en face du PND. 19. Hamerlinck & Duvail (2003). Pour une vision critique des travaux des expertes dans les zones protégées et leur production d’un nouveau sujet, voir West & Brockington (2006). 20. Au-delà de sa fonction de circulation hydrique entre les bassins de Bell et Diawling, cet ouvrage devait permettre le désenclavement de la dune. Cependant, l’ouvrage terminé ne permettait que la circulation à pied ou à vélo, afin de limiter les nuisances à l’intérieur

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du Parc. La modification de cet ouvrage pèse toujours aujourd’hui comme une condition à la bonne collaboration de la communauté Taghridjant avec le PND (ibid.). 21. Documents consultés : Hamerlinck & Duvail (2003) ; Duvail (2001) ; Duvail, Rapport de mission au PND en 2003 ; Hamerlinck, Rapport de mission au PND en 2009 ; Rapports d’activité du Parc 2007-2008-2009-2010-2011. 22. Ibid. 23. Ainsi est né l’accord d’incitation environnementale entre le projet, la coopérative des pêcheurs et le PND en décembre 2010. Il définit la subvention en matériel de pêche autorisé, contre un engagement de durabilité dans la gestion collective de ce fonds de roulement matériel et l’adoption de pratiques de pêche responsable (ex. abandon de l’usage du filet monofilament interdit). 24. Notons ici, comme dans de nombreux pays du Sud, le protagonisme des organisations de coopération internationale, partenaires des institutions publiques gestionnaires, œuvrant sur le terrain pour la protection de la biodiversité, en faveur de la “réappropriation des décisions par le citoyen” (Aubertin, 2005). 25. Dans ce sens, on ne peut pas affirmer qu’une transformation sociale est eu lieu avec l’implantation du PND (West & Brockington, 2006, pp. 260-263) : si les Taghridjant ont changé de fonction dans le territoire, ils ont conservé leur leadership dans la région. 26. Sur le plan démographique, les ḥrâtin sont les survivants de la tribu, étant donné qu’une seule famille bidhân subsiste à Bneïnadji. De ce fait, la chefferie incorpore les ḥ râtin comme acteurs majeurs pour la subsistance de la qabîla. C’est ce qui fait sa particularité par rapport à d’autres tribus ḥassân, qui cependant ont, elles aussi, des “classes productrices”. Par exemple, contrairement aux pêcheurs du Parc National du Banc d’Arguin (plus au nord dans le littoral mauritanien) au service d’entrepreneurs issus de leur hiérarchie tribale (voir Dahou & Ould Cheikh, 2007), au statut plus élevé, et qui avaient les moyens d’investir dans le secteur, les ḥrâtin Taghridjant travaillent pour leur propre compte et sont de ce fait les véritables interlocuteurs du Parc pour la gestion de l’eau dans le PND. 27. Telles que la bataille de Simsyât de la fin du XIXe siècle (Leriche & Ould Hamidoun, 1948). 28. La justification courante pour cette relation est notamment que le rituel d’intronisation de l’émir du Trârza prévoyait une nuitée à Ziré chez les Taghridjant. 29. “Si je laisse mon sac au bord de la digue (la route), personne ne s’avisera à y toucher”, ou encore “Lorsque les vaches du ministre (originaire d’un village voisin du groupe Tendgha) sont venus détruire mes cultures, il a essayé de ne pas payer les dommages, puis s’est rapidement ravisé !...” (Extraits d’enquêtes sociologiques, 2010-2011). 30. “…petite mais redoutable tribu guerrière généralement considéré comme les premiers habitants du bas delta. […] Il est probable que leur passé de guerriers glorieux leur procurait également un sentiment de sécurité [...]” (Hamerlinck & Duvail, 2003). 31. Hamerlinck & Duvail (2003). Observation de terrain, journée de concertation de la pêche organisée par le PND (dans le cadre du projet PARCE de la Coopération espagnole), 26-28 octobre 2010. 32. “Nous, les Taghridjant, comme nous subissons le danger des ouvertures [des ouvrages hydrauliques], il nous revient d’entrer en concertation avec le Parc” (pêcheur Taghridjant, Ziré, juin 2012). 33. Nous nous rapprochons du point de vue développé par Smith et Wishnie (2000), considérant que si les petites communautés locales sont très rarement des conservateurs volontaires, ils savent concevoir sur la longue durée des systèmes de gestion et d’usage

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des ressources naturelles qui conduisent à la préservation de la biodiversité, voire sa restauration. 34. Cette superposition du droit foncier de l’État mauritanien, hérité de la colonisation, et de l’appropriation collective des territoires tribaux est actuellement une généralité en Mauritanie, du fait de l’existence de l’article 5 de la loi foncière de 1983 qui, malgré l’objectif d’abolition du droit coutumier au profit de la privatisation foncière, prévoit la reconduite des droits collectifs tribaux s’ils sont immatriculés au nom des chefs ou notables (Ould El Barra & Ould Cheikh, 1996, pp. 177-178).

RÉSUMÉS

Cet article propose une approche du repositionnement identitaire et statutaire des Taghridjant, une qabîla (“tribu”) considérée par les institutions de conservation de la nature associées au Parc National du Diawling (PND, sud-ouest de la Mauritanie) comme représentante emblématique du savoir-faire local dans le delta du fleuve Sénégal, autour des activités de pêche et de collecte des végétaux. Ces activités constituent un indicateur majeur de réussite de la restauration du fonctionnement de l’estuaire, qui avait été dégradé suite à l’aménagement du barrage de Diama. À partir de l’observation des pratiques et de la mémoire collective des Taghridjant, ainsi que des gestionnaires de l’environnement, nous nous interrogeons sur l’effet des évolutions contemporaines de ces activités et de leur rôle dans la redéfinition statutaire des Taghridjant en tant que “pêcheurs”, questionnant ainsi le rôle qui traditionnellement a une qabîla de statut “guerrier”.

Este artigo aborda o atual reposicionamento identitário e estatutário dos Taghridjant, uma qabîla (“tribo”) que as instituições ligadas à conservação da natureza, associadas ao Parque Nacional de Diawling (PND, sudoeste da Mauritânia), veem como representante emblemática do savoir-faire local do delta do rio Senegal, vinculando-a em particular a atividades piscatórias e de recolha e tratamento de produtos de origem vegetal. Estas atividades constituem um importante indicador da recuperação de um estuário que se encontrava profundamente degradado após a construção da barragem de Diama. A partir da observação das práticas e da memória coletiva dos Taghridjant, bem como gestores do meio ambiente, interrogamos o impacto dessas atividades, assim como o seu papel na redefinição estatutária dos Taghridjant, hoje reconhecidos como “pescadores”, o que abertamente questiona o papel tradicionalmente atribuído a uma qabîla de estatuto “guerreiro”.

INDEX

Mots-clés : Taghridjant, fleuve Sénégal, Parc National du Diawling, Mauritanien, pêche traditionnelle, conservation Palavras-chave : Taghridjant, rio Senegal, Parc National du Diawling, mauritano, pesca tradicional, conservação

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AUTEURS

RACHEL EFFANTIN-TOUYER Observatoire de la Mauritanie Contemporaine, Centre Jacques Berque, 35 Avenue Tariq Ibn Ziyad, Rabat 10020, Marrocos [email protected]

FRANCISCO FREIRE Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Avenida de Berna, 26-C, 1069-061 Lisboa, Portugal [email protected]

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Hip-hop em Angola: O rap de intervenção social Hip-hop in Angola: Social intervention rap

Gilson Lázaro and Osvaldo Silva

EDITOR'S NOTE

Recebido: 27 de agosto de 2015 Aceite: 11 de dezembro de 2015

De Nova Iorque a Luanda

1 Dentre os mais variados movimentos culturais e artísticos juvenis emergentes entre os anos 50 e 70 do século XX, o hip-hop veio a ser, certamente, um daqueles poucos cuja rápida e espantosa internacionalização atingiu, de maneira concreta e com implicações inéditas, realidades nacionais tão distantes do ponto de vista geográfico e idiossincráticas no que concerne à formação sociocultural, política e económica, como são os casos de Brasil e Japão, Senegal e Portugal, França e Moçambique, Canadá e Angola. À diferença do relativo sucesso mundial alcançado pelos movimentos pop e punk, bem como pela música rock a eles vinculada, a difusão do hip-hop conseguiu transpor todas as fronteiras – nacionais, linguísticas, raciais e classistas – até então intransponíveis, tornando-o, de facto, num movimento cultural global1, no qual milhares de jovens, a despeito da inexistência de uma plataforma de intenções, encontraram os mais adequados instrumentos para a expressão artística de seus dramas e anseios colectivos2.

2 Encarado na sua complexidade, pode-se dizer, ainda que em resumo, que esse fenómeno resultou da convergência de três factores distintos mas subsidiários. O primeiro se refere à inserção das modernas realizações culturais afro-americanas, notadamente o rap3 e o breakdance4 – dois dos assim considerados elementos artísticos básicos do hip-hop – no

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circuito da indústria cultural norte-americana e, por consequência, no mercado mundial de produtos culturais. Nesse sentido, a difusão do hip-hop em escala mundial ocorreu pela via da intensificação da globalização do comércio, da expansão do progresso técnico e da massificação cultural, inserindo-se, deste modo, no processo de afirmação da hegemonia cultural dos Estados Unidos da América (EUA) na cultura popular e nos estilos de vida de diferentes regiões do planeta5.

3 O segundo factor está relacionado com as dinâmicas conjunturais internas de cada país, ou seja, com os graus de abertura comercial e cultural que permitiram o acesso aos produtos culturais de fora. De modo que quanto maior foi o grau de integração, imposto pela força do capital ou de livre aceitação, à modernidade e aos padrões de consumo reinantes nos países desenvolvidos, maiores terão sido as possibilidades de florescimento do hip-hop longe das ruas de Nova Iorque6.

4 Já o terceiro e último factor, mas de importância central, está estritamente ligado ao processo de identificação que se efectivou entre a experiência artística, social e política veiculada pelo hip-hop e as realidades e condicionantes específicas dos jovens em diversas cidades do mundo. Noutras palavras, a incorporação do hip-hop às respectivas culturas populares e juvenis nacionais deveu-se, em última instância, à adequação de seu potencial artístico-emancipatório, que, pela natureza essencialmente múltipla e sincrética7, jamais fecharia a porta a novos conteúdos e roupagens locais, aos propósitos, motivações, atitudes e expectativas dos sujeitos receptores. Isto explica, portanto, que a expansão e consequente apropriação das formas culturais do hip-hop, originando um movimento verdadeiramente planetário, se processaram não apenas ao ritmo do influxo externo, mas, ao mesmo tempo, à luz de constelações históricas internas, responsáveis pela verificação, na prática, da validade e funcionalidade dos modismos importados para a vida nacional.

5 No caso específico de Angola, tais constelações são desde logo indissociáveis do conjunto de transformações que culminaram, no princípio da década de 1990, com a transição social (da guerra para a paz), política (do monopartidarismo para a democracia) e económica (da economia centralizada para a economia de mercado). Quanto a esse último aspecto, importa notar que já a partir de 1983, oito anos antes do cessar-fogo e dos acordos de paz8 que estiveram na base das primeiras eleições gerais em 1992, o país passaria a registar mudanças substanciais de estratégia e política económica com vista, entre outras coisas, a reestruturar o sistema económico, corrigindo desequilíbrios financeiros internos, sem deixar de haver preocupações ligadas à defesa nacional num cenário de guerra civil. De acordo com Ennes Ferreira (1993/1994), os programas de reforma económica levados a cabo pelo governo angolano à época, como o Programa Global de Emergência, foram as consequências óbvias do “falhanço da regulação administrativa da economia” (p. 136), que geraria uma situação económica progressivamente degradada, incapaz de aumentar ou apenas manter os níveis de produção industrial e agrícola9. Uma das principais medidas previstas foi, precisamente, uma maior abertura aos mercados internacionais através de um grande volume de importações de produtos dos países da Europa Ocidental e dos EUA, como salvaguarda da economia nacional, em particular do comércio interno10.

6 É com a introdução no mercado interno de novos produtos, causa da alteração dos padrões de consumo das populações urbanas e semiurbanas, que apareceriam, à parte os bens electrónicos e alimentares, os primeiros filmes e vídeo-clipes de breakdance11, alguns dos quais, como Breakin’ (1984) de Joel Silberg12, exibidos nos cinemas de Luanda e

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em rede nacional pela Televisão Popular de Angola (TPA)13, então único canal de televisão com transmissão para todo o país. O fascínio pelo novo estilo de dança no seio da juventude foi imediato, pois, além da novidade em si, ele representava o que havia de mais moderno e avançado na cultura juvenil mundial, exalando o progresso e vindo ao encontro de uma efervescência já existente em torno da dança de rua14. Por outro lado, ele correspondia com o espírito de irreverência e a necessidade de afirmação social, ou de se fazer ouvir, do que a juventude se via privada, tanto pelas contingências da guerra civil quanto pelo autoritarismo do Estado, o qual ainda detinha certo controlo do campo cultural, fruto de uma herança centralista15.

7 Assim, por meio da imitação das vestimentas e dos gestos e movimentos das personagens dos filmes e vídeo-clipes, surgiriam os primeiros praticantes angolanos de breakdance, entre outros, Paulo Kumba, Sérgio Rodrigues16 e, pouco mais tarde, o grupo SSP, que depois viria a trocar o breakdance pelo rap17. Com as aparições públicas desses dançarinos em eventos de rua, em shows e na televisão, o número de adeptos do breakdance aumentaria significativamente, chegando a alterar a imagem, a atitude e a rotina dos jovens. Esses passariam a ser vistos com desconfiança e certo desprezo pela geração mais velha, que julgava calças e camisetas largas, lenço à cabeça, cabelo à la black power e andar sincopado como desvios graves aos padrões da cultura tradicional e católicos que se deviam, a todo o custo, preservar18. No fundo, foi confrontando essa mentalidade conservadora e o monolitismo cultural que o breakdance e, por sua via, toda a cultura hip-hop, se impuseram, num primeiro momento, nos meios urbanos e periféricos de Luanda, conferindo aos actores sociais juvenis novos meios de sociabilidade.

8 No entanto, não obstante o seu estatuto pioneiro, o breakdance deixaria de ter a primazia para os jovens angolanos dentre os principais elementos artísticos do hip-hop. Provavelmente pelo grande impacto e influência internacional do rap cantado em língua portuguesa, sobretudo pelo rapper brasileiro Gabriel O Pensador19, o breakdance acabou cedendo espaço ao rap, cuja popularidade viria a crescer a um ritmo assustador. É como se certa franja da juventude tivesse percebido que, atendendo às suas características intrínsecas de canto-falado e de protesto, o rap fosse um veículo adequado, porque eficaz e incisivo, para exteriorizar uma visão do mundo vinculada às condições sociais adversas que enfrentava e ainda enfrenta.

9 Em face desse cenário, o chamado “rap de intervenção social” ou “revo-lucionário”20 acabou por subsistir em termos de adesão dentre as diferentes tendências ou vertentes do rap feito em Angola. Embora pouco divulgado, já que muitas vezes excluído dos circuitos convencionais de difusão cultural – televisão, rádio, etc. – por causa do seu teor incómodo, ele vem contribuindo para o pluralismo de opinião e participando da sociedade civil. Em certa medida, os rappers acabaram assumindo o papel de porta-vozes da sua geração e das suas comunidades, visando os problemas sociais de seu tempo. As temáticas das suas músicas encontram, assim, inspiração nas iniquidades que assolam o país e com as quais se defrontavam no dia-a-dia.

10 O elenco de grupos e rappers solistas praticantes da referida vertente é vasto, e inclui tanto aqueles pertencentes à chamada old school21 quanto os da new school22: Pobres 100 Culpa, Consciência Activa, Nel Boy Dasha Burda, Kool Kleva, Phather Mak, Fortaleza Neutra, Filhos da Ala Este, Inferno 9, Mutu Moxi, Afroman, Nice Zulu, Actitude Violenta, Unidade Civil, África Preta, Brigadeiro Mata Frakus, Grand L, Keita Mayanda, Bob da Rage Sense, Quarteirão Norte, Dread Joseph, Família B.K, Incógnitas no Arredor, Soldados de Rua, G-S Unit, Ação Positiva, Reino Suburbano, Prollema Sul, Afrontamento, Supremo

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Regimento, Rappers Ilegais, Toy Cuba, Sábio Louko O Poeta, Afrodite, Dona Kelly, Mc K, Brigadeiro 10 Pacote, Kissaca, Phay Grand O Poeta, Jang Nômada e Carbono.

Um rap “politicamente incorrecto”

11 No panorama da música rap em Angola, o grupo Filhos da Ala Leste é fundamental quanto à representação das condições sociais, do dia-a-dia. É o que consta nas músicas dos dois únicos álbuns do grupo, Bootlege Politika pura sem mistura, de onde se destacam “Angola profunda”, “Ideal de paz”, “Processo 105”, “Tempo da morte cruel”, “Apologia”, “Bom cidadão”, “24 de Janeiro”, “Mãe Rússia”, “Mais miséria, menos voz” e “Homens do Império”. A linguagem inevitavelmente política da cidadania, justiça social e igualdade foi uma tónica que contribuiu – a seu modo e tempo – para a afirmação e reconhecimento desse grupo. Com a música intitulada: “Ideal de paz”, uma crítica severa às condições sociais que se reflectem na vida dos jovens desempregados sem rumo, o refrão desafia a ordem e põe em xeque as dúvidas e as incertezas perante um sistema político no qual já não acreditam. A expressão lírica é-nos apresentada por Nganga wa Mbote: “Este é o manifesto/ de um ideal de paz/ o sonho de um povo/ e toda uma nação” (Filhos da Ala Este, 1999b).

12 Neste pequeno excerto da música “Ideal de paz”, os Filhos da Ala Este vão utilizando palavras de ordem do regime monopartidário, que alguns deles vivenciaram na sua infância, enquanto membros da Organização do Pioneiro Angolano (OPA), organização infantil e viveiro dos futuros jovens militantes do MPLA. As estruturas de massas do MPLA estavam bem organizadas. Depois da OPA tinham que passar primeiramente pela JMPLA antes de ingressarem como militantes do partido.

13 As observações críticas do rapper Revolucionário agora questionam as bases sobre as quais assentava o ideal da sociedade angolana durante o período de partido único que apesar da idade, eles, os jovens rappers, vão retratando sempre numa relação dialéctica entre o passado do pós-independência que herdaram e o presente constrangedor: Estamos sendo vítimas de um processo de lavagem cerebral/ proporcionado por um severo controlo policial/ a propaganda ideológica subjuga as massas por igual/ ainda vivemos num Estado de regime totalitário. (Filhos da Ala Este, 1999)

14 Mais uma vez as atenções estão viradas para os excessos da política, onde a constatação recai sobre a actuação policial, numa relação difícil com a juventude, que tem como primado a liberdade. Os jovens assumem o ideal libertário, na medida em que esse ideário é constantemente posto em causa pela atitude e actuação das autoridades policiais. Tal como nos sugere o escritor camaronês Mongo Beti (2000), em África, “a polícia é a instituição que melhor caracteriza qualquer sistema político. Se quisermos conhecer o sistema político de qualquer país, basta conhecer a polícia” (p. 23). A consciencialização faz parte do primeiro passo para se sair da condição social subjugada. Os rappers se mostram reticentes, duvidam dos programas políticos de governação e da conduta pública manifestada por alguns dos políticos. Ao questionarem insistentemente os programas de governação erigidos pelo partido no poder, porque não acreditam no mesmo, questionam o exercício democrático vigente e a liberdade de expressão tal como está consagrada na Constituição da República. Observam aquilo a que denominam de manipulação dos cidadãos por meio da propaganda ideológica do partido no poder. Por exemplo, a música “Angola profunda”, de 1999, tematiza as preocupações dos jovens

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perante o rumo que o país atravessava. Na verdade, manifestam uma preocupação da governação e os desafios que se impunham quanto ao futuro: Essa é Angola profunda numa visão dos bastidores/ meu país é o da desilusão e dos sonhos amordaçados/ das esperanças subterradas e de ideias depravadas/ (...) de um povo e de um país sem futuro. (Filhos da Ala Este, 1999a)

15 Nas músicas desse grupo, é frequente constatar o uso de palavras como “sangue”, “” e “luto”, que caracterizam o momento da guerra civil. Às vezes, perante as incertezas da vida, eles se interrogam no presente sobre o seu futuro, num prolongamento das preocupações de todos os jovens angolanos, principalmente os mais necessitados. Eles vão incorporar parte das aspirações, das frustrações de inúmeros indivíduos os quais cedo viram as suas vidas ameaçadas pela guerra que assolava o país e que não havia meios de terminar: Angola é o segundo maior produtor de petróleo do continente, mas com uma miséria consagrada constitucionalmente/ é para rir ou para chorar/ temos pobreza em excedente/ os diamantes só chegam para matar mais inocentes. (Filhos da Ala Este, 1999a)

16 Os questionamentos que esses rappers fazem à acção política governativa apresentam-se nas contradições de um país rico em recursos minerais e uma pobreza galopante. Paralelamente, é visível nas letras o domínio do campo político angolano. A maior parte dos autores de rap crescera num clima de guerra civil, o que contrasta com a narrativa da geração mais-velha sobre o período glorioso do pós-independência. Este legado, frequentemente posto em causa pela geração mais nova, acaba por ser determinante para o entendimento do exercício político. No caso, a música “Angola profunda” é representativa dessa constatação, na medida em que Adhamou se interroga nos seguintes termos: “Quem é que não tem medo quando o presidente sai à rua?/ Quem não tem medo quando a polícia antiterror actua?/ Entre o silêncio do povo a opressão armada se acentua” (Filhos da Ala Este, 1999a).

17 “Angola profunda” é, portanto, uma reflexão sobre as contradições sociais, aqui sinalizadas por uma geração que herdou as aspirações de um futuro melhor com o fim da guerra civil, tal como os seus pais com o advento da independência nacional.

18 Onze anos passados do lançamento do primeiro álbum, Bootleg, de 1999, em 2010 seguiu-se o álbum Politika pura sem mistura, de circulação fechada23. Neste, o grupo não deixou de reflectir sobre os problemas do quotidiano angolano nas suas músicas.

19 No último excerto da música “Ideal de paz”, Adhamou continua na mesma cadência musical crítica: Transformaram os angolanos em máquinas de guerra dividida em duas partes/ esqueceram-se que a guerra não é mais do que o diálogo, mas também uma arte/ somos indignos da vida que por direito é a nossa parte/ obrigam-nos a lutar por algo que desconhecemos. (Filhos da Ala Este, 1999a)

20 Já no segundo álbum, Politika pura sem censura, a música “Mais miséria, menos voz” fez o seguinte retrato da realidade social: Refrão: No meu país impera a ditadura e a monarquia/ só para inglês ver essa falsa democracia/ eleições viciadas, imprensa privada diariamente silenciada/ sociedade civil fortemente subjugada/ opinião e imprensa pública instrumentalizada. (Filhos da Ala Este, 2010)

21 Mais adiante os rappers do grupo Filhos da Ala Este afirmam, numa referência à história recente:

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Os filhos do socialismo democrático de 92 escolheram a 5 de Setembro mais miséria, menos voz/ mais política de governação atroz/ mais corrupção, menos diálogo, menos emprego, menos arroz/ e as promessas eleitorais não saíram da agenda/ os comícios avermelhados, as promessas e lendas/ foram substituídas por mais vergonha, mais destruição de moradias, mais gente nas tendas/ e os políticos em quem confiaste o teu voto/ aos lamentos do povo fazem ouvidos de mouco/ fingem não ver a desigual distribuição dos lucros do petróleo e dos diamantes/ a maioria absoluta tornou-os mais insensíveis, mais arrogantes. (Filhos da Ala Este, 2010)

Contradições do quotidiano e rimas irónicas

22 A música rap tem sido capaz, de forma muito mais ostensiva do que os outros estilos musicais em Angola, de sinalizar as contradições da sociedade angolana através das letras explícitas das músicas. Nestas letras os problemas sociais são, na maior parte das vezes, apresentados de forma aberta e clara, diferente de outros estilos musicais, a excepção do feito por Dog Murras, que iniciou a carreira musical como rapper e só pouco tempo mais tarde passou para o estilo kuduro. As vivências são apresentadas de modo que as práticas sociais, os princípios e as regras estão constantemente em contradição, sobretudo na imagem da sociedade emanada pelas elites e os seus aspirantes a uma vida similar. A excepção faz-se regra e a regra confirma que há uma excepção enquanto regra, num quotidiano em permanente transformação. Os rappers Kid Mc, Yannick, Kool Klever e Filhos da Ala Este demonstram isto nas suas músicas. (...) e assim, apesar do crescimento económico, aumenta o contingente de excluídos social e economicamente/ enquanto isso as famílias Van-Dúnem e dos Santos se lambuzam no poder eternamente/ e os bajuladores oferecem de presente abusivamente a supremacia da comunicação social aos filhos do Presidente/ que já dominam a economia e têm (...) [assentos] no parlamento/ se infiltraram no desporto e até determinam o preço do cimento. (Filhos da Ala Este, 2010)

23 Ou ainda o rapper Kool Klever retratando o quotidiano na música “Nós somos”, do álbum KoolTivar de 2008: Refrão: Somos estrelas no céu/ com medo de brilhar/ pés fixados no chão/ com medo de voar. Underground, players e revolucionários/ os alunos malcriados/ dos professores sem salários/ somos os génios sem trabalho/ os netos desorientados/ a geração da utopia sem força nem vontade/ para acreditar na poesia/ somos cegos por opção/ a realidade dói demais/ na autodestruição encontramos a nossa paz/ somos os críticos acérrimos da má governação/ mas andamos à pancada com microfones na mão/ numa guerra verbal sem nexo nem explicação/ crescemos com a televisão/ passámos para as parabólicas/ e agora é Internet/ somos os filhos do semba24/ mas a nossa música é o rap/ somos patriotas mas não queremos fazer guerra/ nacionalistas mas ninguém quer morrer pela terra/ inúteis moralistas nesta Sodoma e Gomorra/ (...) nós já fomos socialistas/ agora somos diaristas/ rappers e kuduristas/ pró-capitalistas/ estudamos com fome/ e ficamos sem nome na lista/ somos da OPA/ esquecemos Ngangula/ fugimos à tropa/ quando temos gastamos em damas, desbundas25 e roupas/ juízo coisa pouca/ cabeças bué ocas. (Kool Klever, 2008)

24 Já na voz de Mc K, as contradições assumem tom mais politizado. Como diria Marta Lança (2008) a propósito do seu primeiro álbum, Trincheira de Ideias foi suficiente para que as suas letras se espalhassem nos candongueiros26 de Luanda e nas províncias. Era coisa nova, assuntos e abordagens

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que não se ouvia com sotaque angolano, uma coragem que vinha agitar as águas. (p. 4)

25 Na música “A teknica, as causas e as consequências”, do referido álbum, Mc K produz como que um diagnóstico da sociedade angolana, sem deixar de incluir as suas principais chagas. A sua crítica penetra nos vários segmentos sociais, mas é na exortação dirigida directamente às camadas mais desfavorecidas que ganha maior relevância: Cidadão angolense acorda antes que o sono te enterra/ se deres ouvido à minha poesia conhecerás as causas do mosquito que nos ferra/ saberás que as causas do caos do povo não foi apenas a guerra/ o quotidiano mostra a cor da corrente que nos cerra/ preto em baixo, vermelho em cima e amarelo no meio. (Mc K, 2002b)

26 A letra, atractiva nas descrições que faz, rapidamente popularizou-se pelas ruas de Luanda e arredores. O refrão “Sei lá quê” é uma codificação irónica que o rapper pretende transmitir ao público-ouvinte. Está muito próximo de uma exclamação dirigida ao MPLA, partido que governa Angola desde 1975, que tanto pode significar desespero, angústia, sofrimento pelo abandono das promessas de liberdade, solidariedade, resumidas no slogan segundo o qual “o mais importante é resolver os problemas do povo”, muito propalado após a independência e, sucessivas vezes, recuperado pelo partido no poder durante a realização das suas actividades políticas de massas. O rapper deixa a interpretação irónica para os mais atentos ao desenrolar da situação sociopolítica de Angola. A letra manifesta as convicções de um jovem que acredita que as condições sociais do seu país fazem parte de uma estratégia mascarada elaborada pelos políticos para a eliminação selectiva dos pobres. A desconfiança da política passa a ser o centro da sua abordagem crítica. Às vezes irónico, às vezes decididamente frontal, a sua música encontra ressonância nos bairros periféricos e mais carentes de Luanda. O apelo outras vezes é sintomático na conformação do estado social: Envolvida pelos anéis de utopia na parte externa/ a inocente fabrica e multiplica as vítimas na escravidão moderna/ como a massa desconhece a técnica na manipulação popular/ do linchamento angolense/ ninguém sente o peso da algema/ o teu caso é uma prova visível da arte dos lobos/ os teus argumentos são frágeis e incompatíveis com a filosofia suprema/ não tens abrigo/ procuras emprego a século, mas continuas fiel ao sistema/ estás preso sobre uma frequência de controlo automática/ eles traçaram o teu futuro no ventre da tua mamã/ sofres diariamente e não sabes como reclamar/ as armas calaram, mas o teu estômago continua em guerra/ a luta começa no dia do teu parto/ com a primeira gasosa que os teus pais compram à equipa em serviço/ e só acaba com o último batimento do teu coração/ guerra é luta, e luta é mesmo isso/ a tua esperança anda mais de 40 anos no Beiral/ afastaram-te dos livros desde criança/ aos 12 anos uniram-te as cervejas/ encheram o teu fim-de-semana com maratonas/ deram-te uma educação mutilada/ aniquilaram o teu espírito de revolta com igreja/ tens uma década de escolaridade/ sobre a vida não sabes nada/ cultivam em ti o medo que semearam nos teus pais/ as tuas atitudes dependem da rádio e da televisão. (Mc K, 2002)

27 Essa música de Mc K tornou-o popular pelo país adentro. E como consequência do seu apelo à consciencialização dos jovens em geral, Arsénio Sebastião, mais conhecido por “Cherokee”, jovem lavador de carro nas ruas de Luanda e morador do Marçal, bairro periférico da capital, era um ouvinte assíduo das músicas do rapper que, em circunstância confusa, foi morto pela guarda presidencial por ter ousado cantar em voz alta: On November 22, 2003, “Cherokee” was washing cars and was singing a song to pass the time between jobs. He sang the lyrics of rap song by the singer MCK, from the The Chaba27 neighborhood, called “The technique, the causes and the consequences”. This song exhorts its listeners to “clean the duty out of your eyes/

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open your eyes brothers/ switch off TPA (Public Television)/ tear up newspapers and analyze daily realities.” It critiques the state of affairs in which “we have more firearms than dolls, fewer universities than discos, and more bars than libraries.” A group of presidential guards who happened to be at the docks overheard “Cherokee” singing and they began to beat him. (Moorman, 2008, p. 195)

28 Como excepção à regra, em “Atrás do prejuízo”, do álbum intitulado Nutrição Espiritual, de 2006, feita pelo rapper Mc K com participação do músico consagrado Beto de Almeida, “a música que passa na Televisão Pública de Angola28, mas é vedada nas principais antenas de rádio, fala da luta diária pela sobrevivência” (Lança, 2008, p. 4), talvez devido à presença desse último e do seu tom mais apelativo e menos severo para com os políticos. Trata-se, contudo, de mais um retrato do quotidiano luandense endossado pela melódica música “Moussoolou” de Salif Keita. Refrão: Eu vou sorrir para não chorar/ é mais um dia da minha vida/ vou cantar para não pensar/ as malambas29 da vida/ (bis) Hoje o sol nasceu mais cedo/ começou o dia/ o galo cantou às 4/ motivos para a poesia/ agradeço a Deus por mais um dia de vida/ já são 6 horas da manhã/ estou pronto para a batida/ Bidón nas costas/ não tenho água em casa/ vou roubar debaixo da ponte/ tenho de ir em brasa/ de seguida vou à kixima30/ caular31 o pitéu/ uma lata de leite, dois ovos e um kibéu32/ tá bala/ tenho que dar para a fau33/ até logo Djamila/ avó Domingas tchau/ rasguei o musseque/ já estou no asfalto/ cidadãos reclamam pelos preços estão mais altos/ o lixo nas ruas/ mais o semblante matinal/ a subida do combustível é manchete de jornal/ a quitandeira grita o nome do produto que vende/ taque ataque arreiou34/ para ver se a cena rende. (Mc K, 2006)

29 As várias músicas feitas pelos diferentes grupos de rap encontram muita dificuldade para a transmissão dos seus conteúdos nas estações de rádio devido, provavelmente, ao tom crítico à governação do país, na medida em que essas estações de radiodifusão pautam-se por linhas editoriais conservadoras do status político vigente. Apesar desses obstáculos quanto à circulação dos conteúdos das músicas fruto da pressão exercida pelos rappers, na segunda metade dos anos 90 surgiu na estação de rádio Luanda Antena Comercial (LAC) o primeiro programa, designadamente “A era do hip-hop”, que visava, dentre outros, a divulgação desse estilo musical – entre internacional e nacional –, onde os rappers passaram a ter efectivamente espaço reservado para a troca de ideias e correspondência com um público mais amplo.

30 Entretanto, alguns desses rappers angolanos radicados em Portugal introduziram no panorama do rap uma nova forma de estar e fazer música com o projecto musical Conjunto Ngoguennha, numa mistura das vivências e experiências individuais em Angola e Portugal, cantando momentos da infância, adolescência e os confrontos da mocidade no país que os viu nascer, ultrapassando as barreiras impostas pela circulação vetada das suas músicas nas rádios locais quando iniciou-se a divulgação desses conteúdos por meio de blogues e de sites específicos abertos na Internet. Fazem parte desse elenco os seguintes elementos: Leonardo Wawuti (Condutor), Ikonoklasta e Keita Mayanda35.

31 Na música “Guerrilheiro do musseke36”, do álbum de Mc K, que contou com a participação de Keita Mayanda e Leonardo Wawuti (Contador), o rapper anula-se a si para dar voz a uma criança oriunda de uma família carenciada. A voz é de um menino que retrata o dia- a-dia por que passa para conseguir sustentar a si e a sua família. Trata-se de uma fotografia que marca bem as dificuldades de muitas famílias em Angola, mesmo em contexto urbano como Luanda:

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São 6 horas da manhã, me levanto cedo sem resmungar/ o meu pai está a tomar banho e a minha mãe está arrumar/ sou um puto37 de 8 anos nos musseques de Luanda/ já ciente da realidade e de como a vida anda/ meu pai é polícia há 15 anos com patente pequena/ dizer a ele para deixar de ser polícia/ não vale a pena/ minha mãe é quitandeira/ Roque Santeiro seu escritório/ lugar pestilento igual a um purgatório/ tenho dois irmãos canucos38/ eu é que cuido deles/ se não fizer as tarefas levo um castigo daqueles. (Mc K, 2002a)

32 Nesta música referida mais acima, o refrão é inspirado numa outra com o título “Guerrilheiro”, de autoria de David Zé, integrante do grupo FAPLA-Povo dos anos 1970, composto de jovens militares que animavam as tropas nos quartéis; pouco tempo mais tarde, ele e mais outros dois músicos acabaram sendo vítimas da onda repressiva do 27 de Maio de 1977 (Weza, 2007, pp. 144-145). Esta retrata as dificuldades ingentes por que muitos cidadãos passam diariamente. A representação continua sendo do jovem adolescente cantada nas vozes de Condutor e Mc K: Vou para a escola sem mata-bicho39 e só piteu40 quando regresso/ Nasci no berço da miséria/ minha vida é vivida no avesso/ mesmo sem ténis novo nunca baixo a cabeça/ estou sempre na sala quando a primeira aula começa/ de regresso a casa preparo os sacos de água fresca/ não há peixe se o pescador não vai à pesca/ venci mais um dia, sou puto, um guerrilheiro do musseque. (Mc K, 2002a)

33 Como se pode verificar nos excertos expostos, “a crítica destes rappers destina-se, antes de mais, a alertar as consciências, sobretudo dos jovens (...)” (Lança, 2008, p. 2), pois é este segmento social que é o principal consumidor desse estilo de música. Por exemplo, Kid Mc no seu primeiro álbum, intitulado Caminhos, desenvolve essas contradições que se refere mais acima, nas músicas “Educação barata” e “Levanta e anda”, em rimas e críticas não muito diferentes dos outros rappers. O elemento diferenciador é a agressividade com que compõe e expressa as suas músicas. A radicalização de Kid Mc é notória no álbum de 2010, O Incorrigível. As músicas “Incorrigível”, “ Metamorfose”, “Lição” e “Até à morte” caracterizam bem essa faceta do rapper: (...) o calar não é a solução/ eu notei insuficiência na bala/ peguei no microfone e confiei na força das palavras/ enquanto a miséria me consumia/ eu interiorizava o trauma que me deu a grande máquina de rima/ tornei-me naquilo que não estava nos planos/ interromper a saga dará origem a muitos danos/ talvez eu seja teimoso/ aos olhos de um sistema que me vê como altamente perigoso/ por não querer ver, ouvir e calar/ por ser aquele homem que tende a ver, ouvir e cantar/ mas o que é que esperavam de uma criança/ pertencente a uma nação/ onde balas iam de irmão para irmão/ essa filosofia de vida foram vocês que me incutiram/ os vossos conflitos me atingiram/ durante os anos de independência/ marcaram-se acontecimentos/ que germinaram homens prudentes/ morreu muita gente/ dos sobreviventes havia um puto que era tratado como um demente/ um excluído social/ por isso tratem-me como sequela ou dano colateral. (Kid Mc, 2010a)

34 As contradições do dia-a-dia dos angolanos continuam a ser tematizadas por Dread Joseph e Jang Nômada com a música “Fragmentos de liberdade”, num constante esforço de actualização das letras: Quero, quero minha voz brutal/ não a quero bela, pura ou melódica/ (...) não quero que esse poema vos divirta/ enfim, falo do homem que se recusa a se submeter ao apodrecimento lento da mente/ e luta pelo pavor que a miséria provoca/ a fome, o desemprego, a prostituição/ quero com isso dizer que há uma crise de escolarização em Angola. (Dread Joseph & Jang Nômada, 2003)

35 Na música “Balumukeno”, de Dread Joseph, o conteúdo exprime preocupações sócio- proféticas muito diferentes dos demais fazedores de rap nacional:

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Mais uma vez cá vou eu desfazendo os nô da merda dessa vida/ daqui do planeta Terra/ procurando encontrar oportunidades e alternativas/ tentando compreender o quê: o princípio e o fim/ e a essência de Deus/ mas todos me dizem que tenho de ter paciência e acreditar nos planos da igreja e estudar um pouco mais de ciência (...) / e compreender o significado do trabalho debaixo do sol (...) / lutar para sobreviver no meio dessa densa escuridão/ Deus sabe que é dessa forma que penso quando ando nas ruas entre homens e mulheres que pelo sistema babilónico são escravizados. (Dread Joseph, 2001)

36 Ou ainda o rapper Brigadeiro Mata Frakus, que põe em comparação a vida folgada de uns e a desfavorável de outros na sua música “Mundo de loucos”: (...) Se cada um de nós testemunhasse o horror/ a angústia de uma guerra e seus efeitos devastadores/ na primeira pessoa e não relatado por uma caixa a cor/ estou certo que insignificâncias passariam a ter mais valor/ e muitas situações são de simulação simples/ (...) / sobreviver com menos de um euro por dia e manter um sorriso/ como podes visualizar uma seca se nunca te roncou a torneira?/ ou imaginar a desnutrição quando pôs comida à beira do prato? (Mata Frakus, 2003)

37 Numa outra vertente se coloca Yannick, líder do grupo Afroman, com o álbum intitulado Mentalidade, de 2008, cuja temática central é a precariedade da sociedade angolana nas suas mais diversas formas: desde a falta de bens de primeira necessidade, do racismo às avessas, da homofobia e a sexualidade até às contradições sociais decorrentes do uso das tecnologias de informação, particularmente a mistificação da utilidade do telemóvel. As músicas “Mentalidade”, que dá título ao álbum, “Traz azar”, “Possas” e “Algo em comum” caracterizam as preocupações centrais do rapper, às vezes num niilismo consequente e desconcertante. Aliás, aqui a dimensão niilista de Yannick nas músicas “Mentalidade”, “Estou a desconfiar”, “Possas” e “1, 2, 3”; do Conjunto Ngonguenha com as músicas “É dreda ser angolano”, “Sorriso angolano”, “O boda” e “Kem manda mais fuma?”; de Kid Mc com as músicas “Feche a boca”, “Reeducação”, “Aguenta o flow” e “Olhar de pai”; de Mc K com as músicas “Eu sou Angola”, “O país do pai Banana”, Quarentona atraente” e “Por de traz do pano”; e de Phay Grand O Poeta com as músicas “Pão burro” e “Olha bem” dão corpo e sustentabilidade à desresponsabilização social e política dos indivíduos que compõem a sociedade angolana. É dreda ser angolano/ ter sofrido no tutano/ mas mesmo assim ter chegado aonde chegámos/ é dreda ser angolano/ viver num país cobiçado/ só temos a infelicidade de não termos dirigentes ajuizados/ é dreda ser angolano/ quando vês paisagens fixes/ palancas negras gigantes/ é dreda avacalhar o continente inteiro com triplos e lançamentos certeiros. (Conjunto Ngonguenha, 2004) O país está a mudar mas a mentalidade não/ é só pra ver que as pessoas já não fogem carro/ carro é que lhes foge/ estás a ser assaltado ou agredido/ só ficam a te olhar/ ninguém vem te acudir/ depois de te fatigarem/ estão a vir: é o quê?/ te roubaram o quê? / Mangolê é solidário/ o carro do outro avariou na estrada/ ao invés de ajudar/ está a buzinar/ tira essa lata daí pá. (Afroman, 2008) Refrão: Povo burro/ povo burro/ (bis) Kotas burros, ndengues burros/ jovens burros/ todos burros/ damas burras/ velhas burras/ donas burras/ povo burro/ se o passado é merda/ porcaria no futuro/ se o presente é lixo/ não sei o que eu procuro/ frequentam escola/ mas continuam no escuro/ ignoram o negro quando falo um mambo puro. (Phay Grande, 2010)

38 Neste sentido, tais formas de fazer música estão em busca de algumas particularidades localistas que se traduzem num retrato da precariedade, nas condições de um país atrasado social e economicamente, em plena relação com uma cultura de massas proveniente de uma sociedade capitalista adiantada, que funciona ou era percebida como novidade para superar o movimento culturalista em torno da música que vingou nos anos

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de 1970 e 1980. O hip-hop vai ser então o influxo externo que permite uma movimentação em confronto com a provincialização do espaço cultural, particularmente dos palcos da música e da literatura voltados para a glorificação da independência, da exaltação da mulher e da beleza do país, numa simbiose entre o triunfalismo militante e o folclore popular promovida pela elite nacionalista. A função da sátira social ou “paródia dos costumes” enquanto influxos internos em contacto com o hip-hop (cultura de massas de uma sociedade capitalista, isto é, influxo externo) serviriam de motor para o processo de desprovincialização das artes e, sobretudo, uma sinalização das transformações do quotidiano angolano. Como exemplo, a década de 90 de guerra civil, de fome e de sofrimento, é questionada no virar do século pelos rappers Revolucionário (Keita Mayanda) e Condutor, na música “Radiografia da miséria”: Olha para essa gente que aos poucos se desespera/ olha para esse quotidiano homicida que não se altera/ isso chama-se holocausto a conta-gotas/ as tuas necessidades são esquecidas depois que votas/ quem se preocupa, quem se importa com as nossas vidas/ as panelas estão no fogo, mas não vemos comida/ as fardas, as armas, as prisões/ o crime ou a tropa são as únicas opções/ mães choram seus filhos que se tornam carne para canhão/ salário mínimo: a criança chora por falta de pão/ campo e cidade: desenvolvimento desigual/ a corrupção governativa aumenta a exclusão social (...) / temos o índice mais baixo de desenvolvimento humano (...) / temos uma esperança de vida mais curta do que a tinta da caneta/ com que se assinaram os acordos de paz em 91/ pois, desde então morrer da forma mais cruel é comum/ as promessas políticas não foram cumpridas dos dois lados/ as calças novas de Setembro hoje cobrem os corpos mutilados. (Revolucionário & Condutor, 2001)

A revisitação da história

39 Os rappers reivindicam e reavivam as memórias das músicas nacionalistas de contestação social da geração mais-velha41 em que se destacam David Zé, Urbano de Castro e outros nomes cujo conteúdo das letras ultrapassa a sua época. Estas músicas são frequentemente objecto de sampling42 e passaram a constar dos coros dos rappers num processo de mixagem. A memória do 27 de Maio e de outras lutas sociais travadas pela geração mais- velha são usadas na música rap como fontes de inspiração.

40 Nestas circunstâncias, o rap torna possível o contar e recontar da história, a voz é ela própria um testemunho vivo no ritmo e nas letras. O lirismo em metáforas abundantes, em vozes heterogéneas que se erguem buscando elo entre a história do passado e representações do presente, dão corpo a uma consciência de grupo transgeracional marcada por contradições permanentes. Estas são esgrimidas no rap nacional num jogo de vocalização entre posições identitárias, assumindo e reforçando, contudo, os signos exteriores dos movimentos de luta e resistência. A voz no rap é a voz dos excluídos, dos descontentes, de grupos de jovens com intensidade variável e posturas diversas. Essas vozes adquirem dimensões políticas, económicas, morais e estéticas, colocando e reactualizando a discussão e o lugar das margens no debate público do país.

41 Em certa medida o rap nacional é não só um mecanismo de consciencialização dos jovens perante os problemas sociais, das suas expectativas e aspirações, é também o meio de identificação e actualização das memórias sociais como, por exemplo, no refrão da música “27 de Maio43”, de Baxaxa, uma das músicas mais radicais: Os heróis serão vingados (bis)/ Há uma palavra de mensagem/ em cada bala que dispara um camarada/ (bis). (Baxaxa, 2001)

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42 O excerto da música “27 de Maio”, derivado de uma apropriação histórica da repressão político-militar em resposta à tentativa fracassada de golpe de Estado, apela à reflexão e sinaliza o percurso do país nas mais diversas dimensões: política, económica e sociocultural. A música é uma convocatória generalizada que o artista faz num jogo de interrogações umas seguidas das outras: Não sou eu/ não fui eu/ (bis) / quem embebeda a juventude em 28 de Agosto? / não sou eu/ quem traficou armas com Pierre Falconne?/ não fui eu/ quem escraviza os Nyaneka e Humbi44 na UGP? 45/ não sou eu/ quem representa a maçonaria em Angola?/ não sou eu/ (...) de que cor é aquele homem de cabelo encaracolado debaixo do sol/ que pede esmola no largo da Maianga46 com uma perna mutilada?/ não é mulato!/ de que cor são os jovens iletrados/ que invés da formação tiveram direito a farda verde e castanha?/ quem são os detentores das altas patentes nas forças armadas?/ quantos mulatos estão nos campos de aquartelamento desempregados?/ quantos mulatos são desmobilizados?/ quantas paróquias da igreja católica existem em Angola e quantos párocos são negros e nacionais?/ Apartheid religioso/ velho contínuo da igreja não se confunde com o Papa/ e a faxineira da tua casa não tem a cor da virgem santa/ não adianta/ quem combateu em Nhareia, Kumacupa, Bailundo47 não foram angolanos com dupla nacionalidade assim como você/ enquanto escorriam lágrimas nos olhos do povo/ Jorge Morgado48 falava em nome da pátria na RTP49/ Janeiro de 196150/ mais de 27 mil aldeias/ 22 mil mortos/ genocídio na Baixa de Kasanje/ 14 anos depois o MPLA-PT51 pinta a imagem de Iko Carreira como herói nacional/ (...) / quem fala do problema é chamado de racista, matumbo52, atrasado, revoltado e frustrado/ os gabinetes estão todos ocupados/ só existe vaga na pedreira e nas empresas de segurança/ o branco analfabeto é chefe de obra: Odebrecht53, Soares da Costa54/ e o que é feito do negro licenciado? / (...) te esforças para cumprir um horário/ (...) são cinco anos de trabalho por apenas um televisor/ são mais de sete centenas de chefes de família explorados por latifundiários que não têm a minha cor (...) / dão soja no povo enquanto negoceiam com José Eduardo dos Santos do nosso petróleo e cobalto. (Baxaxa, 2001)

43 É possível verificar um diálogo entre as músicas “27 de Maio” de Baxaxa, “Metamorfose” de Kid Mc e “Na fila do banco” de Mc K, aproximadas pela mesma temática, pois as três retratam o racismo e a discriminação em Angola. A grande diferença entre elas está na forma e no conteúdo, pois enquanto a música “27 de Maio” é explicitamente frontal, levando ao público-ouvinte uma conotação racial da atitude do artista, nas outras duas a crítica é mais implícita. Na “sátira dos costumes” de Mc K: Bom dia! / Vim confirmar uma transferência da Inglaterra!/ solicitei uma caderneta passada, até agora não me dizem nada!/ quero os extractos de Agosto, Setembro e Outubro!/ bilhete de identidade, número da conta, por favor/ tá bué calor aqui/ meu Deus já não aguento/ a fila está enorme e o sistema está lento/ enquanto aguardo, viagem no pensamento/ quero caular55 bloco, mosaico e cimento/ estou com a cabeça quente/ o kumbú56 não vai chegar/ xé!57 só tem dois pretos a bumbar?/ a tiota58 da vassoura e o papoiti59 com aka60/ tá tipo Dom Quio61/ o mambo62 parece praga. (Mc K, 2011)

44 Ou ainda Kid Mc, com a música “Metamorfose”, cujo refrão conta com o sampling dos músicos seniores Irmãos Kafala: Não diria que sou inocente/ mas também não sou culpado/ saberás o que trago aqui dentro encaixado/ a minha vida é feita de buracos e facadas/ danificada por dificuldades e pancadas/ criado por um antigo combatente/ deixa dizê-lo/ hoje é miserável nem vale um cinzeiro/ pensou que seria recompensado/ não sabia que depois da guerra passaria a ser um frustrado/ estraçalhado/ como um cão sem dono/ serviu à nação e a recompensa foi o abandono/ eu me virava aí/ em qualquer

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lado/ lavava carro/ foi assim que terminei o Makarenco/ mas para a faculdade/ até dá medo/ tentei na pública/ não tive sucesso/ tentei outros meios/ mas não tinha dinheiro/ pensei na privada/ mas quantos carros tenho de lavar para estudar numa faculdade privada?/ aí a cabeça já não estava bem/ se o destino é ser lavador de carro/ tásse bem/ comecei a facar todos os senhores/ (...) o meu irmão vive aí à procura de emprego/ os boss63 parece que já não gostam de negros/ eu até fico gripado/ quando ouço boa aparência/ já sei que tem que ser mulato/ e fico lixado quando a doença aperta/ logo pego no trabuco64 e fico em alerta. (Kid Mc, 2010)

45 O rap de cariz político entre os rappers angolanos assumiu uma característica central após a apropriação da cultura hip-hop. Verifica-se, contudo, uma vontade de identificação com a história, num processo de diálogo permanente com o passado. Por exemplo, as músicas “Tempo da morte cruel” e “ Processo 105” estão carregadas de referências da história de África – no caso da primeira –, e de Angola – no caso da segunda – que reanimam o imaginário dos jovens artistas. O “Tempo da morte cruel” é, na verdade, o título da obra literária do escritor sul-africano Alex La Guma, do qual os rappers Filhos da Ala Este se apropriaram para nele descreverem o processo de cristianização do continente africano e o perfilar de guerras fratricidas pelo mundo fora. É um despertar para a realidade secular, como anuncia o seu refrão: Os setes selos se encerram/ as setes igrejas se enterram/ sete flagelos anunciam a ruptura do céu/ do génese ao apocalipse/ tempo da morte cruel. (Filhos da Ala Este, 1999c)

46 As referências cristãs não escapam ao olhar crítico dos rappers, pois eles estudam a história e dela extraem as suas contradições seculares. Mais adiante Revolucionário apresenta o primeiro verso da música que diz o seguinte: Cristo está de volta ao calvário no final do século/ o cenário é deprimente/ a todos os níveis ridículo/ a coroa de espinhos orna a cabeça do rei da glória/ o cordeiro será imolado/ assim reza a história. (Filhos da Ala Este, 1999)

47 No último verso, Adhamou acrescenta o seguinte conteúdo: (...) gerou-se o conflito entre o Deus morto e o homem vivo/ deu-se origem ao caos/ a extrema desesperança/ a terra passou a ser lugar de chacinas e matanças/ destruições e carnificina em duas guerras mundiais/ genocídio ruandês/ genocídio dos judeus/ extermínios brutais/ mortes para todos os gostos em um milénio. (Filhos da Ala Este, 1999)

48 Inversamente, na música “Processo 105” os rappers narram um dos processos mais polémicos do pós-independência, assente na acumulação capitalista de diamantes em território angolano, que culminou com o julgamento de muitos cidadãos envolvidos na exploração, roubo e outras práticas menos abonatórias. Na verdade, o que mais salta à vista na música é o carácter vexatório usado para chamar a atenção da sociedade em geral. Ainda nesse grupo, constata-se outra referência histórica no refrão da música “Mãe Rússia”, na voz de Nganga wa Mbote: (...) geração de 60 experiência e astúcia/ filho de português/ irmão de cubano/ casou com a mãe Rússia/ (bis) / órfãos de Manguxi a geração de 80/ geração de 90/ filha de Man Zé e da guerra civil a geração/ mais miséria e sofrimento para a geração de 2000. (Filhos da Ala Este, 2010)

49 Aqui o processo de apropriação da história por parte dos rappers serve de meio de esclarecimento da própria história do país, que não é ensinada nas escolas nem discutida em espaços públicos. A música passa, em virtude da ausência da história no sistema de ensino, a ser veículo de aprendizagem e veio de transmissão para o público-ouvinte,

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sobretudo do período colonial, da participação soviética e cubana na luta pela independência de Angola: (...) geração de 70 repleta de esperança/ largo da independência fomentou a ganância/ (bis). (Filhos da Ala Este, 2010)

50 De modo diferente, outro exemplo de peso é ilustrado nas músicas “Nossa História”, “Politrixx” e “Nuvem negra”, do rapper angolano Mutu Moxi (Intelektu) – radicado na África do Sul há mais de 10 anos – que usa referências históricas de discursos políticos nacionais. Na música “Politrixx”, do seu mais recente álbum promocional intitulado Senso Clássico, de 2010, o rapper Mutu Moxi usa excertos do discurso de Jonas Savimbi, o líder da rebelião armada em Angola enquanto introdução e refrão ao mesmo tempo: (...) e é importante nesse momento/ para sermos sinceros/ para com a história da nossa própria terra/ agradecer o papel que Portugal desempenhou/ ao mesmo tempo dizermos/ por que eu estou aqui/ eu sou antes de mais nada e, sobretudo; / eu sou nacionalista; eu sou patriota/ para mim, acima de Angola não existe mais nada/ (...) nós queremos que o angolano seja mais valorizado do que dantes/ o angolano é o centro das nossas preocupações/ eu ponho em primeiro lugar: o angolano/ em segundo lugar: o angolano/ em terceiro lugar: o angolano/ em quarto lugar: o angolano/ depois não sei onde ficam os outros/ deveriam ficar nas suas terras65. (Intelektu, 2010)

51 Em seguida, o rapper critica a política e os políticos, dizendo que não acredita na propaganda dos partidos políticos nacionais. Uma ênfase é colocada na decadência política e social, constatando o paradoxo entre o enriquecimento da elite política que detêm o poder económico e os cidadãos maioritariamente em situação de profundas carências sociais. Já na música “Nuvem negra”, uma das mais recentes do rapper, a atenção recai no excerto do polémico discurso do Presidente da República como refrão: (...) conhecemos a origem da pobreza em Angola/ não foi o MPLA nem o seu governo que a criou/ essa é uma pesada herança do colonialismo66. (Intelektu, 2010)

52 Intelektu questiona a veracidade de tal afirmação proferida pelo Presidente da República, que é contrariada – a olho nu – pelo paradoxo gritante entre a luxúria das elites governantes e as desigualdades sociais. A música enfatiza a discordância do artista perante o discurso de justificação da origem da pobreza em Angola.

Estética das transgressões

53 O rap de intervenção social feito em Angola, na forma e no conteúdo, é movido por uma estética das transgressões, ou seja, por uma estética da agressividade. A estética da agressividade está na forma do rap, no instrumental que contraria a ordem da execução de uma música de matriz dos anos 60 e 70 até à chegada da cultura hip-hop; está na indumentária com que se apresentam os fazedores de hip-hop, numa sociedade algo conservadora, que questiona a “aparência estranha” com a qual se não identifica e que não se conforma à ordem aceite; a estética da agressividade está na afirmação de uma identidade juvenil no corte de cabelo e na linguagem. Os rappers denominados de “revú” expressam nas suas músicas conteúdos diversos: crítica política, criminalidade, crítica à guerra civil, apropriação histórica do passado, lirismo de confrontação; eles materializam uma forma de fazer rap que pode ser induzida pelo contexto de violência física, psíquica e estrutural que marcou o percurso do Estado independente. Essas várias gerações de rappers – em grande parte nascidos entre os finais dos anos 70 e início dos 80 – não conhecem um país diferente do contexto de conflito armado e militarizado. A

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militarização das consciências, por hipótese, dá origem a uma atmosfera traumatizante derivada da longa guerra civil que continua embutida e em constantes mudanças, aquilo que Franz Fanon (2010) denomina de “atmosfera da violência” (pp. 94-95), e os rappers como parte activa da sociedade não estão excluídos dessa “climatização violenta”. É frequente encontrar músicas de intervenção onde os letristas se exprimem com uma violência verbal extasiante.

54 Um primeiro exemplo dessa agressividade é-nos demonstrado por Ngadyama Wakamba Sonhy, líder do grupo Pobres 100 Culpa, na forma de cantar e mesmo no conteúdo das músicas “Sociedade aberta” e “Um país do faça você mesmo”: Pobres 100 culpa/ rebeldes naturais/ (...) 15 anos depois/ a fúria pobre ressuscita outra vez/ dizem que o pobre é malandro/ pobres 100 culpa fodidamente voltando. (Pobres 100 Culpa, 2010)

55 A mensagem contida nas músicas e a forma como são cantadas confirmam a existência dessa lógica de transgredir a ordem estética vigente, rompendo com o modelo de governação, sobretudo nas críticas de responsabilização que fazem directamente ao chefe do governo. De seguida se constata mais dois exemplos dessa estética das transgressões, por um lado, encontrada em Flagelo Urbano com a música “Manifestação”, do seu primeiro álbum, Entre o tempo e a memória, lançado em 2009: Fechem as rádios, fechem os jornais e a televisão/ privatizem a democracia e a liberdade de opinião/ cortem os nossos direitos, pisem nos decretos/ promulguem leis pronto-a-vestir se acharem certo/ excluam-nos/ construam morros e muralhas/ protejam os vossos bens com homens e metralhadoras/ partam as nossas casas e em seu lugar construam condomínios. (Flagelo Urbano, 2009)

56 E, por outro, seguido de Kid Mc com a música “Lição”, igualmente do seu primeiro álbum, Caminhos, de 2008: (...) vidas abaixo/ juventude ameaçada/ parece que estamos bem no avesso/ vivemos nesse mundo e distante do universo/ o país está a crescer eu admito/ mas às vezes o nosso governo é esquisito/ andamos distraídos na reconstrução/ esquecendo que o futuro consta na educação/ a rigorosidade já passou/ por isso é que a falta de respeito nesse lugar aumentou/ dinheiro trouxe modernismo e favas/ estamos a nos esquecer que vivemos em África/ educação deixou de ser conservadora/ assim vamos a caminho de uma realidade perigosa/ até crianças fazem o que querem/ desrespeitam qualquer pessoa/ porque ninguém repreende/ e crescem assim/ até cair nas drogas/ para eles a educação significa escola/ os jovens querem mandarem-se a si próprios. (Kid Mc, 2010b)

À guisa de conclusão

57 Sem o devido cálculo, o hip-hop acabou sendo a novidade que viria a contribuir para a desprovincialização das actividades culturais do país. O rap, seu expoente máximo, nem por isso o elemento que acompanhou o pioneirismo do movimento vindo das Américas, jogou um importante papel na definição de uma nova agenda cultural da camada mais jovem.

58 A maneira como o hip-hop, sendo uma cultura de demanda liberal, foi apropriado pela juventude angolana ocasionou reacções de confronto com a música de viés revolucionário apologético vigente na época. Resumidamente, as músicas aqui analisadas visualizam as transformações sociais ocorridas em Angola captadas pelos rappers atentos, assumindo assim posições irreverentes quer em momentos de crise social, quer

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conjugando para afirmação dialógica uma cultura vinda de fora e as particularidades locais.

59 As propostas oferecidas pela música rap, em particular, e pelo hip-hop, em geral, têm vencido obstáculos e promovido a modernização do campo músico-cultural.s

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NOTES

1. A esse propósito, parece bastante questionável, porque excessiva, a relevância mundial que Eric Hobsbawm (2001) atribui ao rock, chegando a considerá-lo como elemento principal de uma “cultural jovem global” entre as décadas de 1960 e 1970 (pp. 320-321). Na verdade, como o próprio Hobsbawm tende a reconhecer, apesar da sua expansão através da difusão mundial de sons e imagens, da moda na sociedade de consumo, da rede mundial de universidades e dos contactos internacionais promovidos pelo turismo juvenil, dificilmente o rock conquistou adesão efectiva para além dos núcleos urbanos da cultura jovem ocidental de classe alta e média, e, quando o fez, jamais por assim dizer rejeitou a sua matriz classista e racial, o que implicou, em grande medida, o seu insucesso popular (ibid., p. 324). 2. Não obstante os seus apelos contestatários e emancipatórios, por meio dos quais os jovens rejeitavam uma ordem social simbolizada por convenções de gostos, modos e costumes considerados repressivos e arcaicos, é notório que no âmbito do movimento pop, ao contrário do que ocorreu – e, de certo modo, ainda vem ocorrendo – no hip-hop, a mera rebeldia pessoal sempre predominou em face da necessidade e do desejo de emancipação social, sendo sexo, drogas, tatuagens e gestos obscenos as maneiras mais óbvias de confrontar a autoridade dos pais, o poder dos vizinhos e a repressão da lei (cf. Hobsbawm, 2001, pp. 325-327). 3. Abreviação da expressão rhyme and poetry, que designa a vertente musical da cultura hip-hop, executada por um Mc (Master of ceremony) ou rapper.

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4. Forma que caracteriza a dança da cultura hip-hop, divida em três subgéneros, a saber: poppin’, lockin’ e b.boy. 5. Esse dado revela um paradoxo típico da cultura sob a ordem da produção capitalista, o qual o hip-hop não conseguiu contornar. Pois, tendo nascido como uma cultura urbana de resistência, ou seja, uma contracultura afro-americana nos EUA, ele não resistiu aos ditames da mercadorização e só pôde difundir-se mundialmente como parte da afirmação da mesma hegemonia cultural à qual se opunha no plano interno. Daí que seja hoje temerário descrever o hip-hop como uma forma cultural exclusivamente marginal ou revolucionária: “Qualquer um que afirme a contínua marginalidade do hip-hop deveria ser pressionado a dizer onde imagina que o centro pode estar agora” (Gilroy, 2007, p. 214). 6. Sem prejuízo da necessidade de análises detalhadas de cada contexto, talvez este factor evidencie, em grande parte, a razão de o hip-hop não ter tido o mesmo nível de aceitação em todas as sociedades. É pressuposto que em países como o Irão e a Índia, por um lado, a Rússia e a China, por outro, a difusão do hip-hop tenha registado acções de resistência maiores do que em outras partes do mundo. No primeiro caso, pelo alto grau de conservadorismo cultural aliado ao fundamentalismo religioso, ao passo que no segundo, pelas restrições políticas e comerciais em relação aos produtos norte-americanos e ocidentais de forma geral. 7. Sobre o carácter essencialmente sincrético do hip-hop, cf. Paul Gilroy (2001, pp. 89-100). Nota-se ainda que, em outro lugar, o foco da crítica desse autor é justamente o reducionismo etnicista e/ou racial que predomina em certas abordagens sobre o hip-hop, pois, para ele, o sincretismo, que é sempre um processo imprevisível e surpreendente, sublinha “a complexidade de suas dinâmicas por cima das linhas de cor. O cruzamento, assim como a dispersão da diáspora em outros países, não é mais algo que pode ser conceituado como um processo unidimensional ou reversível” (Gilroy, 2007, p. 215). 8. Refere-se, aqui, aos Acordos de Bicesse, assinados, em Maio de 1991, pelo governo representado pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a guerrilha representada pela União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) sob os auspícios de uma troika composta por Portugal, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e EUA (cf. Messiant, 2004). 9. O autor aponta três factores que, no seu entender, estiveram na base da referida crise, nomeadamente “as consequências directas e indirectas da situação militar no país [ou seja, da guerra civil], o aumento da dependência face ao sector petrolífero e, finalmente, (...) uma má definição e gestão da política económica” (Ferreira, 1993/1994, p. 136). 10. É de referir que, desde a Independência, Angola importava já diversos produtos destinados ao abastecimento do mercado interno, de proveniência sobretudo dos países do leste europeu, como a República Democrática Alemã (RDA) e a URSS. 11. Segundo Rafael Guarato (2008), foi precisamente no início dos anos 80 do século XX que “ocorreu uma explosão da breakdance nos Estados Unidos da América, culminando numa série de filmes e aparições de dançarinos vinculados ao break nos meios de comunicação de massas daquele país, mais precisamente a partir de 1982” (p. 62, itálico do autor). 12. De acordo com o testemunho da maior parte dos mais antigos protagonistas do hip- hop em Angola, este filme pode ser considerado como um marco para o surgimento do breakdance e, consequentemente, do hip-hop em Angola. Aliás, dois dos seus personagens, Turbo e Onze, tornar-se-iam ídolos para os jovens que, na altura, se iniciavam naquele novo estilo de dança (cf. Samurai, 2010). Em todo o caso, outras

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influências foram importantes, como as dos passos de dança de Mc Hammer e do grupo Kriss-Kross (cf. Tchilar, 2009). 13. Os filmes e outros materiais videográficos chegavam a Angola já depois de legendados em Portugal. 14. No final da década de 1980 e início da de 90, a dança de rua tornou-se uma actividade artística bastante divulgada e praticada em certas regiões de Angola, principalmente na capital, em virtude do surgimento de vários estilos de dança, ligados ou não ao carnaval, tais como a kabetula, a bungula, a vaiola e o , este último proveniente do então Zaire, actual República Democrática do Congo. 15. Como assinala Nelson Pestana (2008), o Estado angolano monopartidário desde logo procurou “estruturar o campo cultural propondo-se ‘desenvolver a cultura de massas’ segundo os princípios do marxismo-leninismo, considerado ‘valor primordial da educação do povo’” (p. 9). 16. Cf. os testemunhos de Miguel Neto, Kool Kleva, Nelson Mandela (Dj Nkaapa) e Wima Naioby (Tchilar, 2009). 17. No entanto, a exemplo do que constata Rafael Guarato (2008) em relação ao aparecimento do breakdance em Uberlândia, é bem provável que estes dançarinos não executem as manobras de break tal e qual as personagens dos filmes a que assistiam. Atendendo ao facto de que a maior parte já estava acostumada a outras danças e tendo em conta que toda a cópia é ela mesma uma criação, a hipótese é que eles produziam uma mescla de estilos de dança, na qual o breakdance predominava (pp. 63-64). 18. Um dos principais alvos foi, sem dúvida, a noção patriarcal da ordem social angolana, para a qual era inconcebível rapazes amarrarem lenços à cabeça, usarem calças abaixo da cintura e andarem em ritmo sincopado. 19. Cf., entre outros, o testemunho de Nelson Mandela (Dj Nkaapa) (Tchilar, 2009). De facto, Gabriel O Pensador representou a possibilidade do rap em português, algo inédito para os ouvidos daqueles jovens angolanos, que, no momento, apenas conheciam o rap americano. 20. Trata-se de designações usadas por certos rappers angolanos para caracterizar a vertente de rap que praticam, diferenciando-se e, em certa medida, opondo-se, assim, aos praticantes do chamado “rap comercial”. 21. São assim designados os rappers que participam do movimento hip-hop em Angola desde o final da década de 1980 e/ou o princípio da de 90 . 22. Rappers que iniciaram a sua carreira não antes da segunda metade da década de 1990. 23. Distribuição e comercialização restrita aos grupos de rappers e pessoas interessadas. 24. Música urbana de Luanda surgida na década de 40 da mistura de vários estilos. 25. Gastos exorbitantes. 26. Rede de transportes particulares de passageiros semi-colectivos. 27. Bairro periférico de Luanda. 28. A designação da televisão alterou-se após a mudança de sistema político de popular para pública. 29. Designação que refere-se aos problemas. 30. Mercado. 31. Comprar. 32. Pão. 33. Faculdade.

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34. Baixou. 35. Autor do álbum O homem e o artista (2005). 36. O termo musseque actualmente designa as zonas periféricas e também semiurbanas das cidades de Angola. Este termo é originário do período colonial e servia para designar as zonas habitacionais de terra avermelhada fora do casco urbano da cidade. 37. O termo faz parte da gíria luandense e refere-se a uma criança. 38. Menores. 39. Comida. 40. Termo da gíria luandense que se refere ao acto de comer. 41. Refere-se àquelas pessoas nascidas nas décadas de 1950 e de 1960. 42. Introdução de excertos ou sobreposição de músicas. 43. Episódio de golpe de Estado que ocorreu no interior do partido MPLA e do Estado, opondo dois grupos em torno do Presidente Agostinho Neto e do então ministro da Administração Interna e Comandante das FAPLA, Alves Bernardo Baptista, vulgarmente conhecido por Nito Alves. 44. Dois grupos etno-linguísticos que compõem a população sudoeste de Angola. 45. Unidade de Guarda Presidencial. 46. Distrito residencial da cidade de Luanda. 47. Três municípios da província do Huambo, região centro de Angola. 48. Político luso-angolano da UNITA. 49. Rádio e TelevisãoPortuguesa (RTP). 50. Data da repressão colonial na região norte de Angola. 51. Movimento Popular de Libertação de Angola - Partido do Trabalho (MPLA-PT). 52. Iletrado (refere-se a uma pessoa sem estudos e proveniência rural com um sentido jocoso). 53. Empresa de construção civil de origem brasileira. 54. Empresa de construção civil de origem portuguesa. 55. Comprar (expressão da gíria luandense). 56. Dinheiro (expressão da gíria luandense). 57. Exclamação que dependendo do sentido pode denotar admiração, surpresa ou ainda chamada de atenção. 58. Senhora (expressão da gíria luandense que se refere a uma senhora). 59. Senhor (expressão da gíria luandense que se refere a um senhor). 60. Kalashnikov – arma de fabrico russo. 61. Abreviatura do nome da discoteca Dom Quixote, em Luanda. 62. Coisa. 63. Chefe ou rico. 64. Arma. 65. Discurso proferido durante a campanha para as eleições gerais realizadas pela primeira vez em Angola, em 1992. 66. Discurso proferido na reunião do Comité Central do partido MPLA, em Luanda, em 2011.

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ABSTRACTS

O artigo parte do argumento de que, enquanto um conjunto de estilos e formas culturais difundidos mundialmente a partir dos guetos afro-americanos de Nova Iorque dos anos 70 do século XX, o hip-hop obteve, em Angola, uma recepção e apropriação particulares. Para os jovens angolanos simpatizantes, a adaptação à realidade nacional daqueles estilos e formas culturais representou, a despeito do cálculo das consequências, um esforço de actualização e modernização da cultura nacional diante da emergência de um espaço público proporcionada pelo fim do regime monopartidário. Nesse contexto, o “rap de intervenção social”, produzido maioritariamente por jovens pertencentes às camadas sociais subalternas, vem assumindo-se como um instrumento artístico através do qual os rappers aliam a emancipação cultural ao exercício da participação política democrática.

This article has as its starting point the argument that, while a group of styles and cultural forms spread world-wide from the Afro-American ghettos of New York in the 1970’s, hip-hop, in Angola, had a particular reception and appropriation. For the Angolan contemporary youth, the cultural incorporation of those styles and cultural forms to the national reality represented, despite the calculation of the consequences, an effort to update and modernise the national culture on the emergency of a public space provided by the end of the monopartisan regime. In this context, the so-called “social intervention rap”, mainly produced by the young from the lower classes, has been assuming itself as an artistic instrument through which rappers combine the cultural emancipation to the exercise of the democratic political participation.

INDEX

Keywords: hip-hop, social intervention rap, Angola Palavras-chave: hip-hop, rap de intervenção social, Angola

AUTHORS

GILSON LÁZARO Universidade Agostinho Neto, Faculdade de Ciências Sociais, Av. Ho Chi Minh, nº 56, Bairro Alvalade, Quintalão do Kudua , Luanda, Angola [email protected]

OSVALDO SILVA Universidade Católica de Angola, Centro de Estudos e Investigação Científica, Rua Pedro de Castro Van-Dúnem, nº 24, Bairro Palanca, Luanda, Angola [email protected]

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Resistência Urbana e Ativismo Social na Praia: O caso da “Korrenti di Ativiztas” Urban resistance and social activism in Praia: The case study of Korrenti di Ativiztas

Silvia Stefani

EDITOR'S NOTE

Recebido: 8 de agosto de 2015 Aceite: 16 de fevereiro de 2016

1 Praia, capital de Cabo Verde, representa um contexto complexo e uma plataforma interessante para observar as transformações socioeconómicas, políticas e culturais do arquipélago. Na capital, que abriga 62% da população residente no país (Lima, 2012a, p. 125), as contradições que caracterizam o modelo de desenvolvimento económico e político adotado da classe dirigente cabo-verdiana encontram-se de forma enfatizada. A cidade é marcada pelas crescentes desigualdades socioeconómicas e pelas dinâmicas de marginalização e violência simbólica, condições favoráveis para o surgimento de vários fenómenos de contestação e resistência urbana. Entre estes, por volta dos anos 2000, inclui-se o nascimento de gangues urbanos conhecidos como thugs, que podem ser considerados uma forma de resistência contra-hegemónica. Nos últimos anos, o espaço social e simbólico ocupado pelos gangues está a tornar-se campo de ação de uma nova forma de organização de rua, os movimentos de ativistas sociais. Com este artigo visa-se destacar a emergência desses movimentos, através do estudo de caso do movimento Korrenti di Ativiztas, localizado no bairro de , área popular de tradição piscatória, situada perto do cais da cidade. A análise desenvolve-se com base nos dados qualitativos recolhidos em uma pesquisa etnográfica realizada em 2014 na cidade

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da Praia, onde as atividades da Korrenti foram acompanhadas através da utilização das técnicas de observação participante e de entrevista qualitativa.

2 A primeira parte do artigo analisa o contexto urbano da Praia, destacando as transformações políticas, económicas e urbanas que contribuíram na estruturação da situação atual. Em particular, evidenciam-se as escolhas neoliberais, políticas e económicas, e os elementos de continuidade com o passado colonial, considerando as suas consequências em termos de desigualdade socioeconómica, exclusão social e limitação da participação política.

3 A seguir, individualiza-se a cidade como um novo espaço de luta contra-hegemónica, onde surgiram as formas de resistência citadas. Depois de destacar a atual transição nos subúrbios entre gangues urbanos e movimentos de ativistas, o ensaio foca-se na Korrenti di Ativiztas. Com base nos dados etnográficos, analisam-se as performances, as práticas e os discursos desenvolvidos pelos membros da Korrenti, destacando potencialidades, contradições e contribuições na questão da resistência urbana.

As trajetórias de desenvolvimento no contexto da Praia

Um país com baixa intensidade democrática

4 O Estado de Cabo Verde apresenta-se como uma experiência de sucesso no panorama africano, quer graças à estabilidade da democracia representativa pluripartidária em vigor desde 19911, quer ao relativo crescimento económico que levou a nação à promoção de “país com índex de rendimento médio” (Bordonaro, 2012a, p. 129). Uma análise mais profunda da realidade cabo-verdiana mostra um cenário muito mais complexo e problemático. As ambiguidades e as contradições do sistema político e económico do país manifestam-se com mais intensidade na cidade da Praia, sendo teatro de profundas transformações nas últimas décadas. Focando-se na dimensão política local, Lima (2012c, p. 283) utiliza a definição de Banquero de “desconsolidação democrática”, processo em que as instituições públicas são utilizadas para interesses particulares. Declinando este conceito teórico na realidade de Cabo Verde, o sociólogo argumenta que, desde a época pós-independência, a política foi orientada para os interesses familiares ou individuais e a apropriação indevida de bens públicos. Além disso, a política é percebida como um dos meios mais eficazes de ascensão social (ibid., p. 266), devido à ausência de uma tradição empresarial consolidada e à reprodução das dinâmicas da fase tardo-colonial em que a burocracia do aparato de domínio empregava a maioria da pequena burguesia local (Varela, 2013, p. 11). Tanto na época do partido único, como na atual fase de profunda bipartidarização da sociedade, frequentemente as pessoas ingressam em um partido político com a aspiração de encontrar um trabalho (Lima, 2012c, p. 267). Desejando ter uma carreira, assimilam-se, portanto, ao pensamento dominante partidário, evitando aportar contribuições individuais ou expressar dissidência. A população manifesta atualmente forte desconfiança e descontentamento em relação à política local, que consideram movida por interesses particulares e prejudicada pela corrupção geral (ibid., p. 264).

5 Além disso, considerando a análise de Varela (2008, p. 2), é possível assumir Cabo Verde como sujeito a um neocolonialismo político que se manifesta no conceito da “boa

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governação” promovida a nível internacional. O autor destaca, ainda, que a boa governação se traduz atualmente no Estado de direito e na democracia representativa. Este tipo de democracia, entretanto, não passa de uma “democracia de baixa intensidade”, que promove a estabilidade política do país, mitigando as tensões sociais ligadas ao carácter excludente do sistema, mas sufocando as aspirações de efetiva participação política. Esta forma de governo traduz-se em uma ferramenta funcional à expansão da governação global neoliberal (ibid., p. 4). A redução do nível de participação política em Cabo Verde contribuiu ao estabelecimento de um consenso, imposto do alto, relativo à política neoliberal impulsionada pelo Governo (Alves, 2010, p. 166).

Desenvolvimento neoliberal e desigualdade socioeconómica

6 Após o fim da década de 1980, de facto, a política cabo-verdiana foi orientada para a inserção do país na economia global, “privilegiando o mercado em detrimento das populações” (Lima, 2012a, p. 146). O desenvolvimento económico impulsionado no arquipélago baseou-se no apoio ao setor privado, através de uma progressiva privatização das empresas públicas (Lima, 2010, p. 2). As escolhas políticas e as reestruturações económicas estimuladas pelo FMI e pelo Banco Mundial determinaram a passagem do arquipélago de uma produção fortemente estatal a um regime de produção tardo- capitalista, caracterizado pela desregularização e privatização (Lima, 2012c, p. 277). A abertura neoliberal favoreceu os investimentos internacionais nos setores do turismo e das construções, contribuindo para o crescimento económico nacional, que na segunda metade da década de 1900 se consolidou com uma média anual de 8,4% (Lima, 2010, p. 3). As vantagens dessa transformação económica, contudo, concentraram-se em uma porção limitada da população e até provocaram um incremento da desigualdade económica, que de 1988 a 2002 subiu de 0,43 para 0,592 (Sangreman, 2009, p. 28). Essa transformação económica está a determinar uma progressiva polarização do trabalho. Ao lado de escassos empregos para trabalhadores altamente qualificados no setor de administração e de finanças, de facto, amplia-se a demanda de mão de obra de baixo custo por trabalhos que oferecem escassos recursos tanto a nível económico como simbólico.

7 A abertura económica determinou o enraizamento da sociedade de consumo, que estabelece as metas sociais às quais aspirar, concretizando-as em objetos de consumo apresentados pelos meios de comunicação como acessíveis a todos. Os jovens tornam-se o alvo ideal na sociedade de consumo e ao mesmo tempo são os mais afetados pelo crescente desemprego local3 e pela falta de oportunidades, experimentando o que Balandier (1985) definiu como o “paradoxo da modernidade”. De facto, ao mesmo tempo, vivem, por um lado, o aumento de aspirações e desejos, ligados à maior acessibilidade à educação e aos panoramas imaginários espalhados pelos meios de comunicação (Appadurai, 1996), e, por outro, a restrição das possibilidades reais de afirmação, com subsequentes vivências de frustração.

Transformações urbanas e segregação territorial na Praia

8 O cariz excludente do capitalismo, que não deixa de ser uma máquina que rejeita quem não consegue se integrar na sua lógica (Lima, 2012c, p. 276), reflete-se concretamente nas características urbanísticas da capital. Desde a década de 1990, a cidade tornou-se destino da imigração do interior e da costa africana, fazendo com que a sua população quase

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duplicasse em menos de vinte anos (Furtado, 2008, p. 80). Sassen (2010, p. 15) analisa como os processos de globalização contribuíram para a construção de novas geografias de centralidade e marginalidade que fazem perder sentido à tradicional divisão entre países pobres e ricos, sendo transversais a esta. Zonas extremamente pobres e marginais desenvolvem-se entre as grandes metrópoles do Norte do mundo, enquanto no Sul emergem novas “cidades globais”, que se tornam centros da economia mundial. Estas divisões entre centralidade e marginalidade reproduzem-se também nas “cidades globais”, onde as poucas áreas centrais atraem investimentos significativos, em detrimento das áreas urbanas de baixos rendimentos. Praia encaixa-se parcialmente nas dinâmicas descritas por Sassen, visto que o processo de urbanização da cidade viu o surgimento de um número limitado de bairros de altos rendimentos, os “centros”, nos quais a elite se concentrou4, rodeados por um número crescente de bairros populares espontâneos5, as novas “periferias” (Lima, 2011b, p. 3). Entre os centros e as periferias desenvolvem-se relações de mútua dependência (Sassen, 2010, p. 18), pois a população rica dos primeiros gera uma constante demanda de bens e serviços que é satisfeita através das atividades económicas informais e ilegais realizadas pelos moradores das periferias, como o comércio do peixe, o trabalho doméstico e o narcotráfico. Essa dependência, entretanto, articula-se em relações de poder desequilibradas, que tornam possível o crescimento da elite dos centros graças à exploração do trabalho pouco remunerado e em condições precárias da população das periferias. Nos bairros encontram-se grupos internamente homogéneos e externamente diferenciados, entre os quais dificilmente se realiza uma coexistência, alimentando a segregação da cidade (Innerarity, como citado em Lima 2011b, p. 3). Além disso, o aparecimento do fenómeno da violência urbana nos anos 2000 contribuiu para o aprofundamento dessa cisão e uma urbanização que pode ser definida excludente (Lima, 2012a, p. 1).

9 O desenvolvimento urbano da Praia está a reproduzir a divisão espacial existente na sociedade colonial e escravocrata (Lima, 2012a, p. 129). Varela argumenta que na Praia as tensões centro-periferia desde sempre se articularam na relação branco-negro “através de um discurso negativo e discriminatório traduzido na prática pelo antigo sistema escravocrata no relegar do tipo negro, mestiço, cabo-verdiano para a margem, a periferia” (como citado em Lima, 2012a, p. 129). A relação de subjugação e estigmatização do escravo negro transformou-se com o tempo e hoje encontra-se a figura do “badiu”, o cabo-verdiano originário da ilha de Santiago. Foram acrescentadas, a essa relação, conotações negativas, como a pobreza, a violência e a escassa educação da população dos subúrbios (ibid.). A segregação espacial da cidade traduz-se em uma diferenciação da população em relação ao lugar de residência, que se torna o índice mais próximo ao nível socioeconómico do indivíduo.

A cidade como novo campo de luta

10 Partindo da análise desenvolvida, considera-se que atualmente em Cabo Verde, como em vários contextos da realidade neoliberal global, a cidade representa o epicentro paradigmático da sociedade, onde profundas diferenças sociais, económicas e culturais se concentram em um campo geográfico limitado. A sociedade da Praia, como destacado, apresenta um cariz fortemente excludente, que marginaliza uma parte da população e da cidade. Esta situação afeta especialmente os jovens dos subúrbios, que, excluídos do mercado de trabalho e estigmatizados pelo discurso dominante como perigosos ou

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preguiçosos (Lima, 2010, p. 6), continuam em uma condição de limiaridade entre a juventude e a idade adulta. A impossibilidade de encontrar um trabalho fixo, uma habitação própria e de criar uma família independente (Martins, 2010, secção Transition) torna a juventude, como Singerman (2011) definiu, waithood, um tempo de frustrações e falta de perspetivas. Lima (2010) considera que muitos destes jovens estejam envolvidos em processos de desafiliação (Castel, como citado em Lima 2010, p. 8), pois são descoletivizados por uma parte da sociedade, mas ao mesmo tempo formam novos grupos sociais nos subúrbios em um processo de socialização paralela. O mesmo carácter excludente da cidade cria, então, condições para a organização e a emersão da voz dos subalternos. Sassen (2010) destaca que a desigualdade social e a marginalização presentes nas cidades modernas as tornam cenários de novas reivindicações e formas de atividade política que fogem à sua definição oficial.

11 Em grande parte a política urbana é concreta, mais praticada pelas pessoas do que dependentes das tecnologias mediáticas de massas. Nesse sentido, a atividade desenvolvida a partir da rua torna possível a formação de novos sujeitos políticos estranhos ao sistema oficial (ibid., p. 23).

12 A história de Cabo Verde, desde a época colonial até aos dias de hoje, construiu-se em uma dialética entre formas de dominação e de resistência em constante transformação. Avança-se a hipótese que hoje, no arquipélago, a cidade represente uma “nova colónia”: as dinâmicas de exclusão e domínio da sociedade escravocrata e colonial continuam a ser reproduzidas em novas formas na atual sociedade neoliberal e marginalizadora. Não só a governação, como argumenta Varela (2008, p. 12), mas a cidade torna-se o campo epistemológico e físico onde se confrontam o modelo estatocêntrico hegemónico de desenvolvimento e a resistência de numerosos atores sociais contra o seu carácter excludente.

13 É neste contexto que, após a década de 20006, Cabo Verde se tornou teatro do aparecimento de vários gangues de rua. Os gangues surgiram organizados ao redor das figuras dos “deportados”, cabo-verdianos emigrados, em grande número, nos Estados Unidos e repatriados por razões de condutas desviantes7. Estes gangues, auto e hétero- definidos thugs, do termo criado pelo rapper norte-americano Shakur Tupac, caracterizavam-se pelo estilo baseado na cultura transnacional hip-hop e foram considerados responsáveis pelo crescimento da violência urbana na cidade da Praia, em termos de tiroteios, narcotráficos e assaltos, definidos kasu bodi8. Os grupos thugs representaram para muitos jovens dos subúrbios um fórum de afirmação pessoal alternativo (Lima, 2012a, p. 140), onde era possível construir uma identidade não subalterna (Bourgois, 1996). A violência exercida tornava-se uma ferramenta de empoderamento e autoafirmação (Bordonaro, 2012a, p. 133) e as atividades criminais de tráfico, furtos e roubos ofereciam possibilidade de sustentação económica para os jovens envolvidos. Vários investigadores, reconhecendo no surgimento do fenómeno o papel da violência estrutural e simbólica vivenciada pelos jovens dos subúrbios, sublinham que os thugs constituem uma forma de resistência, embora ambivalente, à sociedade dominante e excludente. Lima (2012a, p. 147) destaca o carácter sociopolítico presente nestes grupos e compara-os com as organizações juvenis informais. Varela (como citado em Lima, 2010, p. 11) considera que a resistência em Cabo Verde desenvolveu-se em diversas formas e sugere um paralelo entre as revoltas dos morgadios nas montanhas na época colonial e a atual violência urbana exercidas pelos thugs no contexto urbano da Praia.

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14 Os anos 2009 e 2010 caracterizaram-se pela intensa ação de repressão ao fenómeno da violência urbana pelo Governo, segundo o modelo globalizado de “tolerância zero” (Bordonaro, 2012b). O governo local desenvolveu um processo de pacificação dessas “novíssimas guerras” (Moura, como citado em Lima, 2014, p. 17), baseado em três pilares: a demonização mediática dos thugs e da cultura hip-hop, uma feroz repressão policial e o financiamento de projetos sociais comunitários nos bairros considerados mais problemáticos (Lima, 2014, p. 17). Contudo, não alteraram as condições subjacentes à questão dos gangues, os jovens continuam desempregados, sem perspetivas, excluídos e desvalorizados pela sociedade. A diminuição da violência urbana, registrada a partir de 2012, acompanhou-se da emergência de novas formas de organizações de rua que se autodefinem como movimentos de ativistas sociais, localizados nos mesmos bairros populares e que muitas vezes envolvem os mesmos jovens ex-membros dos gangues. Estes movimentos compartilham características e relações de colaboração com as numerosas associações comunitárias dos bairros, desenvolvendo todavia um cariz mais político, inspirado na figura de Amílcar Cabral9. Atualmente, na Praia, as organizações que se consideram ativas e mais próximas destas características são o movimento do hip-hop consciente, baseado no grupo afrocêntrico Ra-Tecnologie, o movimento Samkofa e o movimento Korrenti di Ativiztas (Lima, 2014, p. 17). Neste último, surgido no bairro de Achada Grande Frente, foca-se a pesquisa etnográfica na base deste artigo. A Korrenti nasceu em 2012 da experiência do projeto “Simenti”, que visava promover o desenvolvimento do bairro popular de Achada Grande Frente. A suspensão dos financiamentos10 levou alguns membros do projeto a criar o movimento Korrenti di Ativiztas. Tal organização foi pensada para instituir uma rede com todas as lideranças comunitárias dos subúrbios da cidade, com objetivos de crítica política contra o sistema hegemónico e a classe dirigente e de atividade política urbana bottom-up. A seguir serão analisadas as peculiaridades da política urbana realizada pela Korrenti, considerando que, embora existam diferenças profundas entre os movimentos referidos, esta análise poderá proporcionar informações úteis acerca da situação atual da população dos subúrbios e das formas de resistência que estão a surgir depois das políticas de pacificação dos thugs. A situação da Praia, embora com características idiossincráticas, insere-se no mais amplo contexto mundial, em que os movimentos sociais estão a se constituir como principais atores da agenda cosmopolita contra-hegemónica (Pureza, 2014, p. 2).

A arma da subcultura

15 Para compreender a realidade da Korrenti di Ativiztas, entretanto, poderia ser útil considerar dois níveis no movimento, que se interligam na prática, mas que podem ser considerados analiticamente distintos. O primeiro nível está ligado à crítica política e às ações de resistência e declaração de oposição, já presentes entre os thugs, por exemplo, através das performances de gangsta rap (Lima, 2012c, p. 281). O segundo nível também apresenta uma forte continuidade com a experiência dos gangues. De facto, a Korrenti, como os gangues, representa um fórum alternativo de socialização e afirmação para os jovens do bairro que buscam estratégias de empoderamento em um contexto desfavorável. A este propósito, a performance estética e corpórea desenvolve um papel central: os ativistas11, como os thugs (Lima, 2011c, p. 49), dedicam muita atenção à autoapresentação performativa. Os cultural studies britânicos foram os primeiros a focar a atenção do mundo académico sobre as subculturas juvenis, reconhecendo nelas um

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carácter de desafio contra a ideologia hegemónica, lançado de maneira indireta, através da arma do estilo (Hebdige, 1979). Os ativistas da Korrenti, na maioria jovens homens, vivem situações de desafiliação com a sociedade dominante e procuram símbolos e modelos alternativos ao redor dos quais podem construir um estilo partilhado no grupo, que se torna um instrumento precioso na construção do sentido de pertença e de uma imagem de si valorizada. A performance estética torna-se uma estratégia para sair da invisibilidade e expressar a própria diferença em relação ao sistema dominante. Esse estilo funda-se em parte em elementos derivados da subcultura hip-hop, a qual já tinha sido objeto de apropriação pelos grupos thug. A alteridade dessa subcultura transacional veicula um valor especial: os imaginários provenientes de contextos diferentes são portadores de potencialidade de contraste ao sistema dominante graças às suas diversidades intrínsecas respeito à cultura local (Capello & Lanzano, 2012). Outros elementos do estilo do movimento, entretanto, são relativamente novos com respeito à experiência dos thugs e têm um carácter afrocêntrico e pan-africanista, em continuidade com outras realidades como aquelas dos rapper conscientes e pan-africanistas surgidos em Cabo Verde (Lima, 2012c, p. 282). Os ativistas valorizam elementos da cultura local cabo-verdiana, adotam como modelo inspirador o herói da liberação nacional Amílcar Cabral e se apropriam de elementos de subculturas pan-africanistas transnacionais como o rastafarianismo e a música reggae. Acompanhar a Korrenti durante vários meses permitiu constatar como os membros do movimento gradualmente adotavam um estilo sempre mais compartilhado, incluindo a roupa camuflada, os dreadlocks, a súmbia de Cabral, as cores ouro, verde e vermelho da bandeira da Etiópia. Hoje na reunião da Korrenti, enquanto se discutia o que fazer em , observei o estilo dos meus colegas. A roupa camuflada parece contagiosa, antes ou depois todos a vestem. Hoje vestem-na José12 e Luiz. Kriu tem um chapéu de rasta, Djon chapéu, dreadlocks e casaco verde militar. O único que não se conforma com o estilo é Santiago. Veste-se normal, com cores claras, camisas pesadas. Mas hoje ele também tem o chapéu de Cabral na cabeça, para marcar performativamente a sua adesão à Korrenti. (Notas de campo, 3 abril 2014)

16 Em uma entrevista, um membro da Korrenti evidenciou que a roupa camuflada, derivada da tradição rastafariana, é um símbolo para declarar que estamos sempre na luta, contra as desigualdades da vida, contra as dificuldades. Luta para melhorar as condições da vida nossas e dos outros. Luta porque somos indignados. Não paramos, não cruzamos os braços, estamos sempre de pé, como diz Bob Marley: “Wake up, stand up! Stand up for your rights!”. Bob Marley fala da nossa luta. Ouvimos rap e reggae porque são músicas de reivindicação!

17 A tradição rastafariana constitui um elemento ulterior de inspiração para a Korrenti. No quarto de Adélio, um ativista, encontram-se em um interessante sincretismo cartazes dos principais modelos adotados pelos grupos thugs e pelos ativistas: Tupac, Bob Marley, Amílcar Cabral e Haile Selassie, o Ras Tafari. O rastafarianismo representa uma heterodoxia surgida a partir da inversão da interpretação cristã colonialista: na Bíblia, ferramenta essencial no processo de colonização, os rastafarianos encontraram metáforas da própria situação de sujeição e um convite à libertação (Hebdige, 1979, p. 57). Tomar como modelos Cabral e Selassie e valorizar os traços corpóreos mais africanos são formas de expressar o desejo de procurar percursos de construção identitária que sejam baseados no orgulho da pertença africana, em uma declarada tensão contra-hegemónica.

18 Estes elementos que parecem inerentes ao nível analítico do empoderamento pessoal dos sujeitos, na verdade são também profundamente políticos e contra-hegemónicos no

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contexto da Praia. Cabo Verde é um arquipélago crioulo, que foi objeto de um povoamento sedentário só a partir da conquista portuguesa em 1460-1462. No começo as autoridades portuguesas tentaram promover um povoamento europeu, mas o projeto enfrentou um rápido fracasso por causa das difíceis condições climáticas, do isolamento geográfico e da escassez de recursos do território, bastante árido. A Coroa portuguesa decidiu então transformar o arquipélago em um lugar estratégico para o comércio de escravos. A posição geográfica intermédia entre os três continentes revelou-se favorável à proposta do rei: Cabo Verde, encontrando-se à frente das costas da Guiné, na época definida a “costa dos escravos”, tornou-se rapidamente um centro de desembarque e abastecimento dos navios negreiros, além de um ponto crucial para a penetração portuguesa no continente. A população cabo-verdiana em breve tempo constitui-se a partir de uma minoria de brancos, na maioria homens portugueses, e um amplo número de escravos africanos, que as vezes obtinham o status de “negro liberado” (definidos banhus, cassangas ou brâmes) e, por sua vez, começavam a se inserir no comércio como acompanhadores ou intermediários dos negreiros. Os cabo-verdianos foram também utilizados pelos colonizadores portugueses como intermediários nas colónias continentais e investidos da ambígua representação de “portugueses de segundo nível” ou “africanos de primeiro nível” (Andrade, 2009). A profunda mestiçagem da população e o papel peculiar reservado aos cabo-verdianos nas outras colónias portuguesas influenciaram de maneira significativa o discurso identitário em Cabo Verde, que até hoje se constrói através de uma relação dialética entre os dois polos de referência da África e da Europa. Varela (2013, p. 15) e Alves (2010, p. 58) evidenciam que o discurso da mestiçagem e da perfeita harmonização entre portugueses e africanos, reforçado também pela teoria do lusotropicalismo do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, foi utilizado na ditadura de Salazar para justificar o domínio sobre as “províncias ultramarinas”13 em uma época em que o discurso colonial começava a ser posto em questão a nível internacional. Esta representação do cariz mestiço de Cabo Verde na verdade oculta as relações de violência e dominação na base do seu nascimento e reprodução. Varela (2013, p. 15) evidencia também como este discurso teria efeitos mais profundos de socialização subalterna do colonizado, que era feito “prosperar” ao próprio serviço ao preço da sua assimilação e, de consequência, alienação. Em Cabo Verde o mesmo discurso da mestiçagem é atualmente reproduzido pelo poder através da auto-assunção da qualidade de interlocutor da Europa, facto que afasta inversamente as conceções com as referências subalternas, ou seja a África (ibid.). A elite política e intelectual do país continua a utilizar o discurso da branquitude e da mestiçagem como forma de ascensão social, cultural e política e como instrumento de reprodução do status quo (Varela, 2014, secção: Por uma operação antropofágica pós-colonial). O discurso da mestiçagem representa o que Marilena Chiaui (como citada em Alves, 2010, p. 86) chama de “discurso competente” da classe dominante, construído para uma identificação universal dos sujeitos harmónica e idêntica que esconda as desigualdades e as relações de domínio internas à sociedade. A violência simbólica colonial encontra-se hoje também no dispositivo de avaliação compartilhado no arquipélago, que tende a sobrevalorizar quanto for proveniente ou ligado ao Ocidente em detrimento de elementos locais ou africanos. Em Cabo Verde, de facto, vale a regra do duplo critério, transferindo a noção de Bourdieu (1999) do género à proveniência. Os produtos, as roupas, os percursos formativos, os traços somáticos que chegam de “fora” são considerados melhores que os locais, característica recorrente nos contextos de várias ex-colónias. É importante destacar que “fora” não significa qualquer origem externa ao país, mas só o mundo ocidental, em particular os Estados Unidos e a Europa Ocidental.

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Nesse cenário assumir um estilo afrocêntrico significa mover uma crítica ao sistema dominante. As marcas da pertença africana, estigmatizadas pela herança colonial, são valorizadas pelos ativistas e tornam-se um motivo de orgulho, em uma dinâmica de tradução do estigma em emblema (Bourdieu, como citado em Palmas, 2009, p. 57).

19 A construção do estilo dos ativistas passa através da performance linguística também, que de novo se insere na busca de uma perspetiva afrocêntrica. Os ativistas, pois, promovem a utilização exclusiva do crioulo, a língua materna local, que a nível institucional é substituída pelo português, em um processo de marginalização que liga o moderno e o colonial (Varela, 2013, p. 20). Entre as ex-colónias portuguesas africanas, Cabo Verde atualmente é a única onde está em curso um processo de ordenamento gramatical e oficialização da língua local (Varela, 2014, secção: Por uma operação antropofágica pós- colonial). Os ativistas reconhecem o valor simbólico da língua crioula, talvez o mais forte testemunho da resistência cabo-verdiana à sujeição e à assimilação cultural (Varela, 2013, p. 20). Se a nível oral o crioulo é muito utilizado, a nível escrito continua a ser marginalizado. Os ativistas, entretanto, utilizam o crioulo nos cartazes, na Internet, nos folhetos e nos discursos oficiais. A língua torna-se um lugar de conflito, através da qual determinados modelos identitários e culturais são afirmados em contraposição àqueles hegemónicos.

Exercer a própria voz

20 Além de proporcionar um estilo e um horizonte cultural alternativo, os ativistas são protagonistas de ações que representam formas de política urbana, sendo atos concretos que saem do modelo tradicional da política e promovem um desenvolvimento de baixo para cima. Especificamente, várias tipologias de intervenção da Korrenti visam oferecer a oportunidade de exercer a própria voz às populações marginalizadas dos subúrbios. Reunimo-nos todos em uma praça, enquanto algumas mulheres na rua ao lado preparavam o almoço para o grupo. Começou a sessão de Parlamento de Gueto: José, sendo o líder, fez um discurso de introdução, gravado por Kriu com a câmara. Faltava o microfone, normalmente presente nas sessões. José explicou o que é a Korrenti, os objetivos de reivindicação social e de promoção de uma maior justiça social, depois convidou os outros a falar. Kriu gravou o rosto de quem falava, segundo as instruções de José. Quase todos falaram, apresentaram-se, contaram a própria história ou começaram diretamente a acusar o sistema, a destacar a injustiça que vivem, o desejo de mudança. Carlos, da Korrenti, poucas vezes falou em público, mas hoje falou três vezes! A sessão durou três horas, todos falaram mais de uma vez. Quando o almoço ficou pronto não havia como encerrar a sessão. Quando a maioria das pessoas foram comer, alguém ainda ficou a falar sozinho à frente da câmara. (Notas de campo, 16 abril 2014)

21 Normalmente as sessões de Parlamento de Gueto acontecem nos bairros populares da Praia ou de zonas limítrofes14. Geralmente os ativistas trazem uma caixa de som que se torna o centro ao redor do qual se reúnem os moradores locais, em particular os homens jovens. A música rap passada pela caixa, ou improvisada pelos membros da Korrenti, e outras performances artísticas, como a e a capoeira, representam o quadro ao redor do centro da ação, constituído pelo debate público em que participam todos os moradores da área. Todos podem pegar o microfone várias vezes e assim as sessões se prolongam por horas. Observando as sessões, o ato de falar em público parece ser até mais importante do que os discursos, muitas vezes repetidos. Os ativistas valorizam o poder da palavra e da sua reapropriação. A Korrenti direciona-se a indivíduos que muitas vezes são

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objeto de discursos hétero-produzidos e estigmatizantes. A segregação da cidade em duas zonas de altos e baixos rendimentos reproduz-se na representação hegemónica que desenha os subúrbios como áreas onde se concentram várias formas de degradação social (alcoolismo, violência urbana, pobreza, desestruturação familiar, baixa escolaridade). A propaganda mediática ligada à violência urbana contribuiu para impor o estigma da perigosidade a todos os jovens homens moradores dos subúrbios. O imaginário dominante tem um carácter binário e maniqueísta, que não deixa a quem é condenado a possibilidade de se resgatar. Nos Parlamentos de Gueto e em outras intervenções parecidas atuadas pela Korrenti, os sujeitos considerados subalternos são convidados a produzir autonomamente o discurso sobre si e sobre os próprios bairros. A câmara focada no rosto e o microfone na mão tornam-se então instrumentos de reapropriação da subjetividade, das palavras e do poder de “dizer-se”.

22 A Korrenti visa reforçar a capacidade da população mais pobre de exercer a própria voice (Hirschman, 1970), ou seja, de debater, contestar, dissentir, propor a própria visão da condição atual e do futuro desejado, sem ter que se conformar com as definições estabelecidas a priori de inclusão e participação democrática, fornecidas pelo sistema hegemónico (Appadurai, 2013). Nessas ocasiões os ativistas exercitam um olhar crítico sobre a sociedade local, reclamando que os direitos políticos sejam acompanhados pelos direitos económicos e sociais e que a democracia cabo-verdiana se torne participativa, não somente representativa (Pureza, 2014, p. 2). Ao mesmo tempo, eles constroem uma representação mais complexa e multifacetada de si e dos bairros: reconhecem as dificuldades e a precariedade, mas também destacam os pontos de força próprios, como jovens propositivos e criativos, e do bairro, onde ainda são ativas as redes espontâneas de ajuda mútua e são presentes espaços inéditos de produção criativa15.

23 A experiência de “exercer a própria voz” ativa também outras dinâmicas significativas. Appadurai (2013) evidencia que existe uma distribuição desigual entre a sociedade da “capacidade de aspirar”: a classe social mais pobre tem acesso de maneira significativamente inferior às oportunidades de experimentar na prática essa capacidade cultural complexa. O exercício da própria voz representa, neste cenário, uma estratégia de empoderamento das classes mais pobres que favorece a aquisição de uma maior capacidade de aspirar (ibid.), condição preliminar para a emergência de um desenvolvimento de baixo para cima.

Ocupações e requalificações dos subúrbios

24 A construção de uma representação diferente dos próprios bairros não passa simplesmente através da produção de narrações alternativas, mas também de intervenções coletivas no espaço urbano. A Korrenti promove práticas de reapropriação e valorização dos espaços periféricos e marginais, em primeira instância através das campanhas de limpeza e das ocupações. As campanhas de limpeza são mobilizações da coletividade para retirar o lixo de uma determinada área. Na ilha de Santiago o desmantelamento do lixo representa uma questão não resolvida, presente enfaticamente nos bairros populares. No caso de Achada Grande Frente, o lixo está espalhado em muitas ruas do bairro, porém está mais concentrado no lado do morro que desce até o cais, completamente coberto pelo lixo e pelos excrementos humanos. Appadurai (2013) destaca que na Índia a classe social é medida através da distância que intercorre entre um indivíduo e os seus excrementos: a descer na escala social as pessoas são obrigadas a

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conviver com as próprias fezes por falta de sistema de saneamento e serviços sanitários. Na Praia é possível medir a escala social através da distância entre uma pessoa e o lixo não recolhido. Requalificar o bairro e aumentar a distância do próprio lixo representam práticas para a construção da dignidade pessoal e coletiva. As campanhas de limpeza, batizadas com um termo militar, sendo parte fundamental da luta dos ativistas, visam obter um envolvimento ativo dos moradores em relação ao próprio bairro. Além disso, constituem um veículo para a promoção de uma imagem positiva dos bairros periféricos e dos moradores e um instrumento de desenvolvimento social de baixo para cima. Os ativistas e os moradores locais, confinados geralmente pelas políticas ao papel de simples eleitores, voltam a se apropriar dos seus espaços de vida, descobrindo-se portadores de agency negada pelo discurso dominante.

25 Entretanto, as ocupações respondem à necessidade de se criar um lugar físico de referência, ao redor do qual possam ser construídas dinâmicas de proximidade fundamentais para a sobrevivência dos movimentos sociais (Castells, 2013, p. 19). A Korrenti atua ao redor da ocupação do Pilorinhu, estrutura edificada no bairro pela Câmara Municipal para ser um mercado do peixe, que nunca chegou a ser utilizada e se tornou uma lixeira e uma latrina utilizada pelos moradores do bairro. A ocupação do Pilorinhu começou justamente com uma campanha de limpeza para tornar o edifício um recurso utilizável pela comunidade. O Pilorinhu, uma vez limpo, tornou-se a sede efetiva das intervenções da Korrenti. O prédio oferece uma solução habitacional para alguns membros da Korrenti, em troca de um compromisso constante na luta e nas atividades desenvolvidas no edifício a favor da comunidade local. Esta escolha apoia tanto alguns ativistas de zonas afastadas da cidade que chegam para participar no movimento, quanto outros que, muitas vezes por causa dos conflitos nos gangues, fugiram dos próprios bairros e agora vivem uma condição de precariedade habitacional. As atividades organizadas no espaço baseiam-se na mobilização voluntária dos atores envolvidos no movimento segundo uma perspetiva definida de “Djunta mô”, ou seja, o juntamento das forças de cada um para alcançar benefícios comuns. No prédio são organizados cursos de autoformação abertos aos ativistas e à comunidade, que compreendem, por exemplo, capoeira e idiomas estrangeiros, carpintaria e arte circense. Ainda, no edifício os ativistas criaram a primeira biblioteca do bairro e um pequeno estudo de gravação decorado com grafite.

26 Uma das principais formas de intervenção do Governo e da Câmara na Praia consiste justamente na organização de vários cursos de formação, entre outros, para vendedoras de rua, líderes comunitários, atores aspirantes. Na proposta do Pilorinhu é possível ler por um lado uma reprodução do modelo institucional, por outro lado uma contraposição a este através da valorização dos saberes próprios da comunidade e do direito à autoformação. A Korrenti reconhece a importância das habilidades de cada sujeito, que pode experimentar não só o papel de beneficiário dos cursos, mas também de organizador e formador, com efeitos de empoderamento pessoal. O espaço, além disso, foi cenário de vários eventos: feiras de artesanato local, contest de música rap, festas para crianças. O objetivo destas ações consiste na transformação do Pilorinhu em um centro dinâmico a nível cultural e social. Este escopo opõe-se concretamente à hierarquização dos espaços da capital, que prevê a localização de todos os eventos e os lugares de interesse cultural nos poucos bairros abastados, sendo os bairros populares considerados off limits para a maioria da elite da Praia. A proposta de descentralização dos ativistas quer, pelo contrário, requalificar as zonas estigmatizadas da cidade através de intervenções que

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envolvam ativamente a comunidade. Os membros da Korrenti, pois, definem o Pilorinhu como “geral”, ou seja um espaço efetivamente público graças à ocupação.

Autoafirmação no espaço público e na rede

27 Como analisado, o espaço é uma temática central da reflexão dos ativistas, que se concretiza na apropriação e valorização de lugares esquecidos ou desvalorizados para os tornar recursos para a comunidade territorial. Ao mesmo tempo, o discurso sobre o espaço dirige-se em uma segunda direção, que compreende a afirmação dos ativistas em espaços públicos. Em uma cidade como Praia, com uma forte segregação espacial, a mobilização de grande número de pessoas feita pelos ativistas é funcional também como demonstração pública da própria presença na cena da cidade. Esse objetivo é atingido através da organização de reuniões dos membros não só no Pilorinhu, mas no , bairro central onde se encontram a Câmara Municipal e alguns ministérios. O estilo dos membros da Korrenti torna-os imediatamente reconhecíveis, assim que a presença deles no centro da cidade veicula diretamente a reivindicação de reconhecimento feita à classe dirigente. A essas reuniões juntam-se também marchas de sensibilização ou denúncia social, feitas para atingir visibilidade e reconhecimento. No dia da comemoração da morte de Cabral, não estando prevista alguma manifestação oficial, a Korrenti organizou pela terceira vez uma “Marcha Cabral”, que partiu do Pilorinhu e chegou até a praça central. Esta marcha teve uma participação mais heterogénea a respeito das outras atividades organizadas no Pilorinhu: aos ativistas juntaram-se vários moradores do bairro, entre os quais mulheres, crianças e o grupo de batucada local. Com a exceção das manifestações dos estudantes das décadas de 1990 e 2000 (Lima, 2010, p. 6) e daquelas organizadas pelas instituições16, na Praia não existe uma tradição recente de manifestação popular, de modo que a numerosa participação na Marcha Cabral garantiu uma significativa visibilidade ao movimento.

28 Além disso, um outro pilar nas práticas da Korrenti consiste na atenção à comunicação. A Korrenti procura ativamente o envolvimento dos meios de comunicação locais nas atividades extraordinárias, assim como naquelas quotidianas. Embora esta estratégia não seja inovadora, é muito peculiar da época atual a utilização instrumental do espaço virtual como área de visibilidade e ressonância do movimento. Por exemplo, Castells (2013) analisa a importância da Internet e das redes sociais nos movimentos populares recém-surgidos no Oriente Médio, Espanha, Islândia, Estados Unidos. A Korrenti gere uma página de Facebook, diariamente atualizada, onde é documentada a maioria das atividades do movimento em tempo real. Os ativistas interiorizaram profundamente as potencialidades da rede em termos não só de reflexão, mas de co-construção da realidade. A comunicação é uma fonte decisiva da construção do poder, porque desenvolve um papel fundamental na batalha pela formação do significado na mente das pessoas (ibid., p. 15). A rede, sobretudo para a população juvenil, não representa uma outra dimensão da vida real, mas é parte integrante desta. Se uma ação do movimento não for documentada e publicada on-line, perde parte fundamental do seu significado. As redes sociais saem dos canais tradicionais de ação política. Nessa característica estão as suas potencialidades como espaço de ação informal para uma co-construção participativa de discursos contra- hegemónicos.

29 Além disso, a Internet permite à Korrenti comunicar e procurar o apoio de entidades e redes além das fronteiras geográficas do país, tornando possível pensar em um novo tipo

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de política transnacional. Como reconhece Sassen (2010, p. 24), até as pequenas organizações com poucos recursos podem participar das redes globais, em uma perspetiva que vê a possibilidade de intervenção de atores diferentes dos Estados nacionais nas políticas transnacionais. Por enquanto, este lado do trabalho da Korrenti ainda está pouco desenvolvido, bem longe de alcançar o que Appadurai (2013) define como “cross border activism”, ou seja um ativismo baseado em uma rede que ultrapasse as fronteiras nacionais e forneça um horizonte onde articular políticas de “democracia profunda”, que tenham uma visão internacional, continuando enraizada no local. A Korrenti utiliza a rede com o objetivo de afirmar a própria presença e atividade a nível local, contudo procura uma ressonância a nível transnacional juntando-se com outras entidades semelhantes.

Ativismo e poder

A relação com o poder institucional

30 A relação da Korrenti com o poder pode ser analisada em diferentes níveis, entre os quais a relação entre o movimento e o poder político institucional e as relações de poder internas ao movimento. A relação com o poder político é uma das questões mais complexas na Korrenti, acerca da qual se focam também as críticas feitas por outros movimentos ou figuras públicas. Para compreender este elemento é necessário considerar as peculiaridades do contexto cabo-verdiano. As primeiras associações juvenis na época pós- independência foram criadas pelo partido único como instrumento de doutrinação da juventude, funcional à reprodução da ideologia partidária (Lima, 2012c, p. 265). Desde a abertura política a sociedade começou a assumir um carácter cada vez mais bipartidário. Consequentemente, as sucessivas experiências de associações comunitárias surgidas no país dificilmente ficaram fora da esfera de influência de um dos dois partidos, pois na sociedade cabo-verdiana não há lugar para quem não esteja alinhado (Évora, como citado em Lima, 2015, p. 108). Muitas vezes, as campanhas políticas baseiam-se na instrumentalização das associações comunitárias, que, em época de eleições, recebem financiamentos para as suas atividades, motivados, na verdade, pela venda de votos. Lima (2011a) denuncia que esta tendência não compreende só as associações: em época de campanha eleitoral, os políticos também ofereceram dinheiro aos thugs.

31 Neste cenário, a Korrenti não recusa as relações com as instituições. Considerando, por exemplo, a experiência da ocupação, um dado a salientar é que o movimento esperou o consenso da Câmara Municipal, antes de mobilizar as pessoas necessárias para tomar posse da estrutura. Isso aconteceu também no caso da ocupação do balneário de , edifício em desuso ocupado por um outro grupo de ativistas ligado à Korrenti na primavera de 2014. A Korrenti procura constantemente um diálogo com as instituições, tanto municipais, ligadas ao MpD, quanto ministeriais, na mão do PAICV. Alguns projetos do movimento receberam um financiamento público, como a campanha pela entrega das armas apoiada pelo Ministério da Administração Interna. Este facto levou a que outros movimentos criticassem a Korrenti como instrumentalizada e partidária, longe de ser uma forma real de resistência política (Lima, 2014, p. 17).

32 O discurso dos ativistas a este propósito dirige-se em duas direções diferentes. Por um lado declaram-se conscientes das tentativas de instrumentalização operadas pelos partidos, especialmente nos momentos de campanha eleitoral, e decidem tirar o máximo

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benefício dessa dinâmica. É possível aplicar a esta relação a análise que Lima (2011a) desenvolveu a respeito dos thugs. Como os thugs, pois, os ativistas também são conscientes das relações de poder da sociedade cabo-verdiana e aproveitam-se da situação utilizando a tática, “arte dos fracos” e instrumento de resistência contra-hegemónico (ibid.). Reconhecendo a própria posição subordinada, utilizam a estratégia dos políticos para obter a maior vantagem possível, sem chegar a depender deles.

33 A segunda perspetiva dos ativistas funda-se no reconhecimento da importância do próprio saber concreto sobre as periferias, desenvolvido através da vivência quotidiana e da ação direta. A violência urbana, a questão juvenil e a condição dos subúrbios são preocupações políticas constantes, acerca das quais os ativistas reivindicam uma competência preciosa. A tentativa de dialogar com as instituições representa então uma estratégia para alcançar um reconhecimento oficial dessa competência, sem depender destas. Em relação ao caso da ocupação, por exemplo, o líder da Korrenti comentou na entrevista: Sim, claro, pedimos permissão à Câmara e ao Governo para a ocupação do Pilorinhu. Pedimos apoio, também, com materiais de limpeza. Não nos deram nada, só a autorização. Afinal eram obrigados a conceder a autorização, o Pilorinhu era abandonado e eles sabiam que se tivessem negado a permissão, nós iríamos ocupar na mesma forma.

34 Embora as relações com os órgãos de governo e com as instituições sejam sempre portadoras do perigo da instrumentalização, como destacam outros movimentos que agem de maneira diferente, é importante reconhecer a agency dos ativistas nesta relação. A Korrenti não é só um sujeito passivo da instrumentalização partidária: conhece as regras do jogo e se envolve utilizando ora a tática, ora o dissenso declarado para remarcar a própria independência política.

As relações de poder internas à Korrenti

35 A Korrenti ataca as relações de poder que intercorrem no tecido social, as quais constroem e reproduzem a desigualdade em termos de redistribuição económica e reconhecimento. Ao mesmo tempo, todavia, o movimento é atravessado por relações de poder assimétricas, que em parte refletem o mesmo sistema que critica. Embora ataque a estrutura social oligárquica, a organização da Korrenti é igualitária só na aparência.

36 Em primeiro lugar, as decisões são tomadas geralmente pelo líder e poucos outros membros, que muitas vezes pertencem a outras organizações afiliadas. Essa estrutura hierárquica, porém, é ocultada no discurso reproduzido entre os ativistas da “liderança compartilhada”. Nas entrevistas os membros do movimento destacavam que na Korrenti todos são líderes. A retórica da liderança compartilhada parece ser um instrumento simbólico, mais do que um reflexo real da organização. Os membros da Korrenti levam um crachá de reconhecimento onde se encontram a fotografia, o logotipo do movimento e o papel desempenhado por cada um deles: secretário, vice-presidente, responsável da área de comunicação, etc. Em realidade, a maioria dos títulos não corresponde a papéis efetivos ou obrigações reais. A atribuição de títulos de prestígio é um dispositivo que opera uma conversão permanente, considerando as oposições binárias teorizadas por Bourdieu, do que é baixo/pobre/pequeno em alto/rico/grande (Palmas, 2009, p. 61). Os membros da Korrenti jovens, pobres, desempregados, com um baixo nível de instrução, moradores de bairros marginalizados, tornam-se ativistas e líderes, através de um

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processo que visa construir uma imagem positiva de si, e não subalterna. Contudo, a procura e a valorização da liderança pessoal dos ativistas refletem o sistema hegemónico de domínio, caracterizado por um profundo carácter hierárquico.

37 Ao mesmo tempo, a retórica da autoridade é um pilar de um segundo sistema de dominação que permanece invisível nos discursos dos ativistas: o sistema de opressão de género. Infelizmente, não será possível aprofundar a complexidade da questão atual de transformação no sistema de género cabo-verdiano e da ligação entre ativistas e estas mudanças sociais17. É importante destacar que o modelo hegemónico de masculinidade atual está a ser questionado seja pelas mudanças socioeconómicas, que enfraqueceram os privilégios masculinos em termos de distribuição da riqueza, seja pelas novas performatividades de género das mulheres, que desenvolvem uma reivindicação de reconhecimento. As associações femininas que lutam pela emancipação das mulheres contribuíram para tornar a temática da igualdade e equidade de género um argumento de debate público e um objetivo político nacional. Recentemente foi promulgada uma nova lei contra a violência baseada no género e atualmente existe uma participação feminina de 49% no Governo.

38 Os ativistas, porém, não consideram a questão da opressão de género nas próprias práticas e discursos, focando-se somente no eixo de discriminação da classe social. Mesmo em relação à pertença de classe, os ativistas definem-se porta-vozes da inteira comunidade do bairro de referência e, mais em geral, de toda a faixa socioeconómica mais baixa da população. Ao afirmar isso, contudo, não tomam em conta a ausência da metade feminina da população. Na Korrenti, pois, são envolvidas ativamente algumas mulheres, mas a maioria delas são estrangeiras. As cabo-verdianas afiliadas18 participam com frequência inconstante e muitas vezes desenvolvem papéis tradicionalmente femininos, de escasso prestígio, “naturalmente” adequados para elas: cozinhar, tomar conta das crianças, limpar, enquanto ficam à margem dos processos onde se tomam decisões ou se produzem discursos públicos. Por exemplo, nas sessões de Parlamento de Gueto é muito difícil que uma mulher tome o microfone para falar em público. Uma das causas desse facto é com a pesada carga de responsabilidade concentrada nas mulheres, tanto a nível de trabalho doméstico quanto de sustento económico da família. Não surpreende, então, que, oprimidas pela dupla jornada de trabalho, as mulheres não encontrem o tempo para participar das atividades do movimento. As atividades mesmas, além disso, não são organizadas para permitir a participação feminina: dificilmente as reuniões são fixadas com aviso prévio e a comunicação interna é problemática, por motivos de ordem económica e organizacionais.

39 Contudo, é possível supor também que o fator fundamental que limita a participação das mulheres seja exatamente a falta de reconhecimento da opressão de género entre os ativistas. A promessa de realizar uma sociedade baseada em uma maior justiça social destina-se exclusivamente a um público masculino, evitando pôr em discussão os pressupostos androcêntricos dos discursos e das práticas da Korrenti. Pelo contrário, a afiliação ao movimento de ativistas representa para os jovens moradores do bairro pobre de Achada Grande Frente um instrumento para atuar uma performance de masculinidade não subordinada. Impossibilitados de se realizarem no modelo da masculinidade hegemónica local por falta de dinheiro e poder, os jovens do bairro estariam condenados a performar formas de masculinidade que são desvalorizadas e condenadas pelo sistema de género local. Neste cenário, o ativismo proporciona percursos alternativos àquele tradicional da masculinidade que, todavia, retomam e enfatizam caracteres próprios da

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masculinidade hegemónica, como a liderança, a afirmação no espaço público e a valorização da performance estética. Os ativistas afirmam, de maneira talvez não consciente, a própria superioridade derivada do género de pertença, construído através de uma relação que subordina a feminilidade e as outras formas de masculinidade, constituindo o que Connell (1996, p. 93) definiu “masculinidade de protesto”. Na forma atual, então, o ativismo da Korrenti legitima o status quo na estrutura de dominação sobre as mulheres e dificulta o real envolvimento delas no movimento.

Conclusões

40 É possível então acreditar que o tipo de política urbana desenvolvida pela Korrenti di Ativiztas promova mudanças no contexto social a nível de reconhecimento e de redistribuição, que se consideram esferas separadas, mas conexas (Fraser, 2013). Taylor (1992) teorizou o conceito de “política de reconhecimento”, com referência àquelas políticas que estendem uma competência moral a todas as pessoas com visões de mundo profundamente diferentes das nossas. No caso descrito neste artigo, a Korrenti reivindica a competência moral da faixa socioeconómica mais pobre da população e o direito a uma participação paritária da vida cultural, social, económica e política da cidade. Appadurai (2013), considerando o caso dos slums de Mumbai, que partilha algumas analogias com Praia, analisa a dificuldade em mudar os termos de reconhecimento social das elites dominantes, porque até os pobres geralmente os interiorizam e os utilizam. A ação da Korrenti, então, visa eliminar esse problema através da construção de uma narração alternativa da realidade social. O estilo performativo afrocêntrico, as ocupações, a requalificação e revalorização dos bairros populares, as sessões de Parlamento de Gueto, são todas ações que visam criar coletivamente um discurso alternativo àquele hegemónico, que tem a tendência de culpar os sujeitos da sua pobreza e a reproduzir a ordem social existente. O Parlamento de Gueto, em particular, é um dispositivo que permite aos jovens marginalizados da sociedade expressar a própria voz, construir um dissenso. Os ativistas, de facto, reconhecem como foco crucial na política do reconhecimento a necessidade de resolver a falta de recursos dos pobres no exercício da própria voice (Hirschman, 1970). Embora seja um fenómeno recente, essa política da Korrenti e dos outros movimentos de ativistas está a produzir resultados em termos de reconhecimento: hoje está a ser construído um discurso coletivo nas periferias da cidade, que começa a ter visibilidade externa, através das redes sociais, dos meios de comunicação oficiais e do diálogo com as instituições locais. A pergunta que continua sem solução é quanto o reconhecimento cultural pode influir positivamente sobre a redistribuição (Fraser, 2013).

41 Embora não se queira responder a essa pergunta com este artigo, é necessário reconhecer que a política dos ativistas atua também a nível de redistribuição, operando no eixo das capacidades e, em consequência, do poder. A requalificação dos subúrbios visa redistribuir o espaço da cidade e os recursos, enquanto as autoformações promovem a agency dos sujeitos e o desenvolvimento de capacidades pessoais. Appadurai (2013) fala a este propósito da “capacidade de aspirar” como uma meta-capacidade mais difundida entre quem tem maior poder, dignidade e recursos materiais. Ela consiste na consciência dos nexos entre os objetos aos quais é possível aspirar em um determinado contexto e na possibilidade de avançar por tentativas e experimentar. A “capacidade de aspirar” representa, pois,

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uma capacidade de navegação, por meio da qual os pobres podem redefinir os termos das trocas entre reconhecimento e redistribuição e, através de confrontos e negociações com o estado e o poder do mercado, podem demostrar e performar as suas habilidades de criar esperança coletiva. (Ibid., p. 126)19

42 As autoformações, os Parlamentos de Gueto e os eventos organizados pela Korrenti constituem lugares de descoberta destes nexos e de experimentação dos mesmos. A Korrenti apoia a redistribuição da capacidade de aspirar criando as condições para que os sujeitos possam praticá-la, utilizá-la várias vezes e experimentá-la, através da elaboração do dissenso e das ações de política urbana de baixo para cima. O recente ativismo social da Korrenti parece, então, ser um desafio interessante contra o status quo da ordem social da Praia, porque põe em discussão a sua validade de forma inovadora e concreta. Contudo, a riqueza de significado das ações do movimento é parcialmente obscurecida pela falta de participação feminina. Como pode um movimento social grass-roots modificar os termos do reconhecimento e da redistribuição na sociedade geral, se não consegue modificá-los no seu interior? Um compromisso real e autocrítico para o reconhecimento e a redistribuição dos recursos em relação às companheiras de luta dos ativistas não constitui uma opção possível, mas uma etapa obrigatória no percurso transformativo proposto pela Korrenti, que se for evitada afetará a realização da inteira missão do movimento.

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NOTES

1. Desde 1975, data da independência do arquipélago, até 1991 Cabo Verde foi governado pelo partido único PAICV, surgido do PAICG, partido de libertação de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, de inspiração socialista. Em 1991 houve a transição pacífica para um modelo democrático pluripartidário, através das eleições que premiaram o recém-nascido partido de oposição MpD. 2. Índex Gini, que mede a desigualdade económica. 3. O desemprego atingia 41,8% da população entre os 15 e os 25 anos em 2007 (Dados INE em Martins, 2010). 4. Tradicionalmente a elite ficava no Plateau, centro administrativo originário da cidade onde estavam localizadas as habitações dos portugueses colonizadores e, após a independência, da elite cabo-verdiana. 5. Construídos sem planificação urbanística. 6. Lima (2012b) destaca que o fenómeno não é uma novidade, mas está em continuidade com experiências precedentes de gangues como os “piratinhos” e os “netinhos da vovó”. O sociólogo analisa as novidades que caracterizam os gangues dos anos 2000, mas também evidencia que o discurso dominante da novidade e da proveniência exterior do fenómeno tenha a função de ocultar a violência estrutural e simbólica presente na sociedade da Praia que tem um papel importante no surgimento dos gangues.

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7. Por vezes simplesmente devido à falta de documentos regulares de migração. 8. Crioulização da expressão inglesa cash or body. Também utilizado para indicar grupos de rapazes mais jovens que realizavam assaltos com armas, sem ter o conhecimento do código da rua criado por Tupac seguido pelos thugs. Hoje a divisão entre thugs e kasu bodi perdeu parte do sentido, até que thug virou sinónimo de delinquente e kasu bodi de assalto (Lima, 2010, p. 25). 9. Herói nacional da libertação. Lima (2010, p. 14) evidencia como nos anos 90 a referência identitária de Cabral teria perdido parte da sua difusão, por causa da representação dos anos sucessivos à independência como ditadura do partido único cabralista. 10. Financiamentos provenientes principalmente da Cooperação Francesa e da Fundação Esperança. 11. A partir desse parágrafo utilizarei a simples palavras “ativistas” para facilitar a leitura, mas é subentendido que se trata dos ativistas afiliados à Korrenti, como especificado anteriormente. 12. Os nomes utilizados são fictícios. 13. Fórmula que o Estado português adotou para denominar as colónias no segundo pós- guerra com o objetivo de manter o domínio em um ambiente internacional desfavorável ao colonialismo. 14. Durante o campo etnográfico foram organizadas duas sessões fora da cidade: no centro urbano de Assomada e em uma comunidade perto de Tarrafal. 15. Por exemplo o grande número de estudos de gravação autoconstruídos presentes nestes bairros, onde vários grupos juvenis criam e gravam músicas. 16. Por exemplo a marcha contra a violência sexual organizada pelo ICIEG na primavera de 2015. 17. Para aprofundar o argumento, ver Stefani (2015). 18. Com a rara exceção da contribuição saltuária de umas cabo-verdianas formadas, valorizadas no movimento. 19. Tradução da autora.

ABSTRACTS

Este artigo visa compreender um fenómeno atual da realidade da Praia, capital de Cabo Verde. As transformações socioeconómicas, políticas e urbanas do contexto contribuíram para o surgimento de novos atores sociais, especificamente os gangues urbanos chamados thugs, ativos nos subúrbios da cidade. Atualmente, nos mesmos bairros apareceram movimentos de ativistas sociais, uma nova tipologia de organizações de rua. O artigo apresenta o estudo de caso do movimento Korrenti di Ativiztas e, com base nos dados etnográficos recolhidos, pretende delinear as peculiaridades deste movimento e das suas formas de intervenção, analisando também a dimensão de género do fenómeno.

The essay aims to grasp a current phenomenon of the reality of Praia, capital city of the Cape- Verdean archipelago. Socio-economical, political and urban changes of the context have concurred with the birth of new social actors, in particular the urban gangs called thugs, active in the low-income neighbourhoods. Nowadays, in the same districts movements of social activists

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are growing, being a new type of street organization. The essay presents a case study focused on the movement Korrenti di Ativiztas and, on the basis of the ethnographical data collected, it seeks to outline the peculiarity of this organization and of its actions, stressing the gender dimension embedded in the issue too.

INDEX

Keywords: , social movements, gangs, inequality, masculinities Palavras-chave: Cabo Verde, movimentos sociais, gangues, desigualdade, masculinidades

AUTHOR

SILVIA STEFANI Università degli Studi di Genova, Via Balbi, 5, 16126 Genova, Italia [email protected]

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Ativismo LGBT num Campo Político Hostil – Uma leitura dos movimentos ativistas no Uganda1 LGBT activism in a hostile political field – A reading of activist movements in Uganda

Rui Garrido

EDITOR'S NOTE

Recebido: 27 de junho de 2015 Aceite: 24 de novembro de 2015

1 Não há nenhum lugar do mundo no qual as minorias sexuais sejam aceites em plenitude de igualdade com os demais concidadãos. Embora se venha a assistir a um movimento de grande abertura e integração destas minorias em vários quadrantes do globo, seja por despenalização das práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo, seja – por abordagens mais vanguardistas – de um pleno reconhecimento de igualdade no acesso ao casamento civil, à adoção, entre outros, por pessoas do mesmo sexo. São disso exemplo os países da Europa Ocidental, os Estados Unidos da América, a África do Sul, o Nepal, entre outros.

2 No entanto, este não é um movimento globalmente uniforme. Alguns países têm traçado um caminho bastante diferente da aceitação da diversidade sexual dos seus cidadãos. Sendo um fenómeno mediaticamente mais visível em África2, podemos encontrar países que hostilizam as suas minorias sexuais com grande agressividade um pouco por todo o mundo. A Rússia é o caso europeu mais conhecido, nomeadamente pela adoção de legislação que proíbe a “propaganda da homossexualidade”, exemplo posteriormente seguido pela Lituânia. No caso africano, a proibição da “propaganda” da homossexualidade encontra-se nos ordenamentos jurídicos da Argélia e da Nigéria (Carroll & Itaborahy, 2015, pp. 32-33). Este tipo de legislação, para além de assentar em

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pressupostos questionáveis, nomeadamente dos valores tradicionais das sociedades e da defesa das crianças à exposição de uma “ameaça” – por regra, estrangeira –, são uma restrição à liberdade de expressão dos cidadãos dos respetivos países, na medida em que proíbem, por exemplo, que o assunto seja abordado na esfera pública.

3 Não existe, no plano internacional, um tratado que se debruce em específico sobre a questão da orientação sexual. No seio da Organização das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) não lhe faz qualquer referência, embora proíba a discriminação em razão de qualquer característica física ou psicológica (artigo 2.o). De igual forma, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de 1966, proíbe a discriminação em razão de vários fatores ou de “qualquer outra situação” (artigo 26.o). O Conselho para os Direitos Humanos, em 1994, decidiu contra a Austrália (Toonen v. Australia), pela legislação anti-gay em vigor no Estado da Tasmânia ser contrária ao espírito do PIDCP (Mutua, 2011, p. 458).

4 Na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, a proibição da discriminação encontra-se plasmada no artigo 2.o. No entanto, a Carta Africana não explicita a orientação sexual como um fator de proibição da discriminação, mas deixa margem de apreciação, na medida em que a proíbe da discriminação em “qualquer outra situação” para além dos fatores que enuncia. No entanto, foram adotados, em 2007, os Princípios de Yogyakarta – Yogyakarta Principles on the Application of the International Human Rights Law in relation to Sexual Orientation and Gender Identity. Estes princípios, que resultam de uma reunião de especialistas em matéria de direitos humanos, pretendem ser apenas linhas norteadoras daquelas que são as obrigações dos Estados para com as suas minorias sexuais. Este texto não é vinculativo, mas este facto não lhe reduz a importância, pois esclarece que os direitos humanos aplicam-se indistintamente a todas as pessoas, independentemente da sua orientação sexual.

5 Em sentido oposto, é considerável o esforço que alguns países encetam na forma de tratamento das suas minorias sexuais. A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, a propósito do aumento da violência no continente contra pessoas LGBT, adotou, em maio de 2014, a resolução 275, sob a epígrafe Resolution on Protection against Violence and other Human Rights Violations against Persons on the Basis of their Real or Imputed Sexual Orientation or Gender Identity. Nesta resolução, a Comissão condena a violência a que estas minorias estão sujeitas e urge os Estados para terminar com a violência e adotar legislação que proteja as suas minorias sexuais. No entanto a União Africana tem dado, muito recentemente, sinais de estar a ceder à pressão anti-gay dos Estados. Na 27.ª sessão ordinária do Conselho Executivo da UA (Joanesburgo, junho 2015), o Conselho requereu à Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, na Decision on the Thirty-Eighth Activity Report of the African Commission on Human and Peoples’ Rights (DOC.EX.CL/Dec887 ( XXVII)) que esta tivesse em atenção os “fundamental African values, identity and good traditions” e por isso mesmo que revogasse o estatuto de observador da Comissão à ONG Coalition of African Lesbians3 na medida em que a mesma pode tentar impor valores contrários aos “valores africanos” (Pan Africa ILGA, 2015).

6 A retórica afirmada pelo Conselho, de exaltação dos valores fundamentais africanos, da sua identidade e tradições – que o Conselho refere como “good traditions” – está em linha com a afirmação da homossexualidade como “un-African”. Há vários autores que desmontam esta tese do caráter alienígena da homossexualidade (Awondo, Geschiere & Reid, 2012; SMUG, 2014; Tamale, 2014), principalmente pela existência de relações entre pessoas do mesmo sexo antes da chegada dos europeus ao continente (Bussotti & Tembe,

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2014; SMUG, 2014) e pela influência do Cristianismo na retórica homofóbica (Bennett, 2011).

7 O Uganda tem-se destacado, no continente africano, pela homofobia de Estado, que inclusive propõe a adoção de legislação particularmente punitiva para as minorias sexuais e restritiva das liberdades individuais. Apesar do contexto jurídico-político do Uganda, há um ativismo em prol do reconhecimento dos direitos que assistem às pessoas LGBT no país, em franca resistência contra a violência estatal e social. E é sobre este ativismo que nos pretendemos debruçar neste trabalho. O presente trabalho pretende assim tomar o pulso aos movimentos ativistas LGBT no Uganda. O período temporal de análise enquadra-se entre 2009, ano da proposta da reforma legislativa anti-homossexualidade, e o ano de 2015. A metodologia adotada assenta, essencialmente, na análise de conteúdos de artigos da comunicação social, para perceber em que medida estes movimentos são forças de resistência à crescente homofobia que vai alastrando no país.

O contexto político e social do Uganda no que concerne às minorias LGBT no país

8 O Uganda é, como referimos, o rosto mais visível de um movimento de homofobia do Estado que tem alastrado por alguns países africanos. Esta visibilidade assenta no facto de o Uganda ter sido o primeiro país africano a encetar esforços no sentido de adotar legislação punitiva da homossexualidade – concretamente The Anti-homosexuality Bill, 2009 –, para além da legislação penal em vigor. E embora só em 2009 tenha surgido uma proposta de reforma legislativa para criminalizar expansivamente4 as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo, o cerne desta questão encontra-se muito antes de o Uganda se tornar independente, em 1962.

9 É no Império Britânico que se introduz, pela primeira vez, uma penalização por atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo (Human Rights Watch, 2008). A introdução de legislação contra a sodomia acontece, definitivamente, com a adoção do Código Penal, em 1950, ainda sob domínio colonial britânico. Esta legislação, que ainda se mantém em vigor no Uganda5, prevê, no Capítulo 120, três disposições relativas a práticas sexuais ditas “não naturais”, a saber: a secção 145, que prevê a penalização por ofensas “não naturais”6; a secção 146, que prevê a tentativa de cometer tais ofensas7; e finalmente a secção 147, que prevê as agressões indecentes a rapazes cuja idade é abaixo dos 18 anos8. Salientamos que, em caso algum se refere “homossexualidade”, o que é um reflexo do tempo em que estas leis foram implementadas. A redação adotada é de “conhecimento carnal contra a ordem natural”9, facto a que faremos referência posteriormente.

10 Já por outro lado, a lei fundamental do Uganda, a Constituição da República do Uganda (CRU), em vigor desde 1995, é um texto que se enquadra numa lógica bastante oposta àquela encontrada no Código Penal do país. Na Constituição, no seu capítulo VI, sob a epígrafe “Protection and promotion of fundamental and other human rights and freedoms”, são elencados vários direitos fundamentais que assistem aos nacionais. E ressaltamos aqui que o âmbito de ação destes direitos é bastante generoso, fazendo da Constituição ugandesa uma lei fundamental bastante progressista. Deste modo, a Constituição prevê, logo no artigo 20.º que “[f]undamental rights and freedoms of the individual are inherent and

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not granted by the State”, estando reservada, para este último, a tarefa de os garantir e promover. Este discurso de que os direitos fundamentais são inerentes aos indivíduos e, por isso mesmo, não podem ser concedidos pelos Estados, é bastante caraterístico da literatura científica que trata destas questões, mas tendencialmente ausente na codificação de textos constitucionais, pelo que nos parece bastante relevante este detalhe da Constituição do Uganda.

11 Dos direitos elencados, a lei fundamental prevê a proibição da discriminação, sob a qual todos os indivíduos gozam de igualdade perante a lei e estando protegidos por esta em todas as esferas da sociedade (política, económica, social e cultural)10; o direito à vida11, na medida em que ninguém pode ser arbitrariamente privado desta; o respeito pela dignidade da pessoa humana e a não sujeição a tratamentos desumanos e degradantes12; o direito à privacidade, da pessoa, da casa e da propriedade13; o direito à família e à liberdade na constituição da família14, etc.

12 Há dois artigos da Constituição ugandesa que merecem destaque, na medida em que o presente ensaio se debruça sobre uma minoria sexual, e marginalizada enquanto tal. O artigo 32.º é relativo às ações afirmativas que o Estado deve tomar em prol dos grupos marginalizados. Dispõe o artigo 32.º o seguinte: (1) Notwithstanding anything in this Constitution, the State shall take affirmative action in favour of groups marginalised on the basis of gender, age, disability or any other reason created by history, tradition or custom, for the purpose of redressing imbalances which exist against them. (2) Parliament shall make relevant laws, including laws for the establishment of an equal opportunities commission, for the purpose of giving full effect to clause (1) of this article.

13 Por outro lado, o artigo 36.º é relativo à proteção dos direitos das minorias. O artigo dispõe o seguinte: Minorities have a right to participate in decision-making processes, and their views and interests shall be taken into account in the making of national plans and programes.

14 Assim sendo, se a lei fundamental do país garante a igualdade dos cidadãos e a não discriminação dos mesmos, seja por que razão for, então é legítimo questionar sobre a urgência de o Código Penal se adaptar às novas disposições constitucionais. Mais ainda, o Uganda é parte de um conjunto considerável de tratados internacionais, quer em sede da Organização das Nações Unidas15, quer da União Africana16, que reafirmam estes princípios constitucionais que acabámos de elencar.

15 Mas esse não é o panorama político que se evidencia no Uganda. Desde o início da década de 2000 que têm surgido indicadores políticos e sociais preocupantes para as minorias sexuais no país. O sítio da internet Gay & Lesbian Advocates & Defenders (GLAD) apresenta uma cronologia de eventos que evidenciam uma homofobia que é alimentada por elementos em funções do governo, entre outros. A cronologia citada aponta que, em 2002, ocorreram encontros entre líderes da Igreja Evangélica dos Estados Unidos da América e líderes do Uganda no sentido de implementar estratégias contra a comunidade gay no país. A relação próxima entre a Igreja americana e elementos do parlamento do Uganda é uma constante na intensificação da homofobia no país e que envolve deputados próximos do presidente Museveni, em especial a primeira dama Janet Museveni (Awondo et al., 2012).

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16 Estes encontros foram sucedidos por um conjunto de acontecimentos políticos e sociais, que evidenciam a exclusão das minorias sexuais no Uganda, entre os quais se contam, por exemplo: em 2005, o presidente Museveni promulga uma emenda à Constituição que restringia o acesso ao casamento por pessoas do mesmo sexo; em 2006, a publicação The Red Pepper torna públicos 45 nomes e fotografias de pessoas alegadamente homossexuais; em 2007, Martin Ssempa, ativista anti-gay, declara que a homossexualidade é contrária aos valores culturais do Uganda; em 2009 tem lugar um conjunto de conferências promovidas pela Family Life Network, da qual resulta uma Anti-Gay Task Force com o intuito de combater a homossexualidade no país. Nesse mesmo ano, o ministro da Informação afirma que “We must exterminate homosexuals before they exterminate society”, num claro incitamento ao ódio e propiciando um ambiente de pânico coletivo de rejeição das minorias sexuais.

17 Em 2009 dá-se ainda a apresentação, no parlamento do Uganda, de uma petição para expandir a criminalização da homossexualidade no país. Este projeto de lei previa, numa fase primordial, a pena de morte para quem cometesse o crime de “homossexualidade agravada”17. As reações de condenação foram imediatas, por entidades internacionais, seja por outros Estados, ou mais ativamente, por organizações não-governamentais de defesa dos direitos humanos. A Human Rights Watch, obviamente, condenou a iniciativa. A organização entende que esta legislação de expansão da criminalização é uma tentativa de enfraquecimento da coesão social: “This draft bill is clearly an attempt to divide and weaken civil society by striking at one of its most marginalized groups” (Human Rights, 2009). A mesma notícia cita o ativista ugandês David Kato, que viria a ser assassinado em 2011, relativamente à sua interpretação do projeto de lei como uma ameaça ao desenvolvimento do país: “It goes against the inclusive spirit necessary for our economic as well as political development. Its spirit is profoundly undemocratic and un-African”. Há ainda que atentar nas publicações no tabloide Rolling Stone, com títulos como “Hang the Homos” e “ Men of Shame Part II”, nas quais foram publicadas fotografias de pessoas percecionadas como homossexuais. O resultado foi uma onda de violência sobre as pessoas visadas (Pambazuka News, 2010). O projeto não avançou, em grande medida por pressão da comunidade internacional, que fez cair a pena de morte para pena de prisão perpétua e, posteriormente, a mudança de governo fez cair o projeto por completo (Front Line Defenders, 2012). No entanto, este facto não arrefece o fervor de ver aprovada uma lei anti-homossexualidade no Uganda. O deputado David Bahati reformula The Anti- homosexuality Bill, 2009, deixando cair alguns aspetos mais controversos da mesma, por exemplo a pena de morte, e submeteria novamente ao Parlamento o projeto para votação (Smith, 2014). O projeto foi aprovado em dezembro de 2013, promulgado pelo presidente Museveni em fevereiro de 2014 e revogado pelo Tribunal Constitucional do Uganda em agosto desse mesmo ano (International Federation for Human Rights, 2014).

18 Em outubro de 2014 é apresentado um novo projeto de lei, The Prohibition of Promotion of Unnatural Sexual Pratices Bill, 2014, que se diferencia das anteriores. Em primeiro lugar, pelo título, i. e., as das propostas anteriores eram assumidamente anti-homossexualidade, este novo projeto é anti-promoção de práticas sexuais “não naturais”18. Embora adote uma nomenclatura de proibição de práticas sexuais “não naturais”, o que remete para realidade semelhante àquela presente ainda sob domínio colonial britânico, o que se entende da leitura deste projeto de lei é que o mesmo se dirige claramente para as minorias sexuais. Ou seja, The Prohibition of Promotion of Unnatural Sexual Pratices Bill, 2014 é na verdade uma Anti-Homosexuality Bill, que se reveste de uma outra denominação,

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possivelmente para se esquivar à crítica de perseguição de grupos minoritários. Deste modo, este novo projeto de lei pretende proibir toda a publicidade, divulgação, impressão, distribuição de conteúdos que sejam relativos a práticas sexuais “não naturais”. Prevê ainda a proibição de qualquer financiamento para atividades que tenham a finalidade de promoção das referidas práticas19. Este projeto ainda não foi alvo de debate por parte do parlamento ugandês.

Os movimentos de ativismo em prol dos direitos das pessoas LGBT

19 Do panorama político que, sumariamente, elencamos neste trabalho, compreende-se que a situação das minorias sexuais no Uganda seja muito precária. Efetivamente estas pessoas estão muito expostas à violência, à rejeição social e/ou familiar, ao estigma social, assim como àsituação de desemprego e vulnerabilidade. People are arrested not only for being gay, but for also being accused of being gay, for socialising with people who are gay, and, in extreme cases like Uganda, renting a room to, or hosting anyone one who is perceived to be gay. In some countries work here at, Kuchu Times or any other organisation putting up a strong fight for the rights of the LGBTI, is considered illegal as it is deemed ‘promotion of homosexuality’ by the law. (Kuchu Times)

20 No entanto, o ativismo LGBT no país é uma realidade que, curiosamente, se torna mais visível, desafiando um ambiente social desfavorável e um ambiente político muito hostil. São disso exemplo as múltiplas organizações da sociedade civil que se dedicam a estas minorias sexuais, como a SMUG (Sexual Minorities Uganda), uma plataforma de organizações não-governamentais relativas às minorias sexuais. Mas também o sítio da internet Kuchu Times, que recentemente publicou uma revista – Bombastic – que pretende fazer uma verdadeira revolução de mentalidades no Uganda.

21 Estes dois exemplos de ativismo LGBT que vamos abordar, quando enquadrados num panorama político em que o Estado é em si um agente de repressão e perseguição – ou pelo menos conivente e indiferente para com as formas de violência que se geram para com as minorias sexuais –, são demonstrativos da importância da sociedade civil na resistência à opressão que sofrem as minorias do Uganda. Estes movimentos de resistência mantêm-se de igual forma ativos, inclusive quando vigorou The Anti- Homosexuality Act, 2014. Durante este período, entre fevereiro e agosto de 2014, o grau de violência a que as populações LGBT se viram expostas foi exponencial, mas mesmo assim, houve movimentos de resistência e ativismo à homofobia instalada (Houttuin, 2015) sobre os quais nos vamos debruçar em seguida.

A Sexual Minorities Uganda

22 A Sexual Minorities Uganda (SMUG) é uma plataforma que representa 18 organizações que trabalham na temática das minorias LGBT no Uganda20. É a organização que trabalha questões LGBT mais visível no país, mas também no exterior, e que tem travado um confronto contra a homofobia, da sociedade e do Estado. Esta organização, atualmente liderada por Frank Mugisha, um ativista dos direitos humanos reconhecido internacionalmente (Zongker, 2011) e que sucedeu a David Kato, tem tido um movimento bastante ativo de resistência contra as leis anti-gay, principalmente a Anti-Homosexuality

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Act, 2014. Após promulgação pelo presidente Museveni desta lei, em janeiro de 2014, a SMUG contestou a legalidade da mesma junto do Tribunal Constitucional do Uganda (Smith, 2014), que viria a declarar a mesma inconstitucional em agosto desse ano (FIDH, 2014). No acórdão do Tribunal Constitucional do Uganda, pode ler-se que os autores da queixa contestaram a legalidade da Anti-Homosexuality Act, 2014 tendo por base o facto de ter sido aprovada pelo Parlamento, a 20 de dezembro de 2013, sem o quórum suficiente no hemiciclo, o que constituiria uma violação da Constituição da República do Uganda e das regras processuais do Parlamento, mas também pelo seu manifesto confronto com direitos fundamentais elencados no corpo do texto constitucional, direitos esses consagrados de igual forma a todos os cidadãos21. O coletivo de juízes declarou a Anti- Homosexuality Act, 2014 inconstitucional e nula na medida em que a sua aprovação no Parlamento, sem um quórum mínimo, constitui uma violação dos artigos 2.º e 88.º da Constituição do Uganda22.

23 Não foi a primeira batalha que a SMUG ganhou em tribunal. Em 2011 a SMUG travou uma batalha judicial contra o tabloide Rolling Stone, pela publicação de fotografias de pessoas que eram identificadas como homossexuais, apelando à sua morte. O resultado dessa ação judicial foi a proibição de o jornal voltar a publicar qualquer outro conteúdo que fosse relativo à exposição pública de pessoas tendo por base a sua orientação sexual (Pambazuka News, 2010).

24 No plano internacional, a SMUG tem uma ação judicial a decorrer contra o pastor evangélico Scott Lively (Smith, 2012), tido como um dos instigadores dos movimentos anti-gay no Uganda, por crimes contra a humanidade, processo que se encontra a decorrer no sistema judicial federal dos Estados Unidos da América(The Rainbow Hub, 2015a).

25 A ação da Igreja Evangélica norte-americana no Uganda, no que respeita às minorias sexuais, tem sido particularmente destruidora. Esta tem tido um papel relevante na mudança social do Uganda, porque é vista como uma plataforma de protesto social, principalmente sobre questões de moralidade e sexualidade (Boyd, 2013, p. 702). Mais ainda, a Igreja Evangélica tem alterado as relações de parentesco (kinship), na medida em que se verificam novas formas de relação social, mais individualizadas, que permitem romper com as tradicionais formas de relacionamento (Boyd, 2013, p. 704). De acordo com a Time, foi pouco depois das primeiras visitas de Lively ao Uganda que se instalou um clima de suspeição na sociedade ugandesa (Bajekal & Hammond, 2015, p. 30). A mensagem trazida para o Uganda foi de perseguição e de instigação do medo relativamente a uma realidade que a maioria da população desconhecia. Não significa que a homossexualidade era ausente do Uganda, apenas uma realidade invisível. E a campanha encetada pelos religiosos norte-americanos foi lavrada com sucesso neste desconhecimento.

26 Um outro caso interessante, mas que não está diretamente ligado à ação da SMUG, é a contestação da legislação anti-homossexualidade num tribunal regional africano. De acordo com algumas fontes (Human Rights Awareness and Promotion Forum, 2014), foi remetido um caso ao Tribunal de Justiça da Comunidade da África Oriental, em concreto Human Rights Awareness and Promotion Forum v. Attorney General of Uganda, o qual ainda se encontra a decorrer. A Human Rights Awareness and Promotion Forum alega que o Estado do Uganda, ao ter aprovado The Anti-Homosexuality Act, 2014, violou o Tratado para o Estabelecimento da Comunidade da África Oriental. O caso tem gerado alguma contestação, na medida em que o referido tribunal de justiça recusou recentemente o estatuto amici curiae a duas organizações de direitos humanos (Stewart, 2015). Percebe-se

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assim que a resistência à introdução de legislação anti-homossexualidade no Uganda é contestada, por via judicial, em várias frentes e por várias organizações.

27 No que ao confronto direto com os líderes políticos diz respeito, a SMUG tem-se mostrado mais ativa na questão do acesso das pessoas LGBT a cuidados de saúde. Isto porque, durante o período em que The Anti-Homosexuality Act, 2014 esteve em vigor (janeiro a agosto de 2014), estas pessoas foram excluídas das políticas de saúde públicas (Human Rights Watch, 2014). Com a introdução desta legislação, as minorias sexuais foram excluídas, como grupos de intervenção de programas de prevenção e controlo de HIV/ SIDA (Ravelo, 2014). Os médicos estavam, inclusive, obrigados a denunciar qualquer caso no qual percebessem que a orientação sexual do utente era diferente da heterossexualidade (Human Rights Watch, 2014).

28 Com a escalada de homofobia, quer social, quer por hostilização do Estado, o trabalho da SMUG tornou-se ainda mais importante, mas também mais perigoso, na medida em que era percecionado como ilicitude, i. e. um auxílio à homossexualidade23. Numa situação semelhante encontra-se o Refugee Law Project (RLP) . O RLP é um centro de ação e investigação que foi fundado em 1990 para responder às necessidades dos requerentes de asilo no Uganda. É percecionado como uma organização não-governamental e tem a sua sede na Faculdade de Direito da Universidade de Makerere, em Kampala (Uganda). Engloba um raio de ação que engloba quatro áreas, a saber: 1) Conflito, justiça de transição e governação; 2) Acessoàjustiça por parte de migrantes forçados; 3) Saúde mental e bem-estar psicossocial; 4) Assuntos de género e sexualidade 24.

29 Embora não seja um mecanismo de ativismo LGBT, o que em certa medida seria uma politização do seu trabalho, o RLP é um inegável contributo científico de suporte e defesa das minorias sexuais no país, nomeadamente através da sua área de investigação em assuntos de género e sexualidade. Decorrente deste facto, tem sido alvo de investigações por parte do Ministério Público do Uganda por auxílio à homossexualidade (Senzee, 2014), facto que se tornou mais delicado no período em que vigorou The Anti-Homosexuality Act, 2014.

Kuchu Times e a revista Bombastic

30 O Kuchu Times éum sítio daInternet que pretende ser uma comunidade online para as pessoas LGBT, relativa a saúde e direitos sexuais. Estão presentes nas principais plataformas online de social media, como o Facebook, o Twitter, o Linkedin, o Google+ e um canal no Youtube. O Kuchu Times surge da necessidade de um espaço de diálogo e partilha de assuntos que são do interesse das minorias sexuais, em toda a África. E é um movimento que faz resistência à política dominante de hostilidade do Estado: Spaces for dialogue or awareness raising have been closed or censored. We at Kuchu Times believe this initiative is a big step to providing a safe, open space for people to share their stories, provide honest information as well as shine a light on what is taking place within this marginalised group across the continent. (http:// www.kuchutimes.com/about/)

31 No final do ano de 2014 foi publicada, no Uganda, a revista Bombastic. Foram impressos 15 000 exemplares para distribuição gratuita para atingir um público vastíssimo, dos quais se salientam os decisores políticos e a Presidência da República, para além de outros

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públicos dentro e fora do país através da sua edição em formato digital. E é claramente, uma ferramenta de resistência à homofobia dominante (The Rainbow Hub, 2015b). Prova disso é o editorial da publicação que refere: Using peaceful means to educate, inform and advocate for our inalienable rights enshrined in the constitution of Uganda, we shall continue to use the judicial system to bring about justice, respect and dignity for all members of our community [...] It is our desire that this publication will enlighten many Ugandans […] who have been indoctrinated into believing that there is only one kind of sexual orientation and gender identity by religious persons and politicians who have conservative values. We also hope that state-sanctioned homophobia via the laws that are being proposed will come to an end, and that instead we will be included in the national health policy. Driving LGBTI persons underground only continues to impede the fight against HIV/AIDS in Uganda and worldwide. (Nabagesera, 2014, p. 1)

32 A Bombastic surge, assim, da necessidade de dar uma outra perspetiva que não seja a campanha de ódio empreendida pela comunicação social, que aliás esta revista se propõe, assumidamente, combater (Agence France-Press, 2015). E propõe-se combater a campanha de ódio encetada pela comunicação social na medida em que entendem, os editores da Bombastic, que estão sozinhos na sua defesa e necessitam de reagir: “[t]he media is furious with us because we are reclaiming our stories. We expect them to retaliate. We are always frightened, but nobody else is going to stand up for us; our community needs a face” (Merrill, 2015).

33 O lançamento da revista, em dezembro de 2014, mostra ainda quão desafiadora – ou ousada – é esta publicação, na medida em que, no mesmo espaço temporal, decorria no parlamento do Uganda a discussão do recente projeto de lei de criminalização expansiva das práticas sexuais não naturais.

34 A Bombastic reúne, sob o lema “Our Voices, Our Stories, Our Lives”, textos de pessoas que partilham a sua experiência pessoal, que pode passar pela descoberta (ou consciencialização) da sua orientação sexual, experiência junto das famílias e episódios de violência social, com uma clara intenção de mudança social e desafio ao poder político, como adianta uma fonte noticiosa na Internet: “the authors of the stories are Ugandans who, through their voices, should be heard by policy makers and the general public” (McCormick, 2014). Por último, o movimento de ativismo que a Bombastic representa é visível pela forma como termina o editorial da mesma, “A luta continua”, que carateriza a resistência e ativismo LGBT no Uganda.

35 Há ainda a considerar outros movimentos de resistência e/ou ativismo LGBT que coabitam com os anteriores. O documentário The Pearl of Africa é um desses exemplos. Composto por um conjunto de vídeos disponibilizados numa página online e partilhados nas principais redes sociais, The Pearl of Africa acompanha a história da transsexual Cleopatra Kambugu, que após a sua fotografia ter sido publicada num tablóide (Red Pepper ), abandonou o Uganda por razões de segurança, fixando-se em Nairóbi, no Quénia. Mais visível ainda foi a 3ª Gay Parade que se realizou a 9 de agosto de 2014, em Entebbe, oito dias após o Tribunal Constitucional ter declarado nula The Anti-Homosexuality Act, 2014. A marcha foi pacífica e sem intervenção policial (Matsiko, 2014).

36 Que efeito têm estes movimentos de ativismo LGBT no panorama político do Uganda?

37 O primeiro impacto direto da aprovação de uma lei anti-gay foi ao nível da economia e da ajuda internacional ao desenvolvimento. Após a promulgação da lei, em fevereiro de 2014, os doadores internacionais cortaram o financiamento ao país (Plaut, 2014). Estados

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Unidos da América, Dinamarca, Noruega – e, inclusive, o Banco Mundial – contam-se entre os países que congelaram o financiamento ao Uganda. Estes três países representam, no total, 417 milhões de dólares, aos quais se acrescenta mais 90 milhões, referentes ao Banco Mundial (Vokes, 2014). A situação económica do país ficou, assim, bastante fragilizada.

38 Embora o parlamento do Uganda mantenha a sua postura de rejeição da homossexualidade, que é relativamente linear, no que ao Presidente do país diz respeito, o seu trajeto é mais sinuoso. Isto é, o presidente Yoweri Museveni, em 2012, referindo-se à crescente pressão do Parlamento para aprovação de uma anti-gay law, apelava a uma resolução pacífica da questão, de não perseguição destas minorias sexuais, como atesta uma entrevista à BBC: “If there are some homosexuals, we shall not kill or persecute them but there should be no promotion of homosexuality” (BBC, 2012). Em concordância, afirma Sylvia Tamale, num artigo de opinião na Al Jazeera, que “Homosexuals in small numbers have always existed in our part of black Africa… They were never prosecuted. They were never discriminated” (Tamale, 2014). Mas a posição moderada de Museveni viria a radicalizar-se dois anos depois. Em 2014, promulgaria The Anti-Homosexuality Act, 2014, acompanhada de uma clara intensificação do seu discurso homofóbico. Por exemplo, viria a afirmar aquando da promulgação da legislação supramencionada que “Homosexuals are ‘disgusting ’” (Landau, Verjee & Mortensen, 2014).

39 Pressão política externa e interna, por exemplo, as eleições de 2016, podem explicar esta volatilidade do presidente ugandês. No plano interno, e segundo algumas análises, a radicalização do discurso público agrada ao seu eleitorado (Bajekal & Hammond, 2015, p. 31). No entanto, externamente, a aprovação de legislação punitiva da homossexualidade e o discurso de ódio são alvo de repressão internacional. Há uma fonte que adianta, a propósito da decisão do Tribunal Constitucional de declarar nula a lei anti-gay, que o presidente Museveni interveio na decisão do coletivo de juízes para lhe ser favorável e evitar dessa forma a perceção, interna, de que o Presidente tinha cedido à pressão internacional (Matsiko, 2014). E o que é facto é que, de todas as inconstitucionalidades que a Anti-Homosexuality Act, 2014 apresentava, o Constitucional declara-a nula apenas pelo processo pela qual a mesma foi aprovada, neste caso, a ausência de quórum mínimo.

40 Da análise da decisão do TC do Uganda, percebe-se que The Anti-Homosexuality Act, 2014 é um assunto incómodo para o poder judicial. Isto porque, de uma lei que manifestamente é contrária ao espírito da lei fundamental do Uganda, o foco foi dado no ponto mais fácil e consensual, evitando assim o confronto com os direitos fundamentais elencados na Constituição. No fundo, sobressai a ideia de que não houve coragem para assumir, internamente, que esta legislação não serve os interesses do Uganda. E desta forma também não é inviabilizada a proposta de novos projetos de lei, como aliás já se verifica com The Prohibition of Promotion of Unnatural Sexual Practices Bill, 2014.

41 No entanto, a aparente tolerância do presidente Museveni quando da decisão judicial teve nova inversão, já que algumas fontes adiantam que o mesmo declarou que é necess ária uma futura legislaçãoanti-homossexualidade, mas que a mesma deve refletir o respeito pela vida privada e familiar das pessoas (Biryabarema, 2014).

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Considerações finais

42 Em jeito de conclusão deste trabalho podemos elaborar algumas considerações que sintetizam as ideias que fomos expondo. Em primeiro lugar, a homofobia com o patrocínio ou a adesão dos Estados tem manifestado tendência para aumentar. É uma realidade que se verifica com forte expressão no continente africano, onde vários países têm encetado esforços para adotar legislação anti-gay. O Uganda é a face mais visível dessa homofobia no continente africano, na medida em que os líderes políticos se empenham ativamente na aprovação de legislação de criminalização expansiva da homossexualidade, para domínios que atentam contra a vida privada dos cidadãos, mas também contra o direito ao bom nome, à honra, à inviolabilidade da vida, em suma, atentam contra a dignidade da pessoa humana.

43 Mas mesmo sob um ambiente tão hostil, os movimentos de ativismo LGBT são visíveis. E apesar da sua ilegalidade, são contestatários e são também a única defesa a que as minorias sexuais podem recorrer. É evidente o confronto com o Estado, principalmente na contestação, junto do sistema judicial que os persegue, da legalidade das leis que são aprovadas contra a sua existência.

44 Os ativistas são agentes reacionários que exigem o seu reconhecimento legal (por exemplo, na constituição de associações), a sua inclusão em políticas públicas (por exemplo, em programas de prevenção do HIV, dos quais foram retirados como público- alvo na medida em que a homossexualidade é ilícita no país), a proteção que lhes é devida pela lei contra atos de discriminação, assim como, inevitavelmente,são agentes de mudançasocial.

45 Por fim, não nos foi possível provar que estes movimentos de ativismo LGBT têm um impacto na forma como os políticos se expressam publicamente, nem como conduzem as suas políticas. No entanto, apesar de não conseguirmos provar esta relação direta, é facto que o ativismo LGBT no Uganda tem uma forte visibilidade externa. A sua presença nas redes sociais e órgãos de comunicação social internacional émuito forte.

46 O interesse internacional sobre a questão aumenta e consequentemente, aumenta também a pressão da comunidade internacional sobre os líderes políticos no Uganda. A mudança no discurso público do presidente do Uganda, assim como de membros do Parlamento, no sentido de reduzirem a carga homofóbica e discriminatória é evidente. É disso exemplo a admissão de uma tolerância nas relações sexuais consentidas entre adultos do mesmo sexo em espaço privado, o que curiosamente é contrário ao disposto pela legislação penal atual.

BIBLIOGRAPHY

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NOTES

1. Investigador colaborador no Direitos Humanos - Centro de Investigação Interdisciplinar. 2. A maior visibilidade do continente africano está relacionada com o elevado número de países cujos líderes políticos adotaram um discurso manifestamente homofóbico. Uganda, Quénia, Gâmbia, Malawi, Zimbabué, Camarões, Chade, são apenas alguns exemplos. 3. A Coalition of African Lesbians (CAL) foi reconhecida como observadora da Comissão Africana de Direitos Humanos em abril de 2015, após uma batalha de sete anos por esse reconhecimento. 4. A criminalização expansiva da homossexualidade é uma denominação utilizada pela Sexual Minorities Uganda (SMUG). É denominada criminalização “expansiva” da homossexualidade na medida em que, de acordo com a legislação penal do país, a homossexualidade já constitui um ato ilícito. As reformas legislativas propostas vêm, assim, propor novas formas de punição para além das atualmente previstas. 5. Segundo uma fonte (Human Rights Watch, 2008, p. 6) a legislação colonial do Império Britânico, em 2008, para além do Uganda, ainda perdurava nos códigos penais do Botswana, da Gâmbia, Gana, Quénia, Lesoto, Malawi, Maurícia, Nigéria, ilhas Seicheles, Serra Leoa, Somália, Swazilândia, Sudão, Tanzânia, Zâmbia e Zimbabué. Ainda há que

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considerar todas as ex-colónias britânicas na Ásia e no Pacífico, que à semelhança dos países africanos, ainda mantinham a sua legislação penal do tempo colonial. 6. “145. Unnatural offences. Any person who – (a) has carnal knowledge of any person against the order of nature; (b) has carnal knowledge of an animal; or (c) permits a male person to have carnal knowledge of him or her against the order of nature, commits an offence and is liable to imprisonment for life.” (Cf. Penal Code Act, 1950). 7. “146. Attempt to commit unnatural offences. Any person who attempts to commit any of the offences specified in section 145 commits a felony and is liable to imprisonment for seven years.” (Cf. Penal Code Act, 1950). 8. “147. Indecent assaults on boys under eighteen. Any person who unlawfully and indecently assaults a boy under the age of eighteen years commits a felony and is liable to imprisonment for fourteen years, with or without corporal punishment.” (Cf. Penal Code Act, 1950). 9. Tradução nossa. 10. Cf. artigo 21.º, n.º 1 da Constituição da República do Uganda, 1995. O número 2) do artigo 21.º dispõe o seguinte: “Without prejudice to clause (1) of this article, a person shall not be discriminated against on the ground of sex, race, colour, ethnic origin, tribe, birth, creed or religion, social or economic standing, political opinion or disability.” 11. Cf. artigo 22.º da Constituição da República do Uganda, 1995. 12. Cf. artigo 24.º da Constituição da República do Uganda, 1995. 13. Cf. artigo 27.º da Constituição da República do Uganda, 1995. 14. Cf. artigo 31.º da Constituição da República do Uganda, 1995. Embora a Constituição refira que o casamento pode ser contraído por um homem e uma mulher após os 18 anos de idade, “[m]en and women of the age of eighteen years and above have the right to marry and to found a family and are entitled to equal rights in marriage, during marriage and at its dissolution” (art. 31.º, n.º 1), em nenhuma disposição do artigo 31.º refere que o casamento só poder ser contraído entre um homem e uma mulher (e vice-versa). Ou seja, pela leitura, em exclusivo, do referido artigo, a contração do casamento por pessoas do mesmo sexo não será contrária à ordem constitucional. 15. Por exemplo o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais. 16. A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. 17. Define The Anti-Homosexuality Bill, 2009, relativamente à homossexualidade agravada, o seguinte: “(1) A person commits the offense of aggravated homosexuality where the – a) person against whom the offence is committed is below the age of 18 years; b) offender is a person living with HIV; c) offender is a parent or guardian of the person against whom the offence is committed; d) offender is a person in authority over the person against whom the offence is committed; e) victim of the offence is a person with disability; f) offender is a serial offender; or g) offender applies, administers or causes to be used by any man or woman any drug, matter or thing with intent to stupefy or overpower him or her so as to there by enable any person to have unlawful carnal connection with any person of the same sex.” (The Anti-Homosexuality Bill, 2009, p. 6). 18. Define o projeto de lei práticas sexuais “não naturais”: “means a sexual act between persons of the same sex, or with or between transsexual person[s], a sexual act with an animal, and anal sex, within the meaning of section 145 of the Penal Code Act”. 19. Cf. secção 3, The Prohibition of Promotion of Unnatural Sexual Pratices Bill, 2014. 20. https://sexualminoritiesuganda.com/about/

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21. Olaka-Onyango & 9 others v. Attorney General (Petition No. 08/2014), pp. 1-5. 22. Olaka-Onyango & 9 others v. Attorney General, p. 20. 23. Recordamos que ao abrigo de The Anti-Homosexuality Act, 2014 e de The Prohibition of Promotion of Unnatural Sexual Practices Bill, 2014, a promoção, investigação, auxílio entre outros de atividades ligadas às minorias LGBT são proibidas. Esta ilicitude, real ou percecionada, é uma dificuldade que afeta todas as organizações que trabalham neste domínio, portanto, o Kuchu Times e a revista Bombastic, mas também o centro The Refugee Law Project, da Universidade de Makerere, são percecionados de igual forma. 24. http://refugeelawproject.org/

ABSTRACTS

O presente trabalho pretende tecer algumas considerações sobre o ativismo LGBT em contexto de grande hostilidade política e social. Em alguns países africanos, em especial o Uganda e o Quénia, têm surgido alguns movimentos de homofobia que tem o apoio do Estado. Essa homofobia traduz- se, em outros, em violência para com as pessoas que se identificam enquanto gays, lésbicas, ou outras, ou que são percecionadas enquanto tal. Pretende-se assim tomar o pulso aos movimentos LGBT que subsistem, quase em regime de clandestinidade, mas que são pontos de resistência contra a homofobia da sociedade e do Estado.

This work intends to make a few remarks about LGBT activism in the context of great political and social hostility. In some African countries, especially Uganda and Kenya, there have been some homophobia movements that have state support. That homophobia is reflected in others, violence toward people who identify as lesbian, gay, or other, or are perceived as such. The aim is to take the pulse to LGBT movements remain, almost underground system but are resistance points against homophobia in society and the state.

INDEX

Keywords: activism, Anti-homosexuality Bill, LGBT, homophobia, state, Uganda Palavras-chave: ativismo, Anti-homosexuality Bill, LGBT, homofobia, Estado, Uganda

AUTHOR

RUI GARRIDO Centro de Estudos Internacionais, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Avenida das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal [email protected]

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Estado e Sociedade Civil em Cabo Verde e Guiné-Bissau: Djuntamon para novas relações State and civil society in Cape Verde and Guinea-Bissau: Djuntamon for new relationships

Ricardino Jacinto Dumas Teixeira

EDITOR'S NOTE

Recebido: 01 de agosto de 2015 Aceite: 11 de março de 2016

1 O propósito de estudar as relações entre a sociedade civil e o Estado em Cabo Verde e na Guiné-Bissau deveu-se, fundamentalmente, às suas trajetórias distintas, numa história de relacionamento comum, no processo da luta pela independência. Ex-colônias de Portugal em África, Cabo Verde e Guiné-Bissau emergiram como Estados sob a liderança ideológica e direção política do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC ). No período após a independência, no início de 1980, houve a ruptura política e a implementação das reformas neoliberais nos dois países. As reformas tiveram como pré- condição a realização das primeiras eleições democráticas e multipartidárias na década de 1990. Tais eleições foram vistas como promotoras do processo de democratização instrumentalizado pela política do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM), o que significou a adoção de um novo receituário neoliberal de democracia, de concepção da sociedade civil e do Estado.

2 No entanto, apesar dos condicionalismos históricos num quadro de mesmo legado colonial, da breve vivência de unidade entre os dois países e da recente política liberal do FMI e do Banco Mundial, Cabo Verde e Guiné-Bissau apresentam configurações distintas no processo de construção da democracia em curso, possuindo características diferentes

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no âmbito das relações entre a sociedade civil e o Estado. Sociedade civil entendida como um espaço diferenciado de sujeitos sociais presentes na dinâmica societária; esfera, essa, em que se desenvolve a convivência com o Estado e o mercado no campo de políticas públicas, bem como outros mecanismos intermediários que vão além dessas duas instituições do sistema social e político dos dois países pesquisados, sendo, ainda, a partir da sociedade civil que são construídas concepções de democracia e de Estado nas suas diversas interpretações e matrizes conceituais, políticas e ideológicas, no sentido dado por Cohen e Arato (2000). O que amplia a própria concepção de sociedade civil e da esfera pública para inclusão de outros grupos sociais (Barros, 2010; Varela & Lima, 2014). É nessa perspectiva que visualizamos a inclusão de diferentes agentes, notadamente os grupos étnicos e o lugar que ocupam como constituintes na formação heterogênea da sociedade civil, portanto partícipes do campo de disputas e conflitos políticos e conquista do seu espaço a partir de ampliação da esfera pública no processo de democratização. É a partir desse aspecto que propomos analisar, por meio de alguns recortes, as características das configurações da sociedade civil e do Estado em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. A análise foi elaborada em três momentos: no primeiro, discute-se a percepção de Estado; no segundo, a percepção de sociedade civil, e, no terceiro, as relações entre a sociedade civil e o Estado.

3 A pertinência dessa configuração coloca desafios do ponto de vista teórico e analítico, daí a importância de um estudo comparativo das diferenças e similitudes. Para Schneider e Schmitt (1998), o método comparativo envolve dois momentos fundamentais: o momento analógico, relacionado à identificação das similitudes entre os fenômenos, e o momento contrastivo, no qual são trabalhadas as diferenças entre casos estudados. Elegemos os dois momentos, tendo por base os documentos e as entrevistas com grupos e organizações da sociedade civil (grupos pré-existentes, ONGs, associações, sindicatos) e da sociedade política (Estado e partidos), com atuação nos dois países, a fim de captar as visões sobre o Estado e a sociedade civil e suas relações.

Percepções do Estado em Cabo Verde e na Guiné- Bissau

4 Nesta parte, foi feita a análise das divergentes perspectivas que marcaram a construção do Estado e da sociedade civil e de suas inter-relações no campo institucional e nos espaços não institucionalizados, em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. O objetivo é compreender as características da democracia, em Cabo Verde e Guiné-Bissau, salientando as diferenças e possíveis similitudes existentes entre os dois países.

5 Iniciamos a análise a partir da afirmação de que há uma complexa dialética entre o político e os outros campos da vida social, que colocam em disputa diferentes projetos políticos de democratização. De acordo com Dagnino, Olvera e Panfichi, para que a democracia tenha maiores possibilidades de se consolidar, parece ser necessária a existência de uma forte correspondência entre um projeto democrático na esfera da sociedade civil e projetos políticos na esfera da sociedade política ou Estado. Na ausência dessa correspondência de uma ação relacional decorre a criação de alianças de caráter instrumental nas relações entre os setores da sociedade civil e do Estado. No entanto, a possibilidade de cooperação entre a sociedade civil e o Estado não está isenta de conflitos, de pressões, de reivindicações e jogos de forças que constituem o terreno de disputa onde se dá o processo de construção democrática. (Dagnino et al., 2006, p. 37)

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6 Levando-se em conta a perspectiva relacional proposta por Dagnino et al., para os entrevistados, o Estado cabo-verdiano, desde o final de 1970 até meados dos anos de 1980 e, depois desse período, com a democratização, vem passando por uma série de modificações de caráter político, econômico e sociocultural. Foram os tempos da construção do Estado, forjado a partir da luta de libertação na Guiné-Bissau, mas que foi se firmando “sozinho” na sua adversidade interna e exigências internacionais, fruto de um trabalho coletivo de construção nacional, como informa um dirigente do PAICV1: Se por um lado a luta armada, conduzida pelo PAIGC, projetou Cabo Verde, viabilizou a sua independência muito mais cedo do que se poderia imaginar; se é verdade que pelo jogo das circunstâncias, o fato de a luta ter se desenvolvido no terreno da Guiné-Bissau, sob a liderança de Amílcar Cabral. Por outro lado, a projeção de Cabo Verde através da luta armada na Guiné não chegava até ao fim e deixava que Cabo Verde fizesse mais para a sua autopromoção. Nestes conflitos diversos, Cabo Verde conseguiu afirmar-se na sua luta contra as adversidades locais, mas afirmou-se também no plano internacional, construindo uma nova relação com a antiga metrópole, estabelecendo linhas de ações diplomáticas próprias e conseguindo, portanto, uma imagem própria de uma identidade nacional organizada e merecedora da confiança de outras identidades nacionais. Eu creio que foi um grande feito da Primeira República, embora saibamos que a República é única. (Dirigente do PAICV, entrevista, 11 Junho, 2012)

7 A percepção de Estado é marcada, desde suas origens, por uma aposta fundamental que se delinearia mais claramente ao longo dos anos de 1980. Trata-se da “aproximação com a antiga metrópole”, que parecia difícil, mas fundamental, para a sobrevivência econômica e política do Estado cabo-verdiano. Em ruptura com o projeto de “unidade” com a Guiné- Bissau, proposta por Amílcar Cabral, se apostou na ampliação e na integração da identidade nacional cabo-verdiana, constituindo novos sentidos e pertenças, estabelecendo ações diplomáticas próprias na gestão e na redefinição de uma nova concepção de Estado, desvinculada da opção revolucionária. A percepção de Estado, nesse período, passou a ser imaginada como uma questão econômica e cultural a ser resolvida por intermédio de processos de inclusão identitária da população cabo-verdiana, incluindo os emigrantes e seus descendentes na construção nacional cabo-verdiana, que “são partes integrantes da Nação cabo-verdiana, independentemente da nacionalidade formal por que tenham adoptado” (Documento 1)2. A população cabo-verdiana que vive fora de seu território tem exercido um papel importante no desenvolvimento e combate à pobreza.

8 Na Guiné-Bissau, toma-se como exemplar a luta armada de libertação nacional contra o jugo colonial, a partir de 1963, o processo de construção do Estado-nação, e a relação entre o Estado e a sociedade civil conduzida, quase sempre, de forma oportunista na gestão de recursos públicos, nos finais da década de 1980. Essa percepção de Estado fica clara quando uma dirigente afirma que: protagonizamos um Estado. Hoje estamos num Estado democrático. Nosso Parlamento é eleito na base da escolha do povo [...] Apostamos muito na defesa dos interesses da população, porque o Estado não foi adquirido de bandeja. Foi adquirido com grandes sacrifícios e custou muitas vidas. Por isso temos que mudar o nosso comportamento. Não devemos basear a política na defesa de interesses pessoais que não beneficie os ideais do povo. Temos que fazer com que Guiné-Bissau seja tratada de forma diferente de tudo aquilo que o país vem passando de negativo ultimamente. (Dirigente do PAIGC, entrevista, 15 Julho, 2012)

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9 Essa entrevistada foi combatente na luta armada de libertação nacional e assumiu vários cargos públicos após a independência. Seu relato revela um desencantamento, a fragilidade do Estado, a emergência de uma política de interesses que “não beneficia os ideais do povo”. Apesar de sua participação nos sucessivos governos do PAIGC, a entrevistada não se sente incluída no grupo de políticos oportunistas que utilizam o Estado como espaço de acumulação e de defesa dos interesses de grupo. É por esse motivo que pede “mudança de comportamento”, isto é, mudar a imagem negativa do Estado.

10 Outro elemento que se sobressaiu, nas percepções dos grupos e organizações da sociedade civil na Guiné-Bissau, relaciona-se à defesa da identidade de grupos organizados etnicamente ou regidos historicamente, como atores da sociedade civil presentes na cena política. Os grupos e movimentos populares afirmam que a defesa da identidade relacional é um processo necessário de luta para a construção de autonomia, igualdade e solidariedade coletiva, “pois se ficarmos apenas esperando apoio dos nossos governantes, nossos djintons, os grupos culturais de mandjuandade3 não vão continuar, vão desaparecer” (grupo de mandjuandade Pabia de Amanhã de Inpantcha). Nessa percepção, o principal campo de embate com o Estado é o da preservação da identidade, que ficou conhecido nos escritos de Amílcar Cabral, de resistência cultural de grupos de mandjuandade para a formação de uma nova cultura nacional (Cabral, 1979; Teixeira, 2010).

11 Essa percepção da identidade, organizada etnicamente, é distinta da construção do Estado em Cabo Verde, associada ao argumento do “esgotamento da tradição”, isto é, um movimento político de “modernização cultural” e incorporação dos grupos não institucionalizados ao Estado. Daí a afirmação de José Maria Neves4 de que “a estratégia do PAICV, desde o início, foi a de não provocar rupturas, mas a de fazer mudanças na continuidade, por intermédio de um processo sociopolítico de esgotamento da tradição” (Documento 2)5. Nessas interpretações, o Estado emerge em duas configurações: da reestruturação e da estabilização contra possíveis elementos perturbadores da identidade nacional, relativos ao esgotamento da tradição através da modernização sociocultural. A modernização do Estado estava, por conseguinte, associada à construção de um discurso de desenvolvimento e de unidade, a qual permitiu integrar diferentes identidades e grupos sociais dentro da nação, reforçando a coesão da sociedade civil no interior do “partido do Estado”. Isso gerava uma relação de dependência na relação com o Estado.

12 Com o fim do Estado provedor e a adequação às novas exigências internacionais, os Estados cabo-verdiano e guineense, confrontados com a crise política e econômica da década de 19906, foram obrigados a reorientarem os seus sistemas de governação, a partir dos programas de ajustes, delineados no Consenso de Washington, e das imposições do FMI e do BM para soluções de problemas sociais, políticos e econômicos. A definição dos programas de governação do Movimento para a Democracia-MpD, no quadro do liberalismo, é reveladora dessa terceira percepção na redefinição do Estado e nas suas diferentes relações com os setores da sociedade civil. Os princípios que nós defendemos resultam, fundamentalmente, da noção de desenvolvimento e da democracia liberal, que tem como base a garantia de liberdades e direitos individuais, fundamento e limite do poder político. Tem como objetivo a consolidação de uma economia do mercado, onde os atores econômicos possam exercer plenamente a liberdade de produzir, investir e consumir. Ele defende o exercício da cidadania e participação através de uma sociedade civil responsável, atuante e autônoma em relação ao Estado e governo, que somente se optem através de “checks & balances”, pela valorização do capital humano. Um Estado forte, eficaz e desenvolvimentista, que tem como núcleo central assegurar contratos e arranjos

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institucionais que garantem a confiança entre os agentes econômicos e proporcionar oportunidades iguais para todos os cabo-verdianos. (MpD, 2006, pp. 7-11)

13 Simultaneamente ao processo de redefinição estatal, ocorreu a expansão das organizações sociais e abertura de canais de acesso para a representação dos seus interesses, no âmbito do próprio aparelho do Estado. O setor que conheceu uma maior expansão na luta pela efetivação de direitos de cidadania e descentralização foi o das ONGs (organizações não- governamentais) e associações comunitárias. O depoimento do dirigente da Plataforma das ONGs ilustra bem essa expansão quando diz: Em 1991 houve abertura política com a realização das primeiras eleições. As condições políticas já estavam criadas. As condições passaram a ser favoráveis. Havia pluripartidarismo e ninguém já não apontava o dedo ao outro [...] Quem quisesse criar uma associação, criava sem problema, a Lei é clara. E aí houve um boom de surgimento de associações. E hoje eu diria que entre as organizações que já surgiram, morreram e entre aquelas que funcionam bem e outras que funcionam de forma secional, temos mais de 800 associações entre ONGs, associações comunitárias, grupos culturais, recreativos e desportivos. (Dirigente da Plataforma das ONGs, entrevista, 12 Junho, 2012)

14 O entrevistado destaca o momento de pluralismo político e confrontação de forças no Estado e na sociedade civil, onde a diversidade passou a ser a base da constituição e da representação de interesses (ou solidariedade) no interior do Estado. É um momento politicamente novo, marcado pela pressão e rejeição do “partido do Estado”, colocando em xeque sua capacidade de representação e legitimidade política.

15 Na Guiné-Bissau, os grupos e organizações da sociedade civil entrevistados mostram-se conscientes dos desafios que terão pela frente para mobilização desse sentimento coletivo de solidariedade, num quadro conflituoso e contraditório, não muito favorável, que marcou a formação do Estado guineense. Uma dirigente urbana do grupo de mandjuandade Nivaquina mostrou-se bastante preocupada e reticente com a representação política dos partidos e o funcionamento do Estado guineense, que ela avalia como negativos para a atuação da sociedade civil na articulação de novas formas de relações com a sociedade política, que são também relações institucionais e partidárias: As classes políticas [partidos políticos] têm um papel muito importante, mas não cumprem na sua totalidade [com esse papel]. Porque ser político não é só esperar os momentos das eleições. Mas um bom político é aquele que lida dia-a-dia com os problemas da população, que passa nas comunidades, nas regiões, etc. Saber em cada sociedade qual é a dificuldade, qual é o ponto forte e qual é o ponto fraco. Conhecendo todas essas dificuldades poderá se orientar melhor no trabalho do seu partido. Ser político não é esperar assumir o poder. É dar exemplo no próprio partido. Só assim pode convencer as pessoas a votarem no seu partido. (Rainha do grupo Nivaquina, entrevista, 13 Julho, 2012)

16 A classe política teria, portanto, que alterar sua forma de conceber o político, incorporando ou abrindo novos espaços às forças sociais que pressionem, de forma contestatória, sua atuação no Estado. O desejo da ampliação das dimensões e conteúdo do Estado vem acompanhado da recuperação da importância da prestação de contas e de práticas políticas capazes de minimizar os problemas rurais e urbanos não resolvidos pelo Estado. Nesse sentido, coloca-se a importância de uma redefinição da concepção do Estado. Hoje as pessoas reclamam de algumas figuras políticas nomeadas sem nenhuma competência. Há muitas pessoas competentes nos ministérios que não são promovidas porque não são parentes. De certa forma não sei até aonde tudo isso vai parar. (Dirigente do CNJ, entrevista, 11 Junho, 2013)

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17 As relações de parentesco são apontadas, pelos entrevistados, como uma das razões da ineficiência do Estado. Essa visão nepotista pode ser interpretada como a impossibilidade da garantia da liberdade da livre concorrência, mérito e competição, tal como defendido pelo modelo de “Estado de direito” e da “democracia liberal”. O Estado guineense funciona numa ampla política de nepotismo, formando alianças de famílias, de grupos sociais e políticos fortemente vinculados aos governos regional, setorial e nacional. Seus responsáveis são, na maioria dos casos, homens e mulheres ligados ao partido que, pela sua posição de liderança na tabanka7/comunidade rural e urbana, exercem influência política entre as populações locais na prestação de serviços ou promessas eleitorais.

18 Essa visão encontra-se em outras pesquisas. Carlos Lopes (1982) constatou a presença de interesses e percepções distintas do Estado, que relacionam as disputas de atores locais às demandas globais do mercado capitalista, afirmando que sua formulação falhou porque após a independência o Estado deveria integrar os grupos sociais, lutar contra o êxodo rural, manter as bases democráticas do poder em todo território nacional e pôr a tônica na produção de bens de uso em detrimento dos bens de troca, mantendo a população rural em suas áreas. O Estado preferiu instalar-se numa economia de mercado que transforma tudo em bens de troca para exportação. A política externa de não alinhamento transformou-se num não alinhamento cúmplice. Isso porque com o aumento da dependência externa, instalou-se a corrupção e o desleixo administrativo do aparelho estatal (Lopes, 1982, p. 86). A corrupção acirrou o conflito interno e a disputa pelo controle de poder dentro do aparelho estatal, entre diferentes agentes, gerando um conjunto de problemas sérios e dificultando a articulação de consenso na Guiné-Bissau.

19 Em oposição à percepção de Estado como expressão do capital internacional, as organizações e grupos da sociedade civil se caracterizaram como de defesa das condições de cidadania em geral. O que implicou mais desenvolvimento econômico e menos desigualdades socioeconômicas como condição da democratização do espaço público na Guiné-Bissau. O depoimento seguinte de um dirigente guineense que trabalha no meio rural e urbano confirma essa noção de Estado relacionada à questão nacional: A nossa democracia continua frágil. Para consolidar a democracia é preciso consolidar a ideia de Estado guineense soberano economicamente [com menos desigualdade social]. Tem todo o recurso potencial para ser. A questão de conseguir amplo consenso nacional sobre as principais questões da Guiné-Bissau, na atualidade e no futuro, mobilizando todas as forças vivas da sociedade, é para nós crucial para permitir de fato que o Estado seja capaz de satisfazer as necessidades básicas da população e assumir a governação. (Dirigente da ONG Tiniguena, entrevista, 17 Julho, 2012)

20 Na perspectiva comum dos entrevistados, até aqui analisada, o processo de democratização do Estado não foi entendido ou incorporado como uma rearticulação e uma reconfiguração relacional/consensual entre o Estado e a sociedade civil, e isso constitui uma das suas fragilidades por não possuir uma base interna de sustentação.

21 Em síntese, na Guiné-Bissau a percepção de Estado ficou marcada pela presença da elite militar, do partido e a defesa da identidade de grupos organizados etnicamente ou regidos historicamente, mais forte do que em Cabo Verde. Observamos que em Cabo Verde o Estado fora percebido pelos entrevistados como resultado da aproximação com o Ocidente, tanto na garantia da legitimidade política do Estado, quanto na sobrevivência econômica, mas ambos os países se aproximam no que tange à luta da sociedade civil pela construção de novos espaços e a redução das desigualdades sociais, não obstante o peso

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do partido e a dependência das agências internacionais da ONU. Essa luta pode ser percebida nas diferentes percepções que os grupos e dirigentes têm da sociedade civil.

Percepções de sociedade civil

22 Tendo em vista períodos distintos e características específicas da sociedade civil, faremos uma reconstrução em termos de sua configuração social e histórica, cultural e organizacional. A partir dessas considerações, citamos, aqui, um depoimento importante sobre a configuração da sociedade civil em Cabo Verde, cuja presença teve início com os grupos pré-existentes, anteriores à independência, como é o caso de grupos de tabanka8, do funaná e do batuko9 – grupos socioculturais que tecem formas específicas de sociabilidade. Nós já tínhamos sociedade civil na época colonial. As pessoas manifestavam-se através da , do funaná e do batuko, de atividades religiosas e socioculturais. Mas do ponto de vista da organização era muito incipiente [ou reprimida pelo poder colonial]. Havia associações religiosas da Igreja Católica, entre outras, que desempenhavam toda uma ação de solidariedade a nível das comunidades. De modo que nós aqui em Cabo Verde falamos de uma sociedade civil antes da independência, depois da independência até digamos anos 1980, e desse período até os dias de hoje [com a democratização e o pluripartidarismo]. São etapas diferenciadas. (Dirigente da Plataforma das ONGs, entrevista, 12 Junho, 2012)

23 Os embates ocorridos na sociedade colonial cabo-verdiana levaram ao surgimento, a partir dos anos 30 do século passado10, de grupos não formalizados da sociedade civil. Suas práticas e identidades foram inicialmente rejeitadas, tratadas pelo Estado colonial e pela Igreja Católica como “cultura de pretos” (Semedo & Turano, 1997).

24 A partir da primeira metade da década de 1980, retomando a periodização apontada acima, o campo político caracterizou-se pela redefinição das organizações e grupos sociais, na qual as práticas da sociedade civil se limitavam às atividades políticas no interior do “partido de Estado”. Nesse período, marcado pelo sistema monopartidário, as organizações de massas estavam predominantemente determinadas pelo partido através de um conjunto de programas destinados às associações de mulheres, de jovens, de crianças, de trabalhadores de cooperativas, representadas pelo PAICV a nível dos municípios. Tomando como base seu programa, dirigido às organizações de massas, o PAICV defendeu uma visão homogeneizadora de organizações e grupos da sociedade civil, entendida como consagração de várias centenas de ativistas na tomada de consciência, responsabilidade e afirmação das organizações sociais de massas das mulheres nas estruturas do partido, na participação e afirmação das organizações de massas como parceiras e interlocutoras privilegiadas do Estado na busca de melhores vias para a resolução de problemas das mulheres cabo-verdianas, com ênfase na transformação da sociedade através de projetos de desenvolvimento que garantem a emancipação feminina em Cabo Verde. Significa lutar para contribuir no processo da construção nacional através da promoção de programas culturais, conferências regionais e nacionais como as que tiveram lugar entre 1981 e 1986 no âmbito da OMCV [Organização das Mulheres de Cabo Verde]. O resultado das campanhas de emulação constitui um marco importante de adesão das massas femininas à OMCV e sua aceitação pela nossa sociedade. (Documento 3)11

25 Nessa perspectiva homogeneizadora, o programa do PAICV partiu do princípio de que o partido é que organiza, compõe e dá sentido à sociedade civil, até então “sem” consciência política, responsabilidade e afirmação na luta pela emancipação e pela sua

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autoaceitação como parte da sociedade civil e do partido, que só foi possível por intermédio de um trabalho político de promoção cultural, conferências e incentivo à emulação coletiva para o desenvolvimento, deslocando a participação política para o campo econômico. Assim, o projeto unitário do “partido de Estado” centrou-se na despolitização das relações sociais, na seletividade de direitos, que anulou o princípio de autonomia e suprimiu os direitos políticos da sociedade civil de se organizar por si mesma. Essa seletividade de direitos funda-se em critérios meramente partidários, basicamente na manutenção de clientelas políticas e no estabelecimento de uma ordem social não suscetível à contestação e competição de forças sociais e políticas externas ao partido.

26 Um processo semelhante ocorreu na Guiné-Bissau na relação entre as organizações de massas e o partido, tal como apontado por uma dirigente em seu relato e interpretação. Ao comentar sobre a organização da sociedade civil, sua estrutura e participação política, uma dirigente elabora o que lhe parece o mais significativo dessa percepção: A UDEMU [União Democrática das Mulheres da Guiné] passou etapas de tormento do PAIGC. É uma organização de massas e todas as relações e intervenções de mulheres acontecem no âmbito da UDEMU. Em 1990, com a abertura democrática, a UDEMU deixou de ser a única organização de mulheres. Nesse sentido, tentámos criar a Federação de Mulheres de Atividade Econômica, em Bissau e nos Setores, mas essa organização não teve continuidade. Depois do conflito político de 1998, a UDEMU começou a perder a sua importância e desempenho, inclusive sua estrutura política a nível de base. (Dirigente do PAIGC, entrevista, 16 Julho, 2011)

27 Assim, ela apresenta como organizações de massas pré-democratização funcionavam como canal de representação política do PAIGC. Foi um momento de atrelamento entre movimentos, partido, Estado e governo que revelava o problema da representação política das organizações da sociedade civil nas estruturas de base. Independentemente da natureza social ou institucional dessas organizações sociais de massas ou instituições ligadas ao regime, o acesso a determinados recursos era feito através do partido ou por intermédio de estruturas associativas controladas por ele, o que inibia a prática articulatória e a participação política autônoma da sociedade civil frente ao projeto homogeneizador do regime de partido único (PAIGC). Por outro lado, esse relacionamento fiel e ambíguo de organizações sociais de massas com o PAIGC, no processo de liberalização política e econômica, presente no primeiro momento, contrapõe-se à configuração da sociedade civil no processo de democratização, a partir dos anos de 1990.

28 Nesse segundo momento, marcado pelo pluralismo, os diversos setores da sociedade civil começaram a questionar as estratégias que garantiam a base social do regime, lutando contra qualquer tentativa de inviabilizar e/ou destruir as ações adversas aos seus interesses. A estratégia de criação de uma Federação de Mulheres de Atividade Econômica (FMAE), para coordenar e controlar ações das mulheres predispostas a participar na construção de uma classe empreendedora, controlada pelo PAIGC, não gerou os resultados almejados frente à proliferação de organizações da sociedade civil, com características distintas das estruturas tradicionais de representação político-partidária. É nesse contexto democrático que se coloca o desenvolvimento crescente de atores, demandas, perspectivas, conflitos e negociações que potencializam enormemente a participação da sociedade civil no terreno da política, que vai sendo progressivamente conquistada, impondo-se ao Estado a incorporação de outros interesses e grupos sociais.

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As relações entre a sociedade civil e o Estado

29 As transformações políticas ocorridas na sociedade cabo-verdiana, nos anos 1990, levaram à atualização e ao surgimento de novas relações entre a sociedade civil e o Estado. O processo de democratização trouxe, para as organizações e grupos da sociedade civil cabo-verdiana, o desejo de romper com os mecanismos de poder estabelecidos no regime anterior de partido único (PAICV). Não obstante o desejo de autonomia e da responsabilidade interna, essas organizações se confrontaram com dificuldades de intervenção, quer em termos de sua relação com o Estado, quer no cumprimento de agendas e metas. A fala de um dirigente da Plataforma sobre a relação com o Estado, transcrita a seguir, ilustra esse desafio e mostra um sentimento ambíguo, comum a outras organizações e grupos da sociedade civil de Cabo Verde. Nós antigamente trabalhávamos na base de projetos, de recursos que vinham do governo. Hoje, nós temos a nossa própria agenda. Evidentemente que vamos ter dificuldade em concretizar a nossa agenda, nossos caminhos já estão definidos. E pouco a pouco vamos reunir condições para que a nossa agenda seja efetivada. Provavelmente, quando vamos avaliar agenda atual, podemos constatar que ficamos um pouco longe da meta. Mas na próxima agenda podemos [nos] desviar menos, e pouco a pouco vamos superar os desafios. (Dirigente da Plataforma das ONGs, entrevista, 13 Junho, 2012)

30 Apesar da adoção de nova agenda, da ampliação de novas fontes de financiamento, da sensação de diminuição do vínculo com os projetos do governo anterior e o sentimento de superação interna, não fica claro, na fala, a desvinculação entre o projeto do regime anterior e o projeto de democratização das relações entre a sociedade civil e o Estado baseado em parcerias, persistindo dificuldades para ações efetivas.

31 O desejo de parceria, a partir da complementaridade de ideias, ainda não encontrou espaço ou mecanismos capazes de transformar as organizações em construtores e executores de seus próprios projetos, enquanto atores autônomos e complementares do Estado. Um dirigente da sociedade civil afirmou a importância desse tipo de complementaridade, não apenas no discurso de que há espaço para todos, mas, primordialmente, na necessidade de pertencimento, de participação, de ampliação do conteúdo democrático e de cidadania, desde que garantidos através de projetos articulados com os interesses dos atores sociais. Essa mudança na relação com o Estado ainda não aconteceu, conforme afirmou um dirigente da Plataforma das ONGs de Cabo Verde. Quanto à relação entre a sociedade civil e o Estado fizemos uma campanha grande e a avaliação é boa. Não quer dizer que não temos ainda caminho a trilhar. Agora vendo o ponto de partida, fizemos progressos. Hoje, pelo menos todos os atores já reconheceram e entendem que há espaço para todos, e que esta sociedade nos pertence a todos e que todos temos um papel a desempenhar. Isso já deixou de ser confusão. É um dado adquirido. De modo que os nossos discursos hoje são de uma perspectiva de parceria, de complementaridade, de djuntamon [parceria ou cooperativismo]. Mas o que falta é levar esse discurso à prática. Porque a prática ainda está um pouco atrasada. Na prática, vemos que há ciúmes, cada um procura fechar-se no seu próprio território, que as parcerias às vezes não são efetivas. Quer dizer, o meu projeto é o meu projeto. Os outros participam, mas [pausa] é uma participação que não é objetivada. E as nossas relações com órgãos públicos têm a ver com isso. (Dirigente da Plataforma das ONGs, entrevista, 13 Junho, 2012)

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32 Mesmo que a avaliação do caminho percorrido mostre resultados positivos, o problema não é a falta de relações ou de parcerias formais, mas de ações concretas em direção às relações, para dar visibilidade e legitimidade, criar novos espaços e valorizar as organizações da sociedade civil, onde o desejo da democracia de djuntamon, ou parceria, poderia se tornar mais efetivo para a construção de outras formas de relação e mesmo de autonomia e corresponsabilidade.

33 Na Guiné-Bissau, as relações entre a sociedade civil e o Estado se situam no cenário global a partir de uma configuração particular que combina três níveis: a relação entre Estado, ONGs e associações comunitárias, impulsionadas pelos projetos financiados pelas agências internacionais de desenvolvimento; a relação entre o Estado, organizações e grupos da sociedade civil, pré-existentes à independência, em virtude do monopólio e do clientelismo no âmbito da intermediação partidária; e, finalmente, a relação a partir da tentativa de articulação de redes de debates e sugestões no âmbito das organizações e grupos da sociedade civil. O ponto central é o conflito interno, dando origem a um conjunto de articulações que potencializam dinâmicas sociopolíticas de democratização a partir da canalização de demandas.

34 Ao relatar a relação entre o Estado, as organizações e grupos da sociedade civil, um dirigente urbano do Fórum Nacional da Juventude e População apontou o descompasso entre ações sociais e ausência de engajamento ou colaboração efetiva do Estado na busca da superação de dificuldades, destacando em sua interpretação que: o Fórum da Juventude e População é uma organização voltada para a saúde sexual reprodutiva, que é a nossa área de intervenção. Os nossos parceiros são UNICEF [Fundo das Nações Unidas para Infância], FNUAP [Fundo das Nações Unidas para a População] e SNS [Serviço Nacional de Saúde de Portugal]. A nossa cooperação com esses organismos tem sido boa. No entanto, um dos grandes problemas é a burocracia, planificações não cumpridas. A colaboração do governo é fraca. Nossos relatórios não são levados em consideração pelo governo. As recomendações ficam na gaveta. (Dirigente do FNJP, entrevista, 15 Junho, 2012)

35 Nesse relato, não se pode falar de uma relação efetiva com o Estado no processo de democratização. Isto porque as recomendações e os relatórios sobre os problemas concretos da sociedade civil são engavetados ou despolitizados pelo Estado. A forte ênfase nas agências internacionais revela que os projetos têm uma relação mais direta com o Estado do que a participação das organizações e grupos sociais nas instâncias governamentais. Por outro lado, há um conformismo da sociedade civil em função da “própria ausência das instituições de Estado. Isso leva cada vez mais as instituições externas a terem alguma interferência legítima na definição de políticas públicas que o Estado adota (...) como modelo mais adequado para as organizações da sociedade civil” (ONG Tiniguena). Assim o Estado guineense expressa sua natureza de relações instrumentais, em inúmeras formas com actores sociais, resultado de um longo e doloroso processo normativo mal interpretado e inacabado de liberalização política (Barros, 2010).

36 Encontramos a mesma política de instrumentalização na relação entre Estado e grupos pré-existentes na democratização, em Cabo Verde e Guiné-Bissau, sobretudo nos processos eleitorais. No caso das ilhas de Cabo Verde, Costa (2013) adota o conceito de “colonização de espaços de memórias” pelos atores políticos após a independência na disputa pela supremacia eleitoral. Varela e Lima (2014) buscam evidenciar o aparecimento de um “tipo novo” de cenário que se abriu na relação entre a sociedade civil e os partidos políticos estruturado a partir do que eles denominam de “mercenarismo

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juvenil”, utilizado como instrumento de aquisição, de preservação e de exercício de poder.

37 Há um sentimento de clientelismo, de exploração eleitoral, mas, também, de conscientização política que resulta do próprio processo vivido na experiência organizativa dos grupos. Diante de aproveitamento político, as reações são as mais diversas: alguns falam até da (re)criminalização, ingratidão e falta de compromisso dos partidos, como aponta o relato da dirigente do grupo Velhas Guardas de Guiné-Bissau: A relação da classe política com o grupo é de interesse. Já fizemos uma canção sobre isso. Quando precisam de apoio, somos chamados de mãe. Mandam saco de arroz, camisetas, etc. Quando assumem o poder, somos vistos como inimigos e nossos filhos como delinquentes. (Rainha de grupo de mandjuandade Velhas Guardas do Bairro de Ajuda, entrevista, 12 Junho, 2012)

38 Além da questão da ilegitimidade do Estado, em termos de sua inserção social na área de saúde, tema que neutraliza o debate político e polémico atribuído a outras esferas, os entrevistados guineenses explicitam a ausência de relações em outros campos. Uma manifestação dessa ausência de uma relação entre a sociedade civil e o Estado pode ser identificada no caso da Liga Guineense dos Direitos Humanos. A relação com o Estado, intermediada pelos projetos que estão sendo implementados no país, se articula a partir da aproximação com o PNUD para atendimento de reivindicações específicas e afirmação de direitos no âmbito do Estado, sendo a partir de projetos que a Liga consegue se inserir na relação tripartida entre Estado, sociedade civil e PNUD, como afirma um dirigente: A nossa principal exigência é a questão da justiça. Para nós a justiça é fundamental para o equilíbrio social. Não se pode pensar na paz e no desenvolvimento sem que as pessoas tenham acesso à justiça, sem garantir efetivamente que os tribunais consigam desempenhar cabalmente a missão constitucional que lhes é incumbida. A Guiné-Bissau corre sérios riscos de se tornar um Estado onde reina a impunidade. Foi nessa perspectiva que nós estamos a participar de um projeto tripartido entre governo, PNUD e Liga Guineense dos Direitos Humanos, no sentido de facilitar o acesso dos cidadãos à justiça. Foram criados centros de acesso à justiça nas regiões de Oio, Cacheu e no setor autônomo de Bissau, centros pilotos, para dar orientação e formação jurídica aos cidadãos sobre os seus direitos, e, caso necessário, encaminhá-los ao tribunal. (Dirigente da LGDH, entrevista, 11 Junho, 2012)

39 Equilíbrio social, segurança e paz, direitos e desenvolvimento são compreendidos como ausência do Estado em sua relação social. Essa alienação é interpretada como consequência da falta de justiça para que as demandas sejam satisfeitas e reconhecidas como legítimas e, portanto, passem a fazer parte da própria noção de direitos na relação entre a sociedade civil e o Estado. Nessa acepção, a Liga existe para garantir os direitos humanos na sociedade civil. Por outro lado, a questão da relação se desloca do campo da participação para o campo da garantia de direitos subjetivos, o que pode ser interpretado como um amplo desejo de redefinição de uma nova cidadania por intermédio de projetos como pressuposto da representação e avaliação da legitimidade do Estado.

40 Outro elemento que sobressai, na institucionalização das reivindicações e demandas, é o envolvimento dos grupos nas ações de solidariedade e identidade coletiva conhecidas na Guiné-Bissau por Mon na mon ou Djuntamon, que possibilitam intervenção organizada na busca pela construção de um espaço público de iguais e na redução das desigualdades sociais ou “canseiras” cotidianas (ONG Tiniguena). Essas experiências têm implicação direta no aprofundamento de “repertórios herdados” e na constituição de novos significados no interior dos grupos e em suas diferentes relações com o Estado. Nesse sentido, os grupos de mandjuandade têm desempenhado um papel importante na

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promoção da “felicidade” junto às organizações sociais em geral e, portanto, no reforço da “dignidade humana” e da “solidariedade” na sociedade civil guineense. Essa interpretação revela o desejo da ampliação da esfera pública e garantia de participação plural, em que seja contemplada a diversidade cultural de grupos étnicos com suas respectivas subjetividades na preservação “daquilo que é nosso” (ONG Tiniguena). E isso é válido tanto para as organizações e grupos urbanos como para os rurais.

41 Em Cabo Verde, diferentemente da Guiné-Bissau, as questões de desequilíbrio sociopolítico, inconstitucionalidade, impunidade, falta de acesso à justiça e formação jurídica dos cidadãos não se colocam como problemas na relação entre as organizações da sociedade civil e o Estado. As observações de um dirigente urbano cabo-verdiano revelam, em termos de demandas, a ineficácia do Estado em construir um modelo de sociedade capaz de resolver os problemas coletivos e garantir a melhoria das condições sociais das comunidades urbanas e rurais, como se verifica nesse relato, que revela o sentimento coletivo de um grupo de jovens cabo-verdianos sobre a ação do governo local, concretamente a gestão da Câmara Municipal da Praia: Nossa organização fez uma parceria com a Câmara Municipal da Praia no apoio à permanência de crianças no jardim por nós criado. Também conseguimos instalar um chafariz para abastecimento de água. Não temos água canalizada, estrada asfaltada, não existe rede de esgoto numa capital que se diz fazer parte do Grupo de PRM [Países de Rendimento Médio]. (Dirigente da Associação para o Desenvolvimento de Terra Branca Expansão, entrevista, 20 Junho, 2012)

42 Colocam-se os problemas administrativos do Estado que, apesar de fazer parte do Grupo de Países de Rendimento Médio, não consegue garantir sequer o abastecimento de água, acesso à rede de esgoto e estrada asfaltada. Observa-se daí o dilema de uma sociedade que transita entre um “Estado minimalista” que não garante o “mínimo” e uma sociedade civil dependente de recursos públicos cedidos pelo Estado, através das câmaras municipais. Nessa perspectiva, põe-se em evidência o desejo pela definição de novas relações entre a sociedade civil e o Estado cabo-verdiano.

43 Outra vertente dessa relação entre a sociedade civil e o Estado vincula-se à necessidade de articulações, que se evidenciam nas entrevistas dos dirigentes. Em Cabo Verde a União Nacional dos Trabalhadores de Cabo Verde (UNTC-CS) está redefinindo sua inserção no contexto das articulações com organizações e atores externos, desenvolvendo parcerias com os movimentos populares do Brasil, por intermédio da Central Única dos Trabalhadores (CUT), colaboração na área de novas tecnologias de comunicação para diminuir a descontinuidade geográfica e regional existente entre organizações da sociedade civil cabo-verdiana; articulação com organizações sociais luxemburguesas, holandesas e portuguesas para o reforço da relação sindical e realização de projetos conjuntos com a UNTC-CS no sentido de possibilitar, através da cooperação e parcerias internacionais, maior engajamento das organizações e grupos da sociedade civil. É nesse quadro de colaborações, em que se agrupam diferentes países e organizações financiadoras, que somos financiados no quadro da cooperação internacional. Temos alguns projetos e relações com vários outros países. Por exemplo, com o Brasil temos com a CUT [Central Única dos Trabalhadores], assim como com Luxemburgo e Holanda. Nesse momento, temos um projeto com Luxemburgo na área de novas tecnologias de comunicação. Com Portugal, temos um projeto de formação à distância, precisamente para ver se colmatamos essas questões das distâncias. Isso porque a questão da situação geográfica do país obriga-nos a ter meios para manter a ligação com todas as estruturas que nós temos em todas as ilhas, nomeadamente a

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comunicação com os trabalhadores, com dirigentes. Para me deslocar a uma ilha qualquer sou obrigado a ter que apanhar um avião. Nós não somos como a Guiné- Bissau. Mete-se num carro e vai onde quer. Aqui não. Precisamente porque estamos dispersos. É muito difícil passar as formações que fizemos aqui na sede para outras ilhas. Precisamente agora, através da cooperação internacional, nós estamos a tentar fortificar a comunicação através de novas tecnologias que vai ligar a central e as outras ilhas para ver se conseguimos ultrapassar essa barreira geográfica [...] No entanto, os financiamentos estão com tendência a diminuir por causa da crise. Isso é de fato preocupante para uma organização como a nossa, com recursos limitados. (Dirigente da UNTC-CS, entrevista, 12 de Junho, 2012)

44 A esses financiamentos agregam-se outros recursos, com base nos pressupostos definidos anteriormente pelos entrevistados, sendo os principais vinculados à União Europeia, a Cooperação Austríaca, o Fundo da Embaixada dos Estados Unidos, a Cooperação Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura. Esta última tem o peso maior pela abrangência das suas ações e valor global de financiamento (Lima & Liedke Filho, 2010, p. 135). A Cooperação Espanhola apoia ações de combate à proliferação de armas, HIV, consumo de drogas, promoção de ações de cidadania e direitos humanos (Espaço Safende). As organizações de jovens procuram responder à crise de acesso aos bens públicos pela parceria internacional, articulando grupos e organizações da diáspora cabo- verdiana para o desenvolvimento de ações coletivas em cento e dois bairros suburbanos da Praia.

45 Apesar do forte engajamento dos atores da sociedade civil na execução de planos para a resolução de problemas da vida urbana, desenvolvendo atividades importantes, persistem as carências de ordem estrutural e dificuldades decorrentes do sentimento de ausência da participação do Estado nas questões sociais. A Liga não tem um espaço próprio. Neste momento estamos num espaço cedido pelo Centro da Juventude da Praia. No entanto, como o Centro abriu outro programa aqui dentro, o espaço já foi ocupado por esse programa. Neste momento, não temos um computador, não temos secretárias e não temos materiais de trabalho. É no meu trabalho que aproveito para fazer as coisas. Temos tido imensas dificuldades. Neste momento, estamos a tentar criar parcerias com as organizações internacionais. Estamos à procura desses contatos. Estamos também a tentar contatos com associações da diáspora cabo-verdiana em Portugal, na Holanda e no Luxemburgo, no sentido de tentar encontrar organizações parceiras. (Dirigente da LAJP, entrevista, 12 de Junho, 2012)

46 Além da ausência de um espaço físico das organizações juvenis que atuam nos níveis locais, concelhos e freguesias, os jovens enfrentam problemas logísticos, como falta de computador e materiais básicos de funcionamento. É nesse contexto que surge o interesse pela articulação externa, sobretudo europeia, não apenas no atendimento às demandas, mas também nas relações com organizações e associações parceiras, em que o Estado assume papel de intermediador. Por outro lado, vem ocorrendo uma mudança muito importante que resulta, em grande medida, dos limites da articulação internacional, da qual as associações e as ONGs dependem, em consequência da crise das políticas neoliberais de financiamento para o desenvolvimento, como reafirmada na entrevista do dirigente da Plataforma das ONGs: A tendência é para a diminuição de recursos, sobretudo a partir do momento em que Cabo Verde entrou para a lista de países de rendimento médio. Isso vem condicionando progressivamente a mobilização de recursos, sobretudo aos atores não-governamentais. De modo que o caminho que temos que trilhar agora é de redefinir a nossa estratégia de mobilização de recursos porque existem outros

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fundos, outras formas de financiamento que podem se ajustar aos países de rendimento médio. Mas temos que trabalhar e conhecer melhor essas fontes de financiamento, temos que nos apropriar e dominar os mecanismos para aceder a esses financiamentos. Isso leva o seu tempo. (Dirigente da Plataforma das ONGs, entrevista, 10 de Junho, 2012)

47 Paralelamente às práticas articulatórias das organizações nacionais envolvidas nos projetos internacionais de cooperação para o desenvolvimento, deu-se, no plano interno, o surgimento da “Casa do Direito”, criada pelo Decreto-lei nº 62/2005 com o objetivo de instituir pontos de encontro do cidadão, abertos a todos e entregues às comunidades, com a finalidade de promover a cultura de paz e garantir o pleno exercício da cidadania, articulando ações governamentais no campo de resolução de conflitos sociais, consulta jurídica e mediações de conflitos na sociedade civil. A Casa do Direito vem cooperando com a Ordem dos Advogados para proteger as populações desprovidas de recursos econômicos no exercício da cidadania em diferentes ilhas de Cabo Verde (Casa do Direito). A articulação entre a Ordem dos Advogados e a Casa do Direito revela uma ampliação de demandas e reivindicações de direitos civis, econômicos e sociais dos grupos e organizações, o que expressa preocupação com a superação dos conflitos, deslocando-os do campo sociopolítico para o campo jurídico.

48 Na Guiné-Bissau, os dirigentes das organizações e grupos da sociedade civil explicitam que é preciso reforçar as relações com o Estado para os problemas específicos enfrentados na sociedade como um todo, na medida em que buscam colaborar e elaborar sugestões nos fóruns de debate, articulações com diversos grupos frente à inoperância do Estado na promoção de espaços de ações coletivas, de demandas e de representação política.

49 Todos os entrevistados revelaram apreensão face a certos perigos nas relações de apropriação privada dos recursos públicos, na expansão e alteração dos hábitos alimentares devido à desorganização de grupos de produtores e desvalorização de “produtos da terra”.

50 As ações coletivas vão avançando na medida em que as organizações da sociedade civil entrevistadas assumem seus papéis para influenciar ações legislativas, garantindo a elaboração de regimentos que protejam a regulamentação da legislação e dos direitos dos movimentos de agricultoras, dos movimentos do meio ambiente e da criação de comitês nacionais especializados fazendo parte de várias iniciativas coletivas no âmbito das organizações da sociedade civil. Um dirigente da ONG Tiniguena destaca essa busca pela articulação, declarando que: as parcerias entre atores da sociedade civil têm acontecido de várias formas. Fazemos parte do grupo de petróleo e indústria extrativa que tem como principal objetivo levar a transparência na governação de recursos e sua divisão equitativa num modelo de gestão durável. Fazemos parte do grupo de trabalho para a promoção de produtos locais. Levar os guineenses a consumir o que é produzido na Guiné-Bissau e fazer com que os produtos que cheguem ao mercado sejam adquiridos, permitindo ao mesmo tempo o retorno de investimento para o próprio produtor. A nível do campo, fazemos parte dos fóruns dos produtores. A Tiniguena age na preservação do espaço e gestão comunitária, por exemplo a Feira da Terra que acontece todos os anos. Fazemos parte ainda do grupo do Comitê Nacional da UICN [União Internacional para a Conservação da Natureza] sobre a questão da conservação do espaço comunitário e do meio ambiente [...] Isto é, como ajudar o governo na adoção de legislação sobre a questão da conservação da biodiversidade. Outro espaço é o de Geração Nova da Tiniguena, que visa facilitar aos jovens oportunidades de conhecerem e criarem cumplicidade com seu país, de ter um

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engajamento enquanto cidadão e ator no processo de mudança social, econômica e política de Guiné-Bissau. (Dirigente da Tiniguena, entrevista, 15 de Junho, 2011)

51 Aqui as relações não envolvem diretamente o Estado, mas atores da sociedade civil. Observamos em tais articulações a presença de demandas globais sobre o discurso do meio ambiente e da biodiversidade, em que a cultura de projetos tem forte influência sobre as ações e os focos dos grupos e organizações da sociedade civil. Essas demandas se articulam e operam a partir de demandas específicas do espaço comunitário, reveladas pela presença de questões tanto de ordem econômica como de ordem política, dos valores, da governação, do desejo de mudança social, da descoberta e cumplicidade da juventude com seu país, da participação popular, entre outros eixos de ação de cidadania, sob o ângulo dos projetos de cooperação internacional com os quais as organizações estabelecem relações com o Estado.

52 É nesse campo também que se firmam e articulam o global e o local, a conservação e promoção de produtos locais, a partir do qual se intercambiam “composições” que revelam o nível de institucionalização da ONG Tiniguena na relação com a União Internacional para a Conservação da Natureza. Nesta perspectiva, o discurso ambiental do espaço comunitário coloca uma diferenciação com Cabo Verde, onde a questão da sustentabilidade não aparece nos relatos dos dirigentes e grupos sociais.

53 Outro elemento que sobressai, nos depoimentos sobre as relações entre o Estado e a sociedade em Cabo Verde, é a ausência de confronto ou conflito direto com o Estado. O que continua vigente nas relações, no entendimento de um dos entrevistados, são “conflitos latentes”, silenciosos e desprovidos de qualquer organização de caráter político, que começam a ganhar expressão com o aumento do desemprego, pelo fato de que: os conflitos que surgem nessa relação entre a sociedade e o Estado não estão aflorados em Cabo Verde, não se vê. Mas é claro que nós vivemos uma situação que chamamos na mediação de “conflitos latentes”, dos conflitos que estão aí por debaixo da mesa, que a qualquer momento poderão surgir se nós não resolvermos questões como o desemprego [...] Não podemos escamotear os problemas, eles existem, mas não há um conflito claro no meu ponto de vista. (Dirigente da Casa do Direito, entrevista, 11 de Junho, 2012)

54 A fragilidade da identidade da sociedade civil ou seu deslocamento para o campo econômico na relação com o Estado desempenha um papel importante na construção do consenso e de uma imagem positiva em relação à unidade dada pelo Estado. Nesse processo discursivo, ganha centralidade o discurso da nação crioula em função da mestiçagem de grupos sociais presentes na sociedade civil cabo-verdiana. Nós somos crioulos, mestiços, uma nação crioula, muito antes de sermos um Estado em 1975 [...] Nós somos claramente uma identidade, a identidade cabo-verdiana, com uma nação, com uma língua, uma cultura própria. Se há uma questão pacífica entre nós, que não está no estado latente, é essa questão de “raça”. (Dirigente da Casa do Direito, entrevista, 11 de Junho, 2012)

55 No discurso desse dirigente identificamos o deslocamento da noção de Estado para nação crioula, no exercício do controle da sociedade. Essa substituição tem a ver com a articulação do discurso “oficioso” de que Cabo Verde não é África. Por outro lado, esse discurso confere maior controle à ação do Estado na relação com as organizações e grupos da sociedade civil que restringe possibilidades de conflito, implícita no relato seguinte. A nível do país, nós temos o Barlavento e o Sotavento. No Barlavento, temos povos com pele mais clara, já nas ilhas de Sotavento existem povos de pele mais escura.

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Essa é uma questão que veio de colonialismo. Nós fomos ensinados [na escola pública] que somos os melhores das colônias africanas, por sermos mais mestiçados, que somos mais inteligentes, que não somos africanos. A nossa aproximação com o continente africano é mínima em relação à nossa aproximação com América e Europa. Isso acaba por criar um certo conflito interno nas pessoas, não sei se isso é uma palavra mais adequada. Existe efetivamente um pouco de confusão. (Dirigente da OMCV, entrevista, 10 de Junho, 2012)

56 O depoimento atribui essa estrutura ao processo da ocupação e da colonização portuguesa de Cabo Verde, que definiu a formação social e cultural, configurada de forma distinta nas ilhas de Barlavento e Sotavento. Essa estrutura, na interpretação de Gabriel Fernandes, resultou na “diluição da África” em Cabo Verde (Fernandes, 2002, p. 189). Por outro lado, existe também uma desconfiança em relação ao discurso da mestiçagem, extensivo a outros povos pela ação de miscigenação multicultural, bem como em relação à inteligência dos cabo-verdianos, diferente dos povos continentais da África. Isso porque há um esforço de aproximação maior da sociedade civil com a Europa e os Estados Unidos, por necessidades de ordem econômica do Estado em garantir recursos para sua sobrevivência e “legitimidade” política no exercício do poder.

57 No que se refere à articulação com atores externos, não encontramos, na Guiné-Bissau, relações significativas dessa natureza que deem suporte às ações coletivas (com exceção das agências de cooperação internacional), diferentemente do que acontece com as organizações da sociedade civil em Cabo Verde, que se articulam com distintos atores externos e grupos da diáspora, que atuam na sociedade civil pela mobilização e remessas de recursos em relação às políticas públicas.

58 Na Guiné-Bissau, o único desejo de articulação foi encontrado no sindicalismo. A União Nacional dos Trabalhadores de Guiné-Bissau (UNTG) busca interagir com diferentes grupos e firmar parcerias com atores externos, articulando-se com as representações diplomáticas sediadas em Bissau para estabelecer ações conjuntas e interagir com outras organizações, na busca de alternativas que ainda não se realizaram concretamente na sociedade civil. A UNTG está a desenvolver contatos com embaixadas no sentido de elas fazer-nos contatos com as centrais sindicais dos seus países para fazermos parcerias. Estive no Brasil, a convite da CUT [Central Única dos Trabalhadores], onde manifestei a necessidade em fazer parcerias. Somos membros da OSA [Optical Society of America]. (Dirigente da UNTG, entrevista, 19 Julho, 2011)

59 Assim, a articulação com a Central Única dos Trabalhadores do Brasil (CUT) é colocada de forma semelhante pela União Nacional dos Trabalhadores de Cabo Verde, apontada no relato anterior do dirigente da UNTC-CS. Outras organizações da sociedade civil estão cooperando e colaborando com o Estado no âmbito do Movimento Nacional da Sociedade Civil para Promoção da Paz, Democracia e Desenvolvimento (MNSCPDD), que congrega e articula as demandas das ONGs e das associações comunitárias de base. Percebe-se, atualmente, um profundo interesse pelo debate que propicia a constituição de redes das organizações da sociedade civil, na medida em que defendem o princípio de concertação e projetos semelhantes, atuando em parceria com diferentes setores sociais. Tem havido uma colaboração profícua entre organizações da sociedade civil [e na relação com o Estado]. Há concorrência no bom sentido. É preciso trabalhar em rede. Da forma complexa como está a nossa realidade social, requer maior cooperação entre organizações que atuam em diferentes setores da vida nacional. Nós fazemos parte do Movimento Nacional da Sociedade Civil para Promoção da Paz, Democracia e Desenvolvimento. Esse tem sido um espaço de concertação de

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todas as organizações. Procuramos, nesse espaço, debater os nossos problemas e as nossas dificuldades e lançar-se à procura de soluções para essas mesmas dificuldades. (Dirigente da LGDH, entrevista, 15 de Julho, 2011)

60 Os sucessivos conflitos internos na Guiné-Bissau tornaram os dirigentes das organizações e grupos da sociedade civil mais interessados na necessidade da relação com o Estado para o enfrentamento de problemas no dia-a-dia, como afirma o dirigente da Liga: As relações entre as organizações da sociedade civil e o Estado estão mais facilitadas e mais acessíveis. Hoje as partes já se compreendem e reconhecem a necessidade de haver essa relação de complementaridade que implica necessariamente chamar a atenção ao poder político quando se está a desviar do caminho que deve ser seguido para evitar os constrangimentos e atrocidades que nós já vivemos aqui no país. (Dirigente da LGDH, entrevista, 15 de Julho, 2011)

61 A busca pela negociação interinstitucional tem sido apontada como de grande importância e valia pela Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH). Multiplicam-se trocas de correspondência e ações radiofônicas, chamando o Estado às suas responsabilidades. A negociação visa não apenas pressionar o Estado em relação às demandas, mas também influenciar a opinião pública através da comunicação social, sem desconsiderar os problemas políticos e as diferenças a que já se fez referência no depoimento anterior. Entre os grupos pré-existentes, não encontramos uma percepção clara sobre negociação com o Estado e os partidos, contrariamente à relação que se estabelece na disputa eleitoral. No entanto, em termos da articulação da “unidade” na diversidade, existe uma consciência da necessidade de reconhecimento desses grupos pelo Estado. Nesse sentido, a democratização também pressupõe o respeito à diferença, a presença de conflitos e a cooperação articulada, ou seja, admitir a relação contraditória de interesses presentes na sociedade civil ou no Estado, em função de suas heterogeneidades.

62 Em linhas gerais, em Cabo Verde e na Guiné-Bissau a construção democrática, nesses diferentes níveis, é entendida como uma contribuição à nova cultura democrática e como aprendizagem e meio de composição de identidades pessoais e coletiva, mas de forma distinta. Enquanto em Cabo Verde as negociações, o pacto, a busca de consensos mais amplos ganham cada vez mais legitimidade e vão possibilitando a ocidentalização da sociedade civil e do Estado cabo-verdiano, na Guiné-Bissau as percepções dos grupos e organizações apontaram a problemática do conflito interno e o respeito à diferença nas suas diferentes relações com o Estado para a consolidação da democracia de djuntamon.

Conclusões

63 Constatou-se que as relações entre a sociedade civil e o Estado configuram-se de forma distinta nos dois países, apesar de algumas similitudes. Em Cabo Verde, o caráter legalista do Estado criou as condições para a implementação da “democracia minimalista”, daí a visão da sociedade civil como produto do Parlamento, voltada para estratégias de desenvolvimento. Na Guiné-Bissau, as visões apontam a problemática do reconhecimento, conflito e centralidade do partido, mais forte que em Cabo Verde, mas ambos enfrentam a presença das organizações internacionais na definição de políticas públicas para a sociedade civil que exige a responsabilização pública do próprio Estado.

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NOTES

1. Partido Africano para a Independência de Cabo Verde, fundado em 1981. 2. Discurso de Aristides Pereira, primeiro presidente de Cabo Verde pós-independência, proferido no ano de 1986. 3. Mandjuandade é um movimento em defesa da cultura e formas de solidariedade local, com mais de cem anos de existência. Para Carreira (1983) e Bull (1989), o termo mandjuandade vem da palavra mandjua, e consiste em pessoas da mesma faixa etária, reunidas para a confraternização, danças, cantigas e outras manifestações de cultura local com o objetivo de estreitar laços de interajuda coletiva. 4. José Maria Neves é atual chefe de governo e presidente do PAICV. 5. Discurso de Georgina de Melo, membro do Conselho Nacional do PAICV, proferido no ano de 1985. 6. No início de 1991, a economia mundial entrava no novo ciclo de recessão com a crise de petróleo no mercado internacional. A crise global impulsionou a restruturação do Estado e da sociedade civil em África, do qual são paradigmáticos os casos de Cabo Verde e Guiné-Bissau. 7. Aldeia, na Guiné-Bissau. 8. Tabanka é uma organização coletiva de livre associativismo e interajuda de caráter cultural e religioso, que surgiu no decurso da sociedade escravocrata a partir de regras locais de funcionamento em defesa da comunidade e valorização da “tradição da terra” (Gonçalves, 2006). 9. Para Gonçalves (2006), batuko e funaná são músicas e danças ordinárias das ilhas, designação que os grupos dão a suas manifestações que constituem o panorama do repertório da música moderna cabo-verdiana. 10. Encontramos essa periodização em Semedo e Turano (1997) e Gonçalves (2006). 11. Discurso proferido em 1989 por José Maria Neves, atual chefe de governo e presidente do PAICV.

ABSTRACTS

O texto analisa as relações entre a sociedade civil e o Estado no processo de democratização de Cabo Verde e da Guiné-Bissau. Para alcançar este objetivo, os eixos analíticos sobre os quais se estruturará a análise levarão em conta demandas, articulações, conflitos, composições, negociações e níveis de institucionalização dos grupos para a elaboração de um quadro do repertório das ações coletivas. Defendemos o argumento de que uma nova cultura democrática está se desenvolvendo em Cabo Verde e na Guiné-Bissau, com características próprias. O corpus se constitui de entrevistas, pronunciamentos e documentos escritos sobre o processo de democratização em curso.

This text analyzes the relationship between the civil society and the state in the democratization process of Cape Verde and Guinea-Bissau. The analytic main line supporting the analysis will take

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into account the demands, articulations, conflicts, compositions, negotiations and institutionalization of vulnerable groups to prepare a framework repertoire of the collective actions. We defend the argument that a new democratic culture has been developing in Cape Verde and Guinea-Bissau, with its own characteristics. The corpus is composed of interviews, statements and written documents about the ongoing democratization process.

INDEX

Palavras-chave: sociedade civil, Estado, democratização, Cabo Verde, Guiné-Bissau Keywords: civil society, state, democratization, Cape Verde, Guinea-Bissau

AUTHOR

RICARDINO JACINTO DUMAS TEIXEIRA Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Avenida da Abolição, 3 – Centro, Redenção, CE 62790-000, Brasil [email protected]

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